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PODER ECONÔMICO E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL:
UM ENFOQUE À LUZ DAS GLOBALIZAÇÕES ECONÔMICAS
Camila Pintarelli1
RESUMO
Pretendemos, com este trabalho, elaborar uma análise do poder econômico e da
solidariedade internacional sob a ótica das globalizações econômicas. Para tanto,
iniciaremos com o estudo da expressão poder para, em um segundo momento,
adentrarmos à questão do poder econômico, o que possibilitará a construção de
conceitos que serão essenciais para a correta compreensão dos fenômenos econômicos
decorrentes das globalizações. Em após, estudaremos a questão das globalizações e dos
localismos, o que será feito com base na doutrina de Boaventura de Sousa Santos. Ao
final, adentraremos à questão da solidariedade internacional, apontando-a como
alternativa de controle de máculas a direitos humanos ocorridas no bojo das relações
econômicas internacionais, bem como uma proposta de nova comunicação social.
Palavras-chave: poder econômico; relação econômica; globalizações; direitos humanos;
solidariedade internacional.
ABSTRACT
With this work, we intend to elaborate an analysis about economic power and
international solidarity by the light of economic globalizations. For that, we will initiate
with the study of the word power for, in a second moment, we enter to the economic
power question, which will enable the built of concepts that will be essential for the
correct comprehension of economical phenomenon resulting from globalizations. After,
we will study the globalizations and localisms question, which will be done by
Boaventura de Sousa Santos doctrine. By the end, we will broach the international
solidarity subject, pointing it as a alternative way to control the offences to human rights
that take place in the international economic relations, and also as a suggestion of a new
social communication.
1 Procuradora do Estado de São Paulo. Mestranda em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
2
Keywords: economic power; economic relation; globalizations; human rights;
international solidarity.
1. INTRODUÇÃO
É possível traçar uma íntima conexão entre o desenvolvimento diuturno da
economia global nos tempos atuais e o caminhar das globalizações de determinadas
relações sociais2. Com efeito, na medida em que certas condutas estendem seu âmbito
de influência pelo mundo, há a conseguinte alteração do comportamento dos atores
econômicos (consumidores, Estado e agentes privados) em busca da adaptação ao novo
cenário proposto.
Por vezes, a existência e a viabilidade financeira de relações jurídicas
econômicas internacionais dependem, essencialmente, da manutenção de culturas
locais, como forma de garantir o subsídio humano e material necessário para o sucesso
do modismo globalizado. Dessa maneira, nesses casos, notamos que o espectro mundial
alcançado pela relação econômica e por seus frutos tem como contraponto necessário a
conservação em um âmbito local de práticas sociais, trabalhistas ou culturais.
Nesse panorama específico que envolve relações econômicas como tais,
especificamente no que tange aos direitos humanos, embora existam cadeias de
produção cujos agentes primem pela observância dos tratados internacionais
relacionados à atividade econômica por eles desempenhada, não é raro encontrarmos
costumes pontuais ou situações políticas transitórias que representam verdadeira afronta
aos direitos humanos, mas que, ainda assim, ocupam uma linha internacional de
produção, seja por disponibilizar matéria prima a baixo custo, seja por ofertar mercado
de consumo a determinados bens, garantindo, com isso, o desenvolvimento e a
sobrevivência de atividades econômicas capitaneadas por atores transnacionais.
Apesar de os movimentos globalizantes possibilitarem a convergência de
mercados e, sobretudo, de informações – o que, em um primeiro momento, ensejaria
maior fiscalização de possíveis afrontas a direitos humanos –, a peculiar construção
destas relações econômicas permite o avanço da chamada assimetria de informação,
tanto na relação social localizada como na globalizada.
2 A opção pelo uso da expressão “globalização” no plural será explicada adiante.
3
E a assimetria de informação contribui, por vezes, de maneira fundamental para
o sucesso e a continuidade da relação econômica internacional conspurcada pela
violação a direitos humanos em um de seus pólos subjetivos.
O combate e o monitoramento das práticas violadoras de direitos humanos são
feitos, em regra, por órgãos internacionais, através de relatórios e comunicações
interestatais previstos em tratados internacionais, e o reconhecimento da efetiva
existência de violação a direitos humanos culmina com consequências políticas e morais
ao Estado transgressor.
Ocorre que, quando se trata de relações econômicas internacionais, nem sempre
o monitoramento por órgãos internacionais das afrontas aos direitos humanos é o único
mecanismo existente para desencorajá-las e reprimi-las.
Analisaremos no presente trabalho os fenômenos acima descritos sob a ótica da
teoria de Boaventura de Sousa Santos a respeito do sistema mundial em transição e o
conceito de globalização3.
Para tanto, preliminarmente faremos um estudo a respeito da expressão poder
econômico. Esta análise prévia mostra-se imprescindível por trazer conceitos que serão
utilizados no transcorrer de todo o texto, bem como possibilitará, ao final, uma melhor
compreensão da solidariedade internacional.
Em após, adentraremos no estudo da definição que norteará a análise da
globalização econômica, para, ao depois, passarmos a abordar soluções internacionais
para a resolução de problemas interestatais envolvendo violação aos direitos sócio-
econômicos dos trabalhadores, com especial enfoque para a solidariedade internacional,
apresentando exemplos de transformações nas relações laborais internacionais, o que
culmina, em verdade, com a emancipação da dignidade da pessoa humana.
2. PODER ECONÔMICO
A palavra poder é plurissêmica. Em português, de acordo com nossos
dicionários, ela aparece como verbo transitivo direto, indireto ou intransitivo, cujas
3 SOUSA SANTOS, Boaventura. Os processos de globalização. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura de
(org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed., São Paulo : Cortez, 2005, e SOUSA SANTOS,
Boaventura Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais.
n. 48, jun/1997.
4
acepções são diversas4, bem como figura como substantivo que, tal como o verbo,
também apresenta diversas significações5.
Na busca por conferir sentido à palavra poder, Tércio Sampaio Ferraz Junior
afirma que o verbo poder é modal, isto é, ele modaliza outros verbos, outras formas de
ação6. Essa característica modal do verbo poder encontra suas raízes na origem latina
dessa palavra. Com efeito, a palavra poder, em português, advém do latim potere, que,
no latim clássico, era um substantivo (potestas), o qual se relacionava com potência,
trazendo consigo a idéia de possibilidade7.
Ao pensar em poder como potência, é possível encontrar na expressão grega
dynamis outra fonte de auxílio na busca por se conferir sentido à palavra poder.
Dynamis traz consigo a noção de poder não apenas como mera possibilidade – tal como
potestas traz – mas como algo que se transforma em uma força compulsiva8.
Então, de um lado, temos a idéia de poder como algo que acopla a noção de
possibilidade, de potência para começar alguma coisa. De outro lado, há
também esse momento compulsivo da força, em que ter poder significa
possuir, de alguma forma, força. Poder, no primeiro sentido, é sempre uma
possibilidade que virá a ser atualizada. Poder é a relação entre possibilidade e
atualização. O outro lado do sentido usual é o da dynamis ou do poder, que
aparece da palavra dinâmica. Assim, a dinâmica é o dispositivo que gera
energia, donde alguém dinâmico como alguém que possuir energia, capacidade
de ação, força energética. Quando olhamos esses dois aspectos, podemos
dizer que a noção de poder resulta de um jogo entre potência,
possibilidade e atualização, e força para que isso aconteça. Ao falarmos do
poder, estamos pensando em um jogo que vai dessa possibilidade
concentrada à sua atualização completa, graças a um elemento de força
energética.9 – negritamos
Nesse diapasão, o ato de coação mostra-se como o limite do poder, uma vez que
o exercício do poder pressupõe que o destinatário guarde possibilidade de agir, mesmo
que esse agir se dê em conformidade com a seletividade daquele que tem o poder10
.
