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PODER ECONÔMICO E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL: UM ENFOQUE À LUZ DAS GLOBALIZAÇÕES ECONÔMICAS Camila Pintarelli 1 RESUMO Pretendemos, com este trabalho, elaborar uma análise do poder econômico e da solidariedade internacional sob a ótica das globalizações econômicas. Para tanto, iniciaremos com o estudo da expressão poder para, em um segundo momento, adentrarmos à questão do poder econômico, o que possibilitará a construção de conceitos que serão essenciais para a correta compreensão dos fenômenos econômicos decorrentes das globalizações. Em após, estudaremos a questão das globalizações e dos localismos, o que será feito com base na doutrina de Boaventura de Sousa Santos. Ao final, adentraremos à questão da solidariedade internacional, apontando-a como alternativa de controle de máculas a direitos humanos ocorridas no bojo das relações econômicas internacionais, bem como uma proposta de nova comunicação social. Palavras-chave: poder econômico; relação econômica; globalizações; direitos humanos; solidariedade internacional. ABSTRACT With this work, we intend to elaborate an analysis about economic power and international solidarity by the light of economic globalizations. For that, we will initiate with the study of the word power for, in a second moment, we enter to the economic power question, which will enable the built of concepts that will be essential for the correct comprehension of economical phenomenon resulting from globalizations. After, we will study the globalizations and localisms question, which will be done by Boaventura de Sousa Santos doctrine. By the end, we will broach the international solidarity subject, pointing it as a alternative way to control the offences to human rights that take place in the international economic relations, and also as a suggestion of a new social communication. 1 Procuradora do Estado de São Paulo. Mestranda em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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PODER ECONÔMICO E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL:

UM ENFOQUE À LUZ DAS GLOBALIZAÇÕES ECONÔMICAS

Camila Pintarelli1

RESUMO

Pretendemos, com este trabalho, elaborar uma análise do poder econômico e da

solidariedade internacional sob a ótica das globalizações econômicas. Para tanto,

iniciaremos com o estudo da expressão poder para, em um segundo momento,

adentrarmos à questão do poder econômico, o que possibilitará a construção de

conceitos que serão essenciais para a correta compreensão dos fenômenos econômicos

decorrentes das globalizações. Em após, estudaremos a questão das globalizações e dos

localismos, o que será feito com base na doutrina de Boaventura de Sousa Santos. Ao

final, adentraremos à questão da solidariedade internacional, apontando-a como

alternativa de controle de máculas a direitos humanos ocorridas no bojo das relações

econômicas internacionais, bem como uma proposta de nova comunicação social.

Palavras-chave: poder econômico; relação econômica; globalizações; direitos humanos;

solidariedade internacional.

ABSTRACT

With this work, we intend to elaborate an analysis about economic power and

international solidarity by the light of economic globalizations. For that, we will initiate

with the study of the word power for, in a second moment, we enter to the economic

power question, which will enable the built of concepts that will be essential for the

correct comprehension of economical phenomenon resulting from globalizations. After,

we will study the globalizations and localisms question, which will be done by

Boaventura de Sousa Santos doctrine. By the end, we will broach the international

solidarity subject, pointing it as a alternative way to control the offences to human rights

that take place in the international economic relations, and also as a suggestion of a new

social communication.

1 Procuradora do Estado de São Paulo. Mestranda em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo.

2

Keywords: economic power; economic relation; globalizations; human rights;

international solidarity.

1. INTRODUÇÃO

É possível traçar uma íntima conexão entre o desenvolvimento diuturno da

economia global nos tempos atuais e o caminhar das globalizações de determinadas

relações sociais2. Com efeito, na medida em que certas condutas estendem seu âmbito

de influência pelo mundo, há a conseguinte alteração do comportamento dos atores

econômicos (consumidores, Estado e agentes privados) em busca da adaptação ao novo

cenário proposto.

Por vezes, a existência e a viabilidade financeira de relações jurídicas

econômicas internacionais dependem, essencialmente, da manutenção de culturas

locais, como forma de garantir o subsídio humano e material necessário para o sucesso

do modismo globalizado. Dessa maneira, nesses casos, notamos que o espectro mundial

alcançado pela relação econômica e por seus frutos tem como contraponto necessário a

conservação em um âmbito local de práticas sociais, trabalhistas ou culturais.

Nesse panorama específico que envolve relações econômicas como tais,

especificamente no que tange aos direitos humanos, embora existam cadeias de

produção cujos agentes primem pela observância dos tratados internacionais

relacionados à atividade econômica por eles desempenhada, não é raro encontrarmos

costumes pontuais ou situações políticas transitórias que representam verdadeira afronta

aos direitos humanos, mas que, ainda assim, ocupam uma linha internacional de

produção, seja por disponibilizar matéria prima a baixo custo, seja por ofertar mercado

de consumo a determinados bens, garantindo, com isso, o desenvolvimento e a

sobrevivência de atividades econômicas capitaneadas por atores transnacionais.

Apesar de os movimentos globalizantes possibilitarem a convergência de

mercados e, sobretudo, de informações – o que, em um primeiro momento, ensejaria

maior fiscalização de possíveis afrontas a direitos humanos –, a peculiar construção

destas relações econômicas permite o avanço da chamada assimetria de informação,

tanto na relação social localizada como na globalizada.

2 A opção pelo uso da expressão “globalização” no plural será explicada adiante.

3

E a assimetria de informação contribui, por vezes, de maneira fundamental para

o sucesso e a continuidade da relação econômica internacional conspurcada pela

violação a direitos humanos em um de seus pólos subjetivos.

O combate e o monitoramento das práticas violadoras de direitos humanos são

feitos, em regra, por órgãos internacionais, através de relatórios e comunicações

interestatais previstos em tratados internacionais, e o reconhecimento da efetiva

existência de violação a direitos humanos culmina com consequências políticas e morais

ao Estado transgressor.

Ocorre que, quando se trata de relações econômicas internacionais, nem sempre

o monitoramento por órgãos internacionais das afrontas aos direitos humanos é o único

mecanismo existente para desencorajá-las e reprimi-las.

Analisaremos no presente trabalho os fenômenos acima descritos sob a ótica da

teoria de Boaventura de Sousa Santos a respeito do sistema mundial em transição e o

conceito de globalização3.

Para tanto, preliminarmente faremos um estudo a respeito da expressão poder

econômico. Esta análise prévia mostra-se imprescindível por trazer conceitos que serão

utilizados no transcorrer de todo o texto, bem como possibilitará, ao final, uma melhor

compreensão da solidariedade internacional.

Em após, adentraremos no estudo da definição que norteará a análise da

globalização econômica, para, ao depois, passarmos a abordar soluções internacionais

para a resolução de problemas interestatais envolvendo violação aos direitos sócio-

econômicos dos trabalhadores, com especial enfoque para a solidariedade internacional,

apresentando exemplos de transformações nas relações laborais internacionais, o que

culmina, em verdade, com a emancipação da dignidade da pessoa humana.

2. PODER ECONÔMICO

A palavra poder é plurissêmica. Em português, de acordo com nossos

dicionários, ela aparece como verbo transitivo direto, indireto ou intransitivo, cujas

3 SOUSA SANTOS, Boaventura. Os processos de globalização. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura de

(org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed., São Paulo : Cortez, 2005, e SOUSA SANTOS,

Boaventura Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais.

n. 48, jun/1997.

4

acepções são diversas4, bem como figura como substantivo que, tal como o verbo,

também apresenta diversas significações5.

Na busca por conferir sentido à palavra poder, Tércio Sampaio Ferraz Junior

afirma que o verbo poder é modal, isto é, ele modaliza outros verbos, outras formas de

ação6. Essa característica modal do verbo poder encontra suas raízes na origem latina

dessa palavra. Com efeito, a palavra poder, em português, advém do latim potere, que,

no latim clássico, era um substantivo (potestas), o qual se relacionava com potência,

trazendo consigo a idéia de possibilidade7.

