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Liberdade Ai que prazer não cumprir um dever. Ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada. O sol doira sem literatura. O rio corre bem ou mal, sem edição original. E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal como tem tempo, não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Poemas do século XX

Poemas so século xx

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Page 1: Poemas so século xx

Liberdade

Ai que prazernão cumprir um dever.Ter um livro para lere não o fazer!Ler é maçada,estudar é nada.O sol doira sem literatura.O rio corre bem ou mal,sem edição original.E a brisa, essa, de tão naturalmente matinalcomo tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.Estudar é uma coisa em que está indistintaA distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.Esperar por D. Sebastião,Quer venha ou não!

Poemas do século XX

Page 2: Poemas so século xx

Poemas do século XX

Grande é a poesia, a bondade e as danças...Mas o melhor do mundo são as crianças,Flores, música, o luar, e o sol que pecaSó quando, em vez de criar, seca.

E mais do que istoÉ Jesus Cristo,Que não sabia nada de finanças,Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

Page 3: Poemas so século xx

Poemas do século XXOs espelhos

Os espelhos acendem o seu brilho todo o diaNunca são baçosE mesmo sob a pálpebra da trevaSua lisa pupila cintila e fitaComo a pupila do gatoEles nos reflectem. Nunca nos decoram

Porém é só na penumbra da hora tardiaQuando a imobilidade se instaura no centro do silêncioQue à tona dos espelhos afloraA luz que os habita e nos apaga:Luz arrancadaAo interior de um fogo frio e vítreo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Page 4: Poemas so século xx

Poemas do século XXKyrie (O Senhor) Em nome dos que choram,Dos que sofrem,Dos que acendem na noite o facho da revoltaE que de noite morrem,Com a esperança nos olhos e arames em volta.Em nome dos que sonham com palavrasDe amor e paz que nunca foram ditas,Em nome dos que rezam em silêncioE falam em silêncioE estendem em silêncio as duas mãos aflitas.Em nome dos que pedem em segredoA esmola que os humilha e os destróiE devoram as lágrimas e o medoQuando a fome lhes dóiEm nome dos que dormem ao relentoNuma cama de chuva com lençóis de ventoO sono da miséria, terrível e profundo.Em nome dos teus filhos que esqueceste,Filho de Deus que nunca mais nasceste,Volta outra vez ao mundo! Ary dos SantosVinte anos de poesia

Page 5: Poemas so século xx

Poemas do século XXTrova ao vento que passaPergunto ao vento que passanotícias do meu paíse o vento cala a desgraçao vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levamtanto sonho à flor das águase os rios não me sossegamlevam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoasai rios do meu paísminha pátria à flor das águaspara onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhaspede notícias e dizao trevo de quatro folhasque morro por meu país.

Page 6: Poemas so século xx

Poemas do século XXPergunto à gente que passapor que vai de olhos no chão.Silêncio -- é tudo o que temquem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramosdireitos e ao céu voltados.E a quem gosta de ter amosvi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nadaninguém diz nada de novo.Vi minha pátria pregadanos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margemdos rios que vão pró marcomo quem ama a viagemmas tem sempre de ficar.

Page 7: Poemas so século xx

Poemas do século XX

Vi navios a partir(minha pátria à flor das águas)vi minha pátria florir(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignoradae fale pátria em teu nome.Eu vi-te crucificadanos braços negros da fome.

Page 8: Poemas so século xx

Poemas do século XX

E o vento não me diz nadasó o silêncio persiste.Vi minha pátria paradaà beira de um rio triste.Ninguém diz nada de novose notícias vou pedindonas mãos vazias do povovi minha pátria florindo.

Page 9: Poemas so século xx

Poemas do século XXE a noite cresce por dentrodos homens do meu país.Peço notícias ao ventoe o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevoliberdade quatro sílabas.Não sabem ler é verdadeaqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeiadentro da própria desgraçahá sempre alguém que semeiacanções no vento que passa.

Mesmo na noite mais tristeem tempo de servidãohá sempre alguém que resistehá sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre

Page 10: Poemas so século xx

Poemas do século XXUrgentemente É urgente o amor. É urgente um barco no mar. É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer. Eugénio de Andrade Até Amanhã

Page 11: Poemas so século xx

Poemas do século XX

Recomeça ... Se puderes,E os passos que deres,Nesse caminho durodo futuro,Dá-os em liberdadeEnquanto não alcances,Não descanses.De nenhum fruto queiras só metade. Miguel Torga - Recomeçar

Page 12: Poemas so século xx

Árvores do Alentejo

Horas mortas... curvadas aos pés do MonteA planície é um brasido... e, torturadas,As árvores sangrentas, revoltadas,Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol postonteA oiro a giesta, a arder, pelas estradas,Esfíngicas, recortam desgrenhadasOs trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,Almas iguais à minha, almas que imploramEm vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:-Também ando a gritar, morta de sede,Pedindo a Deus a minha gota de água!

Page 13: Poemas so século xx

Procurei o amor que me mentiu. Pedi à Vida mais do que ela dava. Eterna sonhadora edificava Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu, E tanto beijo a boca me queimava! E era o sol que os longes deslumbrava Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer... Um sol a apagar-se e outro a acender Nas brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo É igual a outro amor que vai surgindo, Que há de partir também... nem eu sei quando... Florbela Espanca