(...) Ora, na medida em que o poder se aproxima da coação ele perde
capacidade de reduzir a dupla contingência. Pois coação significa renúncia à
4 Veja-se, a propósito, a quantidade de acepções do verbo poder trazida pelo Dicionário Houaiss – in
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=poder&stype=k – acesso aos 20 de maio de 2011. 5 Id., Ibid.
6 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,
pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 19. 7 Id., Ibid.
8 Id., Ibid.
9 Id., Ibid.
1010 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Poder Jurídico e Violência Simbólica. São Paulo :
Cultural Paulista, 1985, p. 152.
5
possibilidade de regular a seletividade do outro e não a sua ação concreta; o
coator escolhe pelo outro. A relação entre coator e coagido não é uma relação
de poder. O coagido age aparentemente apenas, quando é na realidade um
instrumento do coator. (...) Nesse sentido, ter poder na relação de comunicação
não significa subjugar o outro, mas significa neutralizar o outro, o destinatário.
Vale dizer, o destinatário continua tendo várias possibilidades de ação,
mas estas possibilidades são neutralizadas de tal maneira que aparece uma
só, contudo elas não desaparecem. Permanecem uma só, as demais são
neutralizadas.11
– negritamos
É importante, a esta altura, tecermos algumas considerações a respeito do poder
e da relação de comunicação – como podemos observar no excerto acima transcrito. O
poder pode ser visto como meio de comunicação12
. Isso porque os sistemas sociais
formam-se via comunicação, que envolve sempre uma relação de possibilidades, as
quais, por sua vez, determinam reações que podem ser concebidas antecipadamente13
.
Tal como a comunicação, o poder é, como se vê, um processo.
O poder é por isso um medium generalizado simbolicamente de comunicação,
que não depende nem da submissão concreta nem, imediatamente, do efeito
obtido pelo detentor do poder. Pois o código poder realiza uma redução de
complexidade, de ambos os lados, ao nível da ação de ambos. Equivale dizer
que também o detentor do poder tem de ser movido para usar o “seu poder”.
(...) Estamos, pois, diante de uma situação em que o poder é meio para a
transmissão de seleções de ações para outra seleção de ações (e não seleção de
motivos de ações para ações), no qual ambos os comunicadores são sistemas
aos quais se imputam seleções como suas ações. Assim, o submetido (sujeito
“passivo” do poder) é alguém de quem se espera que escolha sua própria ação,
donde a possibilidade de auto-determinação. Só que neste pressuposto é que
são dirigidos contra ele elementos de poder, como ameaças, no sentido de
regulá-lo nesta escolha por ele realizada. Do mesmo modo o detentor do pode
se auto-determina. Com isso, na relação de ambos fica postulada a
possibilidade de uma previsível e “localizada” divergência. A transmissão de
complexidade reduzida ocorre quando a seleção da ação de um é co-
determinada pela seleção da ação de outro. O sucesso de uma ordem de poder
depende assim do aumento nas diferenciações de seletividades ainda
relacionáveis. Ou seja, uma determinada ordem de poder que não consegue
aumentar as diferenciações, que insiste em limitá-las a poucas possibilidades,
(...), terá que ver diminuída sua cota de poder e aumentada a quota de
violência, para sustenta – artificialmente – a situação, substituindo poder por
coação.14
Ao trazermos essas anotações ao âmbito econômico, a fim de possibilitar-nos a
definição do que seria o poder econômico, deparamo-nos com a necessidade de uma
breve análise histórica do fenômeno econômico, após a qual constataremos que o poder
11
Id., Ibid., p. 153. 12
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Direito e Poder. Apud. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite
dos. Poder Jurídico e Violência Simbólica. São Paulo : Cultural Paulista, 1985, p. 156. 13
Id., Ibid., p. 157. 14
Id., Ibid., p. 158-159.
6
econômico surge a partir do momento em que o mercado se torna a forma principal de
comunicação social, de modo ostensivo e predominante.15
Com efeito, é bem sabido que a economia é um fenômeno humano disciplinado
juridicamente desde a antiguidade. No Código de Hamurabi, idealizado no século XVIII
a.C., há excertos que tratam de preços e salários. Ainda, no Código de Manu, que data
dos séculos II a.C. a II d.C., encontramos dispositivos regrando a moeda e limitando a
atividade econômica.16
No Brasil pré-republicano, ainda que à luz de um ideal liberal-
aristocrático, verificamos que a economia também encontrava na Constituição Imperial
de 1824 dispositivos legais que a disciplinavam.17
Sem olvidarmos esse referencial histórico, é certo que a partir do final do século
XVIII, a concepção de mercado significando o lugar onde são praticados negócios
jurídicos passou a coexistir com a idéia de mercado como um projeto político18
. Isto é,
ao lado da dimensão palpável de mercado até então conhecida, exsurgiu a sua
compreensão como um plexo de relações jurídicas e fáticas, integrante da organização
da sociedade.
Ao final do século XVIII, [o mercado] toma forma como projeto político e
social e serve ao tipo de sociedade que os liberais desejavam instaurar. O
mercado se desdobra: sem deixar de referir os lugares que designamos
como mercado e feira, assume o caráter de idéia, lógica que reagrupa uma
série de atos, de fatos e de objetos. Mercado deixa então de significar
exclusivamente o lugar no qual são praticadas relações de troca, passando
a expressar um projeto político, como princípio de organização social. Neste sentido, há autores como Rosanvallon, que o tomam como representação
da sociedade civil.19
– negritamos
É nessa época que a noção de mercado assume a forma de comunicação social,
tomando conta da vida em sociedade e fazendo com que tudo convirja para si. É nesse
momento, portanto, que a noção de poder econômico passa a fazer sentido: quando a
sociedade civil passa a ser vista como sociedade econômica20
.
15
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,
pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 21. 16
BALERA, Wagner. SAYEG, Ricardo Hasson. Capitalismo Humanista. Petrópolis : KBR, 2011, p.
49. 17
Id. Ibid., p. 69. 18
GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed. São Paulo : Malheiros, 2008, p.
33. 19
Id. Ibid., p. 33 e 34. 20
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,
pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 21.
7
Em um primeiro momento, o modo com o qual este fenômeno – o do poder e o
do poder econômico – foi compreendido deu-se sob uma perspectiva mais de ordem
moral do que jurídica. Essa relação pode ser percebida até mesmo na linha de
pensamento de Adam Smith, para quem o conflito de classes entre trabalhadores e
capitalistas exercia central importância na teoria econômica, além de considerar os
esforços humanos no processo de produção21
.
Posteriormente, no final do século XVIII e início do século XIX, vem à baila
uma visão mais técnica da questão econômica, sobretudo com o pensamento de David
Ricardo, que teve a capacidade de construir um modelo abstrato acerca do
funcionamento do capitalismo, do qual deduziu suas implicações lógicas22
. A economia
começa, então e aos poucos, assumir feição de tecnologia própria, voltada à eficiência e
à realização, cada vez mais eficiente, de objetivos (produção, troca e consumo de bens).
