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TÍTULO: PoemasAUTOR: Agostinho NetoCapa: Luandino Vieira1.a Edição: Casa dos Estudantes do Império.

Colecção de Autores Ultramarinos. Lisboa 1961Composição e impressão: Editorial Minerva. Lisboa2.a Edição: União das Cidades Capitais de LínguaPortuguesa (UCCLA)A presente edição reproduz integralmente o textoda 1.a edição.Artes Finais da Capa: Judite CíliaComposição e Paginação: Fotocompográfica. Almada.Impressão: Printer Portuguesa. Mem Martins.

Esta edição destina-se a ser distribuída gratuitamente peloJornal SOL, não podendo ser vendida separadamente.Tiragem: 45 000Lisboa 2014Depósito Legal: 378 387/14

Apoios Institucionais:

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COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS

AGOSTINHO NETO

Colectâneade

poemas

L I S B O A

MCMLXI

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COLECÇÃO AUTORES ULTRAMARINOS

Dirigida porCARLOS EDUARDO

COSTA ANDRADE

N.o 1 — Amor (Poemas, 1960) de M. AntónioN.o 2 — A Cidade e a Infância (Contos, 1960) de Luandino VieiraN.o 3 — Fuga (Poemas, 1960) de Arnaldo SantosN.o 4 — Poemas de Viriato da Cruz (1961)N.o 5 — Poemas de Circunstância, de António CardosoN.o 6 — Terra de Acácias Rubras, de Costa AndradeN.o 7 — Kissange, de Manuel LimaN.o 8 — Poemas de Agostinho Neto (1961)

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O AUTOR

ANTÓNIO AGOSTINHO NETO nasceu a 27 de Setembrode 1922 no Icolo e Bengo (Angola). É médico formado pelaFaculdade de Medicina de Lisboa.

Participou no primeiro movimento literário angolano, o«Movimento dos Novos Intelectuais de Angola» que em1950 surgiu em Luanda através da revista «Mensagem»,órgão da Associação dos Naturais de Angola. Desde logose firmou como um dos mais representativos e válidos poe-tas angolanos.

Está representado no «Caderno de Poesia Negra deExpressão Portuguesa» de Francisco José Tenreiro e Máriode Andrade (Lisboa), na «Antologia da Poesia Negra deExpressão Portuguesa» de Mário de Andrade (Paris), em«POETAS ANGOLANOS» de C. Eduardo (Ed. da Casados Estudantes do Império, Lisboa) e em «Contistas Ango-lanos» (Ed. da C. E. I.).

A sua poesia encontra-se dispersa por revistas e jornaisda metrópole e ultramar. O presente caderno reúne pelaprimeira vez algumas das suas produções publicadas nosanos de 1949 a 1953.

Tem para editar o livro de poemas: «Sagrada Esperan-ça».

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p o e s i a a f r i c a n a

Lá no horizonteo fogoe as silhuetas escuras dos imbondeirosde braços erguidosNo ar o cheiro verde das palmeiras queimadas

Poesia africana

Na estradaa fila de carregadores bailundosgemendo sob o peso da crueiraNo quartoa mulatinha dos olhos meigosretocando o rosto com muge e pó de arrozA mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas

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Na camao homem insone pensandoem comprar garfos e facas para comer à mesa

No céu o reflexodo fogoe as silhuetas dos negros batucandode braços erguidosNo ar a melodia quente das marimbas

Poesia africana

E na estrada os carregadoresno quarto a mulatinhana cama o homem insone

Os braseiros consumindoconsumindoa terra quente dos horizontes em fogo.

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f o g o e r i t m o

Sons de grilhetas nas estradascantos de pássarossob a verdura húmida das florestasfrescura na sinfonia adocicadados coqueiraisfogofogo no capimfogo sobre o quente das chapas do Cayatte.

Caminhos largoscheios de gente cheios de gentecheios de genteem êxodo de toda a partecaminhos largos para os horizontes fechadosmas caminhoscaminhos abertos por cimada impossibilidade dos braços.

