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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1 Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa Marcia Eliane Alves de Souza e MELLO Universidade Federal do Amazonas [email protected] As Juntas das Missões Ultramarinas eram compostas pelos representantes de esferas de poder diferentes, tanto civis como a justiça e as finanças quanto eclesiástico, todos oriundos do Reino a serviço da Coroa 1 . A presidência da Junta era exercida pelo Governador Geral do Estado, o que lhe conferiu e ampliou o seu caráter político. No século XVIII, as Juntas passaram a funcionar como verdadeiras instituições políticas locais, sendo usadas como instrumentos de poder para arbitrar a favor de demandas da elite colonial. Na Junta das Missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará passavam todas as discussões a respeito das estratégias de disciplinar os índios e de sujeitá-los ao trabalho. Como organismo de apoio ao projeto colonial, a Junta das Missões, teve um papel fundamental na expansão e manutenção dos espaços Amazônicos. Longe de ser um espaço privativo do poder dos colonos missionários ou da defesa inflexível dos seus interesses, a Junta funcionou como fórum para onde convergiam as demandas de todos os setores da sociedade colonial. E como tal, ela atuou como mediadora em muitas causas que lhe foram apresentadas, na busca de conciliação entre os interesses de colonos leigos e colonos missionários e da sustentação da política metropolitana para aquela região. O presente trabalho pretende discutir as ações da Junta, não somente como dinamizadora local do projeto colonial de expansão, mas, observar como algumas decisões importantes tomadas nas Juntas nos sugerem como podiam ser manejados os resultados a favor de determinados interesses locais; bem como isto consolidava o desenvolvimento de certos grupos sociais. Nosso postulado é que, embora a Junta funcionasse como um organismo que zelasse pela liberdade do índio, ela também favorecia seus mecanismos de controle e subordinação, de particular interesse dos colonos, auxiliando em atividades necessárias para a manutenção e desenvolvimento econômico do espaço colonial. Emerge assim a necessidade de compreender como se articulavam os diversos exercícios de poder que buscavam a dominância e o controle dos indivíduos envolvidos. Este trabalho recebeu auxilio do programa PAPE/ FAPEAM. 1 Faziam parte da Junta das Missões o Governador do Estado, o Ouvidor Geral, o Procurador da Fazenda, o Bispo e os prelados superiores das ordens religiosas que tinham missão na região.

Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa · Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa ... auxiliando em atividades necessárias para a manutenção

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa

Marcia Eliane Alves de Souza e MELLO

Universidade Federal do Amazonas

[email protected]

As Juntas das Missões Ultramarinas eram compostas pelos representantes de esferas de

poder diferentes, tanto civis – como a justiça e as finanças – quanto eclesiástico, todos

oriundos do Reino a serviço da Coroa1. A presidência da Junta era exercida pelo Governador

Geral do Estado, o que lhe conferiu e ampliou o seu caráter político. No século XVIII, as

Juntas passaram a funcionar como verdadeiras instituições políticas locais, sendo usadas

como instrumentos de poder para arbitrar a favor de demandas da elite colonial. Na Junta das

Missões no Estado do Maranhão e Grão-Pará passavam todas as discussões a respeito das

estratégias de disciplinar os índios e de sujeitá-los ao trabalho. Como organismo de apoio ao

projeto colonial, a Junta das Missões, teve um papel fundamental na expansão e manutenção

dos espaços Amazônicos. Longe de ser um espaço privativo do poder dos colonos

missionários ou da defesa inflexível dos seus interesses, a Junta funcionou como fórum para

onde convergiam as demandas de todos os setores da sociedade colonial. E como tal, ela

atuou como mediadora em muitas causas que lhe foram apresentadas, na busca de conciliação

entre os interesses de colonos leigos e colonos missionários e da sustentação da política

metropolitana para aquela região.

O presente trabalho pretende discutir as ações da Junta, não somente como

dinamizadora local do projeto colonial de expansão, mas, observar como algumas decisões

importantes tomadas nas Juntas nos sugerem como podiam ser manejados os resultados a

favor de determinados interesses locais; bem como isto consolidava o desenvolvimento de

certos grupos sociais. Nosso postulado é que, embora a Junta funcionasse como um

organismo que zelasse pela liberdade do índio, ela também favorecia seus mecanismos de

controle e subordinação, de particular interesse dos colonos, auxiliando em atividades

necessárias para a manutenção e desenvolvimento econômico do espaço colonial. Emerge

assim a necessidade de compreender como se articulavam os diversos exercícios de poder que

buscavam a dominância e o controle dos indivíduos envolvidos.

Este trabalho recebeu auxilio do programa PAPE/ FAPEAM.

1Faziam parte da Junta das Missões o Governador do Estado, o Ouvidor Geral, o Procurador da Fazenda, o Bispo

e os prelados superiores das ordens religiosas que tinham missão na região.

Marcia Eliane Alves de Souza e Mello

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Embora consideremos relevante a atuação de todas as Juntas das Missões

Ultramarinas2, como inseridas na estrutura administrativa da Coroa portuguesa, temos

consciência de que elas atuaram de forma diferenciada e de acordo com algumas

condicionantes locais. A Junta das Missões do Estado do Maranhão enquanto arena dos

debates que envolveram as principais forças políticas — diante das tensões que à volta dela

foram geradas, ao peso relativo dos grupos sociais nela comprometidos, e aos valores sociais

dominantes — se destaca das demais Juntas Ultramarinas3. A Amazônia possuía algumas

singularidades que conferiu à região um modelo ímpar de colonização, a ponto de ser

considerada modernamente ―um Brasil diferente‖, uma colônia distinta na América

portuguesa. Desse modo, se faz necessário uma abordagem mais particularizada de suas

atividades.

Por ser uma região fortemente dependente da mão-de-obra indígena, que não podia

contar com comunidades estáveis e populosas que viabilizassem endogenamente o excedente

econômico e mão-de-obra abundante, precisou o poder metropolitano criar mecanismos

diferenciados para garantir o fornecimento e a reprodução da força de trabalho indígena,

peças importantes no processo de colonização. A disputa pelo acesso à mão-de-obra e seu

controle foi o tema mais recorrente na história da Amazônia colonial, notadamente a partir da

segunda metade do século XVII, chegando mesmo a envolver as incipientes estruturas do

poder local, bem como toda a complexa máquina administrativa metropolitana atuante na

região, o que significa dizer que a Junta das Missões não deixou de ser envolvida nessa

intricada dialética, agindo enquanto sujeito ativo e em nada neutro.

Uma vez que o acesso e domínio da mão-de-obra indígena eram vitais e perpassavam

toda a sociedade colonial, iremos utilizar neste ensaio como parâmetro de observação da

atuação da Junta das Missões perante as demandas da elite local, as duas formas distintas de

recrutamento da força de trabalho indígena: o descimento de índios livres4 e o resgate de

índios escravizados5.

Outro aspecto a ser destacado é o recorte temporal em que se delimita a ação aqui

analisada, que consiste na primeira metade do século XVIII; período em que estava em vigor

a legislação indigenista baseada em um novo sistema de governo dos índios, conhecido como

2 As primeiras Juntas das missões foram criadas pela Carta Régia de 7 de março de 1681, e funcionaram

primeiramente, em Goa, Angola, Maranhão, Rio de Janeiro e Pernambuco. Mais tarde foram também criadas na

Bahia (1688), Pará (1701) e São Paulo (1746). 3 A este respeito ver: Marcia Eliane A .S MELLO, Fé e Império. As Juntas das Missões nas conquistas

portuguesas, Manaus, Edua/Fapeam, 2009. 4 A forma de reunir os índios levando-os de suas aldeias de origem para os aldeamentos próximos aos núcleos

urbanos, persuadindo-os a descer pacificamente para os locais de domesticação. 5 Os resgates consistiam na compra pelos portugueses dos índios prisioneiros feitos em guerra entre as nações

indígenas.

Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa

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―Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará‖, instituído através da Lei de

21 de dezembro de 1686, na qual era concedida a administração temporal e espiritual dos

índios aldeados aos missionários6. Da mesma forma, consistiam as sucessivas leis

complementares ao Regimento, como o Alvará de 1688 (Alvará dos Resgates) e as Provisões

de 1718 e 1728 (sobre os descimentos), como âmbito privilegiado da analise7.