Ao pensar em poder como potência, é possível encontrar na expressão grega

dynamis outra fonte de auxílio na busca por se conferir sentido à palavra poder.

Dynamis traz consigo a noção de poder não apenas como mera possibilidade – tal como

potestas traz – mas como algo que se transforma em uma força compulsiva8.

Então, de um lado, temos a idéia de poder como algo que acopla a noção de

possibilidade, de potência para começar alguma coisa. De outro lado, há

também esse momento compulsivo da força, em que ter poder significa

possuir, de alguma forma, força. Poder, no primeiro sentido, é sempre uma

possibilidade que virá a ser atualizada. Poder é a relação entre possibilidade e

atualização. O outro lado do sentido usual é o da dynamis ou do poder, que

aparece da palavra dinâmica. Assim, a dinâmica é o dispositivo que gera

energia, donde alguém dinâmico como alguém que possuir energia, capacidade

de ação, força energética. Quando olhamos esses dois aspectos, podemos

dizer que a noção de poder resulta de um jogo entre potência,

possibilidade e atualização, e força para que isso aconteça. Ao falarmos do

poder, estamos pensando em um jogo que vai dessa possibilidade

concentrada à sua atualização completa, graças a um elemento de força

energética.9 – negritamos

Nesse diapasão, o ato de coação mostra-se como o limite do poder, uma vez que

o exercício do poder pressupõe que o destinatário guarde possibilidade de agir, mesmo

que esse agir se dê em conformidade com a seletividade daquele que tem o poder10

.

(...) Ora, na medida em que o poder se aproxima da coação ele perde

capacidade de reduzir a dupla contingência. Pois coação significa renúncia à

4 Veja-se, a propósito, a quantidade de acepções do verbo poder trazida pelo Dicionário Houaiss – in

http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=poder&stype=k – acesso aos 20 de maio de 2011. 5 Id., Ibid.

6 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,

Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 19. 7 Id., Ibid.

8 Id., Ibid.

9 Id., Ibid.

1010 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Poder Jurídico e Violência Simbólica. São Paulo :

Cultural Paulista, 1985, p. 152.

5

possibilidade de regular a seletividade do outro e não a sua ação concreta; o

coator escolhe pelo outro. A relação entre coator e coagido não é uma relação

de poder. O coagido age aparentemente apenas, quando é na realidade um

instrumento do coator. (...) Nesse sentido, ter poder na relação de comunicação

não significa subjugar o outro, mas significa neutralizar o outro, o destinatário.

Vale dizer, o destinatário continua tendo várias possibilidades de ação,

mas estas possibilidades são neutralizadas de tal maneira que aparece uma

só, contudo elas não desaparecem. Permanecem uma só, as demais são

neutralizadas.11

– negritamos

É importante, a esta altura, tecermos algumas considerações a respeito do poder

e da relação de comunicação – como podemos observar no excerto acima transcrito. O

poder pode ser visto como meio de comunicação12

. Isso porque os sistemas sociais

formam-se via comunicação, que envolve sempre uma relação de possibilidades, as

quais, por sua vez, determinam reações que podem ser concebidas antecipadamente13

.

Tal como a comunicação, o poder é, como se vê, um processo.

O poder é por isso um medium generalizado simbolicamente de comunicação,

que não depende nem da submissão concreta nem, imediatamente, do efeito

obtido pelo detentor do poder. Pois o código poder realiza uma redução de

complexidade, de ambos os lados, ao nível da ação de ambos. Equivale dizer

que também o detentor do poder tem de ser movido para usar o “seu poder”.

(...) Estamos, pois, diante de uma situação em que o poder é meio para a

transmissão de seleções de ações para outra seleção de ações (e não seleção de

motivos de ações para ações), no qual ambos os comunicadores são sistemas

aos quais se imputam seleções como suas ações. Assim, o submetido (sujeito

“passivo” do poder) é alguém de quem se espera que escolha sua própria ação,

donde a possibilidade de auto-determinação. Só que neste pressuposto é que

são dirigidos contra ele elementos de poder, como ameaças, no sentido de

regulá-lo nesta escolha por ele realizada. Do mesmo modo o detentor do pode

se auto-determina. Com isso, na relação de ambos fica postulada a

possibilidade de uma previsível e “localizada” divergência. A transmissão de

complexidade reduzida ocorre quando a seleção da ação de um é co-

determinada pela seleção da ação de outro. O sucesso de uma ordem de poder

depende assim do aumento nas diferenciações de seletividades ainda

relacionáveis. Ou seja, uma determinada ordem de poder que não consegue

aumentar as diferenciações, que insiste em limitá-las a poucas possibilidades,

(...), terá que ver diminuída sua cota de poder e aumentada a quota de

violência, para sustenta – artificialmente – a situação, substituindo poder por

coação.14

Ao trazermos essas anotações ao âmbito econômico, a fim de possibilitar-nos a

definição do que seria o poder econômico, deparamo-nos com a necessidade de uma

breve análise histórica do fenômeno econômico, após a qual constataremos que o poder

11

Id., Ibid., p. 153. 12

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Direito e Poder. Apud. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite

dos. Poder Jurídico e Violência Simbólica. São Paulo : Cultural Paulista, 1985, p. 156. 13

Id., Ibid., p. 157. 14

Id., Ibid., p. 158-159.

6

econômico surge a partir do momento em que o mercado se torna a forma principal de

comunicação social, de modo ostensivo e predominante.15

Com efeito, é bem sabido que a economia é um fenômeno humano disciplinado

juridicamente desde a antiguidade. No Código de Hamurabi, idealizado no século XVIII

a.C., há excertos que tratam de preços e salários. Ainda, no Código de Manu, que data

dos séculos II a.C. a II d.C., encontramos dispositivos regrando a moeda e limitando a

atividade econômica.16

No Brasil pré-republicano, ainda que à luz de um ideal liberal-

aristocrático, verificamos que a economia também encontrava na Constituição Imperial

de 1824 dispositivos legais que a disciplinavam.17

Sem olvidarmos esse referencial histórico, é certo que a partir do final do século

XVIII, a concepção de mercado significando o lugar onde são praticados negócios

jurídicos passou a coexistir com a idéia de mercado como um projeto político18

. Isto é,

ao lado da dimensão palpável de mercado até então conhecida, exsurgiu a sua

compreensão como um plexo de relações jurídicas e fáticas, integrante da organização

da sociedade.

Ao final do século XVIII, [o mercado] toma forma como projeto político e

social e serve ao tipo de sociedade que os liberais desejavam instaurar. O

mercado se desdobra: sem deixar de referir os lugares que designamos

como mercado e feira, assume o caráter de idéia, lógica que reagrupa uma

série de atos, de fatos e de objetos. Mercado deixa então de significar

exclusivamente o lugar no qual são praticadas relações de troca, passando

a expressar um projeto político, como princípio de organização social. Neste sentido, há autores como Rosanvallon, que o tomam como representação

da sociedade civil.19

– negritamos

É nessa época que a noção de mercado assume a forma de comunicação social,

tomando conta da vida em sociedade e fazendo com que tudo convirja para si. É nesse

momento, portanto, que a noção de poder econômico passa a fazer sentido: quando a

sociedade civil passa a ser vista como sociedade econômica20

.

15

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,

Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 21. 16

BALERA, Wagner. SAYEG, Ricardo Hasson. Capitalismo Humanista. Petrópolis : KBR, 2011, p.

49. 17

Id. Ibid., p. 69. 18

GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo : Malheiros, 2008, p.

33. 19

Id. Ibid., p. 33 e 34. 20

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,

Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 21.

