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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO LINHA IMAGEM E SOM Maria Lina Carneiro de Carvalho POETICIDADE TRÁGICA DE DANÇANDO NO ESCURO EM LARS VON TRIER BRASÍLIA 2010

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

LINHA IMAGEM E SOM

Maria Lina Carneiro de Carvalho

POETICIDADE TRÁGICA DE DANÇANDO NO

ESCURO EM LARS VON TRIER

BRASÍLIA

2010

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

LINHA IMAGEM E SOM

Maria Lina Carneiro de Carvalho

POETICIDADE TRÁGICA DE DANÇANDO NO

ESCURO EM LARS VON TRIER

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Comunicação da

Universidade de Brasília, como requisito

para a obtenção do grau de mestre em

Comunicação.

Orientador: Professor Doutor Gustavo de

Castro e Silva.

BRASÍLIA

2010

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Maria Lina Carneiro de Carvalho

POETICIDADE TRÁGICA DE DANÇANDO NO

ESCURO EM LARS VON TRIER

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da

Universidade de Brasília e defendida sob avaliação da Banca Examinadora

constituída por:

Professor Dr. Gustavo de Castro e Silva

Orientador

FAC/Universidade de Brasília

Professora Dra. Susana Dobal Jordan

Membro Interno

FAC/Universidade de Brasília

Professor Dra. Ivany Neiva

Membro Externo

Universidade Católica de Brasília

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Para meu pai.

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AGRADECIMENTOS

Ao Pedro, confidente maior de toda essa aventura.

Pelo incentivo e tranquilidade que me transmitia,

mesmo na distância de dois anos e meio e quilômetros

infinitos. Força que me impulsionava a ir adiante.

Ao Gustavo de Castro, meu orientador, pela acuidade

e generosidade nas orientações. Pela oportunidade

desafiadora de dar aulas de Estética. Acima de tudo,

pela poesia e pelos poetas. Uma das maiores e mais

felizes descobertas no mestrado.

À minha mãe, por sua serenidade e amizade, sempre

disposta a atender mais uma ligação telefônica noite à

dentro.

À Lina Távora, amiga das maiores que, mesmo sendo

de minha mesma cidade, vim a descobrir em Brasília.

Por todas as nossas conversas!

À Capes, pelo incentivo financeiro que possibilitou

que essa pesquisa fosse possível.

Às amizades que fiz em Brasília: às mais que doces

Fran e Luíza, por me terem acolhido em sua casa nos

incertos dois primeiros meses de Planalto Central; à

Lara, pela generosidade de, sem me conhecer

anteriormente, aceitar que dividíssemos a mesma

moradia; à Ana; por todas as nossas reparadoras

sessões de cinema; à Néa e Walter, pelo afeto e pelo

valioso apoio bibliográfico.

À Sandra, pelo estímulo constante, e aos pequenos

Beatriz e Davi, por todos os sorrisos presenteados

sempre que viam a irmã chegar de viagem. Ao Caio,

amigo e irmão querido.

Às sempre amigas Elisa, Larisse e Tallita.

À Brasília.

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“Nas horas dos grandes achados, uma imagem poética pode ser o germe de

um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de um poeta”

Bachelard.

“A valentia e a liberdade do sentimento ante um inimigo poderoso, ante um infortúnio

sublime, ante um problema que produz espanto – esse estado vitorioso é o que o

artista escolhe, o que ele glorifica. Ante a tragédia, o que há de guerreiro em nossa

alma celebra suas saturnais”

Nietzsche.

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RESUMO

CARVALHO, Lina. Poeticidade trágica de Dançando no Escuro em Lars von

Trier. 2010. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Curso de Pós-

Graduação em Comunicação, Universidade de Brasília, 2010.

Orientador: Professor Doutor Gustavo de Castro e Silva.

Defesa: 09 de dezembro de 2010.

O Trágico, enquanto dimensão fundamental da experiência humana, reverberou

nos mais distintos aspectos de sua produção, seja no campo artístico; seja como

categoria da Estética; no drama teatral; na psicanálise; na literatura... Nesta

pesquisa buscamos atualizar o conceito do Trágico para o cinema

contemporâneo, mais especificamente para o filme Dançando no Escuro, de Lars

von Trier, buscando enriquecer o termo a partir do seu encontro com o Lírico. O

Trágico aqui é visto para além de seu sentido formal — como gênero dramático

proveniente da tragédia grega —, já que ao longo da história passou a ser

estudado também como categoria filosófica que, consoante a visão de autores

como Peter Szondi, Raymond Williams e Flávio Kothe, pode estar presente nas

mais variadas manifestações artísticas, seja em uma peça teatral, em um filme ou

em um poema lírico. A concepção de Lírico abordada nesta pesquisa é tributária

principalmente das considerações feitas por Friedrich Nietzsche em sua obra O

Nascimento da Tragédia, na qual defende que o lírico não se restringe a um

subjetivismo ou a uma mera expressão do íntimo do poeta, possuindo também

sua ressonância ontológica.

Palavras-chave: trágico, lírico, poesia, cinema, Dançando no Escuro, Lars

von Trier.

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ABSTRACT

Tragedy, whilst a fundamental dimension of human experience has reverberated

in the most distinct aspects of its production, whatever the artistic field may be:

Aesthetics; Drama; Psychoanalysis; Literature... In this research we seek to

update the tragedy concept to contemporary cinema, more specifically to Lars

von Trier's Dancer in the Dark, wanting to enrich the word in its encounter with

Lyric. The Tragedy is seen here beyond its formal meaning — as a dramatic

genre descendant from greek tragedy — though in history it has been also studied

as a philosophical category that, according to authors such as Peter Szondi,

Raymond Williams and Flávio Kothe, could be present in the most different

artistic expressions, such as a play, a film or a lyric poem. The Lyric‘s conceptual

approach in this research is complementary, especially due to Friedrich

Nietzsche's The bird of tragedy considerations, in which he defends that lyric

does not restrict to a subjectivism or a mere expression of the poets intimacy,

having also its ontological resonance.

Key-words: tragedy, lyric, poetry, cinema, Dancer in the Dark, Lars von

Trier.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 - O PENSAMENTO POÉTICO

1.1 Mito e Logos .......................................................................................... 20

1.2 O logos poético ...................................................................................... 23

1.3 Comunicação e poesia ........................................................................... 28

1.4 O lírico ................................................................................................... 32

CAPÍTULO 2 - A TRAGÉDIA E O TRÁGICO

2.1 O mito dionisíaco e o mito trágico ........................................................ 38

2.2 A tragédia grega e a Poética aristotélica ............................................... 45

2.3 O herói trágico ....................................................................................... 54

2.3.1 O herói trágico e o devaneio ............................................................ 58

2.4 A tragédia, o verso e a prosa ................................................................. 61

2.5 A tragédia e o melodrama ..................................................................... 63

2.6 Idealismo alemão: o mundo sob a ótica do trágico ............................... 66

2.7 A relativização da tragédia e o trágico moderno................................... 72

CAPÍTULO 3 - O TRÁGICO E O POÉTICO NO CINEMA

3.1 Cinema, pensamento e pathos ............................................................... 83

3.2 Cinemas poéticos ................................................................................... 85

3.3 O ―Cinema de Poesia‖ de Pasolini ....................................................... 87

3.4 O cinema, o happy end e o trágico ........................................................ 91

CAPÍTULO 4 - A COSMOVISÃO TRÁGICA E O LÍRICO EM

DANÇANDO NO ESCURO

4.1 O trágico na obra de Lars von Trier .................................................... 106

4.2 O trágico em Dançando no Escuro ..................................................... 112

4.2.1 A hamartía e o dilema ético do herói .............................................. 114

4.2.2 A dança lírico-trágica de Selma ....................................................... 118

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4.2.3 A ambiguidade das personagens ..................................................... 125

4.3 Metáforas e símbolos ......................................................................... 127

4.4 Dançando no Escuro, os musicais e a metalinguagem ....................... 134

4.5 O cinema de poesia e a reflexividade ................................................. 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 141

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... 146

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INTRODUÇÃO

O nascimento da tragédia se deu necessariamente pelo ritmo e canto da poesia, na

Grécia do século VI a.C, por meio das primeiras representações e encenações gregas –

originárias dos rituais de adoração ao deus Dioniso – pelas mãos de tragediógrafos como

Sófocles e Eurípedes, e de comentadores como Aristóteles e Platão. A tragédia surge, assim,

da própria poesia como forma, assim como as outras espécies de narrativa poética: poesia

épica, cômica, lírica, etc.

Aristóteles, em sua Poética, arrola os gêneros da produção poética, onde fala das

origens da poesia como mímesis1 e de seus gêneros como artes de imitação. Debruça-se,

entretanto, apenas acerca da tragédia, da epopeia e da comédia. Como veremos mais

detalhadamente na pesquisa, apesar de sua importância como compilação das características e

conformação da tragédia como gênero, a Poética aristotélica não tece maiores considerações

sobre o trágico como algo que vai além do gênero teatral ou literário. O conteúdo da obra é

eminentemente normativo e descritivo, embora também não se restrinja a isso. Preocupa-se

principalmente com a identificação dos elementos necessários à produção da catarse,

finalidade última da tragédia, segundo a visão aristotélica.

Embora se afirme, e com razão, que a Poética não deve ser interpretada

como um repositório de normas, ela não deixa de convidar a um tal tipo de

interpretação; deve-se mesmo reconhecer que, ao menos de um ponto de

vista prático, é isto o que frequentemente acontece. De qualquer maneira,

exatamente em relação ao problema central e mais importante – a elucidação

da essência do fenômeno trágico – Aristóteles silencia (BORNHEIM,

1969:70).

Além de silenciar sobre o trágico como fenômeno que ultrapassa a forma tragédia,

também silencia acerca das possíveis imbricações entre o gênero lírico e o trágico. No que

1 O sentido de poesia abordado por Aristóteles está restrito ao sentido de mímesis, representação do

real.

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concerne à descrição sobre os elementos da tragédia, Aristóteles realiza paralelos e

comparações entre ela, a comédia e a epopeia. Porém, no que diz respeito às aproximações e

diferenciações entre a tragédia e o lírico, Aristóteles nada diz.

Séculos e séculos se passaram e os primeiros acenos da tragédia grega, como

embrião para o entendimento posterior do que seria arte e como sinalização de algo

pertencente ao mais íntimo do ser humano, se ramificaram. O trágico tornou-se, com efeito,

uma dimensão fundamental da experiência humana, tendo reverberado nos mais distintos

espectros de sua produção, seja no campo artístico, seja como categoria da Estética, no drama

teatral, na psicanálise, na literatura, no cinema.

É importante lembrar que o resgate do trágico e seu destaque como conceito

filosófico ocorreu no mesmo período histórico em que o lírico passa a ser destacado como

gênero poético, ou seja, com o Idealismo alemão. A poesia e a Estética ganharam importância

como objeto de estudo no mesmo período histórico, isto é, o estudo da poesia como fonte de

pensamento e as primeiras investidas na conformação da Estética como disciplina acadêmica

e categoria filosófica – após Kant e de Hegel – aconteceram também concomitantemente.

O trágico chega à modernidade e contemporaneidade imbuído dos mais diversos

significados e acepções, traçando paralelos com categorias estéticas as mais diversas: o

drama, o melodrama, o risível, o cômico. A tragédia e o trágico como palavras passam a ser

encontrados na fala comum e nas descrições de desastres e fatos calamitosos nos jornais (Cf.

WILLIAMS, 2002:30). No contexto moderno e contemporâneo, o trágico pode não estar mais

necessariamente ligado a uma peça trágica, podendo estar presente em um poema lírico, como

defende Flávio Kothe, ou em uma obra cinematográfica. Não se restringindo somente ao

gênero teatral, passa a ser considerado como pensamento e sentimento, adaptado às mais

diversas formas e representações simbólicas. O trágico pode ser percebido também de

maneira mais aproximada ao poético – entendendo o poético presente no trágico como algo

mais amplo, não estando atrelado somente a um sentido formal de poesia teatral (dramática),

herdeiro da normatização aristotélica, que vê a poesia como forma, mímesis2. Enxergamos

nesta pesquisa o fenômeno lírico como indicador (ou um dos indicadores) do poético presente

no trágico, o que denominamos poeticidade trágica, que está presente na literatura ou em uma

obra teatral, como também pode estar no cinema, seara a que esta pesquisa está circunscrita.

2 Juanito Brandão (1992:93), seguindo a perspectiva aristotélica, restringe o poético da tragédia ao fato

de ela ser uma representação, situada no plano do mimético e não da realidade: ―todas as paixões,

todas as cenas dolorosas e mesmo o desfecho trágico são mímese, ‗imitação‘, apresentadas por via do

poético, não em sua natureza trágica e brutal: não são reais, passam-se num plano artificial‖.

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A escolha do termo neológico ―poeticidade‖, e não ―poética‖, se assenta no fato de

o termo ―poética‖ já pressupor em seu bojo, como vocábulo emprestado da literatura e

detentor de uma definição mais tradicional e cerrada, um conjunto de valores estéticos, um

discurso canonizado. Segundo Tzetan Todorov e Oswald Ducrot, esse termo, ―tal como foi

transmitido pela tradição, designa, em primeiro lugar, toda a teoria interna da literatura‖

(TODOROV; DUCROT, 1973:105), sendo uma ―disciplina teórica‖ cujo objeto é o ―discurso

literário enquanto princípio de engendramento de uma infinidade de textos‖ (TODOROV;

DUCROT, 1973: 105). Já o termo ―poeticidade‖ comporta maior maleabilidade, pois,

segundo Salvatore D‘onofrio, ―o moderno conceito de poeticidade está centrado, mais do que

em esquemas formais, em um objeto ou em uma realidade sentida e descrita artisticamente‖

(D‘ONOFRIO, 1983:6). Enquanto a palavra ―poética‖ remete a um conjunto de regras, o

termo ―poeticidade‖ remete a uma dinâmica. Tal dinamismo é necessário ao fato de o que

chamamos de poeticidade trágica ser uma noção não exclusiva de uma expressão artística

como a literatura, por exemplo, podendo também, ao nosso ver, ser encontrada em um corpus

cinematográfico. Além disso, não temos a pretensão de tecer um discurso estético definitivo

acerca da obra Dançando no Escuro, daí optarmos pelo expressão ―poeticidade‖. Em suma,

nesta pesquisa, o termo poeticidade corresponde à densidade poética que uma obra ou

expressão artística contém.

Acerca do lírico, lançamos mão das contribuições de Friedrich Nietzsche (1872),

Anchyses Jobim Lopes (1995), Emil Staiger (1972) e Anatol Rosenfeld (1965). Na

perspectiva de Lopes, o lírico pode ser percebido como algo que vai além do gênero literário,

podendo ser compreendido como fenômeno e essência da poesia. O autor defende ainda uma

anterioridade cronológica do lírico em relação aos demais gêneros poéticos. Já Nietzsche

aproxima o lírico da própria gênese musical da tragédia, relembrando que os hinos

ditirâmbicos do coro trágico antigo eram por excelência poemas líricos. Além disso, o filósofo

alemão ressalta a ressonância ontológica que o fenômeno lírico encerra.

Com o fito de pensarmos os conceitos do trágico e do lírico adaptados à imagem

cinematográfica, buscamos respaldo na visão de Julio Cabrera, em sua obra O Cinema Pensa

(2006), na qual analisa alguns filmes clássicos da cinematografia mundial à luz de conceitos

de filósofos importantes. Traçando um paralelo com a filosofia, defende a noção de que o

cinema pode ser uma enriquecedora forma de se filosofar e pensar conceitos3. Centramo-nos

3 Essa também é a visão de Flusser, ao acentuar que o pensamento por meio de imagens é também

capaz de pensar conceitos, que ele pode se tornar um metapensamento de um modo de pensar

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nesta pesquisa em enfatizar a capacidade dizente do cinema como forma de cognição e

comunicação, de comunicar ideias e conceitos (o trágico e o lírico) que usualmente são

analisados em estudos literários ou filosóficos.

Na perspectiva de Cabrera, enquanto a filosofia nos apresenta conceitos-ideia, a

imagem cinematográfica nos mostra conceitos-imagem, com base nas metáforas visuais que

cada obra expressa. Cada filme pode ser a expressão em imagens e sons de um conceito ou

ideia acabada. Com base nestes pressupostos, podemos então pensar o trágico por meio não

somente dos textos filosóficos e das imagens poéticas e enredos oriundos da literatura trágica,

mas também por intermédio das imagens cinematográficas.

Para analisar o trágico em consonância com o lírico na imagem cinematográfica,

lançaremos mão da análise das metáforas presentes no filme, aquelas constantes não somente

no discurso do herói, mas também as metáforas visuais que podem ser prospectadas na obra.

Buscaremos analisar como essas metáforas se aproximam da linguagem de um cinema de

poesia e podem exprimir a visão de mundo do herói trágico. A evidenciação do poético no

filme será prospectada, portanto, na estética da obra; nas metáforas visuais presentes, bem

como no discurso e cosmovisão do herói, como compensação lírica ao trágico vivido. A

análise fílmica será feita de modo mais aprofundado nas sequências de devaneio que se

seguem à morte de Bill, pois é quando o poético que emerge da condição problemática do

herói trágico se insinua de maneira mais evidente.

Nesse sentido, o trágico, tendo sido um gênero muito discutido no âmbito filosófico

– desde os tratados filosóficos do Idealismo alemão até os estudiosos do trágico na

contemporaneidade – também pode ser prospectado e discutido filosoficamente por meio da

imagem. No caso dessa dissertação, o gênero, originalmente oriundo do drama teatral e da

literatura, é traduzido para a imagem cinematográfica, sendo o filme Dançando no Escuro um

conceito-imagem do trágico. Mas não somente isso, supomos que seja um conceito-imagem

do trágico em consonância com o lírico. Esse caráter filosófico, de reflexão, que o cinema

pode ter, percebemos presente na obra do cineasta Lars von Trier, que, acerca de seu modo de

filmar, destaca: ―talvez soe pretensioso, mas de uma forma ou de outra, espero que vejam que

conceitual. Para Flusser, os conceitos anteriormente eram passíveis de ser pensados somente por meio

de outros conceitos, ou seja, mediante a filosofia, que podia ser considerada como outra maneira de

metapensamento dos conceitos. Agora, com o crescimento dos chamados modelos de superfície

(surface models) ou mídias de superfície (surface media) – cinema, imagens de TV, ilustrações,

fotografia – o pensamento imagético se torna outra via de se pensar o conceito (Cf. FLUSSER, 2007:

108)

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cada imagem contém uma ideia. (...) Cada imagem e cada corte de plano é pensado. Não estão

lá aleatoriamente‖ (TRIER apud CRISPIM, 2008:33).

Segundo o método de análise fílmica de Michel Marie e Laurent Jullier, em sua

obra Lendo as imagens do cinema (2009), a análise de um filme é baseada em um tripé:

análise no nível do plano, no nível da sequência e no nível do filme como um todo

(combinação de sequências). A cada um desses níveis, Marie e Jullier atribuem figuras

fílmicas correspondentes. Por exemplo, ao nível do plano correspondem o ponto de vista, a

distância focal e a profundidade de campo; os movimentos de câmera; a análise das luzes e

das cores e as combinações audiovisuais. O plano é a unidade mínima de análise de um filme,

se trata da porção de filme entre dois pontos de montagem, ou seja, entre dois cortes. No nível

do plano, analisaremos os pontos de vista utilizados (ou seja, os pontos de observação do

quadro, relacionados à posição da câmera), a diferenciação das cores utilizadas e as

combinações audiovisuais, que dizem respeito à faixa sonora, como música e ruídos. No nível

da sequência – mesmo que ―cena‖, ―conjunto de planos que apresenta uma unidade espaço

temporal‖(MARIE; JULLIER, 2009:42) – nos deteremos nas montagens dos planos e na

análise das metáforas audiovisuais, como já dito, e de como podem elas se aproximar da

gramática de um cinema de poesia. E no nível do filme, como um todo, nos debruçaremos

acerca do enredo (a narrativa), das relações de causa e efeito, do propósito do protagonista,

etc.

Não está no escopo deste trabalho a pretensão de esgotar os diversos sentidos e

percepções que o trágico pode conter, pois o próprio fenômeno trágico é algo que escapa a

qualquer definição, apontado pelos estudiosos como algo inapreensível por excelência.

Buscaremos evidenciar dimensões do trágico, e não estabelecer uma essência do que seja o

trágico. Isso não implica, no entanto, que não existam e que não apresentaremos critérios

necessários para a sua identificação. Não temos, muito menos, o fito também de esgotar as

acepções acerca do lírico como gênero poético ou fenômeno, já que nosso foco maior aqui é o

estudo do trágico, de modo que as descrições do lírico serão feitas como forma de aprofundar

e enriquecer as acepções acerca do trágico.

De antemão, para que haja o trágico, é necessário que exista o conflito trágico, ou

seja, uma situação que remeta a polaridade entre pressupostos: ―de um lado, a justiça, a

harmonia, a medida, e de outro, aquilo que as destrói ou perturba, a injustiça, a desmedida,

hybris‖ (BORNHEIM, 1969:76). Ou seja, é necessário que haja uma coincidentia

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oppositorum, uma polaridadade que não é somente oposição, mas também unidade. A ideia de

coincidentia oppositorum, imanente ao trágico – como salienta Maffesoli –, também pode ser

aplicada, ao nosso ver, à relação entre o trágico e o lírico, como gêneros poéticos que não

representam somente oposição (já que os gêneros não obedecem a classificações estanques,

segundo a visão de Lopes e Staiger), mas que também não significam somente convergência,

porquanto conservam suas diferenças. Amparamo-nos, para isso, na Teoria da

Complexidade4, de Edgar Morin, que considera como um dos operadores da complexidade o

operador dialógico, o qual versa que, para compreendermos alguns fenômenos complexos, é

necessário que juntemos ―duas noções que a princípio são antagônicas, e que são ao mesmo

tempo, complementares‖ (MORIN, 2006: 15), isso com base na ideia da ―dualidade no seio da

unidade‖ (ALMEIDA, 2006: 28). O fenômeno trágico não é necessariamente lírico (nos

escritos aristotélicos, como já expressamos, a presença do lírico no trágico não é citada,

havendo passado ao largo de suas análises, voltadas para o enredo e ação trágicas), assim

como o lírico não é necessariamente trágico. Eles são, dessa maneira, complementares, união

de opostos. Esta pesquisa pretende justamente dar ênfase ao viés lírico presente nas tragédias

e no trágico, o trágico em consonância com o lírico, destacando o lirismo que pode brotar das

situações-limite, abissais.

A pesquisa será conduzida tendo como amparo a transdisciplinaridade pressuposta

pelo pensamento complexo, cujo foco é a ―superação das especializações estanques que

distanciam as várias áreas de pesquisa e impedem a conexão essencial entre campos

aparentemente destinados ao isolamento‖ (MACHADO, 2006: 95). A Teoria da

Complexidade busca religar os conhecimentos, percebendo os pontos de permutação e

convergência entre as diversas áreas do saber, mantendo contudo sua autonomia, o que

possibilita a busca desta pesquisa pela percepção do trágico e do lírico no cinema, conceitos

habitualmente estudados no âmbito literário ou teatral. Morin elenca como esteios de um

pensamento transdisciplinar e complexo, ferramentas como a migração conceitual de um

campo do conhecimento para outro, ―o que garante a ressignificação e ampliação de conceitos

e noções, originariamente disciplinares‖ (ALMEIDA, 2006: 26).

Ainda com amparo na filosofia metodológica da Teoria da Complexidade

moriniana, nos lançamos à análise do corpus da pesquisa, não priorizando uma postura

4 A Teoria da Complexidade de Morin servirá a este trabalho como uma espécie de guia ou filosofia de

pesquisa, ou seja, não estará de forma expressa ao longo do trabalho, já que não se trata de uma

metodologia com regras ou conceitos aplicáveis de forma objetiva. Sua contribuição maior se encontra

na conformação do próprio problema de pesquisa.

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unilateral e estanque do pesquisador perante a obra, mas abrindo espaços para que o próprio

objeto ―fale‖. Para tanto, recorremos a análises periódicas do filme durante todo o processo de

pesquisa e redação deste trabalho. Ainda amparados na Teoria da Complexidade e na visão de

autores como Staiger – que no epílogo de sua obra Conceitos fundamentais da poética

explana sobre o processo metodológico de sua feitura –, entendemos também que todo

processo de pesquisa deve partir de uma margem de liberdade do pesquisador em criar algo,

partindo de um sentimento ou ―pressentimento obscuro‖, o qual paulatinamente se vai

―aclarando e tornando em noções exatas‖. Se esse ―sentimento houver sido falso, o próprio

objeto vai protestar‖ (STAIGER, 1972: 191). A pesquisa deve ser assim cuidadosamente

equilibrada entre a autonomia do pesquisador e seu objeto de pesquisa.

A opção por um corpus fílmico assenta-se na intenção de entender as interligações

do trágico com o poético (sob a forma do lírico) no cinema, justificando-se, portanto, pelo

intuito de abranger o espectro de discussão sobre a atualização do trágico e do lírico na

produção simbólica contemporânea, com base no estudo do diálogo entre eles em uma obra e

autor importantes para o cinema contemporâneo. Lars von Trier é considerado um dos

cineastas mais representativos da produção cinematográfica atual, tendo sido um dos

representantes do último movimento de vanguarda cinematográfica do século XX (Cf.

SILVA, 2007: 6), o movimento Dogma 95. Um dos filmes produzidos sob a insígnia do

Dogma, O rei está vivo (Kristian Levring, 2000), lançado no mesmo ano de Dançando no

Escuro, é uma adaptação da tragédia de Shakespeare, Rei Lear.

A opção pelo filme Dançando no Escuro 5– ganhador da Palma de Ouro em Cannes

em 2000, ano de seu lançamento – se assenta na percepção dessa obra como, dentre a

produção fílmica de Lars von Trier, a que melhor sintetiza em sua linguagem cinematográfica

a conjugação entre o lírico e o trágico. Pode-se considerar esse cineasta como explorador de

um trágico exposto nas telas de cinema, inclusive há estudos (Cf. MACIEL, 2008) que

aproximam a presença do trágico em seus filmes com o trágico presente nas obras de Pier

Paolo Pasolini, um dos representantes do cinema de poesia.

Dançando no Escuro tem como protagonista a personagem Selma (Björk), imigrante

tcheca que vive nos Estados Unidos e trabalha numa fábrica. A história transcorre por volta

5 A importância de Dançando no Escuro também reside no que ela representa como desconstrução dos

gêneros cinematográficos, mais especificamente o musical clássico hollywoodiano, pois, ao lançar

mão do trágico, a obra se configura como um musical às avessas, atípico, embora não seja esse o foco

principal de análise deste estudo.

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da década de 1960. Selma está nos EUA com o intuito de submeter o filho a um tratamento

médico e assim salvá-lo da cegueira congênita, da qual ela já sofre. Para isso, faz economias

até conseguir o dinheiro necessário para pagar a cirurgia, cuja data se aproxima. Selma mora

com seu filho em um trailler no quintal da casa de Bill (David Morse), seu amigo e policial

da pequena cidade onde vive, para quem paga um aluguel. Ela acaba por matar Bill, o qual

havia roubado o dinheiro reservado para a cirurgia de Gene, seu filho. Selma é então

condenada à morte pela Justiça dos Estados Unidos. Selma é amante de musicais nos moldes

dos hollywoodianos. O filme é pontuado por seus devaneios, quando imagina situações de

sua vida como se fossem musicais. Nesses momentos de devaneio, a personagem se vale de

metáforas para expressar, poeticamente, a angústia e toda a carga trágica do que vive.

Não temos a pretensão de interpretar a obra Dançando no Escuro de maneira

exaustiva. Orientamos a interpretação e análise fílmicas no sentido do trágico e do lírico,

tendo porém a ciência de que o filme poderia ser também interpretado dentro de outras

molduras conceituais e temáticas, a algumas das quais abrimos espaço em virtude de sua

presença marcante na obra e de sua proximidade com os conceitos do trágico e do lírico: as

temáticas da condição exilar, da cegueira, etc. Tal reflexão metodológica estendemos à análise

dos filmes analisados no terceiro capítulo, cujas análises, no entanto, foram mais reduzidas e

concentradas em torno do trágico e do lírico em virtude de serem análises mais curtas e de

teor ilustrativo.

No primeiro capítulo deste trabalho, será abordada primeiramente a interface do

poético com o filosófico, com arrimo em filósofos contemporâneos como Martin Heidegger e

Maria Zambrano, no intento de aproximar poesia e pensamento, com base também nos fios

que podem ser entretecidos entre mito e logos, metáfora e conhecimento, poesia e

comunicação. Posteriormente, destacamos as definições para o fenômeno lírico, apresentadas

por Nietzsche, Lopes, Staiger e Rosenfeld, como forma de delinear contornos sobre esse

gênero poético, fornecendo uma base para que possamos mais adiante relacioná-lo com o

gênero trágico.

O segundo capítulo será dedicado ao estudo do trágico, englobando um arco

histórico que compreende a tradição clássica grega e o movimento romântico idealista

alemão, no que concerne à atualização do trágico como conceito filosófico, com apoio em

autores como Peter Szondi, Roberto Machado e George Steiner. Serão abordadas também as

questões relacionadas ao mito trágico, com base nas considerações de helenistas como Juanito

Brandão e Jean-Pierre Vernant, e à poética da tragédia, com suporte nos preceitos

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aristotélicos. No que diz respeito a um possível retorno do trágico na contemporaneidade,

recorremos ao pensamento de autores como Michel Maffesoli (2001). Com amparo em

Nietzsche, serão evidenciadas aproximações possíveis entre o trágico e o lírico, em seu estudo

sobre o nascimento da tragédia na perspectiva da música.

O terceiro capítulo é dedicado à análise do trágico no cinema, sendo esse último

visto como um modo de pensamento, logos contido em um pathos. Será abordado o poético

no cinema a partir da noção de cinema de poesia cunhada por Pier Paolo Pasolini, porquanto

entendemos que os pressupostos da linguagem de um cinema de poesia podem servir como

expedientes para estudarmos o lírico no cinema. Mais adiante, analisamos o trágico e o lírico

em alguns filmes da safra atual, com o fito de termos uma noção mais abrangente da

exploração do trágico no cinema, conforme a visão desta pesquisa.

O quarto capítulo é reservado à análise propriamente dita da obra Dançando no

Escuro, à luz do referencial teórico discutido nos capítulos anteriores, percebendo as

conexões possíveis entre o trágico e o lírico no filme de Lars von Trier.

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Capítulo 1

O PENSAMENTO POÉTICO

O poético deve ser entendido no contexto deste trabalho como algo que extrapola a

forma literária e pode ser caracterizado como o humus de toda forma de criação (Cf.

JUARROZ, 2005: 19). O poético pode estar presente nas mais variadas formas de arte, pois é

ponto de comunhão primeiro entre elas. Acerca do poético, defende Octávio Paz que, ―por

cima das diferenças que separam um quadro de um hino, uma sinfonia de uma tragédia, existe

neles um elemento criador que os faz girar em um mesmo universo.‖ (PAZ, 1978: 15). Ou

como atesta Heidegger, em seu texto A Origem da Obra de Arte, a ―arte (...) é na sua essência

poesia‖ (HEIDEGGER apud NUNES, 2007: 95). O poeta (poietai), para Heidegger, não é

somente o fazedor de poemas, mas o próprio artista. Nas artes a poesia é, portanto, princípio

ativo.

1.1 Mito e Logos

A poesia na Grécia antiga significa poiesis, termo que abrangia não somente a

palavra poética como elaboração de um saber, mas também se ligava a todo ato relacionado a

um fazer, a um ato de criação. A arte estava intimamente relacionada a um ofício,

correspondia a uma techné, uma experiência prática, mas também a um saber. A arte estava

também diretamente ligada à vida social, possuía uma finalidade, uma função dentro da pólis.

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Segundo Osborne, as obras de arte eram ―essencialmente ‗utensílios‘, no mesmo

sentido em que o são uma armadura, os arreios de um cavalo ou objetos de serviço doméstico,

ainda que o propósito a que se servissem não fossem, necessariamente material‖ (OSBORNE,

1970:30). Isso não implicava dizer que o impulso estético ou os mágico-religiosos fossem

saberes à parte, visto que estavam conjugados a esse saber técnico, todos voltados para a

consecução de um fim ulterior.

A poesia não existia de per se, existia na vida pública, com a função de ser lida em

praça pública, por exemplo, não para ser fruída no foro íntimo, visto que as ocupações

privadas não desempenhavam grande foco de interesse na vida da era clássica grega. A poesia

também estava intimamente ligada a um saber, a um logos; os poetas épicos nacionais ―eram

bíblia e manual no sistema educativo‖ (ORBORNE, 1970: 31). E esse logos também estava

relacionado a uma linguagem mítica.

A imbricação entre linguagem, logos e o saber mitológico-mágico é, no entanto,

anterior à civilização grega. Advém ainda dos nossos ancestrais caçadores-coletores, que

ritualizavam suas conquistas técnicas, ou seja, organizavam seu saber racional e conquistas

empíricas com base nas crenças, magias, mitos. Sustenta Osborne (1970:30) que ―desde os

primeiros estágios evolutivos, moviam o homem motivos estéticos ao lado dos propósitos

mágico-religiosos ou utilitários‖.

Nas civilizações arcaicas, o pensamento simbólico/mitológico/mágico estava

intrinsecamente ligado a um pensamento empírico/técnico/ racional (MORIN, 2002:168).

Racionalidade e mitologia caminhavam juntas, sendo a linguagem o meio tradutor dessa

coexistência, elaboradora de uma concepção do real e do mundo.

O mito está intimamente relacionado à poesia, assim como a poesia é tanto

pensamento quanto canto. Desde os aedos, a palavra cantada já narrava os começos, através

dos mitos. Segundo Gabriela Reinaldo, ―o caos, inominável, matéria-prima do que vem-a-ser,

da criação, é retratado em diferentes cosmogonias como um abismo primordial, uma garganta

aberta, ou como uma caverna cantante‖ (REINALDO, 2005: 48), sendo, assim, ―a mais alta

manifestação da poesia‖.

O mito é indissociável da linguagem, significando em sua origem grega mithos –

palavra, discurso – convergindo assim para o mesmo significado original de logos, que

também significa palavra, discurso. A essa conjugação entre o pensamento empírico-técnico-

racional e um pensamento simbólico-mitológico-mágico dá-se o nome de unidual, a um só

tempo uno e duplo (Cf. MORIN, 2002: 172).

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Foi somente nos últimos séculos da história ocidental que ocorreu uma separação de

fato entre razão e mito, isso de modo mais patente na separação entre mito e religião. Para

Morin (2002:184), essa disjunção se completou com o advento da ciência newtoniana. Isso

não implicou a morte do mito, pois este permaneceu a habitar as formas simbólicas

produzidas na civilização atual. Do século XIX em diante a filosofia se voltou para o estudo

do mito e para sua importância cognitiva.

É na compreensão do conteúdo inteligível, contido no pensamento mitológico, e do

teor sensível, que há na reflexão racional, que se pode favorecer maior comunicação entre os

saberes, por intermédio de uma ―razão aberta que saiba dialogar com o irracionalizável‖

(MORIN, 2002: 193); que saiba conviver com a contradição e com o particular e subjetivo;

diferentemente do saber racionalista, que primou sempre pela objetividade dos saberes

compartimentados e isolados.

Morin (2002:184) defende a poesia como território fértil para a atualização desse

pensamento simbólico-mitológico-mágico – o que poderíamos estender também para o

cinema, por exemplo. Segundo ele, os paradigmas desse pensamento ―permanecem vivos em

nossa experiência afetiva, em nossos ‗estados de espírito‘ e particularmente na poesia, em que

a fonte mesma do símbolo, do mito e da magia ressurge no modo estético‖. A linguagem

racional-empírico-técnica corresponde a um estado prosaico e a linguagem simbólica-mítico-

mágica a um estado poético. Morin (2002:37) entende que, desde a Renascença e,

posteriormente, com o Iluminismo, houve uma disjunção desses dois estados, o poético e o

prosaico, fazendo com que a poesia fosse relegada a segundo plano, tornando-se um

―elemento inferiorizado em relação à prosa da vida‖, e vista como algo superficial, fonte

apenas de divertimento, distanciada do mundo, apartada da vida.

Em decorrência dessa disjunção, ocorreu posteriormente o que Morin denomina

―duas revoltas históricas da poesia‖, uma das quais foi o movimento romântico, com ênfase

para o Romantismo alemão6 – que readmitiu a poesia em sua condição propulsora tanto do

sentir quanto do pensar – e, já no século XX, o advento do Surrealismo. Nesse movimento

deflagrou-se uma recusa da poesia em ser encontrada exclusivamente na forma do poema, a

poesia seria entendida agora como algo para além da expressão literária, já que o lema

surrealista era o de que a poesia ―extrai sua fonte da vida, com seus sonhos e acasos‖

6 Período de grande relevância na compreensão da interface entre ciência e arte, poesia e pensamento,

por meio do amadurecimento da Estética, bem como pelo advento de estudos acerca do trágico em um

sentido filosófico.

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(MORIN, 2002: 38), a poesia passa a ser reinserida na própria dinâmica da vida, a partir de

uma ―desprosaização da vida cotidiana‖ (MORIN, 2002: 39).

1.2 O logos poético

Essa disjunção entre mito e logos, pensamento empírico-racional e pensamento

mitológico, prosa e poesia, implicou uma dificuldade ao longo da História em se conseguir

associar poesia a pensamento. A primeira é vista sempre stricto sensu, como forma de

expressão, e não como maneira de acesso à reflexão, ao pensamento, ou como forma de

comunicação.

Toda a tradição clássica (isto é, desde a Grécia até o Iluminismo) foi uma eterna

coroação da cisão entre entendimento e imaginação, filosofia e poesia. Acerca da imbricação

da poesia com o pensamento, Maria Zambrano (2000:63) sustenta que é ainda com Platão que

se dá a ―condenação da poesia‖ e o dissídio entre o saber filosófico e o pensar poético. Com

apoio na filosofia platônica, influenciada pelo pensamento socrático, ocorreu o primeiro

embate entre a poesia e a filosofia, embora Platão não rechaçasse a poesia como um todo, e

sim especialmente a poesia de cunho trágico e a de teor épico, esta última presente, por

exemplo, na literatura de Homero. Se antes ambos caminhavam a passos compassados, então,

agora, o divórcio entre o sentir e o pensar está selado.

Referimo-nos aqui especificamente ao Platão de A República, haja vista que o

pensamento platônico é marcado pela diversidade de ideias. Se em A República os poetas são

condenados, em obras como Íon a inspiração poética e Homero são exaltados. Marc Jimenez

dá uma amostra de tal diversidade na seguinte passagem:

Porém, de que Platão estamos falando? Trata-se do poeta e do músico que

em sua juventude compõe ditirambos e tragédias para dedicar-se em seguida

à filosofia, ou então do ‗legislador‘ sensato que em ‗As leis‘ – obra que

permaneceu inacabada – acabou por tolerar a arte e seus benefícios? Fala-se

do chantre do erotismo e do amor absoluto, celebrado com paixão e fervor

no ‗Banquete‘ ou (...) do teórico de ‗A República‘ que cobre de opróbrio os

artistas em geral e expulsa os poetas para fora da Cidade? (JIMENEZ, 1999:

196).

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Essa querela entre poesia e pensamento, prolonga-se, com efeito, mais

especificamente, desde as falas de Sócrates na obra A República, de Platão – embora os pré-

socráticos já tivessem se antecipado na abordagem do assunto, mas não o tratando de forma

polarizada –, quando é colocado como decisão de primeira ordem o banimento dos poetas do

âmbito da pólis, em favorecimento do rei-filósofo. A contenda atravessou ainda o Iluminismo,

passou por Kant e Hegel, tendo sido analisada pelo Idealismo alemão. Em suma, os filósofos

nunca se mostraram indiferentes à questão, seja para endossá-la ou refutá-la. Como sustenta

Nunes,

O confronto das duas disputas sempre esteve dependente dos princípios

filosóficos e das categorias através das quais se efetivou. Ou melhor, da

verdade suprema de Platão e na Escolástica, da admissão de uma experiência

estética, diferenciada da experiência objetiva em Kant, do sujeito

transcendental em Schelling, e da racionalidade do real enquanto espírito em

Hegel‖ (NUNES, 1993 :85).

A palavra poética sempre foi, dessa maneira, fonte concomitante de enleio e reflexão,

embora tantas vezes tenha sido objeto de desconfiança por ser considerada produtora de

aparências, ou ―perigoso‖ caminho para o domínio das paixões.