Iniciamos nossa análise pelos descimentos, que eram ações importantes para a

(re)população dos aldeamentos de onde eram repartidos os índios entre os moradores e o

serviço da coroa8. Muito embora os descimentos fossem uma obrigação dos missionários,

estando as Tropas oficiais sob a sua responsabilidade, estes não eram suficientes para suprir

as demandas dos moradores, de forma que contínuas queixas chegaram ao reino informando

que se encontravam os aldeamentos diminutos por não descerem para eles os índios na

quantidade necessária. A crescente demanda por mão-de-obra indígena por parte dos

moradores do Estado do Maranhão para trabalhar nas suas lavouras, enviar para as colheitas

das especiarias dos sertões, entre outros serviços, fez crescer os apelos ao rei de pedidos de

licença para que os moradores pudessem descer índios por conta própria. De forma que esta

modalidade de descimentos efetuados por particulares que constituirá o cerne de nossa

análise.

No intuito de regulamentar esse meio de arregimentar mão-de-obra indígena,

solicitaram vários moradores do Estado do Maranhão que lhes dessem o rei a administração

dos índios descidos tanto para eles quanto para os seus descendentes. Contudo, essa

administração particular violava o Regimento das Missões, não sendo, portanto, atendido o

pleito. Pelo que se mandou ordem expressa à Junta das Missões do Estado do Maranhão, em

21 de abril de 1702, para que não fossem os moradores agraciados com o título de

administradores dos índios por eles descidos9.

Entretanto, não proibia a carta régia que os moradores fossem às suas custas ao sertão,

buscar índios para trabalharem em suas propriedades, desde que fossem observadas algumas

condições que tornassem legítimos os descimentos feitos pelos moradores. Primeira condição:

6Marcia Eliane A. S MELLO, ―O Regimento das Missões: poder e negociação na Amazônia portuguesa‖, Clio,

vol. 27, nº. 1 (2009), pp. 46-75. 7 O sistema implantado pelo Regimento das Missões vigorou até 1757, quando foi substituído pelo Diretório dos

Índios. Para maiores detalhes sobre a legislação ver: Rita Heloísa de ALMEIDA, O Diretório dos Índios. Um

projeto de ―civilização‖ no Brasil do século XVIII, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1997. 8Como exemplo, temos a informação de que o Pe. João da Silva, missionário jesuíta dos Ingaíbas, desceu no ano

de 1697 cerca de 250 índios para a missão de Araparipucú, praticou os Teyrós e desceu de 200 a 300 índios

para a mesma missão, no ano de 1698 desceu 270 índios e finalmente, no ano de 1699 desceu 204 índios (Pe.

João Filipe BETTENDORFF, Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus do Estado do Maranhão.

2ª ed.,Belém, FCPTN, 1990. p. 633.) 9 DGARQ/TT, Convento de St.º Ant.º dos Capuchos de Lisboa, maço 7, macete 7. Carta Régia de 21/04/1702.

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que quando fossem os índios descidos por pessoas particulares, deveriam ser trazidos para os

aldeamentos ou para junto deles, não para as suas fazendas ou propriedades. Segunda

condição: deveriam ser os índios trazidos por missionários do distrito onde se encontravam,

depois de ensinados e domesticados, estes religiosos deveriam examinar se os índios desciam

espontaneamente. Terceira condição: que os índios seriam considerados como livres e o

missionário encarregado de doutriná-los. Quarta condição: que as pessoas que fizessem os

descimentos particulares teriam como prêmio a repartição dos índios só com elas durante a

sua vida, isto é, sem condição de hereditariedade. Finalmente, quinta condição: que a

repartição no que diz respeito ao tempo, aos salários e à utilização de alguns índios enquanto

outros ficavam cuidando do sustento da aldeia, seria na forma que determinavam as leis

régias. Competia à Junta das Missões cuidar para que a ordem fosse executada inteiramente,

comunicando ao rei se houvesse qualquer descuido na observação dessas condições10

.

Pelos requerimentos e licenças expedidas para esses descimentos particulares que

pesquisamos, podemos observar que os requerentes eram, na sua esmagadora maioria,

proprietários de engenhos de açúcar, de plantações de cacau e tabaco, sendo assim, pessoas

que possuíam influência econômica e política. Como o capitão José Cunha Deça, proprietário

de um engenho real de açúcar11

, que recebeu licença em 1702 para descer 60 casais de índios

forros12

; José Portal de Carvalho, proprietário de uma fazenda com dez mil pés de cacau no

Pará, que recebeu licença para descer 20 casais de índios para poder continuar a cultura da

planta13

; o coronel de ordenança Hilário Morais Bittencourt, senhor de um engenho e que

estava construindo outro no Pará, que recebeu licença em 1703 para descer 50 casais de

índios para o seu serviço14

; o alferes da infantaria José Sanches Brito, proprietário no Pará de

uma grande lavoura de cana e de um engenho, recebeu licença em 1706 para descer

quatrocentos índios15

; Manoel do Porto Freire, em 1713 recebeu licença para descer cem

índios para poder fabricar um engenho real16

, e ainda o capitão-mor José Velho de Azevedo, o

sargento-mor Pedro da Costa Raiol, o alferes tenente Manoel Pestana de Vasconcelos, para

citar alguns exemplos.

Podemos notar, também, que em algumas licenças havia certa confusão com respeito à

terminologia empregada, chamando de ―escravos‖ os índios que deveriam descer como livres.

10

Carta régia de igual teor foi expedida também para os governadores do Estado do Brasil e do Maranhão. 11

Engenhos reais eram aqueles que tinham a ―realeza de moerem com água‖ diferente de outros ―que moem

com cavalos e bois, e são menos providos e aparelhados‖ segundo André João Antonil citado por Ernesto

CRUZ, História do Pará, Belém, Universidade do Pará, 1963, v. 1. 12

Anais da Biblioteca Nacional (ABN) 66, p. 217. Carta Régia de 17/4/1702. 13

ABN 66, p. 214. Carta Régia de 27/03/1702. 14

ABN 66, p. 242. Carta Régia de 16/2/1703. 15

ABN 66, p. 276. Carta Régia de 04/03/1706. 16

ABN 66, p. 114. Carta Régia de 25/03/1713.

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Outras vezes percebemos que a solicitação era para resgate, contudo, a licença usava a

fórmula que descrevia as condições do descimento, qual seja: o morador não terá o titulo de

administrador dos índios, que irão ficar em liberdade e que lhes será atribuído pagamento de

salário. Essa questão foi apontada em Junta das Missões, por onde passavam as citadas

licenças, e chamou a atenção do Governador João da Maia, que procurando evitar maiores

confusões entre o que se pedia e o que era concedido, solicitou ao rei que se declarasse nas

mercês que se fizesse que ― o que se concede como cativos que são os resgatados

legitimamente na forma das leis de V. Majestade, e os que concede como forros para se

baixarem voluntários em sua liberdade”17

. Em parecer posto à margem da carta, o Procurador

da Coroa declarou que reputava por supérfluas as declarações, não necessitando de

aditamento ou declaração alguma, e que qualquer dúvida que se tivesse sobre a interpretação

das leis régias poderia ser resolvida na mesma Junta18

. Dessa feita, dando mais autoridade às

Juntas locais.

Ocorre que em um espaço em que a disputa pelo acesso à mão-de-obra indígena era

intensa, essa competência atribuída à Junta das Missões e o exercício de sua autoridade foram

cada vez mais sendo utilizados como um instrumento de poder pelos governadores. Isto para

colocar em prática algumas demandas locais, bem como empregar a Junta como mediadora

das políticas coloniais, assunto que trataremos adiante.

