poesia Cecília Meireles

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Cano Pus o meu sonho num navio e o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mos, para o meu sonho naufragar. Minhas mos ainda esto molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da gua vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresa, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desaparea. Depois, tudo estar perfeito; praia lisa, guas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mos quebradas.

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Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida est completa. No sou alegre nem sou triste: Sou poeta. Irmo das coisas fugidias No sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneo ou me desfao, - no sei, no sei. No sei se fico ou passo. Sei que canto. E a cano tudo. Tem sangue eterno e asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada.

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Cano I Nunca eu tivera querido dizer palavra to louca: bateu-me o vento na boca, e depois no teu ouvido. Levou somente a palavra deixou ficar o sentido. O sentido est guardado no rosto com que te miro, neste perdido suspiro que te segue alucinado, no meu sorriso suspenso como um beijo malogrado. Nunca ningum viu ningum que o amor pusesse to triste. Essa tristeza no viste,

e eu sei que ela se v bem... S que aquele mesmo vento fechou teus olhos, tambm...

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Destino Pastora de nuvens, fui posta a servio por uma campina desamparada que no principia nem tambm termina, e onde nunca noite e nunca madrugada. (Pastores da terra, vs tendes sossego, que olhais para o sol e encontrais direo. Sabeis quando tarde, sabeis quando cedo. Eu, no.) Pastora de nuvens, por muito que espere, no h quem me explique meu vrio rebanho. Perdida atrs dele na plancie area, no sei se o conduzo, no sei se o acompanho.

(Pastores da terra, que saltais abismos, nunca entendereis a minha condio. Pensais que h firmezas, pensais que h limites. Eu, no.) Pastora de nuvens, cada luz colore meu canto e meu gado de tintas diversas. Por todos os lados o vento revolve os velos instveis das reses dispersas. (Pastores da terra, de certeiros olhos, como to serena a vossa ocupao! Tendes sempre o incio da sombra que foge... Eu, no.) Pastora de nuvens, no paro nem durmo neste mvel prado, sem noite e sem dia. Estrelas e luas que jorram, deslumbram o gado inconstante que se me extravia. (Pastores da terra, debaixo de folhas que entornam frescura num plcido cho, Sabeis onde pousam ternuras e sonos. Eu, no.) Pastora de nuvens, esqueceu-me o rosto do dono das reses, do dono do prado. E s vezes parece que dizem meu nome, que me andam seguindo, no sei por que lado. (Pastores da terra, que vedes pessoas sem serem apenas de imaginao, podeis encontrar-vos, falar tanta coisa! Eu, no.) Pastora de nuvens, com a face deserta, sigo atrs de formas com feitios falsos, queimando viglias na plancie eterna

que gira debaixo dos meus ps descalos. (Pastores da terra, tereis um salrio, e andar por bailes vosso corao. Dormireis um dia como pedras suaves. Eu, no.)

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A Doce Cano A Christina Christie Pus-me a cantar minha pena com uma palavra to doce, de maneira to serena, que at Deus pensou que fosse felicidade - e no pena. Anjos de lira dourada debruaram-se da altura. No houve, no cho, criatura de que eu no fosse invejada, pela minha voz to pura.

Acordei a quem dormia, fiz suspirarem defuntos. Um arco-ris de alegria da minha boca se erguia pondo o sonho e a vida juntos. O mistrio do meu canto, Deus no soube, tu no viste. Prodgio imenso do pranto: - todos perdidos de encanto, s eu morrendo de triste! Por assim to docemente meu mal transformar em verso, oxal Deus no o ausente, para trazer o Universo de plo a plo contente!

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Descrio Amanheceu pela terra um vento de estranha sombra, que a tudo declarou guerra.

Paredes ficaram tortas, animais enlouqueceram e as plantas caram mortas. O plido mar to branco levantava e desfazia um verde-lvido flanco. E pelo cu, tresmalhadas, iam nuvens sem destino, em fantsticas brigadas. Dos linhos claros da areia fez o vento retorcidas, rotas, miserveis teias. Que sopro de ondas estranhas! Que sopro nos cemitrios! pelos campos e montanhas! Que sopro forte e profundo! Que sopro de acabamento! Que sopro de fim de mundo! Da varanda do colgio, do ptio do sanatrio, miravam tal sortilgio olhos quietos de meninos, com esperanas humanas e com terrores divinos. A tardinha serenada foi dormindo, foi dormindo, despedaada e calada. S numa ruiva amendoeira uma cigarra de bronze, por brio de cantadeira girava em esquecimento

sanha enorme do vento, forjando o seu movimento num grave cntico lento...

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Retrato Falante No h quem no se espante, quando mostro o retrato desta sala, que o dia inteiro est mirando, e meia-noite em ponto fala. Cada um tem sua raridade: selo, flor, dente de elefante. Uns tm at felicidade! Eu tenho o retrato falante. Minha vida foi sempre cheia de visitas inesperadas, a quem eu me conservo alheia,

mas com as horas desperdiadas. Chegam, descrevem aventuras, sonhos, mgoas, absurdas cenas. Coisas de hoje, antigas, futuras... (A maioria mente, apenas.) E eu, fatigada e distrada, digo sim, digo no - diversas respostas de gente perdida no labirinto das conversas. Ouo, esqueo, livro-me - trato de recompor o meu deserto. Mas, meia-noite, o retrato tem um discurso pronto e certo. Vejo ento por que estranho mundo andei, ferida e indiferente, pois tudo fica no sem-fundo dos seus olhos de eternamente. Repete palavras esquivas sublinha, pergunta, responde, e apresenta, claras e vivas, as intenes que o mundo esconde. Na outra noite me disse: "A morte leva a gente. Mas os retratos so de natureza mais forte, alm de serem mais exatos. Quem tiver tentado destru-los, por mais que os reduza a pedaos, encontra os seus olhos tranqilos mesmo rotos, sobre os seus passos. Depois que estejas morta, um dia, tu, que s s desprezo e ternura,

sabers que ainda te vigia meu olhar, nesta sala escura. Em cada meia-noite em ponto, direi o que viste e o que ouviste. Que eu - mais que tu - conheo e aponto quem e o que te deixou to triste."

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Leveza Leve o pssaro: e a sua sombra voante, mais leve. E a cascata area de sua garganta, mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto, mais leve. E o desejo rpido desse mais antigo isntante, mais leve.

E a fuga invisvel do amargo passante, mais leve. *****************

OU ISTO OU AQUILO Ou se tem chuva e no se tem sol, ou se tem sol e no se tem chuva! Ou se cala a luva e no se pe o anel, ou se pe o anel e no se cala a luva! Quem sobe nos ares no fica no cho , Quem fica no cho no sobe nos ares. uma grande pena que no se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares! Ou guardo dinheiro e no compro o doce, ou compro o doce e no guardo o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! No sei se brinco, no sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqilo. Mas no consegui entender ainda qual melhor: se isto ou aquilo. ########### ############

Guerra Tanto o sangue que os rios desistem de seu ritmo, e o oceano delira e rejeita as espumas vermelhas. Tanto o sangue que at a lua se levanta horrvel, e erra nos lugares serenos, sonmbula de aurolas rubras, com o fogo do inferno em suas madeixas. Tanta a morte que nem os rostos se conhecem, lado a lado, e os pedaos de corpo esto por ali como tbuas sem uso. Oh, os dedos com alianas perdidos na lama... Os olhos que j no pestanejam com a poeira... As bocas de recados perdidos... O corao dado aos vermes, dentro dos densos uniformes... Tanta a morte que s as almas formariam colunas, as almas desprendidas... - e alcanariam as estrelas. E as mquinas de entranhas abertas, e os cadveres ainda armados,

e a terra com suas flores ardendo, e os rios espavoridos como tigres, com suas mculas, e este mar desvairado de incndios e nufragos, e a lua alucinada de seu testemunho, e ns e vs, imunes, chorando, apenas, sobre fotografias, - tudo um natural armar e desarmar de andaimes entre tempos vagarosos, sonhando arquiteturas.

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Cano II No desequilbrio dos mares, as proas giram sozinhas... Numa das naves que afundaram que certamente tu vinhas. Eu te esperei todos os sculos sem desespero e sem desgosto,

e morri de infinitas mortes guardando sempre o mesmo rosto Quando as ondas te carregaram meu olhos, entre guas e areias, cegaram como os das esttuas, a tudo quanto existe alheias. Minhas mos pararam sobre o ar e endureceram junto ao vento, e perderam a cor que tinham e a lembrana do movimento. E o sorriso que eu te levava desprendeu-se e caiu de mim: e s talvez ele ainda viva dentro destas guas sem fim. ########### ###############

Depois do Sol...

Fez-se noite com tal mistrio, To sem rumor, to devagar, Que o crepsculo como um luar Iluminando um cemitrio ... Tudo imvel ... Serenidades ... Que tristeza, nos sonhos meus! E quanto choro e quanto adeus Neste mar de infelicidades! Oh! Paisagens minhas de antanho ... Velhas, velhas ... Nem vivem mais ... As nuvens passam desiguais, Com sonolncia de rebanho ... Seres e coisas vo-se embora ... E, na aurola triste do luar, Anda a lua, to devagar, Que parece Nossa Senhora Pelos silncios a sonhar ... ############ ###############

Serenata Permita que eu feche os meus olhos, pois muito longe e to tarde! Pensei que era apenas demora, e cantando pus-me a esperar-te. Permite que agora emudea: que me conforme em ser sozinha. H uma doce luz no silencio, e a dor de origem divina. Permite que eu volte o meu rosto para um cu maior que este mundo, e aprenda a ser dcil no sonho como as estrelas no seu rumo.

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Noturno Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa? E que valem as rvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte? Que vale o pensamento humano, esforado e vencido, na turbulncia das horas? Que valem a conversa apenas murmurada, a erma ternura, os delicados adeuses? Que valem as plpebras da tmida esperana, orvalhadas de trmulo sal? O sangue e a lgrima so pequenos cristais sutis, no profundo diagrama. E o homem to inutilmente pensante e pensado s tem a tristeza para distingui-lo.

