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PODER E RESISTÊNCIA NO DISCURSO DA MODA
Humberto Pires da PAIXÃO1
Kátia Menezes de SOUSA2
RESUMO: O presente artigo busca refletir sobre o poder e a resistência no dispositivo da moda. Sea moda se caracteriza como um poder ancorado em saberes em cuja trama se dá asubjetivação de indivíduos, é importante questionar que poder é esse, bem como, emconsonância com Michel Foucault, olhar para as resistências e indagar acerca de suaexistência e de suas características intrínsecas. Pautando-se no viés teórico-metodológico da Análise do Discurso francesa e nas reflexões proporcionadas pelaleitura dos trabalhos de Michel Foucault, pretende-se, com base em textos que circulamna mídia, indagar sobre enunciados que foram se constituindo como um contradiscursoe como se comportam no interior do dispositivo da moda.
PALAVRAS-CHAVE: poder, resistência, discurso, dispositivo, moda.
Desde que se instalou no Ocidente como um de seus construtos mais inventivos, o que,
para alguns autores se deu no final da chamada Idade Média, a moda tem-se constituído,
ao longo dos tempos, como um poder que, amparado em saberes, contribui
decisivamente para a construção de subjetividades. Lipovetsky (2009) chega a equiparar
sua força e seu poder a um império e, partindo dessa ideia, define a sociedade de
consumo como estruturalmente tomada pelos processos de moda, o que quer dizer que
sua forma de organização vem influenciando, não apenas toda a lógica produtiva da
indústria de bens de consumo, mas também grande parte das relações sociais, com a
renovação, diversificação e estilização que lhe são próprias.
Falar de moda é, pois, mergulhar nas tramas de um dispositivo que engendra
indivíduos a partir de determinadas formas de ser e de se comportar, frutos dos poderes
e saberes que lhe são inerentes. O vestir-se à moda é, assim, um ato pautado na
aquisição de saberes específicos que proporcionarão ao indivíduo criar em/para si
mesmo simulacros de identidade por meio da sua exterioridade, de sua aparência para
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Letras da UFG. [email protected]
2 Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, doutorado em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP/Araraquara. [email protected].
1
que, com esse passaporte, possa circular socialmente. Mais do que algo fútil e
pertencente apenas ao universo feminino – apesar de evidências em contrário –, ou
mesmo algo pautado no superficial em detrimento do intelectual, o universo da moda
merece atenção, pois, em se tratando de um dispositivo de alta produtividade para a
sociedade de consumo, ele parece, pelo menos em princípio, não deixar escapar
qualquer pessoa, quer se encontre sob seu alcance imediato ou não.
Mas se a moda se caracteriza como um poder ancorado em saberes em cuja
trama se dá a subjetivação de indivíduos, é importante questionar que poder é esse,
como ele se constitui, do que ele é capaz. Indo mais além, é necessário, em consonância
com Michel Foucault, olhar para as resistências e indagar acerca de sua existência e de
suas características intrínsecas, uma vez que só há poder porque há resistência: “Esta
resistência de que falo não é uma substância. Ela não é anterior ao poder que ela
enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea.” (FOUCAULT, 2011,
p. 241)
O presente artigo, originado das reflexões proporcionadas pela leitura de
trabalhos de Michel Foucault, pretende discutir alguns conceitos foucaultianos, bem
como colocar em evidência e investigar enunciados que puderam e foram efetivamente
ditos, constituindo saberes e poderes no dispositivo/discurso da moda e, principalmente,
enunciados que foram se constituindo como um discurso de resistência no interior
mesmo desse dispositivo. Ou, dito de outra forma, pretende-se descosturar, e analisar, o
que foi efetivamente dito como contraposição às imposições do império fashion, o que
equivale a dizer: analisar o contra-discurso que, paradoxalmente, a sustenta e a
caracteriza.
Partindo-se do pressuposto de que moda pode ser vista como um construto, uma
abordagem mais aprofundada se faz necessária para que se perceba que relações de
poder e de resistência, de fato, são essas, quais elementos entram em jogo na formação
dessa “rede de nós” para se constituir o que se convencionou nomear como tal.
Amparamo-nos, assim, na Análise do Discurso de orientação francesa para uma
sustentação teórica mais apropriada a essa atividade interrogativa e interpretativa. É
filiando-se, pois, a essa corrente, que pode ser entendida, via de regra, como “o estudo
das relações entre condições de produção dos discursos e seus processos de
constituição” (MUSSALIN, 2001, p. 114), que este trabalho pretende questionar sobre a
(possibilidade de) resistência ao poder que emana do universo fashion, evidenciando
2
seu aspecto histórico, por meio de enunciados materializados em textos encontrados na
mídia.
Dessa forma, amparando nos postulados da AD francesa, de cunho foucaultiano,
buscaremos, senão respostas, pelo menos princípios de respostas, aos questionamentos:
É possível resistir ao discurso/dispositivo da moda? Se o poder é hoje sutil, a resistência
também se sutiliza? Como olhar para as resistências que, assim como o poder, vem de
“baixo” e se distribuem estrategicamente?
