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Poesia e política no monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto Fábregas (Rio de Janeiro, 1893). Silvia Cristina Martins de Souza (UEL/PR) 1 Resumo: De acordo com Robert Darnton, em sociedades do passado, com baixo índice de letramento, as poesias criaram redes de comunicação que funcionavam como jornais. Nelas a música foi um instrumento mnemônico eficaz para comentar e refletir sobre fatos do cotidiano. Partindo deste pressuposto, este artigo analisa as partes poéticas de do monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto Fábregas, publicado em encenado no Rio de Janeiro em 1893. Nosso objetivo é compreender de que forma o autor utilizou-se da poesia para refletir sobre um processo mais amplo de modernização pelo qual passou o Rio de Janeiro no qual se assistiu à criminalização de certas práticas populares, dentre elas a do jogo do bicho. Palavras chave: história; poesia; política; jogo do bicho. Introdução/justificativa No século XIX, a música ocupava diferentes espaços da cidade do Rio de Janeiro a ponto de o crítico e libretista Antônio Cardoso de Menezes dizer que não apenas das ruas e dos becos, mas também dos sobrados, eram emitidos sons musicais de piano que qualquer um que passasse “atarefado, na luta pela existência” poderia escutar. Executadas por bons e maus músicos, tais canções, concluía Cardoso de Menezes, transformavam a cidade no palco de um “medonho e desapiedado concerto-charivari”. [grifo no original] 2 A expressão “concerto-charivari” é, sem dúvida, pejorativa e, vinda de Cardoso de Menezes, explicita seu desconforto com um panorama polifônico tecido pela diversidade no qual se misturavam músicos e músicas de todos os tipos criando, na sua visão, obstáculos concretos para que a “arte” e os “verdadeiros” talentos emergissem. Robert Darnton observou que em sociedades do passado, com baixo índice de letramento, como a parisiense do século XVIII, as poesias exerceram 1 Doutora pela UNICAMP; professora de Historia Do Brasil Imperio da UEL (PR) e dos programas de Pós Graduação em Historia da UEL e UEPG (PR). Bolsista Produtividade Nivel 2 CNPq. 2 Apud MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, indústria e diversidade cultural no Rio de Janeiro. Campinas, 2003. 312 f. Tese (Doutorado em História) Universidade Estadual de Campinas, p. 207

Poesia e política no monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto

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Poesia e política no monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto Fábregas (Rio de Janeiro, 1893).

Silvia Cristina Martins de Souza

(UEL/PR)1

Resumo: De acordo com Robert Darnton, em sociedades do passado, com baixo índice de letramento, as poesias criaram redes de comunicação que funcionavam como jornais. Nelas a música foi um instrumento mnemônico eficaz para comentar e refletir sobre fatos do cotidiano. Partindo deste pressuposto, este artigo analisa as partes poéticas de do monólogo “O jogo dos bichos”, de Augusto Fábregas, publicado em encenado no Rio de Janeiro em 1893. Nosso objetivo é compreender de que forma o autor utilizou-se da poesia para refletir sobre um processo mais amplo de modernização pelo qual passou o Rio de Janeiro no qual se assistiu à criminalização de certas práticas populares, dentre elas a do jogo do bicho. Palavras chave: história; poesia; política; jogo do bicho.

Introdução/justificativa

No século XIX, a música ocupava diferentes espaços da cidade do Rio

de Janeiro a ponto de o crítico e libretista Antônio Cardoso de Menezes dizer

que não apenas das ruas e dos becos, mas também dos sobrados, eram

emitidos sons musicais de piano que qualquer um que passasse “atarefado, na

luta pela existência” poderia escutar. Executadas por bons e maus músicos,

tais canções, concluía Cardoso de Menezes, transformavam a cidade no palco

de um “medonho e desapiedado concerto-charivari”. [grifo no original] 2

A expressão “concerto-charivari” é, sem dúvida, pejorativa e, vinda de

Cardoso de Menezes, explicita seu desconforto com um panorama polifônico

tecido pela diversidade no qual se misturavam músicos e músicas de todos os

tipos criando, na sua visão, obstáculos concretos para que a “arte” e os

“verdadeiros” talentos emergissem.