Porque havia nas midas paragens animais adormecidos, com o mesmo mistrio humano: grandes como prticos, suaves como veludo, mas sem lembranas histricas, sem compromissos de viver. Grandes animais sem passado, sem antecedentes, puros e lmpidos, apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos e noes de gua e de primavera nas tranqilas narinas e na seda longa das crinas desfraldadas. Mas a noite desmanchava-se no oriente, cheia de flores amarelas e vermelhas. E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes, erguiam no ar a vigorosa cabea, e comeavam a puxar as imensas rodas do dia. Ah! o despertar dos animais no vasto campo! Este sair do sono, este continuar da vida! O caminho que vai das pastagens etreas da noite ao claro dia da humana vassalagem! ########### ################

Timidez Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve... - mas s esse eu no farei. Uma palavra cada das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras mais distantes... - palavra que no direi. Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos, - que amargamente inventei.

E, enquanto no me descobres, os mundos vo navegando nos ares certos do tempo, at no se sabe quando... - e um dia me acabarei.

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Pssaro Aquilo que ontem cantava j no canta. Morreu de uma flor na boca: no do espinho na garganta. Ele amava a gua sem sede, e, em verdade, tendo asas, fitava o tempo, livre de necessidade.

No foi desejo ou imprudncia: no foi nada. E o dia toca em silncio a desventura causada. Se acaso isso desventura: ir-se a vida sobre uma rosa to bela, por uma tnue ferida.

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Reinveno A vida s possvel reinventada. Anda o sol pelas campinas

e passeia a mo dourada pelas guas, pelas folhas... Ah! tudo bolhas que vem de fundas piscinas de ilusionismo... - mais nada. Mas a vida, a vida, a vida, a vida s possvel reinventada. Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braos. Projeto-me por espaos cheios da tua Figura. Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura. No te encontro, no te alcano... S - no tempo equilibrada, desprendo-me do balano que alm do tempo me leva. S - na treva, fico: recebida e dada. Porque a vida, a vida, a vida, a vida s possvel reinventada.

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preciso no esquecer nada preciso no esquecer nada: nem a torneira aberta nem o fogo aceso, nem o sorriso para os infelizes nem a orao de cada instante. preciso no esquecer de ver a nova borboleta nem o cu de sempre. O que preciso esquecer o nosso rosto, o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso. O que preciso esquecer o dia carregado de atos, a idia de recompensa e de glria. O que preciso ser como se j no fssemos, vigiados pelos prprios olhos severos conosco, pois o resto no nos pertence.

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sis E diz-me a desconhecida: "Mais depressa! Mais depressa! "Que eu vou te levar a vida! ... "Finaliza! Recomea! "Transpe glrias e pecados! ..." Eu no sei que voz seja essa Nos meus ouvidos magoados: Mas guardo a angstia e a certeza De ter os dias contados ... Rolo, assim, na correnteza Da sorte que se acelera, Entre margens de tristeza, Sem palcios de quimera, Sem paisagens de ventura,

Sem nada de primavera ... L vou, pela noite escura, Pela noite de segredo, Como um rio de loucura ... Tudo em volta sente medo ... E eu passo desiludida, Porque sei que morro cedo ... L me vou, sem despedida ... s vezes, quem vai, regressa ... E diz-me a Desconhecida: "Mais depressa" Mais depressa" ...

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Mapa de Anatomia: O Olho O Olho uma espcie de globo, um pequeno planeta

com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. um globobrilhante: parece cristal, como um aqurio com plantas finamente desenhadas: algas, sargaos, miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrgios e peixes de ouro. Mas por dentro h outras pinturas, que no se vem: umas so imagens do mundo, outras so invetadas. O Olho um teatro por dentro. E s vezes, sejam atores, sejam cenas, e s vezes, sejam imagens, sejam ausncias, formam, no Olho, lgrimas.

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Para onde que vo os versos Para onde que vo os versos que s vezes passam por mim como pssaros libertos? Deixo-os passar sem captura, vejo-os seguirem pelo ar - um outro ai, de outros jardins... Aonde iro? A que criaturas se destinam, que os alcanam para os possuir e amestrar? De onde vm? Quem os projeta como translcidas setas? E eu, por que os deixo passar, como alheias esperanas?

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Improviso do amor-perfeito Naquela nuvem, naquela, mando-te meu pensamento: que Deus se ocupe do vento. Os sonhos foram sonhados, e o padecimento aceito. E onde ests, Amor-Perfeito? Imensos jardins da insnia, de um olhar de despedida deram flor por toda a vida. Ai de mim que sobrevivo sem o corao no peito. E onde ests, Amor-Perfeito? Longe, longe, atrs do oceano que nos meus se alteia

entre plpebras de areia... Longe, longe... Deus te guarde sobre o seu lado direito, como eu te guardava do outro, noite e dia, Amor-Perfeito.

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Fantasma Para onde vais, assim calado, de olhos hirtos, quieto e deitado, as mos imveis de cada lado? Tua longa barca desliza por no sei que onda, lmpida e lisa, sem leme, sem vela, sem brisa... Passas por mim na rbita imensa de uma secreta indiferena,

que qualquer pergunta dispensa. Desapareces do lado oposto e, ento, com sbito desgosto, vejo que teu rosto o meu rosto, e que vais levando contigo, pelo silncioso perigo dessa tua navegao, minha voz na tua garganta, e tanta cinza, tanta, tanta, de mim, sobre o teu corao!

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Cantar Cantar de beira de rio: gua que bate na pedra, pedra que no d resposta.

Noite que vem por acaso, trazendo nos lbios negros o sonho de que se gosta. Pensando no caminho pensando o rosto da flor que pode vir, mas no vem Passam luas - muito longe, estrelas - muito impossveis, nuvens sem nada, tambm. Cantar de beira de rio: o mundo coube nos olhos, todo cheio, mas vazio. A gua subiu pelo campo, mas o campo era to triste... Ai! Cantar de beira de rio. ########### ############

Noite To perto! To longe! Por onde o deserto? s vezes, responde, de perto, de longe. Mas depois se esconde. Somos um ou dois? s vezes, nenhum. E em seguida, tantos!

A vida transborda por todos os cantos. Acorda com modos de puro esplendor. Procuro meu rumo: horizonte escuro: um muro em redor. em treva me sumo. Para onde me leva? Pergunto a Deus se estou viva, se estou sonhando ou acordada. Lbio de Deus! - Sensitiva tocada. ############ ##############

Despedida Por mim, e por vs, e por mais aquilo que est onde as outras coisas nunca esto, deixo o mar bravo e o cu tranqilo: quero solido. Meu caminho sem marcos nem paisagens. E como o conheces? - me perguntaro. - Por no ter palavras, por no ter imagens. Nenhum inimigo e nenhum irmo. Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada. Viajo sozinha com o meu corao. No ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mo. A memria voou da minha fronte. Voou meu amor, minha imaginao... Talvez eu morra antes do horizonte. Memria, amor e o resto onde estaro? Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. (Beijo-te, corpo meu, todo desiluso!

Estandarte triste de uma estranha guerra...) ############ ##############

Mar em redor Meus ouvidos esto como as conchas sonoras: msica perdida no meu pensamento, na espuma da vida, na areia das horas... Esqueceste a sombra no vento. Por isso, ficaste e partiste, e h finos deltas de felicidade abrindo os braos num oceano triste. Soltei meus anis nos alns da saudade. Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira. Almas de todos os afogados chamam para diversos lados esta singular companheira.

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Metamorfose Sbito pssaro dentro dos muros caido,

plido barco na onda serena chegado.

Noite sem braos! Clido sangue corrido.

E imensamente o navegante mudado.

Seus olhos densos apenas sabem ter sido.

Seu labio leva um outro nome mandado.

sbito pssaro por altas nuvens bebido.

Plido barco nas flores quietas quebrado.

Nunca, jamais e para sempre perdido

o eco do corpo no prprio vento pregado.

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Cano de alta noite Alta noite, lua quieta, muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta no necessita de casa.

Acaba-se a ltima porta. O resto o cho do abandono.

Um poeta, na noite morta, no necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo na noite, tambm perdida.

Um poeta, merc do espao, nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente, anda por andar - somente. No necessita de nada.

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Dia de chuva As espumas desmanchadas sobem-me pela janela, correndo em jogos selvagens de cora e estrela.

Pastam nuvens no ar cinzento: bois aereos, calmos, tristes, que lavram esquecimento.

Velhos telhados limosos cobrem palavras, armrios, enfermidades, herosmos...

quem passa como um funmbulo, equilibrado na lama, metendo os ps por absmos...

Dia to sem claridade! s se conhece que existes pelo pulso dos relgios...

Se um morto agora chegasse quela porta, e batesse, com um guarda-chuva escorrendo, e com limo pela face, ali ficasse batendo

- ali ficasse batendo quela porta esquecida sua mo de eternidade...

To frentico anda o mar que no se ouviria o morto bater porta e chamar...

E o pobre ali ficaria como debaixo da terra,

exposto surdez do dia.

Pastam nuvens no ar cinzento. Bois areos que trabalham no arado do esquecimento.

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Encomenda Desejo uma fotografia como esta - o senhor v? - como esta: em que para sempre me ria com que vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria, derrame luz na minha testa. Deixe essa ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria.

No meta fundos de floresta nem de arbitrria fantasia... No... Neste espao que ainda resta, ponha uma cadeira vazia. ########### ##########

Balada das Dez Bailarinas do Cassino Dez bailarinas deslizam por um cho de espelho. Tm corpos egpcios placas douradas, plpebras vermelhos. Levantam vus brancos, de ingnuos aromas, azuis e dedos

com

e dobram amarelos joelhos.

Andam as dez bailarinas sem voz, em redor das mesas. H mos sobre facas, dentes sobre flores e com os charutos toldam as luzes acesas. Entre a msica e a dana escorre uma sedosa escada de vileza.

As dez bailarinas avanam como gafanhotos perdidos. Avanam, recuam, na sala compacta, empurrando arranhando o rudo. To nuas se sentem que j vo cobertas de vestidos. imaginrios, chorosos olhares e

A dez bailarinas escondem nos clios verdes as pupilas. Em seus quadris fosforescentes,

passa uma faixa de morte tranqila. Como quem leva para a terra um filho morto, levam seu prprio corpo, que baila e cintila.

Os homens gordos olham com um tdio enorme as dez bailarinas to frias. Pobres serpentes sem luxria, que so crianas, durante o dia. Dez anjos anmicos, de axilas profundas, embalsamados de melancolia.