Consoante Maria Beatriz Medeiros, o divórcio entre o conhecimento sensível e o

racional presente no pensamento filosófico ocidental não somente imperou desde Platão até o

surgimento da Estética – disciplina filosófica cujo nome foi criado por Alexander Baumgarten

e que surge no século XVII, buscando conjugar o senso e o sensível – como permanece até os

dias correntes. Tal desvalorização do conhecimento sensível

Não estancou nem com Baumgarten e nem nos séculos XIX e XX. Essa

desvalorização está entranhada na cultura ocidental, e o entranhado encardiu

todos os tecidos. Por isso mesmo, tanto escrevem hoje filósofos e artistas –

grito de alerta: ‗A única maneira com a qual podemos falar do saber, a saber,

de maneira poética‘ ‖ (MEDEIROS, 2005: 55).

Dentre os pensadores contemporâneos que lançaram tal ―grito de alerta‖ e que se

debruçaram sobre a questão da interseção da poesia com o pensamento, tem largo destaque

Heidegger.

Para Heidegger e seus comentadores, é a poesia (Ditchtung) que possibilita a

linguagem. A linguagem, sendo a porta de entrada para toda experiência, é também o limiar

da arte, ―cujo produzir-se requer a prévia situação do intercurso verbal‖ (NUNES, 2007: 118).

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Heidegger difere claramente a poesia no sentido de Ditchtung e a poesia no sentido

literário (Poësie), sendo a primeira algo muito mais amplo, que se relaciona com os muitos

âmbitos fundamentais da existência humana, transcendendo a poesia e a literatura, sendo algo

que abrange toda produção artística e que se refere ―à sua essência como abertura de mundo‖

(WERLE, 2005: 25), fazendo a ressalva de que a Poësie é, no entanto, ―setor essencial da

Dichtung‖ (Cf. WERLE, 2005: 25).

Na esteira dessas definições sobre o que é o poetizar (Dichten7), Heidegger assevera

que sua origem está no próprio dizer, ou seja, no formular com base na linguagem. Heidegger

(2004:36), no entanto, garante que a palavra Dichten não está relacionada necessariamente ao

poético, assim como podemos afirmar que a origem da palavra ―poético‖ não delimita essa

última como dizer poético, já que possui um significado ainda mais vago que Dichten, pois

vem do grego poiesis, que significa o produzir de algo. Heidegger, porém, aponta uma direção

mais segura para se compreender o sentido do poetizar por ele abordado. O poetizar tem o

sentido de ―mostrar, tornar algo visível, revelar algo, não no sentido geral, mas sim sob a

forma de uma indicação particular‖, poetizar seria então um ―um dizer no sentido de uma

revelação indicadora‖ (HEIDEGGER, 2004: 37).

Ainda acerca do dizer poético, Heidegger (2004:46) defende o argumento de que ele

é aproximado ao dizer pensante, ambos acontecem de forma semelhante, pois tanto em uma

aula de Filosofia quanto na recitação de um poema, o ―calar‖ é caminho para o pensamento.

Não é sinônimo de ―silenciar‖, está mais aproximado a um ―elaborar e transmitir pelo

silêncio, nas entrelinhas‖. Para Heidegger (2004:47), ―não importa realmente o que é dito de

uma forma imediata, mas sim o que é calado nesse dizer‖. O indizível também é forma de

dizer, o silêncio entre os versos de um poema e a sua repetição reforçam seu dizer, que é,

assim, sempre um dizer diferente.

Para Zambrano (2002:63), a união entre pensamento e poesia acontece de forma mais

imediata no poema do que no pensamento propriamente filosófico. O logos, na poesia, se

manifesta de maneira mais tangível e aproximada da vida, sendo a poesia, para ela, ―um modo

diferente de se ter a presença das coisas‖. A ―comunicação entre o logos poético e a poesia

concreta e viva‖ é mais frequente, pois o logos da poesia pertence a um ―consumo cotidiano,

nasce diretamente da vida, tão diariamente que às vezes é confundida com ela‖

(ZAMBRANO, 2002: 69).

7 Segundo Heidegger, se origina do verbo tihtôn, oriundo do alto-alemão, relacionado com o latino

dictore, dizer.

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O Ocidente sempre prezou a compartimentação dos saberes, por ver o pensamento

como algo apartado da atividade artística, por exemplo, como se o sensível e o inteligível

fossem âmbitos essencialmente distintos; quando os saberes deveriam também ser vistos de

forma interligada e o pensar visto como um ―juntar o que alguma vez se dividiu (...), se

fracionou absurdamente para explicar ou para raciocinar: aqui a ciência, a filosofia e ali o que

é arte, poesia‖ (JUARROZ, 1980: 39).

Na relação entre poesia e pensamento, o imaginário é elemento importante. Na

compreensão de Juarroz, é necessário recuperar a anterior unidade entre pensamento e

imagem, palavra de onde se origina o vocábulo imaginário. Na poesia há imagem, podemos

nela designar uma ―imagem do pensar ou imagem de pensamento‖ (JUARROZ, 2005:13), um

pensamento-imagem, visto que a linguagem metafórica própria do poético aponta para um

pensar através das imagens. Para Maffesoli (2001:120), ―há um poder da palavra que

corresponde à potência das imagens‖.

O imaginário perpassa, portanto, a poiesis, o ato de criação, já que é fruto desse

―impulso oriundo do ser‖ (PITTA, 2005:14) de criar coisas e a elas dar significado.

Analisando o imaginário e sua relação com o domínio do simbólico na obra de Gilbert

Durand, Danielle Pitta lembra que a imaginação, ―essência do espírito‖, como defende

Durand8, é essencialmente aberta e evasiva. Assim, a poesia também é abertura e inovação,

visto que é materialização, por meio da linguagem simbólico-metafórica, desse imaginário

mais amplo. Ela é do campo do simbólico, do sensível e do subjetivo. O imaginário orbita,

assim, em torno dos grandes temas onde estão contidas as grandes imagens reincidentes na

produção simbólica humana, e para as quais as demais imagens ―convergem e se organizam‖.

A faculdade da imaginação que possibilita o ato criativo (a poiesis), seja ele na prosa

ou na poesia, pode ser provocadora de uma reflexão filosófica. No caso da prosa poética, tudo

depende, para Ítalo Calvino (2009:184), de como ―o escritor penetra na crosta das coisas‖,

dando como exemplo a literatura de James Joyce, que, ao imaginar uma praia, tudo o que

tocava, ―sapatos arrebentados, ovas de peixe, seixos rolados, aparecia perturbado de sua

última essência‖.

8 Durand (1999: 14) explica que, com a consolidação do Cientificismo e do Historicismo, se deu a

desvalorização por completo do potencial cognitivo do imaginário, visto que se caracterizaram como

sistemas de pensamento que, de acordo com o autor, desvalorizaram ―o pensamento simbólico e o

raciocínio pela semelhança, a metáfora‖. Nesse mesmo movimento, defende Durand (1999:14), ―as

divagações dos poetas (que passarão a ser considerados os ‗malditos‘), as alucinações e os delírios dos

doentes mentais, as visões dos místicos e as obras de arte serão expulsas da terra firme da ciência‖.

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No trânsito entre filosofia e poesia, podemos apontar o uso da metáfora por diversos

filósofos ao longo da história. A metáfora não somente é caracterizada como recurso de

linguagem, mas também como um operador cognitivo. Essas imagens metafóricas são, como

aponta Nunes, tanto ―úteis por seu valor didático‖, como também ―imortais por seu valor

poético‖, dando como exemplo ―o rio de Heráclito, a esfera de Parmênides, a linha de

Pitágoras, a caverna de Platão, a pomba de Kant‖ (NUNES, 2007: 15). Endossando o uso da

metáfora, Goethe assevera que ―a ideia, na imagem, permanece infinitamente ativa e

inexaurível‖ (GOETHE apud BOSI, 2008: 19).

A metáfora9 não deve ser vista, assim, apenas como figura de linguagem (ordem

semântica), e sim como algo mais amplo, pois ela ―permite superar a simples adequação

significante/significado e construir mundos abstratos‖ (MAILLARD, 1992: 97). Para Maillard

(1992:97), a metáfora é antes um pensar por meio de imagens, antes um ―horizonte ou âmbito

metafórico‖ do que um recurso estilístico, sendo da própria natureza da metáfora a produção

de um ―erro óptico necessário‖, a produção de algo que ―ultrapasse os limites impostos pela

forma literal da linguagem‖. A metáfora é uma recriação do real10

, não tem valor de

representar e sim de mostrar; não tem compreensão de representação e sim de presentificação,

sendo esse caráter metamórfico da realidade pertinente a toda criação poética (Cf.

MAILLARD, 1992: 123).

Maffesoli ressalta que desde Aristóteles já existia uma desconfiança em relação à

metáfora, que era vista como um mero jogo de espírito, sem valor cognoscitivo. Para

Maffesoli (1998:148), a metáfora, a intuição e a descrição são ferramentas importantes para a

elaboração do pensamento, visto que impulsionam ―o elã livre do pensamento especulativo‖.

O uso da metáfora não é, portanto, mero lançar mão de um recurso estilístico ou recamo de

linguagem, como já assinalamos; a metáfora deve ser compreendida como ―alavanca

metodológica, como foi o conceito, num tempo em que reinava a razão abstrata e a esperança

em valores universais oriundos da Filosofia das Luzes‖ (MAFFESOLI, 1998:156).

9 A palavra metáfora provém do grego. Advém do verbo transportar, etimologicamente significando,

portanto, transporte (Cf. MAILLARD, 1992:97).

10 Para Fernando Pessoa, em seu O Livro do Desassossego, ―há metáforas que são mais reais do que a

gente que anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito

homem e muita mulher‖ (PESSOA apud MAFFESOLI, 1998: 157).

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1.3 Comunicação e poesia

A Comunicação, segundo Ciro Marcondes Filho (2004:15), é uma noção que não

detém uma ontologia, já que não se trata de um conceito fixo, constituído de uma essência ou

verdade. A comunicação é antes de tudo um processo, um acontecimento, produtor de algo

novo, de um encontro, não devendo ser confundida com sinalização ou informação (Cf.

MARCONDES, 2004: 64)

Castro e Dravet definem a comunicação com base no que denominam como

princípio com, impulso ―animador e movimentador do existir; o fundamento da abertura, do

despertar e do acompanhar do existir‖ (CASTRO; DRAVET, 2007: 73). A comunicação é,

para eles, um sistema aberto. Nos estudos da Comunicação, a poesia foi esquecida como

possível objeto de estudo dessa disciplina, quando poderia ter sido vista como uma

possibilidade de enriquecimento do pensamento comunicacional ou como parte importante no

sistema de conexões da comunicação (Cf. CASTRO; DRAVET, 2007: 74).

Três padrões interativos na relação comunicação/poesia podem ser observados,

segundo Castro e Dravet: o mítico imaginativo, o técnico-científico e o das interações

complexas.

O padrão mítico-imaginativo é o que enxerga a poesia como algo do ―campo do

sagrado, da narrativa fabular‖; a poesia como era vista nas sociedades clássicas, em seu

potencial de a um só tempo estar presente na realidade objetiva, ou seja, na vida social e na

oralidade, e ser também expressão do sagrado e do mítico. Como acentuam os autores:

Podemos dizer que os padrões de interação entre esses discursos e a

comunicação, que remontam sobretudo ao Egito e à Grécia arcaica possuem,

além da narrativa de costumes e acontecimentos históricos através dos

versos, a inseparabilidade realidade mítica/realidade cotidiana (CASTRO;

DRAVET: 6).

O padrão técnico-científico valoriza o divórcio entre a poesia e os demais

conhecimentos, localizando-a como um discurso restrito à ―ordem do devaneio e do onírico‖.

Nesse padrão, a interação entre comunicação e poesia permanece reduzida, assim, a

comunicação fica ―limitada ao trânsito informacional, às culturas de massa, às

telecomunicações e à racionalização das infovias‖, o ―diálogo entre um e outro se torna algo

inusitado e pitoresco‖. Sendo assim, embora se admita que a busca por uma expressão poética

em produtos veiculados pelos meios de comunicação seja uma prática por vezes corrente, tal

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expressão é secundária. Em muitos casos é apenas verniz para que o produto se torne mais

atraente ou vendável.

O último padrão de interação, o das interações complexas, vê a poesia como logos

singular, como forma de conhecimento e filosofia da comunicação.

A poesia e a comunicação mantêm aqui um padrão de interação governado

pela cadeia das metáforas, pela busca dos fundamentos, pela retomada da

dimensão encantada, pela multiplicidade e interpenetração dos discursos, por

constituir-se, enfim, em um logos singular (CASTRO; DRAVET: 8).

A poesia, assim, é fundamento para a ampliação epistemológica da Comunicação

como saber, um meio para melhor compreensão da ―verticalidade dos fenômenos

comunicacionais‖ (CASTRO, 2007: 50). Por meio do poético, a Comunicação pode ser vista

além dos fenômenos concernentes ao campo dos mass media; isso não implicando que os

saberes técnicos e sócio-midiáticos não devam ser considerados, porém devem ser observados

como apenas uma das dimensões do saber comunicacional, e não a única; são constituintes

assim de uma dimensão horizontal, que também engloba ―os saberes da linguagem, do

diálogo e das relações cotidianas mediadas pelas trocas e conexões‖.

Complementar a essa dimensão horizontal, existe a verticalidade do pensamento

comunicacional, uma dimensão mais filosófica. Essa confluência entre poesia e comunicação,

a ―busca vertical da palavra ou o desafio da busca pelo aberto na comunicação‖ (CASTRO,

2007: 52), vem a ocorrer justamente por intermédio do pensamento poético, com base no

aberto, no que pode ser denominado razão-poesia11

. Para Castro e Dravet, o aberto se trata de

um conceito negligenciado tanto pela ciência como pela filosofia, com exceção de alguns

filósofos que o abordaram. Trata-se do

[...] grande conceito esquecido pela ciência. Quase toda a filosofia

também o esqueceu, com exceção de Martin Heidegger e Edgar

Morin, muito embora os mais altos poetas-filósofos de nosso

tempo tenham chamado a atenção para sua importância, entre

eles, Hölderlin, Rilke e Juarroz. A princípio, duas ideias-chave

decorrem do conceito de aberto: primeiro que as leis de

organização e de manutenção do existir decorrem não do

equilíbrio, mas do desequilíbrio. É o desequilíbrio o elemento

propiciador do equilíbrio. A segunda ideia é a de que, para

compreender o existir, devemos procurar as razões não apenas no

próprio existir, mas também nas suas conexões, isto é, no

princípio com. A realidade do existir está tanto no elo do existir

consigo e com o aberto, quanto na distinção para com eles. O

11

Noção também utilizada por filósofos como Chantal Maillard ou por poetas como Roberto Juarroz.

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30

aberto12

implica o indeterminado, o risco, a conexão flexível; o

fechado implica a autonomia, a segurança, a conexão rígida

(CASTRO e DRAVET, 2007: 75).

A poesia caracteriza-se, com efeito, como norteadora nessa busca pela verticalidade

e pelo aberto na comunicação. O termo vertical implica que a relação entre comunicação e

poesia aponta para uma cosmovisão, a comunicação entendida como possibilidade de

elevação, propulsora de experiências, pois, pela via da poesia, pode ser entendida como um

novo ―modo de inserção no real, um modo de trazer o real à sua própria companhia‖

(CASTRO, 2007: 53).

Segundo Mailllard (1992:44), a ―desocultação da realidade é manifestação: logos‖,

pois por meio da palavra ―manifestamos o que está oculto, a princípio para nós mesmos no ato

de pensar, e seguidamente aos outros nos atos de comunicação‖, assim como, a comunicação

também é manifestação de um logos poético. A comunicação vista de forma abrangente – não

restrita apenas aos meios de comunicação social – como atividade essencial do homem e

―manifestação poética do ser‖, está, assim, conjugada ―intrínseca e permanentemente com a

manifestação lógico-técnico-racional desse mesmo ser‖ (CASTRO; DRAVET, 2007: 74).

Dessa maneira, como reflexão acerca da costumeira disjunção entre poesia, pensamento e

comunicação, lançam-se questionamentos em prol de uma interseção deles: ―Por que então

não atribuir à poesia o seu lugar dentro do pensamento sobre a comunicação? Acaso, todo ato

de comunicação não implica ao mesmo tempo o duplo movimento do pensar e do sentir?‖

(CASTRO; DRAVET, 2007: 75).

Os fenômenos comunicacionais não englobam apenas a comunicação

emissor/canal/mensagem/receptor. A comunicação não se trata apenas da comunicação

referencial. Como destaca Antonio Cicero, em relação especificamente à forma-poema, a

palavra poética não se constitui como um ―ato de fala‖, uma fala referencial

(significante/significado). Nesse sentido ele de fato nada comunica, como afirma Cicero,

parafraseando Wittgenstein: ―Não esqueçamos de que o poema, ainda que redigido pela

linguagem da comunicação, não é usado no jogo de linguagem da comunicação‖

(WITTGENSTEIN apud CICERO, 2005: 130).

12 O desequilíbrio como propiciador do equilíbrio pode ser percebido como um indício da presença do

aberto no trágico. Nesse último, a busca pela salvação é o encontro com a ruína, enquanto o lançar-se

ao risco pode representar uma possibilidade de salvação.

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31

Vilém Flusser (2007:89) ressalta a artificialidade da comunicação, sendo essa

―baseada em símbolos organizados em códigos‖, visto que o homem é um ser cultural por

excelência, imerso na cultura. Uma artificialidade que buscamos com constância naturalizar,

que buscamos esquecer que é fruto da produção simbólica humana e não algo como a

comunicação presente no ―canto dos pássaros‖ ou na ―dança das abelhas‖ (FLUSSER,

2007:89). Tratamos esse mundo pleno de significados em que estamos inseridos como uma

―segunda natureza‖, ressalta Flusser, como forma de esquecermos nossa condição de seres

fadados à finitude.

Esse é, em última análise, o objetivo do mundo codificado que nos circunda,

que esqueçamos que ele consiste em um tecido artificial que esconde uma

natureza sem significado, sem sentido, por ele representada. O objetivo da

comunicação humana é nos fazer esquecer desse contexto insignificante em

que nos encontramos – completamente sozinhos e ‗incomunicáveis‘ – ou

seja, é nos fazer esquecer desse mundo em que ocupamos uma cela solitária

e em que somos condenados à morte (FLUSSER, 2007: 89).

A comunicação pela poesia é um encontro com uma desnaturalização da

comunicação, mediante uma ―desnaturalização‖ da linguagem falada correntemente,

paradoxalmente fazendo uso da própria linguagem. A poesia comunica sem comunicar. Ela

não se constitui num ―ato de fala‖, ou seja, na relação de sentido baseada em um

significante/significado, pois é no próprio fato de ser um objeto de experiência estética que

está o seu dizer, em razão do potencial da palavra poética como um ―infinito estético‖,

expressão de Paul Valéry (VALÉRY apud NOVAES, 2005:12). Manoel de Barros (2000:71)

sentencia: ―Não gosto de palavra acostumada‖; acostumada a uma comunicação apenas como

―ato de fala‖, sem explorar o potencial comunicativo e cognitivo contido na palavra poética,

no jogo entre palavras e imagens, como prazer estético.

Diante do pensamento de Flusser, podemos arriscar que a poesia, em sua linguagem

―desnaturalizada‖, ressoa como um lembrete de nossa frágil condição, de nossa finitude,

sendo, assim, paradoxalmente, afirmação de vida. É na instância da poesia que o espanto do

mundo e seu comunicar se fazem presentes. O poema diz algo, esse algo estando inseparável

de sua maneira de dizer, por isso Cicero denomina a poesia como ―o mais escrito dos escritos‖

(CICERO, 2005: 133). Esse dizer, contudo, pode ser interpretado como comunicação, embora

uma comunicação distinta da comunicação como ―ato de fala‖ e sim uma comunicação pela

via da experiência estética, isso se constituindo como um dos paradoxos da poesia, segundo

Cicero: o fato de ela comunicar sem comunicar. Parafraseando Drummond, Adauto Novaes

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ressalta, nesse sentido, que a poesia é ―incomunicável‖, ―intransitiva‖, no sentido de que a

palavra poética não visa à utilidade prática, à compreensão imediata, referencial.

A linguagem ordinária é ‗anulada no próprio momento em que é

compreendida. Mas a linguagem poética, intransitiva e

‗incomunicável‘, ‗deve ter esse caráter mágico‘ cuja função é

produzir excitações sobre os ‗nervos do espírito‘, criar um

‗estado de encantamento‘ (NOVAES, 2005:13)

A comunicação proporcionada pela palavra poética se dá mediada pela imaginação,

no sentido tomado por Kant, ―como uma faculdade intermediária entre a sensibilidade e o

entendimento, e irredutível àquela ou a este‖ (CICERO, 2005:132). A comunicação de um

poema ou de um filme ocorre então, como já foi expresso, pela experiência estética

proporcionada pelo poema ou pelo filme, pela beleza que reside na ―finalidade sem fim‖,

fundamento da experiência estética própria da poesia e da arte, isto é, no ―livre jogo entre as

faculdades do conhecimento: e é desse livre jogo que resulta a promoção do sentimento

vital, isto é, o prazer estético‖ (CICERO, 2005:132).

1.4 O lírico

Vimos até aqui que a poesia se caracteriza como um pensar e um sentir, e que o

poema, como exemplo disso, é um objeto estético autônomo capaz de reunir dicotomias

consagradas pelo legado ocidental, como razão e emoção, pensamento e sensibilidade, arte e

conhecimento, poesia e filosofia.

Para Heidegger, a poesia (a linguagem) é caminho para o pensamento, para o Ser,

sendo o que torna o pensamento possível. O dizer poético, para o filósofo, não se trata de

subjetivismo, como algo limitado à expressão de vivências interiores do poeta, como afirma

no seguinte excerto, acerca da poesia de Hölderlin: ―Quando Hölderlin fala da ‗alma do

poeta‘, isso não corresponde a um divagar pelas próprias vivências interiores, não se trata de

um contexto vivencial situado algures dentro de si, mas sim do exterior mais extremo da nua

exposição às intempéries‖ (HEIDEGGER, 2004:38). Fica exposta nesse trecho a fala poética

como fruto não somente de uma expressão do íntimo do poeta, mas de uma exposição ao risco

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e à desproteção das ―intempéries‖, isto é, uma exposição ao aberto13

, segundo Heidegger.

Assim como o poético, o trágico — também como manifestação poética, lírica — trata-se de

um caminho para o aberto, como exposição ao risco da existência.

Para Lopes, o fenômeno lírico se caracteriza como sendo ―o criador do ‗espaço‘

intrasubjetivo — o ‗eu‘ lírico —, criado ou recriado através da própria essência da linguagem,

em uma associação de sonoridade, ritmo e imagem condensadas, capazes de desencadear uma

série quase infinita de outras associações‖ (LOPES, 1995:63). O eu lírico deve possuir um

alcance ontológico, pois ele não é somente a expressão de um ‗eu‘ interior. Assim como o

dizer poético para Heidegger, o ‗eu‘ lírico, para Lopes, não se limita a um subjetivismo,

apenas como expressão íntima do ser. Não é um eu empírico, psíquico, constituído como

sujeito objetivado, e se caracteriza como expressão de um ―estado de alma‖, porém um estado

de alma que diz algo sobre o mundo, que expressa uma cosmovisão. Como atesta Heidegger:

―A fala do poeta fala o inteiro som da existência do mundo, que invisivelmente oferece-nos

seu espaço, dentro do mundo do espaço interno do coração‖ (HEIDEGGER apud LOPES,

1995:56). Acerca do aspecto ontológico da linguagem previsto por Heiddeger, afirma Lopes

que

A capacidade de universalização da linguagem, principalmente sob a forma

de fenômeno lírico, permite-nos melhor a compreensão de porque Heidegger

denominou-a ‗Morada do Ser‘. A imagem poética, criada e recriada pela

universalidade conferida pela palavra, supera o abismo entre o particular e o

genérico, entre o individual e o social‖ (LOPES, 1995:218)

A passagem do psicológico ao ontológico só pode ser compreendida se o ‗eu‘

lírico for pensado ―como além do ‗eu‘ empírico, cartesiano ou postulado como uma função

psíquica‖ (LOPES, 1995:53), devendo ser pensado como a expressão de múltiplos ―eus‖,

estados de alma, mas estados de alma que dizem algo sobre o mundo.

Lopes defende também uma anterioridade do fenômeno lírico, a ideia de que o

lírico é anterior historicamente ao surgimento dos demais gêneros literários, em oposição à

defesa de muitos autores de que foi a epopeia a primeira manifestação poética, anterior

13

Acerca do aberto, do ser-aí, Heidegger assevera que é um ―estar à mercê do poder esmagador do

ser‖ (HEIDEGGER, 2004:38), citando, a propósito disso, um trecho de uma carta de Hölderlin a um

amigo, quando estava prestes a retornar do exílio para a sua terra natal como um ―derrotado‖

(HEIDEGGER, 2004:38): ―Mas faço o que posso, e penso, quando vejo que, no meu caminho,

também tenho de ir para onde os outros vão, que é sacrílego e demente procurarmos um caminho que

estivesse seguro de todo o ataque, e que não há remédio para a morte‖ (HÖLDERLIN apud

HEIDEGGER, 2004:38).

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também à tragédia, segundo Jean Pierre Vernant e Vidal Naquet. Consoante Lopes, não se

trata de uma anterioridade somente histórica, mas no sentido de ser uma constante recriação e

atualização dentro da expressão literária, como ―recriação e manutenção de todas as

literaturas‖ (LOPES, 1995:69).

Frequentemente atribui-se ao épico, tendo por paradigma o papel exercido

pelos textos homéricos na Grécia Antiga, o início da literatura ocidental.Não

é raro que tal gênese a partir do épico também seja atribuída a outras

tradições culturais. Em A origem da Tragédia, Nietzsche colocou em dúvida

tal procedência. Para Nietzsche o poeta lírico Arquíloco (século VII a.C.)

possui tanto ou mais relevância que Homero, seja para a compreensão da

história da cultura grega, seja para a própria estética em si (LOPES,

1995:35).

Lopes defende o fenômeno lírico na qualidade de essência da própria linguagem e

da poesia, então, o considera um sinônimo do poético. Para ele, a ―essência da experiência

poética manifesta-se primordialmente através do gênero lírico‖ (LOPES, 1995:59), ao mesmo

tempo em que propõe a ―conceituação do fenômeno lírico enquanto essência da poesia‖,

questionando se é possível alguma peça ou romance que não tenha sobrevivido ao tempo sem

possuir alguma espécie de lírica. O lírico de que fala Lopes está além da Lírica14

como poema

escrito, como legado e tradição literária, é algo mais amplo. Defende o fenômeno lírico como

núcleo da poesia. Emil Staiger (1972: 163), salienta que o lírico é o ―último fundamento

perscrutável do fenômeno poético‖.

O tema das divisões entre os gêneros é um dos mais antigos da poética e, desde a

Antiguidade até os nossos dias, é objeto de discussão, não sendo considerado restrito à seara

literária, pertencendo assim a uma ―tipologia geral dos discursos, de que o discurso literário é

apenas um caso particular15

‖ (TODOROV; DUCROT, 1973:187). É ainda no século IV que

Diomedes, sistematizando Platão, propõe as seguintes definições: ―LÍRICO = as obras em que

só falam o autor; DRAMÁTICO = as obras em que só falam as personagens; ÉPICO = as

obras em que o autor e as personagens têm igualmente o direito à palavra‖ (TODOROV;

DUCROT, 1973: 154).

14

Em sua origem, o termo remete a poemas, geralmente não muito longos, sem personagens

claramente discriminadas, em que a melodia e o ritmo eram reforçados por algum instrumento

musical, geralmente a lira, e expressavam o íntimo do poeta (Cf. LOPES, 1995:46). Segundo

Rosenfeld, espécies desse gênero são, por exemplo, o canto, a ode, o hino e a elegia (Cf.

ROSENFELD, 1985:6).

15 Segundo Todorov e Ducrot, porém, por essa tipologia ser em seu todo ―relativamente pouco

elaborada, é preferível abordar o estudo pela via dos gêneros literários‖ (TODOROV, 1973:187).

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35

Lopes ressalta que a separação dos gêneros em dramático (cômico e trágico),

épico e lírico são separações apenas com fins didáticos, o que significa que as permutas entre

os gêneros fazem parte de sua gênese. Para Staiger, não existem obras exclusivamente épicas,

líricas ou dramáticas; já que ―toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos

os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação designamo-la épica, lírica

ou dramática‖ (STAIGER, 1972: 190). Cada gênero, no entanto, possui suas especificidades,

como o fato de que nos ―gêneros épico e dramático há uma clara predominância do conteúdo,

do que é narrado sobre como é narrado‖ (LOPES, 1995:60).

Na perspectiva de Anatol Rosenfeld, a problemática acerca da tipificação dos

gêneros decorre do fato de os termos ―lírico‖, ―épico‖ e ―dramático‖ serem empregados em

duas acepções distintas, sendo uma substantiva e outra adjetiva. A substantiva está muito

associada à estrutura dos gêneros em si, sendo assim de mais fácil classificação. Já a segunda

acepção, de cunho adjetivo, ―refere-se a traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída

em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero (no sentido substantivo)‖

(ROSENFELD, 1985: 7), dando o exemplo de uma peça de Federico García Lorca, que,

embora pertença ao gênero dramático (sentido substantivo), possui cunho acentuadamente

lírico (sentido adjetivo) como traço estilístico. Na segunda acepção, os termos adquirem

amplitude maior, podendo ser aplicados mesmo a situações extra-literárias.

Para Rosenfeld, o lírico é o mais subjetivo dos gêneros, já que ―no poema lírico

uma voz central exprime um estado de alma e o traduz por meio de orações‖ (ROSENFELD,

1985:10). De certo modo, o gênero dramático é ―o gênero oposto ao lírico‖; nesse último ―o

sujeito é tudo, no dramático o objeto é tudo‖. Com isso o autor se refere ao fato de a

Dramática ser toda somente diálogo entre personagens, sem a presença de um narrador,

enquanto a Épica é caracterizada pela presença de um narrador, que narra o enredo e suas

personagens. Os traços estilísticos mais importantes da obra dramática ―pura‖, como ―tipo

ideal‖, são muito aproximados dos preceitos aristotélicos, pois, como já expressamos, exige-

se no drama o desenvolvimento autônomo e encadeado dos acontecimentos, eles se

apresentam por si mesmos, sem intervenção de qualquer mediador, o que lhes confere sua

objetividade: ―o simples fato de que o ‗autor‘ (narrador ou ‗Eu lírico‘) parece estar ausente da

obra – ou confundir-se com todos os personagens de modo a não distinguir-se como entidade

específica dentro da obra – implica uma série de consequências que definem o gênero

dramático e os seus traços estilísticos em termos bastante aproximados das regras

aristotélicas‖ (ROSENFELD, 1985:18). A característica principal da Dramática é, portanto, a

ação, como prega Aristóteles. Rosenfeld considera que, até certo ponto, porém, podemos

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considerar o gênero dramático como aquele que reúne a ―objetividade e a distância da Épica e

a subjetividade e intensidade da Lírica‖ (IDEM, 1985:16), já que, no caso desse gênero

dramático:

Tanto o narrador épico desapareceu, absorvido pelos personagens com os

quais passou a identificar-se completamente pela metamorfose,

comunicando-lhes todavia a objetividade épica, como também se fundiu o

Eu lírico com os personagens, comunicando-lhes a sua intensidade e

subjetividade. Assim, os personagens apresentam-se autônomos,

emancipados do narrador (que neles desapareceu), mas ao mesmo tempo

dotados de todo o poder da subjetividade lírica (que neles se mantém viva)

(ROSENFELD, 1985:16).

Na tragédia narrativa, como drama teatral, o lírico está presente e é parte

importante na confecção da tragédia, mas existem obras em que ele se encontra de maneira

mais acentuada do que em outras. Existem obras em que ele aflora de modo mais evidente,

como na obra de Ésquilo. O lírico não se manifesta de forma homogênea nas tragédias, sendo

o lírico que define a intensidade poética de tais obras, seus picos de expressão poética,

entendendo intensidade poética como sendo ―a frequência com que um texto evoca uma

sucessão de idéias e imagens‖ (LOPES, 1995:41). O lírico não se encontra, assim, manifesto

em toda a extensão das tragédias, da mesma maneira que a Odisseia ou a Divina Comédia são

heterogêneas em sua intensidade poética, alternando trechos poéticos com extensos trechos de

prosa (Cf. LOPES, 1995:46). Para Lopes (1995:46), tudo se configura como a reflexão

nietzscheana de O nascimento da tragédia, ao defender a idéia de que o elemento embriagante

e dionisíaco trazido pela tensão poética só é passível de ser fruído e tolerado em contraste

com momentos de distanciamento apolíneo.

O lírico nas peças de Ésquilo — um dos primeiros tragediógrafos gregos — é

patente, ―mostrando-nos como o poético, longe de ser um mero acontecimento agradável aos

sentidos, é capaz de conduzir-nos à reflexão de modo tão profundo quanto a filosofia‖

(LOPES, 1995:37). De acordo com Lopes (1995: 37), ―a quase ausência de ação e a

predominância de imagens evocatórias, que exprimem ‗estados de alma‘ sofridos por vários

‗eus‘, colocam Prometeu Acorrentado sob a égide do lírico tal qual o definimos‖.

Nietzsche, ao valorizar Ésquilo acima dos outros tragediógrafos gregos16

, ―revela

a proximidade daquele em relação à origem do trágico, consequentemente do seu parentesco

16 Segundo Nietzsche, Sófocles e principalmente Eurípedes – tragediógrafos posteriores a Ésquilo –

são representantes do chamado socratismo estético, condenado pelo filósofo como deturpador da

tragédia. Segundo ele, com o advento do legado racionalista de Sócrates deu-se a ―morte‖ da tragédia

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mais próximo com o lírico‖ (LOPES, 1995:37). Em O Nascimento da Tragédia, o filósofo

descreve o trágico na perspectiva do lírico, por meio da música. Para Nietzsche, a poesia lírica

é a ―fulguração imitadora da música em imagens e conceitos‖, sendo a música que o obriga ao

discurso imagístico. Expressando sua aparência em imagens por meio da música, lança mão

―de todos os transportes da paixão, desde o sussurrar da propensão até o trovejar do delírio‖

(NIETSZCHE, 2007: 40). A identidade do fenômeno lírico com a música advém da lírica

antiga, mais precisamente por intermédio do poeta Arquíloco (século VII, a.C.). Para

Nietzsche, com Arquíloco se dá um novo universo da poesia, que contradiz o universo de

Homero, pois a linguagem se torna empenhada ao máximo em imitar a música.

Nietzsche (2007:42) condena os que tacham o fenômeno lírico como algo que é da

ordem do subjetivismo, pois para ele o homem ―que deseja e quer subjetivamente não pode

jamais e em parte alguma ser poeta‖. Para o filósofo, o ―eu‖ do lírico deve soar a partir do

―abismo do ser‖, ―sua ‗subjetividade‘ no sentido dos estetas modernos é uma ilusão‖

(NIETZSCHE, 2007:41), isto é, a subjetividade do sujeito lírico vai além do subjetivismo, do

mero lirismo17

. É uma expressão que aproxima o lírico do estado dionisíaco e é possuidora de

uma ressonância ontológica.

No capítulo que segue discorreremos de forma mais detalhada acerca do trágico

com o lírico acentuado, o que caracterizamos aqui como poeticidade trágica; bem como sobre

as origens do mito trágico; sobre como é disposta a tragédia grega como drama, seus

elementos, e acerca da evolução do trágico como conceito filosófico.

paradigmática, pois a consequente propagação do saber teórico-científico como único caminho de

acesso à realidade acarretou o enfraquecimento do impulso dionisíaco e a cristalização do impulso

apolíneo, priorizando a medida em detrimento da desmedida. Eurípedes é considerado por Nietzsche

―o poeta do socratismo estético‖, e relembra que Sócrates, ―como adversário da arte trágica‖, se

recusava a freqüentar as apresentações das tragédias, ―e só se incluía no rol dos espectadores quando

uma nova peça de Eurípedes era apresentada‖ (NIETSZCHE, 2007:82). A comédia aristofanesca

costumava ridicularizar as posturas de Sócrates e Eurípedes (Cf. NIETSZCHE, 2007:81).

17 O vocábulo ―lirismo‖ foi cunhado no interior do Romantismo francês, no intuito de designar o

caráter acentuadamente individualista e emocional assumido pela poesia lírica a partir do século XIX.

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38

Capítulo 2

A TRAGÉDIA E O TRÁGICO

2.1 O mito dionisíaco e o mito trágico

Para discorrermos sobre o mito trágico, é inevitável revisitar o mito dionisíaco, já

que o primeiro foi engendrado a partir do segundo e a ele deve sua conformação estética,

embora também seja fruto do mito do herói, como apontam os estudiosos do tema. Sobre o

mito trágico, Phillipe Boyer assegura que da mesma forma que não podemos alegar a morte

do mito de uma maneira geral, não podemos também decretar a morte do trágico, já que falar

de ambos é ―falar da mesma coisa, lá onde a tensão específica do discurso se institui com a

verdade da morte‖ (BOYER, 1997: 85).

De acordo com Ana Beatriz de Paiva Costa, acerca do mito dionisíaco,

especificamente, poucas referências existem na literatura grega. Tanto na Ilíada quanto na

Odisseia, clássicos da literatura universal atribuídos a Homero, ―curiosamente, Dioniso

aparece apenas duas vezes, onde não lhe é dada a menor importância‖ (COSTA, 2004: 361),

essa ausência se manifestando também na teogonia oficial, de Hesíodo (Cf. COSTA,

2004:368).

Esse quase-silêncio acerca de Dioniso em textos importantes sobre o Olimpo

talvez se deva ao fato de que, segundo sua narrativa mítica, Dioniso era um deus que não se

integrava aos conflitos divinos sobre a ordem do mundo ou o curso das guerras, se situava à

revelia das questões do Olimpo, tendo permanecido durante muitos anos viajando em terras

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estranhas ao mundo grego: ―Quando regressa, é ele o estrangeiro, totalmente alheio aos

problemas da sociedade olimpiana‖ (COSTA, 2004:361). Ao adentrar o Olimpo, porém, à

trajetória do Deus foram adicionados elementos do imaginário grego, dando-se assim seu

batismo de ordem mítica. Dioniso é o deus errante, das vegetações, bem como o deus exótico

e estrangeiro. Nietzsche classifica Dioniso como um deus semigrego (Cf. MACHADO, 2006:

211), porém Hölderlin antes dele já o considerava um deus estrangeiro, um ―deus dos

elementos asiáticos‖ (idem, 2006: 212).

Conforme o mito dionisíaco, Dioniso era um deus dotado da capacidade de

metamorfosear-se em formas mais variadas; é o deus do mimetismo18

, da transmutação,

possuindo a capacidade de se misturar ao meio circundante sem ser notado. Dioniso

representa a duplicidade da vida e da morte, do cosmos e do caos, da luz e da treva, é o

―ordenador de um cosmos que se apresenta como contradição‖ (SOUZA, 2001:122). Essa

―tensão harmônica dos contrários‖ (idem, 2001:122) diz respeito à própria natureza do

trágico, sendo Dioniso a primeira moldagem do herói trágico.

A narrativa do mito dionisíaco conta que da união Zeus e Perséfone nasceu

Zagreu, o primeiro Dioniso, o qual, preferido pelo pai, como também pelos deuses e pelos

homens, estava destinado a sucedê-lo. Para proteger Dioniso dos ciúmes de Hera, sua esposa,

Zeus o confiou aos cuidados de Apolo e dos Curetes, que o criaram nas florestas de Parnasso.

Hera descobriu seu esconderijo e encarregou os Titãs de raptá-lo, e estes, apesar das tentativas

diversas de metamorfose de Dioniso, conseguiram surpreendê-lo sob a forma de touro e o

devoraram. O coração palpitante do deus foi salvo por Palas Atena.

Zeus apaixonou-se então (mais uma vez) por uma princesa mortal, a tebana

Sêmele, que engoliu o coração palpitante do primeiro Dioniso, tornando-se grávida do

segundo Dioniso19

. Hera, ao ter conhecimento do relacionamento amoroso de Sêmele com seu

esposo, se determina a prejudicá-la e eliminá-la. Transforma-se então em sua ama e a

aconselha a pedir a Zeus que se lhe apresente em todo o seu esplendor, embora Zeus já tivesse

advertido a princesa de que esse pedido lhe seria fatal. Sêmele não lhe deu ouvidos. Como

Zeus havia jurado ao rio Estige nunca contrariar seus desejos, acatou o pedido e se apresentou

com seus raios e trovões. O palácio inteiro assim incendiou-se e a princesa faleceu. Zeus

18

Talvez uma das explicações para a importância da mímesis como componente da tragédia grega. Na

tragédia As bacantes, Dioniso de transfigura em várias formas.

19 A lenda tem muitas variantes, pois existe a versão de que fora Zeus quem engoliu o coração de

Dioniso, antes de fecundar Sêmele (Cf. BRANDÃO, 1992:22).

