Polifonia Na Metropole

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    Polifonia na metrpole:

    histria e msica popular emSo Paulo

    Jos Geraldo Vinci de Moraes*

    A cidade de So Paulo apresentava, desde o incio do sculo, um cenrio

    musical bastante fragmentado e de mltiplas caractersticas, acompanhando oritmo geral de suas transformaes sociais e culturais. Marcada pelas transiese pelas fuses entre as tradies musicais das festas populares religiosas/profa-nas rurais, a cultura negra africana e a dos imigrantes (principalmente italianos),a msica popular em So Paulo comeou a ser produzida e divulgada por umaextensa e crescente estrutura de difuso, que revelava e apontava para um certocosmopolitismo.1

    Entre o final dos anos 20 e, principalmente, durante a dcada de 1930, a

    cidade passou por novas e profundas transformaes, e as atividades vinculadas msica popular ali presentes acompanharam essas mudanas e com ela cola-boraram. Refundada nos anos 30, So Paulo deixou a metrpole do cafesquecida no passado. A velha cidade rapidamente se degradou ou foi total-mente destruda, para dar lugar a outra, com uma nova face, que a marcariadefinitivamente: a da cidade que no pra. Automvel, avenidas, fluidez, expan-

    *Professor Doutor do Instituto de Artes da UNESP.1Nicolau Sevcenko, Orfeu exttico na metrpole,SP, Cia. Das letras, 1992, e Jos Geraldo Vinci

    de Moraes, Sonoridades Paulistanas. A Msica popular em So Paulo (fins do sculo XIX inciodo XX), RJ/SP Funarte/Bienal, 1997.

    Tempo, Rio de Janeiro, no10, pp. 39-62.

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    so, indstrias, metropolizao, verticalizao etc. foram alguns dos conceitos edas realidades que tomaram conta da cidade a partir dos anos 30. Assim, nessapoca, So Paulo definiu os caminhos de seu futuro, mas os custos para ergueressa outra cidade no foram pequenos e no tardariam a aparecer as mais pro-fundas contradies. Uma delas, Wolfgang Harnisch percebeu logo, em 1938,quando disse que essa cidade no tem tempo para pensar em tradies, no seimporta em conservar testemunhas de sua evoluo.2Gradativamente,sedimentou-se no imaginrio dos paulistanos dos anos 30 a noo da cidade queno pra de transformar-se, fugindo do olhar e da vida de seus habitantes, reju-venescendo eternamente. Seguindo na mesma linha, Claude Lvi-Strauss afir-mou, em 1935, que So Paulo era uma cidade de ciclo rpido, perpetuamentejovem e, por isso, nunca completamente s.3

    Os impactos gerais da cidade que no pra e as mudanas provocadaspelo novo cenrio cultural, fundado nos valores urbanos e na tecnologia, ti-veram um carter bem peculiar, principalmente no processo de diversifica-o e de circulao das novas culturas populares urbanas e nos meios de pro-duo e difuso de massa. De maneira geral, as alteraes da realidade hist-rico-cultural foram bastante ambguas, sobretudo na msica popular. De umlado, a imposio de modelos e modas, restries e orientaes, massificaoe fragmentao gradativamente se tornava regra e apontava para a mercanti-lizao e para o consumo rpido e uniformizado da nova cultura popular ur-bana. De outro lado, a formulao de novas temticas e sensibilidades musi-cais, a profissionalizao dos artistas populares, a possibilidade de realizaoartstica nos diversos campos e meios de difuso, a expanso da difuso cul-tural favoreciam a diversificao e a multiplicao de uma rica cultura popu-lar urbana, ainda em construo. Esse processo, repleto de contradies eambigidades, foi muito bem captado, nos anos 30, pela radiofonia paulistana.4

    Circulando por essa trilha inusitada e cheia de dissonncias e ritmos diver-sos, as formas de produo e difuso da msica popular em So Paulo foram-se erguendo e se expandindo. E so justamente alguns desses aspectos queveremos a seguir.