Vo perpassando como dez mmias, as bailarinas fatigadas. Ramo de nardos inclinando flores azuis, douradas. Dez mes chorariam, se vissem as bailarinas de mos dadas. brancas, verdes,

(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)

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Lamento do Oficial por seu Cavalo Morto

Ns merecemos a morte, porque somos humanos e a guerra feita pelas nossas mos, pelo nossa cabea embrulhada em sculos de sombra, por instvel, pelas ordens que trazemos por dentro, e ficam sem explicao. nosso sangue estranho e

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia, os clculos do gesto, embora sabendo que somos irmos. Temos at os tomos por cmplices, e que pecados

de cincia, pelo mar, pelas nuvens, nos astros! Que imaginao! delrio sem Deus, nossa

E aqui morreste! Oh, tua morte a minha, que, enganada, recebes. No te queixas. No pensas. No sabes. Indigno, ver parar, pelo meu, teu inofensivo corao. Animal encantado - melhor que ns todos! - que tinhas tu com este mundo dos homens?

Aprendias a vida, plcida e pura, e entrelaada em carne e sonho, que os teus olhos decifravam... Rei das plancies verdes, com rios trmulos de relinchos... Como vieste morrer por um que mata seus irmos!

(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.) ***********************

Murmrio

Traze-me um pouco das sombras serenas que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra, apenas, - v que nem te peo alegria.

Traze-me um pouco da alvura dos luares

que a noite sustenta no teu corao! A alvura, apenas, dos ares: - v que nem te peo iluso.

Traze-me lembrana,

um

pouco

da

tua

aroma perdido, saudade da flor! - V que nem te digo - esperana! - V que nem sequer sonho - amor!

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4o. Motivo da Rosa

No te aflijas com a ptala que voa: tambm ser, deixar de ser assim.

Rosas ver, s de cinzas franzida, mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma at nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim.

E lembrando,

por

perder-me

que

vo

me

por desfolhar-me que no tenho fim.

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Discurso

E aqui estou, cantando.

Um poeta sempre irmo do vento e da gua: deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo cho os sinais do meu caminho e no vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Tambm procurei no cu a indicao de uma trajetria, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operrios de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha algum gostar de mim?

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Retrato

Eu no tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos to vazios, nem o lbio amargo.

Eu no tinha estas mos sem fora, to paradas e frias e mortas; eu no tinha este corao

que nem se mostra.

Eu no dei por esta mudana, to simples, to certa, to fcil: Em que espelho ficou perdida a minha face?

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Gargalhada

Homem vulgar! Homem de corao mesquinho! Eu te quero ensinar a arte sublime de rir. Dobra essa orelha grosseira, e escuta o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

No vs? preciso jogar por escadas de mrmores baixelas de ouro. Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais, vergar a lmina das espadas e despedaar esttuas, destruir as lmpadas, abater cpulas, e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnfico um trecho dessa msica desvairada.

Mas preciso ter baixelas de ouro, compreendes? e colares, e espelhos, e espadas e esttuas. E as lmpadas, Deus do cu! E os pandeiros geis e as liras sonoras e trmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!

Ah! Ah! Ah! Ah!

S de trs lugares nasceu at hoje essa msica herica: do cu que venta, do mar que dana, e de mim.

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Fio

No fio da respirao, rola a minha vida montona, rola o peso do meu corao.

Tu no vs o jogo perdendo-se como as palavras de uma cano.

Passas longe, entre nuvens rpidas, com tantas estrelas na mo...

Para que serve o fio trmulo em que rola o meu corao? *****************

Atitude

Minha esperana perdeu seu nome... Fechei meu sonho, para cham-la. A tristeza transfigurou-me como o luar que entra numa sala.

O ltimo passo do destino parar sem forma funesta, e a noite oscilar como um dourado sino derramando flores de festa.

Meus olhos estaro sobre espelhos, pensando nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas ir brotando atrs das lembranas ardentes.

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Noes

Entre mim e mim, h vastides bastantes para a navegao dos meus desejos afligidos.

Descem pela gua minhas naves revestidas de espelhos.

Cada lmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto correnteza, s recolho o gosto infinito das respostas que no se encontram.

Virei-me sobre a minha prpria existncia, e contemplei-a Minha virtude era esta errncia por mares contraditrios, e este abandono para alm da felicidade e da beleza.

meu Deus, isto a minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este corpo efmero e precrio, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inmera...

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Herana

Eu vim de infinitos caminhos, e os meus sonhos choveram lcido pranto pelo cho.

Quando caminhos infinitos,

que

frutifica,

nos

essa vida, que era to viva, to fecunda, porque vinha de um corao?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,

do pranto que caiu dos meus olhos passados, que experincia, ou consolo, ou prmio alcanaro?

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Interldio

As palavras esto muito ditas e o mundo muito pensado. Fico ao teu lado.

No me digas que h futuro nem passado. Deixa o presente claro muro sem coisas escritas.

Deixa o presente. No fales, No me expliques o presente, pois tudo demasiado.

Em guas de eternamente, o cometa dos meus males afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.

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Encomenda

Desejo uma fotografia

como esta o senhor v? como esta: em que para sempre me ria como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria, derrame luz na minha testa. Deixe esta ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria.

No meta fundos de floresta nem de arbitrria fantasia... No... Neste espao que ainda resta, ponha uma cadeira vazia.

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Suavssima

Os dormente . . .

galos

cantam,

no

crepsculo

No cu de outono, anda um langor final de pluma Que se desfaz por entre os dedos, vagamente . . . Os dormente . . . Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma . . . Fica-se ausente . . . Sem ter certeza de ningum . . . de coisa alguma . . . Tem-se a impresso de estar bem doente, muito doente, De um mal sem dor, que se no saiba nem resuma . . . E os galos cantam, no crepsculo dormente . . . Os dormente . . . A alma das flores, suave e tcita, perfuma A solitude nebulosa e irreal do ambiente . .. galos cantam, no crepsculo longe, quase morta, como galos cantam, no crepsculo

Os dormente . . .

galos

cantam,

no

crepsculo

To para l! . . . No fim da tarde . . . alm da bruma . . . E silenciosos, como algum que se acostuma A mansamente, Meus sonhos surgem, frgeis, leves como espuma . . . Pem-se a tecer frases de amor, uma por uma . . . E os galos cantam, no crepsculo dormente . . . caminhar sobre penumbras,

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Marinha

O barco negro sobre o azul.

Sobre o azul os peixes so negros. Desenham malhas negras as redes, sobre o azul. Sobre o azul, os peixes so negros. Negras so as vozes dos pescadores, atirando-se palavras no azul. o ltimo azul do mar e do cu. A noite j vem, dos lados de Burma, toda negra, molhada de azul: a noite que chega tambm do mar. ****************************

Mquina Breve O pequeno vaga-lume

com sua verde lanterna, que passava pela sombra inquietando a flor e a treva meteoro da noite, humilde, dos horizontes da relva; o pequeno vaga-lume, queimada a sua lanterna, jaz carbonizado e triste e qualquer brisa o carrega: mortalha de exguas franjas que foi seu corpo de festa. Parecia uma esmeralda e um ponto negro na pedra. Foi luz alada, pequena estrela em rpida seta. Quebrou-se a mquina breve na precipitada queda. E o maior sbio do mundo sabe que no a conserta. **************

De um Lado Cantava o Sol

De um lado cantava o sol, do outro, suspirava a lua. No meio, brilhava a tua face de ouro, girassol! montanha da saudade a que por acaso vim: outrora, foste um jardim, e s, agora, eternidade! De longe, recordo a cor da grande manh perdida. Morrem nos mares da vida todos os rios do amor? Ai! celebro-te em meu peito, em meu corao de sal, flor sobrenatural, grande girassol perfeito! Acabou-se-me o jardim! S me resta, do passado, este relgio dourado que ainda esperava por mim . . .

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Cronista Enamorado do Sagim O sagim um animalzinho assaz bonito: mesmo o mais bonito de todos, pela selva; anda nas rvores, esconde-se, espia, foge depressa e h deles, na terra viosa, nmero infinito. Se qualquer rei da Europa o visse, gostaria de possu-lo como um brinquedo, vindo de longe, e raro. Mas o sagim animalzinho to delicado que a uma viagem to longa no resistiria. A cara do sagim como a de um leozinho, e pode-se conseguir que ele pouse no nosso ombro. O sagim mais bonito de todos o sagim louro, que tem uma expresso de inteligncia e carinho.

Ele pode descer a comer nossa mo! Graciosa a sua maneira de olhar. Gracioso o movimento do seu corpo inteiro, to leve e breve! Mas os melhores, s no Rio de Janeiro se encontram: se encontram apenas nesta cidade, a mui formosa.

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Romance II ou do Ouro Incansvel Mil bateias vo rodando sobre crregos escuros; a terra vai sendo aberta por interminveis sulcos; infinitas galerias penetram morros profundos. De seu calmo esconderijo,

o ouro vem, dcil e ingnuo; torna-se p, folha, barra, prestgio, poder, engenho . . . to claro! e turva tudo: honra, amor e pensamento. Borda flores nos vestidos, sobe a opulentos altares, traa palcios e pontes, eleva os homens audazes, e acende paixes que alastram sinistras rivalidades. Pelos crregos, definham negros a rodar bateias. Morre-se de febre e fome sobre a riqueza da terra: uns querem metais luzentes, outros, as redradas pedras. Ladres e contrabandistas esto cercando os caminhos; cada famlia disputa privilgios mais antigos; os impostos vo crescendo e as cadeias vo subindo. Por dio, cobia, inveja, vai sendo o inferno traado. Os reis querem seus tributos, mas no se encontram vassalos.

Mil bateias vo rodando, mil bateias sem cansao. Mil galerias desabam; mil homens ficam sepultos; mil intrigas, mil enredos prendem culpados e justos; j ningum dorme tranqilo, que a noite um mundo de sustos. Descem fantasmas dos morros, vm almas dos cemitrios: todos pedem ouro e prata, e estendem punhos severos, mas vo sendo fabricadas muitas algemas de ferro.

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Romance XXI ou das Idias A vastido desses campos. A alta muralha das serras. As lavras inchadas de ouro. Os diamantes entre as pedras. Negros, ndios e mulatos. Almocrafes e gamelas. Os rios todos virados. Toda revirada, a terra. Capites, governadores, padres intendentes, poetas. Carros, liteiras douradas, cavalos de crina aberta. A gua a transbordar das fontes. Altares cheios de velas.

