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Corpus literário da atividade Poesia às Estrelas I e II
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Poesia às Estrelas
Comemoração do Mês Internacional das Bibliotecas - Corpus
Literário - 24 de outubro de 2012 e 20 de maio de 2013
A ciência e poesia misturam-se mais vezes do que aquelas que
imaginamos. Escritores como António Gedeão (Rómulo de Carvalho de seu
verdadeiro nome) são disso um exemplo. Porque desde os primórdios que o
homem observa os céus e poetiza sobre eles. O céu é um local mágico, um
local de mistérios e de mitos. Mas melhor do que nós a beleza das estrelas
fala por si e os poetas por elas.
Poesia às Estrelas
1
Estrela do Mar
Um pequenino grão de areia
Era um eterno sonhador
Olhando o céu viu uma estrela
Imaginou coisas de amor
Passaram anos, muitos anos
Ela no céu, ele no mar
Dizem que nunca o pobrezinho
Pode com ela se encontrar
Se houve ou se não houve
Alguma coisa entre eles dois
Ninguém sabe até hoje afirmar
O certo é que depois, muito depois
Apareceu a estrela do mar.
Maria Bethânia
Poesia às Estrelas
2
POEMA PARA GALILEO
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
(…)
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
Poesia às Estrelas
3
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
Poesia às Estrelas
4
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
Poesia às Estrelas
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caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.
António Gedeão
Poesia às Estrelas
6
Balão esvaziado
Cansei os braços
a pendurar estrelas no céu.
Destino dos fados lassos.
Tudo termina em cansaços
braços
e estrelas
e eu.
A vida flui (parece) como um novelo que se desenrola
como um leque silencioso que se abre,
enquanto, no ovo, um rumor se encaracola, se encaracola e desenrola,
até quando, num repente,
se dispara, incandescente,
como na dança do sabre.
Ó delírio de sentir,
doença de interrogar,
febre do nunca atingir!
Temperatura de partir
na esteira do insaciar.
Rescendem húmus as ancas,
terras morenas e brancas,
campo de jogo androceu.
Afrouxam os braços lassos.
Tudo termina em cansaços,
terras
e braços
e eu.
Estrelas, pântanos, abismos,
patamares da mesma escada,
dedos da mesma aliança.
Poesia às Estrelas
7
Tudo morre em tédio e em nada.
Tudo maça.
Tudo enfada.
Tudo pesa.
Tudo cansa.
António Gedeão
Poesia às Estrelas
8
Poemas retirados do livro Pó de Estrelas, de Jorge Sousa Braga
A MINHA ESTRELA
Todos os homens têm a sua estrela
Uns maior outros pequenina
Uns de ouro ou de prata
Outros de lata fina
Todos os homens têm a sua estrela
Uns uma gigante vermelha outros uma anã
Todos os homens têm a sua estrela
A minha chama-se Aldebarã
Poesia às Estrelas
9
A LUA
Quanto mais nua
mais bela
é a lua
Poesia às Estrelas
10
A MADALENA
Já é de noite…
Deitado no jardim
a Madalena
olha o céu sem fim
E o que vê ela
ao olhar para o céu?
Um imenso véu
Incrustado de estrelas
E põe-se a contar
as estrelas que há
Nem metade contou
e já é de manhã
Poesia às Estrelas
11
O UNIVERSO
Uns dizem que é aberto
outros que é fechado
outros ainda que é plano
Cada um consoante o seu desejo
Para mim o universo
tem a forma de um beijo
Poesia às Estrelas
12
UM DIA
Um dia o sol há de deixar de brilhar
E a terra- os continentes e oceanos…
Mas não há razão para te preocupares:
Ainda faltam milhões de anos
Poesia às Estrelas
13
ESTRELAS PRETAS
Há estrelas brancas
Estrelas vermelhas
estrelas amarelas
e estrelas castanhas
As estrelas pretas
são estrelas
que ainda não há
- ou haverá?
São estrelas de fissão
-perdão-
de ficção
Poesia às Estrelas
14
Receita para fazer uma estrela
Primeiro misturam-se os ingredientes
com redrobrados cuidados:
hidrogénio e hélio
e alguns metais pesados
Vai-se acrescentando massa
(é como se fizesses pão)
até que chega um momento
em que esta entra
em combustão
e começa
a brilhar
E está a estrela
pronta a brilhar
Poesia às Estrelas
15
A Música das Estrelas
As estrelas também cantam
Cantam uma canção de embalar
Sobre uma estrela que caiu
No fundo do mar
Melhor lugar não há
para ouvir essa canção
Do que deitado na relva
numa noite de Verão
Poesia às Estrelas
16
Pó de Estrelas
Somos feitos
da mesma matéria
que as estrelas
e os amores-perfeitos
Somos feitos
de pó de estrelas
Poesia às Estrelas
17
A TERRA
Se eu pudesse escolher
Entre ser um planeta
Uma estrela
ou um cometa
eu preferia ser o que sou
um pequeno planeta
com a sua lua
que de vez em quando é visitado
por um cometa
Poesia às Estrelas
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MISAAR
Há dentro de ti uma estrela
Porque não a deixas brilhar?