Nesse panorama, vemos que a natureza ética e a natureza moral tinham função menor
para o poder econômico, eis que havia a utilização de outro instrumento neutro: o
dinheiro.23
A produção capitalista de mercadorias (...) envolvia, necessariamente, certas
instituições socioeconômicas, modos de comportamento humano e
autopercepção humana, além da percepção de outras pessoas. A busca
insaciável de lucro levou a uma divisão cada vez maior do trabalho e à
especialização da produção; essa especialização significava um aumento da
interdependência social; essa maior interdependência, porém, não era sentida
como uma dependência de outros seres humanos, mas como uma dependência
pessoal, individual, de uma instituição social que não era humana – o
mercado.24
Essa ligação imediata com a riqueza no mercado de trocas foi sendo substituída,
com o tempo, pela idéia de que o poder econômico não se destina, propriamente, à
acumulação de riqueza, mas sim à produção de riqueza, emergindo, então, a figura do
21
HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico: uma perspectiva crítica. 2. ed., Rio de Janeiro :
Elsevier, 2005, p. 46. Ainda: “A teoria econômica de Smith era, acima de tudo, uma teoria normativa ou
orientada para as políticas. Sua principal preocupação era identificar as forças socieais e econômicas que
mais promoviam o bem-estar humano e, com base nisso, recomendar políticas que melhor promovessem
a felicidade humana. A definição de Smith de bem-estar econômico era bastante simples e direta. O bem-
estar humano dependia da quantidade do “produto do trabalho” anual e do “número dos que deveriam
consumi-lo”. Id. Ibid., p. 53. No mesmo sentido: NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao
Direito Econômico. 6. ed., São Paulo : RT, 2010, p. 126. 22
Id. Ibid., p. 86. 23
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,
pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 22. 24
HUNT, E. K. História do Pensamento Econômico: uma perspectiva crítica. 2. ed., Rio de Janeiro :
Elsevier, 2005, p. 119.
8
produtor. Com isso, o poder econômico começa a ser tido como a possibilidade de
atualização que se exerce não sobre bens, mas sobre a produção destes bens. É nessa
ótica que o objeto do poder econômico passa da riqueza para a capacidade e a força de
trabalho do trabalhador.25
A noção de poder econômico, como vimos, construiu-se sobre a concepção de
mercado significando uma nova forma de comunicação social. E as alterações nas
maneiras pelas quais essa comunicação ocorre afetam diretamente a questão do poder e,
in casu, do poder econômico, na medida em que, como já foi visto, o poder é um meio
de comunicação.
Atualmente, é forçoso observarmos – na esteira do argumentado alhures – que o
mercado não está mais estruturado como um centro de trocas, mas sim como uma
absorção controlada de forças com o objetivo de aumentar a capacidade de produção de
bens e de riquezas. Nossa sociedade é uma sociedade de consumo.
(...) a sociedade de consumo cria uma relação não propriamente de troca,
no sentido horizontal, mas em termos de um processo circular, no qual o
indivíduo consome para aumentar a capacidade do próprio consumo. A
produção, nesse sentido, não se volta para uma determinada finalidade,
mas realiza uma espécie de retroalimentação, o indivíduo produz para
aumentar a produção. Quando a sociedade vira uma grande cadeia circular,
em que consumimos para aumentar nossa capacidade de produzir bens de
consumo, que alimenta o produtor/trabalhador para produzir mais e assim
sucessivamente, não temos mais propriamente uma relação finalística. O
mercado não é mais troca que visa a algo externo e, por isso, perdemos a
capacidade de distinguir as polaridades desse processo, pois a sua vitalidade
em si mesma se torna o seu alvo, com toda a economia girando nesse círculo.26
Nessa toada, o poder econômico não perde a característica de ser uma relação
entre possibilidade e atualização, porém ele adéqua-se a este novo movimento
comunicacional da sociedade. O poder econômico, então, deixa de pertencer a uma
pessoa para assumir o sentido nítido de organização e gestão orgânica. Ele não tem
titular específico, pois pertence a toda uma organização, e está voltado a gerir, de forma
racional, esse processo circular de consumo27
.
A esta altura, importante relembrarmos os sempre festejados estudos de Hannah
Arendt a respeito do poder e, especificamente, sobre a construção do poder, para quem
25
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,
pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 22. 26
Id., Ibid., p. 23. 27
Id. Ibid., p. 24.
9
o verdadeiro poder começa onde o segredo começa28
. E, a partir dessa construção,
chegamos à conhecida metáfora da cebola.
(...) “O verdadeiro poder começa”, ensina Hannah Arendt, “onde o segredo
começa”. Por isso, a imagem mais adequada para a sociedade, o Estado e o
Direito nos regimes totalitários não é a tradicional pirâmide, mas sim a de uma
cebola. No centro, numa espécie de espaço vazio, localiza-se o líder. Tudo o
que faz, ele o faz de dentro, não de fora ou de cima. Todas as múltiplas e
contraditórias instâncias do Estado e da sociedade totalitária, por sua vez,
relacionam-se de tal modo que cada uma delas é fachada numa direção e centro
na outra. Quanto mais próximo do centro da cebola, maior o segredo e o poder.
Quanto mais próximo da casca, menor o segredo e o poder. Esta enganosa
fachada da estrutura em forma de cebola tem também, como observa Hannah
Arendt, a vantagem de, organizacionalmente, tornar o regime totalitário a
prova de choques, isolando as camadas interiores da factualidade do mundo.29
Embora essa construção tenha sido desenvolvida para explicar as formas de
dominação em regimes totalitários, sua figura amolda-se com perfeição à realidade atual
acerca do poder econômico na sociedade de consumo. Isso porque, de acordo com a
metáfora da cebola, o comando gestor não está no ápice de uma pirâmide, mas sim no
centro de uma estrutura envolta por camadas e mais camadas, as quais permitem a
filtragem da realidade tanto para o estrato interior imediatamente precedente como para
o estrato exterior.
Nessa situação, talvez possamos encontra a raiz do paradoxo que vivemos na
sociedade atual: o paradoxo de uma sociedade obsessivamente preocupada em
regular e controlar o poder econômico, mas, ao mesmo tempo, impotente para
fazer essa regulação e esse controle transcenderem o plano de uma ética de
resultados, de uma ética de eficiência, para uma ética de convicção ou em
nome da moralidade. A estrutura da cebola torna o poder, como gestão
orgânica, à prova de choque contra a factualidade das convicções subjetivas: o
que quer que aconteça, ele é necessário.30
Sob a perspectiva do Direito, a relação entre seu formalismo e a lógica desse
poder econômico torna-se abstrata, uma vez que o Direito começa a ser interpretado
como algo distante do poder econômico. O Direito Econômico, por sua vez, assume a
feição de instrumento e não de finalidade, tornando-se altamente manipulável.31
Diante
28
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. 9. reimpressão, São Paulo : Companhia das Letras,
2010, p. 453. 29
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. 7. reimpressão, São Paulo : Companhia das Letras, 2009, p. 95 e 96. 30
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder Econômico e Gestão Orgânica. IN: FERRAZ JUNIOR,
Tércio Sampaio. SALOMÃO FILHO, Calixto. NUSDEO, Fábio (org.). Poder Econômico: direito,
pobreza, violência, corrupção. Barueri : Manole, 2009, p. 25. 31
Id., Ibid., p. 26.
10
da liberdade e da independência conquistadas pelo poder econômico, a própria ciência
do direito transforma-se e passa a operar com raciocínios e fórmulas parecidos com os
do economista, e o jurista passa a raciocinar sobre o processo de consumo em termos de
eficiência e não a partir de convicções.
É nesse peculiar panorama das sociedades de consumo – em que o poder
econômico não é titularizado e que o processo econômico é visto sob a ótica de
resultados, pouco importando quem sejam seus sujeitos – que se insere a análise que ora
faremos a respeito das ofensas a direitos humanos decorrentes das globalizações de
certas relações econômicas.