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então recolheu do ventre de Sêmele ―o fruto inacabado de seus amores‖ (BRANDÃO, 1992:

22) e o colocou em sua coxa, para que a gestação fosse assim concluída. Ao nascer o filho, o

entregou aos cuidados das Ninfas e sátiros do monte Nisa, protegendo-o dessa maneira dos

ardis de sua esposa Hera. Dioniso vivia escondido em uma gruta remota, porém cercada por

exuberante vegetação e em cujas paredes se espraiavam galhos de videira, de onde pendiam

cachos carregados, de cujos frutos Dioniso, de certa feita, extraiu seu sumo e derramou-o em

taças de ouro, bebendo-o em companhia de sua corte. Nasceu assim o vinho. E do novo maná

beberam repetidamente sátiros, Ninfas e Dioniso, dançando sem parar até que, ―embriagados

do delírio báquico, caíram por terra semidesfalecidos‖ (BRANDÃO, 1992: 23). Como se pode

perceber, as narrativas pertencentes ao mito dionisíaco associam Dioniso tanto a prazeres

quanto a tragédias.

Dioniso é, como Orfeu, um deus cultuado pelos camponeses, uma divindade

agrícola. Além disso, o orfismo (mito de origem do gênero lírico), como uma das principais

formas de religiosidade popular grega, guarda semelhanças íntimas com o mito de Dioniso.

Seu fundador seria um filho mortal de Apolo, mas que teria abandonado o culto a seu pai em

troca do culto a Dioniso, assim adaptando o culto dionisíaco:

Ao reformular a religião dionisíaca, Orfeu a teria mesclado e atenuado com

as características solares e civilizadoras do culto a Apolo, em oposição às

qualidade abissais de Dionísio, simbolizadas por sua descida ao inferno em

busca de Sêmele, sua mãe e pelos sentimentos oceânicos de perda da

individuação provocados pelo vinho (LOPES, 1995: 36).

De acordo com Lopes, o ―dionísico e o órfico são miticamente inseparáveis, o

sendo também o dramático e o lírico‖ (LOPES, 1995:36), bem como o são em relação ao

épico20

, apontando, assim, para as imbricações entre os mitos de origem dos três gêneros

poéticos – lírico, dramático (trágico e cômico) e épico – e para a inexistência de uma

separação totalitária entre eles, o que permite a existência de características intermediárias dos

gêneros, como, a exemplo desta pesquisa, queremos ressaltar a manifestação do lírico no

trágico, o que aqui denominamos poeticidade trágica. A divisão dos três gêneros serve não

20

Segundo Lopes, Orfeu pertence também a um ciclo narrativo épico: seu papel na expedição dos

argonautas, a perda de Eurídice, sua descida ao inferno e sua morte. Ele se constitui como ―o

protagonista principal de um epos não menos importante para a mitologia grega que o de Ulisses

donde, simbolicamente, vemos a unidade primordial dos três gêneros poéticos emblematizada no ciclo

órfico‖ (LOPES, 1995:36).

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para isolar em compartimentos estanques a obra de arte, mas ―para ressaltar características

diversas de cada texto‖ (LOPES, 1995: 37).

A tragédia grega como encenação dramática tem como raiz o mito dionisíaco,

inspirado na trajetória de Dionísio e na celebração dessa divindade nos rituais que ocorriam

no campo, apartados da pólis grega. Nesses rituais se dava o sacrifício de um animal (bode)

em homenagem a Dioniso, simbolizando seu sacrifício e renascimento, numa referência a

uma das últimas metamorfoses de Dioniso que, para fugir dos Titãs, se transformou em bode.

De acordo com Brandão, o bode ―é um dos elementos sacrificatórios mais comuns em todas

as religiões do mundo antigo, sobrepujando apenas o touro em nobreza de altar‖

(BRANDÃO, 1992: 25). O touro também é considerado como outra manifestação de Dioniso.

Sobre a origem dos rituais dionisíacos ainda pairam muitas controvérsias, sendo

provável que tenham vindo da Trácia ou sejam simplesmente oriundos do meio campesino

(Cf. COSTA, 2004: 362). O culto de Dioniso tinha caráter de clandestinidade, já que a

aristocracia ateniense recusava-se a aceitá-lo, visto que se tratava de um deus exótico,

estrangeiro. Segundo Brandão, ―trata-se, no mínimo, de um deus da época micênica, isto é,

uma divindade asiática‖, sendo um deus ―essencialmente agrário, deus da vegetação, das

potências geradoras (...)‖. Como um deus errante, oriundo da Ásia Menor, Dioniso durante

muitos séculos viveu confinado no campo, entre os humildes lavradores, sem direito a um

lugar no Olimpo. Os cultos a Dioniso eram condenados pela aristocracia, devido ao seu

caráter estrangeiro e a toda a simbologia da embriaguez que envolvia seu mito, oposta aos

ideais de harmonia olímpica. Para a aristocracia, a teogonia olímpica é que deveria ser

exaltada. No entanto, de acordo com Civita, ―pelo fato de personificar a liberdade, a

desobediência à ordem e à medida, Dioniso conseguiu impor-se às populações submetidas

pelos gregos especialmente as agrícolas. Ao aceitá-lo, essas populações extravasavam, de

certa forma, sua revolta contra o povo dominador‖ (CIVITA apud SANTOS, 2005: 42).

Em meados do século VI, os cultos dionisíacos passam a ser admitidos na pólis,

migrando do campo para a cidade, adaptando-se aos hábitos de uma sociedade organizada

politicamente e onde a escrita já se tornava obrigatória. Esses rituais eram celebrados todos os

anos em Atenas e por toda a Ática, por ocasião da vindima ou festa do vinho novo, em que os

participantes, como os anteriores companheiros de Dioniso, se embriagavam e começavam a

dançar e cantar de forma frenética, ―à luz dos archotes e ao som dos címbalos‖ (BRANDÃO,

1992: 23), até caírem desfalecidos. Esses adoradores de Dioniso se disfarçavam de sátiros,

concebidos pela imaginação popular como ―homem-bodes‖, de onde se origina a palavra

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42

tragédia21

, tragoedia, em latim: tragos, significando bode, e oedia, canto: ―canto do bode‖,

―ode ao bode‖. Muitos contestam, no entanto, que os sátiros fossem representados como

―homens-bodes‖, ―já que as pinturas mais antigas desses demônios silvestres, geralmente

gravadas em vasos, mostram os companheiros de Baco com enormes caudas e orelhas de

cavalo‖ (BRANDÃO, 1992: 23). Segundo Brandão, umas das provas disso é o fato de os

monumentos que os reproduzem com atributos caprinos, como rabo e chifre de bode, serem

bem mais recentes, mais precisamente da época helenística, o que seria uma alusão ao deus

Pã, fruto de sua influência. Já Jean Pierre Vernant os define como ―máscaras, criaturas mistas,

meio homem, meio bestas, inquietantes como o cavalo do qual tem as orelhas e o rabo, e seus

saltos exprimem plasticamente um outro aspecto do dionisismo‖ (VERNANT apud COSTA,

2004: 362).

Nietzsche, em seu Nascimento da tragédia (1872), faz considerações acerca do

que representava o sátiro para a cultura grega e suas reverberações modernas. Nietzsche vê na

figura do pastor idílico um rascunho mal feito do que representava os sátiros para a cultura

grega. Ironiza a visão romantizada da natureza, vista na modernidade como algo apartado da

vida – da chamada vida civilizada. Essa visão romantizada da natureza foi, na modernidade,

personificada na figura do pastor idílico. Segundo Nietzsche (2007:53), tanto o sátiro quanto o

pastor idílico da modernidade são ―ambos frutos de um anseio voltados para o primevo e o

natural; mas com que garra destemida e firme ia o grego pegar o seu homem dos bosques e

quão envergonhado e frouxo brinca o homem de hoje com a imagem lisonjeira de um terno,

flauteante e sensível pastor!‖.

No jogo entre aparência e coisa em si, afirma que nos primórdios da arte trágica o

coro de sátiros retratava a existência de maneira mais ―veraz, mais real, mais completa do que

o homem civilizado, que comumente julga ser a única realidade‖ (NIETZSCHE, 2007:54), ao

ver a poesia como algo imerso na materialidade do mundo, imersa na natureza, e não como

algo que se posiciona diante do mundo,

Assim como a tragédia, com o seu consolo metafísico, aponta para a vida

perene daquele cerne da existência, apesar da incessante destruição das

21

Até hoje, porém, não foi acordada uma etimologia definitiva para o termo tragédia. Segundo

Cooper, a palavra ―tragédia (tragodía) parece ser derivada de tragõdoi, significando provavelmente

um coro que representava bodes, ou ainda que dançava por um bode como prêmio (tragos), ou à volta

de um bode sacrificado‖ (COOPER apud CARVALHO, 1998: 34). A primeira versão, a do culto de

Dioniso por cantos corais em que os participantes apareciam mascarados como sátiros (e vestidos com

pele de bodes), é a mais difundida (Cf. BRANDÃO, 1992:25).

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aparências, do mesmo modo o simbolismo do coro satírico já exprime em

um símile a relação primordial entre coisa em si e fenômeno. Aquele idílico

pastor do homem moderno é apenas uma réplica da suma das ilusões

culturais que para este último vale como natureza, o grego dionisíaco, ele,

quer a natureza e a verdade em sua máxima força – ele vê a si mesmo

encantado em sátiro (NIETZSCHE, 2007:54).

A adoração a Dioniso só foi alçada a culto oficial após a ação dos tiranos –

antiaristocratas – e coube a Pisístrato (600-527 a.C.) trazê-lo para Atenas em 535 a. C. Ele foi

o responsável por erguer aos pés da Acrópole um templo em homenagem a Dioniso e

instaurar festejos em sua honra, dentre os quais o mais importante se tratava das Grandes

Dionísias Urbanas, que ocorriam durante a primavera. E daí se explica o fato de que a

adoração ao Deus tenha tomado grande vulto, pois não representava a aristocracia, mas sim a

democracia22

nascente. Lesky ressalta que em fins do século VII e início do século VI a.C. ,

nas mais diversas esferas do mundo grego, ocorreu um expressivo movimento político para

trazer Dioniso, até então no ostracismo, para dentro dos limites da pólis grega. Ou seja, a uma

mudança política, de transição da aristocracia para a democracia, se mostrou necessária

também uma mudança no próprio imaginário grego. É então compreensível que venha a ser

festejado ―poderosamente o deus que não é ele próprio um aristocrata olímpico, mas que

pertence a todos os homens e principalmente aos camponeses‖ (LESKY, 1971: 36).

Nesse ambiente surgiu a tragédia grega, por meio de concursos de peças trágicas

realizados nesses festivais de celebração a Dioniso, na transição do período arcaico23

para o

período clássico grego, ou seja, na virada do século VI para o V, o chamado século de

Péricles e da democracia ateniense. Nesses festivais, escolhia-se uma história que seria

encenada no templo dedicado a Dioniso, encenações que eram compostas por de um a três

atores, um comentador e um coro de sátiros composto por cidadãos imitando os dithyrambos.

22

Segundo Nicole Loraux, a tragédia grega é na realidade ateniense, já que em Atenas ela se constitui

como uma referência cívica. A democracia ateniense, no que concerne às exibições da encenações das

tragédias, se caracteriza como ―o regime que foi mais longe na redução da distância entre os cidadãos

e os outros, ao integrar no corpo cívico o grupo daqueles que deviam trabalhar para viver, geralmente

excluídos da cidadania nas cidades oligárquicas‖ (LORAUX, 2007: 21).

23 O período mítico-arcaico foi produtor da poesia épica, da lírica e dos primeiros textos trágicos e

filosóficos. A literatura de Homero é creditada a esse período. Embora a história grega esteja dividida

formalmente em período arcaico e clássico, isso não implica uma demarcação rígida, ―pois o homem

grego, o cidadão grego, nunca deixou o mito, jamais abandonou seus deuses e seitas, não se distanciou

do sagrado e não traçou linhas demarcatórias para sua própria racionalidade dentro do cosmos. É o que

se depreende dos escritos que nos chegaram‖ (GAZOLLA, 2003:3).

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O mito trágico tem raízes profundas no mito dionisíaco24

, no sentido de que foi

nos rituais em celebração de Dioniso que surgiram o embrião da tragédia cênica e a presença

de elementos como a catarse25

e o sacrifício. Lesky ressalta, no entanto, que embora do mito

dionisíaco tenha se extraído o elemento estético da tragédia, impulsionando ―o

desenvolvimento da tragédia como obra de arte‖ (LESKY, 1971:31), é em ―um outro campo

da cultura grega, no mito do herói, que podemos afirmar que o enredo trágico e seu conteúdo

são gestados, ou seja, podemos afirmar que o mito trágico é fruto da plasmação entre o mito

dionisíaco e o mito do herói‖ (LESKY, 1971: 43). Segundo Kitto, quando Aristóteles, por

exemplo, defende que a tragédia se originou do canto coral dos ditirambos (hinos) em honra

do deus Dioniso, ele está se referindo apenas quanto a sua influência em relação à forma da

tragédia, nascida de uma realização coral com diálogos entremeados, mas ―não se pode

afirmar que ele quisesse dizer que a nova arte era dionisíaca no espírito ou no conteúdo,

embora ela o pudesse ter sido‖ (KITTO apud CARVALHO, 1998:40).

O legado do mito trágico reverberou nas mais diferentes esferas artísticas, como

no romance moderno, o qual, ―tal como a tragédia grega, celebra o mistério do

desmembramento, que se configura como vida no tempo. O final feliz é desprezado, com justa

razão, como uma falsa representação‖ (CAMPBELL, 1997: 32). Se o final feliz é desprezado

no romance moderno, no cinema clássico hollywoodiano ele encontra seu lugar de aconchego,

sob a forma do happy end, segundo Edgar Morin.

Nos romances da literatura latino-americana do século XX, por exemplo, é notória

a presença do conflito trágico, como nas obras de Ernesto Sábato (O Túnel, 1948) e Juan

Rulfo (Pedro Páramo, 1955/ Chão em Chamas, 1953) (Cf. ANDRADE, 2006:9). No romance

moderno como um todo é patente sua presença, podendo ser aferido em clássicos como Os

demônios (1872) de Dostoievski (Cf. COSTA, 2008: 136). Acerca do marco que o trágico

vivido pela personagem de Leon Tólstoi, Ana Karênina (1873), representou, Campbell afirma

que sua desolação íntima e profundidade psicológica ressoou nas produções simbólicas das

décadas seguintes:

24 Para Maffesoli, a figura ―emblemática e essencialmente estética‖ de Dioniso é o ―mito ‗encarnado‘

contemporâneo‖ (MAFFESOLI,1998: 193). 25 Segundo Campbell, a provocação da catarse, um dos elementos da tragédia como drama cênico, na

verdade corresponde a uma catarse ritual anterior, a catarse ou purificação semeada pelos festivais de

adoração a Dioniso, nos quais se davam os rituais da colheita, da vindima, simbolizando renovação,

renascimento, vida (Cf. CAMPBELL, 1997:32).

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‗Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada

uma à sua maneira.‘ Com essas fatídicas palavras, o conde Liev Tolstói

iniciou o romance do desmembramento espiritual de sua moderna heroína,

Ana Karênina. Nas sete décadas que se passaram desde que essa esposa, mãe

e mulher cegamente apaixonada se atirou, em sua desgraça, sob as rodas de

um trem — terminando assim com um gesto que simbolizava o que já havia

ocorrido a seu espírito, sua tragédia de desorientação — , um tumultuoso e

interminável ditirambo de romances, reportagens e gritos não registrados de

angústia vem sendo construído em louvor ao touro-demônio do labirinto: o

aspecto irascível, enlouquecedor e destruidor de um mesmo deus que,

quando benigno, constitui o princípio vivificador do mundo (CAMPBELL,

1997:32).

2.2 A tragédia grega e a Poética aristotélica

A tragédia grega foi normatizada e objetivada como obra de arte e estrutura cênica

formal na Poética de Aristóteles, comentarista e uma das fontes mais importantes acerca dos

estudos em torno da tragédia26

. A importância da Poética aristotélica reside não só nas suas

contribuições para a formação do drama e do teatro. Ela vai além da representação cênica,

pois é uma reflexão sobre a própria obra de arte, além de ser um dos marcos iniciais do

discurso e da teoria literárias.

Aristóteles apresenta, no século III a.C, curiosamente dois séculos depois do

estabelecimento da tragédia em Atenas – quando essa já não gozava do prestígio anterior –,

uma definição do gênero como uma arte (techné). Sendo arte, Aristóteles a considerava

também como imitação (mímesis), assim como mito, enquanto palavra e imitação da ação, e

pensamento (conhecimento):

A tragédia é imitação de uma ação nobre e completa ( práxeos spoudaías

kaìteleías) tendo uma certa grandeza (mégethos)(...) A imitação de uma ação

é mito (mýthos). Nomeio mito (mýthos) a síntese de ações (sýnthesin tôn

26

O filosofo árabe Averróis foi o responsável pelos primeiros comentários referentes à Poética que se

tem conhecimento, datando do século XII, mas é somente no século XV e XVI que se dá a tradução

dos textos aristotélicos para o latim e sua difusão na Itália. Aristóteles também realizou estudos sobre

a Comédia, constituída pelo livro II da Poética, porém esses textos se perderam entre os séculos XII e

XVI, restando somente os textos relativos à tragédia e à epopeia (Cf. JIMENEZ, 2009:50).

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pragmáton); nomeio caráter (éthe) as ações que permitem que qualifiquemos

aqueles que agem; e afinal, digo pensamento (diánoian) é o que nas palavras

ditas traz um exposto ou exprime um conhecimento (gnómen)

(ARISTÓTELES apud GAZOLLA, 2003:7).

É com a tragédia grega que pela primeira vez a poesia vem a ser dialógica, isto é,

cria versos para personagens dialogarem. Segundo Gazolla, quando comparamos o

vocabulário dos poetas arcaicos (épicos e líricos) com os poetas trágicos percebemos que

esses últimos ―porque descobriram o diálogo como forma para seus textos – criaram novos

sentidos às mesmas palavras‖ (GAZOLLA, 2003:3).

Enquanto drama encenado, a tragédia provocou a consolidação no período grego

do que Lesky, estudioso da tragédia grega, denomina uma cosmovisão trágica, cujos matizes

já haviam sido pincelados na literatura de Homero (Cf. LESKY, 1971:22). A problemática do

trágico e sua cosmovisão é algo mais amplo do que a tragédia como peça cênica, sendo uma

visão de mundo cujas raízes foram plantadas na Grécia e reverbera até a contemporaneidade,

conquanto, segundo Lesky, seja difícil desvencilhá-lo da tragédia ática. Isso se deve ao fato de

que, quando se trata do trágico como problema filosófico, ―por mais vastos que sejam os

fenômenos por ele abrangidos‖, o mesmo sempre parte da tragédia ática e a ela sempre volta

(LESKY, 1971:25). Lesky afirma ainda que os gregos possuem todos os méritos por terem

desenvolvido a arte trágica, no entanto ―não desenvolveram uma teoria do trágico, que

tentasse ir além da plasmação deste no drama e chegasse a envolver a concepção do mundo

como um todo‖ (LESKY, 1971:21).

Em sua Poética, Aristóteles trata da tragédia como peça cênica formal, trata dos

elementos necessários para se criar uma tragédia. Como o próprio nome da obra já demarca,

Aristóteles se volta para ―o campo do poieîn, do fazer como fabricação, do produzir‖

(GAZOLLA, 2003: 8), da tragédia como arte da imitação. Para o filósofo, a mímesis é natural

do homem, um ser mimético por excelência, seja ele artista ou não. É algo inerente à vida do

homem em sociedade, à sua necessidade de comunicação e sobrevivência. Quanto ao artista,

ele imita a essência das coisas, e não a mera aparência delas. Aristóteles dá, dessa forma,

importância humanista à arte, desvinculada da metafísica platônica. Para Platão, o artista é um

miméthes, um especialista no imitar, fabricante de cópias que passam por verdadeiras, mas

são apenas cópias de cópias, pois, para o filósofo, a realidade visível não passa de uma

aparência, um reflexo (cópia) do mundo das essências, da verdade. O artista estaria, assim,

três graus afastado da verdade, já que produz cópias do mundo aparente, que é uma cópia do

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plano das essências. Para Platão, somente o filósofo é capaz de chegar mais próximo da

verdade e das ideias eternas, pois ensina o homem a enxergar as essências, além do aparente.

Se para Platão a mímesis é o afastamento da realidade, distorção, para Aristóteles a

mímesis por meio da arte aperfeiçoa a natureza: ―A arte conclui as coisas, quando a natureza

falha, ou imita as partes que faltam‖, diz o filósofo.

A mímesis presente na tragédia, para o estagirita, também não é mera encenação

imitativa, nem se baseia na perspectiva do par de valores verdadeiro-falso. A mímesis é antes

uma recriação, criação de algo novo. Isso é feito por meio da busca da verossimilhança,

entendida não como mera cópia do real e sim como ressignificação deste.

Da perspectiva da verdade do conhecer, algo de verdadeiro aí está exposto,

uma vez que não se trata de passar o que não é como sendo, definição do

falso, como foi dito; nenhum ator cuidará de travestir-se em Édipo ao

encenar a tragédia sobre ele, com o intuito de enganar os assistentes fazendo-

se passar por Édipo; e nem os assistentes assim o considerarão. Escondido

atrás da máscara, o ator pronuncia palavras que exprimem os impulsos,

sentimentos e decisões do herói; elas sustentarão a semelhança, elas serão

cópias, e enquanto cópias participarão verdadeiramente do modelo (que é o

deus em primeiro lugar, que são os heróis em segundo lugar, que é o poeta

em terceiro lugar, que é o ator em quarto lugar (GAZOLLA, 2003: 15).

Aristóteles via como causa da poesia de uma forma geral dois elementos, o

primeiro trata-se da imitação, como algo congênito do homem, como já dito, e o segundo, não

tão claro nos textos aristotélicos, se configura como objeto de controvérsias entre os

estudiosos da tragédia, hesitantes entre dois posicionamentos, os quais, segundo Eudoro de

Sousa, são: ―a) o prazer que para nós resulta da contemplação do imitado e b) a

congenialidade, também humana, da harmonia e do ritmo‖ (SOUSA apud CARVALHO,

1998:36). Sousa opta por entender como causas da poesia a imitação e a harmonia.

Lesky elenca alguns requisitos para a existência de um conflito trágico. O

primeiro elemento é o que ele denomina a Dignidade da queda, que se refere ao destino do

herói trágico na obra aristotélica e ao fato de que a sua desgraça só decorre de uma posição

anteriormente privilegiada. Para Aristóteles, ―a mais bela das tragédias é aquela em que se

passa da felicidade à desdita‖ (BRANDÃO, 1992: 409).

Os temas trágicos, por serem oriundos dos mitos, reportavam-se à saga de heróis,

os quais muitas vezes estavam personificados nas figuras de reis ou figuras de Estado, ou seja,

a tragédia refletia aspectos da hierarquia social. Somente no século XIX, com o desenrolar do

que Lesky denomina tragédia burguesa — e que outros autores denominaram drama —, os

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protagonistas das peças cênicas deixam de ser pautados pelo aspecto social e sim pelo aspecto

da transcendência do humano. Esse requisito, que Lesky denomina como Considerável altura

da queda, se configura como a passagem de um estado de ―segurança e felicidade‖ para o

abismo da ―desgraça ineludível‖ (LESKY, 1971:26). Isso significa que é um dos pressupostos

da tragédia grega a presença de um dinamismo dos acontecimentos, de seu desenrolar e

encadeamento. Como ressalta Lesky, seguindo a visão aristotélica, a tragédia está

intimamente ligada a um decurso de acontecimentos de intenso dinamismo. O encadeamento

das ações é ressaltado na teoria aristotélica da tragédia, visto que ele se caracteriza como o

―principal condimento‖ da peça cênica, devendo formar um todo uno e coeso. Lesky ressalta

isso ao discorrer sobre o diferencial que aponta a obra épica de Homero como um prenúncio

da tradição trágica que surge posteriormente. Em seus dizeres, ―o que especialmente eleva a

Ilíada à categoria de grande obra de arte, o que a levanta acima do típico estilo épico e faz que

seus autores dêem os primeiros passos em direção à tragédia‖, se deve ao ―encadeamento dos

acontecimentos, das personagens e das suas motivações‖ (LESKY, 1971: 19). Para

Aristóteles, a tragédia está intimamente relacionada a um acontecer, caracterizando-a “não

como imitação de pessoas, mas de ações e da vida‖ (LESKY, 1971: 62).

Ainda destacando a importância do dinamismo da ação na caracterização da

tragédia, Lesky ressalta que ―a simples descrição de um estado de miséria, necessidade e

abjeção pode comover-nos profundamente e atingir nossa consciência com muito apelo, mas o

trágico, ainda assim, não tem lugar aqui‖ (idem, 1971: 62). Ou seja, não é pelo fato de existir

sofrimento ou dor em um enredo que ele será considerado uma narrativa trágica ou que estará

evidenciada a presença do trágico; ele envolve a presença de muitos outros elementos, além,

ainda, do destaque conferido por Aristóteles e Lesky acerca da necessidade do encadeamento

e dinamismo das ações. Segundo Ronaldes de Melo e Souza27

, embora as teorias dramáticas

modernas sejam tributárias do legado aristotélico, a ênfase dada por Aristóteles ao

encadeamento das ações ―não corresponde à natureza do drama ático, não compreende

satisfatoriamente os atores trágicos e, sobretudo, ignora completamente o sentido e a função

do trágico na poesia de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes‖ (SOUZA, 2001: 119). Uma prova de

27

Consoante o autor, a teoria aristotélica da tragédia grega ―constitui o obstáculo essencial à

elucidação do projeto educacional dos poetas trágicos, sobretudo porque converge a dimensão

ontológica de seus dramas numa mera representação lógica de eventos consecutivos‖, e uma via de

acesso ao sentido do trágico somente se fará possível com a ―transmutação radical dos valores

poéticos, efetivada pelo poetar pensante de Hölderlin‖ (SOUZA, 2001: 115).

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que os acontecimentos não são elemento principal da tragédia é o fato de os acontecimentos

decisivos ocorrerem fora da cena. Como expressa Souza (2001: 120), ―ao se iniciar o drama

tudo já aconteceu: Édipo já matou o pai e se casou com a mãe‖.

Outro requisito da tragédia grega salientado por Lesky refere-se à sua

possibilidade de relação com o nosso mundo, a saber, a ação trágica deve falar algo que nos

atinge, que pode chegar a nós pela via da comoção, pois é só quando ―temos a sensação do

Nostra res agitur, quando nos sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser, é que

experimentamos o trágico‖ (LESKY, 1971:26). Porém, essa medida de nossa relação com o

mundo deve ser dosada, segundo Aristóteles, pois em caso contrário pode provocar não ―o

temor ou a compaixão, mas uma impressão desagradável‖ (ARISTÓTELES, 2005:23).

A irreconciliabilidade do conflito trágico é um ponto central no estudo da tragédia

grega, porém, como reflete Lesky, essa irreconciliabilidade não deve ser encarada de forma

taxativa, visto que há exemplos na tragédia ática de conclusões conciliadoras do conflito

trágico. Como ilustração, Lesky cita o exemplo de Ésquilo e sua Oréstia, cujo desfecho

representa ―uma completa reconciliação e ajuste‖ (LESKY, 1971:29).

Sobre o processo evolutivo da tragédia, Aristóteles defende a existência de dois

marcos, duas grandes transformações acerca dos atores. Uma das transformações apontadas

por Aristóteles foi realizada por meio de Ésquilo, que elevou o número de atores de um

(protagonista) para dois, ou seja, criou a figura do deuteragonista, diminuindo assim a

importância do coro (Cf. CARVALHO, 1998: 40), já que anteriormente os diálogos se davam

apenas entre o protagonista e o corifeu, chefe do coro, e o próprio coro. Outra modificação

importante, para Aristóteles, se deu com Sófocles – por ele considerado o grande

tragediógrafo — ao acrescentar o terceiro ator (tritagonista) e haver criado a cenografia. O

último grande poeta trágico foi Eurípedes, sendo suas tragédias as únicas as quais Sócrates se

dignava a assistir (Cf. COSTA, 2004:362), como já dito.

Como indica Carvalho, no entanto, nos escritos de Aristóteles não está presente a

quem se deve a criação do primeiro ator, que passou a dialogar com os membros do coro e

devia sustentar as partes de diversas personagens. Para Carvalho (1998: 41), o autor dessa

mudança foi Téspis28

, o qual Aristóteles não menciona, ―ou por não ter informação certa a

esse respeito, ou porque já o tivesse feito na obra esotérica Sobre os Poetas, de que só restam

fragmentos‖.

28

Téspis representou pela primeira vez em Atenas, sob os auspícios de Psístrato, em 534 a. C.

(CARVALHO, 1998:41). Após vagar por pequenas vilas encenando suas histórias, volta a Atenas em

536 a. C. e ganha o prêmio no primeiro concurso instituído por Psístrato (Cf. COSTA, 2004:362).

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Aristóteles ressalta também o caráter purificador e educativo da tragédia como

fonte de arrebatamento das paixões humanas (pathos) por meio da catarse (katharsis). Ela

deve suscitar ―a compaixão e o terror‖, e tem por efeito ―obter a purgação dessas emoções‖. A

produção da catarse se constitui como um elemento fundamental da arte trágica, visto que era

por meio dela que os habitantes da pólis podiam externar suas paixões. Daí a função de

purificação e apaziguamento que essa arte detinha, já que a ordem social da polis não lhes

proporcionava tal exteriorização de outra forma.

Segundo a poética aristotélica, a tragédia ática deve tratar da ―imitação dos

assuntos sérios‖, dos feitos dos heróis, nesse aspecto se assemelhando ao gênero da epopeia,

diferenciando-as precipuamente pelo fato de que essa última se alonga nas dimensões,

enquanto aquela ―empenha-se, na medida do possível, em não exceder o tempo de uma

revolução solar,29

ou pouco mais‖ (ARISTÓTELES, 2005: 31). Outra diferença, segundo

Aristóteles, reside no fato de que a epopeia realiza a mimese por meio de uma narrativa,

enquanto a tragédia — assim como a comédia — a realizam por meio dos diálogos entre

personagens (atores). Enquanto a comédia trata de personagens vis e ordinárias, a tragédia

trata de personagens heróicos.

Além de possuir um caráter pedagógico, consoante Aristóteles, a poesia trágica

transmitia uma versão da realidade mais acurada do que mesmo a História como ciência

humana. O estagirita tece os fios de sua teoria da tragédia amparado nessa valorização, visto

que a representação pela tragédia, para ele, estando baseada em códigos de verossimilhança

do real, de sua essência e universalidade, teria a vantagem de predizer o que poderia vir a

acontecer. Já a História se limitaria a discorrer sobre fatos e circunstâncias particulares

ocorridas. Portanto, Aristóteles sustenta que por ―isso a poesia é mais séria e filosófica do que

a história: aquela comunica o universal, esta relata o particular‖ (ARISTÓTELES, 2005: 28).

A tragédia indica ―algo que ultrapassa os limites do normal‖ (LESKY, 1971:22).

Nela se faz presente a hybris do herói trágico, isto é, a desmedida, a desmesura, em

contraposição ao metron, que corresponde à justa medida das coisas, ideal enraizado no

modus operandi da vida na pólis grega. A tragédia grega diz respeito aos grandes temas,

aqueles que mudam o curso do rio, que deslocam o eixo confortável das coisas. Lesky ressalta

a importância de três elementos na estruturação da tragédia grega: o uso da máscara, a

29

Quando Aristóteles assegura que a tragédia não deve exceder o tempo de uma revolução solar,

refere-se ao fato de que a ação da narrativa trágica transcorre no espaço cronológico de um dia, não

devendo excedê-lo. Como exemplo disso temos a peça Édipo-Rei, de Sófocles, na qual a desgraça se

abate sobre a vida de Édipo em um só dia, quando ele se descobre filho de Jocasta, sua esposa.

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essência da representação dramática; o ditirambo, espécie de coro que representava a

coletividade de cidadãos e o herói trágico.

A tragédia grega é engendrada no período clássico, quando da formação da pólis

grega no século V a.C. É justamente no seio da celebração da razão e do equilíbrio que o

gênero dramático toma corpo, ou seja, no ápice da evolução do pensamento racional grego se

proliferam os cultos a Dioniso e a tragédia surge como a contraparte ao racionalismo político

dominante. Esse período da história grega mostrou-se fecundo para o surgimento da tragédia

devido ao fato de que reunia as referências mítico-religiosas do período micênico assim como

as referências do nascente racionalismo grego.

Aristóteles esquadrinha a tragédia como peça cênica formal, de maneira

codificada. Como afirma Machado (2006: 26), ―a análise aristotélica se interessa pela forma,

pela estrutura formal, pela organização interna da tragédia‖. Ela é um arcabouço de estudo

sobre a técnica poética, um estudo poetológico. Segundo Bornheim, Aristóteles ―não nos diz o

que é a tragédia; delimita, sim, o seu objeto, e nos diz, sobretudo, como a tragédia se

estrutura, quais são as suas partes constituintes e qual é o lugar destas partes‖ (BORNHEIM,

1975: 70). Na hierarquia aristotélica, os componentes importantes para a constituição da

tragédia em ordem decrescente são: as ações (fábula), caracteres, ideias (pensamento), fala

(―interpretação por meio de palavras, o que tanto vale para versos como para prosa‖) e canto

(melopeia30

). Aristóteles aponta a presença da linguagem31

e do canto como ornamentos, os

quais, embora importantes, não devem ser equiparados à importância do encadeamento da

ação trágica — da fábula. Para o filósofo, o poeta ―há de ser criador mais das fábulas do que

dos versos, visto que é poeta por imitar e imita ações‖ (ARISTÓTELES, 2005: 29).

Mesmo quando se alinhem falas reveladoras de caráter, bem

construídas em matéria de linguagem e ideias não se realizará

obra própria de tragédia, muito mais se obterá com uma tragédia

deficiente dessas partes, mas provida duma fábula e do arranjo

30

De cujo radical melos (canto), também advêm as palavras melodia e melodrama.

31 Acerca da linguagem, Aristóteles afirma: ―A excelência da linguagem consiste em ser clara sem ser

chã. A mais clara é a regida em termos correntes, mas é chã, por exemplo: a poesia de Cleofonte e a de

Estênelo. Nobre e distinta do vulgar é a que emprega termos surpreendentes. Entendo por

surpreendentes o termo raro, a metáfora, o alongamento e tudo que foge ao trivial‖. Porém, para

Aristóteles, a linguagem não pode ser constituída inteiramente desses termos, sob pena de se criar

―enigmas‖ (no caso do uso exagerado das metáforas) ou ―barbarismos‖ (no caso dos termos raros),

devendo ser entremeada de termos correntes. Segundo ele, ―é necessário, portanto, como que fundir

esses processos; tirarão à linguagem o termo vulgar e chão, por exemplo, a metáfora, o adorno e

demais espécies referidas; o termo corrente, doutro lado, lhe dará clareza‖ (ARISTÓTELES, 2005:44).

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das ações. Além disso, os mais importantes meios de fascinação

das tragédias são partes da fábula, isto é, as peripécias e os

reconhecimentos‖ (ARISTOTELES, 2005: 26).

A poesia para ele se apresenta pelo ritmo, pelo metro, pela melodia mas,

principalmente, pela imitação, como já destacado: ―Parece, de um modo geral, darem origem

a poesia duas causas, ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso

difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar‖ (ARISTÓTELES, 2005:22). A

poesia é vista, dessa maneira, apenas como forma, não como expressão de uma visão de

mundo, assim como o trágico também não é visto ainda como cosmovisão, algo que só

ocorrerá de forma mais precisa com o advento do Idealismo alemão. Aristóteles preocupa-se

em elencar os elementos necessários para a existência da tragédia, detendo-se em aspectos

como a duração temporal da tragédia em relação à epopeia, por exemplo, como já dissemos,

além de se preocupar também com a finalidade da tragédia, ou seja, com a produção do temor

e piedade, a catarse. Em suma, o foco dos estudos de Aristóteles acerca da tragédia se dá em

torno da forma e finalidade da tragédia, esse se tratando do fito principal da análise

aristotélica.

Segundo Roberto Machado, Aristóteles ignorou o estudo do lírico na tragédia, por

mais que a poesia lírica tenha sido de grande importância na Grécia e estivesse presente nas

tragédias. Aristóteles não se refere a ela, não a mencionando em toda a sua Poética. De

acordo com Machado (2006:25), a ―razão dessa lacuna pode ser o fato de ele não considerar a

poesia que narra os estados de alma de um indivíduo como propriamente mimética: ‗Quando

o poeta fala em seu nome pessoal, ele não imita‘, diz Aristóteles na Poética”. A preocupação

com o lírico oriundo do trágico somente ocorreu com o advento do Idealismo alemão, ao final

do século XVIII, período ―marcado por uma grande valorização da lírica‖ (idem, 2006: 25).

Aristóteles faz uma análise formal da tragédia grega, classificando-a como poesia trágica,

porém não se detém em aspectos como, por exemplo, em que consiste o poético presente na

tragédia, ou seja, se detém apenas à poesia como forma.

A análise aristotélica se interessa pela forma, pela estrutura formal, pela

organização interna da tragédia, considerando-a uma espécie de poesia ao

lado das outras, com o objetivo de estabelecer uma diferenciação ou mais

precisamente uma classificação. O que leva muitos comentadores a observar

que, na Poética, Aristóteles analisa as espécies de poesia, dentre as quais a

tragédia, mas ou menos da mesma maneira como um naturalista descreve a

estrutura das plantas ou dos animais (MACHADO, 2006: 27)

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Ele faz uma radiografia formal de como se constitui a tragédia enquanto peça

cênica, sem adentrar o horizonte existencial do herói trágico, por exemplo. Não analisa o

trágico como visão de mundo, uma visão de mundo fruto do sentimento trágico vivenciado

pelo herói e externado de forma lírica, poética. A admiração de Aristóteles pela poesia trágica

se restringe ao seu apelo mimético, como mímesis do real. Como afirma Mário Guerreiro

(2004: 86), é ―verdade que Aristóteles manifestou profunda admiração pela poesia trágica,

porém esta se restringia a seu aspecto estético e não se estendia ao ideológico, ou seja, ele

admirava a fabulação, mas repudiava a visão de mundo dos poetas trágicos‖.

O aspecto da profundidade psicológica da personagem não é ressaltado, tanto que

a ênfase se dá na ação; a preocupação com o herói trágico se limita ao seu caráter, seu ethos.

Tanto isto se evidencia que o autor defende que ―a tragédia não é a imitação de homens, mas

de uma ação‖ (ARISTÓTELES, 2005: 26).

Ao contrário do mundo épico, em que os fatos se dão como são, às claras, o

universo do trágico é habitado pela metáfora como figura de linguagem. Aristóteles aponta a

presença da metáfora como um elemento da linguagem da tragédia grega, presente no texto

trágico, definindo-a como ―a transferência de um nome alheio do gênero para a espécie, da

espécie para o gênero, duma espécie para a outra, ou por via da analogia32

‖ (ARISTÓTELES,

2005: 42). No entanto, Aristóteles não a relaciona à presença da poesia ou do poético, não faz

maiores considerações sobre sua presença em relação ao discurso do herói trágico, como

forma de expressão lírica do trágico vivido pela personagem, pois, como já foi expresso, a

poesia lírica não constitui objeto de estudo da Poética aristotélica. Outro exemplo da quase

ausência da poesia lírica (que nasceu acompanhada da música) na obra aristotélica está no

fato de Aristóteles pouco discorrer sobre os ditirambos, cantos narrados em primeira pessoa e

presentes nas tragédias.

A tragédia, para Aristóteles, é estritamente imitação de uma ação, a qual é feita a

partir de personagens, que, por sua vez, agem em função de seu caráter. Devido a isso, o

elemento mais importante da tragédia, segundo a teoria aristotélica, é a concatenação das

ações, a trama dos fatos, o mythos, ou seja, o entrecho, a intriga, como já dito anteriormente.

32 Aristóteles dá como exemplo de analogias as seguintes: ―o que a taça é para Dioniso, o escudo é

para Ares; assim, o poeta dirá da taça que é o escudo de Dioniso e, do escudo, que é a taça de Ares. Ou

então: a velhice está para a vida como a tarde para o dia; chamará, pois, à tarde velhice do dia, e à

velhice, tarde da vida” (ARISTÓTELES, 2005: 43)

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Portanto, a fonte do efeito trágico, de acordo com Aristóteles, deve ser prospectada no mythos

trágico, ou seja, na trajetória do herói, na estrutura do enredo.

A tragédia como encenação na pólis grega tem duração curta, de apenas 100 anos.

O seu declínio não somente como drama cênico mas também como ritual se dá justamente em

um momento da Antiguidade grega em que o culto à razão se torna veemente na sociedade

grega, com a ascensão do pensamento socrático e seu legado. É nesse momento que tomam

forma as teorias platônicas33

em torno da expulsão dos poetas da pólis – em especial os poetas

trágicos.