    2Wolfgang H. Harnisch, O Brasil que Eu Vi. Retrato de uma Potncia Tropical, Cia. Melhora-mentos, SP, 1939, p.96.3Claude Lvi-Strauss, Tristes Trpicos, SP, Ed. Anhembi Ltda., 1957.4Jos Geraldo Vinci de Moraes, Sinfonia na metrpole: histria, cultura e msica popular em So

    Paulo (anos 30), SP, Ed. Estao Liberdade/Fapesp, 2000, e A Cidade de So Paulo: culturae msica popular no ar,Revista Histria, vols. 17/18, Editora da Unesp, SP, 1998/1999.

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    Polifonia na metrpole: histria e msica popular em So Paulo

    A mistura da cul tura rur al e da urbana em So Paulo: a msica

    sertaneja

    No Brasil, nas primeiras dcadas deste sculo, os debates sobre a rele-vncia da cultura/msica rural e seu papel marcante na construo da culturanacional ocuparam a maior parte de nossos intelectuais e artistas, dos moder-nistas principalmente. Elas eram encaradas como parte das mais autnticastradies folclricase, portanto, expresses das mais puras referncias da cul-tura nacional e do homem brasileiro. Essa interpretao revelava os senti-mentos ambguos de nossos autores e compositores com relao cultura

    popular, pois, se designava uma atitude de redescoberta do pas e estava,portanto, integrada ao projeto modernista, ao mesmo tempo ela se constituana tradio passadista, que queriam combater. Com relao msica, busca-va-se uma brasilidade modernista, que significava estabelecer ntimas re-laes entre o passado e o folclore com as linguagens europias mais contem-porneas, criando uma espcie de intertextualidade,5da qual Villa Lobosparece ser sua melhor expresso. Desta forma, o tradicional, o folclore e opopular foram gradativamente ocupando espao na modernidade e nas

    preocupaes dos modernistas brasileiros, sobretudo dos msicos, tornando-se um dos pontos principais do programa modernista.Nas grandes cidades em formao, no incio do sculo, como Rio de

    Janeiro, Recife e So Paulo, algumas dessas referncias rurais como os ba-tuques, os cururus e os sambas-de-roda influenciaram a formao de di-versos gneros da msica e da coreografia popular urbana, podendo seridentificadas no samba, no choro, no frevo e na msica sertaneja. No entan-to, com o desenvolvimento do universo urbano, a influncia da cultura rural

    sobre esses gneros tornou-se cada vez mais rarefeita, chegando muitas ve-zes a desaparecer totalmente. Parece, porm, que as referncias rurais con-seguiram manter, ainda que transformadas, boa parte de suas diversas for-mas e ritmos em ao menos um destes gneros, na msica caipira/sertaneja.

    Escapando aos padres convencionais, esperados tanto pela intelec-tualidade modernista como pela tradicional, as referncias rurais em So Paulose preservaram de modo bastante variado, sobretudo transformando-se e,muitas vezes, misturando-se com as novidades urbanas, produzindo algo di-

    5Arnaldo Contier, Modernismo e Brasilidade: Msica, Utopia e Tradio, Tempo e Histria,(org.) Adauto Novaes, SP, Cia. das Letras, 1992.

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    ferenciado e inovador, distante, portanto, dos modelos colocados tanto pelaintelectualidade como por certa boemia. Apontando para uma perspectivadiferente da mera preservao da cultura rural, as tenses e as convergnciasentre as culturas populares rurais e urbanas estabeleceram na cidade uma novacombinao social e cultural. Combinao bastante aceita pela populaopobre dos grandes centros e que o mercado fonogrfico e radiofnico emexpanso soube captar bem.