Robert Darnton observou que em sociedades do passado, com baixo

índice de letramento, como a parisiense do século XVIII, as poesias exerceram

1 Doutora pela UNICAMP; professora de Historia Do Brasil Imperio da UEL (PR) e dos programas de Pós Graduação em Historia da UEL e UEPG (PR). Bolsista Produtividade Nivel 2 – CNPq. 2 Apud MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, indústria e

diversidade cultural no Rio de Janeiro. Campinas, 2003. 312 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, p. 207

o papel de redes de comunicação que funcionavam como jornais. Neste

processo, continua o autor, a música foi um instrumento mnemônico eficaz em

oferecer “uma crônica sobre os fatos do momento”.3 No caso da sociedade

brasileira oitocentista, reconhecida como majoritariamente iletrada, as poesias

compostas para certas canções parecem ter assumido este mesmo papel de

instância de comunicação e veículo ampliado de opiniões, valores, ideias e

identidades.

As canções que foram entoadas e escutadas em diversos espaços da

cidade muito deveram ao teatro, pois foi a partir do sucesso alcançado nos

tablados que muitas delas passaram circular através de outros suportes

materiais tais como brochuras baratas, cancioneiros e partituras musicais.4.

Neles, as músicas que ganhavam a “consagração do assobio e da cantarola

noturna” 5 encontraram mais um espaço que lhes garantiu presença efetiva no

cotidiano da vida urbana.

Objetivos e Resultados

Levando em consideração esta íntima relação entre as canções com o

tempo vivido, elegemos como fonte para este artigo a parte poética do

monólogo O jogo dos bichos, de Augusto Fábregas, que foi interpretado em

teatros cariocas e publicado no Rio de Janeiro no ano de 1893. Nosso objetivo

é compreender como esta poesia foi utilizada como instrumento de intervenção

política do seu autor num processo de modernização pelo qual passou o Rio de

Janeiro, em fins do século XIX, no qual, em nome do progresso, da ordem, da

modernidade e do saneamento assistiu-se à criminalização de certas práticas

populares, dentre elas a do jogo do bicho.

3DARNTON, Robert. Poesia e Polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 84. 4 MENCARELLI, 2003; FERLIN, Uliana. A Polifonia das Modinhas. Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro da passagem do século XIX para o século XX. Campinas, 2006. 211f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual de Campinas, 2006. Cancioneiros eram publicações que traziam letras de canções e mais raramente partituras. 5 A expressão é tomada de empréstimo a Machado de Assis e encontra-se na Gazeta de Notícias do dia 29 de junho de 1888.

A introdução de jogos e loterias no Rio de Janeiro ocorreu nos anos

1840 e partiu do próprio governo imperial, que se utilizou das loterias como

forma de aumentar reservas para suprir investimentos no país tais como o

estabelecimento de fábricas e a subvenção a instituições.

A comercialização dos bilhetes de loterias não era feita por agentes do

poder público, mas por pessoas que assinavam um termo de fiança com o

Tesouro e, de posse de uma permissão, vendiam os bilhetes e recebiam uma

comissão pelo serviço executado. 6

Nos anos 1850, os à época denominados “vendedores de vigésimos” já

compunham grande contingente de ambulantes e pregoeiros que oferecia

bilhetes em lugares como a frente dos teatros, quiosques, lojas, salões de

engraxates, barbearias e cafés. Eles eram, na sua maioria, homens pobres que

não encontravam empregos fixos que garantissem seu sustento e o de suas

famílias e muitas vezes exerciam suas atividades sem permissão do governo.

Aos vendedores de vigésimos foram sendo despachados para o submundo

legal e vistos como “cancros roedores das algibeiras alheias”.7 Estes

personagens se tornaram parte da paisagem cultural da cidade e chegaram a

servir de fonte de inspiração a peças de teatro como a cena cômica O fim do

ano por um vendedor de vigésimos, escrita e encenada pelo ator e dramaturgo

Francisco Correa Vasques em 1872.8

Na década de 1860 surgiram os primeiros escritórios especializados no

comércio de bilhetes de loterias, o que nos leva a sugerir, com outros autores,

que quando o jogo do bicho apareceu no Rio, a cidade já possuía um mercado

consumidor propício a este tipo de comércio e uma complexa rede de vendas

que envolvia desde lojas a vendedores ambulantes.