A forma dos descimentos admitida pela legislação vigente era que fossem os índios

descidos com brandura, voluntariamente e não contra a sua vontade. Contudo, nem sempre foi

essa circunstância obedecida pelos moradores, o que causava constantes críticas por parte dos

religiosos que julgavam a justiça dos descimentos. Na tentativa de se encontrar uma correção

desses atos, por volta de 1712, a Junta das Missões no Estado do Maranhão ponderou uma

proposta do jesuíta Inácio Ferreira, acerca dos descimentos dos índios e se seria lícito fazê-lo

com alguma violência. Os ministros da Junta foram de parecer que se fizessem os

descimentos nas duas formas apontadas, a saber, voluntariamente e por força, observando

algumas limitações. Em virtude do teor da proposta, que envolvia questões de fundo teológico

e jurídico, demorou alguns anos para baixar resoluta a proposta pelo rei. Foi primeiro

encaminhado o termo da Junta das Missões ao Conselho Ultramarino, que sobre ele fez

consulta em fevereiro de 171519

, mas somente em 1718 foi tomada a resolução régia,

manifestada na Carta Régia de 9 de março de 171820

.

17

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Pará, Cx. 10, doc. 941. Carta do governador de 29/09/1727. 18

AHU, Pará, Cx. 10, doc. 941. Parecer do Procurador da Coroa [ post. 09 /02/1728]. 19

AHU, Conselho Ultramarino, Códice 274, p. 140 v-241. Consulta de 18/02/1715. 20

ABN 67, p. 153-54. Carta Régia de 09/03/1718.

Marcia Eliane Alves de Souza e Mello

6 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

É importante observar que a nova lei de 1718 estabelecia que tanto os descimentos

voluntários quanto os forçados devessem ser praticados por missionários, acompanhados de

uma escolta de soldados para sua segurança, que encaminhariam os índios para os

aldeamentos de repartição. No entanto, não foi essa medida estendida aos moradores, que

seriam os maiores beneficiários desse modo de descer, seja porque assim não gastariam tanto

tempo e recursos nos sertões na prática pacífica do descimento voluntário, seja porque, desse

modo, poderiam justificar algumas atitudes mais extremadas para forçar o descimento dos

índios para o seu serviço.

Contudo, os interesses dos moradores não foram desprezados pelas autoridades locais,

sensibilizados pela experiência e maior contato com a realidade colonial, os governadores se

solidarizavam com as necessidades da elite local, passando a utilizar a Junta como espaço de apoio às

demandas dos moradores. Como primeiro exemplo, podemos citar a defesa feita pelo governador

Bernardo Pereira de Berredo na Junta de Missões do Pará reunida em 1719, que discorreu justamente

sobre a nova lei dos descimentos de 1718. Argumentou o governador que não se podia viver naquele

Estado sem índios, e que a população aldeada era insuficiente para a colheita do cacau e serviços

outros necessários tanto no Pará quanto no Maranhão; que os moradores, muitas vezes, para remediar

o dano, causavam desatinos e insolências entrando para o sertão e sendo difícil coibir totalmente tal

atitude. E ainda que os 19 engenhos de açúcar existentes na capitania estavam tão desprovidos de

gente para o trabalho, que somente cinco ou seis funcionavam medianamente, causando grandes

prejuízos aos proprietários como também à Fazenda Real21

.

Motivados pelas palavras do governador, os deputados da Junta votaram

uniformemente que se os mencionados índios podiam descer com algum medo e força para as

aldeias, também poderiam descer da mesma forma para os engenhos e lavouras dos

moradores. Assim, poderia ser benéfico para os próprios índios ficarem em um só lugar,

podendo servir a um particular, mas resguardando o seu estatuto de liberto, recebendo bom

tratamento e pagamento como os aldeões. Nomeava-se um procurador geral para que fossem

os índios matriculados em um livro e inspecionados anualmente, não podendo ser vendidos

nem herdados por falecimento dos que gozassem esta mercê. Ficariam sempre sob a proteção

dos prelados das religiões de cujo distrito fossem descidos. Essa modificação apontada pela

Junta exemplifica como podiam os governadores utilizaram-se dela como um instrumento de

poder para viabilizar determinados interesses locais.

Entretanto, a mudança sugerida na Junta local carecia de autorização do rei para ser

colocada em prática, de forma que o governador encaminhou a proposta para o reino22

.

21

Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (BPADE), Códice CXV- 2-14 n.º 22 , fl.. 273-74. Termo de

Junta das Missões do Pará de 20/03/1719. 22

AHU, Maranhão, cx. 12, doc. 1260. Carta do governador de 05/04/1719.

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Avaliada pelos conselheiros régios, chegaram à conclusão que o governador havia suspendido

a ordem régia; por este motivo o governador foi advertido severamente pelo rei, ordenando

que desse cumprimento à ordem passada em 1718, no teor que nela estava contido23

. O

governador se defendeu alegando que somente convocou a Junta para propor uma ampliação

da ordem régia de 1718, reiterando sua convicção de que a proposta encaminhada à

apreciação do rei era o meio mais seguro para se conseguir, além da utilidade pública, a

ampliação do rendimento dos dízimos da real Coroa e a garantia do aumento do Estado24

.

Nos anos seguintes, a proposta da Junta de 1719 não foi esquecida. Ao contrário, a

câmara do Pará encaminhou petição ao rei para que se permitisse o descimento do ―gentio

bárbaro‖, na forma da ordem de 9 de março de 1718, não apenas para as Aldeias de

repartição, mas para todos os moradores 25

. E ainda o Procurador dos Povos do Maranhão,

Paulo Nunes da Silva, representando em Lisboa os interesses dos moradores daquele Estado,

alegava que por não se fazerem os descimentos e repartição dos índios como convinha,

faltavam aos moradores os índios para cuidar de suas lavouras e engenhos26

.

Em abril de 1728, finalmente permitiu o rei que nos descimentos feitos na forma da lei

de 9 de março de 1718 pudessem os índios ser repartidos não só pelos aldeamentos, mas

também pelos senhores de engenhos e moradores. Entretanto, advertia que os descimentos

fossem feitos somente por autoridade pública, e ―de nenhum modo por pessoas

particulares‖27

.

Apesar disso, ao assumir o Estado, em junho de 1728, o governador Alexandre de

Souza Freire fez divulgar a notícia de que trazia ordens de abrir os sertões para os moradores,

e assim apresentou a carta régia sobre os descimentos de 13 de abril de 1728 em Junta das

Missões na cidade de São Luís do Maranhão28

. Muito embora a ordem fosse clara, proibindo

que se fizessem os descimentos pelos moradores, a Junta interpreta, sob os auspícios do

governador, que aos moradores estava facultado fazer os descimentos desde que reconhecidos

por autoridade pública. Dessa forma, contornava-se a proibição expressa pela nova lei e abria-

se uma possibilidade, ainda não experimentada pelos moradores, como veremos a seguir.

Conquanto a Junta não tivesse jurisdição para legislar por conta própria ou alterar

qualquer ordem emitida pelo poder central, algumas decisões tomadas pelas Juntas

23

ABN 67, p. 168. Carta Régia de 25/09/1719. 24

AHU, Maranhão, cx. 12, doc. 1260. Carta do governador de 20/06/1720. 25

AHU, Pará, cx. 7, doc. 618. Carta da Câmara do Pará de 30/08/1722. 26

BPADE, Códice CXV/2-15, p. 159. Documento aproximadamente de 1724. 27

ABN 67, p. 223. Carta Régia de 13/04/1728. 28

Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica, genealógica, nobiliária e

política do Império do Brasil, Rio de Janeiro, Tip. Americana, 1858, v. 4, p. 235. Termo de Junta das Missões

do Maranhão de 29/06/1728.

Marcia Eliane Alves de Souza e Mello

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ultramarinas causaram efeitos imediatos na política local de distribuição de mão-de-obra. Para

que se compreendam os desdobramentos advindos da decisão da Junta sobre a ordem régia de

abril de 1728, apontaremos em detalhes o conteúdo do seu assento.

Na reunião de 29 de junho de 1728 votaram os deputados da Junta o seguinte: todo

morador que quisesse prover-se dos índios deveria fazer uma petição ao Governador em que

declarasse quantos eram os que necessitava, afim de poder descer do sertão à sua custa. O

requerimento seria então examinado a respeito do número dos índios que fossem pedidos pela

junta de repartição, que lhes concederia um alvará de licença de descer os índios conforme à

necessidade que lhe fosse julgada, indo um missionário com a escolta de soldados. Ainda

podendo os moradores que fizeram as suas petições descerem do sertão os índios que se lhes

concederam, procedendo primeiro com suavidade para baixar os índios voluntariamente.