Não receies cegar os outros
nem que estes te possam cegar
Há dentro de ti uma estrela
Mesmo que a luz seja fria
brilha tanto como as outras
e brilha de noite e de dia
Poesia às Estrelas
19
ROTAÇÃO
Tudo gira
Neste mundo
tudo gira
A lua em redor
da terra e a terra
em redor do sol
e o sol em redor
Seja do que for
E enquanto a lua gira em redor
Da terra e a terra
Em redor do sol
E o sol seja do que for
A lua a terra e o sol
Giram também
Em redor do eixo que têm
Tudo gira
neste mundo
tudo gira
Que eu gire
em redor de ti
não admira
Poesia às Estrelas
20
NEIL ARMSTRONG
As pegadas que Neil Armstrong deixou na lua
ainda lá estão e ainda lá estarão
daqui a alguns milhões de anos –
A lua é que talvez não
Poesia às Estrelas
21
Via Láctea
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e entender estrelas"
Olavo Bilac
Poesia às Estrelas
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Estrela cadente
Traço de luz… lá vai! Lá vai! Morreu.
Do nosso amor me lembra a suavidade…
Da estrela não ficou nada no céu
Do nosso sonho em ti nem a saudade!
Pra onde iria a ’strela? Flor fugida
Ao ramalhete atado no infinito…
Que ilusão seguiria entontecida
A linda estrela de fulgir bendito?…
Aonde iria, aonde iria a flor?
(Talvez, quem sabe?… ai quem soubesse, amor!)
Se tu o vires minha bendita estrela
Alguma noite… Deves conhecê-lo!
Falo-te tanto nele!… Pois ao vê-lo
Dize-lhe assim: “Por que não pensas nela?”
Florbela Espanca
Poesia às Estrelas
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LUA ADVERSA
Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
Cecília Meireles
Poesia às Estrelas
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NO TEU DESERTO (EXCERTO)
“Quando um de nós ficava parado a contemplar o deserto, o outro não
deveria dizer nada. Tudo o que se pudesse dizer, naquelas alturas, ali, em
frente ao nada ou ao absoluto, seria tão inútil que só poderia vir de uma
alma fútil. Tudo o que se diz de desnecessário é estupido, é um sinal destes
tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos.
No deserto, não há muito a dizer; o olhar chega e impõe o silêncio. Mas,
naqueles dias, eu estava sempre com pressa.
Alguém tinha de estar sempre com pressa e coubera-me a mim, por função.
Só não tinha pressa à noite, depois de montado o acampamento, cozinhado
o jantar, revisto e arrumado o jipe e de ter passado para um caderno as
notas do trabalho do dia e quando, enfim, me sentava com os outros à
lareira a olhar as estrelas do Sahara.”
Miguel Sousa Tavares
Poesia às Estrelas
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O Tombo da Lua
Uma ocasião, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo.
Não me lembro da idade que então tinha e já na altura me não lembrava.
Certo é que a noite estava muito quente e repassada de azul, assim de tinta
soé dizer-se e a Lua tinha-se quieta, redonda e branca, brilhante como lhe
competia. Provavelmente o Zé Metade cantava o fado, postado à soleira da
porta, enquanto acabava um saquitel de tremoços. O Zé Metade é assim
chamado desde que lhe aconteceu uma infelicidade: quis separar o Manecas
Canteiro do Mota Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina
dos Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo
outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé caiu-
lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem conserto,
busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante ficou conhecido por
Zé Metade, arrasta-se num caixote de madeira com rodinhas e deu-lhe para
cantar todas as noites um fado melancólico e muito sentido: Ai a profunda
desgraça / Em que me viste ó `nha mãiiii…
Pois foi nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para dormir, que
o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: “Lá a calari…” e depois
remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que não aconteceu.
Após olhou para o Céu e bocejou um destes bocejos do tamanho duma
casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma das mais
competitivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da Lua.
Deslocou-se um bocadinho assim como quem se desequilibrou, entrou a
descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por ali pairava feita
parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que só fez “gulp” e
esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no astro, ficou um vinco
esbranquiçado como dobra em papel de seda que logo se apagou e o céu
tornou-se bem liso e escorreito. O Beco ficou um tudo nada mais escuro e
um gato passou a correr, pardo, da cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim duma estrofe: “Ina cum caraças!”
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu naquele
Beco.
Poesia às Estrelas
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Era o Zé Metade a berrar para dentro: “`nha mãe, venha cá, senhora, co
Andrade engoliu a Lua!” e o Andrade a olhar para nós, limpando a boca com
as costas da mão, um ar azamboado.
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um
corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do
Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas,
pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um bocado
pesada.
Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca
Mas se foi ele que a desafiou gritava a mãe do Zé dando punhadas de uma
mão na palma da outra mão. Pôr-se ali na janela aos bocejos, olha a
farronca! Agora vem esta a querer baralhar género humano com Manuel
Germano. O meu Zé viu tudo, óvistes?
Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco de
pijama com flores:
Isto o meu amigo o que fazia melhor era regurgitar a Lua, ou o Beco ainda
fica mal visto, observou com gravidade e voz de papo.
E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.
Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a produzir
uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada repugnância.
O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova
abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. Que coisa mais
escanifobética…
É levarem-no já para o hospital gritava o Zé Metade da rua, ansioso por se
ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo cirúrgico.
Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é que a
punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os médicos
quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro dum frasco
com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso? Hã? E em faltando
a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?
Acabam-se as marés disse o Paulino Marujo.
Coisa de pouca monta afirmou uma mulher. As marés nunca deram de
comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade…
Então como é que o amigo se sente? Perguntou o presidente ao Andrade.
Poesia às Estrelas
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Menos mal, muito obrigado. Vai um pedacinho melhor…
Então é melhor ficarmos assim recomendou o Presidente. Vossemecê agora
toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que amanhã é
dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em ordem e não se pensa
mais em tal semelhante!
E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o desaparecimento da
Lua e deu-se a grandes especulações.
Era com algum orgulho que a população do Beco via passar o Andrade.
Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo.
Mário de Carvalho, Casos do Beco das Sardinheiras
Poesia às Estrelas
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