Notas sobre o poder e a resistência em Michel Foucault
Com relação ao termo poder, Michel Foucault chega a dizer, numa entrevista de
1977, que é este o verdadeiro foco de suas investigações: “Meu verdadeiro problema é
aquele que, aliás, atualmente, é o problema de todo mundo: o do poder.” (2010a, p. 224-
225)3. Mas quando ele fala desse tema, qual a concepção que o orienta? Ou o que ele
entende por esse termo? É importante que se diga que, contrariando o pensamento
usual, Michel Foucault o entende não como uma substância ou uma qualidade, mas
como relação ou “uma prática social e, como tal, constituída historicamente”
(MACHADO, 2011, p. X). A característica do poder, para Foucault, é relacional, ou
seja, é na relação entre sujeitos que se dá a luta, o embate, o afrontamento que
caracteriza o poder. Essas relações de poder, ou relações entre sujeitos, se definem como
“modos de ação que não atuam direta ou imediatamente sobre os outros, mas sobre suas
ações”. As relações de poder se constituem, assim, como um conjunto de ações, um
feixe de relações que tem por objeto outras ações possíveis, operam sobre um campo de
possibilidades: induzem, separam, facilitam, dificultam, estendem, limitam, impedem.
Na obra História da Sexualidade I: A vontade de saber (1999), ele assim se pronuncia:
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como amultiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde seexercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas eafrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que taiscorrelações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ousistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si;enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalizaçãoinstitucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nashegemonias sociais. (FOUCAULT, 1999, p. 88-89)
3 Mais tarde, Michel Foucault, dirá que é o sujeito, não o saber ou o poder, constitui, assim, seu foco, aquilo que o acompanha em sua trajetória filosófica: “Meu objetivo [...]foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidou com três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos.” (FOUCAULT, 2010b, p. 273).
3
Na contramão do pensamento filosófico ocidental, Michel Foucault evita a
oposição entre poder e negatividade e, nesse sentido, o poder não deve ser identificado
com o mal ou visto como algo maligno, mas algo produtivo, ou seja, que produz e,
acima de tudo, algo a ser exercido: “O poder não é o mal. O poder são jogos
estratégicos”. (FOUCAULT, 2010c, p. 284). Em Vigiar e Punir, discorrendo sobre a
disciplina, sobre a sociedade disciplinar, Foucault (2002, p. 161) explica que devemos
deixar de abordar os efeitos de poder em termos negativos (exclusão, repressão,
recalque, censura etc): “Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode
ter se originam nessa produção.” Seguindo essa mesma linha de raciocínio, numa
entrevista, o autor sentencia:
Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e esquelética do poder quecuriosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, senão fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido?O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente queele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia,produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-seconsiderá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social muitomais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.”(FOUCAULT, 2011, p. 08)
Se M. Foucault pensa o poder sob a ótica da produtividade, se vê nele uma
positividade, é porque não o trata no singular e menos ainda considera o PODER com
letras maiúsculas, mas de poderes no plural ou, mais precisamente, de micropoderes.
Isso não quer dizer que ele tenha desenvolvido um aparato teórico a respeito do tema,
nem mesmo um livro dedicado exclusivamente ao tema ele escreveu, entretanto,
relaciona-se a ele, em contrapartida, uma analítica do poder, “[...] uma série de análises,
em grande parte históricas, acerca do funcionamento do poder.” (CASTRO, 2009, p.
323). Tal analítica não indaga o que é o poder, mas como ele funciona, diferentemente
das concepções mais correntes, concebe-o não como algo que se detém ou que se pode
delegar, ou um obstáculo a ser transposto ou ainda algo que adviria de um ponto
específico. Nas palavras de M. Foucault (1999, p. 88-89):
Dizendo poder, não quero significar ‘o Poder’, como conjunto de instituiçõese aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um Estadodeterminado. [...] não o entendo como um sistema geral de dominaçãoexercida por um elemento ou um grupo sobre outro e cujos efeitos, porderivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro.
De acordo com esta visão foucaultiana, o poder não se origina no Estado, esse
locus, como se diz, de onde tudo emana, mas de várias situações e relações cotidianas,
as chamadas micropráticas, daí se falar em relações de poder, sejam elas entre pai e
4
filho, professor e aluno, patrão e empregado, marido e mulher etc.: “O poder está em
toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares.”
(FOUCAULT, 1999, p. 89). Ou ainda: “O poder não opera em um único lugar, mas em
lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira como se trata os loucos, a exclusão
dos homossexuais, as relações entre os homens e a mulheres...” (FOUCAULT, 2011, p.
262). Além disso, não é um bem a ser possuído ou um elemento alienável, mas algo que
se exerce ou pratica-se, uma rede capilar que a todos inclui, não lhe sendo possível
escapar, isto é: “Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão [...] o poder não se aplica aos
indivíduos, passa por eles.” (FOUCAULT, 2011, p. 183). Trata-se, pois, de algo com
elevado grau de produtividade, isto é, que cria ou constrói, e sua ação se volta
diretamente sobre o sujeito ou, mais precisamente, sobre o corpo deste.
Incorreto seria pensar que, para Foucault, não exista o poder. É fato que ele não
o pensa em termos contratuais/ de direito ou de violência/ de repressão. O que, no
entanto, ele considera como tal é uma síntese, um efeito ou mesmo um desdobramento
dessa rede de relações em que se cruzam os micropoderes: “[...] efeito de conjunto,
esboçado a partir de todas essas mobilidades. [...] o poder não é uma instituição e nem
uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a
uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.” (FOUCAULT, 1999,
p. 89). Daí falar em relações de poder, ao invés de poder no singular, uma vez que essas
relações “[...] supõem condições históricas de emergência complexas e que implicam
efeitos múltiplos, compreendidos fora do que a análise filosófica identifica
tradicionalmente como o campo do poder.” (REVEL, 2005, p. 67).