7

Em um primeiro momento, o modo com o qual este fenômeno – o do poder e o

do poder econômico – foi compreendido deu-se sob uma perspectiva mais de ordem

moral do que jurídica. Essa relação pode ser percebida até mesmo na linha de

pensamento de Adam Smith, para quem o conflito de classes entre trabalhadores e

capitalistas exercia central importância na teoria econômica, além de considerar os

esforços humanos no processo de produção21

.

Posteriormente, no final do século XVIII e início do século XIX, vem à baila

uma visão mais técnica da questão econômica, sobretudo com o pensamento de David

Ricardo, que teve a capacidade de construir um modelo abstrato acerca do

funcionamento do capitalismo, do qual deduziu suas implicações lógicas22

. A economia

começa, então e aos poucos, assumir feição de tecnologia própria, voltada à eficiência e

à realização, cada vez mais eficiente, de objetivos (produção, troca e consumo de bens).

Nesse panorama, vemos que a natureza ética e a natureza moral tinham função menor

para o poder econômico, eis que havia a utilização de outro instrumento neutro: o

dinheiro.23

A produção capitalista de mercadorias (...) envolvia, necessariamente, certas

instituições socioeconômicas, modos de comportamento humano e

autopercepção humana, além da percepção de outras pessoas. A busca

insaciável de lucro levou a uma divisão cada vez maior do trabalho e à

especialização da produção; essa especialização significava um aumento da

interdependência social; essa maior interdependência, porém, não era sentida

como uma dependência de outros seres humanos, mas como uma dependência

pessoal, individual, de uma instituição social que não era humana – o

mercado.24

Essa ligação imediata com a riqueza no mercado de trocas foi sendo substituída,

com o tempo, pela idéia de que o poder econômico não se destina, propriamente, à

acumulação de riqueza, mas sim à produção de riqueza, emergindo, então, a figura do

21

HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico: uma perspectiva crítica. 2. ed., Rio de Janeiro :

Elsevier, 2005, p. 46. Ainda: “A teoria econômica de Smith era, acima de tudo, uma teoria normativa ou

orientada para as políticas. Sua principal preocupação era identificar as forças socieais e econômicas que

mais promoviam o bem-estar humano e, com base nisso, recomendar políticas que melhor promovessem

a felicidade humana. A definição de Smith de bem-estar econômico era bastante simples e direta. O bem-

estar humano dependia da quantidade do “produto do trabalho” anual e do “número dos que deveriam

consumi-lo”. Id. Ibid., p. 53. No mesmo sentido: NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao

Direito Econômico. 6. ed., São Paulo : RT, 2010, p. 126. 22

Id. Ibid., p. 86. 23

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,

Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 22. 24

HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico: uma perspectiva crítica. 2. ed., Rio de Janeiro :

Elsevier, 2005, p. 119.

8

produtor. Com isso, o poder econômico começa a ser tido como a possibilidade de

atualização que se exerce não sobre bens, mas sobre a produção destes bens. É nessa

ótica que o objeto do poder econômico passa da riqueza para a capacidade e a força de

trabalho do trabalhador.25

A noção de poder econômico, como vimos, construiu-se sobre a concepção de

mercado significando uma nova forma de comunicação social. E as alterações nas

maneiras pelas quais essa comunicação ocorre afetam diretamente a questão do poder e,

in casu, do poder econômico, na medida em que, como já foi visto, o poder é um meio

de comunicação.

Atualmente, é forçoso observarmos – na esteira do argumentado alhures – que o

mercado não está mais estruturado como um centro de trocas, mas sim como uma

absorção controlada de forças com o objetivo de aumentar a capacidade de produção de

bens e de riquezas. Nossa sociedade é uma sociedade de consumo.

(...) a sociedade de consumo cria uma relação não propriamente de troca,

no sentido horizontal, mas em termos de um processo circular, no qual o

indivíduo consome para aumentar a capacidade do próprio consumo. A

produção, nesse sentido, não se volta para uma determinada finalidade,

mas realiza uma espécie de retroalimentação, o indivíduo produz para

aumentar a produção. Quando a sociedade vira uma grande cadeia circular,

em que consumimos para aumentar nossa capacidade de produzir bens de

consumo, que alimenta o produtor/trabalhador para produzir mais e assim

sucessivamente, não temos mais propriamente uma relação finalística. O

mercado não é mais troca que visa a algo externo e, por isso, perdemos a

capacidade de distinguir as polaridades desse processo, pois a sua vitalidade

em si mesma se torna o seu alvo, com toda a economia girando nesse círculo.26

Nessa toada, o poder econômico não perde a característica de ser uma relação

entre possibilidade e atualização, porém ele adéqua-se a este novo movimento

comunicacional da sociedade. O poder econômico, então, deixa de pertencer a uma

pessoa para assumir o sentido nítido de organização e gestão orgânica. Ele não tem

titular específico, pois pertence a toda uma organização, e está voltado a gerir, de forma

racional, esse processo circular de consumo27

.

A esta altura, importante relembrarmos os sempre festejados estudos de Hannah

Arendt a respeito do poder e, especificamente, sobre a construção do poder, para quem

25

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,

Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 22. 26

Id., Ibid., p. 23. 27

Id. Ibid., p. 24.

9

o verdadeiro poder começa onde o segredo começa28

. E, a partir dessa construção,

chegamos à conhecida metáfora da cebola.

(...) “O verdadeiro poder começa”, ensina Hannah Arendt, “onde o segredo

começa”. Por isso, a imagem mais adequada para a sociedade, o Estado e o

Direito nos regimes totalitários não é a tradicional pirâmide, mas sim a de uma

cebola. No centro, numa espécie de espaço vazio, localiza-se o líder. Tudo o

que faz, ele o faz de dentro, não de fora ou de cima. Todas as múltiplas e

contraditórias instâncias do Estado e da sociedade totalitária, por sua vez,

relacionam-se de tal modo que cada uma delas é fachada numa direção e centro

na outra. Quanto mais próximo do centro da cebola, maior o segredo e o poder.

Quanto mais próximo da casca, menor o segredo e o poder. Esta enganosa

fachada da estrutura em forma de cebola tem também, como observa Hannah

Arendt, a vantagem de, organizacionalmente, tornar o regime totalitário a

prova de choques, isolando as camadas interiores da factualidade do mundo.29

Embora essa construção tenha sido desenvolvida para explicar as formas de

dominação em regimes totalitários, sua figura amolda-se com perfeição à realidade atual

acerca do poder econômico na sociedade de consumo. Isso porque, de acordo com a

metáfora da cebola, o comando gestor não está no ápice de uma pirâmide, mas sim no

centro de uma estrutura envolta por camadas e mais camadas, as quais permitem a

filtragem da realidade tanto para o estrato interior imediatamente precedente como para

o estrato exterior.

Nessa situação, talvez possamos encontra a raiz do paradoxo que vivemos na

sociedade atual: o paradoxo de uma sociedade obsessivamente preocupada em

regular e controlar o poder econômico, mas, ao mesmo tempo, impotente para

fazer essa regulação e esse controle transcenderem o plano de uma ética de

resultados, de uma ética de eficiência, para uma ética de convicção ou em

nome da moralidade. A estrutura da cebola torna o poder, como gestão

orgânica, à prova de choque contra a factualidade das convicções subjetivas: o

que quer que aconteça, ele é necessário.30

Sob a perspectiva do Direito, a relação entre seu formalismo e a lógica desse

poder econômico torna-se abstrata, uma vez que o Direito começa a ser interpretado

como algo distante do poder econômico. O Direito Econômico, por sua vez, assume a

feição de instrumento e não de finalidade, tornando-se altamente manipulável.31

Diante

28

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. 9. reimpressão, São Paulo : Companhia das Letras,

2010, p. 453. 29

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah

Arendt. 7. reimpressão, São Paulo : Companhia das Letras, 2009, p. 95 e 96. 30

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,

Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,

pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 25. 31

Id., Ibid., p. 26.