Sendo frustrados pela resistência, poderiam os mesmos moradores fazê-lo por coação, sem

fazerem mortes, exceto como ordena o rei na carta de 9 de março de 1718, em justa defesa

dos mesmos moradores a quem os índios quisessem ofender.

Chegadas as canoas dos moradores ao Pará, se apresentariam logo os índios ao

Governador e mais adjuntos para dois fins: 1] examinar se os moradores não haviam trazido

mais cabeças dos que as concedidas; 2] para se avaliar a idade de cada índio, afim de que até

aos 50 anos ficassem obrigados a servir aos moradores a quem tocar na repartição, fazendo

matrícula em livros da fazenda e do superior da missão.

Durante o tempo de ―servidão‖ os moradores deveriam tratar o índio como forros e

não como cativos, sustentando e pagando salários. Se durante este período fossem tratados

com injustiça, poderiam requerer à Junta por via do Procurador dos Índios. E uma vez

justificada a culpa dos patronos, lhes pudessem tirar os índios e distribuir para onde a Junta

arbitrasse. Por fim, advertia a Junta, que a lei de descimentos à força só era permitida para

aqueles cujo ―defeito‖ mencionava a lei29

, e o missionário que fosse ao descimento

examinasse antes de o fazerem, se eram ou não os índios do tipo que mencionava a lei, e se

não fossem e se baixassem à força, incorreria em pena quem assim os trouxesse de se

repartirem pelos aldeamentos a quem pertencesse o distrito30

.

Esse episódio ilustra perfeitamente como a Junta das Missões atuava como um

instrumento de poder intercessor no jogo de forças dos interesses coloniais. Algumas decisões

tomadas nas Juntas nos sugerem como podiam ser manejados os resultados a favor de

29

Não se aplicava a todas as nações indígenas, mas sim àqueles tapuias bravos, que andavam nus, não

reconheciam a autoridade nem do rei nem do governador, não viviam em forma de república, atropelavam as leis

da natureza, não fazendo diferença entre mães e filhas para satisfazer a sua lascívia e comiam uns aos outros em

ato de antropofagia. 30

Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica..., v. 4, pp.235.

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determinado grupo local, que embora não tivesse representantes diretos com assento na Junta,

dela se valia para transformar decisões a seu favor.

O resultado prático da decisão da Junta de 1728 foi a expedição indiscriminada de

várias licenças para particulares fazerem descimentos e resgates. No que diz respeito aos

descimentos, podemos citar amostras retiradas dos próprios termos das Juntas do Maranhão e

do Pará: a petição de João Frois de Brito, morador do Maranhão, em que pedia lhe concedesse

o poder descer 70 casais de índios dos que habitam entre o Miarim e o Pinaré por serem

conforme a ordem real de 1728 ―daqueles em que se acham os vícios de se comerem uns aos

outros‖ e os mais que na dita ordem continha. Foi deferida a petição em Junta no Maranhão

de 7 de julho de 1728, para que ―pudesse fazer os tais descimentos na forma dos editais

fechados na porta da Câmara e Alfândega‖31

. No Pará, em reunião da Junta de 12 de

novembro de 1728 foram apresentadas algumas petições em que os moradores pediam licença

para descerem ―casais de gentios da terra‖, sendo deferidas32

. As licenças continuaram a ser

expedidas aos moradores até 1747, quando foi ordenada a suspensão dos descimentos e

resgates feitos por moradores com licença concedidas pela Junta das Missões33

.

Os moradores mais abastados solicitavam licenças, não apenas para descimentos de

índios forros, como analisamos anteriormente, mas também para resgates particulares de

índios cativos. Após analisar caso a caso, a Coroa concedia para uns poucos as licenças de

resgates privados. Entre essas exceções encontramos o registro daquele que talvez tenha sido

um dos primeiros colonos a conseguir tal mercê, José Sanches Brito, proprietário de uma

grande lavoura de cana e de um engenho de açúcar no rio Moju, capitania do Pará. Foi-lhe

concedida uma licença para resgatar 80 escravos às suas custas, ou seja, arcando com toda a

despesa e com os gastos relacionados às escoltas, bem como acompanhar a Tropa que

resgatava para os demais moradores, rateando a parte que lhe tocava34

. Em 1709, o capitão

José da Cunha Deça, proprietário de um engenho de açúcar na capitania do Pará, consegue

uma licença semelhante para resgatar 120 escravos, nas mesmas condições já concedias a José

Sanches35

.

As licenças de resgates particulares não eram concedidas indiscriminadamente para

todos os moradores, somente para aqueles em quem a Coroa percebia algum potencial e

capacidade para o desenvolvimento econômico da colônia. Assim sendo, os grandes

31

AHU, Maranhão, Cx. 16, doc. 1692. Termo de Junta das Missões do Maranhão de 07/07/1728. 32

Museu Amazônico, AHU-MA, caixa C 015. Termo de Junta das Missões do Pará de 12/11/1728. 33

AHU, Pará, Cx. 29, doc. 2803. Carta Régia de 21/03/1747. 34

ABN 66, p. 277. Carta Régia de 04/03/1706. 35

ABN 67, p. 117. Carta Régia de 26/02/1709.

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proprietários eram os privilegiados. O próprio Alvará dos resgates de 1688 indicava a quem

se destinavam os resgates prioritariamente, afirmando que a repartição dos índios resgatados

seria entre aqueles ―que mais necessidade deles tiverem, por razão de suas fazendas,

granjearias & lavouras”36

.

Por outro lado, as câmaras como legítimas representantes do poder local, se sentiam

excluídas da participação na Junta das Missões. Em 1705, as Câmaras de São Luís e Belém

enviaram várias petições para que um de seus oficiais participasse das Juntas das Missões

para que tivessem conhecimento do que nela se praticava e o que se resolvia a respeito dos

índios. O assento na Junta lhe foi negado, porém se confirmou a sua participação nas

decisões no envio de tropas de resgates e na repartição dos índios, que se faria com a

assistência do vereador mais velho e procurador da Câmara37

. Ainda que esta decisão possa

ser encarada como apaziguadora, pois de certa forma, aliviava a pressão das câmaras e da elite

local que representavam em última instância, e que se viam tolhidas nos mecanismos de

acesso à mão de obra indígena, também é certo que resguardava a Junta de uma interferência

direta dos representantes locais. Somando-se a isso, destacamos o crescimento do poder da

Junta com a ampliação de suas atribuições, como por exemplo, em 1706, quando a nomeação

do cabo da tropa de resgates passou a ser pela junta e bem como o segundo exame dos índios

resgatados pela tropa para avaliar o seu legítimo cativeiro38

.

Por conta disso, em 1707, a câmara do Pará voltava a se queixar ao rei que os

moradores necessitavam de mais índios para os seus serviços, porque a Junta das Missões

julgava a maior parte dos índios vindos nas Tropas de resgates como livres ficando o povo

sem repartição39

. A resposta do rei foi imediata:

me pareceu dizer-vos que não costumo negar licença aos

moradores que tem possibilidade para descer os casais de índios que

quiserem e que poder chegar os seus cabedais, com aquela

condições e clausulas que se exprimem nas ordens que se tem

passado a favor de muitas pessoas, e desta maneira se ocorre a

terem índios para o seu serviço e lograrem por este meio aquelas

conveniências que trazem consigo o uso delas... 40

Pelos registros das atas da Junta das Missões, observamos a partir da década de 1720

que aqueles moradores que recebiam provisões favoráveis do reino, apresentavam-se na Junta

36

BPADE, Códice CXV/2-12, p. 20-26. 37

ABN 66, p. 270. Carta régia ao Governador do Estado do Maranhão, de 06/12/1705. 38

ABN 66, p. 283-84. Carta Régia de 15/06/1706 e 15/07/1706. 39

Sendo os índios julgados forros eram entregues ao missionário da região de onde foram tirados para serem

aldeados nas missões. 40

ABN 67, p. 24. Carta Régia de 16/12/1707.

Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa

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das Missões para ratificar a licença. Numa reunião da Junta das Missões do Pará de 16 de

novembro de 1722, foi analisada a provisão de Pedro Mendes Tomás, antigo capitão-mor do

Pará, para resgatar 80 escravos conforme as condições expressas na provisão régia de 4 de

março de 1706, em que se concedeu a José Sanches resgate privado. Foi concedida a licença

para que os resgates fossem feitos pela tropa que partiria em breve41

. Aliás, tais alusões a

concessões anteriores eram comumente utilizadas pelos peticionários, reforçando os pedidos e

ratificadas pelas permissões em cartas régias, declarando que era conforme havia sido

concedido a ―José Sanches Brito, José Velho de Azevedo e outros‖ 42

.

Depois da epidemia de varíola ocorrida em 1724 e 1725, que causou uma grande

mortalidade entre os índios aldeados e escravos, podemos observar que aumentaram os

requerimentos para os resgates privados. Como por exemplo, temos o caso de Hierônimo Vaz

Vieira, morador da capitania do Pará, onde possuía um engenho real e outro de fazer

aguardente, com os quais afirmava ―dá grandes lucros‖ a fazenda real. E alegando que

mortalidade de mais de 50 servos operários dos citados engenhos, por causa do contágio,

solicitava poder fazer resgate a suas custas de 150 casais de gentios43

. Consideramos que

nessa década o sistema esteve em estruturação, possuindo alguns limites, como o reduzido

número de moradores agraciados com essas licenças e a falta de autonomia dos poderes locais

para autorizar indiscriminadamente as licenças. O que viria a ser modificado na década

seguinte, conforme iremos demonstrar.

Embora os resgates privados tivessem adquirido força no governo de João Maia da

Gama44

, ainda estavam condicionados a uma apreciação prévia na Corte, de modo que a Junta

não contava com autonomia para conceder independentemente as licenças para os resgates

privados. Partindo dessa premissa, a Junta reunida para analisar o caso de Antônio Furtado

assegurou que não podia o governador conceder a licença para resgatar os cem escravos que o

morador solicitava, mas, atendendo a sua urgente necessidade, essa Junta autorizava ao

governador conceder uma licença para um número menor de escravos que fossem suficientes

para remediar a sua necessidade. No despacho do governador à petição do morador fica

expresso o limite de sua atuação, que diz: ―concederei licença para os que forem precisos para

41

Arquivo Público Estadual do Pará, Códice 10. Termo de Junta das Missões do Pará de 16/11/ 1722. 42

AHU, Pará, cx. 7, doc. 593. Carta do governador de 10/08/1721. 43

AHU, Pará, cx. 8, doc. 739. Requerimento anterior a 22/01/1725. 44

Entre os anos de 1722 a 1728 foram registrados nos livros de receita dos tesoureiros da Fazenda Real dos

resgates, um total de 3.296 ―peças‖. Deste total, foram identificadas 3.023 ―peças‖ de pessoas particulares,

resgatadas debaixo de duas tropas de resgates expedidas para o Pará e outras para o Maranhão e vila de Vigia e

outras escoltas. Cf. Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica..., v. 4, pp.297

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remediar a sua necessidade, e para o maior numero que pede recorra novamente a S.

Majestade a quem dou conta com o translado do assento‖ 45

.

Consideramos esse aspecto da limitação da autoridade local em conceder as licenças

aos moradores o fator impeditivo para que o novo sistema de escravizar pudesse se

desenvolver plenamente. Para tanto, seria necessária uma mudança significativa nos poderes

de concessão das licenças. Essa circunstância vai ser alterada no governo de Alexandre de

Souza Freire e ganhar amplitude nos governos seguintes.

Como já destacamos, a interpretação induzida pelo governador Alexandre de Souza

Freire da ordem régia de 1728 sobre os descimentos alterou o sentido das palavras e intenção

da provisão régia (que os descimentos fossem feitos somente por autoridade pública e não

pelos moradores). Passou-se a aplicar a autoridade de conceder licenças, em nome do rei, para

os particulares fazerem descimentos, dizendo que assim estava cumprida a formalidade de ser

por uma ―autoridade pública‖. Essa interpretação da lei foi aprovada sem contestação pelas

Juntas das Missões do Maranhão e do Pará46

, que sancionaram com a sua autoridade um novo

estilo introduzido pelo governador, o de conceder licenças às pessoas particulares para irem

também aos resgates dos índios47

. Nesse sentido, podemos ainda dizer que o governador

serviu-se da competência atribuída à Junta para firmar uma prática que atendia aos interesses

locais. Além disso, o limite jurisdicional que antes era um fator impeditivo para o

desenvolvimento dos resgates privados foi contornado e favoreceu a expansão desse sistema

em conjunto com a escravização oficial, que teve o seu auge entre o final da década de 1730 e

meados da década de 1740.

O processo pelo qual eram concedidas as licenças demonstra que o governador não

agia autonomamente, mas de comum acordo com as decisões da Junta das Missões, pela qual

eram analisadas as petições encaminhadas pelos moradores ao governador. E, na Junta, depois

de examinados caso a caso, de acordo com as necessidades e capacidades do solicitante, se

determinava as modalidades da concessão, se para descimento ou resgate, além da quantidade

de índios permitidos ―baixar‖ em cada situação. Somente após a decisão da Junta é que o

governador despachava o alvará de licença, assinado por ele e pelo Bispo, autorizando o

morador a fazer o resgate.

45

AHU, Pará, cx. 10, doc. 941. Despacho de 30/09/1727. 46

A esse respeito é importante comentar que mais tarde quando os jesuítas passaram a contestar a modificação

da lei, colocando toda a culpa da alteração do sentido da ordem Régia na pessoa do governador. D. Lázaro

Leitão, conselheiro da Mesa de Consciência, deu seu parecer defendendo o governador. Argumentando que a

decisão também foi da Junta e tomada em assento uniformemente, e mesmo que governador entendesse o

contrário, não podia revogar por si só um assento da Junta. 47

AHU, Pará, Cx. 18, doc. 1641. Carta do desembargador sindicante Francisco Duarte dos Santos de

01/06/1735. Em que diz que se prova pelas suas devassas que o estilo foi introduzido pelo governador Alexandre

de Souza Freire.

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Notamos que nessa avaliação das petições dos moradores a Junta funcionava como um

crivo seletivo. Afinal, não autorizava todos os pedidos de resgates a ela encaminhados, tendo

em conta o caráter e as condições materiais do peticionário, e na maioria das vezes autorizava

o descimento, e não o resgate solicitado. Ou ainda, mesmo entre aqueles que alcançavam

permissão para os resgates, o número de índios permitidos pela Junta era, em muitos casos,

menor do que pretendiam os solicitantes, o que nos leva a acreditar que eram ainda nesse

período despachadas mais autorizações para descimentos do que para resgates privados48

.

Podemos exemplificar essa prática com os dados da Junta reunida em 23 de setembro de 1729

no Pará, em que foram apreciadas as petições do capitão João Monteiro e de Brás da Silva,

em que pedia cada um, autorização para trazer 80 casais de índios, sendo 40 de resgatados e

40 de descidos49

. A Junta não concedeu os resgates, somente os descimentos de apenas 20

casais nas condições do bando lançado pelo governador50

. Os limites também podem ser

verificados no caso de Francisco de Portflix, morador e cidadão da cidade de Belém do Pará,

onde era proprietário de um engenho de açúcar, que em reunião da Junta de 12 de novembro

de 1728, recebeu parecer favorável da Junta para um alvará de licença para resgatar 60

índios51

. Contudo, em 1732, quando ele solicitou que lhe concedessem licença para mais 50

índios além dos 60 anteriormente concedidos, a Junta somente autorizou que se passasse

alvará para 70 resgates, contando aí os 60 já concedidos52

.

Nosso argumento sobre o incremento dos resgates privados somente a partir de

meados da década de 1730 é reforçado por alguns elementos apontados numa sessão da Junta

das Missões no Pará, em 1732, e pelos desdobramentos dela advindos, pelos quais se teria

invertido a proporção entre licenças para descimentos e resgates.