Essas relações de poder não traduzem um foco único de onde emana toda a sua
força até encontrar o menor elemento dessa rede social, mas, inversamente, emergindo
dessas ramificações, diferentes formas de poder constituem-se no âmbito institucional.
Baseando-se nessa analítica ascendente, pode-se afirmar que o Estado não é “[...] uma
das formas ou um dos lugares – ainda que seja o mais importante – de exercício do
poder, mas que, de certo modo, todos os outros tipos de relação de poder a ele se
referem.” Mas qual a razão dessa analogia entre poder e Estado? Por que tal associação
a ponto de um ser sinônimo do outro? Isso se explica, nas sociedades contemporâneas,
porque, segundo Foucault, ocorreu uma “estatização contínua das relações de poder”,
isto é, essas relações foram racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das
5
instituições do Estado, sejam elas a escola, a família, a igreja, a justiça (FOUCAULT,
2010b, p. 293).
Tal poder, que se origina dessas micropráticas, incide em um determinado ponto
dessa rede social. Sendo mais específico ainda, é sobre o corpo que toda relação de
poder se faz presente, constituindo-o, definindo-o, moldando-o, uma vez que também
ele, o corpo, está mergulhado num campo político. Como ensina Foucault, em Vigiar e
Punir (2002), “[...] as relações de poder tem alcance imediato sobre ele; elas o investem,
o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais.” Este investimento político do corpo, quer dizer, essa incidência das
relações de poder naquilo que é próprio do humano, o seu corpo, “[...] está ligado,
segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica [...]”
(FOUCAULT, 2002, p. 25); é, assim, como força de produção ou de trabalho, preso a
um sistema de sujeição, que o corpo é investido por relações de poder e de dominação.
Nessa perspectiva, o corpo é alçado ao status de força útil se é ao mesmo tempo
produtivo e submisso. Essa sujeição pela qual se constitui em força produtiva se dá por
aquilo que é chamado de tecnologia política do corpo. Essa tecnologia tem como
característica o fato de ser difusa, ou seja, na maioria das vezes, apesar de seus
resultados serem visíveis e eficientes, ela não passa de instrumentação multiforme.
Também essa tecnologia não está restrita a um lugar específico, seja num tipo de
instituição ou num aparelho de Estado. É essa tecnologia que Foucault chama de
microfísica de poder, que, “[...] posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo
campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os
próprios corpos em sua materialidade e força.” (FOUCAULT, 2002, p. 26).
Na análise das relações de poder, Foucault (2010b, p. 290-291) estabelece que,
apesar da legitimidade em buscar entendê-las no âmbito das instituições, “[...] é
necessário, antes, analisar as instituições a partir das relações de poder, e não o inverso;
e que seu ponto de apoio fundamental, mesmo que elas tomem forma e se cristalizem
em uma instituição, deve ser buscado aquém.” E onde se situaria esse aquém? Que lugar
é esse em que se situam essas relações de poder a ser analisadas? A tais
questionamentos, o filósofo responde que tais relações se enraízam profundamente no
nexo social e é no “[...] campo de correlações de força que se deve tentar analisar os
mecanismos de poder” (FOUCAULT, 1999, p. 92), ou seja, é no âmbito das resistências
que se deve buscar tal analise para que seja possível “cortar a cabeça do rei” e escapar
da noção tradicionalmente representada pelo par soberania-lei/político-jurídico, que por
6
tanto tempo dominou o entendimento deste problema no universo do pensamento
político. Tal representação do poder já não encontra eco ou fornece respostas suficientes
às sociedades modernas, pois,
[...] se é verdade que o jurídico pôde servir para representar [...] um poderessencialmente centrado na coleta e na morte, ele é absolutamenteheterogêneo com relação aos novos procedimentos de poder que funcionam,não pelo direito, mas pela técnica, não pela lei mas pela normalização, nãopelo castigo mas pelo controle, e que se exercem em níveis e formas queextravazam do Estado e de seus aparelhos. (FOUCAULT, 1999, p. 86).
Nesse momento, poder-se-ia objetar que essas relações não são imutáveis como se
ofereceria a pensar num primeiro momento. Sem dúvida, não são estáticas e perpétuas,
mas também estão condicionadas a questões de ordem histórica. Como já mencionado,
para Foucault, o poder implica relações, as chamadas relações de poder, que “[...] não
são fixas, imóveis ou estáticas; estão sempre em um campo de forças; são relações de
força – a propósito, as relações de força são constantes em toda forma de existência de
poder, são formas de agir sobre as ações dos outros.” (FERNANDES, 2008, p. 75). Nas
diferentes sociedades analisadas por Michel Foucault (de soberania, disciplinar, de
controle), o poder ou os poderes não são postos em prática de forma idêntica.
E quanto às resistências? Se vivemos em meio a dispositivos que “vampirizam”
as instituições e redimensionam o funcionamento do poder, para usar termos de Michel
de Certeau, torna-se urgente descobrir “que procedimentos populares [...] jogam com os
mecanismos da disciplina e não conforma com ela a não ser para alterá-los; enfim, que
‘maneira de fazer’ forma a contrapartida [...] dos processos mudos que organizam a
ordenação sócio-política.” (DeCERTEAU, 2008, p. 41).
As resistências, assim como o poder, também não são idênticas, nem estáticas e,
muito menos, entendidas estritamente como sinônimo de revolução ou revolta. Segundo
Foucault (1999, p. 91), “onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso
mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder.”