10

da liberdade e da independência conquistadas pelo poder econômico, a própria ciência

do direito transforma-se e passa a operar com raciocínios e fórmulas parecidos com os

do economista, e o jurista passa a raciocinar sobre o processo de consumo em termos de

eficiência e não a partir de convicções.

É nesse peculiar panorama das sociedades de consumo – em que o poder

econômico não é titularizado e que o processo econômico é visto sob a ótica de

resultados, pouco importando quem sejam seus sujeitos – que se insere a análise que ora

faremos a respeito das ofensas a direitos humanos decorrentes das globalizações de

certas relações econômicas.

3. GLOBALIZAÇÕES E LOCALISMOS

O intercâmbio de informações e culturas não é fenômeno novo. Desde os

primórdios da história da humanidade, deparamo-nos com a expansão e a retração de

costumes e tradições de diversas civilizações. As conquistas territoriais do Império

Romano, as colonizações realizadas pelos países europeus na América, o

neocolonialismo na Ásia. Esses são poucos dos variados exemplos históricos que

poderíamos mencionar a respeito da extensão do âmbito de influência de certas culturas

pelo espaço geográfico global.

No caso específico do Brasil, não podemos ignorar que tanto o cristianismo

como o próprio estilo de vida europeu foram frutos da presença maciça de portugueses e

de outros povos europeus em nosso território, o que culminou com a

transnacionalização de traços arquitetônicos, de comportamentos e até do vestuário para

a então colônia.

Globalização não é um conceito contemporâneo. Todas as sociedades

experimentaram, em maior ou menor escala, a influência dos processos

externos em suas economias e pensamentos internos. O pensamento religioso,

ético e político tem demonstrado que a globalização não é um fenômeno

recente.32

Este antigo intercâmbio alcançou nova delineação na atualidade e intensificou-se

sobremaneira nas últimas décadas, desde a globalização dos sistemas de produção e das

transferências financeiras, à disseminação, a uma escala mundial, de informação e

imagens através dos meios cada vez mais velozes de comunicação social, ou às

32

NAZAR, Nelson. Direito Econômico e o Contrato de Trabalho. São Paulo : Atlas, 2007, p. 244.

11

deslocações em massa de pessoas – quer como turistas, quer como trabalhadores

migrantes ou refugiados33

. Valendo-nos, mais uma vez, de outra das inúmeras

construções de Hannah Arendt, o homem, com tais processos transnacionalizantes,

passou a ser habitante tanto de seu país como da Terra, vivendo em um todo contínuo

com as dimensões do planeta34

.

Este fenômeno recente ensejou a elaboração de diversos estudos que pretendiam

descrevê-lo e conceituá-lo, o que pode ser constatado pela multiplicidade de

denominações que passaram a coexistir, como “processo global”35

ou, até mesmo,

“cidades globais”36

.

Ocorre que todas as tentativas de descrever os processos de extensão do âmbito

de influência de um determinado comportamento a limites transnacionais são falhas

quando feitas sob uma ótica linear. Isso porque não se trata de um único processo

globalizante, embora uma análise perfunctória das condições hodiernas do mundo possa

isso sugerir. E apesar de o termo “globalização” aparentar simples cognição e ser

mencionado diuturnamente a ponto de seu uso indiscriminado beirar as raias da

banalização, sua apreensão torna-se difícil quando constatadas a miríade de relações

globais atualmente em trâmite no mundo.

Aliás, curioso pontuar que a diversidade de conceitos acerca do que

efetivamente consistiria a “globalização” e de teorias sobre suas causas e consequências

comprovam o acima afirmado no que tange à existência de variados fenômenos

globalizados. Com efeito, caso se tratasse realmente de uma relação linear e unívoca, a

“globalização” não comportaria tantas discussões a respeito de sua definição e, até

mesmo, de sua correta nomenclatura.

Há, além disso, contradições que comprovam ser inviável a adoção de um

conceito singular de “globalização”.

Uma das mais proeminentes contradições dessa espécie é aquela que se dá entre

os conceitos de globalização e de localização37

. Isso porque não podemos olvidar que o

novo território alcançado pela transnacionalização de certa tendência, tinha, antes, suas

33

SOUSA SANTOS, Boaventura. Os processos de globalização. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura de

(org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed., São Paulo : Cortez, 2005, p. 25. 34

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. Ed., Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2010, p. 311-

312. 35

FRIEDMAN, Jonathan. Cultural Identity and Global Process. London : Sage, 1994. 36

SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton : Princeton University

Press, 1991. 37

SOUSA SANTOS, Boaventura. Os processos de globalização. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura de

(org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed., São Paulo : Cortez, 2005, p. 54 e 63.

12

próprias tendências. Estas restaram localizadas em face da globalização da outra ou das

outras tendências. Em outras palavras, a gobalização sempre implica em localização.

Outra contradição é aquela que envolve as idéias de Estado-nação e não Estado

transnacional38

. Enquanto para alguns, o Estado é uma entidade ultrapassada, para

outros ele continua a ser a entidade política central, até porque os processos de

estatização e de regulação das economias são desenvolvidos por Estados-nação.

Há, ainda, a contradição dos enfoques pelos quais a globalização é vista. Ao

mesmo tempo em que a globalização pode ser vista como mais um incentivo ao

capitalismo, ela também pode ser entendida como oportunidade para a ampliação da

solidariedade internacional39

.

A coexistência de pontos de vista tão díspares a respeito de um mesmo

fenômeno demonstra a impossibilidade de aceitarmos uma visão monolítica da

globalização, até porque essa compreensão linear ignoraria a coexistência e a

convivência de práticas sociais com naturezas diferentes, quais sejam, das práticas

interestatais, das práticas capitalistas globais e das práticas sociais e culturais40

,

olvidando a necessária interação entre elas existente.

Tais fatos corroboram a natureza plural do que se convencionou chamar por

“globalização”, atestando ser mais adequado falarmos, portanto, em globalizações.

Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto,

conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações

sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nestes termos, não

existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez

disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural.

Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não

substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações sociais, as

globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos.

Freqüentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores

contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absurda que

os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, é errado

pensar que as novas e mais intensas interacções transnacionais produzidas

pelos processos de globalização eliminaram as hierarquias no sistema mundial.

Sem dúvida que as têm vindo a transformar profundamente, mas isso não

significa que as tenham eliminado. Pelo contrário, a prova empírica vai no

sentido oposto, no sentido da intensificação das hierarquias e das

desigualdades.41

38

Id. Ibid., p. 55. 39

Id. Ibid., p. 55. A questão da solidariedade internacional será mais bem detalhada adiante. 40

Id. Ibid., p. 56. 41

Id. Ibid., p. 55-56.

13

É interessante pontuar, a esta altura, que a abordagem dos processos

globalizantes idealizada por Boaventura de Sousa Santos, e por nós adotada, torna

aparentemente inócua a ênfase dada por alguns à compressão tempo-espaço como

característica e, até mesmo, elemento conceitual da “globalização”. Isso porque ao

visualizarmos a “globalização” sob um enfoque plural, constataremos que a compressão

espacial-temporal está intrinsecamente ligada às relações de poder que emanam dos

processos globalizantes.

Para ilustrar, apontamos o caso dos trabalhadores migrantes, que efetuam

movimentação transnacional sem, contudo, exercer o controle sobre a compressão

tempo-espaço42

. Isto é, embora representem transposição de tendências e culturas para

além das fronteiras nacionais, os trabalhadores migrantes não controlam o modo como

este intercâmbio irá se acelerar e se difundir pelo espaço geográfico global, o que atesta

que a compressão espacial-temporal não é característica, mas sim faceta das

globalizações.