    Em So Paulo, nas dcadas de 1910 e 20, j havia certa divulgao dacultura sertaneja. Muito provavelmente, a moda sertaneja, originria dacapital do pas, influenciava essa divulgao, mas certamente a influncia do

    tom nativista e nacionalista, que comeava a se generalizar na poca, e as fortestradies da cultura regional paulista na capital tiveram papel relevante.Contudo, o modelo de sertanejo, entre os paulistanos, obviamente baseava-se nas tradies rurais caipiras e no nordestinas, como ocorria na capital daRepblica.

    No cenrio musical, Marcelo Tupinamb j era relativamente reconhe-cido na cidade por um pblico especializado e intelectualizado, em razode suas composies de gnero de melodia cabocla6e suas atividades no

    teatro, mas foi Cornlio Pires quem comeou de fato a divulgar e popularizaras manifestaes caipiras pela cidade. Da encenao, em 1910, de um vel-rio caipira e da exibio de causos e de dupla de violeiros no ColgioMackenzie, o sucesso de Cornlio Pires despontou rapidamente e de formainesperada para o autor. Nessa dcada, comeou a escrever em importantesjornais (O Estado de S. Paulo) e revistas (O Pirralho), publicou alguns livrosde verso e prosa e multiplicou suas palestras, pagas, pela cidade, misturandocausos com anedotas, sempre contadas em dialeto caipira. O tipo de es-

    pectador que freqentava suas apresentaes na capital era diversificado, masgeralmente variava entre a classe mdia e a elite ilustrada. Suas palestras econferncias humorsticas atingiram todo o Estado e alcanaram o Rio deJaneiro, para onde se mudou em 1917 e onde permaneceu at 1919. Na capi-tal federal, tambm obteve sucesso e dinheiro; alm disso, freqentou ativa-mente o movimentado ambiente bomio carioca e estabeleceu relaes comescritores, como Coelho Neto e Bastos Tigre. Nunca demais lembrar que,nesse perodo, se vivia, na capital da Repblica, aquela vaga sertaneja entreintelectuais nacionalistas e, por isso, ele foi bem acolhido por eles.

    6Mrio de Andrade, Msica de corao,Marcelo Tupinamb. Obra Musical de Fernando Lobo,Benedicto P. de Almeida, SP, Ed. do Autor, 1993, p. 155.

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    Apesar da boa presena de Marcelo Tupinamb e das iniciativas de CornlioPires, a denominada msica sertaneja somente ganhou grande impulso na cidadede So Paulo entre o final dos anos 20 e a dcada de 1930, principalmente pelofato de ela ter ingressado nas gravadoras e, logo em seguida, no rdio. Nesseperodo, as atividades desenvolvidas por Cornlio Pires tornaram-se incessantese marcantes no cenrio da cultura popular paulistana. Em 1929, criou a TurmaCaipira Cornlio Pires, composta por vrios cantores e duplas caipiras, tais comoSorocabinha, Mandi, Arlindo Santana, Zico Dias, entre outros, para realizar apre-sentaes musicais no interior e na capital.

    Nesse mesmo ano, Cornlio Pires tomou uma atitude inusitada no cenrio

    fonogrfico brasileiro. Como as empresas resistiam gravao da msica caipi-ra, por razes de ordem comercial, ele mesmo financiou o estdio e a prensagem,pela Colmbia, de cinco discos, com tiragem de cinco mil cada, totalizando vintee cinco mil unidades, uma quantidade considervel para a poca. A srie de dis-cos independentes, realizada pela Turma Caipira Cornlio Pires, foi vendidade mo em mo exclusivamente nas suas apresentaes pelo interior e pelacapital. Das duplas trazidas por ele a So Paulo, para apresentaes e grava-es, a que obteve resultado considervel, alcanando certo sucesso, foi a de