Cavalhadas. Luminrias. Sinos, procisses, promessas. Anjos e santos nascendo em mos de gangrena e lepra. Finas msicas broslando as alfaias das capelas. Todos os sonhos barrocos deslizando pelas pedras. Ptios de seixos. Escadas. Boticas. Pontes. Conversas. Gente que chega e que passa. E as idias. Amplas casas. Longos muros. Vida de sombras inquietas. Pelos cantos da alcovas, histerias de donzelas. Lamparinas, oratrios, blsamos, plulas, rezas. Orgulhosos sobrenomes. Intrincada parentela. No batuque das mulatas, a prospia degenera: pelas portas dos fidalgos, na l das noites secretas, meninos recm-nascidos como mendigos esperam. Bastardias. Desavenas. Emboscadas pela treva. Sesmarias, salteadores. Emaranhadas invejas.

O clero. A nobreza. O povo. E as idias. E as moblias de cabina. E as cortinas amarelas. Dom Jos. Dona Maria. Fogos. Mascaradas. Festas. Nascimentos. Batizados. Palavras que se interpretam nos discursos, nas sades . . . Visitas. Sermes de exquias. Os estudantes que partem. Os doutores que regressam. (Em redor das grandes luzes, h sempre sombras perversas. Sinistros corvos espreitam pelas douradas janelas.) E h mocidade! E h prestgio. E as idias. As esposas preguiosas na rede embalando as sestas. Negras de peitos robustos que os claros meninos cevam. Arapongas, papagaios, passarinhos da floresta. Essa lassido do tempo entre imbabas, quaresmas, cana, milho, bananeiras e a brisa que o riacho encrespa. Os rumores familiares

que a lenta vida atravessam: elefantase; partos; sarna; torceduras; quedas; sezes; picadas de cobras; sarampos e erisipelas . . . Candombeiros. Feiticeiros. Ungentos. Emplastos. Ervas. Senzalas. Tronco. Chibata. Congos. Angolas. Benguelas. imenso tumulto humano! E as idias. Banquetes. Gamo. Notcias. Livros. Gazetas. Querelas. Alvars. Decretos. Cartas. A Europa a ferver em guerras. Portugal todo de luto: triste Rainha o governa! Ouro! Ouro! Pedem mais ouro! E sugestes indiscretas: To longe o trono se encontra! Quem no Brasil o tivera! Ah, se Dom Jos II pe a coroa na testa! Uns poucos de americanos, por umas praias desertas, j libertaram seu povo da prepotente Inglaterra! Washington. Jefferson. Franklin. (Palpita a noite, repleta

de fantasmas, de pressgios . . .) E as idias. Doces invenes da Arcdia! Delicada primavera: pastoras, sonetos, liras, entre as ameaas austeras de mais impostos e taxas que uns protelam e outros negam. Casamentos impossveis. Calnias. Stiras. Essa paixo da mediocridade que na sombra se exaspera. E os versos de asas douradas, que amor trazem e amor levam . . . Anarda. Nise. Marlia . . . As verdades e as quimeras. Outras leis, outras pessoas. Novo mundo que comea. Nova raa. Outro destino. Planos de melhores eras. E os inimigos atentos, que, de olhos sinistros, velam. E os aleives. E as denncias. E as idias.

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Coliseu Cem mil pupilas houve: cem mil pupilas fitas na arena. Os olhos do Imperador, dos patrcios, dos soldados, da plebe. Os olhos da mulher formosa que os poetas cantaram. E os olhos da fera acossada, do lado oposto. Os olhos que ainda brilham fulvos, agora, na eternidade igual de todos. Cem mil pupilas:

melanclicas,

ilustres,

insensatas,

ferozes,

vagas, severas, lnguidas . . . Cem mil pupilas vem-se, na poeira da pedra deserta. Entre corredores e escadas, o cavo abismo do mido subsolo exala os soturnos prazeres antiguidade: Um vozeiro arcaico vem saindo da sombra, duras vozes romanas! um quente sangue vem golfando, negro sangue das feras! um grande aroma cruel se arredonda nas curvas pedras. surdo nome trmulo da morte! (No cairo jamais estas paredes, pregadas com este sangue e este rugido, a garra tensa, a goela arqueada em vcuo, as cordas do humano pasmo sobre o ltimo estertor . . .) Cem mil pupilas ficam aqui, pregadas nas pedras do tempo, manchadas de fogo e morte, no fim do dia trgico,

da

depois coincidncia

daquela

vida

e

acesa

quando convergiram nesta arena de angstia, que hoje p e silncio, esboroada solido. (As pregas dos vestidos deslizaram, frgeis. E os sorrisos perderam-se, fteis. Sobre o enorme espetculo, que foi o aroma dos cosmticos?)

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Presena em Pompia

Esta conta no pagars: ficar sob uma cinza que no sabes.

Sob a cinza que ainda no sabes ficar teu filho por nascer e tambm os meninos que j sabiam desenhar nos muros. Ficaro os figos que ontem puseste na cesta. Ficaro as pinturas da tua sala e as plantas do teu jardim, de esttuas felizes, sob a cinza que no sabes. Os gladiadores anunciados no lutaro e amanh no vers, prximo s termas, a mulher que desejavas. Tu ficars com a chave da tua porta na mo; tu, com o rosto da amada no peito; amo e servo se uniro, no mesmo grito; os ces se debatero com mordaas de lava; a mo no poder encontrar a parede; os olhos no podero ver a rua. As cinzas que no sabes voaro sobre Apolo e sis. uma noite ardente, a que se prepara, enquanto a luz contorna a coluna e o jato d'gua:

a luz do sol que afaga pela ltima vez as roseiras verdes.

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O Mosquito Escreve

O Mosquito pernilongo trana as pernas, faz um M, depois, treme, treme, treme, faz um O bastante oblongo, faz um S. O mosquito sobe e desce. Com artes que ningum v, faz um Q, faz um U e faz um I.

Esse mosquito esquisito cruza as patas, faz um T. E a, se arredonda e faz outro O, mais bonito. Oh! j no analfabeto, esse inseto, pois sabe escrever o seu nome. Mas depois vai procurar algum que possa picar, pois escrever cansa, no , criana? E ele est com muita fome.

(Ceclia Meileles in Ou isto ou aquilo)

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O canteiro est molhado O canteiro est molhado. Trarei flores do canteiro, Para cobrir o teu sono. Dorme, dorme, a chuva desce, Molha as flores do canteiro. Noite molhada de chuva, Sem vento, nem ventania, Noite de mar e lembranas..."

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Cantiga BEM-TE-VI que ests cantando nos ramos da madrugada, por muito que tenhas visto, juro que no viste nada. No viste as ondas que vinham to desmanchadas na areia, quase vida, quase morte, quase corpo de sereia... E as nuvens que vo andando com marcha e atitude de homem, com a mesma atitude e marcha tanto chegam como somem.

No viste as letras, que apostam formar idias com o vento... E as mos da noite quebrando os talos do pensamento. Passarinho tolo, tolo, de olhinhos arregalados... Bemtevi, que nunca viste como os meus olhos fechados... *************

O RessuscitanteA Ester de Cceres

Meus ps, minhas mos

meu rosto, meu flanco, --- fogo de papoulas ! E hoje, lrio branco ! Pela minha boca, por minhas olheiras, --- arroios partidos ! E hoje, albas inteiras ! Eu era o guardado de sinistras covas ! E hoje visto nuvens cndidas e novas ! Vi apodrecendo, com dor, sem lamento, meu corpo, meu sonho e meu pensamento ! E hoje, sou levado por entre as cadas coisas, --- transparente ! (Aroma sem nardo!) Fuga sem violncia!) E de cada lado choram doloridas mos de antiga gente. *************

INSCRIO NA AREIA O meu amor no tem importncia nenhuma. No tem o peso nem de uma rosa de espuma ! Desfolha-se por quem ? Para quem se perfuma ? O meu amor no tem importncia nenhuma.

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PERGUNTA Estes meus tristes pensamentos vieram de estrelas desfolhadas pela boca brusca dos ventos ? Nasceram das encruzilhadas, onde os espritos defuntos pem no presente horas passadas ? Originaram-se de assuntos pelo raciocnio dispersos, e depois na saudade juntos ? Subiram de mundos submersos em mares, tmulos ou almas, em msica, em mrmore, em versos ? Cairiam das noites calmas, dos caminhos dos luares lisos, em que o sono abre mansas palmas ? Provm de fatos indecisos, acontecidos entre brumas, na era de extintos parasos ? Ou de algum cenrio de espumas,

onde as almas deslizam frias, sem aspiraes mais nenhumas ? Ou de ardentes e inteis dias, com figuras alucinadas por desejos e covardias ? ... Foram as esttuas paradas em roda da gua do jardim... ? Foram as luzes apagadas ? Ou sero feitos s de mim, estes meus tristes pensamentos que biam como peixes lentos num rio de tdio sem fim ? *************

CANO EXCNTRICA Ando procura de espao para o desenho da vida. Em nmeros me embarao e perco sempre a medida. Se penso encontrar a sada, em vez de abrir um compasso,

projeto-me num abrao e gero uma despedida. Se volto sobre o meu passo j distncia perdida. Meu corao, coisa de ao, comea a achar um cansao esta procura de espao para o desenho da vida. J por exausta e descrida no me animo a um breve trao: --- saudosa do que no fao, -- do que fao, arrependida. ****************

CANO QUASE INQUIETA De um lado, a eterna estrela, E do outro a vaga incerta, meu p danando pela extremidade da espuma, e meu cabelo por uma

plancie de luz deserta. Sempre assim: de um lado, estandartes do vento... --- do outro, sepulcros fechados. E eu me partindo, dentro de mim, para estar no mesmo momento de ambos os lados. Se existe a tua Figura, se s o Sentido do Mundo, deixo-me, fujo por ti, nunca mais quero ser minha ! (Mas, neste espelho, no fundo desta fria luz marinha, como dois baos peixes, nadam meus olhos minha procura ... Ando contigo --- e sozinha. Vivo longe --- e acham-me aqui ...) Fazedor da minha vida, no me deixes ! Entende a minha cano ! Tem pena do meu murmrio rene-me em tua mo ! Que eu sou gota de mercrio dividida desmanchada pelo cho ... *****************

LUA ADVERSA Tenho fases, como a lua Fases de andar escondida, fases de vir para a rua... Perdio da minha vida ! Perdio da vida minha ! Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha. Fases que vo e que vm, no secreto calendrio que um astrlogo arbitrrio inventou para meu uso. E roda a melancolia seu interminvel fuso ! No me encontro com ningum (tenho fases, como a lua ...) No dia de algum ser meu no dia de eu ser sua ... E, quando chega esse dia, o outro desapareceu ...