Boaventura de Sousa Santos aponta quatro processos globalizantes, calcados no

critério global/local.

Antes de prosseguirmos, porém, é importante frisarmos que o critério

global/local não exclui e tampouco minora o critério de hierarquização interestatal até

então existente, que subdividia os Estados-nação em centro, semiperiferia e periferia. É

perfeitamente possível coexistirem ambos os critérios, não só como decorrência do

caráter multifacetado das globalizações, mas também pelo fato de que a aplicação dos

critérios global e local intensifica, em alguns casos, as divisões outrora existentes entre

países de centro, de semiperiferia e de periferia43

.

Retomando os processos globalizantes descritos por Boaventura de Sousa

Santos, temos que o primeiro deles é o localismo globalizado, por meio do qual uma

prática local (adoção mundial das mesmas leis de propriedade intelectual ou a atividade

econômica das multinacionais, e.g.) estende com sucesso seu âmbito de influência para

além de suas fronteiras espaciais.

Outra forma de globalização é o globalismo localizado, consistente no impacto

produzido pelas práticas transnacionais (localismos globalizados) em situações locais,

42

Id. Ibid., p. 64. 43

“Em resultado, o critério de hierarquização próprio das práticas interestatais (centro, semiperiferia,

periferia) é crescentemente contaminado pelos critérios próprios das outras práticas (global, local) e de tal

modo que, o que conta como centro semiperiferia e periferia, é cada vez mais a cristalização, ao nível do

país, de múltiplas e distintas combinações de posições ou características globais e/ou locais no interior de

práticas capitalistas globais e de práticas sociais e culturais transnacionais.” Id. Ibid., p. 62.

14

que são desintegradas, desestruturadas ou, até mesmo, realocadas de maneira subalterna

à produção global.

Há, ainda, o chamado cosmopolitismo, processo globalizante de resistência, que

visa combater as trocas desiguais ocorridas nos localismos globalizados e nos

globalismos localizados, traduzindo-se em lutas contra qualquer espécie de exclusão,

feitas com base, dentre outros mecanismos, em solidariedade internacional.

Por fim, há também o processo globalizante do patrimônio comum da

humanidade, com vistas à proteção de itens e ambientes considerados essenciais à

sobrevivência da humanidade.

Vemos, então, que essa coexistência e, até mesmo, a interconexão de processos

globalizantes demonstra, de uma vez por todas, ser incabível empregarmos a expressão

“globalização” em um enfoque singular.

Além disso, o signo “globalização” depende de complementação por substantivo

ou por adjetivo, que esclareça sobre qual processo globalizante está a se falar. Sem o

devido complemento substantivo ou adjetivo, o termo “globalização” revela-se como

mero argumento retórico e, quiçá, banalizado, sem força prática e explicativa.

Dessa maneira, ao agregarmos à expressão “globalização” o substantivo

“lingüística”, poderíamos nos referir à expansão transnacional de um determinado

idioma (localismo globalizado) em detrimento de outro (globalismo localizado). Da

mesma forma, ao complementarmos “globalização” com o adjetivo “alimentícia”,

poderíamos aventar menção à transnacionalização de hábitos alimentares, como, por

exemplo, o fast food.

O mesmo ocorre com a expressão “globalização econômica”. O substantivo

“econômica”, quando agregado ao termo “globalização”, delimita o processo

globalizante para a seara do fato econômico.

Ocorre que as relações econômicas e a própria atividade econômica em si

ostentam íntima conexão com outras searas jurídicas, como é o caso das relações

sociais, políticas, fiscais, ambientais e trabalhistas. Quando analisamos a relação

econômica, invariavelmente ingressamos no exame de outras questões que lhe estão

atreladas. No caso do Brasil, apenas a título de exemplo, essa interface é corroborada

pela leitura do Título VIII da Constituição Federal, que disciplina a ordem econômica

com base em diretrizes aparentemente díspares, mas que, se interpretadas em conjunto,

trazem a complexidade e a relevância do fato econômico para uma democracia que

15

ostenta como fundamento os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV,

CF).

Vemos, desta sorte, que a locução formada entre o termo globalização e outro

substantivo ou adjetivo, ao mesmo tempo em que restringe o processo globalizante que

será analisado, demonstra que, no caso específico da globalização econômica, há certas

relações jurídicas que são indissociáveis e, portanto, parcelas de um mesmo processo de

globalização. Apesar de aparentemente autônomas, elas devem ser interpretadas em

conjunto, como forma de conferir racionalidade e coesão ao processo que se pretende

estudar.

Dessa forma, toda decisão política internacional – ou mesmo nacional – tendente

a implantar modelo econômico global deve levar em consideração que o fato econômico

traz consigo relações sociais e trabalhistas que não podem ser retiradas da agenda

mundial. Talvez seja essa uma das razões que conduziu ao aparente fracasso das idéias

formuladas no denominado “Consenso de Washington”44

, que propugnavam o

liberalismo econômico em uma quadra histórica em que já se reconhece a necessidade

de intervenção estatal na economia para prestar direitos aos agentes econômicos e

garantir-lhes igualdade material, o que comprova a interconexão da economia com a

disciplina de outros fatos da vida.

Aliás, oportuno relembrarmos que as idéias difundidas em nível global pelo

“Consenso de Washington” já o tinham sido ao menos dois séculos antes, com a

globalização dos ideais liberais da Revolução Francesa. E, curiosamente, esse

liberalismo econômico já havia sido contido com o reconhecimento, dentre outros fatos,

de que há mais relações jurídicas relacionadas ao fato econômico do que a mera relação

jurídica econômica, o que enseja a presença estatal para prover direitos não alcançáveis

tão-somente pelas leis naturais.

Volvendo os olhos à questão ora tratada, temos que, nos dias atuais, vivemos em

uma sociedade de consumo, na qual o poder econômico não é mais titularizado por uma

pessoa física ou jurídica facilmente determinada. Essa sociedade firma-se, como visto,

em uma ética de resultados e não de convicções.

Nesse panorama hodierno, independentemente da intensidade com a qual o fato

econômico relacione-se com outras relações sociais e jurídicas, a correta identificação

44

O Consenso de Washington foi fruto de seminário ocorrido nesta cidade em 1990, que reuniu

economias do governo norte-americano e de instituições internacionais. Passou a ser sinônimo de

medidas econômicas neoliberais, voltadas para a reforma e a estabilização das economias “emergentes”.

NAZAR, Nelson. Direito Econômico e o Contrato de Trabalho. São Paulo : Atlas, 2007, p. 251.

16

destas últimas, de modo a destacá-las da relação econômica em si, torna-se cada vez

mais difícil, até porque a própria interpretação das relações econômicas passa a ser feita

com base na ótica econômica de resultados, o que obsta, por vezes, a leitura jurídica de

um fenômeno social integrante daquela cadeia econômica, qualquer que seja sua

importância para o resultado econômico alcançado.

Com efeito, a circularidade imposta pela sociedade de consumo aos fenômenos

econômicos retira a possibilidade da percepção imediata de distorções existentes nessa

cadeia produtiva. Isso porque não se discute, com a força vinculante necessária, se uma

determinada prática é dissonante de tratados internacionais sobre a mão de obra ou se

um determinado bem de consumo foi produzido em desacordo com regramentos

internacionais sobre o meio ambiente. Essa natureza de discussão, apesar de existir, não

influencia de maneira determinante a sociedade de consumo atual, cuja única finalidade

é o aumento da produção para o aumento do consumo. Prova disso é que a Organização

Mundial do Comércio, embora já tenha incorporado o discurso relacionado ao

desenvolvimento sustentável e ao meio ambiente (que consta, inclusive, no preâmbulo

do Acordo de Marraqueche, que criou referida organização), ainda pontua pela adoção

de medidas protetivas ao meio ambiente somente nos casos em que elas não ferirem os

princípios do livre comércio45

.