6 Idem,p. 74. 7 Jornal do Commercio, 30 de dezembro de 1872. 8 SOUZA, Silvia Cristina Martins de.Um Offenbach tropical: Francisco Correa Vasques e o teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Revista História e Perspectivas. Uberlândia, vol. 1, n. 34, 2006, p. 231.

É conhecida, e alguns autores já exploraram com resultados apreciáveis,

a história do jogo do bicho no Rio de Janeiro.9 Não é nossa intenção oferecer

mais uma interpretação sobre este tema. Para nossos objetivos, basta

elaborarmos algumas considerações, com base no trabalho destes autores,

que nos ofereçam elementos necessários para analisarmos a poesia do

monólogo que elegemos como fonte principal para este texto.

O jardim zoológico criado pelo Barão de Drummond, em 1888, aliou

interesses empresariais do barão “ao interesse publico de concretização dos

ideais de modernização da capital do Império”.10 Homem de empreendimento,

Drumonnd fundou a Companhia de bondes de Vila Izabel, foi acionista do

Jornal do Brasil e sócio da Companhia Arquitetônica, juntamente com Visconde

de Silva, Barão de S. Francisco Filho, Bezerra de Meneses e Temístocles

Petrochino.

A Companhia Arquitetônica urbanizou e loteou a antiga Fazenda do

Macaco, dando origem ao bairro de Vila Isabel. Seu zoológico, construído

neste bairro, não apenas contribuiu para valorizá-lo, como para proporcionar

distração a seus moradores e aos de outros bairros que a ele se dirigiam em

seus momentos de lazer. 11

Drummond firmou com a Câmara do Rio, em 1884, um contrato em que

se comprometia a criar um jardim zoológico dentro do prazo de dois anos a

contar da assinatura do acordo. Este zoológico deveria ser aberto à visitação

pública mediante o pagamento de uma entrada que não deveria ultrapassar o

valor de mil réis. Além disto, uma vez por semana ele deveria ser fechado ao

público e sua entrada franqueada aos alunos de cursos superiores,

devidamente acompanhados por seus professores, para que pudessem “fazer

seus trabalhos de estudos, livres da concorrência e embaraços dos

9 CHAZKEL, Amy. Leis da sorte: o jogo do bicho e a construção da vida pública urbana. Campinas: Editora da Unicamp, 2014; MAGALHÃES, Felipe Santos. Ganhou leva... Do vale o impresso ao vale o escrito. Uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Rio de Janeiro, 2005. 183 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 10 MAGALHÃES,obra citada, p.21. 11 Idem, p, 21.

visitantes”.12 Em contrapartida, a Câmara isentava o zoológico do pagamento

de impostos e garantia a Drummond exclusividade na exploração deste tipo de

empreendimento pelo prazo de vinte e cinco anos. Em janeiro de 1888, em

caráter provisório, foi aberto o zoológico do Barão que, seis meses depois, foi

inaugurado oficialmente. 13

A abertura do zoológico ocorreu num momento em que o mercado de

diversões do Rio de Janeiro começou a passar por um processo de expansão e

alteração no qual o poder público tornou-se responsável pela permissão e

proibição da instalação de espaços de lazer tais como frontões, jogos de

pelotas, turfes, corridas de cavalos, regatas, belódromos e boliches.

Para que estabelecimentos desta natureza tivessem aprovados seus

pedidos de licença ou renovados os já concedidos, exigia-se que a eles

estivessem aliadas a noção de divertimento moderno e saudável que se

imbricava com a de utilidade pública consubstanciada na ideia de que o tempo

destinado ao lazer deveria ser de caráter pedagógico e voltado para o

aprimoramento social.

Ancorado neste pressuposto que combinava saneamento, ordem e

modernização, Drummond enviou uma nova petição ao Conselho da

Intendência Municipal da Capital Federal, dois anos após abrir seu zoológico.