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SUGESTO Sede assim --- qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre, sem pergunta. Onda que se esfora, Por exerccio desinteressado. Lua que envolve igualmente os noivos abraados e os soldados j frios. Tambm como este ar da noite: sussurrante de silncios cheio de nascimentos e ptalas. Igual pedra detida, sustentando seu demorado destino E nuvem, leve e bela, vivendo de nunca chegar a ser. cigarra, queimando-se em msica ao camelo que mastiga sua longa solido,

ao pssaro que procura o fim do mundo, ao boi que vai com inocncia para a morte. Sede assim qualquer coisa Serena, isenta, fiel. No como o resto dos homens. **************

CANTARO OS GALOS Cantaro os galos, quando morrermos, e uma brisa leve, de mos delicadas, tocar nas franjas, nas sdas morturias. E o sono da noite ir transpirando sobre as claras vidraas. E os grilos, ao longe, serraro silncios,

talos de cristal, frios, longos ermos, e o enorme aroma das rvores. Ah, que doce lua ver nossa calma face ainda mais calma que o seu grande espelho de prata ! Que frescura espessa em nossos cabelos, livres como os campos pela madrugada ! Na nvoa da aurora, a ltima estrela subir plida. Que grande sossego, sem falas humanas, sem o lbio dos rostos de lobo, sem dio, sem amor, sem nada ! Como escuros profetas perdidos, conversaro apenas os ces, pelas vrzeas. Fortes perguntas. Vastas pausas. Ns estaremos na morte com aquele suave contorno de uma concha dentro da gua. ***************

O CAVALO MORTO

Vi a nvoa da madrugada deslizar seus gestos de prata mover densidades de opala naquele prtico de sono. Na fronteira havia um cavalo morto. Gros de cristal rolavam pelo seu flanco ntido; e algum vento torcia-lhes as crinas, pequeno, leve arabesco, triste adorno, --- e movia a cauda ao cavalo morto. As estrelas ainda viviam e ainda no eram nascidas ah ! as flores daquele dia ... --- mas era um canteiro o seu corpo: um jardim de lrios, o cavalo morto. Muitos viajantes contemplaram a fluida msica, a orvalhada das grandes moscas de esmeralda chegando em rumoroso jorro. Adernava triste, o cavalo morto. E viam-se uns cavalos vivos, altos como esbeltos navios, galopando nos ares finos, com felizes perfis de sonho. Branco e verde via-se o cavalo morto, no campo enorme e sem recurso, --- e devagar girava o mundo entre as suas pestanas, turvo como em luas de espelho roxo. Dava sol nos dentes do cavalo morto.

Mas todos tinham muita pressa, e no sentiram como a terra procurava, de lgua em lgua, o gil, o imenso, o etreo sopro que faltava quele arcabouo. To pesado, o peito do cavalo morto !

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TRAPEZISTA (JOGOS OLMPICOS) De que maneira chegaremos s brancas portas da Via-Lctea ? Ser com asas ou com remos ? Ser com os msculos com que saltas ? Leva-me agarrada aos teus ombros como um cendal para agasalhar-te ! Seremos pssaros ou anjos atravessando a sombra da tarde ! Deixaremos a terra juntos e justapostos como metades, sem o triste p dos defuntos, sem qualquer bruma que enlute os ares !

Sem nada de humanos assuntos: muito mais puros, muito mais graves ! ****************

CANO DO DESERTO Pelo horizonte de areias, reclina-se a voz do canto. A moa diz, muito longe: "Eu sou a rosa do campo ..." O beduno pra e escuta, vestido de pensamento, sozinho, entre as margens de ouro do ar e do deserto imenso. "Eu sou a rosa do campo..." E olhando para as ovelhas sente o cho verde e macio e flores pelas areias. "Eu sou a rosa do campo..." Mas tudo o que ouve e est vendo poeira, apenas, que voa: o vento d voz ao vento ...

CECLIA MEIRELES1901 19641901: 7 de novembro, Rio de Janeiro: nasce Ceclia Meireles. Seus pais: Carlos Alberto de Carvalho Meireles e Matilde Benevides. Ambos morreram cedo: o pai, trs meses antes do nascimento da filha; a me faleceu quando Ceclia tinha 3 anos de idade. Os avs paternos: Joo Correia Meireles, portugus, funcionrio da Alfndega do Rio de Janeiro, e D. Amlia Meireles, ambos falecidos. A av materna, D.Jacinta Garcia Benevides, aoriana, cuidou da menina, como tutora. 1910: Termina o Curso Primrio, na Escola Estcio de S. Recebe medalha de ouro das mos do poeta Olavo Bilac, ento Inspetor Escolar do Distrito Federal. Na adolescncia: paixo pelos livros. Estuda histria, lnguas, filosofia, estudos orientais, que continuaram sempre. Nasce o entusiasmo pelo Oriente. 1917: Diploma-se na Escola Normal (Instituto de Educao). Desde ento exerce o Magistrio. Segue os estudos no Conservatrio Nacional de Msica. 1919: O primeiro livro de versos, Espectros, recebe elogios da crtica. 1922: Casa-se com o artista plstico portugus, Fernando Correia Dias. Desse casamento nascem trs filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda (esta vir a ser uma famosa atriz do teatro brasileiro). 1924: Escreve Criana meu amor, adotado pelas escolas municipais. 1929: Edita a conferncia O esprito vitorioso, apresentada no Concurso para vaga na ctedra de Literatura Brasileira, no Instituto de Educao. 1930/1934: Atividade jornalstica intensa: dirige uma pgina diria sobre Educao no jornal Dirio de Notcias. Faz crticas ao Governo de Getlio Vargas em defesa de uma nova escola. 1934: Passa a dirigir o Instituto Infantil, no Pavilho Mourisco. Cria uma Biblioteca Infantil. Neste mesmo ano faz a primeira viagem ao exterior.Visita Portugal acompanhada do marido, a convite da Secretaria de Propaganda desse pas. Intensa atividade cultural em Lisboa e Coimbra. Nascem grandes amizades. 1935: Leciona Literatura Brasileira na recm fundada Universidade do Distrito Federal (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Suicdio do marido. 1936/1938: Dificuldades econmicas lhe exigem muito trabalho: ministra cursos de Tcnica e Crtica Literria; sobre Literatura Comparada e Literatura Oriental. Escreve regularmente em vrios jornais (A Manh, Correio Paulistano, A Nao).Trabalha no departamento de Imprensa e Propaganda como responsvel pela revista Travel in Brazil. 1938: Seu livro Viagem recebe o Prmio Poesia da Academia Brasileira de Letras. Conhece o mdico

Heitor Grilo. Casam-se no ano seguinte. Viagem aos Estados Unidos e Mxico. Ministra cursos de Literatura Brasileira na Universidade do Texas. 1939: Viagem editado em Lisboa. 1940: Nos Estados Unidos leciona Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas. Faz conferncias sobre literatura, folclore e educao no Mxico. 1942/1944: Publica Vaga Msica. No jornal A Manh, escreve importantes estudos sobre folclore infantil. 1944: Visita Uruguai e Argentina. 1945: Publica Mar Absoluto. A famlia muda-se para o Cosme Velho. 1948: Instalao da Comisso Nacional de Folclore. tratada como autoridade no assunto. 1949: Mais um livro: Retrato Natural. 1951: Secretaria o Primeiro Congresso Nacional de Folclore (Rio Grande do Sul). Viagem Europa (Frana, Blgica, Holanda e Portugal). Publica Amor em Leonoreta. 1952: Recebe o Grau de Oficial da Ordem do Mrito, do Chile. Scia honorria do Gabinete Portugus de Leitura, do Instituto Vasco da Gama, de Goa, na ndia. Lana: Doze noturnos de Holanda & O Aeronauta. 1953: Afinal sai O Romanceiro da Inconfidncia, a obra prima. A convite do primeiro ministro Nehru, participa de Simpsio sobre a obra de Gandhi, na ndia. Recebe ttulo Doutor Honoris Causa pela Universidade de Deli. Compe Poemas escritos na ndia. Passagem pela Itlia: nascem os Poemas Italianos. ndia, Goa e Europa... Pequeno Oratrio de Santa Clara. 1954: Novas viagens: Europa e, agora, Aores. 1956: Publica Canes. 1957: Viaja a Porto Rico. 1958: Faz conferncia em Israel. Visita aos lugares santos. Publicao da Obra Completa pela editora Jos Aguilar. 1960: Publica Metal Rosicler. 1963: O ltimo livro publicado em vida, Solombra. 1964: Morre em 9 de novembro. Repousa no Cemitrio So Joo Batista (Botafogo, Rio de Janeiro) tmulo n.8951, quadra 14. Uma lpide simples contm apenas nome e data, 19011964. 1965: A Academia Brasileira de Letras confere-lhe o Prmio Machado de Assis, post mortem, pelo conjunto de sua obra.

Lcia Helena Vianna

SEUS LIVROSEspectros, 1919 Nunca mais... e Poema dos Poemas, 1923 Baladas para El-Rei, 1925 Criana, meu amor, 1927 Viagem, 1939 Vaga msica, 1942 Mar Absoluto e Outros Poemas, 1945 Retrato natural, 1949 Amor em Leonoreta, 1951 Dez noturnos de Holanda & O aeronauta, 1952 Romanceiro da Inconfidncia, 1953 Pequeno Oratrio de Santa Clara, 1955 Pistia, Cemitrio Militar Brasileiro, 1955 Canes, 1956 Romance de Santa Ceclia, 1957 Obra potica, 1958 Metal Rosicler, 1960 Poemas escritos na ndia, 1961 Solombra, 1963 Ou isto ou aquilo, 1964 Crnica trovada da cidade de Sam Sebastiam, 1965 Poemas italianos, 1968 Ou isto ou aquilo & Inditos, 1969 Cnticos, 1981 Oratrio de Santa Maria Egipcaca, 1986 . Desde 1998 vem sendo desenvolvido projeto de publicao de toda a obra em prosa da poeta, coordenado pelo camonista Leodegrio de Azevedo Filho. Em 2001, em comemorao ao centenrio de nascimento, a Editora Nova Fronteia, do Rio de Janeiro, publica Poesia Completa, em dois volumes. Edio organizada por Antonio Carlos Secchin.