Assim sendo, na esteira do exarado supra, a interface das relações econômicas

com outras relações jurídicas faz com que a globalização econômica leve consigo a

globalização de outras tendências, com a conseguinte localização de tantas mais.

E no que diz respeito especificamente às relações trabalhistas, como o

desenvolvimento econômico não pode ser compreendido sem o estudo do fator trabalho

– até porque toda geração de riqueza imprescinde de trabalho humano46

–, não raro será

encontrarmos práticas trabalhistas localizadas que representam verdadeira afronta aos

direitos humanos, mas que se apresentam como um globalismo localizado diante de

relação econômica transnacional que a subordinou. Diversos exemplos dessa realidade

45

PIRES, Camila Fraga Braga. Comércio e Meio Ambiente e a Organização Mundial do Comércio.

Revista Eletrônica de Direito Internacional (online). V. 1, Belo Horizonte : CEDIN, 2007, p. 307-348.

Disponível em

http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/COM%C9RCIO%20E%20MEIO%20AMBIENTE%2

0E%20A%20ORGANIZA%C7%C3O%20MUNDIAL%20DO%20COM%C9RCIO%20Camila%20Pires

.pdf. Acesso aos 02 de novembro de 2011. 46

CALLEGARI, José Carlos. Desenvolvimento econômico, direito do trabalho e direitos sociais: uma

análise das convenções da organização internacional do trabalho. IN: PIOVESAN, Flávia. SOARES, Inês

Virgínia Prado (coord.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 491.

17

são encontrados diuturnamente e, alguns deles, inclusive, são explorados pela própria

mídia.

Dessa forma, diante de regras e modelos internacionais que norteiam o trato

trabalhista e os direitos dos trabalhadores, convivem notoriamente três realidades. Uma

é a dos trabalhadores que, inseridos na lógica econômica globalizada, encontram

amparo legislativo e político para o exercício livre de sua função laboral e para o seu

desenvolvimento pessoal. Outra é a dos trabalhadores que, mesmo integrantes de

processos globalizantes, subordinam-se a eles sem que haja o mínimo de substrato

político ou legislativo a conferir-lhe isonomia material. E uma outra realidade é a da

própria sociedade de consumo, que não discute ou, melhor, não se interessa por quem

integra os pólos subjetivos da relação econômica internacional, uma vez que o objetivo

único dela é consumir para aumentar sua capacidade de consumo.

Surge, assim, conjuntura de desigualdade juslaboral em escala mundial, que é

intensificada com a forma pela qual o poder econômico se manifesta na atualidade, isto

é, como gestor do processo circular de consumo, mas que ainda traz consigo a relação

entre possibilidade e atualização que conserva a neutralização de determinadas ações de

seus destinatários.

4. A CONDIÇÃO DO TRABALHADOR NAS GLOBALIZAÇÕES

ECONÔMICAS

Sem olvidar a existência de desigualdades trabalhistas no âmbito interno de cada

Estado-nação – inclusive, e especialmente, o Brasil – convivemos com a falta de

isonomia laboral em escala global. Embora não se trate de fenômeno novo, visto que a

exploração da força de trabalho remonta à história da humanidade, é certo que a

aceleração da difusão dos processos globalizantes, da mesma forma que trouxe

informações a respeito da condição do trabalhador com maior celeridade e precisão,

acentuou as disparidades trabalhistas existentes.

Não é por acaso, a nosso ver, que a Organização Internacional do Trabalho –

OIT figure como um dos primeiros precedentes do processo de internacionalização dos

direitos humanos47

, até porque, antes, as regras de direito internacional eram voltadas às

47

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed., São Paulo

: Saraiva, 2010, p. 113-121.

18

relações interestatais, não disciplinando obrigações internacionais que transcendiam os

interesses exclusivos dos Estados contratantes48

.

Somente com a percepção de que o homem poderia figurar no plano

internacional não apenas como integrante do povo (elemento humano do Estado), mas

também como sujeito de direitos internacionais, emergiu a necessidade de intervenção

externa nas relações trabalhistas que eram desenvolvidas no plano global, haja vista ser

este um dos principais campos de afronta ao ser humano enquanto membro de uma

comunidade mundial.

Criada a partir do Tratado de Versalhes, após o término da Primeira Grande

Guerra, a OIT prega proteção ao tratamento decente aos trabalhadores como a única

forma de alcançarmos a paz contínua49

, o que, de certa forma, já demonstra o

delineamento dos direitos fundamentais de segunda geração e a sua relevância para o

alcance da igualdade material.

E, com vistas a possibilitar essa isonomia perante os bens da vida em um cenário

marcado pela desigualdade social e trabalhista, a OIT busca, através de suas convenções

e de trabalhos desenvolvidos em âmbito internacional, estabelecer um padrão mínimo

de dignidade ao trabalhador que deverá servir de parâmetro tanto aos programas e às

políticas sociais desenvolvidas internamente pelos Estados, como também às próprias

legislações estatais.

Vemos, então, que a atuação da OIT no controle e fiscalização de práticas

trabalhistas violadoras de direitos humanos, bem como na disseminação de boas

condutas e regulação de um piso mínimo de dignidade ao trabalhador, ostenta caráter

eminentemente vertical, pois parte de uma entidade internacional, que fica encarregada

de efetuar o monitoramento desses direitos humanos.

Entretanto, não obstante a existência de organismo internacional criado

justamente para evitar a disseminação de desigualdades nas relações trabalhistas, não

podemos negar que estas continuam a existir e foram intensificadas pelos recentes

processos de globalização virtual, tecnológica e, sobretudo, cultural.

E isso se deve, fundamentalmente, ao fato de que, como decorrência da forma

pela qual o poder econômico manifesta-se nos dias de hoje, as instituições jurídicas

econômicas passaram a ser interpretadas à luz de conceitos puramente econômicos,

48

Id. Ibid., p. 118-119. 49

Informações disponíveis no preâmbulo da Constituição da OIT e no sítio virtual

http://www.ilo.org/global/About_the_ILO/lang--en/index.htm. Acesso aos 22 de maio de 2011.

19

como forma de levar a cabo uma ética de resultados, na qual não se debate a

consonância de determinada prática com o sistema normativo humanista, mas sim

discute-se sua adequação ao modelo consumista global.

Não podemos negar que certos localismos globalizados difundiram-se pelo

mundo reestruturando questões locais ligadas à cultura, à tradição e à política de povos,

a fim de subordiná-las ao processo globalizante em construção. As práticas

globalizadas, por sua vez, nem sempre ostentam relação direta e compatibilidade com as

práticas localizadas, em virtude de fatores variados, que envolvem desde questões

simplesmente culturais até a ausência de respaldo legislativo para a própria democracia.

Por vezes, as práticas locais restaram subordinadas à lógica econômica global

sem que houvesse o necessário contraponto jurídico estatal para conferir-lhes e a seus

membros isonomia material em face do processo globalizante.

Ao transferirmos este cenário para a atividade econômica, deparamo-nos com

relações econômicas que estenderam seu âmbito de influência para além das fronteiras

nacionais, globalizando-se em Estados com diversidades culturais e legislativas, cujas

relações locais foram acomodadas de modo a servir o processo globalizante. Isto é, estas

relações econômicas globais foram construídas sob relações locais que restaram locais

justamente por ostentar alguma irregularidade em face do desenvolvimento da

humanidade e à humanização do direito internacional (embora possam não ostentar, a

princípio irregularidades em face da legislação interna), mas que podem ser

adequadamente reestruturadas para subordinarem-se ao modelo globalizado, justamente

pelo fato desee modelo globalizado estar construído, hoje em dia, sob a ótica econômica

e não jurídica.