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Fogueirasdança

tamtamritmo

Ritmo na luzritmo na corritmo no somritmo no movimentoritmo nas gretas sangrentas dos pés descalçosritmo nas unhas descarnadasMas ritmoritmo.

Ó vozes dolorosas de África!

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m u s s u n d a a m i g o

Para aqui estou euMussunda amigo

Para aqui estou eu.

Contigo.Com a firme vitória da tua alegriae da tua consciência.

— o ió kalunga ua mu bangele!o ió kalunga ua mu bangele-le-lelé...

Lembras-te?Da tristeza daqueles temposem que íamoscomprar mangas

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e lastimar o destinodas mulheres da Funda,dos nossos cantos de lamento,dos nossos desesperose das nuvens dos nossos olhosLembras-te?

Para aqui estou euMussunda amigo.

A vida, a ti a devoà mesma dedicação, ao mesmo amorcom que me salvaste do abraçoda jibóia

à tua forçaque transforma os destinos dos homens.

A tiamigo Mussunda, a ti devo a vida.

E escrevoversos que tu não entendes!Compreendes a minha angústia?

Para aqui estou euMussunda amigoescrevendo versos que tu não entendes.

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Não era istoo que nós queríamos, bem seimas no espírito e na inteligêncianós somos.

Nós somosMussunda amigoNós somos!

Inseparáveiscaminhando ainda para o nosso sonho.Os corações batem ritmosde noites fogueirentasos pés dançam sobre palcosde místicas tropicaisos sons não se apagam dos ouvidos

— o ió kalunga ua mu banguele...

Nós somos!

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k i n a x i x i

Gostava de estar sentadonum banco do Kinaxixiàs seis horas duma tarde muito quentee ficar...

Alguém viriatalvezsentar-se ao meu lado

E veria as faces negras da gentea subir a calçadavagarosamenteexprimindo ausência no quimbundo mestiçodas conversas

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Veria os passos fatigadosdos servos dos pais também servosbuscando aqui amor ali glóriaalém de uma embriaguês em cada álcool

Nem felicidade nem ódio

Depois do sol postoacenderiam as luzes e euiria sem rumoa pensar que a nossa vida é simples afinaldemasiado simplespara quem está cansado e precisa de marchar.

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m e i a - n o i t e n a q u i t a n d a

— Cem reis de jindungoSá Domingas

O solentrega Sá Domingas à luanas quitandas dos musseques

E a quitandeira esperando

— Cinquenta reis de tomatetrês tostões de castanha de cajúum doce de côcoSá Domingas

Ela vende na quitanda à meia-noiteque o filho

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está na estradaprecisa de cem mil reispara pagar o imposto

O sol deixa Sá Domingasna quitandae ela deixa o luar

Um tostãodois tostõestrês tostõesque o coração de Sá Domingassofre mais do que o corpo na quitanda.

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c a m i n h o d o m a t o

Caminho do matocaminho da gentegente cansada

Óóó-oh!

Caminho do matocaminho do sobasoba grande

Óóó-oh!

Caminho do matocaminho de LembaLemba formosa

Óóó-oh!

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Caminho do matocaminho do amoramor do soba

Óóó-oh!

Caminho do matocaminho do amordo amor de Lemba

Óóó-oh!

Caminho do matocaminho das floresflores do amor.

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c o m b o i o a f r i c a n o

Um combóiosubindo de difícil vale africanochia que chialento e caricato

Grita e grita

quem esforçou não perdeumas ainda não ganhou

Muitas vidasensoparam a terraonde assentou os railse se esmagam sob o peso da máquinae no barulho da terceira classe.

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Grita e grita.

Quem esforçou não perdeumas ainda não ganhou

Lento, caricato e cruelo comboio africano...

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n o i t e

Eu vivonos bairros escuros do mundosem luz, nem vida.

Vou pelas ruasàs apalpadelasencostado aos meus informes sonhostropeçando na escravidãoao meu desejo de ser.

— Bairros escurosmundos de miséria

onde as vontades se diluírame os homens se fundiramcom as coisas.

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Ando aos trambolhõespelas ruas sem luzdesconhecidaspejadas de mística e terrorde braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura.