3. GLOBALIZAÇÕES E LOCALISMOS
O intercâmbio de informações e culturas não é fenômeno novo. Desde os
primórdios da história da humanidade, deparamo-nos com a expansão e a retração de
costumes e tradições de diversas civilizações. As conquistas territoriais do Império
Romano, as colonizações realizadas pelos países europeus na América, o
neocolonialismo na Ásia. Esses são poucos dos variados exemplos históricos que
poderíamos mencionar a respeito da extensão do âmbito de influência de certas culturas
pelo espaço geográfico global.
No caso específico do Brasil, não podemos ignorar que tanto o cristianismo
como o próprio estilo de vida europeu foram frutos da presença maciça de portugueses e
de outros povos europeus em nosso território, o que culminou com a
transnacionalização de traços arquitetônicos, de comportamentos e até do vestuário para
a então colônia.
Globalização não é um conceito contemporâneo. Todas as sociedades
experimentaram, em maior ou menor escala, a influência dos processos
externos em suas economias e pensamentos internos. O pensamento religioso,
ético e político tem demonstrado que a globalização não é um fenômeno
recente.32
Este antigo intercâmbio alcançou nova delineação na atualidade e intensificou-se
sobremaneira nas últimas décadas, desde a globalização dos sistemas de produção e das
transferências financeiras, à disseminação, a uma escala mundial, de informação e
imagens através dos meios cada vez mais velozes de comunicação social, ou às
32
NAZAR, Nelson. Direito Econômico e o Contrato de Trabalho. São Paulo : Atlas, 2007, p. 244.
11
deslocações em massa de pessoas – quer como turistas, quer como trabalhadores
migrantes ou refugiados33
. Valendo-nos, mais uma vez, de outra das inúmeras
construções de Hannah Arendt, o homem, com tais processos transnacionalizantes,
passou a ser habitante tanto de seu país como da Terra, vivendo em um todo contínuo
com as dimensões do planeta34
.
Este fenômeno recente ensejou a elaboração de diversos estudos que pretendiam
descrevê-lo e conceituá-lo, o que pode ser constatado pela multiplicidade de
denominações que passaram a coexistir, como “processo global”35
ou, até mesmo,
“cidades globais”36
.
Ocorre que todas as tentativas de descrever os processos de extensão do âmbito
de influência de um determinado comportamento a limites transnacionais são falhas
quando feitas sob uma ótica linear. Isso porque não se trata de um único processo
globalizante, embora uma análise perfunctória das condições hodiernas do mundo possa
isso sugerir. E apesar de o termo “globalização” aparentar simples cognição e ser
mencionado diuturnamente a ponto de seu uso indiscriminado beirar as raias da
banalização, sua apreensão torna-se difícil quando constatadas a miríade de relações
globais atualmente em trâmite no mundo.
Aliás, curioso pontuar que a diversidade de conceitos acerca do que
efetivamente consistiria a “globalização” e de teorias sobre suas causas e consequências
comprovam o acima afirmado no que tange à existência de variados fenômenos
globalizados. Com efeito, caso se tratasse realmente de uma relação linear e unívoca, a
“globalização” não comportaria tantas discussões a respeito de sua definição e, até
mesmo, de sua correta nomenclatura.
Há, além disso, contradições que comprovam ser inviável a adoção de um
conceito singular de “globalização”.
Uma das mais proeminentes contradições dessa espécie é aquela que se dá entre
os conceitos de globalização e de localização37
. Isso porque não podemos olvidar que o
novo território alcançado pela transnacionalização de certa tendência, tinha, antes, suas
33
SOUSA SANTOS, Boaventura. Os processos de globalização. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura de
(org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed., São Paulo : Cortez, 2005, p. 25. 34
ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. Ed., Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2010, p. 311-
312. 35
FRIEDMAN, Jonathan. Cultural Identity and Global Process. London : Sage, 1994. 36
SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton : Princeton University
Press, 1991. 37
SOUSA SANTOS, Boaventura. Os processos de globalização. IN: SOUSA SANTOS, Boaventura de
(org.). A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed., São Paulo : Cortez, 2005, p. 54 e 63.
12
próprias tendências. Estas restaram localizadas em face da globalização da outra ou das
outras tendências. Em outras palavras, a gobalização sempre implica em localização.
Outra contradição é aquela que envolve as idéias de Estado-nação e não Estado
transnacional38
. Enquanto para alguns, o Estado é uma entidade ultrapassada, para
outros ele continua a ser a entidade política central, até porque os processos de
estatização e de regulação das economias são desenvolvidos por Estados-nação.
Há, ainda, a contradição dos enfoques pelos quais a globalização é vista. Ao
mesmo tempo em que a globalização pode ser vista como mais um incentivo ao
capitalismo, ela também pode ser entendida como oportunidade para a ampliação da
solidariedade internacional39
.
A coexistência de pontos de vista tão díspares a respeito de um mesmo
fenômeno demonstra a impossibilidade de aceitarmos uma visão monolítica da
globalização, até porque essa compreensão linear ignoraria a coexistência e a
convivência de práticas sociais com naturezas diferentes, quais sejam, das práticas
interestatais, das práticas capitalistas globais e das práticas sociais e culturais40
,
olvidando a necessária interação entre elas existente.
Tais fatos corroboram a natureza plural do que se convencionou chamar por
“globalização”, atestando ser mais adequado falarmos, portanto, em globalizações.
Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto,
conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações
sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nestes termos, não
existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez
disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural.
Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não
substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações sociais, as
globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos.
Freqüentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores
contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absurda que
os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena. Por isso, é errado
pensar que as novas e mais intensas interacções transnacionais produzidas
pelos processos de globalização eliminaram as hierarquias no sistema mundial.
Sem dúvida que as têm vindo a transformar profundamente, mas isso não
significa que as tenham eliminado. Pelo contrário, a prova empírica vai no
sentido oposto, no sentido da intensificação das hierarquias e das
desigualdades.41
38
Id. Ibid., p. 55. 39
Id. Ibid., p. 55. A questão da solidariedade internacional será mais bem detalhada adiante. 40
Id. Ibid., p. 56. 41
Id. Ibid., p. 55-56.
13
É interessante pontuar, a esta altura, que a abordagem dos processos
globalizantes idealizada por Boaventura de Sousa Santos, e por nós adotada, torna
aparentemente inócua a ênfase dada por alguns à compressão tempo-espaço como
característica e, até mesmo, elemento conceitual da “globalização”. Isso porque ao
visualizarmos a “globalização” sob um enfoque plural, constataremos que a compressão
espacial-temporal está intrinsecamente ligada às relações de poder que emanam dos
processos globalizantes.
Para ilustrar, apontamos o caso dos trabalhadores migrantes, que efetuam
movimentação transnacional sem, contudo, exercer o controle sobre a compressão
tempo-espaço42
. Isto é, embora representem transposição de tendências e culturas para
além das fronteiras nacionais, os trabalhadores migrantes não controlam o modo como
este intercâmbio irá se acelerar e se difundir pelo espaço geográfico global, o que atesta
que a compressão espacial-temporal não é característica, mas sim faceta das
globalizações.
Boaventura de Sousa Santos aponta quatro processos globalizantes, calcados no
critério global/local.
Antes de prosseguirmos, porém, é importante frisarmos que o critério
global/local não exclui e tampouco minora o critério de hierarquização interestatal até
então existente, que subdividia os Estados-nação em centro, semiperiferia e periferia. É
perfeitamente possível coexistirem ambos os critérios, não só como decorrência do
caráter multifacetado das globalizações, mas também pelo fato de que a aplicação dos
critérios global e local intensifica, em alguns casos, as divisões outrora existentes entre
países de centro, de semiperiferia e de periferia43
.