HISTRIA DA VIDA A vida s possvel reinventada- Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chal. Na ponta do chal brilhava um grande ovo de loua azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias lmpidos, quando o cu ficava da mesma cor do ovo de loua, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criana, achava essa iluso maravilhosa, e sentia-me completamente feliz. (...) (Arte de ser feliz, Escolha seu sonho)

L est ela. Janela aberta ao sol. Observo seu vulto distncia . Percebo a respirao profunda que sorve lentamente o ar fresco e puro da manh. Debrua-se sobre o parapeito e fica a contemplar o jardim. Parece estar completamente feliz. Respeito este momento de sua intimidade, espero um tanto para me aproximar e provocar esta conversa imaginria, mas perfeitamente possvel. Ouo o chamado em voz quase imperceptvel: Vinde ouvir a histria da vida ...

INFNCIADia 7 de novembro de 1901. Ceclia Meireles nasce na Rua da Colina, Tijuca, Rio de Janeiro. Signo: Escorpio. Signo de gua, regido por Marte e Pluto. Marte impulsiona a luta, as aes e realizaes; Pluto traz perdas, transformaes profundas e capacidade de se reerguer frente s intempries. Fica rf muito cedo. No chega a conhecer o pai Carlos Alberto de Carvalho Meireles - falecido aos

26 anos, trs meses antes de ela nascer. No conheceu os irmozinhos, Vtor, Carlos e Carmem: - Todos morreram antes de meu nascimento. E minha me (Matilde Benevides Meirelles) se foi quando eu tinha apenas trs anos. Fui criada por minha av materna, Jacinta Garcia Benevides, nascida nos Aores, Ilha de So Miguel. Essas e outras perdas ocorridas na famlia do pequena Ceclia intimidade com a morte e a certeza de que nada para sempre. Atributos para sua reserva lrica: - Minha infncia de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silncio e solido. Preciso deles para escrever. Enquanto borda, D. Jacinta canta cantigas antigas da Ilha de So Miguel. No imaginrio infantil comea a tecer-se o tapete feito de lirismo popular: a voz da av vai lhe ensinando os enigmas da vida cifrados nos ditos populares: - Nem por muito madrugar amanhece mais cedo, - Duro com duro no faz bom muro, - Uma andorinha s no faz vero. - Tudo quanto recebi, naquele tempo, vi, ouvi, toquei, senti, - perdura em mim com uma intensidade potica inextinguvel .... memria desta av mtica, falecida em 1932, Ceclia dedica uma Elegia: Minha primeira lgrima caiu dentro de teus olhos. Tive medo de a enxugar: para no saberes que havia cado. No dia seguinte, estavas imvel, na tua forma

definitiva, Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mos. Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesma claridade da lua. Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuas plpebras, E a voz dos pssaros e a das guas correr, - sem que a recolhessem teus ouvidos inertes. Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos mveis? No teto? Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho, E tristemente te procurava. Mas tambm isso foi intil, como tudo mais. (OC,465) Das perdas to precoces fica-lhe a conscincia do efmero...: Sei que canto. E a cano tudo, Tem sangue eterno e asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: mais nada. (Motivo ,Viagem) ... e o desejo de buscar algo irrevelado e distante: o sonho. Pus o meu sonho num navio E o navio em cima do mar; - depois, abri o mar com as mos Para o meu sonho naufragar. (Cano, Viagem)

Em 1910 conclui o curso primrio na Escola Estcio de S com distino e louvor. Recebe das mos do poeta Olavo Bilac medalha de ouro, com o nome gravado. Sete anos depois termina a Escola Normal, no Instituto de Educao do Rio de Janeiro. Segue estudando sempre: msica, no Conservatrio Nacional, canto, violino, estuda lnguas e pesquisa sobre o Oriente histria, lnguas, filosofia.

PROFESSORA COMO A ME(...) Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. sombra da rvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianas. E contava histrias. Eu no a podia ouvir (...) foi muito longe, num idioma difcil. Mas as crianas tinham tal expresso no rosto, e s vezes faziam com as mos arabescos to compreensveis, que eu participava do auditrio, (...) - e me sentia completamente feliz.(...) - Minha me tinha sido professora primria (a primeira professora a formar-se no Brasil) e eu gostava de estudar nos seus livros. Velhos livros de famlia que me seduziam muito. Assim como as partituras e livros de msica. A educao (...) uma causa que abrao com paixo assim como a poesia. A criana eterno motivo de ternura e para ela escreve Criana, meu amor (1927) e Ou isto ou aquilo (1964, post mortem): Ou se tem chuva e no se tem sol, Ou se tem sol e no se tem chuva!

Ou se cala a luva e no se pe o anel; Ou se pe o anel e no se cala a luva! Quem sobe nos ares no fica no cho, Quem fica no cho no sobe nos ares. uma grande pena que no se possa Estar ao mesmo tempo nos dois lugares! A Educao uma causa e um compromisso. a sua militncia. Exerce o magistrio at 1951 (aposenta-se como Diretora de Escola). Defende os ideais da Nova Escola, propostos por Fernando Azevedo e Ansio Teixeira: desejam uma escola que proporcione o desenvolvimento integral da criana. De 1930 a 1934 dirige seo diria sobre Educao no jornal Dirio de Notcias, do Rio de Janeiro .O seu entusiasmo leva-a a criar uma Biblioteca Infantil, no Pavilho Mourisco, em Botafogo. a primeira no gnero, germe para inmeras outras que se espalham pelo Brasil.

MAS COMO DESCREVER CECLIA?Eis como ela nos responde: - Acho que no saberia fazer isso fora da poesia. Mais me agrada e diverte um flash que o Joo Cond, publicou nos Arquivos Implacveis, na revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro, em 31 de dezembro de 1955: No tem medo de viajar de avio em viagens longas. Gostaria de tornar a visitar o oriente e chegar at a China.(...). Nome: Ceclia Meireles - Nasceu no Distrito Federal (hoje cidade do Rio de Janeiro) Casada, trs filhas e dois netos.

Altura, 1,64 - Peso 59 quilos e cala sapatos nmero 37. quase vegetariana. No fuma, no bebe, no joga. No pratica nenhum esporte, mas gosta muito de caminhar e acha que seria capaz de dar a volta ao mundo a p. No gosta de futebol e raramente vai ao cinema. Gosta de bom teatro. Responde pontualmente todas as cartas que recebe, mas atrasa-se s vezes, em agradecer livros, porque s agradece depois de os ler. Adora msica, especialmente canes medievais, espanholas e orientais. - Poetas preferidos: todos os bons poetas. Prefere pintores flamengos. Dorme e acorda cedo. Leu Ea de Queirs antes dos 13 anos. Escreveu o seu primeiro verso aos 9 anos. Estudou canto, violo, violino e, s vezes, desenha. Se pudesse recomear a vida gostaria de ser a mesma coisa, porm melhor. Seu primeiro livro publicado foi Espectros, tinha 16 anos. Principal defeito: uma certa ausncia do mundo. Seu tormento: desejar fazer o bem a pessoas que precisam de auxlio e no o aceitam. Nunca viu assombrao, mas gostaria de ver. Livros, livros, livros, noite com estrelas e nuvens ao mesmo tempo, acha que no tem medo da morte. Gostaria de morrer em paz.

TRAJETRIA POTICA1919. Publica o primeiro livro, Espectros. Recebe crticas elogiosas. O respeitvel Joo Ribeiro antev futuro promissor para a jovem escritora: em breve, e

sem grande esforo, poder lograr a reputao de poetisa que de justia lhe cabe.

CECLIA E O MODERNISMOComo se situa Ceclia no movimento renovador na literatura e nas artes que eclode com a Semana de Arte Moderna de 1922? Que lugar ocupa junto aos poetas revolucionrios dessa dcada, Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo - os poetas paulistas, alinhados em torno da Revista Klaxon? No, Ceclia Meireles no est com eles nessa primeira hora. No participa diretamente do movimento de ruptura e vanguardismo deflagrado pelos paulistas. Seus primeiros livros merecem a ateno de um outro grupo . O dos poetas da Revista Festa, do Rio de Janeiro, Andrade Murici, Tasso da Silveira, Murilo Arajo. Poetas que defendem uma poesia imbuda de elementos espirituais, de preocupaes transcendentes, filosficas e religiosas. Nos livros da dcada de 20 - Nunca mais... e Poema dos poemas (1923), assim como Balada para El-Rei (1925) - ainda ressoam os tons simbolistas e algum formalismo parnasiano. Fiel a si mesma, sua intuio lrica no se prende a correntes literrias: Teus olhos tristes, d Agnus Dei, So minha glria e minha beno, Depois de tudo que passei... (...) Sobre a minha alma, toda a vi Teus olhos tristes; d Agnus Dei! (Oferenda , Balada para El-Rei) Com o livro Viagem, de 1938, Ceclia encontra seu estilo definitivo.O verso meldico sustenta os motivos

fundadores de sua potica sonho, solido, mar, cano, melancolia, nuvens, cu, morte... Recebe o Prmio Poesia da Academia Brasileira de Letras. No julgamento, Cassiano Ricardo argumenta em favor dessa obra e salienta a modernidade de sua fatura. Em 1939 Mrio de Andrade escreve um artigo conclusivo sobre a poeta:. (...) Jamais a poesia nacional alcanou tamanha evanescncia tanto verbal como psquica. (...) Ceclia est construindo sua trajetria pblica. Firmase entre os maiores poetas nacionais. Para Eliane Zagury, a poeta representa a mais pura tradio lrica voltada sobre si mesma, autotematizada.

E A VIDA PESSOAL, COMO VAI?Jovem, elegante e muito bonita, causa frisson quando entra na Livraria So Jos, no Centro do Rio, procura de algum livro. Na roda de escritores que freqentam a tradicional casa de livros, olhos compridos seguem-na. Perguntam entre si o que faz a linda mulher com um livro to pesado - o Coro. Entre 1919 e 1920 Ceclia conhece na redao da Revista da Semana um jovem artista plstico portugus Fernando Correia Dias capista de primeira, ceramista, ilustrador e artista grfico, reconhecido em Portugal e j amigo de personalidades literrias e artsticas no Brasil, como lvaro Moreyra, Olegrio Mariano, Menoti Del Picchia e Guilherme de Almeida.. Uma poeta, jovem e bela; um artista culto, viajado e sedutor. Bons personagens para uma histria de amor.