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c o n f i a n ç a

O oceano separou-me de mimenquanto me fui esquecendo nos séculose eis-me presentereunindo em mim o espaçocondensando o tempo

Na minha históriaexiste o paradoxo do homem disperso!

Enquanto o sorriso brilhavano canto de dore as mãos construíam mundos maravilhosos

John foi linchadoo irmão chicoteado nas costas nuas

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a mulher amordaçadae o filho continuou ignorante.

E do drama intensoduma vida imensa e útilresultou certeza:

As minhas mãos colocaram pedrasnos alicerces do mundomereço o meu pedaço de pão!

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a s t e r r a s s e n t i d a s

As terras sentidas de Áfricanos ais chorosos do antigo e do novo escravono suor aviltante do batuque impurode outros maressentidas

As terras sentidas de Áfricana sensação infame do perfume estonteante da floresmagada na florestapela imoralidade do ferro e do fogoas terras sentidas

As terras sentidas de Áfricano sonho logo desfeito em tinidos de chaves carcereirase no riso sufocado e na voz vitoriosa dos lamentose no brilho inconsciente das sensações escondidasdas terras sentidas de África

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Vivasem si e connosco vivas

Elas fervilham-nos em sonhosornados de danças de imbondeiros sobre equilíbriosde antílopena aliança perpétua de tudo quanto vive

Elas gritam o som da vidagritam-nomesmo nos cadáveres devolvidos pelo Atlânticoem oferta pútrida de incoerência e mortee na limpidez dos rios

Elas vivemas terras sentidas de Áfricano som harmonioso das consciênciasincluídas no sangue honesto dos homensno forte desejo dos homensna sinceridade dos homensna razão pura e simples da existência das estrelas

Elas vivemas terras sentidas de Áfricaporque nós vivemose somos as partículas imperecíveise inatacáveisdas terras sentidas de África.

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o c h o r o d e á f r i c a

O choro durante séculosnos seus olhos traidores pela servidão dos homensno desejo alimentado entre ambições de lufadas românticasnos batuques choro de Áfricanos sorrisos choro de Áfricanas fogueiras choro de Áfricanos sarcasmos no trabalho choro de África

Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortalmeu irmão Nguxi e amigo Mussundano círculo das violênciasmesmo na magia poderosa da terrae da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as

[almase das hemorragias dos ritmos das feridas de Áfricae mesmo na morte do sangue ao contacto com o chão

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mesmo no florir aromatizado da florestamesmo na folhano frutona agilidade da zebrana secura do desertona harmonia das correntes ou no sossego dos lagosmesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens

o choro de séculosinventado na servidãoem histerias de dramas negros almas brancas preguiçase espíritos infantis de Áfricaas mentiras choros verdadeiros nas suas bocaso choro de séculosonde a verdade violentada se estiola no círculo de ferroda desonesta forçasacrificadora dos corpos cadaverisadosinimiga da vidafechada em estreitos cérebros de máquinas de contarna violênciana violênciana violência

O choro de África é um sintoma

Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegriasdesmentidas nos lamentos falsos de suas bocas — por nós!E amore os olhos secos.

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c r i a r

Criar criarcriar no espírito criar no músculo criar no nervocriar no homem criar na massacriarcriar com os olhos secos

Criar criarsobre a profanação da florestasobre a fortaleza impúdica do chicotecriar sobre o perfume dos troncos serradoscriarcriar com os olhos secos

Criar criargargalhadas sobre o escárneo da palmatóriacoragem na ponta da bota do roceiro

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força no esfrangalhado das portas violentadasfirmeza no vermelho sangue da insegurançacriarcriar com os olhos secos

Criar criarestrelas sobre o camartelo guerreiropaz sobre o choro das criançaspaz sobre o suor sobre a lágrima do contratopaz sobre o ódiocriarcriar paz com os olhos secos

Criar criarcriar liberdade nas estradas escravasalgemas de amor nos caminhos paganizados do amorsons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas

[simuladascriarcriar amor com os olhos secos.