É nesse panorama, por exemplo, que se torna interessante a certos processos

globais a existência de Estados que contenham legislação interna prevendo jornadas

excessivas e ausência de salário mínimo, pois tais práticas – localizadas em decorrência

da globalização dos direitos humanos – servem e subordinam-se a relações econômicas

perpetradas em escala internacional, pois permitem o aumento do consumo para que se

possa consumir cada vez mais.

Ainda, a ausência de normas internas que garantam ao trabalhador piso mínimo

de dignidade enseja o alargamento de bolsões de miséria, o que demanda, não raro, a

participação econômica de órgãos de financiamento internacionais. Há, portanto,

relação econômica cíclica de empréstimo e endividamento, construída sob a afronta a

direitos humanos do trabalhador.

20

E, não obstante vivermos em constante movimento de trocas instantâneas de

informação, os cidadãos envolvidos nos globalismos localizados, decorrentes dos

processos acima descritos, carecem de uma prerrogativa essencial, que lhes poderia

possibilitar a emancipação em face desse cenário de privações humanas no qual estão

inseridos. Estamos a falar do direito à informação.

O direito à informação é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito e

mostra-se como ferramenta indispensável à concretização do princípio republicano e à

consolidação da cidadania. Sem informação e transparência o povo é impedido de

exercer o poder estatal, do qual, no caso do Brasil, é o único titular (art. 1º, parágrafo

único, CF)50

.

Conforme dito acima, apesar de os movimentos globalizantes possibilitarem a

convergência de mercados e, sobretudo, de informações – o que, em um primeiro

momento, ensejaria maior fiscalização de possíveis afrontas a direitos humanos –, a

peculiar construção destas relações econômicas permite o avanço da chamada assimetria

de informação, tanto na relação social localizada como na globalizada.

Com efeito, no primeiro caso (relação social localizada), geralmente falhas na

própria estrutura estatal permitem a expansão de regimes políticos autoritários ou de

grupos de poder paralelos, que utilizam mecanismos de poder para manter o status quo

opressivo ou para explorar a força de trabalho da população carente, o que ocorre sem

qualquer diretriz assistencial, social ou ambiental51

. Em qualquer dessas conjunturas, a

mesma falta de estrutura estatal que deu ensejo à violação dos direitos humanos é

também responsável por tolher da população – cujos direitos estão sendo afrontados – a

possibilidade de acesso à informação necessária a respeito de como agir diante de tais

condutas, mesmo porque, em grande parte dos casos, tais Estados sequer assinaram

tratados internacionais com o objetivo de resguardar os direitos humanos de seus

cidadãos52

.

Na segunda situação (relação social globalizada), o descompasso de informações

também se faz presente, porém sob outro ângulo. Aqui, tanto o trabalhador como o

50

Disponível em http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Informa%C3%A7%C3%A3o,

acesso aos 24 de maio de 2011. 51

Segundo notícia divulgada aos 04 de maio de 2010 no sítio virtual da Organização das Nações Unidas,

estima-se que existem, no mínimo, dez milhões de crianças trabalhando na África. Disponível em

http://www.un.org/en/rights/, acesso aos 04 de maio de 2010. 52

É o caso, por exemplo, do Zimbábue, que até 14 de julho de 2006, não havia ratificado a Convenção

contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, conforme relatório

disponibilizado pela Organização das Nações Unidas no sítio virtual

http://www2.ohchr.org/english/bodies/docs/status.pdf. Acesso aos 04 de maio de 2010.

21

consumidor têm pleno acesso às informações e à estrutura governamental e legal

necessárias para o regular exercício de seus direitos, porém não possuem ciência do

destino dos bens que elaboram (armas de fogo e material bélico, por exemplo) ou das

circunstâncias que envolveram sua origem (mão de obra mal remunerada e sujeita a

jornadas exaustivas de trabalho, exempli gratia).

Em ambos os casos, o poder econômico, mesmo que exercido em moldes de

gestão, aproveita-se de tais falhas internas e neutraliza a possibilidade que os cidadãos,

no caso, teriam para agir em conformidade com um modelo global de informação

compartilhada. É dizer: a informação existe e o cidadão até poderia ter acesso a ela para

tentar alterar seus padrões de comportamento, na tentativa de alcançar sua dignidade (no

primeiro caso) ou elucidar o destino ou origem do que é produzido (no segundo caso).

No entanto, essa possibilidade é neutralizada pela estrutura econômica na qual está

inserido.

E diante das dificuldades enfrentadas na interpretação jurídica destes fenômenos

econômicos – conforme visto alhures –, o que, conseguintemente, implica em

obstáculos para a aplicação de normas internacionais a tais casos, surgem mecanismos

horizontais voltados a coibir ou minorar eventuais máculas a direitos humanos

existentes nessas relações econômicas globalizadas. É o caso da solidariedade

internacional.

5. SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL

Historicamente, a solidariedade estava ligada à noção de fraternidade, um dos

ideais dos revolucionários franceses. Com efeito, no ano de 1790, a ajuda a cidadãos

pobres foi declarada como um direito fundamental na França e, em 1793, foi editado ato

normativo que garantia ao cidadão o direito a receber auxílio e subsistência caso fosse

necessário53

.

Percebemos que a caracterização da solidariedade, nessa época, estava muito

próxima da própria caridade ou, até, da filantropia, fenômenos nos quais há evidente

disparidade social ou econômica entre as partes envolvidas.

53

DANN, Philipp. Solidarity and the Law of Institutional Development Cooperation. IN: PIOVESAN,

Flávia. SOARES, Inês Virgínia Prado (coord.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte : Fórum,

2010, p. 74.

22

A moderna concepção de solidariedade não mais representa essa relação vertical,

em que a ajuda é vista como ato de misericórdia. Atualmente, a noção de solidariedade

parte do pressuposto de que há igualdade entre doador e receptor, que participam de

relação horizontal, na qual a ajuda é vista não mais como ato de caridade, mas como

direito do cidadão54

.

Essa conceituação atual do termo solidariedade tem como escopo assegurar a

autonomia de cada pessoa enquanto membro de uma comunidade que busca objetivos

comuns relacionados ao desenvolvimento da humanidade. Funda-se, portanto, na idéia

de prover ajuda a outrem como forma de alcançar um fim comum, em relação permeada

por obrigações mútuas55

.

Trata-se de expressão com profundo traço evolutivo, pois compreende a

humanidade como um conjunto de seres humanos que são iguais justamente por serem

humanos e que, por isso, podem caminhar juntos em busca de objetivos comuns a toda a

humanidade, ajudando uns aos outros não por misericórdia, mas para que esses escopos

comuns sejam alcançados com maior rapidez e facilidade. O próprio termo

“solidariedade” remete à idéia de algo comum a todos aqueles que estão nela

envolvidos.

Relembrando o já narrado supra, podemos até indicar a solidariedade

internacional como uma faceta mais ampla do processo globalizante do patrimônio

comum da humanidade.

Além disso, ao contrário da atuação da OIT – que revela verticalidade –, a

solidariedade aproxima-se de uma forma horizontal de monitoramento dos direitos

humanos, visto que é implementada por cada cidadão buscando ajudar outro cidadão,

justamente pelo fato de que este tem direito a ser ajudado por seus pares para, junto a

eles, prosseguir na procura e no alcance de objetivos comuns.

Assim, diante de aparente ou real afronta a direitos humanos dos trabalhadores,

a solidariedade internacional entraria em tela para o auxílio mútuo entre os envolvidos,

pois todos são igualmente humanos. E, ajudando uns aos outros, os seres humanos

doadores atuariam de modo a emancipar a dignidade daqueles que recebem a ajuda a

solidária, da mesma maneira que estes ajudariam os primeiros a perseguir um fim

comum.