Novamente as modificações que podemos perceber nos mecanismos de acesso e

exploração da mão-de-obra indígena partiram de decisões tomadas no âmbito da Junta das

Missões local. Desta feita, no começo do governo de José Serra, em reunião realizada em 25

de outubro de 1732 na cidade de Belém, analisou-se um pedido da Câmara do Pará, no qual se

solicitava que fosse restituída a Tropa de resgates anual53

. A novidade que vinha inserida no

48

Sue Gross considera que os descimentos efetuados por moradores foram mais utilizados e mais eficazes no

fornecimento de índios como mão-de-obra para os moradores do que os resgates. Sue Gross Apud Nádia

FARAGE, As muralhas dos sertões. Os povos indígenas no rio Branco e a colonização, Rio de Janeiro, Paz e

Terra/Anpocs, 1991. p. 176. 49

Museu Amazônico, AHU-MA, caixa C 015. Termo de Junta das Missões do Pará de 23/09/1729. 50

O governador mandou lançar um bando em execução ao assento da Junta das Missões. Bando de 23/07/1728.

In: Alexandre José de Mello MORAES, Corographia, histórica, chronographica..., p. 258. 51

Museu Amazônico, AHU-MA, caixa C 015. Termo de Junta das Missões do Pará de 12/11/1728. 52

AHU, Pará, Cx. 15, doc. 1428.Termo de Junta das Missões do Pará de 25/10/1732. 53

Já estavam a 4 ou 5 anos sem expedirem-se tropas de resgates em benefício dos moradores. In: AHU, Pará,

Cx. 15, doc. 1428. Termo de Junta das Missões do Pará de 25/10/1732.

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pedido dos oficiais do Senado da Câmara era que na tropa pudessem entrar os moradores a

fazer os resgates com igualdade, alegando que os resgates mandados por conta da Real

Fazenda não eram o suficiente para abranger os muitos moradores que a cidade comportava

naquela época54

. Os deputados representantes das ordens religiosas da Piedade, de Santo

Antônio, do Carmo e das Mercês foram favoráveis à concessão dos resgates privados sob o

comando da mesma tropa. O Bispo, Frei Bartolomeu do Pilar, também votou favoravelmente

aos resgates, mas advertiu que fosse mais de um missionário para proceder ao exame dos

resgatados, visto que o número de resgatados seria maior com a concessão de irem os

moradores na Tropa. Nesse sentido, propôs o Bispo que não fossem só missionários da

Companhia de Jesus, mas também das outras religiões. Por sua vez, o deputado representante

da Companhia de Jesus, Padre José Vidigal, foi de parecer que se concedessem os resgates

desde que se observassem algumas questões que apontou em documento por escrito que foi

encaminhado à secretaria posteriormente.

As ponderações propostas pelo Padre Vidigal demonstram a amplitude que adquiriu

tal solicitação e a que ponto sua aceitação pela Junta envolvia modificações de determinados

privilégios, que convinha serem resguardados por aqueles que os detinham. A primeira

questão a considerar significava que o pedido da Câmara não implicava a concessão de

licenças para uns poucos moradores como já era comum, mas sim para um grande número de

moradores. E a segunda questão, derivada da primeira, implicava que uma vez concedidas

essas licenças, resultaria um grande número de resgatados. No entendimento do Provincial

jesuíta essas questões eram discutíveis e deveriam ser ponderadas, visto que não comportava a

tropa um grande contingente, nem se podiam fazer tantos resgates que fossem moralmente

aceitos conforme o alvará dos resgates de 1688. Seu parecer definiu, portanto, que não se

deviam conceder licenças para que fossem nem sob o comando de Tropa oficial nem fora

dela, um número excessivo de particulares, por entender ele ser isso contrário às leis do rei55

.

Entretanto, de acordo com os pareceres, a Junta concordou em permitir os resgates aos

particulares na forma como a Câmara solicitava, transferindo para o governador o poder de

conceder o número de resgates aos que requisitassem, conforme a sua necessidade,

possibilidade e lavouras. E as condições para tais resgates seriam postas em Alvará dirigido a

cada pessoa56

.

54

AHU, Pará, cx. 15, doc. 1428. Termo de Junta das Missões do Pará de 25/10/1732. 55

Razões apontadas pelo Pe. José Vidigal sobre o requerimento da Câmara do Pará de 28/10/1732. In: AHU,

Pará, cx. 15, doc. 1428. 56

O alvará era assinado pelo Governador e pelo Bispo, passado em nome do rei e depois, registrado na secretaria

de Estado.

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Podemos observar algumas mudanças significativas nessa primeira tropa de resgate do

Pará, expedida pelo governador José Serra. Primeiramente, a possibilidade de ir ao resgate

um maior número de moradores debaixo da tropa oficial com a autorização das autoridades

locais. Em segundo lugar, a nomeação de um militar como cabo da Tropa ao invés de um

paisano, foi uma tentativa do governador no sentido de minimizar as desordens causadas no

sertão pelos responsáveis de semelhantes tropas anteriores. Com esse intuito, nomeou o

capitão pago da infantaria Diogo Pinto da Gaya. Terceiro, firmava-se na Junta a autoridade

para mediar e resolver questões concernentes à expedição das Tropas oficiais de resgates.

Em 1737 a Junta das Missões ponderava algumas questões que envolviam o envio de

Tropas de resgates para a região do Rio Negro, que havia sido devastada pelas Tropas de

resgate e guerra comandadas por Belchior Mendes na década anterior. Os jesuítas eram de

opinião que os resgates fossem suspensos indefinidamente, enquanto outros deputados,

representantes das demais ordens religiosas, eram a favor de tornarem a mandar expedições

com indivíduos privados, que depois estariam sob a averiguação da Junta quando retornassem

para a cidade. Também o Bispo se posicionava a favor dos resgates, argumentando que era

uma necessidade para o desenvolvimento econômico da região57

.

Estando de passagem pelo Pará, o capitão Lourenço Belfort58

, morador do Maranhão,

enviou uma proposta para a Junta daquela cidade, na qual propunha o capitão financiar por

conta própria a Tropa a favor dos povos do Maranhão, correndo por sua conta e risco

qualquer perda que pudesse haver no dinheiro investido. Em troca, pedia ser nomeado cabo

dessa Tropa e poder trazer tantos índios quantos fossem necessários para ressarcir as suas

despesas. A Junta reunida em 26 de outubro de 1737 deliberou sobre a proposta de Belfort, e

os deputados votaram uniformemente que era justo e conveniente expedir-se a Tropa

requerida59

.

Podemos observar nessa atitude da Junta uma maior condescendência para com os

interesses dos moradores, não somente por autorizar a expedição de uma Tropa de resgate

financiada por um particular, contrariando a lei de 1688 que determinava que o fossem apenas

57

Paul David WOJTALEWICZ, The “Junta de Missões”. The missions in the portuguese Amazon. Thesis de

Master of Arts. University of Minnesota, 1993, p. 40 58

De naturalidade irlandesa, nascido em 1708, Lourenço Belfort foi para Lisboa ainda jovem. Na década de

1730, viajou para o Maranhão, onde se fixou. Instalando-se na região do Itapecuru, fundou um engenho e se

dedicou a lavoura e produção de arroz e algodão. Mais tarde se tornou almotacé pela Câmara de São Luis, em

1744, 1750 e 1754, bem como vereador em 1753 e 1759. Em 1758 recebeu a mercê do hábito de cavaleiro da

Ordem de Cristo. Também enveredando pela carreira militar, chegou a mestre de campo (1768). Faleceu em

Lisboa em 1777. (Mílson COUTINHO, Fidaldos e Barões. Uma história da nobiliarquia luso-maranhense, São

Luís, Edições Geia, 2005, pp. 97-99. 59

AHU, Pará, Cx. 21, doc. 1967. Proposta e Lourenço Belfort de 21/10/1737; Termo de Junta das Missões do

Pará de 26/10/1737.

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pela Fazenda Real, como também por permitir que se agregassem à Tropa outros moradores,

tanto do Pará quanto do Maranhão60

. Oficializando a união entre os interesses particulares e

os das Tropas oficiais de resgates. Isto nos sugere que, a despeito das críticas quanto à

postura dos governadores do Estado feitas na maioria das vezes pelos religiosos jesuítas,

descarregando sobre eles toda a responsabilidade das mudanças promovidas, tais alterações

não ocorriam sem o consentimento da Junta, nem à sua revelia.