Com Sócrates, concluiu-se a substituição do homem trágico pelo seu

contrário: o homem teórico. A afirmação da crueldade da existência cedeu

lugar ao otimismo do saber, à febre de viver, à serenidade. Opôs-se a vida à

ideia – como se a vida devesse ser julgada, justificada, redimida pela ideia.

Privilegiou-se o conhecimento em detrimento da arte, e fez-se dele fonte de

moralidade. Com o socratismo e, pouco depois, com a civilização romana, o

dionisíaco desaparece da cena do mundo por um longo período (MARTON

apud COSTA, 2004: 362).

2.3 O herói trágico

A tragédia é oriunda dos cultos dionisíacos e seus ditirambos, mas na trajetória do

herói reside o componente fundamental para o entendimento da tragédia como gênero

narrativo: ―vemos como na lenda dos heróis aparece um elemento integrante e pressentimos a

abundância impressionante da qual brota a forma definitiva da tragédia‖ (LESKY, 1971:31).

Segundo Lesky (1971:64), o herói é considerado na tragédia grega como ―representante da

camada superior da humanidade‖, nos fazendo ver ―a luta do homem contra as forças do

mundo — luta que é levada até o limite do aniquilamento e, amiúde, além deste limite‖.

33

Nietzsche reforça a ideia de que o legado de Sócrates funcionou como estopim para o ocaso da

tragédia e relembra, com ironia, que um ―jovem poeta trágico chamado Platão‖ queimou seus poemas

no intuito de poder tornar-se discípulo de Sócrates (NIETZSCHE, 2007:85).

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No contexto da tragédia grega, o herói trágico é aquele incumbido de ultrapassar o

metron. No capítulo 13 da Poética, Aristóteles se dedica ao caráter do herói, seu ethos, e

termina por definir a causa da tragicidade, que ele entende como uma falta, um erro do herói,

sua hamartía, que se volta contra ele próprio. Para Brandão, é uma ―violência feita a si

próprio e aos deuses imortais‖. A frase ―Se você nos faz mal, ele vem de nós mesmos‖, de

Agrippa d‘Aubigné, expressa a condição trágica da essência paradoxal do herói (Cf. SZONDI,

2004: 7).

Muito é discutido se a dimensão da hamartía seria de cunho moral. Na visão de

Aristóteles, o herói cai no infortúnio ―não em consequência de vício ou maldade, mas de

algum erro‖ (ARISTÓTELES, 2005:32); ou seja, o herói trágico não é portador de uma falha

moral, é alguém que depara, desapercebido, com as esquinas imprevisíveis do destino,

atingido pela moira34

implacável de sua sina. Em Édipo Rei (420 a.C.), de Sófocles, a

hamartía é algo inconsciente, levando ao reconhecimento e a descoberta posterior do erro

cometido. A palavra hamartía significa ―errar o alvo, com o arco e a flecha‖ (BRANDÃO,

1992: 48), sendo, nesse sentido, um verbo sinônimo de enganar-se. Constitui ―um ato inábil,

mas não moralmente culpável‖ (BRANDÃO, 1992: 48). No entanto, o herói também não

deve ser absolutamente bom, pois seu infortúnio não seria apreciado pelos espectadores. A

hamartía e a culpa oriunda dela deve ser fruto ―da grave transgressão de uma pessoa ‗de

qualidade mediana, ou antes melhor do que pior‖, ou seja, o herói deve ser dotado de uma

virtude relativa, ―pois o infortúnio do herói realmente virtuoso não desperta, segundo

Aristóteles, medo e compaixão, mas desgosto‖ (SZONDI, 2004: 82).

A hamartía ocorre em razão da hybris do herói trágico — no caso da tragédia

grega, ela se caracteriza como a ultrapassagem do métron — expressa pela desmedida do

herói, fruto do exagero de suas potências e paixões, do pathos do herói. A paixão é sempre

provocada pela ―presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso.

Ela é então o sinal de que vivo na dependência permanente do Outro‖ (LEBRUN, 2009:13).

Para Aristóteles, as paixões e emoções (o pathos35

), ao contrário de Platão, não

são caracterizadas como doença36

, algo a ser extirpado — visão que uma vertente do

34

A palavra grega moira (ou fatum, no latim) corresponde à ação do destino na trajetória do herói.

Porém a trajetória do herói trágico não é somente marcada pela ingerência dos deuses, também é

assinalada por suas escolhas. Ele encontra-se situado entre a liberdade e a ação do destino. 35 Para Edilene Freire de Queiroz, o pathos para os gregos ―denuncia a existência do homem enquanto

ser trágico, sofredor, mortal‖ (QUEIROZ, 1999: 81), sendo oriundo do infinitivo pathein, padecer. É

também a experiência adquirida na dor, referente à condição do homem em sua mortalidade. 36

Da palavra pathos se originou a palavra patologia, termo utilizado na medicina.

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pensamento ocidental reproduziu —, pois são dadas na natureza humana e constituem

preciosos auxiliares da razão (Cf. LEBRUN, 2009: 17). Um exemplo da presença do pathos

do herói em conjunção com o trágico de sua trajetória e com o lírico encontra-se no romance

Lavoura Arcaica (1989), de Raduan Nassar. A fala do pai castrador dirigindo-se ao núcleo

familiar, qual um coro trágico se dirigindo ao herói da narrativa (seu filho André), reproduz

de forma poética a visão platônica de rechaço pelo campo das paixões. No trecho que segue, o

pai expressa, por meio de uma reflexão monológica, sua advertência a tudo o que

―desestabilize‖ a ordem familiar da casa ou que acene para o desconhecido:

O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos

esticar o arame de nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um

crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante,

que divida e proteja a luz clara e calma da nossa casa, que cubra e esconda

dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum entre nós há

de transgredir essa divisa, nenhum dentre nós há de estender sobre ela sequer

a vista, nenhum dentre nós há de cair na fervura dessa caldeira insana, onde

uma química frívola tenta dissolver e criar o tempo (NASSAR, 2009:50).

Os heróis trágicos são personagens dotadas de complexidade, possuindo, por

natureza, a personalidade cindida. Vivem suas existências no limite entre a loucura e a

sanidade. Entre suas extremas potências (a hybris) e sua consequente desmedida, sua

derrocada (a hamartía). Isso é corroborado por Jean-Claude Carrière (2007:27), em seu ensaio

sobre a fragilidade, no qual explana sobre a essência de vidro 37

de personagens como Hamlet,

―personagem hesitante entre a vingança e o esquecimento, entre o despertar e o sono, entre a

razão e a loucura (mesmo fingida) e sobretudo entre a vida e a morte‖. Afirma ainda que tais

personagens são ―chamados por sua fragilidade, mesmo os mais robustos, e é de seus próprios

interiores que lhes vêm sua ruína e aniquilamento‖ (CARRIÈRE, 2007: 38). Para Carrière,

―nosso ponto forte é o exato centro de nossa fraqueza‖, ou segundo Ernesto Sábato,

parafraseando La Rachefoucauld, ―os defeitos nascem da exageração das virtudes‖

(SÁBATO, 1993: 15). Ambas as frases são aplicáveis à essência dos heróis trágicos, pois é da

desmesura que advém o erro, a hamartía.

37

Carrière extrai tal expressão da obra de Shakespeare Medida por Medida, onde a personagem

Isabela afirma que o homem é ―muito ignorante a respeito do que acredita mais conhecer, sua essência

de vidro‖ (CARRIÈRRE, 2007, 30).

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Poderíamos inventariar outros elementos que remetem à trajetória do herói, tais

como o dilema ético interior (LESKY, 1971: 27) ao cometer sua hamartía. O herói trágico é

aquele que sucumbe ao cometer seu erro. Destituído da capacidade de manter-se senhor de si,

está em perene inadequação interior e para com a realidade à sua volta, como propõe Jean-

Pierre Vernant e Vidal- Naquet, em seu livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga (1999) :

Que ser é esse que a tragédia qualifica de deinós, monstro incompreensível e

desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lúcido e

cego, senhor de toda a natureza através de seu espírito industrioso, mas incapaz de

governar-se a si mesmo? (VERNANT; NAQUET, 1999: 10)

Tal fragmento expressa a condição paradoxal do herói trágico e a existência de

uma personalidade cindida: forte e fraca, culpada e inocente, lúcida e cega. Além disso,

denotam a natureza paradoxal do trágico, já que a tragédia clássica se configura como ―o

resultado de um mundo que se apresenta como choque38

entre forças opostas‖ (COSTA;

REMÉDIOS, 1988:8).

A postura do herói trágico, segundo Lesky, é elemento essencial da tragédia. Ele

deve ter consciência do dilema ético que se apresenta diante dele após incorrer em seu erro,

que se caracteriza como o estopim do enredo trágico. O sujeito da ação trágica deve ―sofrer

tudo de forma consciente‖ (LESKY, 1971:27), percebendo a gravidade do conflito dramático

e de sua hamartía, não devendo ser impassível à situação. É nesse momento de

reconhecimento, de tomada de consciência do erro cometido, que o dilema ético se interpõe e

vem à carga toda a tragicidade da trajetória do herói, que traduz isso em beleza, expressando o

que é sentido de forma poética, lírica.

De acordo com Flávio Kothe, a personagem trágica, ao perder seu status político

— levando em consideração que na forma clássica da tragédia o herói era membro de uma

aristocracia, detinha poder — em decorrência do erro, ganha em literariedade ao expressar o

trágico vivido oriundo de sua queda. A personagem trágica, nesse momento, ―assume e

vivencia radicalmente sua existência. Tal momento, em que o poder já não é mais tão

essencial, representa uma enorme potenciação do poderio artístico. É o momento em que

Macbeth profere as terríveis palavras do ato V, cena 5‖ (KOTHE, 1987:28): ―A vida não

passa de uma sombra que está caminhando: um pobre ator que suporta e sofre sua hora no

38

Na visão desta pesquisa, talvez fosse melhor a utilização do termo coexistência, pois se trata de uma

união de contrários, uma coincidentia oppositorum, algo sobre o qual discorreremos mais adiante.

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58

palco para depois não ser mais ouvido. É uma história contada por um idiota: uma história

cheia de som e fúria, e seu significado é nada‖39

.

É também nesse momento que o lírico se manifesta de forma mais evidente, bem

como a cosmovisão do herói trágico é apresentada. A linguagem do herói nesse momento é

plena de ―imagens-ritmo‖, metáforas, que expressam seu ‗estado de alma‘ diante do trágico

vivido, mas não possuem apenas um caráter íntimo, já que são detentoras de um alcance

ontológico, produtor de um saber.

As imagens, porém, possuem um poder maior do que meramente

empatizarmos com o eu do narrador, diante do qual permaneceríamos

passivos observadores. Somos conduzidos a uma outra associação de idéias:

uma meditação sobre aspectos abissais da alma humana, sobre as

conseqüências da hybris e da falta de limites, sobre as forças que, tal como

na tragédia grega, moldam o destino além da determinação da vontade e da

consciência. Meditação que invade a estabilidade do cotidiano e através de

uma personagem trágica conduz-nos à embriaguez dionisíaca. A mesma

dimensão de horror religioso que acometia aos gregos diante da tragédia: que

a dimensão do belo não é apenas a da perfeição de uma forma platônica, mas

a da sacralidade da vida, mesmo em suas mais cruéis manifestações

(LOPES, 1995: 25).

2.3.1 O herói trágico e o devaneio

Antes de adentrarmos mais detidamente a caracterização do devaneio concernente

ao herói trágico, na perspectiva de Nietzsche, convém esclarecer o sentido de devaneio

abordado por Bachelard, em sua obra A Poética do devaneio, que une o devaneio à presença

do poético e que, nesse sentido, se aproxima de nossa tentativa de evidenciação do lírico

(poético) presente na condição trágica do herói. Tal condição, embora desnorteante, é também

produtora de poesia.

Para Bachelard (1996:6), o devaneio poético não se trata de uma ―inclinação para

baixo‖, fruto somente do obscurecimento da consciência. Ele é possuidor de um caráter

construtivo de mundos, produtor de poesia, por meio das imagens poéticas produzidas por

intermédio da linguagem:

39

No texto original: ―Life‘s but a walking shadow, a poor player, / That struts and frets his hour upon

the stage, / And then is heard no more. It is a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, /

Signifying nothing‖ (SHAKESPEARE apud KOTHE, 1987:29).

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59

O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é um

devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo, para mundos belos.

Dá ao eu um não - eu que é o bem do eu: o não-eu meu. É esse não-eu meu

que encanta o eu do sonhador e que os poetas sabem fazer-nos partilhar. Para

o meu eu sonhador, é esse não-eu meu que permite viver minha confiança de

estar no mundo. Em face de um mundo real, pode-se descobrir em si mesmo

o ser da inquietação. Somos então jogados no mundo, entregues à

inumanidade do mundo, à negatividade do mundo, o mundo é então o nada

do humano. As exigências de nossa função do real obrigam-nos a

adaptarmos à realidade, a constituir-nos como uma realidade, a fabricar

obras que são realidades. Mas o devaneio, em sua própria essência, não nos

liberta da função do real? Se o considerarmos em sua simplicidade, veremos

que ele é testemunho de uma função do irreal (...) (BACHELARD,

1996:13).

Mediante uma fenomenologia da imaginação criadora, segundo Bachelard

(1996:14), o devaneio nos proporciona uma abertura de mundos por meio também do mundo

real absorvido pelo imaginário, da assimilação do próprio real transmutado em algo distinto,

como destaca: ―a imaginação é capaz de nos fazer ‗criar aquilo que vemos‘‖. O devaneio

poético nos fornece uma espécie de apaziguamento, ―nos ajuda a escapar do tempo‖, tratando-

se de uma manifestação de ―estado de alma‖, oriundo de uma ―situação de solidão sonhadora‖

(idem, 1996:14), produtora de poesia, que é ―ao mesmo tempo o sonhador e seu mundo‖.

Nessa possibilidade de manifestação de um ―estado de alma‖ podemos identificar a presença

do lírico na condição devaneante. Para Bachelard, o devaneio poético possibilita aconchego,

fornece unidade ao que estava fragmentado; ―tece em torno do sonhador laços suaves‖.

Bachelard acentua ainda a diferença entre sonho40

e devaneio, enfatizando que no

primeiro o sujeito que conta o sonho não se sente o sonhador de seu sonho, não havendo

identidade entre o sujeito que conta e o sujeito que sonhou:

A estranheza de um sonho pode ser tal que nos parece que um outro sujeito

vem sonhar em nós. ‗Um sonho me visitou‘. Eis a forma que assinala a

passividade dos sonhos noturnos. Esses sonhos, é preciso reabitá-los para

nos convencermos de que foram nossos. Posteriormente fazem-se deles

narrativas, histórias de um outro tempo, aventuras de um outro mundo.

Longas vias, longas mentiras. Com freqüência acrescentamos,

inocentemente, inconscientemente, um traço que aumenta o pitoresco de

nossa aventura no reino da noite (BACHELARD,1996: 11).

40

Embora as raízes etimológicas de sonho e devaneio sejam as mesmas no francês (rêve e rêverie),

Bachelard ressalta suas divergências de sentido.

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60

Já no que concerne ao devaneio, a intervenção da consciência é sinal decisivo da

diferenciação, ou seja, o devaneio como manifestação poética de um ―estado de alma‖ é fruto

da identificação entre o sonhador e o conteúdo de seu devaneio. Sobre o devaneio, afirma

Patrick Legros (2007:233) que ele embora sendo uma atividade social, ―permanece,

frequentemente, sendo uma experiência íntima, ela é raramente revelada‖. Isso decorre do fato

de que, enquanto ao devaneio se atribui uma vontade consciente, pode-se dizer que o sonho,

considerado uma atividade inconsciente, ―separa o sonhador, que, por conseqüência está mais

à vontade para contar o que concebe como não sendo de sua responsabilidade‖ (idem,

2007:234). Reforça, ainda, a noção de que esse é um ponto de vista essencialmente da

sociedade ocidental, já que em outras sociedades concede à vida onírica ―o mesmo estatuto da

vida desperta‖ (idem, 2007:235).

No que concerne à postura do herói trágico, seu devaneio não se trata de absoluto

adormecimento da consciência, delírio báquico, visto que é traduzido em imagem; imagem

poética. Isso acontece, segundo a visão de Nietzsche, pela conjunção de um estado de

embriaguez dionisíaca e de serenidade e sonho apolíneo. A analogia entre sonho e o impulso

apolíneo repousa na característica de ser Apolo o ―deus dos poderes configuradores‖,

cultivador das imagens e formas serenas e tranquilas, que reinam sobre a ―bela aparência do

mundo interior da fantasia‖ (NIETZSCHE, 2007:26) e, por meio do princípio individuationis,

faz surgir o mundo a partir do caos originário. Já a embriaguez diz respeito ao estado que

destrói, despedaça, desorganiza, abole o infinito e o individual; é o estado que proporciona a

comunhão com a natureza, com o Uno-primordial. É na união necessária desses dois estados

que se encontra o cerne da criação artística, segundo Nietzsche. No âmbito artístico, os

impulsos apolíneos e dionisíacos41

manifestam-se de forma paradigmática nas artes plásticas e

na música, respectivamente (NIETZSCHE, 2007:24).

A desmedida e o pathos do herói trágico reflete a embriaguez de seu estado

dionisíaco, mas as imagens produzidas desse estado são fruto de um impulso apolíneo.

Nietzsche (2007:41) afirma que a personagem trágica, ao adentrar o delírio de seu estado

41 Somente suportamos a profundidade dionisíaca por ela ser expressa sob a forma de máscara

apolínea, de acordo com o pensamento nietzscheano. Para ele, a linguagem dos herói sofocleanos

tanto nos surpreende por sua clareza e precisão apolíneas, ―que temos a impressão de mirar o fundo

mais íntimo de seu ser, com certo espanto pelo fato de ser tão curto o caminho até esse fundo‖

(NIETZSCHE, 2007: 60). Nietzsche (2007: 57) enfatizando a origem coral da tragédia, defende a ideia

de que devemos compreendê-la ―como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em

um mundo de imagens apolíneo‖.

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dionisíaco, sob a força das paixões de sua atitude, é ―tocado‖ por Apolo, e transforma seu

estado delirante em imagens por meio da poesia lírica, oriunda da música: ―O encantamento

dionisíaco musical do dormente lança agora à sua volta como que centelhas de imagens,

poemas líricos, que em seu mais elevado desdobramento se chamam tragédias ou ditirambos

dramáticos‖. Esse poético pode ser evidenciado pela recorrência de imagens e metáforas

presentes no discurso da personagem, um indício da poeticidade nela construída a partir do

trágico.

Segundo Emil Staiger, a linguagem do pathos contida em um drama trágico

confunde-se facilmente com a linguagem lírica — o arrebatamento patético muitas vezes

coincidindo com o êxtase lírico. A linguagem oriunda do arrebatamento patético do herói é

diferenciada da linguagem utilizada ao longo do drama. O clímax do pathos pode vir a

―transformar o verso regular do diálogo em construções bem mais complicadas, que

aparentemente quase não se diferenciam de estrofes líricas, como acontece nos ‗comas‘ de

Sófocles e em alguns monólogos de Corneille‖ (STAIGER, 1972: 120).

2.4 A tragédia, o verso e a prosa

A tragédia em seus começos ocorria necessariamente em versos e, por mais de

200 anos, a noção de verso foi praticamente inseparável do drama trágico. A ideia de

―tragédia em prosa‖ é singularmente moderna. George Steiner (2006:141) ressalta a

intraduzibilidade em prosa da forma poética de várias tragédias clássicas, visto que, segundo

ele, não ―é possível ‗traduzir‘ os solilóquios depressivos de Hamlet, a meditação sobre a

morte de Macbeth, ou o lamento de Cleópatra sobre o amante caído‖. No entanto, Steiner

(2006:137) se refere especificamente ao verso, à poesia como poema, e não ao poético, à

poesia como atributo, pois, como entende, ―a poesia pode ser uma virtude da prosa, da

matemática, ou de qualquer ação da mente que tende à forma. O poético é um atributo, o

verso é uma forma técnica‖.

Acerca especificamente da constituição em versos da tragédia grega, Steiner

(2006: 138), diz que nela não haveria lugar para a prosa, haja vista que ―submete suas

próprias constatações a critérios de verificação que são de fato, irrelevantes ou inaplicáveis às

realidades do mito‖, sendo o mito o território por excelência das tragédias gregas. Estas, para

ele, não são críveis ―à luz de uma verificação prosaica‖, empírica, mas à luz de uma ―verdade

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poética‖ (idem, 2006: 138), não menos rigorosa, mas ancorada em critérios de verdades outros

que não os da prosa:

A poesia também possui seus critérios de verdade. Na realidade,

eles são mais rigorosos que os da prosa, mas são distintos. O

critério da verdade poética é o da consistência interna e da

convicção psicológica. Onde a pressão da imaginação é

suficientemente sustentada, permite-se as mais amplas liberdades

à poesia. Nesse sentido pode-se afirmar que o verso é a pura

matemática da língua. Ele é mais exato do que é a prosa, mais

autocontido e mais apto a construir formas teóricas

independentemente da base material. Ele consegue ―mentir‖

criativamente. Os mundos do mito poético, como os da geometria

não euclidiana, são persuasivos da verdade na medida em que

aderem a suas próprias premissas imaginativas. A prosa, pelo

contrário, é matemática aplicada. Em algum lugar no decorrer da

frase as afirmações que ela faz devem corresponder a nossas

percepções dos sentidos. As casas descritas em prosa precisam se

manter sobre fundações sólidas (STEINER, 2006: 138).

Para o poeta trágico Paul Celan, a verdade produzida pela poesia em versos

também é realidade, embora outro real. Celan, acerca dessa invenção de um outro real

mediante a linguagem, em seu discurso ao receber um prêmio em Bremen: ―Nesses anos e nos

seguintes, escrevi poemas para me orientar, para explorar onde estava e aonde deveria ir, para

esboçar a realidade para mim mesmo (...) são os esforços de alguém que, desprotegido até

mesmo pela tenda do céu, sobrevoado de estrelas que são obra humana, exposto de uma forma

inquietante, vai com sua existência para a linguagem, ferido pela realidade e à sua procura‖

(CELAN apud LINS, 2005: 32). Sobre esse outro real produzido pelos poemas, afirma

Alberto Manguel (2008: 20) que ele não só confere realidade como vai além disso, a defende:

―Na Idade Média, acreditava-se que os poetas irlandeses eram capazes de proteger os campos

de trigo e cevada ‗rimando os ratos até a morte‘, isto é, recitando versos pelos campos onde

havia ninho de roedores‖.

O casamento duradouro entre o drama trágico e o verso se deu como um resquício

da combinação no teatro grego entre ―personagens elevados‖, de vida aristocrática, e sua fala

em versos. Porém, segundo Steiner, isso não negaria o registro trágico (e poético) que a prosa

pode ter, dando como exemplos o fato de que, segundo ele, ―não se desejaria que Tácito

tivesse escrito em verso, e as cartas de Keats alcançam profundidades de sentimento ainda

maiores do que sua poesia‖ (STEINER, 2006: 139). Ressalta ainda que a decisão dos

dramaturgos de transportar a tragédia da seara do verso para a da prosa é um dos pontos de

inflexão na história do drama ocidental.

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63

Shakespeare ficou conhecido por conjugar prosa e o verso (o verso branco42

) em

suas obras. Enquanto que à poesia ficava restrita a fala de personagens trágicas (geralmente

reis ou membros de uma aristocracia e nobreza), a prosa era o lugar de expressão das

personagens cômicas, como forma de distingui-los socialmente. Essa associação entre prosa e

comédia, de um lado, e verso e tragédia, de outro, é, no entanto, mais antiga do que

Shakespeare:

Não pode haver dúvida de que a associação entre comédia e prosa é muito

antiga e natural. Verso e tragédia pertencem juntos aos domínios da vida

aristocrática. Comédia é a arte concernente a homens menores. Tende a

dramatizar as circunstâncias materiais e as funções corpóreas banidas da

cena trágica. O personagem cômico não transcende a carne; encontra-se

absorvido por ela. Não há lavatórios nos palácios trágicos, mas desde seu

nascimento a comédia faz uso das bacias de quarto. Na tragédia, não se

observa homens comendo, nem se escuta seu ronco. Mas a touca de dormir e

a colher de cozinha florescem na arte de Aristófanes e Menandro. E eles nos

empurram para baixo, ao mundo da prosa‖(STEINER, 2006: 142).

Essa alternância presente em Shakespeare entre verso e prosa com função de

distinção social e contraste irônico se desfaz em Rei Lear. Consoante Steiner ( 2006:148), Rei

Lear é sua obra-prima, esbanjadora de ―soberba poesia‖ por intermédio do ―espírito

enlouquecido‖ de Lear, que ―brada numa prosa que força os limites da razão e da sintaxe‖.

Rei Lear, em certa medida, se assemelha, segundo Steiner (2006:156), a Woyzeck — a

―primeira tragédia real da baixa vida‖— em sua demonstração de desolação trágica universal,

que acompanha tanto a reis quanto a servos, aos homens de forma geral. No caso de

Woyzeck, a um soldado iletrado. A partir desses marcos, a tragédia como drama cênico

amplia suas áreas de atuação, não mais restrita à forma do verso ou a retratar os lamentos

apenas de ―personagens elevados‖. A prosa poética e as pessoas comuns passam a ter vez nos

enredos trágicos.

2.5 A tragédia e o melodrama

O gênero melodramático dá seus primeiros indícios ainda no século XVIII,

quando o filósofo iluminista Denis Diderot semeia os postulados do Drama Sério Burguês.

Nesse período já se havia consolidado uma geometria espacial do espetáculo — o palco

42

Verso que não possui a rima.

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italiano43

— e os questionamentos a respeito da natureza de um espetáculo estavam sendo

lançados, indo em direção às novas possibilidades de artifícios ilusionistas e ao dinamismo

ofertado por um jogo cênico amparado na expressão das emoções por meio dos gestos.

Designa-se Drama Sério Burguês ao conjunto de princípios que nortearam o fazer

cênico no século XVIII na França, podendo ser considerado o embrião do gênero

melodramático, o qual se consolida no século XIX, lançando as bases de uma nova

dramaturgia que repercutiu posteriormente na formação do cinema narrativo, já no século XX.

Entre tais princípios do Drama Sério Burguês estão a rejeição à recitação da poesia dramática

e a valorização dos sentimentalismos, ―na sua concepção do drama como lugar da firmação

das disposições ‗naturais‘, da paixão sincera, do mundo privado, das relações familiares agora

não mais atadas ao jogo do poder do Estado como na tragédia clássica‖. (XAVIER, 2003:63)

É no século XVIII que o teatro assume mais rigorosamente a ―quarta parede‖ e faz a ―mise-

en-scène se produzir como uma forma de tableau” (XAVIER, 2003: 17).

O melodrama se consolida no século XIX em resposta aos anseios das populações,

então privadas de frequentar os grandes teatros oficiais, onde predominava a retórica poética

ao espetáculo. Em virtude de serem proibidas nas obras as falas e diálogos — embora com os

espectadores se desse o contrário, pois era patente a recepção ruidosa dos espectadores,

diferindo da postura silenciosa exigida nos teatros oficiais — há neles uma priorização do

espetáculo sobre a representação dramática. O espetáculo do visual e do sonoro, aliados à

pantomima e à dança, eram os grandes protagonistas. Isso ia de encontro a uma tradição que,

desde Aristóteles em sua Poética, ―condenava o espetáculo como sendo algo de superficial e

acessório em relação à ação e ao conteúdo da representação‖ (GEADA, 1987: 11).

A primazia nos efeitos ópticos e sonoros já anuncia os espetáculos do período

como predecessores não só dos teatros de variedades, como das novelas de rádio e do próprio

cinema. De acordo com o estudioso das expressões da cultura massiva, Jesús Martín-Barbero

(o qual analisa o melodrama sob a óptica do popular e da formação da cultura de massas),

43

Configura-se na Itália do século XVI uma ordem espacial do espetáculo que se consagrou pelos

séculos vindouros como o ―palco italiano‖. Tal geometria espacial é reconhecida pela hipótese da

quarta parede, a qual separaria imaginariamente a caixa cênica da plateia, separação que é

materializada pela presença das cortinas e pelo fosso. A concepção de pintura surgida na Renascença,

com seus preceitos de perspectiva e efeito-janela, influenciou amplamente o surgimento do ―palco

italiano‖, causando ―uma aproximação mais decisiva entre a posição do espectador de teatro e a do

observador de um quadro (no cinema, em movimento).‖ (XAVIER, 2003:250); uma integração cujas

potencialidades só seriam melhor exploradas com o surgimento do posterior Drama Sério Burguês.

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tudo no gênero melodramático fala de sentimentos exagerados, de uma ―retórica do excesso‖

(BARBERO, 2001:178) e da busca por um naturalismo a partir disso. Para Barbero, o

melodrama funciona no período como um instrumento que medeia as relações que vão se

constituindo entre o folclore popular de então e a nascente cultura de massas:

A cumplicidade com o novo público popular e o tipo de demarcação cultural

que ela traça são as chaves que nos permitem situar o melodrama no vértice

mesmo do processo que leva do popular ao massivo: lugar de chegada de

uma memória narrativa e gestual e lugar de emergência de uma cena de

massa, isto é, onde o popular começa a ser objeto de uma operação, de um

apagamento das fronteiras deslanchado com a constituição de um discurso

homogêneo e uma imagem unificada do popular, primeira figura da massa.

(BARBERO, 2001: 173)

Barbero refere-se ao melodrama como espetáculo total, oriundo não só da ênfase

na encenação como também da conformação de sua estrutura dramática (Cf. BARBERO,

2001: 174). A caracterização do melodrama como espetáculo, portanto, quando de sua

formação, dizia respeito não somente aos recursos técnicos utilizados, como também a uma

estrutura dramática baseada na esquematização de suas personagens e numa polarização

maniqueísta.

O melodrama possui uma teatralidade explícita, reviravoltas, ―golpes de teatro‖,

revelações inusitadas. Nas tragédias isso também se manifesta, as peripécias e revelações

também se dão, mas são dispostas de forma distinta. Como já ressaltado, há uma dignidade na

queda do herói. Ismail Xavier esclarece isso, ao assinalar que a marca do herói trágico é

―suportar o sofrimento de forma estóica, guardar no silêncio a dignidade, não ‗baixar o

nível‘‖, enquanto que, no melodrama, é preciso

[...] ‗dizer tudo‘, embora já não mais como um veículo da verdade que repõe

o mérito da inocência, mas como um ‗fazer-se imagem‘, marcar passagens

de dissimulação, exaltação ou histeria, quando o fazer cena oferece uma

resolução (ou auto-satisfação) para impasses, cisões internas, contradições

entre o sentir e o agir (XAVIER, 2005:26).

Já na linguagem da tragédia, por meio da poesia, não se deve dizer tudo, pois

comporta também o não-dito. No melodrama, o que fica evidente é a potência verborrágica da

personagem, um ―fazer-se imagem‖, mas no sentido de chamar atenção para si, ―fazer cena‖,

nas palavras de Xavier. Já na tragédia, a perplexidade do herói trágico diante do rumo dos

fatos tomados vem à lume sob a forma de poesia, como se o poético brotasse redivivo do mais

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profundo da tragicidade de sua sina, o lírico contido no irremediável e inexorável de sua

condição.

Embora o melodrama seja como que a matriz maior do cinema (Cf. XAVIER,

2005:25) e também seja, conforme Barbero, expressão por excelência da cultura de massa,

pensamos que é possível perceber matizes do trágico nas obras fílmicas – e também do

trágico em confluência com o lírico, o que estamos denominando como poeticidade trágica –,

como contraposição a essa predominância do melodramático.

2.6 Idealismo alemão: o mundo sob a ótica do trágico

O estudo da tragédia ática no período iluminista, assim como ocorreu com a

valorização do ideal grego de beleza, se deu a partir de um movimento cultural na Alemanha

do século XVIII, Aufkalärung, o qual visava à criação de uma política e de um nacionalismo

culturais que respirasse o teatro grego e a cultura ática como um todo. O representante inicial

desse projeto foi Winckelmann, um dos primeiros a estudar a arte grega clássica e a

transportar seus preceitos para a arte alemã, embora tenha concentrado seus estudos na pintura

e escultura gregas e não na tragédia. Machado (2006: 10) afirma que seu ―pensamento foi

marcante tanto por sua concepção da arte grega clássica como arte cuja lei suprema é a beleza,

quanto pela maneira como estabelece a posição que os artistas alemães deveriam ter em

relação a ela‖.

Para Machado, o enaltecimento da arte grega por meio do movimento cultural

alemão ocorreu também com Goethe, o qual, embalado pelos ideais de Winckelmann, passa a

escrever peças trágicas inspiradas nos gregos. Machado assevera que é com o advento do

Idealismo alemão, no século XIX, posterior a Aufkalärung, que o trágico passa a ser pensado

como conceito também filosófico – a partir de filósofos e poetas como Hölderlin, Schelling e

Hegel. Para Szondi (2004:23), ―desde Aristóteles há uma poética da tragédia, apenas desde

Schelling, uma filosofia do trágico‖. Embora esses filósofos tenham se debruçado sobre a

problemática do trágico, suas considerações acerca do trágico não estavam preocupadas em

defini-lo.

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Machado salienta que tais pensamentos filosóficos só se delinearam no Idealismo

alemão em virtude de haver existido anteriormente esse resgate do corolário grego, por meio

da Aufkalärung. Acerca do Idealismo alemão, segundo Machado, enquanto França e Itália

beberam na fonte do mundo latino (Roma), a Alemanha bebeu da Grécia.

É na sequência desse movimento de valorização do ideal grego de beleza e

da necessidade de sua retomada pela arte alemã — movimento que se inicia

com Winckelmann e tem Goethe como principal expoente — que nasce,

principalmente a partir de Schelling, Hölderlin e Hegel, colegas do

seminário de Tübingen, uma reflexão sobre a essência do trágico,

relativamente independente da forma da tragédia (MACHADO, 2006:22)

Corneille e Lessing44

também são reconhecidos por Machado como dois grandes

estudiosos da arte trágica, aquele sendo um representante da poética clássica francesa do

século XVII — inspirada nos cânones clássicos aristotélicos, porém adequados à aristocracia

da época — e esse é um representante do teatro burguês alemão do século XVIII, inspirado

também nos preceitos aristotélicos, porém adaptando-os aos valores burgueses vigentes na

Alemanha até então.

Na esteira da emergência do trágico como princípio filosófico ocorreu também,

com o romantismo alemão (e no romantismo como um todo), conforme Machado, uma

valorização da lírica. Segundo Nunes, a lírica, como expressão de uma subjetividade interior,

liberaria ―o fundo noturno, instintivo da subjetividade; liberaria o entusiasmo poético‖

(NUNES in NOVAES, 2009:311), Como afirma Steiner

Por ser a voz natural da autoconsciência, a lírica é o modo dominante da

literatura romântica. Foi no verso lírico e na prosa do devaneio ou da

narrativa na primeira pessoa que o romantismo conquistou suas glórias

eminentes. A vida e a candura no espírito privado de Wordsworth, Keats,

Schelley, Lamartine, Vigny, Heine, Leopardi, ou Púschkin conferiram a sua

poesia uma espécie de incandescência. Queima ao toque. Nossa consciência

de extensão da prosa seria mais limitada se não conhecêssemos Werther, The

Confessions of an English Opium (Confissões de um comedor de ópio), ou

Memórias do Subsolo, de Dostoiévski. O romantismo ensinou à prosa a arte

da intimidade (STEINER, 2006: 78).

44 Para Machado, Lessing, autor de um famoso texto teórico sobre a obra de arte grega Laocoonte, se

apresenta como o principal ―crítico do teatro francês do século XVII, visto em geral como a figura

mais significativa da Aufkalärung” (MACHADO, 2006:36), tendo tido papel fundamental na

formação de uma dramaturgia nacional e moderna alemã.

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68

O lírico para o romantismo é expressão do gênio criador, como espelhamento fiel

de sua sensibilidade, num ―perpétuo esforço para apreender aquilo que se desvanece‖

(KIERKGAARD apud NUNES, 2009:311), sendo assim, sob esse ângulo, sinônimo de ilusão,

mas uma ilusão que não compromete a essência do romantismo (Cf. NUNES, 2009:310).

Mesmo que se tenha dado no romantismo alemão o resgate do trágico como

filosofia, Steiner não vê o romantismo com bons olhos no que concerne à sua contribuição à

tragédia como obra cênica. Isso porque, para Steiner, o lírico oriundo do romantismo não deve

ser confundido com a poesia dramática presente nas tragédias, deduzindo que as obras

trágicas realizadas pelos pensadores românticos (como Goethe e Shelling) não devem ser

consideradas tragédias, pois as personagens criadas pelos autores românticos não possuem

autonomia, já que são, para Steiner, apenas o reflexo de seus autores (Cf. STEINER, 2006:

78). A visão de Steiner circunscreve o lírico ao seu sentido romântico, como reflexo absoluto

do gênio criador, o que não corresponde ao lírico como entendemos nesse trabalho, no sentido

mais amplo dado por Lopes e Nietzsche, como princípio ativo do poético e possuidor de um

alcance ontológico.

Szondi defende o argumento de que não existe uma essência do trágico como

problema filosófico, ontológico, não há ―o‖ trágico, embora haja segundo ele elementos que

são identificados em todas as visões filosóficas e enredos trágicos, os quais funcionariam

como liames a conectar todas as concepções. Dentre esses elementos, Szondi ressalta sua

natureza dialética, o que Walter Benjamin designa como paradoxo trágico (Cf. SZONDI,

2004:80). Szondi defende o trágico como uma ―modalidade dialética‖, embora denuncie a

insuficiência dessa palavra em dar conta de toda a complexidade do fenômeno. Para ele, ―não

é possível reduzir a um conceito lógico de dialética um fenômeno como o trágico‖, muito

próximo da poesia e da complexidade da existência (SZONDI, 2004: 84). Assegura que,

apesar disso, ela deve ser posta em relevo como critério importante nas diversas concepções

sobre o termo, pois expõe ―o denominador comum das diversas definições idealistas e pós-

idealistas do trágico e, com isso, constitui uma possível base para o seu conceito geral‖

(SZONDI, 2004:81).

De acordo com Roberto Vecchi (2004:114), o poeta Hölderlin, um dos maiores

representantes do Idealismo alemão, ciente da natureza paradoxal do trágico, apontava para a

importância de se ―articular uma filosofia trágica, um pensamento trágico, que possa

‗expressar o ignoto‘, ‗dizer o impensado‘‖, o que, podemos dizer, está muito próximo da

poesia em sua tentativa de dizer o indizível.

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69

Ainda para Hölderlin, um dos elementos essenciais da tragédia se trata do que

denomina cesura, que corresponderia ao momento em que se prenuncia a queda do herói, sua

ruína: ―é o momento de palavra pura que organiza o ritmo das representações de tal modo

que o sentido da tragédia se torna manifesto‖ (MACHADO, 2006:156). No caso das duas

tragédias de Sófocles, esse momento se encontra, consoante Machado, nas palavras do cego e

adivinho Tirésias. A cesura trata-se de um ponto de inflexão, ―suspensão, de ruptura do curso

da tragédia que tem como função fazer aparecer, para além da alternância das representações,

a própria representação trágica‖ (MACHADO, 2006:156). Szondi (2004: 95), acerca do

enredo trágico de A vida é sonho, afirma que um dos momentos trágicos da obra ―aparece

precisamente na predição do infortúnio‖.

O trágico tem como insígnia a luta entre forças contrárias e irreconciliáveis, que

se constitui no paradoxo trágico, não sendo o aniquilamento do herói sua marca principal.

Tais forças podem ser, por exemplo, a fatalidade e a liberdade, para Shelling, ou a oposição

entre duas posições éticas, segundo Hegel. Na perspectiva de Goethe, ―qualquer tragicidade é

fundada por um conflito inconciliável. Se intervier ou se tornar possível uma conciliação o

trágico desaparece‖ (GOETHE apud VECCHI, 2004: 113). Nos enredos trágicos, o paradoxo

reside na própria insolubilidade do conflito trágico, pois quanto mais o herói trágico imagina

estar se desvencilhando da predição trágica de sua sina, mais dela ele se aproxima. É nessa

busca da salvação coincidente com o encontro com a ruína onde mora a ironia trágica. Tal

ruína finda com o autossacrifício do herói, como forma de expiação de sua culpa. Como

acentua Szondi (2004:89), ―não é o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação

tornar-se aniquilamento; não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato

de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína‖. Isso está

expresso na fala de Basilus, herói trágico da obra A Vida é Sonho45

, de Calderón de la Barca,

representante do Século de Ouro espanhol: ―Quem pensa que foge do risco, ao risco vem,/

com o que eu guardava me perdi,/ eu mesmo minha pátria destruí‖. Ou na frase de Jean de

Sponde: ―Quando me considero a salvo, eu mesmo me firo‖ (Cf. SZONDI, 2004: 89). Essa

unidade entre salvação e aniquilamento, própria do trágico, segundo Szondi, é expressa de

forma paradigmática em Édipo Rei, de Sófocles, posto que ele foge para Tebas como forma

de fugir da predição oracular, e assim, acaba por matar Laio, seu pai, e é na própria Tebas que

casará com sua mãe e cumprirá, assim, a predição. Buscando os assassinos de Laio, o herói de

45

Segundo Szondi, trata-se da versão cristã de Édipo.