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a s p i r a ç ã o

Ainda o meu canto dolentee a minha tristezano Congo, na Geórgia, no Amazonas.

Aindao meu sonho de batuque em noites de luar.

Ainda os meus braçosainda os meus olhosainda os meus gritos.

Ainda o dorso vergastadoo coração abandonadoa alma entregue à féainda a dúvida.

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E sobre os meus cantosos meus sonhosos meus olhosos meus gritossobre o meu mundo isoladoo tempo parado.

Ainda o meu espíritoainda o quissangea marimbaa violao saxofoneainda os meus ritmos de ritual orgíaco.

Ainda a minha vidaoferecida à Vidaainda o meu desejo.

Ainda o meu sonhoo meu gritoo meu braçoa sustentar o meu Querer.

E nas sanzalasnas casasnos subúrbios das cidadespara lá das linhasnos recantos escuros das casas ricasonde os negros murmuram: ainda

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O meu Desejotransformado em forçainspirando as consciências desesperadas.

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c e r t e z a

Não me peças sorrisosque ainda transpiroos aisdos feridos nas batalhas.

Não me exijas glóriasque sou eu o soldado desconhecidoda Humanidade

As honrascabem aos generais.

A minha glóriaé tudo que padeço e que sofrios meus sorrisostudo o que chorei.

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Nem sorrisos, nem glória.

Apenas um rosto durode quem constrói a estradapor que há-de caminharpedra após pedraem terreno difícil.

Um rosto tristepelo tanto esforço perdido— o esforço dos tenazesque à tarde se cansam.

Uma cabeça sem lourosporque não me encontreino catálogodas glórias humanas.

Não me descobri na vidae selvas desbravadasescondem os caminhospor que hei-de passar.

Mas hei-de encontrá-lose segui-losseja qual for o preço.

Entãonum novo catálogo

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mostrar-ter-eio meu rostocercado de ramos de palmeira

e terei para tios sorrisos que me pedes.

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s i m e m q u a l q u e r p o e m a

Apetece-me escrever um poema.

Um poema fechado dentro de sipara ser compreendidoapenaspelos passarinhos que chilream lá forasobre as três árvoresda minha única paisagem;para ser entendidopela canção da seivacirculante no verde das ervasdo caminho áspero da encosta;e pelo brilho do Sole pelo carácter Integro dos homens.

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Um poema que não sejam letrasmas sangue vivoem artérias pulsáteis dum universo matemáticoe sejam astros cintilantespara calmas noitesde invernos chuvosos e friose seja lume para acolher as gazelasque pastam insegurasnos acolhedores campos da imensa vida;amizade para corações odientosmotor impelindo o impossívelpara a realidade das horas;cântico harmonioso para formosura dos homens.

Um poema(ah! quem comparou a África a uma interrogaçãocujo ponto é Madagascar?)Um poema soluçãoresolvendo a curva interrogativa da imagemem linha recta da afirmação;e a beleza das florestas virgens,a precisão da engrenagem da existência,o som fantástico do trovejar sobre pedras,os cataclismos fluviaispendentes sobre as frágeis canoas do rio Zaire,o claro arrebol dos olhos dos homens.

Um poema traçado sobre açoescrito com as flores da terrae com os braços esguios da podridão;

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esculpido no amorque exala a esperança daquele meu amigoa esta hora com a tanga ensopadano suor do seu dorso;com as canções adocicadas do quissange ao luar;e as gargalhadas infantis para a minha amada;com o calor simpáticodo corpo sangrento dos homens.

Um poema fechado— longo e imperceptívelem que amor e ódio entrelaçadossejam a síntese da discordânciapara ser cantado em todas as línguasguiado pelo som da marimba e do piano;ritmo de batuque enxertado sobre as valsasda outra mocidade;harmonia de xinguilamentossobre o bárbaro matraquear de máquinas de escrever,grito aflitivo no vácuodebatendo-se para encontrar vibração de matériae a aspiração dos homens.

Mas não escreverei o poema.