Retomando os processos globalizantes descritos por Boaventura de Sousa
Santos, temos que o primeiro deles é o localismo globalizado, por meio do qual uma
prática local (adoção mundial das mesmas leis de propriedade intelectual ou a atividade
econômica das multinacionais, e.g.) estende com sucesso seu âmbito de influência para
além de suas fronteiras espaciais.
Outra forma de globalização é o globalismo localizado, consistente no impacto
produzido pelas práticas transnacionais (localismos globalizados) em situações locais,
42
Id. Ibid., p. 64. 43
“Em resultado, o critério de hierarquização próprio das práticas interestatais (centro, semiperiferia,
periferia) é crescentemente contaminado pelos critérios próprios das outras práticas (global, local) e de tal
modo que, o que conta como centro semiperiferia e periferia, é cada vez mais a cristalização, ao nível do
país, de múltiplas e distintas combinações de posições ou características globais e/ou locais no interior de
práticas capitalistas globais e de práticas sociais e culturais transnacionais.” Id. Ibid., p. 62.
14
que são desintegradas, desestruturadas ou, até mesmo, realocadas de maneira subalterna
à produção global.
Há, ainda, o chamado cosmopolitismo, processo globalizante de resistência, que
visa combater as trocas desiguais ocorridas nos localismos globalizados e nos
globalismos localizados, traduzindo-se em lutas contra qualquer espécie de exclusão,
feitas com base, dentre outros mecanismos, em solidariedade internacional.
Por fim, há também o processo globalizante do patrimônio comum da
humanidade, com vistas à proteção de itens e ambientes considerados essenciais à
sobrevivência da humanidade.
Vemos, então, que essa coexistência e, até mesmo, a interconexão de processos
globalizantes demonstra, de uma vez por todas, ser incabível empregarmos a expressão
“globalização” em um enfoque singular.
Além disso, o signo “globalização” depende de complementação por substantivo
ou por adjetivo, que esclareça sobre qual processo globalizante está a se falar. Sem o
devido complemento substantivo ou adjetivo, o termo “globalização” revela-se como
mero argumento retórico e, quiçá, banalizado, sem força prática e explicativa.
Dessa maneira, ao agregarmos à expressão “globalização” o substantivo
“lingüística”, poderíamos nos referir à expansão transnacional de um determinado
idioma (localismo globalizado) em detrimento de outro (globalismo localizado). Da
mesma forma, ao complementarmos “globalização” com o adjetivo “alimentícia”,
poderíamos aventar menção à transnacionalização de hábitos alimentares, como, por
exemplo, o fast food.
O mesmo ocorre com a expressão “globalização econômica”. O substantivo
“econômica”, quando agregado ao termo “globalização”, delimita o processo
globalizante para a seara do fato econômico.
Ocorre que as relações econômicas e a própria atividade econômica em si
ostentam íntima conexão com outras searas jurídicas, como é o caso das relações
sociais, políticas, fiscais, ambientais e trabalhistas. Quando analisamos a relação
econômica, invariavelmente ingressamos no exame de outras questões que lhe estão
atreladas. No caso do Brasil, apenas a título de exemplo, essa interface é corroborada
pela leitura do Título VIII da Constituição Federal, que disciplina a ordem econômica
com base em diretrizes aparentemente díspares, mas que, se interpretadas em conjunto,
trazem a complexidade e a relevância do fato econômico para uma democracia que
15
ostenta como fundamento os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV,
CF).
Vemos, desta sorte, que a locução formada entre o termo globalização e outro
substantivo ou adjetivo, ao mesmo tempo em que restringe o processo globalizante que
será analisado, demonstra que, no caso específico da globalização econômica, há certas
relações jurídicas que são indissociáveis e, portanto, parcelas de um mesmo processo de
globalização. Apesar de aparentemente autônomas, elas devem ser interpretadas em
conjunto, como forma de conferir racionalidade e coesão ao processo que se pretende
estudar.
Dessa forma, toda decisão política internacional – ou mesmo nacional – tendente
a implantar modelo econômico global deve levar em consideração que o fato econômico
traz consigo relações sociais e trabalhistas que não podem ser retiradas da agenda
mundial. Talvez seja essa uma das razões que conduziu ao aparente fracasso das idéias
formuladas no denominado “Consenso de Washington”44
, que propugnavam o
liberalismo econômico em uma quadra histórica em que já se reconhece a necessidade
de intervenção estatal na economia para prestar direitos aos agentes econômicos e
garantir-lhes igualdade material, o que comprova a interconexão da economia com a
disciplina de outros fatos da vida.
Aliás, oportuno relembrarmos que as idéias difundidas em nível global pelo
“Consenso de Washington” já o tinham sido ao menos dois séculos antes, com a
globalização dos ideais liberais da Revolução Francesa. E, curiosamente, esse
liberalismo econômico já havia sido contido com o reconhecimento, dentre outros fatos,
de que há mais relações jurídicas relacionadas ao fato econômico do que a mera relação
jurídica econômica, o que enseja a presença estatal para prover direitos não alcançáveis
tão-somente pelas leis naturais.
Volvendo os olhos à questão ora tratada, temos que, nos dias atuais, vivemos em
uma sociedade de consumo, na qual o poder econômico não é mais titularizado por uma
pessoa física ou jurídica facilmente determinada. Essa sociedade firma-se, como visto,
em uma ética de resultados e não de convicções.
Nesse panorama hodierno, independentemente da intensidade com a qual o fato
econômico relacione-se com outras relações sociais e jurídicas, a correta identificação
44
O Consenso de Washington foi fruto de seminário ocorrido nesta cidade em 1990, que reuniu
economias do governo norte-americano e de instituições internacionais. Passou a ser sinônimo de
medidas econômicas neoliberais, voltadas para a reforma e a estabilização das economias “emergentes”.
NAZAR, Nelson. Direito Econômico e o Contrato de Trabalho. São Paulo : Atlas, 2007, p. 251.
16
destas últimas, de modo a destacá-las da relação econômica em si, torna-se cada vez
mais difícil, até porque a própria interpretação das relações econômicas passa a ser feita
com base na ótica econômica de resultados, o que obsta, por vezes, a leitura jurídica de
um fenômeno social integrante daquela cadeia econômica, qualquer que seja sua
importância para o resultado econômico alcançado.
Com efeito, a circularidade imposta pela sociedade de consumo aos fenômenos
econômicos retira a possibilidade da percepção imediata de distorções existentes nessa
cadeia produtiva. Isso porque não se discute, com a força vinculante necessária, se uma
determinada prática é dissonante de tratados internacionais sobre a mão de obra ou se
um determinado bem de consumo foi produzido em desacordo com regramentos
internacionais sobre o meio ambiente. Essa natureza de discussão, apesar de existir, não
influencia de maneira determinante a sociedade de consumo atual, cuja única finalidade
é o aumento da produção para o aumento do consumo. Prova disso é que a Organização
Mundial do Comércio, embora já tenha incorporado o discurso relacionado ao
desenvolvimento sustentável e ao meio ambiente (que consta, inclusive, no preâmbulo
do Acordo de Marraqueche, que criou referida organização), ainda pontua pela adoção
de medidas protetivas ao meio ambiente somente nos casos em que elas não ferirem os
princípios do livre comércio45
.
Assim sendo, na esteira do exarado supra, a interface das relações econômicas
com outras relações jurídicas faz com que a globalização econômica leve consigo a
globalização de outras tendências, com a conseguinte localização de tantas mais.