Baseando-se no argumento de que os acionistas do seu empreendimento

encontravam-se incapacitados de reaver seus investimentos, ele propunha

transformar seu zoológico num Jardim de Aclimação de animais e plantas

exóticas e indígenas. Para tanto, solicitava um auxílio governamental que seria

fornecido não em termos pecuniários, mas através da aprovação de uma

licença para explorar jogos lícitos no interior do parque. 14

Aprovada e assinada um mês após ter sido encaminhada ao Conselho

da Intendência, a proposta de Drummond foi incluída como aditamento ao

acordo celebrado em 1884. Nele ficou determinado que a empresa

12 Idem, ibidem. 13 MAGALHÂES, obra citada, p.p. 24-26. 14 Idem, p. 27.

transformaria o parque em Jardim de Aclimação de animais e plantas exóticas

indígenas, que manteria uma aula de Zoologia e Zootecnia e “um palácio de

exposição permanente para os produtos da Flora Brasileira e de animais de

utilidade pública”, além de se comprometer a conservar as matas do jardim e

das montanhas do seu entorno. Também foi concedido à empresa o direito de

explorar “jogos públicos lícitos e mediante módica contribuição” dentro do

parque ficando os mesmos sujeitos à fiscalização da polícia”. 15

No dia 3 de julho de 1892 foi realizada a primeira extração do jogo do

bicho (ou jogo dos bichos e sorteio dos bichos, como também era chamado)

que funcionava da seguinte maneira: ao adquirir a entrada de mil réis para o

zoológico, o comprador recebia um bilhete que incluía a passagem de ida e

volta de bonde ao parque, o qual trazia a figura de um animal impressa. Era o

próprio Drumonnd quem no início do dia selecionava o animal a ser sorteado,

dentre os vinte e cinco que apareciam estampados nos bilhetes. Diariamente

às 5 horas da tarde era revelado ao público o nome do bicho sorteado e os

contemplados voltavam para casa com um prêmio em dinheiro. 16

O sucesso do sorteio dos bichos foi imediato e logo o zoológico passou

a ser maciçamente procurado por visitantes a ponto de novas linhas de bondes

serem criadas pela Companhia de Vila Isabel para atender o aumento da

afluência. Não conseguindo atender à demanda pela compra dos bilhetes,

Drummond estabeleceu pontos de venda fora das dependências do parque,

mais especificamente em uma loja situada no n. 129 da Rua do Ouvidor. Mais

ainda: os bilhetes passaram a trazer o aviso “Válido por 4 dias”, o que significa

que o apostador não precisava ir ao parque para adquiri-lo, nem nele estar

presente no momento da apuração.17 Diante disto, pode-se dizer que o sistema

adotado por Drummond ensejou a transformação do sorteio dos bichos numa

loteria ilícita.

15 Idem, 41. 16 CHAZKEL, obra citada, p. 58. 17 Anúncios de vendas dos bilhetes chegaram a ser publicados no jornal O Tempo no dia 16 de julho de 1892.

O clima de euforia em torno da nova diversão teve vida breve, pois não

tardaram a aparecer menções e críticas ao “antro de jogatina” em que o

zoológico se transformara. Em 12 de fevereiro de 1893, o Jornal do Brasil

noticiou que o chefe de polícia Bernardino da Silva mandara acabar com o jogo

dos bichos, no Jardim Zoológico. 18

No mês de abril de 1895 foi rescindido o contrato com Drumonnd e

exigida a imediata cessação dos jogos no zoológico. Nesta ocasião, porém, o

jogo do bicho já se espalhara pela cidade e pequenos comerciantes e um

imenso contingente de vendedores ambulantes já atuavam diariamente nas

operações de venda dos bilhetes, pagando os vencedores com recursos

próprios obtidos na venda ou revenda de bilhetes oficiais. 19

O jogo do bicho foi assunto bastante explorado nos teatros que se

dedicavam aos gêneros chamados musicados. As canções interpretadas nos

seus tablados dialogavam, no calor dos acontecimentos, com assuntos do

interesse da população com os quais muitos dos espectadores encontravam-se

direta ou indiretamente envolvidos, sendo este um dos segredos da atração

exercida por este tipo de dramaturgia.