O fato de passar a Junta a favorecer o cativeiro privado, em vez de defender

incondicionalmente a liberdade indígena, não é de todo modo uma contradição aos seus

princípios de defesa da propagação da Fé. Havia toda uma argumentação de cunho teológico-

moral que justificava o cativeiro, baseando-se na salvação das almas dos índios, que podemos

ver expresso pelo Pe. Avogadri, missionário jesuíta da tropa de resgates comandada por

Belfort. Dizia ele que era errado "quando se desagrada a Deus por agradar aos homens", mas

não era errado "quando se agrada aos homens servindo a Deus‖ e que, portanto, não havia

maior serviço a Deus do que:

agradando aos homens resgatar estes tapuias do horrendo

cativeiro dos seus desumanos inimigos (...) verdade é que eles

ficam escravos; sim: Porem de católicos; e neste cativeiro, os

mais senão todos acham a verdadeira liberdade de Filhos de

Deus61

.

Embora o número de autorizações para particulares não possa ser contabilizado no seu

total, temos informações seguras de que durante o governo de João de Abreu Castelo Branco

(1737-1747) esse sistema conheceu o seu apogeu e posterior declínio. Pelas declarações

contidas em reuniões específicas da Junta das Missões do Pará, realizadas no período

compreendido entre 1738 e 1745, temos indicações de que 301 colonos receberam licenças

para resgatar, que somavam os resgates para 9.920 pessoas62

, sendo que o número de resgates

concedido para cada morador girava em torno de 20 a 40 índios. O perfil dos peticionários

também mudou, encontramos entre eles diversos atores sociais que iam desde capitão-mor,

sargento-mor, tenentes, senhores de engenhos, juízes, cabos de esquadra, passando por

padres, cônegos, escrivães, carpinteiros, serradores, soldados, ajudantes de infantaria de

guarnição da Praça do Pará, entre outros. Muitos deles sem grandes cabedais. Contudo,

60

Belfort relata entre outros exemplos, em carta enviada ao governador, que ―Amaro Gonçalves, hum dos

homens que agreguei a Tropa, leva em canoa sua, em companhia da de El Rey, vinte e duas pessas ‖. AHU,

Pará, Cx. 21, D. 1967. Carta de Lourenço Belfort ao governador João Abreu Castelo Branco de 29/06/1738. 61

AHU, Pará, cx. 21, doc. 1967. Cópia da Carta do Pe. Avogadri de 30 de junho de 1738. 62

Paul David WOJTALEWICZ, The “Junta de Missões . The missions in the portuguese Amazon, p. 41

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apenas quando estavam em condições de equipar as canoas e que alcançavam a licença para

despachá-las, às vezes mais de um ano depois de concedidos os resgates pela Junta63

.

No entanto, tal sistema foi suspenso em 1747, quando o Conselho Ultramarino

deliberou sobre os problemas advindos dos resgates privados e depois de ponderados os

argumentos apresentados no Conselho, o rei encaminhou sua decisão ao governador de

interromper tal prática 64

. Na ordem régia eram declaradas como nulas todas as licenças

concedidas aos moradores pela Junta das Missões para fazerem descimentos. Ordenava ao

governador que advertisse os deputados da Junta das Missões para que não se excedessem nas

suas atribuições, por não constar que ela tivesse a faculdade de dar semelhantes licenças para

particulares, sem que para esse efeito houvesse antes determinação régia. Finalmente,

mandava que a Tropa de resgate que se achava há muitos anos no sertão, contrariando o que

dispunha a lei, se recolhesse. Em julho de 1748 reiterou o cumprimento da ordem passada no

ano anterior e novamente ordenou que não permitisse semelhantes cativeiros nem

descimentos que não fossem ―feitos por autoridade pública‖65

.

Ao analisar as licenças de descimentos e resgates concedidas aos moradores na

primeira década do século XVII, alguns nomes aparecem recorrentemente citados como de

Manoel Pestana de Vasconcelos, José Sanches de Brito, José da Cunha Deça e José Velho de

Azevedo. Gostaríamos de finalizar este ensaio, traçando a trajetória de um destes moradores,

que consideramos representativos da pequena nobreza a qual ia se constituindo no espaço

amazônico nos primórdios do século XVIII.

Escolhemos comentar a experiência de José Sanches Brito, nascido em Lisboa, por

volta de 1667. Logo se fez embarcar para a ilha da Madeira, em 1680, acompanhando seu tio

João da Costa Brito escolhido como governador, e lá sentando praça de soldado. Em 1687,

viajou para o Maranhão na companhia do novo governador do Estado Artur de Sá e Menezes.

Fixando-se na capitania do Pará, onde casou com D. Clara Bittencourt, pertencente a um dos

grupos familiares mais antigos do Pará. Enquanto servia ao presídio como soldado da guarda,

dele se ausentava com permissão de seus superiores para poder cuidar de um engenho que

63

Efetivamente, não podemos dizer ao todo quantos foram os índios resgatados, em parte porque nos faltam os

livros de registros correspondentes, em parte, porque muito resgate se fez de forma clandestina. O certo é que

temos noticia apenas de um livro de registros dos índios resgatados, existente no Arquivo do Pará, que foram

feitos debaixo da tropa de resgates de Lourenço Belfort entre junho de 1745 e maio de 1747, e que contabilizam

1.377 índios, sendo 1.334 escravos e 34 forros. Arquivo Público do Pará, Códice 44. 64

AHU, Pará, cx. 29, doc. 2803. Carta Régia de 21/03/1747. 65

AHU, Conselho Ultramarino, Códice 271, pg. 132-132v. Carta Régia de 23/07/1748.

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havia erguido no rio Moju, próximo das terras de seus cunhados Hilário e Luis Morais

Bittencourt66

.

Da produção de seu engenho se faz menção no Livro de receitas e despesas do

almoxarifado da Fazenda Real do Pará, por exemplo, sobre o imposto lançado nas

aguardentes em 1699-1700. Nele podemos constatar que Sanches Brito apresenta a maior

produção de aguardente entre os moradores — de 600 canadas67

— o que representava cerca

de 23% do total da produção local sob o qual incidiu o imposto68

. Seu cunhado Hilário

Moraes Bittencourt, também aparece citado em sétimo lugar entre os moradores, com a

produção de 150 canadas. O fato é que para semelhante desempenho, necessitava Sanches

Brito de mão de obra; e na região, isto significava mais índios para o serviço, como veremos

nas suas demandas ao rei.

Em 1702, embarcou para o Reino onde ficou um ano de licença. O motivo de sua

viagem ainda é por nós desconhecido, mas, sabemos com certeza que durante a sua estadia em

Lisboa, se apresentou perante a mesa da inquisição em setembro de 1702 para falar de suas

―culpas‖. Entre elas, assumia que para escândalo de seus vizinhos no Rio Moju, fazia

trabalhar às vezes seus escravos nos domingos e dias santos, que eram de preceito da Igreja,

mas o fazia para poder aproveitar os dias, pois se dilatando a colheita, esta poderia se perder69

.

Ainda em Lisboa, em 1703, fez pedido de licença para descer a sua custa 200 casais de

índios para servir deles na sua lavoura, alegando que assim o rei ―tem concedido a Manuel

Pestana de Vasconcelos e outras pessoas mais‖70

. Teve seu pedido foi deferido, com o parecer

favorável do ex-governador Antonio de Albuquerque71

, após consultar licença no Conselho

Ultramarino. Todavia a carta régia em que foi concedida a licença só foi expedida em 170672

.