    Mandi(Manuel Rodrigues Loureno) e Sorocabinha(Olegrio Jos Godoy).O xito da srie caipira de Cornlio, gravada na Colmbia, estimulou o

    interesse das gravadoras concorrentes. Por isso, a RCA Victorcriou a TurmaCaipira da Victor, convidando Manoel Rodrigues Loureno, o Mandi, paraorganiz-la. Inicialmente, a Victorrealizou suas gravaes em Piracicaba, reu-nindo grupos, duplas e cantores na Escola Normal da cidade, onde Mandiera diretor. Mais tarde,Mandi e Sorocabinhacomearam a viajar periodicamen-te para gravar no Rio de Janeiro. O sucesso da dupla foi rpido e crescente,

    participando de diversas gravaes entre 1929 e 1937.Alm das gravadoras, os caipiras ocuparam tambm espao no rdio

    e no cinema. Aproveitando o momento favorvel, filmes de forte apelo po-pular e comercial (comoAcabaram-se os Otrios, com Gensio Arruda, e parti-cipao de Paraguassu, de 1929) foram lanados ao longo da dcada de 1930,tendo caipiras ou a temtica sertaneja como eixo central (tradio continua-da, de certa forma, por Mazzaropi). Em um sentido diferente, Cornlio Piresfilmou Vamos Passear, em 1934, uma espcie de documentrio da cultura cai-

    pira, que objetivava registrar sambas rurais, modas de viola, algumas danas, etc.,do qual participou boa parte de sua antiga Turma Caipira.

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    Diante dos incontveis xitos da cultura caipira na cidade, as emissorasde rdio comearam a organizar alguns programas, voltados para artistas e parapblicos crescentes. No transcorrer da dcada de 1930, a maioria delas j man-tinha em sua programao algum tipo de programa sertanejo, que geralmentevariava de esquetes humorsticos a msica sertaneja. Programas como NhTotico, Arraial da Curva Tortae Serra da Mantiqueirafaziam sucesso nasrdios paulistanas. Sorocabinha tambm teve seu prprio programa, entre 1936e 1940, naDifusora. Junto com suas filhas, ele cantava ao vivo e tocava os dis-cos sertanejos. Geralmente, as msicas sertanejas eram veiculadas por meio dediscos (Sorocabinha, por exemplo, conta que muitas vezes estava trabalhando

    foi operrio e trabalhou na hpica e escutava, assustado, suas msicas nordio), principalmente por dois motivos: primeiro, porque, apesar do crescimento,no havia na cidade msicos caipiras profissionalizados em nmero suficiente parase apresentarem nos vrios programas radiofnicos; e, segundo, porque era maisbarato para as emissoras tocarem os discos do que contratarem os msicos.

    Alguns programas, apesar de carregarem a identificao de caipira, ul-trapassavam esses limites, revelando parte do amplo espectro sociocultural dacidade, ao misturar personagens estrangeiros com caipiras e, por isso, alcanan-

    do bastante sucesso entre as camadas populares. Um dos fatores determinantespara a expanso e o sucesso dos discos, dos programas e dos artistas caipiras foio crescimento da populao migrante, vinda principalmente do interior do pas(SP, MG, NE, NO etc.), em busca de vida melhor na maior metrpole industrialda nao. Originrios da zona rural, o fluxo de migrantes j era maior que o deimigrantes nos anos 30. Esses novos desenraizados foram decisivos na forma-o e na ampliao do pblico e do mercado consumidor de msica sertaneja nacapital paulista da dcada de 1930, pois, muito provavelmente, identificavam-se

    com essa cultura/msica que tratava do universo rural.Desse modo, as duplas caipiras, os cantores e os programas sertanejos,

    raros na cidade at o incio dos anos 30, ampliavam os espaos nos novos meiosde comunicao, multiplicando-se de maneira surpreendente, invadindo r-dios, gravadoras e, conseqentemente, o cotidiano dos segmentos mais po-bres da cidade. Na esteira dessa agitao caipira, despontaram artistas quetransgrediriam os limites locais e regionais, alcanando reconhecimento nacio-nal, como Raul Torres e a dupla Alvarenga e Ranchinho. Na realidade, Raul

    Torres, filho de imigrantes espanhis, trabalhador de pequenos ofcios pelacidade (foi, por exemplo, cocheiro), desejando ingressar na vida artstica ra-