Como dito anteriormente, em fevereiro de 1893 o jogo do bicho foi

proibido. Nove dias depois da proibição, o monólogo O jogo dos bichos de

autoria de Augusto Fábregas, estreou no teatro Santana, numa récita oferecida

em comemoração ao aniversário da proclamação da República. 20

Monólogo é uma peça dramática ou cômica escrita em versos para

serem declamados ou cantados com fundo musical nos intervalos dos

espetáculos teatrais. O dramaturgo e empresário teatral Souza Bastos

observou que a característica mais importante do monólogo é que ele, para ser

bom, não deveria enfastiar o público.21 Não enfastiar o público, nos idos do

século XIX, era algo que dizia respeito não apenas ao tamanho do texto, mas

18 Jornal do Brasil, 12 de fevereiro de 1893. 19 CHAKEL,obra citada, p. 60. 20 O Tempo, 21 de fevereiro de 1893. 21 SOUZA BASTOS. Dicionário do Teatro Português. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva, 1908, p. 61.p. 92.

também à performance do ator e neste sentido deve ter pesado para o sucesso

deste monologo o fato de ele ter sido escrito especialmente para ser

interpretado pelo famoso ator cômico João Augusto Soares Brandão, também

conhecido como Brandão, o “popularíssimo”.

A respeito do monólogo O jogo dos bichos vale mencionar ainda que em

março de 1893 uma coleção de pequenas peças de autoria de Augusto

Fábregas, denominada Monólogos e cançonetas exibidos nos teatros do Rio de

Janeiro,22 dentre as quais ele se encontrava, já podia ser adquirida na entrada

de alguns teatros da cidade, 23 assim como na charutaria junto ao teatro Apolo

e no escritório do jornal O Tempo. 24 Não tardaria para que saísse uma

segunda edição da coleção que poderia ser comprada no escritório d`O

Tempo, nas “várias casas comerciais onde essas brochuras são anunciadas” e

até mesmo na elegante livraria Garnier. 25

Mesmo se levarmos em conta que as outras peças que compunham

esta coleção possam ter ajudado na sua venda, uma vez que todas elas já

haviam feito sucesso nos tablados, o fato de O jogo dos bichos ter sido

posteriormente publicado numa edição em separado, vendida por duzentos réis

numa “loja da rua da Conceição, n. 108, sobrado” é mais um indicativo de que

este monólogo fez bastante sucesso. 26

A atenção dispensada pelos dramaturgos que se dedicaram ao teatro

musicado a questões que mobilizavam a atenção pública, como já dito,

transformava seus textos dramáticos em espécies de pequenas crônicas que

dialogavam com seus ouvintes, o que deve ser levado em conta como outro

elemento para que tais textos fizessem sucesso. O monólogo O jogo dos

bichos também encontra-se neste caso.

Augusto Fábregas (1859-1893), seu autor, foi jornalista do jornal O Paiz,

além de dramaturgo, adaptador de textos teatrais e compositor de poesias de

22 FABREGAS, Augusto. Monólogos e cançonetas exibidos nos teatros do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Montealverne, 1893. 23 Jornal do Brasil, 3 de março de 1893. 24 O Tempo 12 de março de 1893. 25 O Tempo, 23 de março de 1893. 26 O Paiz 18 de junho 1894.

monólogos e cançonetas. Fábregas dedicou várias de suas composições a

atores famosos, a exemplo da coleção em que foi publicado este monólogo na

qual cada poesia foi escrita e oferecida a um ator pensando na sua

interpretação.27

Como dramaturgo, Fábregas parece ter sido polêmico, tanto que teve

vários problemas com a censura do Conservatório Dramático Brasileiro. Nos

anos 1880 ele fez uma adaptação para o teatro de um romance de Eça de

Queiroz, à qual deu um título homônimo ao do romance: O crime do padre

Amaro. A peça foi rejeitada quatro vezes pela censura 28. Em 1886, sua revista

de ano O boato, também teve licença negada para encenação.

Embora parecesse não gozar da simpatia da censura, Fábregas tinha

seus admiradores e admiradoras anônimos ou conhecidos. Uma delas,

Josefina de Azevedo, editora do jornal A Família, diria considerá-lo “uma das

individualidades mais simpáticas da imprensa” carioca, que tinha os méritos de

ter-se feito “sem ter tido padrinhos” e de escrever “com uma fecundidade

admirável, com um humor que o tornam distinto”. 29

Humor sem dúvida não falta ao monólogo O jogo dos bichos. Nele pode-

se observar que, em poucos versos, Fábregas dava conta de forma crítica e

risível da situação vivenciada pelo jogo e jogadores do bicho na cidade do Rio

de Janeiro naqueole ano de 1892. Reproduzimos, a seguir, alguns destes

versos.