Em que subterrâneos circulariao ar irrespirável da violência?Nas cavernas dos teus pulmõeso caften das vielas sórdidas

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do conformismo?Ou na avidez dos quilómetros intestinosdos chacais?Ou nas cavidades prostituídas do coraçãoinfame do esclavagismo?Ou nas goelasda desonestidade inconsciente?

Não escreverei o poema.

Escreverei cartas à minha amadapreencherei os espaços claros dos impressoscom letra impecávele nos intervaloscantarei canções afro-brasileiras.Sonharei,Sonharei com os olhos do amorincarnados nas tuas maravilhosas mãosde suavidade e ternura.

Sonharei com aqueles dias de que falavasquando te referiste à Primavera.Sonharei contigo.E com o prazer de beber gotas de orvalhona relvadeitado ao teu ladoao Sol, — uma praia furiosa lá ao longe.E ficará dentro de mima amargura de não escrever o poema.Ele há tantas amarguras!

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Não escreverei o poema.

Direi simplesmenteque o colosso de certeza na humanidade do Universoé inapagávelcomo o brilho das estrelascomo o amor dos teus olhoscomo a força da harmonia dos braçoscomo a esperança nos corações dos homens.Inapagávelcomo a sensual belezada agilidade das feras sobre o campoe o terror transmitido dos abismos.

Direi simplesmenteSim!Sempre simà honestidade dos homensao viço juvenil da sinfonia das árvoresao odor inesquecível da naturezaque apaga os possíveis cheiros amargos.

Sim!à interrogação mágica de Talamugongodo Cunene ao Maiombe;ao sonoro cântico de ritmo subterrâneoe dos chamamentos telúricos;aos tambores

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apelando para o fio da ancestralidadeesbatido além;ao ponto interrogativo de Madagascar.

Sim!às solicitações místicas à musculatura dos membrosao quente das fogueiras endeusadasna lenha das sanzalas;às expansões magníficas das facesesculpidas no alegre sofrimento das quitandeirase no ritmo febril das sensações tropicais;à identidadecom a filosofia do imbondeiroou com a condição dos homens,ali onde o capim os afoga em confusão.Sim!à África-terra, à África-humana.

Direi simem qualquer poema.

E esperemos que a chuva paree deixe de molhar os chilreantes passarinhossobre as três árvores da minha única paisageme o desejo de escrever um poema.

Isso passa.

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o c a m i n h o d a s e s t r e l a s

Seguindoo caminho das estrelas

pela curva ágil do pescoço da gazelasobre a onda sobre a nuvemcom as asas primaveris da amizade

Simples nota musicalindispensável átomo da harmoniapartículagermecorna combinação múltipla do humano

Preciso e inevitávelcomo o inevitável passado escravo

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através das consciênciascomo o presente

Não abstractoincolor

entre ideias sem corsem ritmo

entre as arritmias do irrealinodoro

entre as selvas desaromatizadasde troncos sem raiz

Mas concretovestido do verdedo cheiro novo das florestas depois da chuvada seiva do raio do trovãoas mãos amparando a germinação do risosobre os campos de esperança

A liberdade nos olhoso som nos ouvidos

das mãos ávidas sobre a pele do tambornum acelerado e claro ritmode Zaires Calaáris montanhas luzvermelha de fogueiras infinitas nos capinzais violentadosharmonia espiritual de vozes tam-tamnum ritmo claro de África

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Assimo caminho das estrelas

pela curva ágil do pescoço da gazelapara a harmonia do mundo.

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ÍNDICE

Poesia Africana ......................................................................... 7

Fogo e Ritmo ............................................................................ 9

Mussunda Amigo ...................................................................... 11

Kinaxixi ..................................................................................... 14

Meia-Noite na Quitanda ........................................................... 16

Caminho do Mato ..................................................................... 18

Comboio Africano .................................................................... 20

Noite .......................................................................................... 22

Confiança .................................................................................. 24

As Terras Sentidas .................................................................... 26

O Choro de África .................................................................... 28

Criar .......................................................................................... 30

Aspiração .................................................................................. 32

Certeza ...................................................................................... 35

Sim em Qualquer Poema .......................................................... 38

O Caminho das Estrelas ............................................................ 44

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