Retornando ao Maranhão, sua carreira militar começou a deslanchar. Em 1704, foi

promovido a alferes e também passou a capitão do fortim fronteiro à Fortaleza da Barra da

cidade de Belém, que havia sido ocupado por José da Cunha Deça (que foi promovido a

66

AHU, Pará, cx. 5, D. 404. 67

Antiga unidade de medida de coisas líquidas, como vinho, azeite, equivalia a quatro quartilhos, ou seja, 2,662

litros. ( Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, Novo Aurélio século XXI. Dicionário da lingual portuguesa, 3ª

ed. , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. pg. 384. 68

Biblioteca Nacional da França, Manuscritos ocidentais, Fundo Portugal, portugais 39, fl. 69-69v. Agradeço

aqui a informação indicada pelo Prof. Rafael Chambouleyron, o qual generosamente cedeu uma transcrição do

manuscrito citado. 69

DGAQ/TT/TSO, Inquisição de Lisboa, caderno do promotor 273, fl. 292-296v. Apresentação feita em

20/09/1702. 70

De fato, um ano antes, Manuel Pestana de Vasconcelos, que era alferes tenente da fortaleza de Macapá,

encaminhou petição em que solicitava a concessão para administrar uns casais de indios que havia descido a

sua custa do sertão. Cf. AHU, Conselho Ultramarino, Códice 52 fl. 460. Consulta de 04/03/1702. 71

AHU, Conselho Ultramarino, Códice 52 fl. 41. Consulta de 16 de abril de 1703. 72

ABN 66, pg. 276. Carta Régia de 04/03/1706.

Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa

Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 19

capitão de infantaria) estando vago o posto73

. Em 1705, recebeu do governador Rolim de

Moura a patente de Superintendente das Fortificações da cidade de Belém74

. E foi no

exercício deste posto, conhecedor das condições precárias das fortificações do Pará, que

Sanches Brito propôs ao rei construir uma fortaleza real no lugar do forte velho, de acordo

com as plantas que havia feito anos antes pelo sargento-mor e engenheiro Jose Velho de

Azevedo75

, solicitando em contrapartida o posto de loco tenente ou de capitão-mor da

capitania do Pará. O que foi em princípio analisado no reino e escusado, por entender os

conselheiros do rei que ―não tem lugar a sua proposta por ser mais da sua conveniência do

que do serviço real‖76

.

Enquanto isso, Sanches Brito continuava seu trabalho no Fortim no qual era capitão,

empenhando-se em reconstruí-lo tendo em vista a ―necessidade que havia do dito forte para

defensa daquela barra‖. De acordo com certidão passada pelo governador Rolim de Moura, a

ajuda veio na forma de quatro canoas grandes para a condução dos materiais, de centenas de

peneiros de farinhas, na disponibilização de seus escravos para trabalharem na obra, além de

10 mil cruzados de donativo para a Fazenda Real, que foi utilizado no concerto do fortim e

para pagar os mais de 200 operários envolvidos na obra77

. Por conta disso, havia o

governador provido Sanches Brito no posto de capitão do fortim, em detrimento de Isidoro

Pestana Travasso que havia sido indicado para o posto pelo Loco-Tenente Fernão Carrilho,

por julgá-lo mais apto78

.

Todavia, não havia Sanches Brito abandonado a idéia de construir um novo forte na

barra da cidade, voltando a propor novamente o serviço, em 1716, indicando construir um

forte de pedra sem cal (que tornava a obra mais barata) em três anos e solicitando em troca o

posto de Tenente General da Artilharia, que havia sido de José Velho de Azevedo, e vago por

este ter se tornado Capitão-mor do Pará79

. A obra ficou estimada entre 20 mil e 35 mil

cruzados. O processo de avaliação do pedido levou três anos, enquanto eram trocadas cartas

entre o reino e o governo do Maranhão, até que em setembro de 1719 foi aprovado o pedido

de Sanches ―desde que cumprindo o prometido em quatro anos de construir em pedra sem cal,

o forte, lhe será concedida a mercê de Tenente General‖80

.

73

O curioso era que Cunha Deça que havia construído por sua iniciativa o fortim de madeira. E em 1698

requereu patente de capitão do supracitado fortim. 74

AHU, Pará, vx. 5, doc. 404. Carta Patente de 13/03/1705. 75

AHU, Pará, vx. 4, doc. 322. Carta de 08/07/1695. 76

ABN 67, pg. 22. Carta Régia de 14/12 /1707. 77

AHU, Pará, cx. 5, doc. 404. Certidão de 14/03/ 1705. 78

AHU, Pará, cx. 5, doc. 439. 14/12/1709. 79

Alguns anos cntes, José Cunha Deça havia se tornado Capitão mor do Maranhão (1706-1710). 80

AHU, Pará, cx. 6, doc. 544.

Marcia Eliane Alves de Souza e Mello

20 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

Enquanto isso, a atividade do engenho de açúcar continuava bem-sucedida e

demandando mão de obra. Como as tropas de resgates oficiais estavam interrompidas (desde

1714), Sanches Brito voltava a fazer novos pedidos de resgates, em 1720, justificando assim a

sua demanda:

ficando por esta falta com grande diminuição a fabrica do dito

engenho , e interesse que dele resultam a Fazenda Real em razão de

não haver naquela capitania lavradores de canas e na falta de lhe ser

muito dificultoso ao suplicante conservar a copiosa e singular lavoura

de canaviais, que fabrica ao mesmo passo dele serem necessários

muitos escravos para o trabalho do engenho que tem com toda a

fabrica dobrada81

.

Infelizmente, José Sanches Brito, não viveu para terminar sua obra no Forte da Barra,

falecendo por volta de 1722. Por outro lado, seu engenho chamado de Marajatuba, continuou

em funcionamento e a ser mantido pelas suas filhas e herdeiras D. Mariana Bernarda

Bittencourt e D. Maria Margarida, que mesmo estando internas como religiosas em um

convento em Lisboa, continuavam com a posse do engenho e administrando seus bens com o

apoio de seu tio Hilário, uma vez que pertenciam a um poderoso grupo familiar, os Moraes

Bittencourt, estabelecidos na região desde a metade do século XVII82

. As herdeiras

continuaram solicitando resgates para manutenção do engenho (1732)83

ou lutando para

manter as terras anexas ao engenho (1743)84

. Dedicação que podemos verificar na petição que

encaminharam, em 1745, alegando a necessidade de índios para manter em funcionamento o

engenho, para tanto requeriam licença para descer 200 índios para esse trabalho85

. Consultada

a petição em Junta das Missões de 23 de dezembro de 1745, decidiram os deputados que não

havia inconveniente em se conceder a licença para o descimento requerido86

. Quando, em

finais de 1747, informava o governador ao rei que estavam prontos os preparativos para

efetuar o descimento e escolhido o missionário87

, esse foi mandado suspender por força da

ordem régia de 21 de março de 174788

. Ainda assim, a última notícia que temos das irmãs,

81

AHU, Pará, cx. 6, doc. 576. 82

Para maiores detalhes das alianças e desdobramentos do grupo familiar no século XVIII-XIX. Vide Patrícia

M. SAMPAIO. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Amazônia Colonial, Manaus, EDUA,

2011. p. 98-100. 83

AHU, Pará, cx. 14, doc. 1317. 84

AHU, Pará, cx. 26, doc. 2423. 85

AHU, Pará, cx. 30, doc. 2813. Representação [ant. julho de 1745]. 86

AHU, Pará, cx. 30, doc. 2813. Termo de Junta das Missões do Pará de 23/12/1745. 87

AHU, Pará, cx. 30, doc. 2813. Carta do governador de 13/11/1747. 88

AHU, Pará cx. 30, doc. 2813. Parecer do Procurador da Coroa [post. 22/03/1748].

Poderes, Instituições e sociedade na Amazônia portuguesa

Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 21

data de 1754, quando solicitaram 60 índios das aldeias de repartição para servirem no

engenho de açúcar que possuíam no Pará89

.

Por fim, esperamos ter demonstrado como algumas decisões tomadas nas Juntas das

Missões do Estado do Maranhão assumiram a configuração de poder coletivo, que forçou o

estabelecimento de novas formas e regras de conduta, auxiliando no estabelecimento e

sobrevivência da elite colonial, como pudemos analisar na ação da Junta no que se refere aos

descimentos, no tocante à interpretação das ordens de 1718 e 1728. E ainda ao destacar a

trajetória pessoal de Sanches Brito, observar como determinado grupo de moradores foi se

tornado beneficiário direto das ações estimuladas pela Junta das Missões, como também,

através da rede social que se formava na região, ia construindo e consolidando seu poder

político.

89

AHU, Pará, cx. 37, doc. 3426.