Sendo o poder o ato de governar a conduta dos outros e prever suas possibilidades de
ação, isto é, uma relação de forças, pressupõe necessariamente os contra-ataques, a
resistência. Dessa forma:
Elas são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relaçõescomo o interlocutor irredutível. Também são, portanto, distribuídas de modoirregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com maisou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante degrupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos docorpo, certos momentos da vida, certo tipos de comportamento. Grandesrupturas radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum,
7
entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzemna sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitamreagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e osremodelando, traçando neles, em seus corpos e almas, regiões irredutíveis.Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecidoespesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizarexatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessaas estratificações sociais e as unidades individuais. (FOUCAULT, 1999, p.88-92)
As reflexões foucaultianas a respeito das resistências revelam um poder que,
longe de ser uma potência infinita, aponta para uma espécie de ineficácia, já que não ele
é algo do qual não se escapa, embora se produza a todo momento, em todo lugar e de
forma complexa. Sob a analítica dos micropoderes, emerge uma analítica das microlutas
nas quais os sujeitos estão envolvidos cotidianamente. Nessa perspectiva, talvez seja
possível dizer que a resistência venha primeiro, não porque, cronologicamente falando,
seja anterior ao poder, mesmo porque “ela é coextensiva a ele e absolutamente
contemporânea” (FOUCAULT, 2011, p. 241), mas porque se constitui como elemento
prioritário, na ordem das condições de existência do próprio poder. Daí que “não há
relações de poder sem resistências; que estas são tão mais reais e mais eficazes quanto
mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de poder” (FOUCAULT,
2010b, p. 249). A esse respeito, Foucault fornece um exemplo emblemático:
Que significado tem a peregrinação de Lourdes, desde o final do século XIXaté hoje, para os milhões de peregrinos pobres que aí vão todos os anos,senão uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seuscorpo e doenças? Em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômenoresidual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas umaforma atual de luta política contra a medicalização autoritária, a socializaçãoda medicina, o controle médico que se abate essencialmente sobre apopulação pobre; não serão essas lutas que reaparecem nessas formasaparentemente arcaicas, mesmo se seus instrumentos são antigos, tradicionaise supõem um sistema de crenças mais ou menos abandonadas? O vigordessas práticas, ainda atuais, é ser uma reação contra essa social medicine,medicina dos pobres, medicina a serviço de uma classe, de que a medicinasocial inglesa é um exemplo. (FOUCAULT, 2011, p. 97).
Assim como o poder, a resistência também tem sido comumente entendida sob a
perspectiva da negação, uma forma de dizer não. Na perspectiva foucaultiana, buscar
compreendê-la dessa forma é lançar mão de uma maneira simplista de observá-la, de
analisá-la. Isso não significa que esse não esteja do lado de fora das resistências, mas
que elas são, para além disso, um processo criativo, uma possibilidade de
transformação: “Dizer não constitui a forma mínima de resistência. Mas, naturalmente,
em alguns momentos, é muito importante. É preciso dizer não e fazer desse não uma
forma de resistência decisiva.” (FOUCAULT, 2014, p. 257). Da mesma forma, seria
8
forçoso pensar a resistência tão somente do lado do proletariado ou daqueles que não
detenham um certo poder, já que, como bem sintetiza Paniago (2005, p. 81-82)
qualquer que seja a sociedade, não existe divisão entre os que têm e os quenão têm poder. No entanto, o poder sempre é exercido em determinadadireção, com uns de um lado e outros de outro. Ou seja, embora não haja umtitular, um dono do poder, o poder é exercido sempre em determinadosentido, não necessariamente de cima para baixo.
Não se trata de uma luta de classes, à maneira como a esquerda tradicional tem
concebido o problema, mas de uma luta, uma guerra - para utilizar uma metáfora
foucaultiana acerca do poder que se opõe à usual concepção jurídico-contratual. Não se
trata de uma oposição entre dominantes e dominados, isto é, de se colocar contra a
classe dirigente e dela retirar o poder, pois se assim o fosse, haveria apenas uma
mudança de endereço do poder. É o caso da antiga União Soviética, segundo comenta
Foucault em entrevista concedida em 1978 (2010c, p. 262):
O exemplo da União Soviética é, nesse sentido, decisivo. Podemos dizer quea União Soviética é um país no qual as relações de produção mudaram depoisda revolução. O sistema legal concernente à propriedade mudou também. Domesmo modo, as instituições políticas se transformaram depois da revolução.Mas todas as relações de poder menos importantes na família, nasexualidade, na usina, entre os trabalhadores etc., permaneceram, na UniãoSoviética, o que são nos outros países ocidentais. Nada mudou realmente.
O que ocorre quando se fala de resistências é “uma recusa ao próprio poder tal
como ele se exerce, independentemente de quem seja o seu dirigente: o proletariado ou
o partido.” (SAMPAIO, 2006, p. 72).4
Ampliando a reflexão/discussão, M. R. Gregolin, em Foucault e Pêcheux na análise do
discurso: diálogos & duelo (2007), aponta a presença da discussão sobre a resistência
não apenas em Michel Foucault, mas também em Michel Pêcheux. Quanto a Foucault,
além do que já foi dito, Gregolin ainda lembra que, para ele, “as lutas, na sociedade
moderna, giram em torno da busca da identidade e o seu principal objetivo não é o de
atacar esta ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma
técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana imediata”,
por isso o problema (político, ético, social e filosófico) “que se nos coloca na
modernidade não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das suas instituições, mas
4 Nesse sentido, talvez possamos entender a própria emergência da Análise do Discurso como uma espécie de resistência no interior de um dispositivo de linguagem no qual a Linguística, com suas teorias sistêmicas acerca da língua, tem ainda um lugar privilegiado.