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70

depara com sua condição trágica: ―o rei Édipo busca os assassinos de Laio, temendo que eles

se tornem seus assassinos, e encontra a si mesmo‖ (SZONDI, 2004: 94).

A desgraça que se abate sobre Édipo é provocada por sua hamartía, não é

provocada somente pelos deuses, embora eles tenham participação no que acontece, pois,

segundo Szondi (2004: 89), é parte da tragédia grega a oscilação entre a liberdade e o fatum, a

ação do destino; visto que ―a liberdade nem é inteiramente concedida ao herói, nem negada

por completo‖.

Não é trágico que o homem seja levado pela divindade a experimentar o

terrível, e sim que o terrível aconteça por meio do fazer humano. Tão

importante para a tragédia quanto o poder tácito da divindade sobre o que

acontece é a intervenção do deus no fazer humano, solicitada pelo próprio

homem e expressa em palavras através do oráculo (SZONDI, 2004: 89).

Segundo Jean Pierre Vernant e Vidal Naquet, embora esses planos

(divino/humano, livre-arbítrio/destino) se constituam como duas ordens de realidade

heterogêneas, no contexto da tragédia grega ―elas constituem sobretudo os dois aspectos,

opostos mas complementares, os dois pólos de uma mesma realidade ambígua‖ (VERNANT,

1999: 21).

Entre os pensadores mais representativos nas análises sobre o trágico no período

do Idealismo alemão se encontram Nietzsche, Hegel e Schelling, lembra Machado. Nietzsche,

porém, é o primeiro a se intitular como filósofo trágico, daí a sua importância entre os três

pensadores. O filósofo também defende a natureza irreconciliável do conflito trágico, apenas

reconciliável num plano metafísico. Defende a idéia de que na tragédia antiga ―fazia-se sentir

no fim um consolo metafísico, sem o qual não há como explicar de modo algum o prazer pela

tragédia‖, ressaltando que, nos dramas de sua época, tal consolo metafísico foi deslocado, que

se procurou então ―uma solução terrena para a dissonância trágica; o herói, depois de bastante

martirizado pelo destino, colhia uma bem merecida recompensa em um magnífico casamento‖

(NIETZSCHE, 2007:105), o que pode ser traduzido na contemporaneidade como o happy end

da cultura de massas.

No entanto, para Steiner, que critica a presença da redenção nas obras trágicas

oriundas do romantismo, a existência de qualquer possibilidade de compensação, ainda que

num plano metafísico como aponta Nietzsche, é descaracterizadora da tragédia, que não

admite a existência de um ―céu compensador‖ como o prometido pelo romantismo aos erros e

sofrimentos humanos:

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Questionar os deuses porque Édipo teria sido escolhido para a sua agonia ou

porque Macbeth deveria ter encontrado as feiticeiras em seu caminho, é

questionar a razão e justificação da noite sem voz. Não há resposta. Por que

deveria haver? Se houvesse estaríamos lidando com sofrimento justo e

injusto, como ocorrem nas parábolas ou nos contos de advertência, não com

tragédia. E para além do trágico não repousa o ‗final feliz‘ em outra

dimensão de lugar ou tempo. As feridas não são curadas e o espírito

alquebrado não tem conserto. Pela norma da tragédia não pode haver

compensação (STEINER, 2006: 73).

De acordo com Steiner, a evasão da tragédia é uma prática corrente no teatro e

cinema contemporâneos, onde os finais devem ser felizes. Segundo ele, os vilões

cinematográficos ―se reformam e o crime não compensa. Aquela imensa alvorada na qual os

amantes e heróis de Hollywood caminham de mãos dadas, ao final da história, surgiu

primeiramente no horizonte do romantismo.‖ (STEINER, 2006: 77).

Para Nietzsche, o pensamento trágico nasce da música (MACHADO, 2006:223),

assim como a poesia lírica também surgiu da música. Embora com Winckelman, Goethe e

Schiller o espírito alemão tenha entrado na escola dos gregos, Nietzsche desconsidera isso

visto que não usaram a música e a tragédia como portas de entrada. O interesse do filósofo

alemão pela tragédia como objeto de estudo ocorreu com base em uma admiração inicial pela

ópera e por Wagner46

, que se considerava herdeiro de Ésquilo, e por ser a ópera uma forma de

desenvolvimento posterior da tragédia.

O filósofo alemão, ainda em sua obra O Nascimento da Tragédia (2007), fala de uma

harmonia entre opostos que servirá de base para a arte, desde seus primórdios nas tragédias

clássicas. Tal dualismo estético, segundo o filósofo alemão, pode ser percebido nos mais

diversos níveis da produção simbólica humana. Para ele, a arte se apoia, como já expresso, em

duas matrizes estéticas: o apolíneo e o dionisíaco. Enquanto este se liga à embriaguez, ao

noturno, ao profano, ao terrível, aquele está vinculado à bela aparência, às formas e figuras

serenas, ao Olimpo sagrado, à racionalidade, ao equilíbrio. ―O contínuo desenvolvimento da

arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a

46 A tragédia ática foi a primeira manifestação do que Richard Wagner considerou, no século XIX,

como a ―obra de arte total‖ (Gesamtkunstwerk), já que se tratava de uma síntese das mais variadas

expressões da arte. A partir do renascimento italiano surgiu a ópera, outra forma de arte total, que,

assim como a tragédia, é constituída pela união de várias artes, sendo o a palavra ópera o plural de

opus. Wagner posteriormente, desejando ir além da ópera, criou outra forma de arte total, o que

denomina de drama musical (GUERREIRO, 2004:83). No século XX, segundo Arnold Hauser (2000:

1020), é o cinema a expressão por excelência de uma arte total, conciliando em sua linguagem

variadas linguagens artísticas.

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procriação depende da dualidade os sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm

periódicas reconciliações‖ (NIETZSCHE, 2007:27). Nietzsche considerava o mundo helênico

como ―o terrível sob a máscara do belo‖ (MACHADO, 2006: 224). Ou seja, para Nietzsche, o

abismo e a profundidade do terrível só nos é suportável ao tomar a forma de bela aparência,

isto é, ao tomar a forma artística.

2.7 A relativização da tragédia e o trágico moderno

A tragédia, como drama, chega à modernidade eivada de conceitos e concepções os

mais diversos. Para Williams (2002:30), ―tudo o que se pode considerar certo é a continuidade

da ‗tragédia‘ enquanto palavra‖. Essa relativização da tragédia na qualidade de drama

converge para a, já apontada por Szondi, delicada conceituação do trágico moderno 47

como

fenômeno. Para Bornheim (1969 :70), o trágico, de maneira geral, é uma noção maleável, de

difícil definição, não sendo nada fácil ―penetrar o mistério de seu sentido último‖.

Segundo Vecchi, esse problema na conceituação do trágico inaugura-se ao dar-se

a transformação moderna do trágico como representação — a tragédia — para o trágico como

pensamento — o trágico moderno. Para ele, grande é ―o peso da tradição emaranhada que o

regerou‖, e problemático ―o pensamento que o conjuga juntamente com a dimensão complexa

da modernidade‖ (VECCHI, 2004: 113).

[...] nomear o trágico significa de imediato assumir o risco do labirinto, cair

em uma rede de incertezas, ser levado através de um dédalo a procurar até

47

Ao utilizarmos os termos ―modernidade‖ e ―trágico moderno‖, queremos abarcar não somente o

período em que se deu a emergência do trágico como pensamento, desvinculado da forma cênica (mais

precisamente no século XIX, com o idealismo alemão), mas também o trágico que pode ser

prospectado nas manifestações artísticas contemporâneas. Ao falarmos de tragédia na

contemporaneidade, não nos referimos a uma forma de adequação perfeita do trágico aos dias

correntes. Isso seria reducionista, em face da complexidade da noção de tragédia e de trágico, além do

que a própria noção de contemporaneidade é uma ideia problemática. O conceito de

contemporaneidade que aqui adotamos advoga a ideia de que não necessariamente uma perspectiva

deva se adequar plenamente a uma época para que seja considerada contemporânea. Ela se trata de

uma relação singular com o próprio tempo, na visão de Giorgio Agamben (2009: 59); adere a este e,

ao mesmo tempo, toma distâncias. Segundo Agamben, ―aqueles que coincidem muito plenamente com

a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,

exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela‖.

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mesmo linguisticamente figuras recompositivas de um conflito – o quiasmo,

o oximoro – que apazigüem temporariamente o perturbante contato do

extremo (VECCHI, 2004: 113).

A tragédia, no contexto ressaltado por Williams, não é entendida em seu sentido

clássico, segundo os cânones da tragédia grega. Williams sustenta a possibilidade de

relativização da tragédia, tentando dar conta do hiato entre a teoria trágica e a experiência

moderna de tragédia, entre ―a experiência de tragédia e a variada história de sua

interpretação‖ (WILLIAMS, 2002: 68), defendendo uma ausência de continuidade temporal

de um conceito absoluto de tragédia. Busca aproximar a teoria formal da tragédia a uma

vivência prática, do cotidiano. Para ele, essa relativização permite o estudo da tragédia na

atualidade. Dessa forma, ela pode também ser estudada segundo as dimensões e experiências

de nossa época, não estando restrita ao passado grego.

O desejo de uma nova forma é o reconhecimento de que o sentido de

tragédia, entre nós, é de um novo tipo, carecendo de uma expressão

radicalmente diferente. Isso nem precisa ser discutido, mas o fato é que, na

definição de tragédia, estivemos oprimidos sob o peso de uma tradição que,

muitas vezes, conseguiu nos persuadir que tem uma espécie de direito

autoral, tanto no que se refere à experiência trágica quanto à sua forma

(WILLIAMS, 2002:227).

Williams defende o argumento de que a tragédia deve ser considerada em suas

mais diversificadas acepções, inclusive naquelas mais prosaicas, do dia a dia. Defende

também o uso do termo ligado a uma linguagem coloquial, como quando se associa a palavra

a graves acidentes automobilísticos ou a hecatombes naturais, por exemplo. Para ele a

coexistência de sentidos variados do termo lhe parece natural, ―e não há nenhuma dificuldade

fundamental tanto em ver a relação entre eles quanto em distinguir um do outro‖, criticando a

postura de estudiosos em relação ao que ―vêem como usos imprecisos e vulgares da palavra

‗tragédia‘, na fala comum e nos jornais‖ (WILLIAMS, 2002: 30). Ele se refere, portanto, ao

fato de relacionarmos a palavra ―tragédia‖ a experiências corriqueiras e de como isso é visto,

nas mais das vezes, como uma espécie de heresia pelos estudiosos da tragédia.

Ao contrário de Lesky, Williams rechaça as ideias que defendem a presença da

continuidade de uma tradição trágica ao longo dos séculos, um fio condutor que, oriundo da

tragédia clássica, conduza tal tradição até os tempos modernos. Para ele o que existe é uma

pretensão de universalidade no uso do termo tragédia, como se este já carregasse a priori uma

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definição pronta, universal. Devido a isso, afirma que a única coisa que se pode afirmar na

contemporaneidade é a ―continuidade da tragédia enquanto palavra‖ (WILLIAMS, 2002:13).

Enfatiza ainda a existência não de uma só tragédia no transcorrer dos séculos, mas de variadas

tragédias, de modelos distintos entre si e adequados a cada contexto histórico em questão: a

tragédia clássica, a medieval, a renascentista, a neoclássica, a shakespeariana, a secular, etc.

Então, podemos falar de uma tragédia moderna, pensando segundo uma lógica não de uma

ruptura com a teoria trágica e, consequentemente, com os conceitos de tragédia estabelecidos

ao longo da história, mas de um diálogo entre essa bagagem teórico-formal anterior sobre

tragédia e a multiplicidade de experiências e ideias de tragédia na atualidade.

No entendimento de Bornheim, indo de encontro ao pensamento de Williams, a

diluição e banalização por que passaram os termos ―tragédia‖ e ―trágico‖ nos mais diversos

usos e contextos são prejudiciais a uma melhor compreensão de ambos, ocorrendo um

esvaziamento de seu conteúdo. Para além disso, a principal dificuldade que se oferece à

compreensão da tragédia advém ―da própria resistência que envolve o próprio fenômeno do

trágico‖, rebelde a todo tipo de definição.

Justifica-se: deparamos na tragédia com uma situação humana limite,

que habita regiões impossíveis de serem codificadas. As

interpretações permanecem aquém do trágico, e lutam com uma

realidade que não pode ser reduzida a conceitos. Respeitada essa

indigência, pode-se, entretanto, tentar uma aproximação do problema

(BORNHEIM, 1969: 71).

Ismail Xavier também levanta o problema da pertinência de uma tradição trágica

na modernidade, enfatizando a tragédia como um construto histórico-cultural que, portanto,

deve ser relativizado, para que não haja prejuízos ao seu entendimento (Cf. XAVIER, 2003,

42). No entanto, Xavier, corroborando a visão de Bornheim, critica o uso mais coloquial do

termo tragédia, para ele inadequado em vista das situações em que é utilizado, segundo ele,

mais próximas à tendência moderna de espetacularização da imagem e da dialética presentes

em tal exibicionismo, característicos do melodrama. Esses usos são frequentes nas

―representações que balizam o cotidiano e a política, nas narrações dos pecadilhos ou dos

desastres, esses quase sempre travestidos de tragédia, termo impróprio, porém muito em

voga‖ (XAVIER, 2003, p. 99).

A possibilidade de atualização do trágico nas mais variadas formas artísticas

é tributária da relativização da tragédia na modernidade, como apontou Williams, e de sua

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autonomia como algo independente da forma da tragédia como peça cênica, enquanto texto e

ação teatral. Há autores defensores da ideia de que o trágico é anterior ao próprio surgimento

da tragédia. Para Eduardo Sterzi (2004:107), o trágico ―como modalidade de percepção e

cognição do real, aquém e além da literatura, precede o nascimento da tragédia e subsiste ao

seu desaparecimento (ou debilitação) como forma artística historicamente circunscrita‖.

O trágico na modernidade pode ser visto seja como logos seja como construção

estética, como pensamento e sentimento. Como afirma Flávio Kothe, o trágico prescinde da

forma teatral, podendo estar presente em ―poemas, romances, óperas, etc‖, ou seja, é ―mais

amplo que o gênero teatral da tragédia e esta não é garantia da existência dele‖ (KOTHE,

2002: 151). Para Kothe, o trágico funda-se

[...] no pensamento trágico que, por sua vez, funda-se no

sentimento trágico. A elaboração literária permite que se elabore a

consciência trágica, esse não é apenas um ‗sentimento de

tragédia‘, um lamentar aos brados desgraças próprias e alheias,

mas é, principalmente, uma coragem de encarar as piores

contradições e as seqüelas terríveis e incuráveis dos erros

cometidos mesmo, ou principalmente daqueles que decorrem de

uma grande ansiedade de acertar (KOTHE, 2002: 171)

Para Kothe, o trágico é pensamento e sentimento a um só tempo, assim como a

estética também o é, bem como o é a poesia. O trágico se constitui como relato e ação, pela

perspectiva do enredo da tragédia, mas também como expressão poético-lírica, e está presente

não apenas nos dramas e peças trágicas, podendo se presentificar nas mais diversas formas

artísticas. Como assinala Kothe,

Aceitar o percurso do pensamento trágico significa ir até o fundo

das contradições e assumir até o fim as suas conseqüências em

atos e gestos. Afirmar que a tragédia é privativa da Grécia antiga

e da Inglaterra shakeaspereana é um mecanismo de defesa, para

não nos deixar reconhecer as tragédias que existem em nós e em

nosso tempo, tragicidade que não se mostra apenas em forma

teatral, mas também em forma de romance ou de poema, de

poema lírico, como em Paul Celan (KOTHE, 2002: 171).

O problema de fundo do trágico, a matéria de que é feito, é a condição humana, o

irrevogável sentimento de estar vivo. Aí reside a universalidade do trágico, pois, como

interroga o poeta Carlos Nejar (2002: 120): ―Existirá tema mais impositivo do que a condição

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humana?‖. A poesia oriunda do trágico é a que surge dos estilhaços e das ruínas. Para Juarroz

(1980: 25), ―o sentimento do vazio é o que há de mais humano, é o humano com as máscaras

caídas, o humano em sua nudez‖, pois ―em todo homem há uma fresta que se abre para o

abismo‖. A poesia é, assim, um fitar o abismo. Como acentua Paz, ―toda grande poesia é um

enfrentar a morte‖ (PAZ, 1991:196).

A tragédia como narrativa e o trágico oriundo dela são um modo de encarar a

finitude, transformando isso em beleza, mas uma beleza quase insustentável; uma beleza fruto

da ―máxima coragem de olhar o negativo‖ (KOTHE, 2002: 154). Como afirma Maffesoli

(2001:7), ―o trágico é impensável e, no entanto, temos que o pensar‖.

Essa beleza fruto da ―máxima coragem de olhar o negativo‖ é o que denomino

como poeticidade trágica. Consiste na evidenciação de um lírico (expressão de um ―estado de

alma‖, em sua dimensão ontológica) oriundo do trágico, tanto como visão de mundo,

princípio filosófico, quanto como ação trágica ou drama. O ontológico contido nesse ‗estado

de alma‘ é potencializado por meio dessa situação trágica, aprofundado mediante a

experiência trágica, visto que ela diz respeito às situações-limite; aos abismos exteriores e

íntimos sobre os quais a experiência humana se equilibra; à própria experiência de estar vivo;

à exposição ao aberto; ao risco. Referimo-nos ao trágico no sentido de dimensão existencial e

filosófica, mas também como drama representado; como situação trágica representada (ação,

drama) e como cosmovisão – pensamento e sentimento – visão de mundo evidenciada por

intermédio do lírico.

Podemos afirmar que a expressão de uma ação dramática e de uma cosmovisão

trágica pode estar presente em um poema, em seu lirismo, como, por exemplo, nos chamados

poetas dramáticos48

. Segundo Antonio Marcos Sanseverino49

também está presente nos

poemas de Drummond essa dramatização lírica, pois o sujeito lírico em seus poemas ―projeta-

se prismaticamente em personagens diferentes‖, ou seja, trata-se de um desdobramento do

próprio ‗eu‘ lírico, ―talvez um diálogo em um‖, e esse desdobramento faz com que ―a voz

subjetiva seja ficcionalizada‖ (SANSEVERINO, 2004:135). Essa relação entre os diversos

48

Entende Lopes (1995: 38) que o poeta dramático ―é aquele que não fala através de um ‗eu‘ lírico

apenas, mas por meio de vários, que não raro dialogam entre si, seja em poemas específicos, seja no

conjunto da obra‖, ou seja, o sujeito lírico do poema se projeta e desdobra em vários ‗eus‘, lançando

mão assim de estratégias dramáticas.

49 Em artigo denominado Dramatização lírica e a impossibilidade do diálogo em Drummond, incluído

na obra Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil, organizado por Ettore

Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi .

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‗eus‘ presentes nos poemas é uma relação tensionada, que desemboca em um paradoxo,

―impasse trágico‖ (Cf. SANSEVERNO, 2004:135), traduzido em um ―enigma insolúvel do

sujeito que não consegue definir-se em uma identidade‖ (SANSEVERINO, 2004:135).

Há dramatização lírica, uma fala dramática também presente nos poemas do poeta

argentino Juan Gelman, como no livro Com/posiciones (1984), que explicitam uma situação

dramática – no sentido de que se insinua uma narrativa, o‗eu‘ lírico se dirige a outros ‗eus‘,

como se houvesse um enredo trágico dentro dos poemas, uma narrativa de exílio e tragicidade

que perpassa todo o livro –, apresentando também uma cosmovisão embutida. Um exemplo

disso é o poema que segue:

A Porta

abre a porta/ amor meu/

levanta/abre a porta/

tenho a alma colada ao paladar

tremendo de terror/

o javali do monte me pisoteou/

o asno selvagem me perseguiu/

nesta meia-noite do exílio

até eu sou uma besta/

A ação trágica vivida e a tensão entre o eu e o outro estão presentes quando o

sujeito lírico narra de forma metafórica que é perseguido pelo ―javali do monte‖ e pelo ―asno

selvagem‖, bem como no diálogo com um interlocutor – como uma voz dirigida a um tu, sua

amada. Dá-se em seguida um ponto de viragem no poema, ao sujeito lírico explicitar que, em

meio à situação vivida, também se considera uma ―besta‖, do que se pode depreender que o

‗javali do monte‘ e o ‗asno selvagem‘ também podem ser interpretados como desdobramentos

de si, do sujeito lírico. Nesse momento ficam evidenciados um dilema interior e a

personalidade cindida do ―eu lírico‖, a mesma personalidade cindida do herói trágico,

caracterizando-se a um só tempo como divino e bestial, civilizador e pária. Sua ambiguidade é

patente no poema, assim como sua inadequação em relativa à sua condição exilar e ao mundo

que o cerca.

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Na perspectiva de Heidegger (2002: 320), em Rainer Maria Rilke 50

e Hölderlin,

como já vimos, ―o ser é, por excelência o próprio risco‖. O encontro com o risco é, assim,

paradoxalmente, também uma forma de proteção. Isso pode ser relacionado à própria natureza

paradoxal do trágico, como união de contrários, como coincidentia oppositorum. Como

ressalta Maffesoli, ―a vida é um perpétuo movimento onde se exprime a união de contrários‖

(MAFESSOLI, 2001:30):

O trágico, pondo em relação esses elementos diferentes, invoca as suas

conjunções, essa famosa coincidentia oppositorum, bem mais difícil de

pensar e de viver, mas bem mais concreta e enfatizada no humano

(MAFFESOLI, 2001:162).

A ideia de composição dos contrários está originalmente presente, como já vimos,

na abordagem nietzscheana do trágico, abordagem que já se encontrava em Heráclito: ―Tudo

se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia‖ (Cf. BORNHEIM:

1998:36), uma visão da natureza e da existência como um movimento de forças contrárias

guardando em si uma percepção estética.

Essa cosmovisão, essa ―harmonia de opostos‖ própria do trágico, pode estar

presente também sem necessariamente estar presente uma estratégia dramática51

, como no

poema que segue, também de Gelman:

O jogo que jogamos

Se me dessem para escolher, eu escolheria

Esta saúde de saber que estamos muito enfermos,

Esta dita de andar tão infelizes.

Se me dessem pra escolher, eu escolheria

Esta inocência de não ser um inocente

50

Em sua poesia, Rilke chama de aberto a ―conexão completa, aquela a que se vê entregue todo o ente

enquanto arriscado‖ (HEIDEGGER, 2002: 326)

51 Até o momento, estamos nos demorando em uma análise em torno do drama como ação trágica

presente na poesia como poema. Quando adentrarmos a análise de obras fílmicas propriamente ditas, o

movimento será inverso, pois analisaremos o poético – sob a forma do lírico – presente no drama

fílmico, como enredo e ação trágicas.

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Esta pureza em que ando por ser impuro.

Se me dessem pra escolher eu escolheria

Este amor com o qual odeio,

Esta esperança que come pães desesperados.

Acontece, senhores, que aqui

aposto minha morte.

Nesse poema a presença da coincidentia oppositorum é evidente; a exposição ao

risco, ao aberto está presente, mesmo não estando evidenciada uma ação dramática, o que não

nos impede de assinalar que esse poema expõe uma tragicidade, está impregnado de uma

cosmovisão e poeticidade trágicas. O ―eu‖ lírico faz sua escolha pela desproteção como forma

de ―proteção‖. O seguinte excerto do poema Patmós, de Hölderlin, também expõe essa

exposição ao aberto e coincidentia oppositorum, como, por exemplo, nas associações feitas

entre os termos perigo/salvação, abismo/leveza:

Próximo

E difícil de abarcar está Deus.

Mas onde existe o perigo também

A salvação é pródiga

Na obscuridade vivem as águias

E, sem medo, os filhos

Dos Alpes atravessam o abismo

Sobre pontes feitas de leveza.

A seguinte passagem de Maria Zambrano, em sua única peça de teatro

denominada La tumba de Antígona, também é uma reflexão sobre o aberto, o aberto fruto do

desterro e do exílio, mas também como uma forma de encontro: ―A mim me apanhou muitas

vezes a chuva no campo quando ia com meu pai e não tínhamos como nos abrigar. E era boa

essa chuva, era bom, ainda que duro ir ao descampado. Graças ao desterro conhecemos a

terra‖52

.

52

Extraído de matéria do El país: Té y Whisky com María Zambrano

(http://www.elpais.com/articulo/cultura/whisky/Maria/Zambrano/elpepicul/20100125elpepicul_

1/Tes).

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A temática do exílio está muito presente nas obras de abordagem trágica, como,

por exemplo, no desterro de Édipo em Colono ou no exílio de Medeia em Corinto. Conforme

João Francisco Sinnot Lopes (2002: 47), a obra de Sófocles, Édipo em Colono, evidencia a

condição exilar de Édipo, em posição frágil em relação à população que lhe acolhe,

transtornado pelo reconhecimento de que ―manifestar seu nome poderia denunciar a sua

‗origem horrível‘‖. O próprio Dioniso era considerado um deus estrangeiro, em exílio no

Olimpo, como já dito acerca do mito trágico-dionisíaco. Na trajetória do herói trágico, o

exílio, quando não se trata de um exílio de lugar, é um exílio de si, pois o herói imerge em um

dilema ético interior oriundo da hamartía cometida. Em relação às personagens trágicas,

nesse exílio também reside uma forma de conhecimento de si, ―em decorrência dessa

transcendência; desse olhar para dentro de si, pelo fato de estarem afastados do ambiente que

lhes caracterizava o ser‖ (LOPES, 2002:43)

Para Lopes, a poesia em sua forma escrita, como poema, é possuidora de um

tempo trágico, no sentido que sempre nos expõe à nossa finitude humana e a uma finitude

como forma acabada do poema e da tragédia, como forma e conteúdo. O tempo do poema é

análogo ao tempo da tragédia, o que nos permite falar, segundo ele, de um tempo trágico do

poema e de um tempo poético da tragédia (Cf. LOPES, 1995: 208). Esse tempo se caracteriza

como fechado, circular, de repetição, mítico; o tempo poético da tragédia sendo revelado por

meio de ―imagens-ritmo‖.

Da mesma forma que a tragédia, cada poema pode ser infinitamente repetido

em sua dinâmica de finitude e, após uma primeira leitura (ou, em alguns

casos, mais de uma) em que seu conteúdo já é parcialmente definido pelo

leitor, a releitura afigura-se como uma repetição da vivência de limite da

dinâmica futuro-passado-presente enquanto caracterização da realidade , do

Ser-para-a-morte. Assim, enquanto movimento de um desvelamento da

Verdade, a unidade da tragédia exemplifica o limite existencial do herói, a

unidade do poema exemplifica o limite existencial do ‗eu‘ lírico, e ambos os

limites são conferidos pela unidade do tempo que eternamente volta-se sobre

si mesmo (LOPES, 1995:207).

Essas ―imagens-ritmo‖ ou sucessão de imagens poéticas em torno da finitude

humana contidas em um enredo trágico – e que brotam do horizonte existencial do herói –, é o

que chamamos de poeticidade trágica. Pode estar presente na forma poema, como analisa

Lopes, mas também pode estar presente, ao nosso ver, no cinema. Ela está manifesta em obras

cinematográficas contemporâneas como Dançando no Escuro (2000) – sob a forma de um

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lirismo emergente do trágico ou como uma espécie de fusão dos gêneros poéticos trágico e

lírico, como gêneros que, ao mesmo tempo em que são distintos, também podem estar

contidos um no outro. No próximo capítulo discorreremos sobre obras cinematográficas

atualizadoras do trágico na contemporaneidade, sendo elas de dois tipos: obras que atualizam

o trágico sem evidenciar o lírico, sem acentuá-lo, e aquelas que atualizam o trágico de forma a

acentuar o lírico, esse último extravasando para a própria estética fílmica.

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Capítulo 3

O TRÁGICO E O POÉTICO NO CINEMA

A adaptação do trágico ao cinema se deu sob a forma de melodrama, perdendo

assim características próximas ao gênero. Para Xavier, no entanto, é possível se perceber no

cinema contemporâneo obras sinalizadoras da presença do trágico. Segundo Xavier – embora

não dê exemplos – existem cineastas contemporâneos cujas obras são um contraponto a esse

império do melodrama na arte cinematográfica, introduzindo dentro do seu próprio processo

―um comentário explícito e uma ironia ao esquema melodramático‖ (XAVER, 1999:85). São

cineastas atualizadores do trágico na contemporaneidade.

A importância desse retorno ao trágico, tanto nas produções fílmicas em geral

como na produção simbólica como um todo, é uma forma de reencontro não somente do

universo do trágico, como também é uma maneira de encontrar novas formas de manifestação

desse universo, agora adaptada ao contexto contemporâneo. Nesse sentido, a cineasta

brasileira Tata Amaral, cujos filmes Através da Janela (2000) e Um céu de Estrelas (1996)

atualizam elementos da tragédia, ressalta, em alusão ao caráter pedagógico da tragédia – como

pregava Aristóteles – a importância de uma propagação do trágico na atualidade como forma

de propagação de certos valores53

.

53 Para Tata Amaral (1999: 96), é importante esse retorno da discussão sobre o trágico, ―como

possibilidade de lidar com valores como não matar o pai. Há alguns valores, algumas regras que são

respeitadas. Quando propomos essa discussão com filmes, peças, livros, quando um grupo de pessoas

caminha nessa direção, refletindo sobre isso, somos levados ao caminho de identidade, de lidar com

valores essenciais e absolutos mesmo, de tentar identificá-los na nossa sociedade‖.

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Segundo a visão desta pesquisa, o trágico no cinema pode também ser percebido

pela perspectiva do lírico, isso sendo possibilitado, dentre outros elementos, a partir da

estética fílmica, sendo o cinema de poesia e seus índices uma das formas de acesso a esse

lírico oriundo do trágico presente em uma obra cinematográfica.

3.1 Cinema, pensamento e pathos

O cinema pode ser considerado em suas mais diversas variantes, como

entretenimento, como indústria, como arte. O cinema também foi visto, ao longo de sua

história, como forma de cognição. A ideia da imagem como instrumento cognitivo, no

entanto, não é privilégio da imagem em movimento, haja vista que tal noção é muito anterior

ao surgimento do cinema, ou seja, remonta pelo menos à Renascença (Cf. AUMONT, 2003:

290).

Alguns diretores e estudiosos viram o cinema como meio de pensamento. Entre os

diretores está, por exemplo, Jean Epstein, ―que fez do cinema a concepção mais ou menos

mítica de um filósofo singular‖ (AUMONT, 2003: 290). Já entre os teóricos, segundo

Aumont, está Gilles Deleuze, que descreve o cinema como uma máquina de pensar.

A conformação da linguagem cinematográfica foi marcada desde sua gênese por

um impulso em direção a uma conjugação do elemento mágico-afetivo e do elemento

racional. Embora participando de um mesmo impulso, porém, esses elementos, segundo

Morin (1999:210), naturalmente não se manifestaram ao mesmo tempo, visto que o cinema

em seus primórdios se origina das ―fórmulas mágicas‖ de Méliès, para posteriormente

engendrar a ―sintaxe da linguagem‖, por meio de Griffith e Eisenstein, culminando assim em

―um sistema coerente onde o aprofundamento e a utilização do potencial afetivo das imagens

conduz a um logos‖.

Para Julio Cabrera, a imagem cinematográfica como forma de pensamento

fornece ―dimensões compreensivas do mundo‖ (CABRERA, 2006: 15), a partir de uma

manifestação possível da união entre um pathos e um logos, entre cinema e pensamento,

assim como defendemos anteriormente essa fusão em relação ao pensamento e a poesia.

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Filósofos como Nietzsche, Kierkgaard e Heidegger são, na perspectiva de

Cabrera, filósofos cinematográficos ou páticos, assim como podemos arriscar que Lars von

Trier pode ser considerado um cineasta pático. César Guimarães, mais especificamente sobre

o filme Dançando no Escuro, defende a ideia de que a obra deve ser compreendida ―sobre a

perspectiva do pathos, esse sofrimento ou paixão entusiástica imanente a um modo de existir

no qual a renúncia ao imediato conduz a verdade às formas da finitude‖ (GUIMARÃES in

LOPES, 2005: 377).

Na visão de Cabrera (2006:16), os filósofos supracitados são ―páticos‖ pois

problematizaram a racionalidade puramente lógica para fazer emergir na reflexão sobre o

mundo e na compreensão da realidade o elemento afetivo, o pathos, uma vez que ―não se

limitaram a tematizar o componente afetivo, mas o incluíram na racionalidade como um

elemento essencial de acesso ao mundo‖, sendo defensores, assim, de uma razão logopática.

São filósofos ―cinematográficos‖ pois somente com a emergência de tais filósofos páticos

tornou-se possível a aproximação entre cinema e filosofia (Cf. CABRERA, 2006: 37).

Tal fusão no cinema entre o pathos e o logos se dá, segundo Cabrera (2006:20),

por meio dos conceitos-imagem presentes no filme, os quais funcionam como ―um tipo de

‗conceito visual‘ estruturalmente diferente dos conceitos tradicionais utilizados pela

filosofia escrita‖, conceitos esses que denomina conceitos-ideia. Os conceitos-imagem são

produtores de ―um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo,

do ser humano, da natureza etc e que tenha um valor cognitivo, persuasivo e argumentativo

através de seu componente emocional‖ (CABRERA, 2006: 22).

Tais conceitos-imagem podem emergir no cinema por meio de metáforas,

metáforas visuais, já que a linguagem cinematográfica é ―inevitavelmente metafórica,

inclusive quando parece ser totalmente ‗literal‘, como nos ‗filmes realistas‘‖ (CABRERA,

2006: 26). Como exemplo de um conceito-imagem, podemos citar o filme Os Pássaros (The

Birds, Alfred Hitchcock, 1963), que tem como conceito-imagem a ―fragilidade da condição

humana‖ (CABRERA, 2006: 26). O cinema consegue obter esse impacto emocional —

efeito de uma eficácia cognitiva dos conceitos-imagem – por meio também de

particularidades da técnica cinematográfica, como a pluriperspectiva de enunciados

narrativos – de início um filme que é narrado a partir da subjetividade da primeira pessoa, ou

seja, do ponto de vista de uma personagem, pode saltar para a terceira pessoa, por exemplo –

; a capacidade de manipulação de tempos e espaços e o potencial estético oriundo das

possibilidades do corte cinematográfico, da montagem.

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Para Cabrera (2006: 33), esses conceitos-imagem propiciam, dessa forma,

―soluções lógicas, epistêmicas e moralmente abertas e problemáticas‖, que não são passíveis

de conciliação última. O logopático, por meio dos conceitos-imagem, favoreceria, assim, ―a

ruptura, a problematização do particular, o terrível, o devastador‖ (2006: 34), expondo assim

a natureza desestabilizadora que o cinema pode ter.

3.2 Cinemas poéticos

Consoante Xavier, um modelo de cinema valorizador do poético na imagem e que se

denomina como cinema poético tem origem na vanguarda cinematográfica dos anos 1920,

seja ela a de tendência expressionista alemã (marcado por uma ostensiva ―pré-estilização do

material colocado em frente à câmera‖, como cenários elaborados etc) ou a vanguarda

francesa (do chamado cinema puro de Jean Epstein, que se diferencia da proposta poética

onírica surrealista), a qual celebra a crença em um poder revelatório da imagem per se, a qual,

em sua expressão do essencial, serve como ―alavanca fundamental para o cinema no seu

caminho rumo à superação da narrativa realista e rumo à supremacia de sua dimensão

poética‖ (XAVIER, 2005: 103). Tal emergência e apreensão do poético se dá num ―espaço de

clareza, no próprio seio da ‗objetividade‘ da reprodução fotográfica‖ (idem, 2005: 103).

Já o modelo onírico do cinema surrealista propõe, pela via da mescla entre sonho e

realidade, um cinema ―poético e aberto para o fantástico‖ (XAVIER, 2005: 112). Tal caminho

seria propulsor, para Luiz Buñuel, de um cinema como instrumento de poesia, amparado no

manifesto surrealista de Breton e em seus ideais de ―associação livre‖ e ―escrita automática‖,

herdeiros da psicanálise freudiana. Tal proposta surrealista influenciou, em parte, os filmes de

Maya Deren, precursora dos vídeos-dança atuais, e cujo filme mais conhecido trata-se de Uma

coreografia para a câmera (A choreography for de camera, 1945, Maya Deren). Nesse filme,

o princípio de um gesto de um bailarino tem de início uma paisagem como pano de fundo e

vem a completar-se em uma sala de visitas, o que denota a crítica de Deren a uma montagem

criadora de um espaço tempo-contínuo. A negação desse tipo de montagem (assim como de

uma narração lógico-causal) é um dos instrumentos para a expressão do poético em sua obra,

por meio de uma ―imagem arquétipo‖, de um ―cinema-ritual‖. Maya Deren propõe em seus

filmes um ―ataque vertical do instante poético‖ (XAVIER, 2005: 117). Em seu texto Poesia e

cinema: um simpósio, ela defende o argumento de que o ―que distingue a poesia é sua

construção (aquilo que eu entendo como ‗estrutura poética‘), e esta provém do fato de que

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uma investigação ‗vertical‘ de uma situação é efetuada, um exame das ramificações do

momento, voltado para a sua qualidade e profundidade‖, dando relevância não à ação que

ocorre, mas ao seu ―impacto e significado‖.

Todos esses modelos e escolas de cinema têm em comum a reivindicação de um

estatuto poético. Para Xavier, independentemente de períodos históricos e modelos, o ―cinema

poético representa sempre a introdução de fatores que perturbam a fruição de uma imagem

transparente‖ (XAVIER, 2005: 119), convidando o espectador a um olhar e experiência

estética diferenciados.

Tais fatores perturbadores de uma transparência na imagem e promotores de um

sentido poético podem ocorrer tanto nos símbolos como nas metáforas presentes em um filme,

por exemplo. Para a percepção desses elementos, consoante Frances Venoye e Anne Goliot-

Lété, existem procedimentos possíveis de detecção do simbólico, isso feito por meio do

estudo do roteiro e de tais metáforas da obra.

As metáforas podem estar presentes tanto de maneira pontual como por meio de

redes metafóricas, sendo essas fruto de uma associação de imagens que ―rompem com o

estrito continuum narrativo, que cria uma configuração metafórica (mais do que uma metáfora

‗pura‘)‖ (VENOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994: 65).

Os roteiros dos filmes funcionam, com certa frequência, de acordo com Venoye e

Goliot-Lété, como suporte de conteúdos simbólicos e por vezes míticos. Enfatiza, nesse

sentido, a existência de um funcionamento duplo – embora não necessariamente convergente

– de todo roteiro de filme. Existe o roteiro que estrutura a narrativa (o encadeamento da ação,

a relação lógica de eventos, a interação das personagens etc) e a progressão dramática

(relacionado com as oscilações entre ―tempos fortes e fracos‖ e com a ―progressão contínua

da tensão até o desenlace passando pelo ‗clímax‘‖ (VENOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994: 65).

Também existe, simultaneamente, outro roteiro, proponente de um ponto de vista – seja ele

poético, estético, filosófico ou político — sobre a história e suas personagens, bem como de

―imagens do mundo possível representado, imagens mais ou menos carregadas de conotações

afetivas, fantasísticas‖ (idem: 1994 63), sendo no segundo roteiro que se expressa a carga

simbólica do filme, sua mensagem.

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3.3 O ―Cinema de Poesia‖ de Pasolini

Pier Paolo Pasolini foi outro cineasta que se debruçou sobre a manifestação do

poético na imagem, tendo sido o primeiro a usar explicitamente a expressão cinema de poesia,

como o próprio cineasta diz em sua obra Empirismo Herege (1972). Nessa obra, o cineasta se

dedica, dentre ensaios sobre cinema e literatura, a sistematizar os traços indicativos de um

cinema de poesia, reunidos no capítulo intitulado Cinema de poesia, bem como no ensaio

Observações sobre o plano-sequência, fruto de palestras sobre cinema realizadas em meados

da década de 1960 e depois reunidas no livro.