E no que diz respeito especificamente às relações trabalhistas, como o
desenvolvimento econômico não pode ser compreendido sem o estudo do fator trabalho
– até porque toda geração de riqueza imprescinde de trabalho humano46
–, não raro será
encontrarmos práticas trabalhistas localizadas que representam verdadeira afronta aos
direitos humanos, mas que se apresentam como um globalismo localizado diante de
relação econômica transnacional que a subordinou. Diversos exemplos dessa realidade
45
PIRES, Camila Fraga Braga. Comércio e Meio Ambiente e a Organização Mundial do Comércio.
Revista Eletrônica de Direito Internacional (online). V. 1, Belo Horizonte : CEDIN, 2007, p. 307-348.
Disponível em
http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/artigos/COM%C9RCIO%20E%20MEIO%20AMBIENTE%2
0E%20A%20ORGANIZA%C7%C3O%20MUNDIAL%20DO%20COM%C9RCIO%20Camila%20Pires
.pdf. Acesso aos 02 de novembro de 2011. 46
CALLEGARI, José Carlos. Desenvolvimento econômico, direito do trabalho e direitos sociais: uma
análise das convenções da organização internacional do trabalho. IN: PIOVESAN, Flávia. SOARES, Inês
Virgínia Prado (coord.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte : Fórum, 2010, p. 491.
17
são encontrados diuturnamente e, alguns deles, inclusive, são explorados pela própria
mídia.
Dessa forma, diante de regras e modelos internacionais que norteiam o trato
trabalhista e os direitos dos trabalhadores, convivem notoriamente três realidades. Uma
é a dos trabalhadores que, inseridos na lógica econômica globalizada, encontram
amparo legislativo e político para o exercício livre de sua função laboral e para o seu
desenvolvimento pessoal. Outra é a dos trabalhadores que, mesmo integrantes de
processos globalizantes, subordinam-se a eles sem que haja o mínimo de substrato
político ou legislativo a conferir-lhe isonomia material. E uma outra realidade é a da
própria sociedade de consumo, que não discute ou, melhor, não se interessa por quem
integra os pólos subjetivos da relação econômica internacional, uma vez que o objetivo
único dela é consumir para aumentar sua capacidade de consumo.
Surge, assim, conjuntura de desigualdade juslaboral em escala mundial, que é
intensificada com a forma pela qual o poder econômico se manifesta na atualidade, isto
é, como gestor do processo circular de consumo, mas que ainda traz consigo a relação
entre possibilidade e atualização que conserva a neutralização de determinadas ações de
seus destinatários.
4. A CONDIÇÃO DO TRABALHADOR NAS GLOBALIZAÇÕES
ECONÔMICAS
Sem olvidar a existência de desigualdades trabalhistas no âmbito interno de cada
Estado-nação – inclusive, e especialmente, o Brasil – convivemos com a falta de
isonomia laboral em escala global. Embora não se trate de fenômeno novo, visto que a
exploração da força de trabalho remonta à história da humanidade, é certo que a
aceleração da difusão dos processos globalizantes, da mesma forma que trouxe
informações a respeito da condição do trabalhador com maior celeridade e precisão,
acentuou as disparidades trabalhistas existentes.
Não é por acaso, a nosso ver, que a Organização Internacional do Trabalho –
OIT figure como um dos primeiros precedentes do processo de internacionalização dos
direitos humanos47
, até porque, antes, as regras de direito internacional eram voltadas às
47
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed., São Paulo
: Saraiva, 2010, p. 113-121.
18
relações interestatais, não disciplinando obrigações internacionais que transcendiam os
interesses exclusivos dos Estados contratantes48
.
Somente com a percepção de que o homem poderia figurar no plano
internacional não apenas como integrante do povo (elemento humano do Estado), mas
também como sujeito de direitos internacionais, emergiu a necessidade de intervenção
externa nas relações trabalhistas que eram desenvolvidas no plano global, haja vista ser
este um dos principais campos de afronta ao ser humano enquanto membro de uma
comunidade mundial.
Criada a partir do Tratado de Versalhes, após o término da Primeira Grande
Guerra, a OIT prega proteção ao tratamento decente aos trabalhadores como a única
forma de alcançarmos a paz contínua49
, o que, de certa forma, já demonstra o
delineamento dos direitos fundamentais de segunda geração e a sua relevância para o
alcance da igualdade material.
E, com vistas a possibilitar essa isonomia perante os bens da vida em um cenário
marcado pela desigualdade social e trabalhista, a OIT busca, através de suas convenções
e de trabalhos desenvolvidos em âmbito internacional, estabelecer um padrão mínimo
de dignidade ao trabalhador que deverá servir de parâmetro tanto aos programas e às
políticas sociais desenvolvidas internamente pelos Estados, como também às próprias
legislações estatais.
Vemos, então, que a atuação da OIT no controle e fiscalização de práticas
trabalhistas violadoras de direitos humanos, bem como na disseminação de boas
condutas e regulação de um piso mínimo de dignidade ao trabalhador, ostenta caráter
eminentemente vertical, pois parte de uma entidade internacional, que fica encarregada
de efetuar o monitoramento desses direitos humanos.
Entretanto, não obstante a existência de organismo internacional criado
justamente para evitar a disseminação de desigualdades nas relações trabalhistas, não
podemos negar que estas continuam a existir e foram intensificadas pelos recentes
processos de globalização virtual, tecnológica e, sobretudo, cultural.
E isso se deve, fundamentalmente, ao fato de que, como decorrência da forma
pela qual o poder econômico manifesta-se nos dias de hoje, as instituições jurídicas
econômicas passaram a ser interpretadas à luz de conceitos puramente econômicos,
48
Id. Ibid., p. 118-119. 49
Informações disponíveis no preâmbulo da Constituição da OIT e no sítio virtual
http://www.ilo.org/global/About_the_ILO/lang--en/index.htm. Acesso aos 22 de maio de 2011.
19
como forma de levar a cabo uma ética de resultados, na qual não se debate a
consonância de determinada prática com o sistema normativo humanista, mas sim
discute-se sua adequação ao modelo consumista global.
Não podemos negar que certos localismos globalizados difundiram-se pelo
mundo reestruturando questões locais ligadas à cultura, à tradição e à política de povos,
a fim de subordiná-las ao processo globalizante em construção. As práticas
globalizadas, por sua vez, nem sempre ostentam relação direta e compatibilidade com as
práticas localizadas, em virtude de fatores variados, que envolvem desde questões
simplesmente culturais até a ausência de respaldo legislativo para a própria democracia.
Por vezes, as práticas locais restaram subordinadas à lógica econômica global
sem que houvesse o necessário contraponto jurídico estatal para conferir-lhes e a seus
membros isonomia material em face do processo globalizante.
Ao transferirmos este cenário para a atividade econômica, deparamo-nos com
relações econômicas que estenderam seu âmbito de influência para além das fronteiras
nacionais, globalizando-se em Estados com diversidades culturais e legislativas, cujas
relações locais foram acomodadas de modo a servir o processo globalizante. Isto é, estas
relações econômicas globais foram construídas sob relações locais que restaram locais
justamente por ostentar alguma irregularidade em face do desenvolvimento da
humanidade e à humanização do direito internacional (embora possam não ostentar, a
princípio irregularidades em face da legislação interna), mas que podem ser
adequadamente reestruturadas para subordinarem-se ao modelo globalizado, justamente
pelo fato desee modelo globalizado estar construído, hoje em dia, sob a ótica econômica
e não jurídica.
É nesse panorama, por exemplo, que se torna interessante a certos processos
globais a existência de Estados que contenham legislação interna prevendo jornadas
excessivas e ausência de salário mínimo, pois tais práticas – localizadas em decorrência
da globalização dos direitos humanos – servem e subordinam-se a relações econômicas
perpetradas em escala internacional, pois permitem o aumento do consumo para que se
possa consumir cada vez mais.