9
o de libertá-lo de suas representações de individualização criadas pelo poder
globalizador.” (GREGOLIN, 2007, p. 143-144).
Quanto a Pêcheux, ainda segundo a autora, a ideia de resistência incorpora-se
em seus trabalhos, de forma mais contundente no artigo Só há causa daquilo que falha,
anexo de Semântica e Discurso (2009), e isso se dá pela perspectiva da psicanálise ou
mais precisamente a partir da ideia de que a interpelação (do sujeito pela ideologia)
admite falhas, fracassos. Nos dizeres de Gregolin (2007, p. 146-147), “a ideia de
‘assujeitamento radical’ já havia sido atenuada a partir da ‘contradição’, agora ela passa
a ser desconstruída pela via da psicanálise: “o sujeito resiste à ideologia e essa
resistência encontra-se materialmente instalada nos traços do equívoco”. Peuchêx
conclui seu texto, destacando dois pontos incontornáveis:
- não há dominação sem resistência: primeiro prático da luta de classes, quesignifica que é preciso ‘ousar se revoltar’;- ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja: primado prático doinconsciente, que significa que é preciso suportar o que venha a ser pensado,isto é, é preciso ‘ousar pensar por si mesmo’. (PÊCHEUX, 2009, p.281)
Diante da possibilidade de os sujeitos resistirem, a noção tradicionalmente
aceita de assujeitamento (seja à ideologia, seja aos micropoderes) cai por terra, para usar
uma expressão popular. Afinal, se o assujeitamento significa submissão a algo, sem
possibilidade de contra-ataque, ou algo que, segundo Orlandi, é impróprio dizer que é
totalmente, parcialmente, muito ou pouco assujeitado, pois “não se quantifica o
assujeitamento” (ORLANDI, 2010, p. 19), então isso impossibilita o fluxo, a correnteza,
o ranger da própria História. “Se os sujeitos são assujeitados, como se faz a História?”,
indaga Gregolin (2007, p. 140). Mais que assujeitamento, há lutas, movências,
investimentos e contra-ataques, o que faz do par poder-resistência um emaranhado de
práticas complexas: “toda estratégia de afrontamento sonha em transformar-se em
relação de poder; e toda relação de poder pende, na medida em que ela segue a sua
própria linha de desenvolvimento e que evita as resistências formais, a tornar-se
estratégia ‘vitoriosa.’”(GREGOLIN, 2007, p. 151).
A respeito dessa complexidade na dinâmica envolvendo poder e resistência,
Michel Foucault, em entrevista de 1975, intitulada Poder-Corpo (2011), faz uma
observação bastante elucidativa sobre os investimentos do poder sobre o corpo, a
resistência deste e, novamente, o reinvestimento do poder:
O corpo se tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos e os pais,entre a criança e as instâncias de controle. A revolta do corpo sexual é ocontra-efeito desta ofensiva. Como é que o poder responde? Através de uma
10
exploração econômica (e talvez ideológica) da erotização, desde os produtospara bronzear até os filmes pornográficos... Como resposta à revolta docorpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma decontrole-repressão, mas de controle-estimulação: “Fique nu... mas sejamagro, bonito, brozeado!” A cada movimento de um dos dois adversárioscorresponde o movimento do outro. Mas não é uma “recuperação” no sentidoem que falam os esquerdistas. É preciso aceitar o indefinido da luta... O quenão quer dizer que ela não acabará um dia. (FOUCAULT, 2011, p. 145)
Como se nota, no excerto, a possibilidade de delimitar e estancar um processo
que defina o que é poder e o que é resistência nem sempre se constitui como algo
produtivo. Poder e resistência são móveis e constituem-se como “lado de uma mesma
moeda”, para usar outra expressão popular. Mas se a resistência, hoje, se dá em volta
desse poder totalizador, não cala a boca e nem cala na boca a pergunta: mas como
resistir nos dias atuais? Que material temos a disposição para resistir? Ou ainda,
utilizando as palavras de Tony Horta: “qual é o material que temos à mão para elaborar
uma ética de si, individual, singular, que seja a expressão do único?” (HORTA, 2012, p.
161)
Resistência, (bio)poder e moda
Retrocedendo um pouco na história, no limiar dos séculos XVII e XVIII,
segundo M. Foucault, ganha terreno uma reviravolta com o surgimento da sociedade e
do poder disciplinar e, mais adiante, no início do século XX, outra mudança toma forma
e as sociedades disciplinares são sucedidas pelas sociedades de controle. No
entendimento de Deleuze (2010, p. 223-224), “[...] as disciplinas [...] também
conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se
precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedades disciplinares é o que já
não éramos mais, o que deixávamos de ser”.
A moda encontra neste momento histórico um terreno fértil para o
desenvolvimento e a fixação de seu império. A queda das transcendências políticas,
morais e religiosas, e o esfacelamento dos grandes sistemas de significação (SOARES,
2011) talvez possam funcionar como uma base de explicação ou reforço para a
importância cada vez maior que ela vem alcançando nos últimos tempos ou, no
entendimento de Simmel (2008, p. 32): “[...] entre as razões por que a moda domina tão
fortemente a consciência encontra-se também a de que as convicções grandes, estáveis e
indiscutíveis, perderam, pouco a pouco, a sua força”. À medida que o corpo torna-se o
principal alvo dessa sociedade disciplinar e de controle, as roupas aproximam-se mais
11
do elemento somático: menos tecido para a vestimenta, mais exposição física e,
contraditoriamente, mais importância para a moda.