Entre as obras de Pasolini estão, por exemplo, O Evangelho Segundo São Mateus

(1964) e Teorema (1968), além de adaptações de tragédias gregas, como Medeia (1970),

Édipo-rei (1967) e Notas para uma Oréstia Africana (1969), em que atualiza a obra de

Ésquilo para o cenário e cultura africanos. Pode-se perceber, então, na obra de Pasolini, além

de uma tendência para o poético, uma inclinação para o trágico. Conforme Maciel (2007: 2),

esse ―cinema trágico‖ de Pasolini aponta para ―a realização estética da ambigüidade das

certezas existenciais do homem moderno, tributário da razão‖.

Pasolini estendeu para as telas de cinema a poesia que já habitava em suas atividades

de poeta, percebendo que a poesia escrita em muito se assemelhava ao cinema, tanto no ritmo

– essencial nos versos escritos e na montagem cinematográfica, responsável pelo fraseamento

fílmico, por sua pulsação rítmica – quanto na feitura por imagens54

. Acerca da confluência

entre ritmo poético e montagem cinematográfica, Eisenstein é outro exemplo de cineasta que

se voltou para a os mecanismos de feitura da poesia escrita como forma de aumentar a

capacidade de expressão da montagem de cinema, realizando, para tanto, estudos acerca dos

haikais (Cf. SCUCATO, 2009: 34).

O interesse de Pasolini voltava-se para a criação de uma ―língua técnica de poesia‖

no cinema, por meio de artifícios da linguagem cinematográfica, no qual o ―verdadeiro

protagonista fosse o estilo‖, o modo de filmar. No entanto, ressalta Pasolini, que a existência

do poético no cinema não é privativo da linguagem do cinema de poesia, o que não exclui a

possibilidade de existência do poético nos filmes que adotem uma linguagem clássica, ou seja,

não adeptos de uma língua do cinema de poesia. A poesia desses filmes, porém, não está na

54

O poeta João Cabral de Melo Neto afirmava que gostaria de ter sido cineasta pelo fato de ambos,

cinema e poesia, trabalharem com imagens (Cf. SCUCATO, 2009:34).

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técnica da linguagem – característica intrínseca do cinema de poesia –, pois é antes de tudo

uma poesia interna, batizando tais filmes como cinema de prosa, filmes narrativos

(Cf.PASOLINI, 1982: 150). Pasolini acentua que o que denomina cinema de poesia e cinema

de prosa são ―tendências de configuração‖, não possuem fronteiras precisas, não são

instrumentos para classificações exatas. Salienta que geralmente eles aparecem alternados

dentro de um mesmo filme, não sendo, assim, excludentes um do outro.

Acerca do cinema de poesia, Pasolini elenca elementos que possam apontar em uma

obra a presença de uma expressão poética, como a ênfase na montagem fílmica, no uso de

elementos gramaticais de função poética e na presença sensível da câmera. Esse último se

caracteriza como um dos principais elementos estilísticos do cinema de poesia, já que o olho

da câmera se torna uma extensão do olhar e visão de mundo do cineasta. No cinema de poesia

a câmera deve ser atuante sobre o conteúdo fílmico, o que denota que o filme é ―lírico-

subjetivo, porque nele é o autor, com seu estilo, quem age, o que implica de sua parte uma

visão subjetiva do real‖ (PASOLINI, 1982:172). Se ela se mostra passiva, como algo que

apenas registra a ação, o filme é de tendência realista, o que implica ―na confiança da parte do

autor na objetividade do real‖, ou seja, tende assim para o cinema de prosa.

[...] o cinema de prosa é um cinema no qual o estilo tem um valor não

primário, não tão à vista, não clamoroso, enquanto o estilo no cinema de

poesia é o elemento central. Em poucas palavras, no cinema de prosa não se

percebe a câmera e não se sente a montagem, isto é, não se sente a língua, a

língua transparece no seu conteúdo, e o que importa é o que está sendo

narrado. No cinema de poesia, ao contrário, sente-se a câmera, sente-se a

montagem, e muito (PASOLINI, 1986:104).

A câmera pode se fazer presente de formas diversas na estética do filme, mediante o

emprego pródigo do zoom sobre rostos de personagens; os movimentos manuais e

perceptíveis da câmera, por vezes alentados, por vezes acelerados; as longas paragens sobre

uma mesma imagem, a presença ostensiva de travellings; a presença da interação direta do

ator com a câmera; os contraluzes contínuos e fingidamente acidentais, com os seus reflexos

na câmera; e os enquadramentos e cortes inusitados dos planos.

Outro elemento importante é a existência de uma personagem central em torno de

cujo ponto de vista a narrativa se desenvolve, além de se configurar como uma espécie de

porta-voz do autor do filme, cuja visão marca a narrativa tanto em seu aspecto temático

quanto formal. Os dramas pessoais da personagem em certos momentos funcionam como um

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canal de exposição de um pensamento do cineasta, já em outros a autonomia da personagem

em relação ao autor do filme se faz evidente. Para o cinema de poesia existem duas

subjetividades, o eu do autor e o eu da personagem. Algumas vezes tais subjetividades

coincidem (quando o autor do filme se utiliza da personagem para exprimir ideia sua), às

vezes não, ―quando o próprio autor-modelo parece manter uma distinção perceptível entre ele

e a personagem que criou‖ (SAVERNINI, 2004: 145). Os dramas particulares das

personagens, ressalta Savernini, são dramas que sempre reivindicam um alcance ontológico,

servem a uma universalização, o que coincide com o sentido de lírico abordado por Lopes,

que é a expressão de um ―estado de alma‖, mas também a expressão de um pensamento mais

amplo.

A subjetividade (oriunda de uma personagem central) presente no cinema de

poesia é também garantida pelo uso da câmera subjetiva indireta livre, uma adaptação dos

recursos literários caracterizados como discurso indireto livre e monólogo interior,

viabilizando assim a possibilidade de uma ―língua técnica da poesia no cinema‖ (PASOLINI

apud SAVERNINI, 2004: 46). No entanto, a representação do interior dos personagens pode

também ser ―alcançada por artifícios outros que não apenas o uso da câmera subjetiva‖

(SAVERNINI, 2004: 42), a expressividade poética de um filme não é refém do uso da

subjetiva indireta livre:

Os filmes em que se pode observar a tendência para um cinema

de poesia caracterizam-se pela existência de um personagem

central que domina a narrativa de tal forma que esta parece

representar a sua subjetividade (ainda que tecnicamente o filme

não se apresente como uma câmera subjetiva constante)

(SAVERNINI, 2004: 47).

Os filmes de Kieslowski, segundo Savernini, são exemplos de obras que se

utilizam de elementos indicadores de um cinema de poesia. A cosmovisão do autor está

sempre presente nos filmes, como, por exemplo, na série de filmes para a TV chamada

Decálogo, em que cada episódio tem um nível fabular em torno de poucas personagens, e um

outro nível, ―em que é acentuado o seu caráter de representação de um pensamento, uma

ideia‖ (SAVERNINI, 2004: 131).

O cinema de poesia representa ainda uma ―força em conflito com a narrativa

clássica convencionalizada‖ (SAVERNINI, 2004: 54). Utiliza-se da linguagem clássica para

assim subvertê-la, lançando mão da metalinguagem para evidenciar tal narrativa do cinema

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clássico. A gramática tradicional da língua cinematográfica é, assim, remodelada,

identificando-se conceitualmente ―com o inventário imagético cinematográfico do espectador,

na medida em que seria formada pelos procedimentos convencionalizados no cinema

clássico‖ (Cf. SAVERNINI: 120). Um exemplo disso é a própria montagem: se é próprio da

montagem do cinema clássico caracterizar-se como uma montagem invisível, no cinema de

poesia a montagem será posta em evidência, o dispositivo cinematográfico é, assim,

destacado, ao contrário do cinema clássico. No entanto, Savernini destaca que essa função

metalinguística deve estar a serviço do jogo poético, ela por si só não se basta, segundo o

cinema de poesia proposto por Pasolini. ―Os deslocamentos e desvios da norma procurados

pretendem a construção de um sentido além da denúncia do código‖ (SAVERNINI, 2004:

55). Pretendem a construção de um sentido poético.

Ainda consoante Savernini, a metalinguagem, quando a serviço do poético,

possibilita, por meio da montagem, a ocorrência de zonas indeterminadas ou pontos de

indeterminação, que são as fissuras dos textos, suas aberturas, os vazios que se abrem para a

interpretação do espectador. ―No cinema de poesia, a abertura é enfatizada, chamando o

espectador a se comprometer na interpretação‘‘ (SAVERNINI, 2004: 57). Savernini, quando

se refere a tais aberturas, faz alusão ao que denomina filme subterrâneo, que diz respeito às

mensagens implícitas, imersas, construídas pelos filmes, que devem ser prospectadas pela

imaginação de quem os assiste e são indicadoras de um cinema de poesia. Tais mensagens

são construídas com base em elementos formais, da própria feitura dos filmes, como o

tratamento estético, a condução do tempo narrativo, a duração das cenas, a diferença no

enquadramento da câmera, etc.

A sistematização alcançada por Pasolini na direção do que pode ser caracterizado

como cinema de poesia se incorporou – como ele próprio previu – à gramática

cinematográfica, o que tornou possível abranger sob a mesma chancela cineastas os mais

diversos (SAVERNINI, 2004: 57), e o que nos permite, no caso deste trabalho, buscar

identificar índices de um cinema de poesia e de uma poeticidade trágica também em Lars

von Trier, mais especificamente em Dançando no Escuro.

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3.4 O cinema, o happy end e o trágico

O cinema, como sabemos, é uma arte engendrada no seio da cultura de massas.

Entre as temáticas recorrentes da cultura de massas – lembra Morin –, encontram-se o amor e

a felicidade. Na cultura de massas o amor resvala da abordagem trágica, da esfera do pathos,

para, triunfante, superar qualquer obstáculo e assim concretizar seu ideal final de felicidade,

como, exemplificando isso, ironiza o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade no

poema seguinte. Nesse poema, Drummond associa o cinema e seus mitos contemporâneos –

como o do happy end – à falência da tragicidade que vigorava em outras épocas, em outras

narrativas.

Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta Depois (tempos mais amenos)

desde tempos imemoriais. Fui cortesão de Versailles,

Eu era grego, você troiana, espirituoso e devasso.

troiana, mas não Helena. Você cismou de ser freira

Saí do cavalo de pau Pulei muro de convento

para matar meu irmão. Mas complicações políticas

Matei, brigamos, morremos. Nos levaram à guilhotina.

Virei soldado romano, Hoje sou moço moderno

perseguidor de cristãos. remo, pulo, danço, boxo

Na porta da catatumba tenho dinheiro no banco.

encontrei-te novamente. Você é uma loura notável,

Mas quando vi você nua boxa, dança, pula, rema.

caída na areia do circo Seu pai é que não faz gosto.

e o leão que vinha vindo, Mas depois de mil peripécias,

dei um pulo desesperado eu, herói da Paramount,

e o leão comeu nós dois. Te abraço, beijo e casamos.

(...)

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Consoante Morin (1997:138), o ideal de felicidade na publicidade é o conforto. No

cinema, principalmente no hollywoodiano, esse ideal é o amor, mas o amor sob a forma de

happy end, que, segundo Morin, é uma expressão característica da estandardização e padronização

oriunda da lógica de produção industrial de bens simbólicos.

Em se tratando da mitologia moderna da felicidade, a qual considera o leitmotiv

da cultura de massas, Morin (1997: 131) defende a ideia de que ela recalca a morte e o

sofrimento do denominado por ele herói simpático, pois ela ―distribui a morte e o sacrifício

entre os vilões e bandidos, nunca entre os heróis. Ela camufla a tragédia pessoal, o delírio da

existência‖. É como se existisse uma tirania do que Morin chama de happy end, o qual

suprime, segundo ele, o absurdo da vida, a complexidade das empresas humanas e a

inexorabilidade da morte, reduzindo tudo a uma ―eternidade de celofane‖, à busca por uma

felicidade perpetuada nas telas de cinema, por exemplo.

A primazia do happy end e sua introdução no cinema, a partir da década de 1930,

limitou, de acordo com ele, ―o universo da tragédia ao interior do imaginário

contemporâneo‘‘ (MORIN, 1997: 57). Para ele, a introdução em massa do happy end

[...] rompe com uma tradição milenar, proveniente da tragédia grega, que

prossegue com o teatro espanhol do Século de Ouro, o drama elizabetano, a

tragédia clássica francesa, o romance de Balzac, Stendhal, Zola, Daudet, o

melodrama, o romance naturalista e o romance popular de Eugène Sue a

Ponson du Terrail, enfim, o cinema melodramático da época muda

(MORIN, 1997, p. 96).

Morin afirma que a cultura de massa surgiu da demanda por maior intercâmbio do

real com o imaginário refletido tanto nas telas de cinema como nos folhetins de jornal, tendo o

happy end como princípio norteador. Passou a existir, desde então, um ideal de felicidade que

vai de encontro com a tradição trágica até então presente na produção simbólica humana. O

melodrama como corrente popular é, para ele, herdeiro da ―mais antiga e universal tradição do

imaginário‖: a tragédia grega e o drama elizabetano.

Embora Morin veja continuidades e semelhanças entre a tragédia e o melodrama,

sendo ambos solapados pelo advento do happy end, Ismail Xavier aponta para outra

abordagem, ao sublinhar que há diferenciações de fundo entre o trágico e o melodramático.

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Xavier defende a ideia de que, se o trágico foi escamoteado da produção

cinematográfica, o melodrama é uma constante, sendo o cinema tributário de uma matriz

melodramática, como algo inerente a sua própria gênese como espetáculo. Xavier aponta que

ao invés do trágico, no cinema o melodrama sempre esteve presente, ―herança que o cinema

recebeu do próprio teatro do século XIX‖; e que, embora o ―esquema dominante‖ seja o

melodrama, há cineastas que ―estão tentando trabalhar contra a corrente‖, que ―estão

querendo estabelecer um diálogo com certas tradições que o cinema mais corrente rechaça‖

(XAVIER, 1998:42), como com o trágico.

Como contraponto ao primado do happy end – e do melodrama – Juan Pablo Serra

aponta, em seu artigo denominado Clint Eastwood, un caballero trágico, que o próprio

cinema dos Estados Unidos pós-11 de Setembro produziu uma safra considerável de filmes de

teor trágico, que realizaram uma atualização possível do trágico no cinema como Sobre

Meninos e Lobos (Mystic River, Clint Eastwood, 2003), Menina de Ouro (Million Dollar

Baby, Clint Eastwood, 2004), Casa de Areia e Névoa (Vadim Perelman, 2003) e Match Point

(2005, Woody Allen).

Podemos adicionar à lista de filmes de Clint Eastwood com um teor trágico a obra

Gran Torino (Gran Torino, 2008), de safra mais recente, que trata da trajetória de um

ranzinza ex-combatente da guerra da Coreia, Walter Kowalski (Clint Eastwood) que acaba de

ficar viúvo e mora em um decadente bairro de imigrantes. Ele não esquece os inimigos de

guerra e nutre preconceito indiscriminado por estrangeiros asiáticos, tratando mal, assim, seus

mais novos vizinhos chineses. Ao longo do filme, a personagem de Clint Eastwood fica

amigo de Thao (Bee Vang), um dos filhos adolescentes da família chinesa, após muito esforço

dos vizinhos para tentar se aproximar de Walt. Descobre que o menino vem sendo perseguido

por uma gangue de chineses e lhes passa um recado em forma de ameaça para que não mais

mexam com Thao. A gangue, em represália, violenta e estupra a irmã de Thao, fazendo com

que Walt mergulhe em culpa e remorso. No final, o velho se sacrifica como forma de ajudar o

menino, o que remonta ao autossacrifício do herói trágico, sendo também uma forma de

redimir-se pelas memórias amargas e preconceitos nutridos ao longo de sua vida. Ele acaba se

entregando à gangue, sabendo que o fim disso será sua morte, isto é, em suas memórias, Walt

constantemente fugia da imagem dos ―inimigos asiáticos‖ e, no final do filme, ironicamente,

vai ao seu encontro para por eles ser morto, por vontade própria.

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Gran Torino talvez seja o ponto de maior clareza e concisão do percurso que

tem levado Eastwood a compreender e transmitir, por meios que nenhum

outro cineasta hoje detém tão precisamente, a dialética trágica, seja a do

forte que depende do fraco para que sua força possa resplandecer em

plenitude, seja a da relação entre o homem e o destino, a natureza, ou, quem

sabe, Deus. Gran Torino é a culminância desse trajeto: Eastwood, na pele de

Walt (ou Walt na pele de Eastwood?), se oferece em sacrifício a fim de levar

o filme (o que neste caso equivale a dizer: o mundo) à sua manifestação mais

adequada e depurada. Walt só pode oferecer esse serviço na morte.55

Woody Allen, além de Clint Eastwood, se apresenta como um autor que tem

realizado obras atualizadoras do trágico, como no já supracitado Match Point, e também em

obras como O Sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream, 2007) e no mais antigo Crimes e

Pecados (Crimes and Misdemeanors56

, 1989). A trama de Match Point é dividida por

capítulos, uma fórmula que revisita a linguagem literária e a aproxima de um sentido de

tragédia narrada, de fábula trágica. O enredo de Match Point — primeiro filme de Woody

Allen cujo cenário não é mais composto pelas ruas, esquinas, cafés e apartamentos nova-

iorquinos — transcorre na Inglaterra e trata da história de um ex-jogador e professor de tênis

irlandês recém-chegado ao país que deseja ascender na vida e enxerga no casamento com

Chlöe (Emily Mortimer), a filha de um alto executivo, seu golpe de sorte, o ponto de inflexão

que deseja em sua vida. Cris é alguém culto, interessado em artes e amante de ópera, porém,

uma pitada de comicidade e ironia se insinua na trama quando a personagem para de ler um

livro de Dostoiévski, Crime e Castigo (1866), para socorrer-se em um livro de compilações de

várias obras de Dostoiévski, como que a denunciar os limites de suas habilidades, como que a

dizer que talvez ele não seja tudo o que aparenta ser.

De maneira geral, Match Point não enfoca o trágico pela perspectiva do lírico, no

sentido que não foca na expressão da visão de mundo e ―estado de alma‖ do herói. O herói

trágico em Match Point, o protagonista Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers), é alguém de

55

Gran Torino, Luiz Carlos Oliveira Jr. Extraído de

http://www.contracampo.com.br/92/critgrantorino.htm (acesso em 23 de agosto de 2010).

56 Nesse filme, uma personagem (Judah) faz a proposta a um amigo diretor de cinema (Clifford,

interpretado por Woody Allen) para que adapte uma história de enredo trágico de sua autoria para o

cinema. O diretor de cinema tenta amenizar o caráter trágico do enredo, ao que o outro retruca: ―Mas

isso é ficção. Você está vendo muitos filmes. Eu estou falando sobre realidade. Se você quer um final

feliz, vá ver um filme de Hollywood‖.

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temperamento quase insondável, imperscrutável, e que não fornece pistas para o espectador

acerca dos contornos de sua personalidade, muito menos de seu ―estado de alma‖. Porém, em

um momento específico da obra as aspirações e mundivisão do protagonista se deixam

entrever. Esse momento se trata da primeira cena do filme, feita de maneira distinta das

demais cenas de Match Point, já que nessa cena específica a câmera se faz presente, o

dispositivo cinematográfico é evidenciado, diferentemente das demais cenas do filme, que

transcorre como se a câmera não estivesse ali, seguindo assim a linguagem do cinema

clássico. Tal recurso cinematográfico nela utilizado vai na contramão das linguagem do

cinema clássico narrativo, do qual a estética de Woody Allen mais se aproxima. A cena é um

longo plano de câmera parada exibindo uma rede de tênis.

Nesse mesmo quadro, em câmera lenta, uma bola passa de um lado para o outro e,

ainda no mesmo quadro, uma voz over – recurso que imprime subjetividade à cena –, a do

protagonista, exprime seu modo de ver a vida e o papel da sorte (acaso) na vida de cada um, o

que remete à ação da Tyché (Fortuna)57

na trajetória do herói da tragédia grega. A bola

representa de forma metafórica o acaso na trajetória do herói. O uso da voz over como recurso

cinematográfico faz com que o que é dito ressoe quase como um pressuposto filosófico para a

narrativa que se segue.

O homem que disse ―prefiro ter sorte a ser bom‖ entendeu o significado da

vida. As pessoas temem ver como grande parte da vida depende da sorte. É

assustador pensar que boa parte dela foge do nosso controle. Há momentos

em que a bola bate no topo da rede [câmera congela a imagem da bolinha

em cima da rede de tênis] e por um segundo ela pode ir para o outro lado

ou voltar. Com sorte, ela cai do outro lado e você ganha. Ou talvez não caia

e você perca. (CAPÍTULO 01)

57

No contexto da antiguidade grega, acreditava-se que a deusa Tyché – termo que pode ser traduzido

por acaso ou sorte – exercia grande influência sobre os destinos dos homens. Os romanos a

identificavam com a deusa Fortuna, que se caracteriza como ―o signo e o símbolo da adversidade e da

felicidade imprevistas, da relação do homem com a exterioridade e com o tempo‖ (CHAUÍ, 2006:20).

Ela é representada emblematicamente como uma ―jovem nua, com o zodíaco como cinta, um manto

branco esvoaçante ao vento, seus pés sobre um globo, numa das mãos a cornucópia e noutra a roda

que faz girar sem cessar‖ (CHAUÍ,2006:20).

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A bola de tênis: metáfora para o acaso.

Cris, por obra de um acaso – ao se tornar professor de um jovem rico também

amante de óperas – fica amigo íntimo de uma família abastada e casa com Chlöe, irmã de seu

aluno de tênis. Cris logo se interessa por Nola (Scarlett Johansson), noiva de seu amigo, uma

aspirante a atriz que se sente deslocada e malquista pela família, por não possuir um futuro

promissor no campo profissional. Nola engravida de Cris e é morta por ele, que mata também

uma velhinha moradora do mesmo prédio, numa clara alusão à personagem Raskólnikov58

, de

Dostoiésvki, que também mata uma senhora e fica transtornado posteriormente pelo ato

cometido.

Após matar Nola, a angústia do herói é ressaltada. É quando, em um dilema de

consciência e em estado devaneante – qual um Hamlet que, atormentado pela sua morte, vê o

espectro59

do pai morto –, vê Nola e a velhinha a lhe questionarem o porquê de haver

58 O nome da personagem Raskólnikov é oriundo do vocábulo russo raskol, que significa ―cisma‖,

―cisão‖, ―fragmentação‖ (Cf. BRAZIER, 2010:8), representando a personalidade cindida do herói e

possuindo um significado que aponta para a sua trajetória trágica, como no caso de Édipo. Segundo

Pucheu, ―Édipo traça seu destino trágico na materialidade mesma de seu nome‖ (idem, 2010: 124). Na

própria linhagem genealógica de Édipo, todos os nomes evocam uma dificuldade para andar

corretamente, apontando para os tropeços de suas trajetórias trágicas: ―Labdaco, o coxo, Laio, o torto,

o dissimétrico, o canhestro, e Édipo, o que tem o pé inchado‖ (idem, 2010: 119).

59 Allen satiriza em obra posterior a Match Point, a comédia Scoop – O Grande Furo, elementos

presentes em algumas tragédias, como a aparição de espectros mortos a revelarem segredos de suas

mortes, a exemplo de Hamlet, cujo pai aparece para lhe revelar que foi morto por Laertes. No filme

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cometido seu erro, tê-las assassinado. Nesse momento, a personagem afirma, revisitando uma

fala de Édipo, que era melhor nunca ter nascido, evidenciando assim o profundo dilema ético

do herói e a tragicidade de sua trajetória. Como afirma Steiner (2006:40), ―a tragédia absoluta

existe apenas onde a verdade essencial substantiva é atribuída à declaração de Sófocles que ‗é

melhor nunca ter nascido‘ ou onde o resumo do discernimento dos destinos humanos é

articulado no cinco vezes ‗nunca‘ de Lear‖. Na polaridade entre o homem e o mundo em que

ele se insere é onde reside o trágico; ―no momento em que estes dois polos, de um modo

imediato ou mediato entram em conflito, temos a ação trágica‖ (BORNHEIM, 1969:74).

A trilha sonora nos filmes de Woody Allen (seja um solo de jazz ou de música

clássica) sempre possui lugar de destaque, já que o próprio cineasta, amante da música,

cultiva o hábito de tocar clarinete periodicamente no Café Carlyle, um café tradicional de

Nova York. A de Match Point faz parte da própria diegese fílmica – em várias cenas aparece

o próprio Cris ouvindo ou assistindo as óperas que fazem parte da trilha –, funciona quase

como uma personagem à parte, tamanha a marca deixada e o casamento com a narrativa e

universo ficcional da obra. A respeito da concepção de diegese fílmica, Aumont e Marie em

seu Dicionário Teórico e Crítico de Cinema assinalam:

A instância diegética é o significado da narrativa. A diegese é a instância

representada do filme, ou seja, o conjunto da denotação fílmica: a própria

narrativa, mas também o tempo e o espaço ficcionais implicados na e por

meio da narrativa, e com isso as personagens, a paisagem, os acontecimentos

e outros elementos narrativos, porquanto sejam considerados em seu estado

denotado. (..) O próprio do cinema é, portanto, que o espectador construa,

um pseudo-mundo do qual ele participa e com o qual se identifica.

As árias60

de óperas diversas que entremeiam a narrativa possuem letras que se

casam propositalmente com o estado de alma da personagem protagonista, remetendo aos

coros trágicos e seus ditirambos, e emprestando ao filme uma dose de lirismo. Se o

protagonista não deixa transparecer seu estado de alma diante do trágico desenrolar dos fatos

diante de si, a música expressa por ele. E também antecipa, ironicamente, o que está por vir.

específico, é um jornalista famoso quem aparece para uma inexperiente estudante de jornalismo, no

intuito de divulgar seu derradeiro e maior furo de reportagem: a revelação sobre o segredo do mistério

de sua morte.

60 Uma delas, consta nos créditos, sendo de autoria do brasileiro Carlos Gomes; todas são interpretadas

por Caruso.

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Porém, tais obras exemplificadas acima embora sejam exemplos de obras

atualizadoras do trágico, não expõem o trágico com o lírico acentuado, com o poético

evidenciado. Os elementos do trágico estão ali (a hybris, a hamartía, a fatalidade do erro, a

condição problemática do herói), mas não são exibidos como expressão de um ‗estado de

alma‘ de uma personagem que reverbera numa cosmovisão própria e na própria estética

fílmica, como estamos definindo aqui o lírico; ou também como um ‗estado de alma‘ do autor

da trama fílmica que reverbera numa estética diferenciada, distinta do cinema clássico,

coincidindo aqui com a proposta do Cinema de Poesia de Pasolini, como vimos.

Uma exceção é o filme Casa de Areia e Névoa, de Vadim Perelman. O enredo –

baseado em um livro de Andre Dubbus III – trata da história de Kathy Nicollo (Jennifer

Connely) e Massoud Amir Behrani. (Ben Kingsley). Kathy é uma moça solitária cuja casa

herdada do pai vai parar sob a posse do município em razão de uma cobrança de impostos

indevida, e enquanto ela busca ajuda jurídica para recorrer da decisão, a casa é vendida para

Behrani e sua família. Behrani é um iraniano, ex-general expulso do Irã pelo regime dos

aiatolás, e que se encontra exilado na cidade de São Francisco, nos EUA , em busca de se

restabelecer em solo americano e recuperar algo do prestígio que tinham em seu país natal.

Trabalha ―como um árabe‖, em sua expressão, para manter o nível econômico da família, e

sonha com a prosperidade, em usufruir algo do american way of life. Berahni tenta, sob todas

as maneiras, manter um bom padrão de vida para a família, por mais que ele seja irreal, e que

Berahni omita à família sobre o seu emprego: sempre troca de roupa antes de voltar pra casa;

retira o uniforme de operário e veste um terno bem cortado. Trabalha como operário em uma

pedreira, mas moram em um bom apartamento. Berahni resolve comprar a casa pelo preço de

bagatela que o município está vendendo, com o intuito de vendê-la a um preço muito mais

elevado e embolsarem o dinheiro.

A trajetória das personagens é marcada pela inevitabilidade trágica. As tentativas

pelas quais as personagens no filme tentam superar a ausência da pertença – o mundo das

aparências – são sempre frustradas, e elas se veem enredadas em um caminho sem volta. O

xerife que foi informar Kathy de que sua casa estava agora à disposição do município se

apaixona por ela e resolve ajudá-la a reaver a casa. Os Berahnis, mesmo sabendo da situação

de Kathy, optam por não entregar a casa. Kathy então desiste das vias judiciais e começa a

pressionar os Berahnis. O xerife, agindo por conta própria, vai até a casa, e, acuando-os,

acaba por sequestrá-los, afirmando que Berahni e seu filho devem acompanhá-lo até o

cartório para que assinem o documento em que concordam renunciar à casa. Os três vão até o

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cartório e quando lá chegam, o filho de Berahni consegue tomar a arma do xerife e a aponta

para ele. Os policiais chegam ao local e atiram no menino, que morre.

O filme é pleno de elementos simbólicos, como névoa, areia, árvores, o mar,

elementos da natureza que refletem os desejos de adequação e estados de alma dos

personagens; são, assim, criadores de uma atmosfera fílmica. Além disso, eles traduzem antes

―algo mais forte e inevitável – o caráter trágico da narrativa – que o desejo de ascensão dos

personagens‖ (MOELLMAN, 2007: 30). As primeiras cenas do filme exibem pés caminhando

na areia, imagens recorrentes ao longo filme, como uma recordação calorosa de um lugar

longínquo – o Irã que ficou distante. Em outro momento, Kathy vê seu rosto refletido na areia

molhada da praia, em São Francisco. A areia simboliza, assim, abundância, bem como

matriz, útero, lar.

Fácil de ser penetrada e plástica, a areia abraça as formas que a ela se

moldam; sob esse aspecto é um símbolo de matriz, de útero. O prazer que se

experimenta ao andar na areia, deitar sobre ela, afundar-se em sua massa

fofa –manifesto nas praias – relaciona-se inconscientemente ao regressus ad

eterum dos psicanalistas. É, efetivamente, como uma busca de repouso, de

segurança, de regeneração (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991: 79).

A imagem da casa no filme é o ambiente de desenvolvimento da trama e das

personagens, mas não se constitui apenas como um cenário físico, já que suas camadas de

significação vão além disso. A representação material da casa se caracteriza ―como de menos

importância se pensarmos no que significa principalmente no filme de Perelman: a casa é

imagem de pertencimento‖. E essa imagem de pertença é o que move as personagens e suas

ações em torno do lugar. Kathy quer a casa de volta por tudo o que ela representa da sua

infância e família, enquanto os Berahnis desejam a casa como símbolo de sua pertença ao

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modo de vida estadunidense, bem como uma provocação, uma maneira de revidar as

humilhações sofridas por serem estrangeiros. Outsiders, a casa é a única forma de se sentirem

pertencentes a algo: Kathy, às lembranças de sua família; e os Behrani; a uma pátria. A casa

representa também, de maneira mais concreta, a pertença à sociedade na qual se encontram,

assim como, por exemplo, na tragédia grega, o herói sempre almeja, apesar de sua

inadequação, o sentimento de pertença à polis. No entanto, a busca da casa como refúgio,

salvação, é o estopim para a série de acontecimentos trágicos que envolverão suas vidas. E os

personagens se sentirão, cada vez mais, estrangeiros também em relação à casa.

Um dos momentos do filme que sinalizam para um sentido metafórico e trágico

presente na trama se encontra na cena em que Kathy dorme dentro de seu carro, na frente da

casa e, ao acordar de manhã, se dá conta de que estão fazendo uma reforma no lugar, sob as

ordens de Berahni. Ela então entra na casa para reclamar com os operários e tentar impedir a

reforma, quando então, por acidente, fere o pé em um prego. Ela é socorrida pela mulher de

Berahni, que ao ver seu pé muito ensanguentado, afirma que é melhor envolvê-lo em algo,

pois não é bom que a sala da casa fique manchada de sangue. O sangue funciona como uma

espécie de predição trágica do que está por vir, sendo a predição trágica um dos elementos da

tragédia (Cf. ZONDI, 2004:95).

O iraniano chama Kathy de pássaro ferido. A metáfora do pássaro atravessa toda

a história, do pássaro ferido, do voo que não ocorreu. Os sonhos da família de reaver a

qualquer custo algo da pujança econômica de outrora, quando viviam no Irã; o da moça de se

restabelecer e de mostrar para a sua família que sua vida está bem, ainda que isso não

corresponda à realidade; o do xerife, que, abusando de seu poder como policial e por amor a

Kathy, acaba indo longe demais.

A cena em que Berahni sai correndo, murmurando pelas ruas em direção ao

hospital, com os braços estendidos e a roupa ensanguentada do sangue do filho, e a luz

oblíqua de um dourado de fim de tarde ilumina seu rosto, é um exemplo de uma estética no

filme exploradora do poético oriundo do trágico. Em sua busca sem tréguas por prosperidade

nos Estados Unidos, encontra a morte do filho.

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Ao se dar conta do erro cometido, do desenrolar que os fatos tomaram, numa

prece aos céus, diz que fará seu ―nazr‖, que dará tudo o que tem, que dará tudo para o

―pássaro ferido‖, a casa do pai dela, o dinheiro que tem, para que seu filho tenha outro

destino. Em seguida, ajoelha-se, transtornado e, quase em delírio, como numa prece, diz:

Comprarei dez quilos do melhor alpiste, acharei uma mesquita, e alimentarei todos os

pássaros do lado de fora. E deixarei os pássaros me cobrirem e me bicarem os olhos. Qual

um Édipo que diante da culpa da hamartía cometida e, como punição, deseja furar os próprios

olhos, para não mais ver o mundo na forma em que o deixou. Em seguida, ao ver o filho

morto, lhe dá um beijo nos lábios e na testa.

Depois se dirige para casa, onde sua mulher dorme. Ela acorda e diz: Sonhei com

um pássaro preso em nossa casa vazia. Ele tentava achar uma saída, batendo as asas,

chocando-se nas paredes. Eu pude sentir o ar de suas asas no meu rosto. Eu abri a janela e

ele voou para fora. Ele oferece em seguida para ela um chá; ela olha para seu marido

longamente, como que pressentindo o ocorrido e o que está prestes a ocorrer, e vão juntos

contemplar o pôr do sol, sentados na varanda. O sol se pondo funciona como uma imagem

metafórica do fim da vida.

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O pôr-do-sol como metáfora para o ocaso da vida

Ela diz estar cansada, ele afirma que logo voltarão para as flores de Isfaham, para

as mesquitas de Qom e para os hotéis finos da velha Teerã. E diz ainda que levou suas vidas

para bem longe de seu curso, que agora está na hora de voltarem, de voltarem para casa, para

seu destino. Depois retornam para se deitarem em suas camas e morrerem. Ele morre fardado

(o que denota a dignidade da queda do herói trágico na sua autorrenúncia), arrependido de

sua ganância em relação à casa em que moram e se culpa pela morte do filho, consequência

disso, de sua hamartía; então se pune cometendo suicídio, asfixiado. Uma revoada de

pássaros é exibida e em seguida uma pena solitária aparece boiando na fonte em frente à casa.

No final do filme, Kathy está em uma praia, com muitos pássaros ao redor de si, e vê um

pássaro morto no mar, o que demonstra a recorrência da figura do pássaro (que também

aparece nas primeiras cenas do filme, nas imagens da praia) como símbolo de liberdade, e, ao

mesmo tempo, de fragilidade.

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Casa de Areia e Névoa embora seja um filme com uma linguagem do cinema

clássico – não sendo um representante do Cinema de Poesia –, não o impede de apresentar

elementos que remetem a um sentido poético (como também defende Pasolini) e a uma

abordagem lírica do trágico. O filme não obedece a uma língua técnica do cinema de poesia,

não adota artifícios próprios desse cinema, já que é eminentemente narrativo (cinema de

prosa), porém, é possuidor de uma poesia interna, de que falava anteriormente Pasolini.

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Capítulo 4

A COSMOVISÃO TRÁGICA E O LÍRICO EM

DANÇANDO NO ESCURO

A manifestação do fenômeno trágico no cinema contemporâneo encontra fortes

indícios de sua presença na obra do cineasta dinamarquês Lars von Trier, ao atualizar, na

imagem cinematográfica, aspectos dos mitos trágicos. O material mítico resgatado por Lars

von Trier, por meio de sua tradução mimética para o cinema, com base em ―peripécias e

reconhecimentos, ações e caracteres ambíguos‖, configuram, dessa forma, ―uma estética

fundada no conflito trágico‖ (MACIEL, 2008:6).

No filme Dançando no Escuro, enxergamos a presença de um trágico sob a

perspectiva do lírico, que não está tão evidenciada em seus demais filmes – embora possam

ser percebidas nuanças em suas outras obras –, sob o ponto de vista em que estamos

percebendo a fusão entre o trágico e o lírico no cinema: como expressão poética de uma

cosmovisão do herói trágico presente em seu discurso e que extrapola para a estética fílmica61

.

Na obra de Lars von Trier, no entanto, é geralmente o trágico que fala mais alto.

Lars von Trier nasceu em 1956, na cidade de Copenhagen, Dinamarca, em uma

família de intelectuais. Nos dizeres do próprio diretor, apenas a religião e as emoções eram

proibidas. O diretor viveu uma infância em nada pautada pela convenção, pois, por exemplo,

entre suas escolhas estava a decisão de fazer ou não os deveres de casa (Cf.STEVENSON,

2005: 22). Próximo dos dez anos de idade, entrou em contato com o universo do cinema por

61 Fábio Crispim defende, en passant, a ideia de que os filmes de Lars von Trier em geral possuem um

―caráter lírico‖, que ele define como ―presente nos momentos em que a linearidade da narrativa é

interrompida por uma visão mais poética, onde as imagens já não se fazem presentes no filme apenas

para compor um enredo, porém ainda assim esses momentos se ligam perfeitamente ao filme e às

histórias contadas‖ (CRISPIM, 2008: 33). No entanto, Crispim não conceitua de forma mais

detalhada em que consiste o ―lírico‖ presente na obra de Lars von Trier, restringindo-o apenas à

definição acima e somente em parte se aproximando da ideia de lírico que estamos utilizando neste

trabalho.

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meio de uma câmera super 8 mm de sua mãe. Embora nascido ―Lars Trier‖, passou a adotar o

sobrenome ―von‖ durante o período em que estudou na Danish Film School.

Em 1995, junto a outros cineastas, Lars von Trier lança, num tom provocativo, o

manifesto Dogma 95. Caracterizou-se por uma proposta que, em seu discurso, busca se

desvencilhar da estética do espetáculo e do aparato técnico próprios do cinema industrial, ou

seja, de todos os códigos que lhes são característicos, como a montagem invisível, a

continuidade espaço-temporal, a decupagem clássica, a linearidade da narrativa etc. Em

contrapartida, também nega algumas prerrogativas dos cinemas novos surgidos no contexto

das transformações da década de 1960 — como, por exemplo, a política dos autores da

Nouvelle Vague. Os primeiros filmes feitos pelo Dogma foram Festa de Família (1998,

Thomas Vinterberg), Os Idiotas (1998, Lars von Trier) e Mifune (1999, Soren Kragh-

Jacobsen).

O movimento, por meio do manifesto intitulado Voto de Castidade – composto de

dez mandamentos62

–, expõe suas premissas e escolhas em relação ao modo de se fazer

cinema, propondo os ―mandamentos‖ do Dogma. Entre as críticas mais contundentes feitas

pelo movimento estão as críticas ao cinema mainstream, mais especificamente, à sua estética

ilusória – artifício muito utilizado pelo melodrama e sua estética naturalista. Criticavam,

portanto, a linha estética do cinema clássico e seu ideal natural-ilusionista, buscando assim

uma alternativa estética pautada por um despojamento técnico. De acordo com Maurício

Hirata (2004: 41), o movimento volta-se para uma busca do ―real‖ e da ―verdade‖ por meio de

uma limitação das ―possibilidades de manipulação da imagem e do som, obrigando o diretor a

concentrar-se em aspectos básicos da linguagem cinematográfica, forçando uma reflexão mais

ampla sobre as possibilidades estéticas desses recursos mínimos‖.

Com a pecha de ser um exímio manipulador das emoções alheias, ficou afamado o

episódio em que Lars von Trier, nos preparativos para rodar o filme Dançando no Escuro,

disse para a cantora Björk, que até então estava sendo responsável apenas pela trilha sonora,

que se ela não fizesse o papel da protagonista, Selma, ele desistiria do filme. Como a cantora

62 Entre os preceitos mais pontuais do Dogma, quais sejam, seus dez mandamentos, estão a utilização

de câmeras portáteis; as filmagens devem ser feitas em locação; o som não deve ser produzido

separado das imagens (música é permitida, a menos que ocorra no lugar da filmagem); o filme deve

ser em cores e a iluminação artificial não é permitida; o filme ―não deve conter ação superficial

(assassinato, armas e etc., não devem acontecer)‖; ―a alienação temporal e espacial é proibida‖; filmes

de gênero não são permitidos, o formato do filme deve ser o formato acadêmico, ou seja, 35 mm; e,

por fim, o diretor não deve receber crédito.