Não, senhor! Foi um abuso Da força policial.

Que! Você é despeitado, Não pega na sua moral.

Quer por força convencer-me,

Mas perde a sua perícia. Com o joguinho dos bichos Não tinha nada a polícia.

................................ Acabar com este jogo!

Vamos lá, prá que isto presta? É tirar meio de vida

27 SOUZA BASTOS.obra citada, p.614. 28 O Paiz, 17 de abril de 1890. 29 A Familia, 1889, ano 1, n. 39.

A muita gente honesta.30 (grifo no original)

A proibição do jogo vista como um “abuso” é a mensagem que emerge

destes versos apontando para a questão central que, na visão do autor, estava

em jogo naquele contexto: as ambiguidades geradas entre a aplicação da lei e

a prática popular Afinal, era em nome de questões de ordem moral, que se

proibira o jogo, embora este argumento servisse para encobrir o real objetivo

de delimitar as fronteiras que envolviam uma competição comercial indesejada

que tinha, de um lado, os vendedores varejistas de bilhetes e, de outro, os

concessionários com privilégios legais garantidos pelo governo para atuar

nestas transações As loterias, como todos os habitantes do Rio sabiam, eram

tradicionalmente um negócio utilizado pelo governo para obter recursos

próprios para aplicar em obras públicas. O jogo do bicho, todavia, escapara do

controle do governo propiciando que uma multidão de vendedores varejistas

não licenciados nele atuassem e dele retirassem o sustento de suas famílias

sem que deste comércio o governo pudesse auferir lucros na forma de

impostos e taxas de licenciamento. Desta forma, nas palavras de Chazkel, o

que o jogo do bicho fazia era ameaçar “uma variedade de atores que tinham o

poder de promulgar e de fazer cumprir leis que buscavam seu fim”.31 Diante

disto, e na visão do autor deste monólogo, o que esta proibição acabava por

fazer era “tirar meio de vida a muita gente honesta” que realizava este

comércio de uma forma que tecnicamente passou a ser vista como ilícita o que

indica, por extensão, que, apesar de diferentes segmentos sociais apostarem

no bicho, como vários historiadores já convincentemente demonstraram, ele

assumiu significados peculiares para as pessoas pobres que o transformaram

em meio de vida.

O jogo dos bichos também explorava três outros assuntos, como se

pode ver nos seguintes versos:

Eu, por exemplo, confesso

30 FABREGAS, obra citada, p. 71, 31 CHAZKEL,obra citada, p.p. 93-4.

Não passava um santo dia, Sem que ganhasse dinheiro,

Jogando na bicharia.

E lá em casa éramos todos, De extraordinário palpite: Eu, a mulher e um primo,

- Custa até que se acredite.

(...) Se achava a mulher zangada, Cara feia, ar petulante,

Pensava eu “mulher de trombas...” E comprava o elefante

(...) Vejam lá se é suportável,

Se tem justificação, Jogo em que as moças se empenham

Ser sujeito a suspensão.32

Alguns autores argumentam que “entre 1892 e 1895, não parece ter

havido uma tendência de se oferecer palpites para o `sorteio` do Jardim”.33 O

que estes versos sugerem, no entanto, é que as práticas de se palpitar já eram

comuns neste período, mas que ao invés de circularem por jornais, como ficou

mais comum a partir dos últimos anos da década de 1890, elas eram

disseminadas de boca em boca e por meio de poesias e canções que criavam

verdadeiras redes informais de informação.

Outros pontos que devem ser levados em consideração nestes versos

por apontarem para dois elementos que, de acordo com Chazkel, se tornaram

cruciais para a popularidade e poder de permanência do jogo do bicho: a

operação diária e sua dependência de intermediários.34 As facilidades para

apostar no jogo do bicho eram muitas, pois seus vendedores podiam ser

encontrados em casas de particulares, cortiços, pontos de bondes, quiosques,

lojas, enfim, numa infinidade de locais. As apostas variavam entre 500 a 5 mil

réis, um preço que variava ao equivalente a uma xícara de café ao salário

diário de um trabalhados, ou seja, o jogo era adequado ao tamanho do bolso

de diferentes apostadores 35 O jogo do bicho era atrativo, também, porque

32 FABREGAS, obra citada, p.p. 71-73. 33 MAGALHÃES, obra citada, p. 62. 34 CHAZKEL, obra citada, p. 63. 35 Idem, p. 68.

propiciava ao ganhador receber prêmios que, ainda que menores do que os de

outros jogos e loterias, eram constantes e estavam sujeitos a menos riscos.