54

Id. Ibid., p. 75. 55

Id. Ibid., p. 79.

23

Apesar da grandeza da proposta, percebemos que, diante da situação atual da

humanidade, trata-se de algo de difícil aplicação prática, sobretudo na seara trabalhista.

Com efeito, conforme estamos vendo no decorrer deste estudo, as desigualdades

havidas nas relações trabalhistas têm, como uma de suas causas, o próprio

comportamento da sociedade, que se construiu como uma sociedade de consumo,

desinteressada por qualquer outro fator da relação econômica que não seja o aumento do

consumo para mais consumir.

Ou seja, como a solidariedade pressupõe a ajuda de um ser humano a outro para

a concretização de um objetivo humano comum, seria necessário ultrapassarmos essa

cultura de consumo existente em nossa sociedade, afastando a ética de resultados que a

permeia a fim de restabelecermos convicções, que permitiriam, em um primeiro

momento, o resgate a discussões dos aspectos sociais e jurídicos envolvidos nas

relações econômicas transnacionais.

Além disso, importante pontuarmos – já em um panorama crítico sobre a

inobservância a direitos humanos – que há determinados povos cujos ordenamentos

jurídicos ainda não contemplam direitos básicos, já reconhecidos há muito no âmbito

internacional, o que comprova que estes povos sequer alcançaram o estágio evolutivo

humano da igualdade perante a lei (direito fundamental de primeira dimensão).

Ainda, aceitando as convenções da OIT como documentos convencionais de

regulação internacional do trabalho, vemos que a previsão global de um piso mínimo de

direitos ao trabalhador não é capaz, por si própria, de garantir a igualdade necessária

para o início de um projeto mundial de solidariedade. Isso porque, além da dificuldade

de interpretação jurídica dos fenômenos econômicos atualmente existente, falta,

também, isonomia material, o que dificulta a existência de objetivos comuns entre todos

os seres humanos.

Mais que isso, vemos que o desrespeito ao trabalhador em decorrência da

privação de direitos humanos que lhe são inerentes demonstra ausência de

comprometimento, ou até mesmo desconhecimento, de direitos fundamentais

transindividuais, o que comprova a dificuldade de se estabelecer um objetivo comum a

ser alcançado. Ora, se não são sequer reconhecidos direitos a uma determinada

coletividade, mostra-se custoso aceitar que uma coletividade pode ter direito a ter

anseios comuns e a alcançá-los.

Ademais, é importante observarmos que o ímpeto com o qual os processos

globalizantes atuam na atualidade torna corriqueira a localização de cada vez mais

24

culturas e práticas, o que, de certa forma, acaba por difundir na comunidade

internacional conceitos únicos a respeito de um determinado assunto. Com isso, as

práticas localizadas que afrontam direitos trabalhistas passam a destoar da opinião

comum do mundo globalizado, trazendo à sirga evidente dualidade de realidades: a do

dito mundo globalizado (com a opinião globalizada) e a da esfera localizada, com suas

opiniões localizadas.

Essa dualidade retira qualquer patamar de isonomia capaz de conferir substrato

à troca mútua de auxílio global. Isso porque a ajuda capaz de ser ofertada pela

comunidade dita globalizada não é a ajuda efetivamente necessitada pela comunidade

localizada, em virtude da dissonância de opiniões e informações partilhadas por cada

qual. O mesmo processo globalizante que fez emergir a desigualdade trabalhista

também inviabiliza a retomada da isonomia pretendida.

Independentemente das dificuldades acima elencadas – cuja exposição fez-se

necessária com a finalidade de incentivar o debate e, talvez, a concretização da

solidariedade como forma de auxílio internacional a nichos trabalhistas isolados dos

direitos humanos –, ponderamos que a simples aceitação de que é possível perseguir

igualdade nas relações trabalhistas internacionais através da solidariedade já se mostra

como um grande e importante objetivo comum a ser alcançado, o que autoriza a

utilização desse mecanismo horizontal de tutela aos direitos humanos.

A solidariedade, nessa toada, poderia ser apontada como um instrumento

internacional capaz de atenuar as consequências econômicas da sociedade de consumo,

podendo até, em um segundo momento, figurar como uma nova forma de comunicação

social.

6. CONCLUSÃO

A forma com a qual o poder econômico firmou-se na atualidade decorre da

transformação da sociedade moderna em uma sociedade de consumo, na qual o

importante é consumir mais para aumentar a capacidade de consumo, em uma relação

circular, voltada unicamente a resultados. Aqui, o poder econômico não é mais

titularizado por alguém determinado – como ocorria em outras épocas históricas –, mas

sim é visto como um gestor deste processo circular.

As globalizações das relações econômicas devem necessariamente ser analisadas

à luz da sociedade de consumo e desse poder econômico que dela emerge, uma vez que

25

o processo de globalização econômica, em certos casos, produz afrontas a direitos

trabalhistas, fazendo surgir evidente desigualdade juslaboral em escala internacional.

Essa desigualdade pode ser compelida através de, dentre outros modos, mecanismos

verticais, como a atuação da OIT, de práticas tendentes a disseminar informação

adequada aos trabalhadores e, também, por mecanismos horizontais de monitoramento

de direitos humanos, como a solidariedade internacional.

A solidariedade internacional mostra-se como alternativa de combate às afrontas

aos direitos humanos na medida em que a forma pela qual o poder econômico se

manifesta atualmente dificulta uma leitura jurídica dos fenômenos econômicos, os quais

acabam sendo interpretados e estimulados com base em princípios econômicos.

Ocorre que os pressupostos para a própria existência da solidariedade

aparentemente dificultam sua aplicação no mundo atual, em face dos diferentes estágios

de assimilação de direitos fundamentais em vigor nas comunidades globais, bem como

em face da diversidade cultural dos povos do planeta, fato este que, por si só, já

implicaria na necessidade de buscarmos concretizar a solidariedade com base em um

multiculturalismo emancipatório56

(ao invés de partirmos da idéia de diversidade de

culturas para aplicar a solidariedade, aplicaríamo-la para demonstrar essa pluralidade

cultural, como um ponto de chegada57

).

No entanto, acreditamos que simplesmente por aceitarmos a possibilidade de

existir uma solidariedade internacional, apta conferir ao ser humano a consciência de

mútuo auxílio como direito e formulada na busca de objetivos comuns, já consiste em

mostra de que sua concretização é um relevante escopo comum a ser alcançado, o que

demonstra a plausibilidade de seu conceito e a real possibilidade de sua aplicação.

Além disso, a aceitação da possibilidade de aplicação, talvez um dia, da

solidariedade internacional, pode transformá-la em uma nova forma de comunicação

social, possibilitando a releitura do poder econômico nos termos em que ele se

manifesta na atualidade.

A desigualdade nas relações trabalhistas é uma realidade que não pode ser

ignorada pelo ser humano e tampouco pelos Estados, especialmente pelo fato de que

56

SOUSA SANTOS, Boaventura. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica

de Ciências Sociais. n. 48, jun/1997. 57

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26

essa ausência de isonomia implica em ausência de dignidade para aqueles que se vêem

em situação exploratória.

Qualquer método a ser aplicado com vistas a minorar e, quem sabe, extinguir as

desigualdades juslaborais decorrentes dos processos globalizantes deve ter como

fundamento principal o fato de que esse auxílio – normativo, informacional, econômico

ou solidário – irá emancipar uma dada comunidade, possibilitando-lhe o acesso a

direitos que ela já possui, mas que não frui ou não conhece, justamente pelo fato de a

estrutura de poder existente neutralizar-lhes essas possibilidades de conduta. Em última

análise, faz-se necessária a consciência única global de que já é a hora de, através desses

e de outros tantos mecanismos, emancipar a própria dignidade humana que vinha sendo

tolhida por práticas violadoras de direitos humanos.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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