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não quis perder o trabalho que já vinha realizando há dois anos, acabou cedendo. Mesmo após

o aceite de Björk, os atritos foram constantes. Consta que a cantora sofreu uma crise nervosa

após a cena em que Selma atira em Bill. Mas as recompensas vieram em maio de 2000, em

Cannes, quando Dançando no Escuro ganhou a Palma de Ouro de melhor filme e Björk, a de

melhor atriz, sem nunca ter atuado em sua vida.

Para Trier, a produção da emoção por meio de seus filmes, o emocionar, é a razão de

ser de sua obra (Cf. TRIER apud TIRARD, 2006: 40). Curiosamente, diz que raramente vai

ao cinema.

4.1 O trágico na obra de Lars von Trier

A obra de Lars von Trier é pautada pelo ecletismo. Assim como Pasolini, filmou

tragédias como o telefilme Medeia (Medea, 1988, Lars von Trier), baseado em um roteiro de

Dryer, além de comédias como O Grande Chefe (The Big Boss, 2007), filmes como

Anticristo (Antichrist, 2009), sua obra mais recente, e Os Idiotas (The Idiots, 1998), o qual

segue à risca os mandamentos do manifesto Dogma 95. Dentre suas trilogias está a trilogia

Europa ou trilogia Hipnótica – composta pelos filmes Europa (1991), Elemento do crime

(1984) e Epidemia (1987) –, além da mais recente trilogia, denominada ―EUA- Terra das

oportunidades‖, ainda inconclusa, cujos dois primeiros filmes são os supracitados Dogville63

e Manderlay.

Em Ondas do Destino (Breaking Waves, 1996, Lars von Trier), Lars von Trier dá

início à trilogia denominada Coração de Ouro 64

(Golden Heart), composta ainda por Os

Idiotas e Dançando no Escuro. O nome remete ao fato de os filmes serem protagonizados por

personagens abnegadas que, em razão de uma culpa, se sacrificam em nome de um grupo ou

coletividade, tal aspecto tendo tido continuidade em filmes seguintes de Lars von Trier, como

Dogville (Dogville, 2003) e Manderlay (Manderlay, 2005). Porém, a abnegação não sintetiza

a personalidade de tais heroínas, marcadas pela ambiguidade e pelo pathos de suas atitudes.

63

Ulysses Maciel enxerga, em determinadas sequências de Dogville, uma releitura de Medeia (Cf.

MACIEL, 2008:6), como na cena em que Grace ordena, por ciúme, que as crianças sejam mortas.

64 O nome da trilogia é baseado em um conto infantil dinamarquês homônimo. Ondas do Destino foi

considerado o filme inicial da trilogia, sendo curiosamente inspirado no mesmo conto infantil e em um

conto erótico do Marquês de Sade: Justine (Cf. STEVENSON, 2005:133).

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O enredo de Ondas do Destino versa sobre a vida da jovem Bess McNeill (Emily

Watson), habitante de um recluso e austero povoado de uma ilha escocesa. Bess casa-se com

Jan, um estrangeiro que trabalha numa plataforma de petróleo, ficando transtornada quando

ele viaja para lá. Pede então a Deus que faça algo para que Jan não precise mais se afastar;

quando ele sofre um acidente e fica paralítico, ela se sente culpada e acredita que deve provar

seu amor a Jan, como um desígnio divino. É então que Jan pede a ela que faça sexo com

outros homens e conte tudo a ele; ela o obedece. Jan melhora lentamente de seu estado físico,

o que Bess atribui às experiências sexuais cada vez mais arriscadas a que se submete para

agradar o marido. Ele então tem uma grave recaída. Bess com isso aumenta o risco de seus

encontros. Ela é considerada mentalmente perturbada pela família, pela paróquia de sua

cidade e por todos à sua volta, por se submeter a essas experiências, sendo objeto de

hostilização de todo o povoado. Até que, por fim, é ferida de morte em um encontro mórbido

com um de seus parceiros e Jan, simultaneamente, é submetido a uma operação e consegue,

milagrosamente, obter a cura. Como uma Antígona65

às avessas, Bess não pode ser enterrada

com direito a bênçãos ou ritual funerário, uma forma de represália da Igreja. Jan a leva para a

plataforma marítima, onde ele e seus amigos se despedem dela e lançam seu corpo ao mar.

Nesse momento ouvem sinos que badalam muito alto, além das nuvens. A câmera mostra os

sinos suspensos no céu, como se representassem a redenção divina de Bess. Dessa maneira,

fica patente, de acordo com Nazário (2001:129), a busca do filme em exibir sua ―verdade

metafísica: o sacrifício de Bess foi abençoado por Deus; sua degradação foi santificada‖.

Para Nazário (2001: 136), os filmes de Lars von Trier possuem ―um universo

inteiramente pessoal, expresso com uma força poética e metafísica só encontrada nos cinemas

de Carl Dryer, Robert Bresson, Ingmar Bergman e Píer Paolo Pasolini‖. Esse tom religioso e

metafísico está muito presente nas obras do cineasta também dinamarquês Carl Dryer – entre

elas, o filme A paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1927)66

– de quem Lars

von Trier é grande admirador.

65

O enredo da tragédia de Sófocles se dá em volta da luta de Antígona para conseguir enterrar seu

irmão Polinice, que em virtude de ter atentado contra Tebas, teve seu enterro proibido por Creonte. A

proibição representou grande afronto à alma do morto e à família, pois sem o enterro devido sua alma

não conseguiria fazer a transição para o mundo dos mortos. Antígona é então condenada à morte, por

acabar enterrando seu irmão mesmo contra a vontade da lei e do tirano Creonte.

66 Inclusive uma de suas primeiras juvenis experiências cinematográficas se tratou de uma pequena

montagem em que utilizava uma cena específica (a cena do interrogatório inquisitorial) desse mesmo

filme de Dryer (Cf. STEVENSON, 2005:25).

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A respeito de uma aproximação temática entre Dançando no Escuro e Ondas do

Destino, a professora do Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para a

América Latina, Hanelore Döbler, afirma que se pode traçar muitas paralelas, considerando o

fato de que Lars von Trier qualificou Dançando no Escuro como a versão musical de Ondas

do Destino, ao dizer que o primeiro possui ―mais ou menos a mesma história que Ondas do

Destino, só que como um musical‖ (TRIER, 2003: 147).

Além de ambas poderem ser comparadas a parábolas religiosas, o que mais

chama atenção são as semelhanças em seus protagonistas femininos, que

destilam em ambos os filmes fragilidade, inocência, bondade e ao mesmo

tempo uma marcante determinação. Tanto o perfil de seus personagens, a

idéia de sacrifício humano por uma causa que pode chegar a ser maior que a

própria vida e as conotações religiosas são constantes nesse filme.

(DÖBLER, 2001: 7)

Podemos afirmar que Ondas do Destino possui alguns elementos próprios do

melodrama, mas ao mesmo tempo o filme os subverte. Segundo Xavier, no melodrama a

organização do mundo é muito mais simples, os ―projetos humanos parecem ter a vocação de

chegar a termo‖ e o ―sucesso é produto do mérito e da ajuda da providência‖ (XAVIER apud

CRISPIM, 2008:35). Em Ondas do Destino, a empresa de Bess de ―salvar‖ o marido para que

se unam novamente não chega a termo. Além disso, sua relação com Deus, ou com a

Providência, é ambígua, se comparada a um melodrama tradicional, além de irônica, ―uma

vez que sua fé inabalável é um dos fatores que a levam à morte‖ (CRISPIM, 2008:35).

Ondas do Destino também se aproxima de Dançando no Escuro e da temática do

herói trágico, pois, quanto mais Bess se sacrifica para agradar ao marido e a ele se unir

novamente, mais mergulha em seu infortúnio; mais distante fica de seu intento e mais

próxima de sua morte sacrificial. Isto nos remete à moira do herói trágico, isto é, aos reveses

de seu destino implacável, e ao paradoxo trágico, qual um Édipo que, quanto mais tenta se

afastar da cidade de Tebas e da previsão do oráculo de Delfos, mais próximo fica de matar

seu pai, e, assim, mais próximo de sua morte também sacrificial.

O filme possui divisão em sete capítulos e um prólogo, sempre com um título,

estrutura que nos reporta aos clássicos romances do século XIX (Cf. CRISPIM, 2008:30).

Caracterizando-se como manifestação de um autor, tais recursos remetem ao épico e

emprestam ao filme um sentido lírico-narrativo. Segundo Rosenfeld (1985: 22), ―côro,

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prólogo e epílogo são, no contexto do drama, como sistema fechado, elementos épicos, por se

manifestar, através deles, o autor, assumindo função lírico-narrativa‖. Nessas passagens de

capítulo, são exibidas imagens quase estáticas de paisagens das melancólicas e inóspitas ilhas

escocesas, bem ao estilo das pinturas românticas67

.

Na nossa interpretação, tais paisagens são um reflexo do próprio estado de espírito

de Bess, o que aponta para a existência do lírico na narrativa. Os dois primeiros quadros

representam o momento em que Bess se casa com Jan e a felicidade de sua vida a dois.

Quanto às imagens de baixo, a primeira representa sua vida solitária quando o marido resolve

partir para a plataforma (na paisagem é exibida uma única plataforma de petróleo no meio da

escuridão do oceano), já a última imagem se apresenta como uma paisagem nebulosa,

representando a dúvida que assalta Bess em aceitar ou não satisfazer os arriscados desejos de

Jan. Em outro momento do filme, Bess aparece gesticulando com raiva em direção ao mar

revolto. Esse último parece ser um reflexo do turbilhão de sentimentos guardados pela

personagem, o que nos remete à obra Miranda (1916) do pintor inglês do período romântico,

John William Waterhouse, inspirada na personagem Miranda, da obra A tempestade, de

67

A Ilha de Skye, onde se passa o filme, foi um lugar para onde muitos escritores e pintores se

mudaram no decorrer do período romântico inglês, no século XIX (Cf. CRISPIM, 2008:35).

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Shakespeare. A terceira obra exibida abaixo, cuja estética também se aproxima da estética da

cena de Ondas do Destino, se trata da obra The Wanderer Above the Mists (1818), do pintor

Caspar David Friedrich, do período romântico alemão. A paisagem como eco do interior da

personagem é um traço tanto do lírico – nele ―o universo se torna expressão de um estado

interior‖ (ROSENFELD, 1985:11) – como do movimento romântico.

Esses momentos de pausa produzidos pelas imagens das paisagens68

trazem para

o filme uma atmosfera poética – apontam para as estratégias utilizadas pelo cinema de poesia

de Pasolini –, ao quebrarem com a linearidade da narrativa. Além disso, Bess constantemente

lança olhares cúmplices diretamente para a câmera, o que remonta mais uma vez a um desejo

por parte de Lars Von Trier de realizar uma evidenciação do próprio fazer cinematográfico,

indo de encontro à transparência consagrada pelo cinema clássico e produzindo assim um

sentido poético.

68

Cada imagem é acompanhada por uma canção do repertório pop (em sua maioria dos anos 1980).

As primeiras imagens são acompanhadas por músicas mais alegres ao passo que nas seguintes ao

acidente de Jan as músicas se tornam mais melancólicas, como a poética Suzanne, da década de 1960,

de autoria do poeta e músico canadense Leonard Cohen.

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Olhar cúmplice de Bess para a câmera

A temática do estrangeiro, do ―forasteiro‖, é recorrente na obra de Lars von Trier,

que podemos relacionar com a temática do exílio, concernente ao trágico. Os protagonistas

dos filmes de Trier, em sua maioria mulheres, são sempre outsiders. As protagonistas não se

sentem ―em casa‖ no ambiente em que vivem, ou por terem vindo de outro patamar social

(como é o caso de Grace, de Dogville e Manderley) ou porque são estigmatizadas ou não são

benquistas pela comunidade (como é o caso de Bess), ou os dois simultaneamente. O espaço

em que se inserem, geralmente pequenas comunidades isoladas – no caso de Dançando no

Escuro, uma comunidade no interior do Estado de Washington; no caso de Ondas do destino,

as ilhas gélidas e escarpadas de Outer Hebrides, na Escócia, e, no caso de Dogville, um

povoado esquecido nas Montanhas Rochosas da década de 1930 – que se constituem como

espaços claustrofóbicos, cerceadores. Fica configurado, dessa forma, um permanente embate

entre as protagonistas dos filmes e a sociedade à sua volta.

O embate entre o sujeito e a sociedade apresenta-se simbolizado nos filmes de

Lars von Trier pela figura do estrangeiro – como elemento característico do protagonista – e

da prisão, no que concerne ao espaço em que ele se insere (Cf. CARVALHO, 2009: 4). Essas

protagonistas são personagens determinados a seguir um destino por elas escolhido, e que

vão, assim, marcar o percurso da trama desde o seu início. Resta aqui evidenciado outro

paradoxo pertinente à condição trágica: a relação entre destino e livre-arbítrio das

personagens, pois embora as personagens sejam senhoras de suas atitudes, essas parecem já

ter sido pré-traçadas. Como defende Carvalho, embora se trate de uma opção do sujeito por

seguir um caminho, este parece já ter sido pré-moldado por suas condições e questões

existenciais, o que aponta para o paradoxo trágico. É, por exemplo, o caso de Selma, a qual,

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por sua livre escolha, resolveu emigrar para os confins da América profunda. Essa não foi, no

entanto, uma decisão fundamentada somente no seu livre-arbítrio, no desejo de se tornar uma

integrante de musicais (seu sonho mais recôndito), por exemplo. Caracteriza-se como uma

decisão, ao mesmo tempo, em parte predeterminada pela condição de ter um filho que pode

vir a ser tomado pela cegueira congênita e pelo fato de os EUA ser o lugar mais adequado

para a sua cirurgia, para sua cura, já que em seu país de origem, a então Tchecoslováquia, isso

não seria possível.

Dançando no Escuro foi um divisor de águas na trajetória de Lars von Trier. A

história de Selma dividiu opiniões69

ao redor do mundo. O filme recebeu críticas e elogios na

mesma intensidade. Para Jack Stevenson, talvez seja o filme que mais polarizou crítica e

bilheteria ao longo da história (STEVENSON, 2002: 235). Ao mesmo tempo em que o filme

ganhava a Palma de Ouro em Cannes, meses depois, na sua estreia na Dinamarca natal, o

filme recebia críticas ferrenhas. Enquanto na França e no Japão foi mais do que exitoso em

termos de bilheteria, na Grã-Bretanha, ao contrário, o fracasso foi tanto que os cinemas

passaram a devolver o dinheiro dos espectadores que iam embora antes da primeira meia hora

de filme.

Segundo Amaranta César, com Dançando no Escuro o cineasta nórdico ―alcança

um equilíbrio devastador, através de uma improvável junção dos emblemas dos mais

antagônicos modos de se fazer cinema‖ e ―confirma sua posição ideológica em relação ao

cinema industrial‖ (CÉSAR, 2003: 415).

4.2 O trágico em Dançando no Escuro

O filme Dançando no Escuro é um musical que pode ser denominado às avessas,

isso pelo fato de ser marcado por um caráter híbrido (sincrético). Essa qualidade decorre de

69 Entre as questões polêmicas que ressoaram na estreia do filme em Cannes, assim como depois, se

trata de Lars von Trier ter ambientado Dançando no Escuro nos EUA (como seriam também os casos

de Dogville e Manderlay) sem nunca haver pisado em solo ianque, o filme foi rodado na Suécia. O

diretor diz que, criativamente, era um privilégio nunca haver estado nos EUA. Segundo Stevenson

(2005: 235), ―por acaso Hollywood não havia feito sempre o mesmo? Se eles puderam jogar

livremente com a realidade, por que Lars von Trier não poderia?‖.

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dois sentidos, que se complementam. Primeiro, no sentido de que é um herdeiro do Dogma,

conquanto seja um filme de gênero. Segundo, embora seja um musical, diverge da lógica do

ilusionismo que imperou nos musicais realizados ao longo da história do cinema, mais afeitos

ao modus operandi do cinema clássico narrativo. Portanto, pode-se concluir que ele não é um

representante fiel do movimento Dogma 95, não é representativo daquele movimento, como

já dito, assim como também não o é dos gêneros musicais, podendo ser considerado um

musical atípico. Um dos exemplos de que o filme vai de encontro em parte à assepsia estética

pregada pelo movimento Dogma, trata-se da intrincada superprodução técnica de alto custo

realizada na filmagem das cenas de musical, quando foram utilizadas cem pequenas câmeras

fixas para filmar as cenas desde vários ângulos (Cf. STEVENSON, 2005:216), os ―cem olhos

de Lars von Trier‖70

. No restante das cenas foi utilizada a câmera na mão, como de costume

nos filmes representantes do Dogma.

O filme vai de encontro a vários dos preceitos estabelecidos pelo movimento

Dogma: pelo fato de ser um musical (ou seja, um filme de gênero), embora não um musical

modelar71

; por possuir trilha musical (algo proibido); por ser feito por um único diretor, algo

distinto dos filmes realizados sob a chancela do Dogma, feita sempre de forma coletiva, sob a

direção de mais de uma pessoa, dentre outros.

Quanto ao musical clássico, Dançando no Escuro subverte o gênero das mais

diversas formas, inclusive na inserção das cenas de musical, não introduzidas de forma

repentina, sem conexão orgânica com as tramas, como ocorre nos musicais clássicos, quando

os bailarinos começam a cantar e dançar sem motivo aparente. Ao contrário, em Dançando no

Escuro os interlúdios musicais são um prolongamento do estado psicológico de Selma e as

transições entre realidade e fantasia são momentos-chave do filme, sendo feitas desde um fio

condutor sonoro que a leva da realidade ao devaneio, ―baseadas na emergência gradual de um

ritmo dominante no ambiente sonoro da cena‖ (STEVENSON, 2005:215).

70

Ao longo do filme, foi rodado simultaneamente um documentário (de Anders Lund Madsen) acerca

do processo de filmagem, de nome homônimo.

71 Um dos musicais em que Lars von Trier se inspirou, West Side Story (1961, Robert Wise), também

não se apresenta como um musical modelar, já que difere dos demais por não possuir um happy end,

sendo uma adaptação da tragédia shakespeareana Romeu e Julieta para a Nova Iorque da década de

1950, em que a rivalidade das famílias Montechio e Capuletto é substituída pela rivalidade de gangues

urbanas.

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Outro exemplo do quanto Dançando no Escuro se distancia dos musicais

clássicos hollywoodianos está situado em volta do ideal do amor romântico, que é geralmente

exaltado nos musicais modelares, porém, no musical às avessas que é Dançando no Escuro,

as investidas amorosas de Jeff (Peter Stormare) para com Selma em nada se aproximam de se

concretizarem. Em determinada cena Selma afirma, paciente, que não quer um namorado. Em

outra, ao ser interrompida enquanto brigava com seu filho, Selma chega a ser rude com Jeff,

recusando outra carona.

Além disso, Dançando no Escuro subverte o musical como gênero, pois possui

uma leitura trágica, que vai de encontro ao ideal de felicidade que habita esses filmes. O filme

já comporta em seu título – que em inglês é Dancer in the Dark, ou seja, dançarina no escuro

– a escuridão que corresponde metaforicamente à escuridão do trágico vivido, também

correspondente à cegueira da protagonista. O mesmo título abriga de forma poética o lírico,

correspondente aos devaneios musicais do herói, que dança sobre o trágico de sua sina.

4.2.1 A hamartía e o dilema ético do herói

Selma não é uma personagem previsível, e sim por vezes imperscrutável, dotada

de complexidade. Reflete a ambiguidade própria da tragédia e seu ensinamento ontológico de

que o homem não é um ser que se possa ―descrever ou definir, é um problema, um enigma

cujos duplos sentidos jamais se chegou a decifrar‖ (PUCHEU, 2010:118). Em sua condição

Selma reúne a mesma coincidentia opositorum que habita a trajetória de Édipo – e, em certa

medida, a de todos os homens –, que é ―a um só tempo o que sabe muito e o que nada sabe, o

exagero das duas direções contrárias contidas na mesma pessoa‖ (VERNANT apud

PUCHEU, 2010:118).

A protagonista se vê enredada em um conflito ético após matar Bill (o que a

remete a uma esfera do trágico, segundo Lesky), embora o primeiro tiro tenha sido disparado

acidentalmente. Bill lhe armara uma cilada ao roubar suas economias reservadas para a

cirurgia de Gene. A falha de Selma é o que desencadeia a sua trajetória trágica. O dilema ético

se apresenta, no entanto, ainda antes de Selma cometer seu erro, pois é visível sua hesitação e

sofrimento perante a encruzilhada em que está inserida (diante da escolha de cometer ou não o

assassinato, de salvar ou não o filho) e ante o pedido de Bill.

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De fato, ao contrário da epopeia e da poesia lírica, onde não se desenha a

categoria da ação, já que aí o homem nunca é encarado como agente, a

tragédia apresenta indivíduos em situação de agir, coloca-os na encruzilhada

de uma opção com que estão integralmente comprometidos, mostra-o no

limiar de uma decisão, interrogando-se sobre o melhor partido a tomar

(VERNANT; NAQUET, 1999:21).

Ao matar seu amigo, Selma revela-se uma espécie de anti-heroína. Tentando

traçar um paralelo com o melodrama, podemos destacar que um herói melodramático não

cometeria tal hamartía, visto que seria um herói de excessiva bondade e qualidades,

desconhecedor do erro. Ou então seria a antítese disso, um herói excessivamente mau, um

vilão. Em suma, o herói do melodrama não conhece a dúvida e caminha irresolutamente ou no

caminho do bem ou no do mal, não possuindo nuanças psicológicas. ―No melodrama há

objetivos a alcançar ao invés de dilemas de consciência‖ (HUPPES, 2000:113).

A cena em que Selma atira em Bill pela primeira vez configura, a princípio, um

acidente, já que ocorre quando Selma tenta reaver o dinheiro das mãos de Bill, que está

armado. Selma, no entanto, na seqüência acaba por matá-lo, coagida por ele a fazer isso e

também para reaver seu dinheiro e salvar seu filho. É verdade que Bill lhe pede várias vezes

para que seja morto, porém o faz mais na intenção de criar tempo para que Linda (Cara

Seymour), sua mulher, chame a polícia. Posteriormente, a cena é carregada de outros

elementos, como o fato de Selma machucar o rosto de Bill e posteriormente sabermos que ela

o feriu mais de 30 vezes, o que denota a complexidade da personagem. Ao mesmo tempo em

que ela contém o extremo da bondade e abnegação, encerra também o exagero da mácula, o

que denota uma ambiguidade concernente à personagem e aos heróis trágicos, suas tensões e

paradoxos: ―na perspectiva trágica, o homem e a ação se delineiam, não como realidades que

se poderiam definir ou descrever, mas como problemas. Eles se apresentam como enigmas

cujo duplo sentido não pode nunca ser fixado ou esgotado‖ (VERNANT, 1999:16).

Em Dançando no Escuro não há estereótipos de personalidade. Selma se questiona

acerca do ato cometido e sofre a culpa por tê-lo feito, expressando isso quando se imagina,

enquanto canta, pedindo desculpas a Bill. Afirma constantemente: ―tudo parece tão errado‖.

Além de entremear seu canto com a afirmação, referindo-se a si mesma em segunda pessoa:

―Selma, sua tola, a culpa é toda sua‖. Numa das cenas ela senta-se diante de um espelho,

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como a interrogar-se a si mesma o que está acontecendo. Nesse momento, solta os grampos

do cabelo e o assanha, como a apontar para o estado aflitivo em se que encontra.

Quando se abstrai (por meio de seu canto pungente) da realidade em que está

vivendo, Selma se imagina sendo perdoada por Bill e por sua mulher pelo erro cometido.

Imagina também seu filho, andando de bicicleta em círculos do lado de fora da casa e

afirmando – qual um canto ditirâmbico, um coro trágico – que ela fez o que deveria ter feito

(you just did what you have to do), que fez o que foi preciso. Logo em seguida, porém, Selma

reafirma que a culpa é toda dela própria. A afirmação de Gene reflete o murmúrio das ruas,

isto é, o que talvez de fato o público pensa, pois, no contexto da antiguidade grega e da

tragédia clássica, o público ―reencontrava a si mesmo no coro da orquestra‖ (NIETSZCHE,

2007:55).

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Gene, qual um coro trágico, afirma que Selma fez o que deveria fazer.

Ainda sobre a cena posterior à morte de Bill, o perdão que Selma roga ao casal,

Bill e Linda, não se refere, no entanto, somente a Bill e a sua mulher, mas à própria sociedade

dos Estados Unidos. Roga que ela a ―perdoe‖ por sua condição de estrangeira, de outsider. E,

agora, criminosa. Isso fica simbolizado ainda nessa cena, no momento em que Selma, em sua

imaginação, sai da casa de Bill e vê uma bandeira americana tremulando. Aqui fica evidente o

viés político do qual o filme é perpassado: a bandeira dos EUA representando o estilo de vida

americano e a felicidade que Selma almejava ter ao imigrar nos EUA para tratar seu filho;

estilo de vida que acaba por enredá-la na situação em que está. Na cena do tribunal, quando

ela está sendo julgada, Selma imagina ainda que é a estrela de um musical e, assim, sonha que

todos estão ali para homenageá-la e perdoá-la. Na cena seguinte, ela é condenada.

A ação trágica em Dançando no Escuro ocorre entre pessoas que possuíam um

forte laço de amizade, no caso, Selma e Bill. O espaço da tragédia, segundo Aristóteles, se

encontra no cerne das fortes alianças, pois somente as ações que se sucedem entre pessoas

próximas – um amigo, um pai, um irmão – são capazes se suscitar a piedade e o terror, pois

consoante o filósofo, se a ação se passasse entre inimigos, não seria causadora de

compadecimento e não produziria a catarse. Como endossa Szondi (2004: 82),

acontecimentos dolorosos podem ser considerados ―terríveis e tocantes no mais alto grau

quando ocorrem em relações de afeto, ‗quando por exemplo um irmão mata um irmão ou a

mãe mata o filho...‘‖.

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4.2.2 A dança lírico-trágica de Selma

É no ápice da condição trágica em que se vê inserido, ao tomar consciência de sua

sina e hamartía, que o herói trágico deixa aflorar sua visão de mundo e expressa de forma

lírica toda a intensidade do que vive, sua poeticidade trágica. Conforme vimos em Lopes, o

tempo poético da tragédia é assim revelado com base em ―imagens-ritmo‖, expressões

metafóricas. Segundo Nietzsche72

(2005: 56), a metáfora ―é para o autêntico poeta não uma

figura de retórica, porém uma imagem substantiva, que paira à sua frente em lugar realmente

de um conceito‖. Para o poeta Juarroz (2005: 40), ―a realidade é um clichê do qual escapamos

pela metáfora‖. Selma canta poemas em sua fala – sendo o canto uma das formas de

manifestação do lírico73

, conforme vimos –, como que na tentativa de ordenar minimamente o

caos em que se encontra e expondo, liricamente, seu horizonte existencial e a situação

paradoxal que vive. Lança mão de comparações metafóricas (o tempo de uma lágrima caindo;

o último batimento cardíaco; o crescimento de um espinho) para expressar a medida de um

tempo imensurável; o tempo, em sua consciência, de sentir-se perdoada por Bill e de perdoar-

se a si própria.

O tempo que leva para uma lágrima cair

Para um coração bater descompassado

Para uma cobra mudar de pele

Para um espinho crescer em uma rocha

É o tempo que basta para me perdoar

Eu fiz o que tinha de fazer

72 Selma, em seus devaneios dionisíacos, traz para a sua vivência o ideal nietzscheano da vida

transmutada em arte. O desmedido excesso dionisíaco de seus devaneios, conjugado à ordenação

apolínea dos versos que emergem da embriaguez de seus delírios, são expressões da estética trágica

propagada por Nietzsche.

73 Para Staiger (1972:187), a canção, mais que a ode ou o epigrama, é a forma mais comum de

manifestação do lírico, pois embora os epigramas sejam geralmente líricos, existem casos, por

exemplo, nos quais ―reconhece-se uma certa tensão dramática. Em todo caso eu não chamaria

epigramas de Schiller ou Lessing de líricos‖. Já a canção, segundo o autor, ―não parece ser senão

lírica‖ (idem, 1972:188).

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Esse trecho do canto de Selma é introduzido por uma canção que se assemelha a

uma canção de ninar, na qual, metaforicamente, Selma se refere a Bill como se ele não

estivesse morto, mas apenas dormindo. E, em seu devaneio, imagina que, com apenas um

toque em sua testa, Bill é capaz de ―acordar‖ para dançar com ela. Nessa mesma canção o

chama de ―inocente‖, o que denota mais uma vez o dilema ético no qual se vê enredada.

A noite escura vai caindo

O sol está indo para a cama

Os inocentes estão dormindo,

como você deveria estar, dorminhoco

A cegueira progressiva de Selma faz com que seja atenta aos menores estímulos

do ambiente. São esses pequenos estímulos que a levam a devanear com o grande, e a

imprimir poesia em sua rotina. Para Bachelard, ―todos os sentidos despertam e se harmonizam

no devaneio poético. É essa polifonia dos sentidos que o devaneio poético escuta e que a

consciência poética deve registrar‖ (BACHELARD, 1996: 6). Como vimos no capítulo

anterior, enquanto o sonho é uma experiência passível de ser tornada pública, o devaneio se

caracteriza como uma experiência íntima. Selma não conta para ninguém sobre os seus

devaneios, somente para Bill, em tom de confissão, como uma espécie de segredo.

A cena em que Selma, num de seus devaneios poéticos, imagina estar cantando

em cima de um trem, expressa os próprios questionamentos em relação ao fato de estar

ficando cega e, em certa medida, a cena introduz, de forma sutil e poética, um presságio do

que está por vir, das cenas seguintes, como no momento em que canta que não há mais nada o

que ver em um mundo em que um homem é morto pela melhor amiga. Dessa maneira,

prenuncia a morte de Bill, dando-se, assim, uma predição trágica de sua sina.

O que há para se enxergar?

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Eu já vi de tudo

Eu vi as árvores

Eu vi as folhas do salgueiro dançando com a brisa

Eu vi um homem ser morto por sua melhor amiga

E vi vidas terminarem muito antes do fim

Eu vi o que eu era

E sei o que serei

Não há mais nada o que ver

Eu já vi tudo

Eu vi a escuridão

Eu vi a luminosidade de uma pequena faísca

Eu vi o que escolhi ver

E vi o que precisava

E isso basta

Querer mais seria avidez.

Selma, em sua fala, usa constantemente o verbo ver. É por meio da cegueira, como

metáfora para a visão, que se discute o olhar no filme. Embora estejamos vivenciando, como

nunca na contemporaneidade, uma inflação imagética e a visão seja o sentido que no dia a dia

mais nos é exigido, ―ver‖ é privilégio para poucos; ver no sentido de ler criticamente as

imagens do mundo, percebendo também seu componente de invisibilidade.

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Selma não somente viu, mas viu o que escolheu ver. E aqui nos remetemos à

epígrafe do romance Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago74

: ―Se podes olhar,

vê. Se podes ver, repara.‖ Os primeiros minutos de filme, em que vemos uma tela totalmente

em negro75

, é um convite a uma nova aprendizagem do olhar. Ou o estranhamento da

experiência seria uma provocação do diretor, acerca de o próprio cinema mainstream já ter

produzido indiscriminadamente tantas imagens e nós cegos de tanto vê-las? A realidade e a

experiência hoje são vividas cotidianamente de forma mediatizada, por meio da imagem,

extenuando nossas retinas. De acordo com Norval Baitello, precisamos ―ver‖ não somente

com os olhos, mas também com os ouvidos, desenvolvendo melhor uma ―cultura do ouvir‖,

aguçando os sentidos de forma global e percebendo o mundo não somente sob os signos da

visualidade. De acordo com ele, a ―cultura e a sociedade contemporâneas tratam o som como

forma menos nobre, um tipo de primo pobre, no espectro dos códigos da comunicação

humana‖ (BAITELLO, 2005:99). Selma é atenta ao atrito da agulha na vitrola; ao som

ritmado das rodas do trem sobre os trilhos e do barulho das máquinas na fábrica produz

melodia em sua mente.

O canto e a poesia são a forma de Selma expressar também sua cosmovisão em

relação à sua vida e situação de quase cegueira em que se encontra, expressando de forma

poética o trágico vivido. A cegueira da personagem remete à cegueira e sapiência dos antigos

aedos e poetas gregos – cuja poesia também era expressa sob a forma de canto –, como, por

exemplo, Homero, o qual se conta que era cego; a cegueira não como algo relacionado à

condenação às trevas, mas como uma capacidade de ver além. Também podemos associar a

74

A temática da visão e da cegueira é recorrente na obra de Saramago. Como a personagem Blimunda,

de Memorial do Convento (1982), que tem a capacidade de, em jejum, enxergar dentro das pessoas, e

em sua fala assinala que ―este é o dia de ver não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que,

olhos tendo, são outra qualidade de cegos‖. Outro exemplo é o almuadem cego de História do Cerco

de Lisboa (1989), obra que principia com a seguinte frase: "Quando só uma visão mil vezes mais

aguda do que a pode dar a natureza seria capaz de distinguir no oriente do céu a diferença inicial que

separa a noite da madrugada o almuadem acordou" (SARAMAGO, 1998: 15).

75 Enquanto no cinema o filme foi exibido com esses minutos iniciais de tela em negro, a versão em

DVD da obra apresenta, em seu lugar, imagens assemelhadas a pinturas abstratas coloridas.

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cegueira à figura dos profetas e oráculos das tragédias, os quais, em seu poder de vidência,

viam mais do que os que olhos tinham.

A temática da cegueira nos remete mais uma vez ao Édipo. Na cena em que Édipo

e Tirésias, ―o cego que vê e o adivinho que é cego‖ (SZONDI, 2004: 93), debatem, este lhe

diz: ―E a ti eu digo, já que me ofendes por minha cegueira: os dois olhos que tens pouco

adiantam‖. O adivinho Tirésias que, sendo cego, é quem mais vê (embora seja desacreditado

por Édipo), prevê que Édipo é o responsável pela maldição da cidade e assassinato do pai.

Selma, também sendo cega, é quem mais vê, no sentido de ter consciência da gravidade da

situação em que se encontra (tanto em relação à condição de seu filho como à morte do

amigo), e de antever o que o aguarda. Ao contrário de Tirésias, o destino trágico que ela prevê

não chega para outro, mas para ela mesma. Assim como Édipo, ao furar os olhos como

penitência, afirma que o fez porque ―não há mais o que ver‖, Selma, prevendo a morte do

amigo, também diz que não há mais nada o que ver.

Ainda na sequência do trem, Jeff, na imaginação de Selma, a questiona e

aconselha sobre o fato de estar ficando cega, acerca das coisas que ficará impossibilitada de

ver. A leveza, humor e poesia do diálogo entre os dois contrastam com a situação

irremediável em que Selma se encontra, apontando assim, novamente, para a poeticidade

trágica objeto desta pesquisa. Selma responde como se os exemplos listados por Jeff e as

imagens no mundo ainda por ver não fossem mais tão importantes assim.

Jeff- Você não viu elefantes, reis ou o Peru?

Selma- Fico feliz em dizer que tenho mais o que fazer.

Jeff – E a China? Já viu a Grande Muralha?

Selma- Todo muro é ótimo desde que segure o teto.

Jeff- E o homem com quem irá casar? E a casa que irá dividir?

Selma- Para ser bem franca, eu não me importo.

Jeff – Nunca esteve nas Cataratas do Niágara?

Selma – Já vi muita água ...e água é só água.

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Jeff – E a torre Eiffel? O Empire State?

Selma – Tão altos quanto a minha pulsação no meu primeiro encontro!

Jeff – As mãozinhas do seu neto, brincando com seus cabelos?

Selma – Pra ser bem franca, eu não me importo.

No entanto, nessa passagem, em parte, Selma não faz simplesmente uma renúncia

às imagens do mundo. Ela é também uma afirmação de valorização das miudezas da vida e

seus muitos atrativos. O que importa não é a grandiosidade do que é visto (como as Muralhas

da China, o Peru ou as Cataratas do Niágara), e sim a capacidade de as imagens (sejam elas

grandiosas ou não) nos afetarem, sua intensidade. Como diz o poeta Manoel de Barros; ―é no

ínfimo que eu vejo a exuberância‖. Na perspectiva de Guimarães,

Ao invés de simplesmente apresentar uma renúncia definitiva a conhecer o

visível (fazendo da cegueira uma fraqueza), a sequência afirma, ao contrário,

a potência do liame entre o olhar e os afetos, aquilo que torna intensa e

significativa a realidade mais ínfima, e que ultrapassa a grandiosidade dos

monumentos históricos e naturais (se já vimos a água, não serão as Cataratas

do Niágara que nos surpreenderão...) (GUIMARÃES, 2005: 363).

As transições entre sonho e realidade no filme não se apresentam como mera

válvula de escape da personagem a uma vida de agruras. Essas passagens não constituem um

fenômeno meramente da ordem do ―escapismo ou da identificação, graças à imersão

alucinatória na imagem‖ (GUIMARÃES, 2005:364). São fruto, sobretudo, de uma escolha, de

uma decisão, que, consoante Guimarães, esse mundo no qual vivemos gostaria de excluir.

Sendo assim, a resistência que nos resta é afirmar ―a crença no invisível das imagens e dos

sons, deixar-se ser atraído pelos signos sonoros e óticos puros, que valem bem mais do que a

imagem do mundo que nos é apresentada todos os dias, como ouvimos na canção I have seen

it all‖ (GUIMARÃES, 2005:373).

Os devaneios de Selma são reais, no sentido de que são fruto de sua capacidade e

possibilidades criativas de imaginação. Os delírios da personagem são uma plataforma para

pensarmos sobre como muitas vezes negligenciamos nossa capacidade para imaginar, acerca

de como pouco usufruímos de nosso ―cinema mental‖, expressão do teórico Gilbert Durand.

Como lhe sugere o corpo de baile que dança em cima do trem, Selma poderá sempre recorrer

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à sua imaginação – e assistir a tudo, na ―tela quadrada‖ dentro de sua mente, produzindo seu

próprio acervo imaginário de imagens do mundo.

Outro momento de intensidade, a um só tempo lírica e trágica, está presente na

cena em que o lírico emerge de forma cristalina e pungente não com origem em um devaneio

de Selma, mas na realidade de seu derradeiro canto, quando, prestes a morrer, canta uma

canção para o filho:

Querido gene, claro que você está perto

E não há mais nada a temer

Eu devia saber, eu nunca estive só

Essa não é a última canção

Não há violino

O coro está tão silencioso

E ninguém dá piruetas

Essa é a penúltima canção, e isso é tudo

Lembre-se do que eu disse

Lembre-se de embrulhar o pão

Faça isso, faça aquilo

Faça a sua cama

Essa não é a última canção.

Outro elemento presente no filme que reporta o enredo a uma esfera trágica é a

importância que a instância de uma coletividade (representada pela sociedade americana)

assume na trama. A ação trágica clássica envolve o âmbito da esfera pública, da repercussão

de uma ação para o futuro de uma comunidade (XAVIER, 2003), a qual, por meio de suas

instituições, deve praticar a vingança e a justiça necessárias ao herói. Já o melodrama, por

exemplo, diz respeito estritamente a questões de foro íntimo. Em Dançando no Escuro, a

ação cometida por Selma ao matar Bill reverbera publicamente e enseja implicações para o

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―bem-estar‖ da pacata comunidade, em virtude de Selma, em sua condição de estrangeira,

desestabilizar a tranquilidade do lugar e, assim, representar uma ―ameaça‖.

4.2.3 A ambiguidade das personagens

A característica ambígua das personagens remete a uma tragicidade presente no

enredo, visto que a ação trágica se caracteriza pela ambiguidade. Para Costa e Remédios

(1988: 38), o ―universo trágico pode ser concebido como uma crise cujo ponto central é a

ambiguidade‖. No entendimento de Huppes (2000:112), as personagens trágicas são

―complexas, ambíguas. Elas convivem com a dúvida e a culpa, sob a iminência de uma

catástrofe‖.

A ambiguidade das personagens em Dançando no Escuro se estende de uma

maneira geral às personagens da trama, como, por exemplo, com a personagem Bill. Ele não

se assume como vilão nem como herói, visto que oscila entre o sentimento de amizade por

Selma e a intenção de lhe roubar o dinheiro, ato esse que no filme também oscila entre um ato

de maldade e um de desespero, pois poderia perder sua mulher caso não o fizesse. Além disso,

Bill em vários momentos do filme assume posição protetora e paternal em relação à Gene,

conversando com ele, levando-o à escola e presenteando-lhe uma bicicleta.