Por fim, é digno de nota nestes versos que o autor tenha tratado da

participação de mulheres de diferentes segmentos sociais no jogo, assunto que

também já foi tratado por vários historiadores. Sabe-se que mulheres

“respeitáveis” jogavam, que mulheres pobres jogavam e vendiam havendo

ainda as que davam palpites. O interessante nestes versos, para além de ser

mais um testemunho que desmistifica uma visão do mundo do jogo como

exclusivamente masculino, é que eles utilizavam-se do fato de moças de

“família” se empenharem no jogo como argumento em defesa da sua

moralidade e decência, e como questionamento do status criminoso que lhe

era atribuído o que, por extensão, servia para criticar a repressão policial ao

jogo.

Considerações Finais

As apresentações do monólogo O jogo dos bichos atingiram o cem

representações dez meses após sua estreia 36 tendo sido encenado nos teatros

de Variedades, Santana, Lucinda e no Politeama Fluminense. Mas bem antes

de atingir esta marca considerada significativa naqueles tempos, começaram a

aparecer paródias à interpretação do ator Brandão, tal como uma interpretada

pelo ator Leonardo, no Santana. 37 Até mesmo grupos amadores utilizaram o

monólogo de Fábregas em suas representações, como a Arcada Dramática

Esther de Carvalho, na qual ele foi interpretado pelo ator Mariano 38 e o Club

Dramático, onde foi representado pelo menino José Continentino. 39

No ano de 1895, a edição do monólogo ainda podia ser adquirida no

saguão do teatro Lucinda, para os que quisessem se deleitar com seu texto

nos seus momentos de lazer, 40 e no ano de 1898 o jornal Rio Nu anunciava

36 O Paiz 16 de dezembro de 1893. 37 O Paiz 12 de maio de 1893. 38 O Paiz 26 de junho de 1893. 39 Jornal do Brasil, 29 de julho de 1893. 40 O Paiz, 12 de fevereiro de 1895.

sua venda ao mesmo preço de duzentos réis. 41 No carnaval do mesmo ano de

1898, a Sociedade Estrela do Oriente ofereceu uma série de intermédios

durante seus bailes, dentre eles o monólogo O jogo dos bichos, que foi

interpretado por L. Curcino. 42 Vindo coroar esta trajetória de sucesso, o

monólogo foi transformado em polca que foi interpretada pela primeira vez no

intervalo de uma récita no teatro Recreio Dramático, polca esta que foi

gravada, em 1902, na voz de Bahiano, pela Casa Edison.43

De tudo o que foi dito, cremos ser possível afirmar que o sucesso

alcançado por este monólogo é mais um indicativo da popularidade do jogo do

bicho no século XIX e, simultaneamente, da forma como as mensagens sobre

questões de interesse de pessoas comuns eram moduladas pelas poesias as

quais, nas mãos de seus autores, transformavam-se em verdadeiras “crônicas

dos fatos do momento”.

Referências

CHAZKEL, Amy. Leis da sorte: o jogo do bicho e a construção da vida pública urbana. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. DARNTON, 2014, p. 84) FABREGAS, Augusto. Monólogos e cançonetas exibidos nos teatros do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Montealverne, 1893. FERLIN, Uliana. A Polifonia das Modinhas. Diversidade e tensões musicais no Rio de Janeiro da passagem do século XIX para o século XX. Campinas, 2006. 211f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual de Campinas, 2006. MAGALHÃES, Felipe Santos. Ganhou leva... Do vale o impresso ao vale o escrito. Uma história social do jogo do bicho no Rio de Janeiro (1890-1960). Rio de Janeiro, 2005. 183 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. MENCARELLI, Fernando Antônio. A Voz e a Partitura: teatro musical, indústria e diversidade cultural no Rio de Janeiro. Campinas, 2003. 312 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2003. SOUZA BASTOS. Dicionário do Teatro Português. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva, 1908

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