Casam-se em 24 de outubro de 1922. Ela, com 20 anos, ele com 29. De novo a presena lusa na vida de Ceclia. Ele faz belas ilustraes para os livros dela. Ela o presenteia com trs filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda (esta vir a ser uma famosa atriz do teatro brasileiro). Em casa Ceclia uma me como as outras. Ralha, disciplina, e faz bolo coberto com calda de laranja. noite, depois do jantar, reunidas na sala de visitas, l histrias para as meninas (ah, ainda no havia a televiso nas nossas vidas!), pega do violo e dedilha cantigas, canta algumas, ou descreve os detalhes deste ou daquele objeto que ornamenta a casa.

O SONHO VIOLENTADOEm 1934 a mulher brasileira conquista o direito ao voto. Ceclia no se encontra entre aquelas que lutaram nas praas pblicas por esse direito. Por qu? Porque outro o seu campo de ao social. Ela est nos jornais e nas escolas. Nesse mesmo ano chamada para dirigir o Centro Infantil, a ser instalado no Pavilho Mourisco, em Botafogo. V no convite a possibilidade de pr em prtica as idias sobre o novo modelo de educao que tanto tem defendido na imprensa. Constri a a primeira Biblioteca Infantil da cidade do Rio de Janeiro. Correia Dias transforma o poro numa cidade encantada. Ali as crianas podem afinal exercer livremente a sua imaginao em atividades criativas vrias: pintura, leitura, msica, desenho. O sonho, porm, como todo sonho, no dura muito. Intrigas polticas levam ao fechamento da biblioteca. Violenta devassa, promovida pela Polcia Poltica do governo de Getlio Vargas, destri inclusive cermicas de inspirao marajoara criadas por Correia

Dias. A explicao para tal vandalismo: livros, considerados perigosos educao infantil, entre eles, (pasmem!) As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain. Uma ironia, um contra-senso, acontecer isso logo com ela. Apesar de progressista, sempre fora ctica demais para aderir a qualquer partido poltico e bastante espiritualista para deixar-se seduzir pelo marxismo. Coisas da ditadura.

NAVEGAR PRECISO...- Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existncia? E que mos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao receb-las? Eu no era mais criana, porm minha alma ficava completamente feliz. De 1934 at sua morte, Ceclia Meireles faz inmeras viagens. Nesse ano visita Portugal pela primeira vez, a convite da Secretaria de Propaganda desse pas. Em 1940, conhece os Estados Unidos: d curso de Literatura Brasileira na Universidade do Texas. Fala sobre folclore e educao no Mxico. Em 1944 visita Uruguai e Argentina. Em 1951 volta Europa: Frana, Blgica, Holanda, Portugal.1952: Chile. 1953: ndia, Goa, Itlia. 1954: Europa e, afinal, conhece os Aores. 1957: Porto Rico. 1958: Conferncia em Israel. Na ndia, recebe o ttulo Doutor Honoris Causa da Universidade de Deli. Sua Elegia a Gandhi traduzida para vrias lnguas:

(...) Tua fogueira est ardendo. O Ganges te levar para longe, Punhado de cinza que as guas beijaro infinitamente. Que o sol levantar das guas at as infinitas mos de Deus. (...) O vento est dispersando as falas de Deus entre as mil lnguas de fogo. Entre as mil rosas de cinza dos teus velhos ossos, Mahatma. Volta das viagens com a mala repleta de versos: Poemas escritos na ndia, Poemas italianos, Oratrios de Santa Clara...

MAR PORTUGUSNa agenda de viagens Portugal ocupa um lugar de relevo. 12 de outubro de 1934. O Dirio de Lisboa estampa foto de Ceclia e Fernando ainda a bordo do Cuyab. Cais de Alcntara. Desembarcam em Lisboa recebidos pela fina flor da intelectualidade lusa. L esto a esper-los aqueles que se tornaro amizades duradouras: o crtico Jos Osrio de Oliveira, o ilustrador Pedro Bordalo Pinheiro, Simo Coelho Folho, o crtico de arte Guilherme Pereira de Carvalho, Manuel Mendes, Carlos Queiroz. No Estoril aguarda-a a poeta Fernanda de Castro, que h muito reitera os convites para que a brasileira faa conferncias e palestras nas universidades portuguesas. os amigos so uma forma animada de poesia

Portugal, a ptria ancestral. A herana aoriana, o casamento com um artista portugus de prestgio, agregados qualidade de seu lirismo, abrem-lhe caminho para o reconhecimento pblico em terra lusitana . Contatos com a imprensa, com editores, com crticos. Capitaliza reconhecimento e admirao. Para Jorge de Sena, como Pessoa ou Rilke, Ceclia era filha moderna do simbolismo antigo.

TANTO SUCESSO E UMA DECEPODezembro. Noite chuvosa e fria em Lisboa. No caf A Brasileira, no Chiado, h quase duas horas Ceclia e o Correia Dias esperam. Esperam por aquele que Ceclia Meireles tanto deseja conhecer e sobre cuja poesia tem sido a primeira a dar notcia no Brasil. Quase duas horas e nada! Fernando acha melhor desistir: - Vamos, Ceclia, ele no vir! - Podemos aguardar um pouco mais, quem sabe, ocorreu um imprevisto... Em Lisboa, Ceclia falha um - No, perda de tempo. Eu o conheo bem, se no encontro com Fernando veio at agora, no vir mais. Pessoa. De volta ao Hotel, recebem o pequeno volume, com os dizeres: A Ceclia Meyreles , alto poeta, e a Correia Dias, artista, velho amigo e at cmplice (vide "guia, etc... ), na invocao da Apolo e Atena, Fernando Pessoa, 10 XII 34. um exemplar de Mensagem, recentemente publicado. Um carto lacnico acusa o recebimento : Ceclia Meireles - cumprimenta e agradece.

Dez anos depois, escreve ao amigo Armando Costa Rodrigues : Como lamento no o ter conhecido!. E num dilogo surdo com aquele que tanto admirava, rebate: Mas tu preferes a penumbra dos cafs sonolentos, em cujas mesas todos os poetas da Lusitnia fincam algum dia o cotovelo e, fronte apoiada ao punho, criam aqueles sonhos que eles mesmos no governam (...) (Evocao lrica de Lisboa, crnica)

DE VOLTA AO RIOEm 12 de Janeiro de 1935 est de novo em casa. Reencontra o pas vivendo um clima de medo, de ameaas e perseguies. O Governo Vargas torna-se uma ditadura cruel. Retoma as atividades no Pavilho Mourisco. Assume a cadeira de Literatura LusoBrasileira na Faculdade de Filosofia e Letras da recm fundada Universidade do Distrito Federal. Na vida pessoal, sucedem-se as crises de depresso do marido. Crises que o levam ao suicdio em 19 de novembro desse ano. Foram 13 anos de angstias sobre essa tragdia, tentando domin-la. Uma Cano pstuma d a medida da dor sublimada em poesia: Fiz uma cano para dar-te; porm tu j estavas morrendo. A Morte um poderoso vento, E um suspiro to tmido, a Arte... um suspiro tmido e breve como o da respirao diria. Choro de pomba. E a Morte uma guia cujo grito ningum descreve.

Vim cantar-te a cano do mundo, mas ests de ouvidos fechados para os meus lbios inexatos, - atento a um canto mais profundo. E estou como algum que chegasse ao centro do mar, comparando aquele universo de pranto com a lgrima de sua face. E agora fecho grandes portas sobre a cano que chegou tarde, - E sofro sem saber de que Arte se ocupam as pessoas mortas. Por isso to desesperada a pequena, humana cantiga, Talvez dure mais do que a vida, Mas Morte no diz mais nada. (Cano pstuma, Retrato natural)

Nos anos seguintes, viva, sem nenhum parente, com trs filhas para educar, as dificuldades econmicas exigem-lhe intenso trabalho. D aulas de Tcnica e Critica Literria, Literatura Comparada e de Literatura Oriental na Universidade. Trabalha ainda no Departamento de Imprensa e Propaganda onde dirige a revista Travel in Brazil.

"E AQUI ESTOU, CANTANDO"

Fins de 1938, incio de 1939. Abre-se novo ciclo de realizaes. Reorganizao da vida afetiva e familiar. Conhece o mdico Heitor Grilo. Casam-se em 1939. Consagrao na vida pblica: Viagem publicado em Lisboa. A poeta segue sua trajetria. Eu canto porque o instante existe E a minha vida est completa. No sou alegre nem sou triste: Sou poeta. Irmo das coisas fugidias, No sinto gozo nem tormento, Atravesso noites e dias No vento. Se desmorono ou se edifico, Se permaneo ou me desfao, - no sei, no sei. No sei se fico ou passo. Sei que canto. E a cano tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada. (Motivo)

O primeiro dos vrios auto-retratos registra precocemente os efeitos das mudanas: Eu no tinha este rosto de hoje, Assim calmo, assim triste, assim magro, Nem estes olhos to vazios, Nem o lbio amargo. Eu no tinha estas mos sem fora, To paradas e frias e mortas; Eu no tinha este corao Que nem se mostra.