Ainda, a ausência de normas internas que garantam ao trabalhador piso mínimo
de dignidade enseja o alargamento de bolsões de miséria, o que demanda, não raro, a
participação econômica de órgãos de financiamento internacionais. Há, portanto,
relação econômica cíclica de empréstimo e endividamento, construída sob a afronta a
direitos humanos do trabalhador.
20
E, não obstante vivermos em constante movimento de trocas instantâneas de
informação, os cidadãos envolvidos nos globalismos localizados, decorrentes dos
processos acima descritos, carecem de uma prerrogativa essencial, que lhes poderia
possibilitar a emancipação em face desse cenário de privações humanas no qual estão
inseridos. Estamos a falar do direito à informação.
O direito à informação é um dos alicerces do Estado Democrático de Direito e
mostra-se como ferramenta indispensável à concretização do princípio republicano e à
consolidação da cidadania. Sem informação e transparência o povo é impedido de
exercer o poder estatal, do qual, no caso do Brasil, é o único titular (art. 1º, parágrafo
único, CF)50
.
Conforme dito acima, apesar de os movimentos globalizantes possibilitarem a
convergência de mercados e, sobretudo, de informações – o que, em um primeiro
momento, ensejaria maior fiscalização de possíveis afrontas a direitos humanos –, a
peculiar construção destas relações econômicas permite o avanço da chamada assimetria
de informação, tanto na relação social localizada como na globalizada.
Com efeito, no primeiro caso (relação social localizada), geralmente falhas na
própria estrutura estatal permitem a expansão de regimes políticos autoritários ou de
grupos de poder paralelos, que utilizam mecanismos de poder para manter o status quo
opressivo ou para explorar a força de trabalho da população carente, o que ocorre sem
qualquer diretriz assistencial, social ou ambiental51
. Em qualquer dessas conjunturas, a
mesma falta de estrutura estatal que deu ensejo à violação dos direitos humanos é
também responsável por tolher da população – cujos direitos estão sendo afrontados – a
possibilidade de acesso à informação necessária a respeito de como agir diante de tais
condutas, mesmo porque, em grande parte dos casos, tais Estados sequer assinaram
tratados internacionais com o objetivo de resguardar os direitos humanos de seus
cidadãos52
.
Na segunda situação (relação social globalizada), o descompasso de informações
também se faz presente, porém sob outro ângulo. Aqui, tanto o trabalhador como o
50
Disponível em http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php?page=Informa%C3%A7%C3%A3o,
acesso aos 24 de maio de 2011. 51
Segundo notícia divulgada aos 04 de maio de 2010 no sítio virtual da Organização das Nações Unidas,
estima-se que existem, no mínimo, dez milhões de crianças trabalhando na África. Disponível em
http://www.un.org/en/rights/, acesso aos 04 de maio de 2010. 52
É o caso, por exemplo, do Zimbábue, que até 14 de julho de 2006, não havia ratificado a Convenção
contra Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, conforme relatório
disponibilizado pela Organização das Nações Unidas no sítio virtual
http://www2.ohchr.org/english/bodies/docs/status.pdf. Acesso aos 04 de maio de 2010.
21
consumidor têm pleno acesso às informações e à estrutura governamental e legal
necessárias para o regular exercício de seus direitos, porém não possuem ciência do
destino dos bens que elaboram (armas de fogo e material bélico, por exemplo) ou das
circunstâncias que envolveram sua origem (mão de obra mal remunerada e sujeita a
jornadas exaustivas de trabalho, exempli gratia).
Em ambos os casos, o poder econômico, mesmo que exercido em moldes de
gestão, aproveita-se de tais falhas internas e neutraliza a possibilidade que os cidadãos,
no caso, teriam para agir em conformidade com um modelo global de informação
compartilhada. É dizer: a informação existe e o cidadão até poderia ter acesso a ela para
tentar alterar seus padrões de comportamento, na tentativa de alcançar sua dignidade (no
primeiro caso) ou elucidar o destino ou origem do que é produzido (no segundo caso).
No entanto, essa possibilidade é neutralizada pela estrutura econômica na qual está
inserido.
E diante das dificuldades enfrentadas na interpretação jurídica destes fenômenos
econômicos – conforme visto alhures –, o que, conseguintemente, implica em
obstáculos para a aplicação de normas internacionais a tais casos, surgem mecanismos
horizontais voltados a coibir ou minorar eventuais máculas a direitos humanos
existentes nessas relações econômicas globalizadas. É o caso da solidariedade
internacional.
5. SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL
Historicamente, a solidariedade estava ligada à noção de fraternidade, um dos
ideais dos revolucionários franceses. Com efeito, no ano de 1790, a ajuda a cidadãos
pobres foi declarada como um direito fundamental na França e, em 1793, foi editado ato
normativo que garantia ao cidadão o direito a receber auxílio e subsistência caso fosse
necessário53
.
Percebemos que a caracterização da solidariedade, nessa época, estava muito
próxima da própria caridade ou, até, da filantropia, fenômenos nos quais há evidente
disparidade social ou econômica entre as partes envolvidas.
53
DANN, Philipp. Solidarity and the Law of Institutional Development Cooperation. IN: PIOVESAN,
Flávia. SOARES, Inês Virgínia Prado (coord.). Direito ao desenvolvimento. Belo Horizonte : Fórum,
2010, p. 74.
22
A moderna concepção de solidariedade não mais representa essa relação vertical,
em que a ajuda é vista como ato de misericórdia. Atualmente, a noção de solidariedade
parte do pressuposto de que há igualdade entre doador e receptor, que participam de
relação horizontal, na qual a ajuda é vista não mais como ato de caridade, mas como
direito do cidadão54
.
Essa conceituação atual do termo solidariedade tem como escopo assegurar a
autonomia de cada pessoa enquanto membro de uma comunidade que busca objetivos
comuns relacionados ao desenvolvimento da humanidade. Funda-se, portanto, na idéia
de prover ajuda a outrem como forma de alcançar um fim comum, em relação permeada
por obrigações mútuas55
.
Trata-se de expressão com profundo traço evolutivo, pois compreende a
humanidade como um conjunto de seres humanos que são iguais justamente por serem
humanos e que, por isso, podem caminhar juntos em busca de objetivos comuns a toda a
humanidade, ajudando uns aos outros não por misericórdia, mas para que esses escopos
comuns sejam alcançados com maior rapidez e facilidade. O próprio termo
“solidariedade” remete à idéia de algo comum a todos aqueles que estão nela
envolvidos.
Relembrando o já narrado supra, podemos até indicar a solidariedade
internacional como uma faceta mais ampla do processo globalizante do patrimônio
comum da humanidade.
Além disso, ao contrário da atuação da OIT – que revela verticalidade –, a
solidariedade aproxima-se de uma forma horizontal de monitoramento dos direitos
humanos, visto que é implementada por cada cidadão buscando ajudar outro cidadão,
justamente pelo fato de que este tem direito a ser ajudado por seus pares para, junto a
eles, prosseguir na procura e no alcance de objetivos comuns.
Assim, diante de aparente ou real afronta a direitos humanos dos trabalhadores,
a solidariedade internacional entraria em tela para o auxílio mútuo entre os envolvidos,
pois todos são igualmente humanos. E, ajudando uns aos outros, os seres humanos
doadores atuariam de modo a emancipar a dignidade daqueles que recebem a ajuda a
solidária, da mesma maneira que estes ajudariam os primeiros a perseguir um fim
comum.
54
Id. Ibid., p. 75. 55
Id. Ibid., p. 79.
23
Apesar da grandeza da proposta, percebemos que, diante da situação atual da
humanidade, trata-se de algo de difícil aplicação prática, sobretudo na seara trabalhista.