Há, portanto, uma mudança de paradigma com a transformação das disciplinas
em controles5. Nas sociedades disciplinares, apesar de um germe desse novo poder que
incide sobre a vida já ser passível de entrar em funcionamento, o enclausuramento e a
sisudez que lhe são característicos impedem que opere de forma efetiva. É, pois, nesse
ambiente “livre” e mutante das sociedades de controle que ganha terreno outro tipo de
poder: o biopoder. O político transforma-se, assim, em biopolítico. De acordo com
Negri (2003, p.107): “Fala-se em biopoder quando o Estado expressa comando sobre a
vida por meio de suas tecnologias e seus dispositivos de poder.” A vida em toda a sua
extensão é o alvo constante desse novo poder, um poder que atinge, por meio de sua
ambiguidade em controlar sem demonstrar tal controle, não apenas os corpos, mas
também a consciência da população:
Uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi osurgimento da ‘população’, como problema econômico e político [...]. Osgovernos percebem que não têm como lidar simplesmente com sujeitos, nemmesmo com um ‘povo’, porém com uma ‘população’, com seus fenômenosespecíficos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança devida, fecundidade, estado de saúde, incidência das doenças, forma dealimentação e de habitat. Todas essas variáveis situam-se no ponto deintersecção entre os movimentos próprios à vida e os efeitos particulares dasinstituições [...]. (FOUCAULT, 1999, p. 28).
Numa ponta do alvo do biopoder encontra-se essa massa denominada população
e todas as suas particularidades relacionadas a taxas de natalidade e mortalidade, na
outra ponta estão os corpos sobre os quais esse poderio opera:
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pelaconsciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi nobiológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedadecapitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégiabio-política.(FOUCAULT, 2011, p. 80)
No que diz respeito tanto às técnicas disciplinares quanto às do biopoder, o corpo é o
target, o alvo, o ponto em que se mira, seja o corpo individual ou o corpo social ou
populacional. A constituição desses corpos está “[...] diretamente ligada a interesses
capitalistas para melhor gestão e eficiência de indivíduos” (MENDES, 2006, p. 173) e
se constitui como um passo decisivo para a objetivação do sujeito. A vida é prolongada
5 Deleuze (2010, p.226-227) faz uso de excelente metáfora para diferenciar a sociedade de controle da sociedade disciplinar: “A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem.”
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e elevada à potência máxima, tratada como o bem máximo, a ser preservado,
estimulado, mantido, é o que se nota em diversas campanhas governamentais que
impelem a população a não fumar ou a praticar exercícios físicos ou mesmo no controle
que a própria população passa a exercer sobre si e sobre os outros a propósito de um
certo ideal de vida. Em se tratando, pois, da biopolítica,
[...] o corpo do sujeito, além de ainda continuar a sofrer a ação de técnicasdisciplinares, é estimulado a falar de si mesmo para mais bem se governar ouser governado. Com a noção de biopoder e com suas técnicas orientadas paraque o sujeito se torne objeto de conhecimento de si mesmo (uma genealogiada ética), [...] exerce-se um poder sobre a vida e para manter a vida, tiposespecíficos de vida que se relacionam com tipos de corpos, saberes ediscursos, constituindo tipos de sujeito. (MENDES, 2006, p. 173)..
Em tempos de predominância de um biopoder agindo sobre a população, moda e
corpo se entrelaçam na constituição do indivíduo moderno: “A roupa é uma segunda
pele que, recobrindo a primeira, compõe com ela a aparência final do sujeito.”
(CASTILHO; VICENTINI, 2008, p. 133). Parece plausível, assim, admitir que os
elementos da moda reconfiguram, (re)atualizam ou reelaboram determinadas partes do
corpo, uma vez que o corpo, na concepção de Svendsen (2010, p. 85), “[...] tornou-se
objeto de moda especialmente privilegiado. Ele parece ser algo plástico que pode mudar
constantemente para se adequar a novas normas à medida que elas emergem.” Mas que
modelo de corpo é esse hoje projetado na/pela moda em consonância com seu tempo?
O que se nota, já há algum tempo, como parte dessa biopolítica que procura
manter, prolongar, melhorar a vida é um investimento incisivo sobre a ideia de um
corpo jovem, de juventude: “Seja jovem!”, “Mantenha sua juventude!” são slogans
facilmente perceptíveis por todo lado e, em especial, nas publicidades de moda. Dessa
forma, usar menos tecido e mostrar mais a pele torna-se uma prática de uma época
marcada por uma visibilidade extremada – uma visibilidade potencializada pelos
panópticos modernos. A imagem vale como a tradução da realidade e sua validade
depende das “qualidades” joviais do elemento físico que ela mostra.
Daí não ser difícil encontrar, por exemplo, uma íntima relação entre a moda e as
práticas esportivas, supostamente responsáveis pela manutenção da saúde e da beleza do
corpo. Os artefatos atléticos têm sido uma versão recente do que foi a armadura no
passado: “A vestimenta semelhante à armadura, agora muitas vezes fabricada com fibras
sintéticas e moldada tanto em plástico como em couro, é novamente sensacional.”
(HOLLANDER, 2003, p. 73). O sportswear, bem como o streetwear e o beachwear,
são lados ou tendências fashion que vão ao encontro dessa política centrada na
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aparência saudável. A rua vai à academia e, em contrapartida, a academia invade a rua,
como sugere a figura 1.