Eu no dei por esta mudana, To simples, to certa, to fcil: - Em que espelho ficou perdida a minha face? (Retrato)

SOBRE O VAZIO DAS PEDRAS, CONSTROI SUA CATEDRALAs publicaes se sucedem. A dcada de 40 ser das mais produtivas na vida da poeta. Publica Vaga Msica em 1942. Em 1945, Mar Absoluto; Retrato Natural em 1949. De um livro ao outro o caminho se faz sem tropeos, fiel aos motivos fundadores de seu lirismo: mar, msica, melancolia, orfandade. tempo de guerra. Tempo de homens partidos, canta Carlos Drummond de Andrade, contemporneo e admirador da poeta. Como ele Ceclia proclama a contraditria condio humana: Ns merecemos a morte, Porque somos humanos E a guerra feita pelas nossas mos, (...) Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia, Os clculos do gesto, Embora sabendo que somos irmos. Temos at os tomos por cmplices, e que pecados De cincia, pelo mar, pelas nuvens, nos astros! Que delrio sem Deus, nossa imaginao! (Lamento do oficial por seu cavalo morto) No livro de 1949, poemas mais modernos e despojados expem o carter afetivo da participao

de Ceclia nas dores do mundo: Dez bailarinas deslizam Por um cho de espelho. Tm corpos egpcios com placas douradas, Plpebras azuis e dedos vermelhos. Levantam vus brancos, de ingnuos aromas, E dobram amarelos joelhos. (...) os homens gordos olham com um tdio enorme as dez bailarinas to frias. Pobres serpentes sem luxria, Que so crianas, durante o dia. Dez anjos annimos, de axilas profundas, Embalsamados de melancolia. Vo perpassando como dez mmias As bailarinas fatigadas. Ramo de nardos inclinando flores Azuis, brancas, verdes, douradas. Dez mes chorariam, se vissem As bailarinas de mos dadas. (Balada das dez bailarinas no cassino) No ano de 1945 muda-se para a casa do Cosme Velho, onde viver at o fim de seus dias. Nos anos seguintes dedica-se a escrever peas de teatro (A nau catarineta, 1946; O menino atrasado, 1966). Inicia as pesquisas sobre a poca colonial brasileira . Tem em mente ambicioso projeto: um pico que resgate lendas, tradies, misticismos em torno da frustrada Conjurao Mineira. O folclore, outra de suas paixes, ocupa a agenda no ano de 1948. Ceclia tratada como especialista na Comisso Nacional de Folclore. E em 1951 secretaria o Primeiro Congresso Nacional de Folclore, no Rio Grande do Sul.

DE NOVO EM PORTUGALNo te aflijas, com a ptala que voa, Tambm ser, deixar de ser assim. Os Aores, enfim. No ano de 1951 pode atender aos convites sempre renovados dos velhos amigos, Armando Cortes-Rodrigues e Jos Bruges. A viso real da Ilha de So Miguel parece no lhe causar surpresa : A paisagem como se fosse a do meu quintal, na infncia. Emoo ao conhecer sua alma irm de longa e profunda correspondncia (246 cartas): AQUELE que caminha ao longo das praias E vai dando a volta sua Ilha, Fala com pescadores e sereias Com a maior naturalidade. (...) tem seu mapa de afetos, sua linguagem de canes, sopra endereos no vento, depois de assinar com letra pequenina: ARMANDO CORTES- RODRIGUES. (Inscrio natalcia)

Ainda em 1951, publica Amor em Leonoreta e, no ano seguinte, Doze noturnos de Holanda & O Aeronauta. Trabalha incansavelmente na finalizao da pesquisa sobre a histria de Vila Rica e da Conjurao Mineira.

AFINAL A OBRA PRIMA

s vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianas que vo para escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. s vezes, um galo canta. s vezes, um avio passa. Tudo est certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. (...).. Corre o ano de 1953 . Depois de exaustivo trabalho, o Romanceiro da Inconfidncia est pronto. Cinco anos passou mergulhada no sculo XVIII, construindo uma narrativa rimada (rimances) que remete o leitor trgica histria do ciclo do ouro em Vila Rica (a Inconfidncia Mineira). Alcana fixar em poesia a histria do alferes Tiradentes e dos intelectuais e poetas trados por delatores. Primeiro grito de liberdade da terra colonial. Resposta definitiva queles que a acusavam de escassa brasilidade. Liberdade - essa palavra Que o sonho humano alimenta Que no h ningum que explique, E ningum que no entenda! Brasil mineiro. Minas de ouro. Riqueza imensa. Ambio maior. Eis o cenrio onde tudo acontece: EIS a estrada, eis a ponte, eis a montanha Sobre a qual se recorta a igreja branca. Eis o cavalo pela verde encosta Eis a soleira, o ptio, a mesma porta. (...) E eis a nvoa que chega, envolve as ruas,

Move a iluso de tempos e figuras. (...) Seu verso soa consoante ao ritmo dos poetas rcades Cludio Manuel da Costa e Toms Antonio Gonzaga, personagens dos acontecimentos rememorados. (...) Passei por essas plcidas colinas e vi das nuvens, silencioso, o gado pascer nas solides esmeraldinas. (...) Tudo me fala e entendo do tesouro arrancado a estas Minas enganosas, com sangue sobre a espada, a cruz e o louro. Tudo me fala e entendo: escuto as rosas e os girassis destes jardins, que um dia foram terras e areias dolorosas, por onde o passo da ambio rugia; por onde se arrastava, esquartejado, o mrtir sem direito de agonia. Celebra o poder transfigurador da palavra: Ai, palavras, ai, palavras, Que estranha potncia a vossa! Ai, palavras, ai, palavras, Sois de vento, ides no vento, No vento que no retorna, E, em to rpida existncia, Tudo se forma e transforma! (...) A liberdade das almas, ai! com letras se elabora... E dos venenos humanos sois a mais fina retorta:

frgil, frgil como o vidro e mais que o ao poderosa! Reis, imprios, povos, tempos, pelo vosso impulso rodam... (...) Detrs de grossas paredes, De leve, quem vos desfolha? Pareceis de tnue seda, Sem peso de ao nem de hora... - e estais no bico das penas, - e estais na tinta que se molha, - e estais nas mos dos juzes, - e sois o ferro que arrocha, - e sois barco para o exlio, - e sois Moambique e Angola! (...) Ai, palavras, ai, palavras, Que estranha potncia, a vossa! reis um sopro de aragem... - sois um homem que se enforca! V sua obra potica reunida e publicada pela Editora Aguilar, no ano de 1958. Faz Conferncia em Israel sobre cultura brasileira.

O TEMPO HUMANO EXPIRA...Em Metal Rosicler (1960) seus poemas anunciam um desenlace pressentido: Estudo a morte, agora - que a vida no se vive, pois simples declive para uma nica hora (OC,1213)

Solombra (1963), neologismo que d o tom dominante deste ltimo livro: solido e melancolia. Eu fantasma - que deixo os litorais humanos, sinto o mundo chorar como em lngua estrangeira: (...) - ah, deixarei meu nome entre as antigas mortes. S nessas mortes pode estar meu nome escrito.

1964Depois de um perodo conturbado, causado pela renncia do Presidente Jnio Quadros e a poltica trabalhista de seu sucessor, Joo Goulart, o pas ferido por um golpe militar (a Revoluo de 31 de maro de 1964). Os militares assumem o poder. Termina uma etapa de nossa histria. Tem incio um perodo de exceo. A ditadura militar que persiste por quase duas dcadas.

COMO AS GAIVOTAS QUE SOBEM TO LIVRES...Ceclia prepara um poema pico-lrico para as comemoraes do quarto centenrio da cidade que a viu nascer e a acolher para a eternidade. Mas no resiste doena, contra a qual lutou nos ltimos seis anos - o cncer . Expira serenamente no dia 9 de novembro de 1964. Consta que a poeta no sabia o mal de que sofria. Difcil acreditar... Deixa cinco netos: Ricardo (filho de Maria Elvira), Alexandre, Fernanda Maria e Maria de Ftima (de Maria Matilde) e Lus Heitor Fernando (da atriz Maria Fernanda). O marido, Heitor Grilo, morre em 1972. A morte no consegue estancar o fluxo de publicaes

e homenagens. Em 1965, a Academia Brasileira de Letras confere-lhe o Prmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. E a principal sala de concertos do Rio de Janeiro passa a ser denominada Sala Ceclia Meireles. Seus poemas tm sido intensamente musicados, cantados por intrpretes do Brasil e Portugal. Deixa vasto material indito: poemas, tradues, peas de teatro, correspondncias, antologias, crnicas de viagem, conferncias, periodismo e tantos outros escritos.

UMA FARPA, UMA DESCONFIANAEsta obra monumental motiva uma farpa irnica do poeta Mario Faustino:D. Ceclia publica demais. O melhor que se poderia fazer em prol de sua glria seria preservar o "Romanceiro completo, fazer uma antologia de seus cinqenta grandes poemas (Mar absoluto seria o maior contribuinte) e queimar o resto. Mas no no esqueamos de perguntar; quantos poetas em nossa lngua j assinaram cinqenta grandes poemas? A outra pergunta que nos ocorre: por que D. Ceclia publica tanto? ( Trecho de Anchieta aos concretos, de Mrio Faustino) Mas sob o peso do monumento, onde fica a verdadeira Ceclia? Como apostar na fidelidade de uma BIOGRAFIA? Escrevers meu nome com todas as letras, Com todas as datas - e no serei eu. Repetirs o que me ouviste,

Diz Ceclia: Somos uma difcil unidade e muitos instantes mnimos.

O que leste de mim, e mostrars meu retrato - e nada disso serei eu. (...) Somos uma difcil unidade De muitos instantes mnimos - isso seria eu. Mil fragmentos somos, em jogo misterioso, Aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente - Como me podero encontrar? Novos e antigos todos os dias, Transparentes e opacos, segundo o giro da luz - ns mesmos nos procuramos. E por entre as circunstncias flumos, Leves e livres como a cascata pelas pedras. - Que metal nos poderia prender? ----------------------------------------------------------------Obras consultadas: ANDRADE, Mrio. O Empalhador de Passarinhos. So Paulo : Ed.Martins; Braslia: MEC/INL, 1972. SECCHIN, Antnio Carlos. (org.) Ceclia Meireles. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2001.V.I e II BOSI, Alfredo. Histria Concisa da Literatura Brasileira . So Paulo : Cultrix COUTINHO, Afrnio e Eduardo de Faria. A Literatura no Brasil. Era modernista. Rio de Janeiro : Jos Olympio ed.; Niteri/RJ: EDUFF, 1986 GOUVA, Leila V.B. Ceclia em Portugal. So Paulo : Iluminuras, 2001. FAUSTINO, Mrio. De Anchieta aos concretos. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. LAMEGO, Valria. A farpa e a lira Ceclia Meireles na Revoluo de 30. Rio de Janeiro : Record, 1996. MEIRELES, Ceclia . Obra Potica. Rio de Janeiro : Editora Jos Aguilar, 1958. Introduo de Darcy Damasceno. NETO, Miguel Sanches. Ceclia Meireles e o tempo inteirio. In: Ceclia Meireles . Obra completa. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2991. ZAGURY, Eliane. Ceclia Meireles : notcia biogrfica, estudo crtico, antologia, bibliografia, discografia, partituras. Petrpolis/RJ: Vozes, 1973.