Ainda sobre essa ambiguidade, as demais personagens da trama costumam tratar

Selma de maneira generosa. Em contrapartida, em determinados momentos, tal generosidade

soa como uma espécie de concessão. Um exemplo disso acontece na cena em que o chefe de

Selma lhe questiona num tom de ironia o porquê de ela estar nos EUA se, de acordo com o

que ele sabe, é comum os comunistas dividirem tudo, e ela ratifica que isso é uma coisa boa

de seu país. O tom irônico é confirmado pelo olhar reprovador de Kathy – amiga e colega de

trabalho de Selma, interpretada pela atriz Catherine Deneuve – para ele. No entanto, após

Selma cometer o assassinato, seu chefe não hesita em ajudar na sua condenação, sendo um

agravante, para ele, assim como para os demais, a sua condição de estrangeira. Isso é

evidenciado na cena, durante o julgamento, em que o chefe de Selma expressa o que ela havia

dito sobre o comunismo e percebe-se então um certo desconforto por parte do júri. Além

disso, boa parte da linha de argumentação do promotor volta-se para a condição de estrangeira

de Selma, que é acusada, então, de traição, de ser uma pária.

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No tribunal, Selma nada comenta sobre sua doença genética e acerca da cirurgia

do filho, para que assim não saibam onde se encontra o dinheiro. Além disso, Selma nada

fala, em virtude de sua promessa, sobre o fato de Bill ter roubado seu dinheiro por conta de

não ter mais dinheiro algum. Esses dados omitidos (que poderiam contribuir para a comutação

da pena) dificultam sua condição e aceleram a sua condenação à pena de morte. Essa seria

também uma forma de Selma se punir, para se redimir de seus erros, qual um Édipo que fura

os próprios olhos. Já a punição implacável da justiça penal dos Estados Unidos funciona

também como uma forma de redenção de uma coletividade, no caso, a comunidade em volta

de Selma, que a condena à pena de morte, também pelo fato de ser estrangeira. É a lei do olho

por olho dente por dente. Selma, ao matar Bill, é julgada na mesma moeda pela comunidade e

pelo sistema penal dos EUA. Essa repetição da violência é um dos traços que marcam a ação

trágica, como defende Costa e Remédios.

Quando uma violência recai sobre um indivíduo que tem certo vínculo social

com a comunidade e, por isso, é não-sacrificável, acontecem as represálias

dos outros, que se vêem no dever de vingar o seu próximo. São as

represálias, as repetições de uma ação violenta, que caracterizam a ação

trágica. (COSTA; REMÉDIOS, 1988:39)

Selma, sendo uma estrangeira, isto é, sem vínculo social com a comunidade,

provoca a ―represália‖ da justiça penal estadunidense após matar Bill. Tal sacrifício remete,

segundo Costa e Remédios (1988:50), a uma sacralização do herói trágico, visto que, ―ao

destruir a vítima, ao mesmo tempo a sacraliza, transformando-a, de vítima sacrificável pelo

erro cometido, em modelo exemplar, redentora de uma culpa coletiva agora mais controlável

graças a seu trágico exemplo‖. É evidenciada aqui a relação entre a ação trágica e sua

reverberação na esfera coletiva, no caso do filme, a ressonância e o impacto que a ação de

Selma provocará na pequena comunidade, que não possui nome, o que enfatiza o caráter de

universalidade pertinente ao trágico. Como assinala Sterzi (2004: 105), a ―morte do sujeito

trágico afirma e confirma, com a veemência do sacrifício, a saúde da pólis, a afortunada

concatenação das diferentes ordens que constituem aquela sociedade‖.

A morte de Selma pode ser considerada, portanto, sacrificial, que redime a culpa

coletiva da comunidade, além de servir como exemplo para que os demais em sua condição

não façam o mesmo, remetendo-nos à esfera do trágico. Quando a câmera se eleva, após as

cortinas do ―espetáculo‖ serem fechadas, é como se a morte de Selma (assim como a de Bess,

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com seus sinos dobrando nos céus) fosse também sacralizada. Mas o consolo de Selma não é

metafísico, não vem dos céus como o de Bess. A compensação à tragicidade da trajetória de

Selma vem na forma do êxito da cirurgia de seu filho Gene. Após saber que a cirurgia foi

bem- sucedida, canta que essa ―não é a última canção‖, seu filho conseguirá fazer a cama e

embrulhar o pão sozinho, e poderá ver os netos. É uma redenção mais sutil. Isso, ao nosso

ver, não prejudica o caráter trágico da obra como um todo, embora vá de encontro ao que

estudiosos do trágico (como Steiner) defendem: que o trágico não deve abrir espaço para

qualquer natureza de redenção. Já Nietzsche, como vimos, defende a existência da redenção

(inclusive sob a forma de consolo metafísico) como características do trágico.

No entanto, não é a morte de Selma ou seu sacrifício ao final que definem o

trágico no filme, pois, para Szondi, como já vimos, o trágico não se resume somente ao

aniquilamento, mas ao fato de o herói sucumbir justamente no caminho tomado para fugir da

ruína; no caso de Selma, o fato de ela ter emigrado para os Estados Unidos na esperança da

boa-aventurança e lá encontrar sua ruína.

4.3 Metáforas e símbolos

O poético em Dançando no Escuro advém em parte da linguagem metafórica e

dos símbolos presentes nas cenas de devaneio de Selma. Na compreensão de Pitta (2005:18),

os símbolos são todos os signos concretos que evocam, por uma relação natural, algo ausente

ou ―impossível de ser percebido‖, ou seja, é uma ―representação que faz ‗aparecer‘ um

sentido secreto‖. Metáforas e imagens, quando recorrentes, podem ser conceituadas como

símbolos (Cf. LOPES, 1995: 149). No filme, ambos são formas de expressão da visão de

mundo da personagem e do diretor, o que denota, a um só tempo, a utilização de índices de

um cinema de poesia e a presença do lírico na obra. De acordo com Savernini (2004:44),

podemos entender a metáfora no cinema como um ―procedimento de representação da

subjetividade do artista através de imagens concretas‖. Para Pasolini, o cinema em geral é

uma arte poderosamente metafórica.

Na reflexão de Marie e Jullier, as metáforas contidas em um filme, metáforas

audiovisuais, podem ser relacionadas a um objeto, cenário, ou figurino, por exemplo, que

dentro do contexto fílmico e por analogia ganham sentidos outros além de seus próprios. O

momento em que Bill pinta uma parede é exatamente o momento em que Selma pronuncia

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pela primeira vez o verso em que fala metaforicamente que o tempo que leva para perdoá-la é

o tempo que leva para uma cobra mudar de pele. O movimento do pincel na parede nos

remete à ideia de nova camada, troca de pele, como se o fato ocorrido fosse algo passível de

ser apagado, esquecido, perdoado.

As metáforas audiovisuais também podem ser de outro tipo, como as chamadas

―metáforas estilísticas‖, aquelas ―que põem em jogo os meios narrativos próprios do cinema‖

(MARIE; JULLIER, 2009:58), ou seja, seu sentido é construído por meio das possibilidades

expressivas do dispositivo cinematográfico. As metáforas presentes em Dançando no Escuro

podem ser consideradas, em sua maioria, estilísticas, pois seu sentido em grande parte é

―fabricado‖ pelo próprio modo de filmagem, com base nos recursos expressivos do cinema de

Lars von Trier.

Os tons avermelhados no chão da cozinha, nas cortinas do banheiro e em várias

outras partes da casa são um exemplo disso, representam metaforicamente o sangue no rosto

de Bill, como se pode ver nas imagens. Alguns enquadramentos nas cenas de devaneio são

não convencionais – como os das cenas seguintes –, oblíquos, que criam uma impressão de

instabilidade e remetem a artifícios utilizados pela gramática do cinema de poesia. O uso do

vermelho por si só não configura metáfora ―estilística‖, pois o uso ostensivo do vermelho no

cenário já seria suficiente para indicar a presença de um sentido metafórico. Os

enquadramentos e posicionamentos diferenciados de câmera aqui reforçam esse sentido

metafórico do vermelho, ao dar destaque ao chão da cozinha e à cortina do banheiro, por

exemplo.

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De acordo com Marie e Jullier, podemos chamar tais enquadramentos de

―desenquadramentos‖. Outros exemplos de ―desenquadramentos‖ são os planos em que

somente são enquadradas partes dos corpos das personagens. Para os autores, ―dependendo do

contexto, o desenquadramento pode dar a conotação de desequilíbrio ou embriaguez de um

personagem, a oscilação de uma situação, ou simplesmente o desejo do enquadrador de se

divertir um pouco ou tomar liberdades com a norma do paralelismo‖ (MARIE; JULLIER,

2009: 28). O primeiro quadro abaixo, ainda da sequência de devaneio após a morte de Bill,

mostra Selma não plenamente enquadrada pelo olhar da câmera. O quadro seguinte, extraído

da sequência em que Selma dança em cima do trem, exibe apenas o tronco e os braços da

personagem.

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A água escura do rio onde Selma vai se banhar, em seu delírio, após matar Bill, é

um símbolo do inconsciente e da transformação, como também da morte e do suicídio. Para

Pitta (2005: 25), a simbologia da água escura, ―aquela do rio que passa para nunca mais

voltar‖, remete à tristeza, ―convite ao suicídio‖. Podemos associar a cena ao quadro do pintor

inglês John Everett Millais, Ophelia (1952), em que a personagem trágica de Shakespeare

aparece boiando nas águas turvas de um rio, após praticar suicídio, levada à loucura após

saber que Hamlet lhe assassinou o pai. O plano em que Selma caminha ao longo do rio e a

água toma mais da metade do quadro (exemplo de metáfora estilística) remete à ideia de

sufocamento, asfixia; como que a insinuar a irreversibilidade da situação trágica de Selma. A

paisagem aqui reflete, também, o estado interior de Selma, o que nos remete ao lírico.

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Ophelia (1952), de John Everett Millais

A água escura toma mais da metade do plano: remete à asfixia.

A música da sequência em que Selma dança em cima do trem fala de futuro, o

trem remetendo assim ao movimento e à passagem do tempo, a um olhar afirmativo em

direção ao futuro, apesar das adversidades. Outro elemento importante são as janelas e o que

elas representam no devaneio de Selma, após matar Bill. A cena é retratada não somente de

dentro da casa para fora, como também de fora para dentro, enquadrada pelas janelas, como a

mostrar uma transição entre a esfera privada e a pública. O que antes era apenas uma cobrança

de dinheiro entre amigos agora será objeto de julgamento de todos, terá repercussões públicas.

As janelas funcionam como um enquadramento da cena para os olhares e opiniões dos

moradores da cidadezinha e como uma metáfora da própria tela de cinema, dos espectadores

que veem a cena e que também, cada um à sua maneira, tecerão seus julgamentos sobre o ato

praticado por Selma.

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O choro é quase inexistente no filme. Os três momentos em que Selma chora são

na cena em que mata Bill; na cena do rio e no final do filme, quando recebe a notícia de que a

cirurgia de seu filho foi bem-sucedida. Na maioria das cenas, Selma está serena e, durante os

devaneios, sorri. Mas o sorriso de Selma nos devaneios após a morte de Bill, é, de certa

maneira, um riso trágico. O close da câmera na água que cai do cano para o rio pode ser

considerado uma metáfora para as lágrimas, para o choro de Selma, que pela primeira vez (e

única vez) chora em um de seus devaneios, transitando de um sorriso para as lágrimas, como

se a dor da realidade adentrasse seus delírios imaginários, antes preservados. A água que sai

do cano (o choro de Selma) respinga na lente da câmera (outro exemplo de metáfora

estilística), o que demonstra a busca por uma evidenciação do dispositivo cinematográfico e

um ir de encontro a uma transparência da imagem, características tanto do legado estético do

Dogma 95 (e de Lars von Trier) quanto do cinema de poesia. Quando há o corte da cena de

devaneio para a realidade, o que se vê é uma Selma paralisada, atônita.

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O riso trágico é o rir como uma forma velada de choro. Como reflete Sanseverino

(2004: 142), ele tem o distanciamento que ―guarda o fel da própria fragilidade‖, e o choro

pode vir a ser a sequência do riso. Padre Antonio Vieira, na passagem seguinte, faz uma

reflexão sobre as lágrimas de Heráclito e o riso de Demócrito que, para ele, não são distintos e

sim confundem-se.

E se não choram as mãos, a boca por que não há de chorar? Heráclito

chorava com os olhos; Demócrito com a boca. O pranto dos olhos é mais

fino; o da boca, mais mordaz; e este era o pranto de Demócrito. De sorte

que, na minha consideração, não só Heráclito, mas Demócrito chorava, só

com a diferença de que o pranto de Heráclito era mais natural, o pranto de

Demócrito mais esquisito; e tudo merece este mundo, digno de novos e

esquisitos prantos, para ser bastante chorado (VIEIRA apud

SANSEVERINO, 2004: 142).

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4.4 Dançando no Escuro, os musicais e a metalinguagem

Dançando no Escuro, como já foi expresso, é um musical, porém um musical

atípico. Embora se valendo de muitos elementos não próprios de um musical, apreende em

certos momentos a linguagem empregada por esses gêneros. O filme ―trata-se do avesso mais

extremado da comédia musical; um musical tingido de negro, às cegas, tateante, que faz o

ritmo e a dança surgirem em um lugar jamais imaginado por Hollywood: à beira do

cadafalso‖ (GUIMARÃES, 2005: 362).

Dançando no Escuro além de assumir por vezes a linguagem dos musicais, alude a

estes, o que o caracteriza como obra recombinante e replicante (STAM, 2006: 333), no

sentido de se valer de estratégias de alusão ou reciclagem, uma marca, para Stam, não só do

cinema pós-moderno como da cultura popular pós-moderna. Por exemplo, o filme faz

referência à comédia musical Vamos Dançar (Shall We Dance, 1930, Mark Sandrich) na cena

em que Selma, a protagonista, sonha estar dançando ao som dos ruídos da fábrica em que

trabalha. Tal cena remete àquela em que Fred Astaire sapateia ao som dos ritmos mecanizados

da sala de máquinas do navio em que se encontra. Dançando no Escuro também faz

referência a outro musical: A Noviça Rebelde (The Sound of Music, 1965, Robert Wise). A

alusão se faz, por exemplo, nas cenas em que Selma ensaia um trecho de tal musical para uma

apresentação teatral e quando ela canta a música-tema de Noviça Rebelde na sequência em

que se encontra sozinha em sua cela. Além dessas relações, podemos ressaltar ainda o nome

do filho de Selma, Gene, que pode ser uma alusão ao ator e bailarino de musicais Gene Kelly.

Outra relação que podemos tecer diz respeito ao nome da obra analisada, Dançando no

Escuro, muito semelhante ao clássico dos musicais Cantando na Chuva (Singin’ in the rain,

1952, Gene Kelly e Staley Donen). Por fim, outra indicação de que Dançando no Escuro

remete a outros musicais já realizados está na abertura do filme, que foi inspirada na abertura

de outro musical americano76

, West Side Story, segundo Lars von Trier (Cf. TRIER,

2003:148).

Dançando no Escuro lança mão de várias estratégias para fazer referência ao

universo dos musicais e ao próprio fato de ser um musical. Isso ocorre por meio das alusões

feitas a musicais consagrados da história do cinema, mas também acontece de três outras

76

Porém, segundo Lars von Trier, Dançando no Escuro foi mais inspirado na tradição dos musicais

europeus do que na tradição hollywoodiana, ―no que concerne à sua ideia e conceito e também no que

se refere aos temas sociais‖ (TRIER, 2003:163).

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maneiras: por intermédio dos diálogos, das cenas de canto e também das sequências em que

Selma e Kathy vão ao cinema.

Os musicais são temas dos diálogos entre as personagens em diversos momentos

do filme. A sequência em que Jeff e Selma conversam sobre os musicais e Jeff diz que não

entende por que, nesses filmes, as pessoas começam a cantar e dançar de repente. A cena em

que Selma conversa com seu chefe na fábrica e diz que prefere os musicais hollywoodianos

aos musicais da então Checoslováquia também está entre as diversas situações que explicitam

isso. Ou quando Selma pede para que Gene leia o roteiro de Noviça Rebelde, que ela está

ensaiando e, ao perguntar o significado de uma palavra que está no roteiro, Gene, entediado,

retruca: ―é o seu musical idiota‖.

No filme, Selma e Kathy vão ao cinema duas vezes e nas duas situações assistem a

musicais, o que ajuda a corroborar a metalinguagem presente na obra. A primeira vez Selma

afirma que adora quando as personagens dançam e parecem felizes, o que denota sua

tendência a idealizar a felicidade representada por tais musicais e, por extensão, pelo modelo

de vida americano. Na segunda vez que vão ao cinema, elas assistem a um clássico musical

de Busby Berkeley.

Outra cena ilustrativa é a aquela em que Selma canta uma canção cuja temática faz

referência ao universo dos musicais e cujo refrão afirma o tempo todo que aquilo se trata de

um musical:

Por que amo tanto isso?

Que tipo de magia é essa?

É apenas mais um musical

Ninguém se importa se estou me divertindo

E sempre tem alguém para me segurar,

quando eu caio

Tal cena acontece quando Selma está para ser presa pelo assassinato e se imagina

em uma cena de um musical, como forma de contornar, em sua imaginação, a gravidade da

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situação em que se encontra, pois diz, em outro momento do filme, que gosta de musicais

porque neles nada de terrível acontece. Aqui a ironia trágica do filme também de insinua.

Além disso, no seu canto, Selma faz alusão ao mundo dos musicais e aos números de dança,

em que o bailarino, protetor, sempre está de prontidão para segurar a bailarina. No caso de

Selma, quem a segura quando ela cai são os policiais que estão ali para prendê-la:

4.5 O cinema de poesia e a reflexividade

É muito marcante na obra analisada a presença de uma metalinguagem, ou seja, o

filme constantemente se volta para seus mecanismos de feitura — com amparo na

experimentação visual e no despojamento de uma estética natural-ilusionista, características

defendidas pelo Dogma 95 — e para o fato de ser um musical. Esses elementos indicam a

presença de uma autorreferencialidade ou reflexividade, sendo categorias que, segundo Stam,

são pertinentes à produção audiovisual da contemporaneidade. Isso decorre do fato de o

filme, sendo um musical que se reporta à temática dos musicais em seu enredo e dialogando

com temas incomuns em musicais (como a pena de morte, por exemplo), apresenta uma

―autoconsciência metodológica‖ e ―uma tendência a investigar os próprios meios‖ (STAM,

2006: 174). Essa reflexividade, no entanto, assegura Stam (2006: 176), não deve ser

considerada como característica negada ao cinema de ficção clássico, visto que o ―ilusionismo

jamais foi monoliticamente dominante mesmo no cinema de ficção mainstream‖, sendo

também marcado por ―lacunas e fissuras em seu ilusionismo‖ (idem, 2006: 176).

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A estética asséptica do Dogma 9577

, mais evidente nas cenas correspondentes aos

momentos de ―vigília‖ de Selma, é, de certa maneira, uma herança do legado do cinema

moderno (como o neorrealismo e o cinema-verdade) em seu contraponto ao cinema clássico

hollywoodiano, no que concerne a um ―gosto pela verdade mais ou menos documental‖

(MARIE; JULLIER, 2009:153). Essa ―recusa‖ em mentir, segundo Marie e Jullier, ―conduz

frequentemente os cineastas à reflexão (eles encenam o próprio recurso do cinema) e ao

distanciamento (uma técnica que vem do teatro de Bertold Brech e que consiste em impedir o

espectador de ser demasiado absorvido no mundo alcochoado da ficção)‖ (idem, 2009:153).

Tal reflexividade, como capacidade da obra de pensar-se a si mesma, também

aproxima Dançando no Escuro do sentido de cinema de poesia de que trata Pasolini. Um

desses elementos é o destaque conferido à subjetividade de Selma – por meio de seus

devaneios –, canal de exposição também da visão de Lars von Trier. A evidenciação da

esfera do imaginário de Selma é um procedimento de subjetivação, ao dar maior vazão à

visão de mundo da personagem, tornando-a assim mais complexa psicologicamente. No

cinema de poesia, a subjetividade da personagem é posta em relevo, introduzindo elementos

estranhos à trama com a função de autoexpressão tanto da personagem quanto do diretor da

obra, isso sendo externado para a própria linguagem fílmica: ―O estado emocional da

personagem (geralmente sofredora de alguma perturbação) serve como pretexto ao cineasta

para uma exploração, no mais das vezes formalista, da linguagem cinematográfica‖

(SAVERNINI, 2004:45). No cinema de poesia, esses momentos de evidenciação da

subjetividade do personagem são detectados ―pelos aspectos formais das sequências em que a

ruptura acontece, isto é, onde ocorre o emprego sensível da técnica‖ (Cf. SAVERNINI, 2004:

115). Em Dançando no Escuro a intromissão da subjetividade da protagonista no enredo é

feita por meio da montagem e dos cortes bruscos que fazem a transição, a ruptura entre as

cenas da ―realidade‖ e os delírios de Selma. A montagem é evidenciada78

, não se tratando de

uma montagem invisível como a montagem do cinema clássico, que presa por produzir uma

77

O filme Dançando no Escuro não pode ser considerado, no entanto, uma obra típica do Dogma 95

(embora apresente alguns elementos), pois contém características proibidas pelo manifesto, como o

fato de ser um filme de gênero; possuir uma trilha sonora produzida à parte das filmagens; ter sido

filmado por intermédio de uma infinidade de câmeras, enfim, ser uma superprodução.

78 Outro exemplo da evidenciação da montagem, de sua opacidade, está no uso constante dos

chamados ―cortes de salto‖, ou seja, cortes realizados em um mesmo quadro ou plano, em que o

cenário e as personagens se mantêm os mesmos. Tal recurso dá a impressão de que o filme acabou e

tiveram de ―colar‖ um filme ao outro.

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ilusão de continuidade e transparência. A mudança na fotografia fílmica também é fator de

diferenciação entre os momentos de delírio e as demais cenas. Dessa maneira, a subjetividade

da personagem influencia ―a construção narrativa, tanto no que se refere à ordenação e

revelação das informações, quanto na visibilidade empregada‖ (SAVERNINI, 2004: 16).

Outros indícios da presença de índices de um cinema de poesia em Dançando no

Escuro está na alternância dos planos subjetivos da personagem (sob o ponto de vista dela, ou

seja, faz uso do recurso da subjetiva indireta livre) e os planos em que a câmera a enfoca.

Como exemplo disso temos a cena em que Selma, no seu devaneio após matar Bill, olha

através da janela. Em seguida, a câmera se posiciona na perspectiva do olhar de Selma, e o

que aparece é Gene andando de bicicleta lá embaixo, como se estivéssemos vendo aquilo

através dos olhos de Selma. Nesses exemplos, o uso do plano subjetivo, próprio de um

cinema mais experimental, coincide com outro recurso cinematográfico, o raccord de olhar,

mais afeito à montagem de continuidade propagada pelo cinema clássico. No raccord de

olhar, ―o espectador é, o tempo de um olhar, colocado em relação direta com a subjetividade

de um personagem, e essa coincidência momentânea, um dos agentes mais sólidos da

identificação, é um dos meios de inclusão do sujeito espectador na narrativa fílmica‖

(AUMONT; MARIE, 2003:252).

Selma olha através da janela Em seguida, a câmera enquadra Gene do lado de fora

(subjetiva indireta livre).

Outros exemplos de enquadramentos de câmera intimamente casados com a ação

das personagens e seu estado de alma estão nos muitos exemplos de utilização de câmera alta,

em que a ação é filmada de cima, como que de um ponto de vista ―divino‖ ou como se a ação

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da personagem estivesse sendo reconhecida ou ―redimida‖, ao ser vista de fora (Cf. MARIE ;

JULLIER, 2009:61). Os quatro planos abaixo são também excertos da sequência de devaneio

após o assassinato de Bill. O primeiro plano exibe Selma no momento em que pede

―desculpas‖ a Bill. O segundo quadro mostra Selma correndo atrás de Gene – como a afirmar

que tudo o que fez decorre do seu amor pelo filho. O terceiro exibe Selma vista de cima logo

após o assassinato e a última exibe a protagonista olhando para a bandeira dos EUA, prestes a

contar para Linda que matou seu marido. O destaque dado à bandeira dos Estados Unidos

possui um apelo simbólico, representa as expectativas de Selma, agora estremecidas, em

relação ao modo de vida estadunidense, ou pode representar também um prenúncio da sanção

da Justiça que Selma virar a sofrer.

As nuanças da fotografia utilizada no filme podem ser consideradas pontos de

indeterminação (segundo a nomenclatura de Pasolini), ou seja, aberturas presentes nos filmes

que podem ser preenchidas de sentido pelo espectador, outra característica do cinema de

poesia e da reflexividade inerente ao filme. Enquanto na vida ―real‖ de Selma, a fotografia do

filme possui tons pastéis, melancólicos, esmaecidos, e as imagens são ―sujas‖ (buscando

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exprimir certo ―realismo‖ nisso), as cenas de musical, em contrapartida, possuem cores

quentes e vibrantes, remetendo à plasticidade e à intensidade de cores proporcionadas pelo

uso do technicolor empregado no cinema hollywoodiano dos anos 1950, conseqüentemente

nos musicais clássicos do período. Segundo Lars von Trier, a razão de ser dessas nuanças está

na função de fazer a distinção de dois ―níveis de realidade‖ (TRIER, 2003: 149). Essas

nuanças, no entanto, também podem dar margem a variadas interpretações. Podem indicar

talvez uma crítica à felicidade propalada pelos musicais clássicos hollywoodianos79

, pois as

cenas de musical em Dançando no Escuro possuem cores muito saturadas, como que a

denunciarem um exagero ou descompasso; ou o excesso de cores pode remeter ao estado

devaneante de Selma, que em sua imaginação vê o mundo em carregadas tintas. Outros

pontos de indeterminação no filme, que dão margem à interpretação do espectador e um tom

poético à obra, se encontram na cena em que Selma dança no trem e em determinado

momento fala algo em uma língua estranha – fala que não é traduzida – e, nessa mesma cena,

em uma das vezes em que fala que não se importa de não mais poder ver, Selma, sem mais

explicações, realiza uma movimentação que se assemelha ao gestual da linguagem de sinais.

Os dizeres que, silenciosamente, aparecem ao final do filme – ―Dizem que é a

última canção, mas eles não nos conhecem. Só será a última canção, se deixarmos que seja‖ –,

remetendo à fala de Selma ao dizer que não gosta dos finais dos musicais, também são uma

marca da subjetividade do diretor presente no filme, como um filme subterrâneo (segundo a

visão do cinema de poesia) que ali também reside, ao mesmo tempo em que ressoa como um

coro trágico ou uma espécie de voz representativa de uma coletividade. Pode ser a expressão

de um tom político subjacente à obra, como pode possuir também tantas outras possibilidades

de análise. Trata-se, em suma, de um mais um elemento na obra que poeticamente se abre

para a livre interpretação e imaginação do espectador.

79

Embora o próprio Lars von Trier seja um fã confesso do gênero, principalmente de Sigin’ in the rain

(Cf. TRIER, 2003: 147)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta pesquisa uma das constatações que podemos assinalar com maior

acurácia em torno da ideia do trágico é que é mais fácil afirmar o que ele não é do que tecer

considerações definitivas sobre suas demarcações, haja vista a complexidade do fenômeno e a

pluralidade de visões e teorias que se debruçaram sobre seu estudo. Muitos autores apontaram

para a dificuldade de sua conceituação – Bornheim, Williams, Szondi, Xavier.

Consequentemente, entendemos que o encontro entre o trágico e o lírico – o que

denominamos livremente como poeticidade trágica – é algo que também não é passível de ser

sintetizado em um conceito fechado. Definimos o termo poeticidade trágica como o encontro

do trágico com o lírico e vice-versa, visto que enxergamos nesta pesquisa o lírico como algo

que diz respeito intimamente ao poético. Vimos ao longo deste trabalho que vários autores o

consideram como essência da poesia e como o mais subjetivo dos gêneros.

Vimos que o lírico confere intensidade poética e subjetividade ao trágico, partindo

da trajetória do herói e sua visão de mundo, profundidade lírico-trágica que pode atravessar o

caminho de heróis de naturezas as mais diversas: seja um rei de uma cidade-estado da Grécia

antiga ou uma operária cega nos Estados Unidos do século XX. O sentimento trágico é, assim,

algo universal, por mais que sejam mutantes a natureza do herói e os contextos onde ele possa

estar inserido. O encontro entre o trágico e o lírico se encontra, de maneira geral, presente na

própria linguagem do herói, plena de imagens metafóricas, embora Aristóteles não tenha

posto essa característica como de maior relevância na constituição da tragédia, sendo, para o

filósofo, a concatenação das ações seu principal elemento. O lírico se apresenta de modo mais

evidente nas tragédias após os heróis incorrerem em suas hamartias, quando, em meio ao seu

devaneio e dilema ético, proferem discursos que exibem a mundivisão do herói trágico,

ganhando em status literário e poético.

Considera-se que a argumentação desenvolvida no decorrer desta pesquisa pode

contribuir para uma concepção do trágico que abrigue poéticas e filosofias passíveis de se

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manifestarem também na modernidade e na contemporaneidade. Que essa concepção não seja

unívoca, no sentido de não estar eminentemente atrelada a uma teoria específica, e abarque as

mais diversas acepções do trágico – como neste trabalho o enxergamos na perspectiva do

lírico, em um meio de massa como o cinema –, comportando assim uma relativização e

desvencilhando a tragédia das amarras que a ligam ao castrador epíteto de ―gênero nobre‖.

Vimos que, enquanto há autores defensores dos variados usos –, inclusive os mais

corriqueiros – e interpretações acerca do trágico, como Williams, há autores que os veem com

desconfiança, a exemplo de Bornheim, e outros, como Xavier, que reconhecem a necessidade

de uma relativização do termo na modernidade, ponderando, no entanto, os usos mais

coloquiais e pertinentes ao senso comum, como os que associam o termo a uma

espetacularização da imagem.

Reconhecemos as possíveis limitações deste trabalho, no sentido de que

empreende uma análise do trágico e suas reverberações no cinema contemporâneo tendo

como corpus de análise uma única obra cinematográfica. Entendemos, porém, que a riqueza

da obra e sua oferta de possibilidades de análise da tragédia e do trágico em suas imbricações

com o lírico superam tais limitações, além do que as análises de outros filmes da

cinematografia recente se prestam a que o estudo do filme Dançando no Escuro não se torne

algo isolado e fora de contexto.

Apesar dessa dificuldade de conceituação acerca do trágico, percebemos, com a

leitura dos filósofos do trágico e comentadores das tragédias, elementos que podem ser

caracterizadores de uma conformação trágica, constituintes do trágico. Em linhas gerais, esses

elementos são a presença de um dilema ético interior – após cometer sua hamartia –

concernente ao herói; em relação ao seu ethos, o herói trágico não deve ser absolutamente

bom ou absolutamente mal, devendo possuir, no entanto, uma certa grandeza e

excepcionalidade80

; os desenlaces são geralmente infelizes – o sacrifício do herói não sendo

condição preponderante para a existência do trágico –, pois o herói passa da ventura à desdita,

segundo o preceito aristotélico; a questão da impossibilidade de o ser humano alcançar

determinada meta, ou seja, a característica irreconciliável do conflito trágico; a presença de

uma ironia trágica, traduzida na premissa de ser a busca pela salvação justamente o encontro

80

Para Aristóteles, como vimos, as personagens trágicas são sempre melhores (ao contrário das da

comédia, sempre piores) do que nós, isso não significando um caráter exemplar, mas uma grandeza

que se configura na hybris. Essa grandeza corresponde à intensidade de suas paixões, qualidades e

defeitos, sendo alguém acima da média comum.

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com a ruína. Essa ironia trágica é fruto da coincidentia oppositorum inerente ao trágico, como

nos lembraram Nietzsche e Maffesoli. Como vimos, essa coincidentia oppositorum se

encontra na ―força dos contrários simultâneos‖ (PUCHEU, 2010: 133) que habita a

paradigmática trajetória edipiana – revisitada ao longo deste trabalho –, bem como está

presente na trajetória de Selma, a heroína trágica de Dançando no Escuro. Entre os temas

transversais que podem ser prospectados de uma abordagem trágica, está a temática do exílio,

ou seja, a condição de desterro do herói, configurando-se não somente como um exílio de

lugar, mas também um exílio de si. Vimos também que tanto o poético como o trágico –

também como manifestação poética e lírica – em seu alcance ontológico e adensamento do

ser-no-mundo, são um caminho para o aberto, segundo a visão de Heidegger, como expressão

de uma exposição ao risco da existência e consciência do inescapável de nossa finitude.

Embora reconhecendo a importância da Poética aristotélica, nos foi necessária a

opção por um distanciamento crítico em relação aos parâmetros a ela concernentes, como uma

forma de, indo além de seu caráter normativo-descritivo, poder pensar o trágico de maneira

mais maleável e podendo assim tecer aproximações com o lírico, silenciado na obra

aristotélica. O panorama geral do movimento idealista alemão realizado na pesquisa foi

necessário para a elucidação dos mais diversos vieses que o trágico pôde adquirir na visão dos

filósofos tributários desse movimento, que foi além do legado aristotélico, ao pensar o trágico

também como princípio filosófico, ou seja, não necessariamente ligado ao gênero teatral, e ao

dar mais atenção às relações que podem ser entretecidas do trágico com o lírico,

principalmente com suporte em Nietzsche.

Lançamo-nos ao desafio de identificar elementos do trágico não somente nas

searas em que ele é habitualmente estudado (literatura e teatro), mas principalmente no

cinema. A adaptação do trágico ao cinema se deu sob a forma de melodrama, perdendo assim

características definidoras e importantes, como a natureza irreconciliável do conflito trágico.

As tragédias modernas não abrem espaço para a existência de uma redenção

divina ou consolo metafísico81

transcendente ao homem, embora haja autores que defendem

uma espécie de compensação metafísica à desdita do herói, como Nietzsche. Segundo

Nietzsche, tal compensação na modernidade se converteu em uma compensação terrena, sob a

81

Embora haja exceções, ainda que de cunho irônico, como a cruel morte de Bess (em Ondas do

Destino) seguida por sinos badalando além dos céus, a ―santificarem‖ seu sacrifício. Tal artifício se

configura mais como crítica às promessas de redenção divina de cunho religioso.

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forma de final feliz. Já para autores como Steiner, como vimos, qualquer espécie de consolo

ou compensação deve ser evitado na tragédia. Segundo ele, o cinema é o território por

excelência das compensações ao sofrimento do herói.

Os heróis das tragédias adaptadas aos nossos dias não são mais regidos pela

ingerência divina – como os heróis das tragédias clássicas –; o acaso e o livre-arbítrio

permeiam suas trajetórias. Também não estão necessariamente ligados a uma classe social

privilegiada ou aristocracia. O herói podendo ser um estudante sem rumo em São Petersburgo

(Raskólnikov, Crime e Castigo, 1886); uma mulher desiludida (Ana Karenina, 1873) ou um

irmão acometido por uma paixão incestuosa (André, Lavoura Arcaica, 1989). Ou, no caso do

cinema, uma operária cega (Selma), um imigrante iraniano deslocado em solo americano

(Berahni, Casa de Areia e Névoa), um fracassado jogador de tênis aspirante a bon vivant

(Chris Wilton, Macht Point) ou um ex-combatente da guerra da Coreia (Kowalski, Gran

torino). Além disso, o herói não necessariamente deve transitar de uma situação de plena

ventura à desdita – como prega Aristóteles –, pois sua condição problemática muitas vezes já

o habita desde o princípio – como Kowalski, que imagina que todos são seus inimigos em

potencial – e muitas vezes almejam algo que lhes falta, não são plenamente completos ou

realizados: Selma trabalha em condições arriscadas em uma fábrica para salvar o filho;

Berahni vive das memórias dos tempos de pujança em Teerã e tenta recuperar algo desse

prestígio em solo americano; Cris vive obcecado por Nola e não desiste enquanto não

concretiza a todo custo seus planos de alpinismo social.

Em torno da conjunção entre o trágico e o lírico no cinema, percebemos que

existem filmes de enredo trágico com um acento eminentemente lírico, ou seja, detentores de

um traço estilístico voltado para o lírico (como analisa Rosenfeld, porém no contexto

literário) e filmes de enredo trágico que não possuem um traço lírico acentuado. O lírico pode

estar manifesto nas obras cinematográficas sob a forma de metáforas visuais presentes na

imagem cinematográfica ou por meio do próprio discurso do herói trágico, como é o caso de

Casa de Areia e Névoa. Além desses recursos, o lírico pode emergir nas obras

cinematográficas com base também em recursos próprios do cinema de poesia, como é o caso

de Dançando no Escuro, que assim intensificam o caráter lírico da obra. Nesse caso, o próprio

modo de filmar contribui na construção de um sentido lírico-subjetivo: a presença de

metáforas estilísticas, a montagem evidenciada (ao contrário da montagem invisível do

cinema clássico hollywoodiano); os enquadramentos diferenciados; os posicionamentos de

câmera; os usos da câmera subjetiva indireta livre; a protagonista como porta-voz do autor

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cinematográfico. Dançando no Escuro, como vimos, é um exemplo modelar de atualização do

trágico e de seu encontro com o lírico no sentido que abordamos nesta pesquisa: o lírico sendo

visto como expressão de um ―estado de alma‖, mas também como dimensão ontológica, que

diz algo sobre os fundamentos do ser e o mundo e, nesse dizer, se aproxima do trágico e sua

intimidade com os abismos. Os delírios de Selma não dizem algo somente sobre sua

intimidade, mas, em sua intensidade poética e trágica, dizem também algo de universal. Nas

metáforas, ―pontos de indeterminação‖ e aberturas encontrados em Dançando no Escuro –

tanto os presentes na própria imagem e montagem fílmicas quanto as embutidas no discurso

de Selma – enxergamos formas de expressão da visão de mundo da personagem e do diretor

Lars von Trier, o que denota a presença de índices de um cinema de poesia propostos por

Pasolini e Savernini e apontam para a existência do lírico na obra.

O que denominamos como poeticidade trágica – o estudo do trágico sob a

perspectiva do lírico, mais especificamente no filme Dançando no Escuro, e que buscamos

analisar em outras obras da cinematografia atual – foi visto como uma dinâmica, não um

conceito fechado, mas sim como um construto estético e filosófico capaz de realçar o poético

(sob a forma do lírico) presente no trágico. Esse encontro se configurou como forma de se

enriquecer a compreensão sobre ambos os conceitos, fornecendo assim novas possibilidades

de interpretação sobre o fenômeno trágico, principal foco dessa pesquisa.

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Chastity)<http://www.dogme95.dk/the_vow/vow.html> Acesso em : 05.mar.2007.

XAVIER, Ismail; BERNADET, Jean-Claude; ABREU, Luís Alberto; AMARAL, Tata.

Cinema e Tragédia. In: revista Estudos de Cinema, n° 1. São Paulo: PUC, 1998.

XAVIER, Ismail . O Olhar e a Cena. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.

XAVIER, Ismail . O Discurso Cinematográfico. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

ZAMBRANO, Maria. A Metáfora do Coração e outros escritos. Lisboa: ed. Assírio

& Alvim, 2000.

Page 153: POETICIDADE TRÁGICA DE DANÇANDO NO ESCURO EM …repositorio.unb.br/bitstream/10482/7973/1/2010_MariaLinaCarneiro... · um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio

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Filmografia

CASA de Areia e Névoa (House of Sand and Fog). Direção: Vadim Perelman. Roteiro:

Produção: Intérpretes: Jennifer Connely, Bem Kingsley, Shohreh Aghdashloo, Ron Eldard,

Frances Fisher, 2003. Ficção, 126 min, 35mm; cor. Estados Unidos.

DANÇANDO no Escuro (Dancer in the Dark). Direção: Lars von Trier. Roteiro: Lars von

Trier. Produção: Vibeke Windelov. Intérpretes: Björk, David Morse, Catherine Deneuve,

Cara Seymour, Peter Stormare, Vladica Kostic. 2000. Ficção,139 min,35mm; cor. Dinamarca;

Suécia; França; Holanda; Itália.

GRAN Torino (Gran Torino). Direção: Clint Eastwood. Roteiro: Nick Schenk, baseado na

estória de Dave Johansson e Nick Schenk. Intérpretes: Clint Eastwood, Christopher Carley,

Bee Vang, Ahney Her, Brian Haley, 2008. Ficção, 116 min, 35 mm, cor. Drama. Austrália,

Estados Unidos.

MATCH Point (Match Point). Direção: Woody Allen. Roteiro: Wood Allen. Intérpretes:

Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Emily Mortimer, Brian Fox, Alexander Armstrong, 2005.

Ficção, 124 min, 35 mm, cor. Luxemburgo, EUA.

ONDAS do Destino (Breaking the Waves). Direção: Lars von Trier. Roteiro: Lars von Trier,

Peter Asmussen. Intérpretes: Stellar Skarsgard, Katrin Cartlidge, Emily Watson, 1996.

Dinamarca, França, Suécia, Holanda, Islândia.