Em um contexto como este, as noções de normalidade/anormalidade,
decência/indecência, quanto às vestimentas, entram no jogo da historicidade e
modificam-se: “A utilização de uma indumentária que deixa à mostra determinadas
partes do corpo, ou mesmo a exibição do corpo nu, não é considerada, muitas vezes, tão
indecente quanto a exibição de um corpo ‘fora de forma’ e o uso de roupas não
condizentes com a forma física.” (GOLDENBERG; RAMOS, 2002. p. 28). Devido a
essa moral da “boa forma”, a exposição do corpo exige dos indivíduos, além do controle
de desejos e vontades, também o controle de sua aparência física, o que significa dizer
que: “O decoro, que antes parecia se limitar à não-exposição do corpo nu, se concentra,
agora, na observância das regras da sua exposição.” (GOLDENBERG; RAMOS, 2002,
p. 25).
O discurso da moda atravessado e constituído por meio de elementos advindos
de formações discursivas diversas, no limite, contribui na constituição desse modelo de
14
Figura 1 – Jornal O Popular, 13/07/2014
indivíduo (ou seria melhor dizer “divíduo”?). Trata-se de um ser destituído, em tese, da
proteção advinda das instituições sociais das quais o liberalismo o desvinculou: “O
indivíduo modelado por essa nova mitologia esportiva contemporânea é sempre heroico,
é aquele que se arrisca sempre [...], procurando agir sobre si mesmo e não se deixar
comandar pelos outros e definindo sua imagem idealizada.” (SOARES, 2011, p. 81).
Trata-se, o que já não é novidade, de uma atitude narcísica, que num movimento que faz
o ser se voltar sobre si mesmo, incontáveis vezes, na constituição de si, ou melhor, na
constituição de um tipo específico de si:
Novo foco da imitação social, a exaltação do look jovem é inseparável da eramoderna democrático-individualista, cuja lógica ela leva até seu termonarcísico: cada um é, com efeito, convidado a trabalhar sua imagem pessoal,a adaptar-se, manter-se e reciclar-se. O culto da juventude e o culto do corpocaminham juntos, exigem o mesmo olhar constante sobre si mesmo, a mesmaautovigilância narcísica, a mesma coação de informação e de adaptação àsnovidades [...]. (LIPOVETSKY, 2009, p. 142).
Nesse contexto de extremo controle dominado pelo biopoder, não há como
deixar de pensar nas possibilidades de resistência. Como já foi citado, sob um manto
cada vez mais “democrático”, o poder se estende para fora das instituições e penetra nos
corpos e mentes. Enquanto nas disciplinas a relação entre poder e indivíduo permanece
estável, isto é, “a invasão disciplinar de poder correspondeu à resistência do indivíduo”,
na sociedade de controle as resistências ganham nova roupagem, talvez possa dizer,
inclusive, que, assim como o poder se sutiliza, as resistências também assim se
comportam: “As resistências deixam de ser marginais e tornam-se ativas no centro de
uma sociedade que se abre em redes; os pontos individuais são singularizados em mil
platôs.” (HARDT; NEGRI, 2010, p.44). Nas publicidades de moda, como se nota na
figura 2, a ideia de rebeldia é
trazida para o centro da cena
como forma de cooptação da
juventude e promoção de
produtos, como as roupas da
marca em questão. Ambientada
num momento de transição
política, essa publicidade cria sentidos que perpassam o político e o fashion, numa
(re)atualização da ideia de juventude e de seu poder de mudança, isto é, o que é
contestatório e rebelde é reinvestido para a venda de roupas.
15
Figura 2 – Revista Veja, 20/03/1985
No texto O sujeito e o poder (2010b), Michel Foucault propõe analisar, como
ponto de partida, as resistências contra as diferentes formas de poder: “mais do que
analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, consiste em analisar as
relações de poder através do antagonismo das estratégias” (FOUCAULT, 2010b, p.
276). Como exemplo dessas variadas formas de resistência, são elencadas: a oposição
das mulheres ao poder dos homens, dos filhos em relação aos pais, dos doentes mentais
em direção à psiquiatria, da população contra a medicina, das pessoas em face do poder
da administração. Todas essas são lutas são consideradas antiautoritárias e apresentam
alguns pontos em comum: 1. O fato de serem transversais – e não se limitarem à
territorialidade de um país; 2. O objetivo são os efeitos de poder; 3. São lutas
“imediatas”: a) questionam as instâncias de poder mais próximas, isto é, o inimigo
imediato; b) não esperam encontrar solução para problemas futuros (revoluções,
liberações, fim da luta de classes). Além desses aspectos mais gerais, há ainda aqueles
que lhe são específicos: 4. Questionam o estatuto do indivíduo: afirmam o direito de ser
diferente e atacam tudo o que separa o indivíduo: são batalhas contra o “governo da
individualidade”; 5. São uma oposição aos privilégios do conhecimento, isto é, contra
efeitos de poder relacionados ao saber, à competência e à qualificação; 6. Giram em
torno da questão acerca de quem somos nós. Daí que existem, geralmente, três tipos de
lutas: a) contra as formas de dominação (ética, social e religiosa); b) contra as formas de
exploração (que separam os indivíduos daquilo que produzem); c) contra aquilo que liga
o indivíduo a si mesmo e o submete, desse modo, aos outros ( contra a sujeição, contra
as formas de subjetivação e submissão).