Com efeito, conforme estamos vendo no decorrer deste estudo, as desigualdades
havidas nas relações trabalhistas têm, como uma de suas causas, o próprio
comportamento da sociedade, que se construiu como uma sociedade de consumo,
desinteressada por qualquer outro fator da relação econômica que não seja o aumento do
consumo para mais consumir.
Ou seja, como a solidariedade pressupõe a ajuda de um ser humano a outro para
a concretização de um objetivo humano comum, seria necessário ultrapassarmos essa
cultura de consumo existente em nossa sociedade, afastando a ética de resultados que a
permeia a fim de restabelecermos convicções, que permitiriam, em um primeiro
momento, o resgate a discussões dos aspectos sociais e jurídicos envolvidos nas
relações econômicas transnacionais.
Além disso, importante pontuarmos – já em um panorama crítico sobre a
inobservância a direitos humanos – que há determinados povos cujos ordenamentos
jurídicos ainda não contemplam direitos básicos, já reconhecidos há muito no âmbito
internacional, o que comprova que estes povos sequer alcançaram o estágio evolutivo
humano da igualdade perante a lei (direito fundamental de primeira dimensão).
Ainda, aceitando as convenções da OIT como documentos convencionais de
regulação internacional do trabalho, vemos que a previsão global de um piso mínimo de
direitos ao trabalhador não é capaz, por si própria, de garantir a igualdade necessária
para o início de um projeto mundial de solidariedade. Isso porque, além da dificuldade
de interpretação jurídica dos fenômenos econômicos atualmente existente, falta,
também, isonomia material, o que dificulta a existência de objetivos comuns entre todos
os seres humanos.
Mais que isso, vemos que o desrespeito ao trabalhador em decorrência da
privação de direitos humanos que lhe são inerentes demonstra ausência de
comprometimento, ou até mesmo desconhecimento, de direitos fundamentais
transindividuais, o que comprova a dificuldade de se estabelecer um objetivo comum a
ser alcançado. Ora, se não são sequer reconhecidos direitos a uma determinada
coletividade, mostra-se custoso aceitar que uma coletividade pode ter direito a ter
anseios comuns e a alcançá-los.
Ademais, é importante observarmos que o ímpeto com o qual os processos
globalizantes atuam na atualidade torna corriqueira a localização de cada vez mais
24
culturas e práticas, o que, de certa forma, acaba por difundir na comunidade
internacional conceitos únicos a respeito de um determinado assunto. Com isso, as
práticas localizadas que afrontam direitos trabalhistas passam a destoar da opinião
comum do mundo globalizado, trazendo à sirga evidente dualidade de realidades: a do
dito mundo globalizado (com a opinião globalizada) e a da esfera localizada, com suas
opiniões localizadas.
Essa dualidade retira qualquer patamar de isonomia capaz de conferir substrato
à troca mútua de auxílio global. Isso porque a ajuda capaz de ser ofertada pela
comunidade dita globalizada não é a ajuda efetivamente necessitada pela comunidade
localizada, em virtude da dissonância de opiniões e informações partilhadas por cada
qual. O mesmo processo globalizante que fez emergir a desigualdade trabalhista
também inviabiliza a retomada da isonomia pretendida.
Independentemente das dificuldades acima elencadas – cuja exposição fez-se
necessária com a finalidade de incentivar o debate e, talvez, a concretização da
solidariedade como forma de auxílio internacional a nichos trabalhistas isolados dos
direitos humanos –, ponderamos que a simples aceitação de que é possível perseguir
igualdade nas relações trabalhistas internacionais através da solidariedade já se mostra
como um grande e importante objetivo comum a ser alcançado, o que autoriza a
utilização desse mecanismo horizontal de tutela aos direitos humanos.
A solidariedade, nessa toada, poderia ser apontada como um instrumento
internacional capaz de atenuar as consequências econômicas da sociedade de consumo,
podendo até, em um segundo momento, figurar como uma nova forma de comunicação
social.
6. CONCLUSÃO
A forma com a qual o poder econômico firmou-se na atualidade decorre da
transformação da sociedade moderna em uma sociedade de consumo, na qual o
importante é consumir mais para aumentar a capacidade de consumo, em uma relação
circular, voltada unicamente a resultados. Aqui, o poder econômico não é mais
titularizado por alguém determinado – como ocorria em outras épocas históricas –, mas
sim é visto como um gestor deste processo circular.
As globalizações das relações econômicas devem necessariamente ser analisadas
à luz da sociedade de consumo e desse poder econômico que dela emerge, uma vez que
25
o processo de globalização econômica, em certos casos, produz afrontas a direitos
trabalhistas, fazendo surgir evidente desigualdade juslaboral em escala internacional.
Essa desigualdade pode ser compelida através de, dentre outros modos, mecanismos
verticais, como a atuação da OIT, de práticas tendentes a disseminar informação
adequada aos trabalhadores e, também, por mecanismos horizontais de monitoramento
de direitos humanos, como a solidariedade internacional.
A solidariedade internacional mostra-se como alternativa de combate às afrontas
aos direitos humanos na medida em que a forma pela qual o poder econômico se
manifesta atualmente dificulta uma leitura jurídica dos fenômenos econômicos, os quais
acabam sendo interpretados e estimulados com base em princípios econômicos.
Ocorre que os pressupostos para a própria existência da solidariedade
aparentemente dificultam sua aplicação no mundo atual, em face dos diferentes estágios
de assimilação de direitos fundamentais em vigor nas comunidades globais, bem como
em face da diversidade cultural dos povos do planeta, fato este que, por si só, já
implicaria na necessidade de buscarmos concretizar a solidariedade com base em um
multiculturalismo emancipatório56
(ao invés de partirmos da idéia de diversidade de
culturas para aplicar a solidariedade, aplicaríamo-la para demonstrar essa pluralidade
cultural, como um ponto de chegada57
).
No entanto, acreditamos que simplesmente por aceitarmos a possibilidade de
existir uma solidariedade internacional, apta conferir ao ser humano a consciência de
mútuo auxílio como direito e formulada na busca de objetivos comuns, já consiste em
mostra de que sua concretização é um relevante escopo comum a ser alcançado, o que
demonstra a plausibilidade de seu conceito e a real possibilidade de sua aplicação.
Além disso, a aceitação da possibilidade de aplicação, talvez um dia, da
solidariedade internacional, pode transformá-la em uma nova forma de comunicação
social, possibilitando a releitura do poder econômico nos termos em que ele se
manifesta na atualidade.
A desigualdade nas relações trabalhistas é uma realidade que não pode ser
ignorada pelo ser humano e tampouco pelos Estados, especialmente pelo fato de que
56
SOUSA SANTOS, Boaventura. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica
de Ciências Sociais. n. 48, jun/1997. 57
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São Paulo : Saraiva, 2010, p. 159.
26
essa ausência de isonomia implica em ausência de dignidade para aqueles que se vêem
em situação exploratória.
Qualquer método a ser aplicado com vistas a minorar e, quem sabe, extinguir as
desigualdades juslaborais decorrentes dos processos globalizantes deve ter como
fundamento principal o fato de que esse auxílio – normativo, informacional, econômico
ou solidário – irá emancipar uma dada comunidade, possibilitando-lhe o acesso a
direitos que ela já possui, mas que não frui ou não conhece, justamente pelo fato de a
estrutura de poder existente neutralizar-lhes essas possibilidades de conduta. Em última
análise, faz-se necessária a consciência única global de que já é a hora de, através desses
e de outros tantos mecanismos, emancipar a própria dignidade humana que vinha sendo
tolhida por práticas violadoras de direitos humanos.
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