Michel Foucault conclui que, dentre essas três formas de resistência, atualmente,
as lutas contras formas de sujeição/contra as formas de submissão da subjetividade estão
se tornando cada vez mais importantes. Não que as outras duas (de dominação e de
exploração) tenham desaparecido – ao contrário, os mecanismos de sujeição estão
intrinsecamente relacionados aos mecanismos de exploração e de dominação -, mas o
que acontece é que, desde o século XVIII, uma nova forma de poder se desenvolveu,
chamada Estado, trazendo consigo uma combinação de duas técnicas: de
individualização de totalização. É, pois, no interior desse poder, exercido por meio de
dispositivos, que os sujeitos são fabricados e também aí podem construir seus contra-
discursos. No que diz respeito ao dispositivo da moda, essas resistências são, em geral,
reutilizadas em proveito do próprio dispositivo, para que se mantenha as relações de
16
poder. Na figura 3, assim como na figura 2, novamente se observa a noção de protesto e
de rebeldia como elemento de promoção e de venda de produto da moda.
Michael Hardt e Antonio Negri argumentam que estamos vivendo numa época
em que corporações multinacionais e supranacionais estão no comando e, para entender
o funcionamento da soberania imperial, as “concepções da sociedade de controle e do
biopoder descrevem aspectos centrais do conceito de Império”. Assim o Império
emerge, na reflexão dos autores, como uma “máquina de altíssima tecnologia”, que se
caracteriza como “virtual, construída para controlar o evento marginal, e organizada
para dominar e, quando necessário, intervir nas avarias do sistema.” Além disso, a
máquina imperial “constrói tecidos sociais que esvaziam, ou tornam ineficaz, qualquer
contradição; cria situações nas quais, antes de neutralizar coercitivamente a diferença,
parece absorvê-la num jogo insignificante de equilíbrio autogeradores e auto-
reguladores.” (HARDT; NEGRI, 2010, p53). Isso parece confirmar nossa tese a respeito
da resistência no dispositivo da moda; na verdade, trata-se de uma tese inicial, que merece
ser desenvolvida e comprovada (ou não) ao longo de nossa pesquisa, mas que pode ser
descrita da seguinte maneira: a moda é um dispositivo que congrega saberes, poderes e
sujeitos e a resistência é de alguma maneira absorvida em proveito da manutenção do
próprio dispositivo.
Considerações Finais
O que intentamos neste artigo foi uma breve investigação e reflexão acerca do
funcionamento do poder e da resistência no dispositivo/discurso da moda. Partindo da
explanação teórica oferecida por Michel Foucault, buscamos entender como essa
relação se dá nos tempos atuais por meio de textos que circulam na mídia. Vale ressaltar
17
Figura 3 – Revista Veja, 29/03/2006
que este trabalho buscou aporte nos preceitos da disciplina Análise do Discurso de
orientação francesa, que tem como parte de suas orientações o entendimento do tempo
presente: o que somos e por que nos tornamos o que somos hoje.
Quanto à questão de ser ou não ser possível resistir ao discurso da moda, o que
se constata com este trabalho é a intrincada relação entre poder e resistência, que ocorre
nas sociedades de controle, sob os efeitos de um biopoder. Isso quer dizer que a
delimitação entre o que é poder e o que é resistência se pulveriza e uma tal divisão
torna-se bastante complexa. O que não quer dizer que não haja resistência, que o tempo
de um poder sem fim tenha chegado e se instalado. Definitivamente, não é isso. As
resistências ocorrem, mas são cooptadas por esse (bio)poder que delas se
retroalimentam. No campo da moda, aquilo que é visto como contestatório ou de
protesto, acaba sendo incorporado pelo poder que dela faz uso para venda de produtos
ou padronização de comportamentos.
De fato, no interior do dispositivo da moda, a relativização de valores e
conceitos torna-se um imperativo e, por meio de intrincados processos, há uma espécie
de naturalização dessa amenização. O rosto do revolucionário Che Guevara serve de
estampa para o biquíni no corpo da top model sem que se veja nisso uma incoerência ou
um desvio. Assim também a consultora de moda publica em seu blog dicas de como se
vestir para ir às manifestações de ruas, orientando os manifestantes a realizarem uma
passeata mais estilosa. Nos exemplos expostos ao longo do texto, observa-se que a
noção de contestação e de revolta, expressa muitas vezes nas vestimentas ou nas formas
de uso de certas roupas, são reelaboradas e voltam aos consumidores como elementos a
serem consumidos. Diante de tais astúcias, o que se percebe é também uma sutilização
das resistências, que assim como o poder, torna-se mais invisível, mas nem por isso
menos onipresente.
Para finalizar, gostaríamos de apontar que, no tocante às resistências, talvez o
propósito hoje “não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos de
imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos desse ‘duplo
constrangimento’ político, que é a simultânea individualização e totalização próprias às
estruturas do poder moderno” (FOUCAULT, 2010a, p. 283). Dessa forma, esta breve
pesquisa merece desdobramentos rumo ao entendimento das resistências de que se
valem os sujeitos no processo em que se dá a sua própria constituição. Retomando as
palavras de Tony Horta, que indaga “qual é o material que temos à mão para elaborar
uma ética de si, individual, singular, que seja a expressão do único?” (HORTA, 2012, p.
18
161), talvez possamos concordar com ele e responder que: “Se fosse possível responder
a essa questão de forma ligeira, diríamos que é o corpo o que nos resta. Se há algo neste
mundo que possa limitar a pequena e tagarela consciência é o corpo e sua razão
silenciosa.” (HORTA, 2012, p. 161)
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