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    pidamente, comeou profissionalmente cantando msica nordestina (como j vi-mos, predominante nesse cenrio), principalmente emboladas. Depois que setornaria uma das primeiras referncias da msica sertaneja em So Paulo e nopas. A duplaAlvarenga e Ranchinhotambm seguiu trajetria especial: vindosde Santos, contavam histrias e cantavam tangos, canes e modas sertanejasem circos e, a convite do maestro Breno Rossi, naRdio So Paulo. J conhe-cidos na capital paulista, foram, ao lado de Capito Furtado, para o Rio de Janei-ro, contratados pelaRdioTupicarioca. Como integrantes do elenco do Cassi-no da Urca(1937), a dupla alcanou enorme sucesso nacional com suas msi-cas sertanejas, mas principalmente com as pardias e as stiras polticas. Po-

    rm, somente em 1943, impulsionada pelo binmio rdio/disco, surgiria a primei-ra dupla caipira conhecida nacionalmente e que apresentava as caractersti-cas (ou o esteretipo) que consagrariam a todas: Tonico e Tinoco. Descobertosno programa de Capito Furtado, Arraial da Curva Torta, os irmos Perez7

    foram batizados com seus novos nomes pelo apresentador, iniciando uma carreiravitoriosa na vendagem de discos durante dcadas.

    Toda a efervescncia inicial em torno da msica sertaneja (espetcu-los, discos, rdio, programas sertanejos) foi bastante significativa, marcando

    definitivamente a memria cultural e musical da cidade. O instrumentistade choro Baro identificou uma espcie de modismo, nos finais da dcada de1920, em torno da moda de viola e de Cornlio Pires.Sorocabinha reforaessamesma sensao, ao afirmar que, na dcada de 1930, a msica sertaneja faziamuito sucesso em So Paulo.8

    Alm da expanso e da relativa moda sertaneja/caipira, so profunda-mente significativas as novas relaes e interseces que comeavam a esta-belecer com outros segmentos culturais na cidade. Na realidade, poucas ci-

    dades tiveram a oportunidade de realizar essa troca de experincias culturaisem dimenses to relevantes. Numa cidade povoada de estrangeiros de di-versas origens, sobretudo italianos, a msica sertaneja encontrou em muitos imi-grantes a disposio afetiva e musical para compor e difundir esse tipo de msi-ca. O primeiro cruzamento entre a msica popular sertaneja e as referncias ita-lianas foi inicialmente estabelecido por Roque Ricciardi, o Paraguassu. Segui-

    7Joo Salvador Prez (So Manuel, 1919-1994)/Tonico, e Jos Prez (Botucatu, 1920)/Tinoco.8J. L. Ferrete confirma que, em 1936, a msica caipira j havia conquistado bastante espao

    e a moda de viola comeava a predominar em relao aos outros gneros. J. L. Ferrete, Capi-toFurtado. Viola caipira ou sertaneja?, MinC-Funarte, RJ, 1985. Ver tambm Depoimentosde Baro e de Sorocabinha, Arquivo MIS-SP.

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    ram, posteriormente, nessa mesma linha, inmeros italianos e descendentes, comoAstenori Marigliani e Giuseppe Rielli.9Dessa forma, ao permitir relaes e con-tatos entre a cultura popular italiana e a caipira, So Paulo construa incessante-mente sua vocao de grande palco de misturas e cruzamentos das culturaspopulares urbanas, revelando-o e dando escoamento ao intenso cosmopolitismoinformal existente nos bairros, nas casas e nas ruas da cidade.

    Alm disso, a sensao quase diria de saudade, presente de forma muitointensa em uma cidade que se reconstrua incessantemente, refletia-se na cultu-ra urbana paulistana. Saudade de uma cidade que j no existia mais e que, aomodernizar-se, dificultava o enraizamento de seus habitantes. Saudade das pe-

    quenas cidades do interior e da vida do campo, mais natural e saudvel, percep-es fortemente enraizadas na cultura caipira. Saudades de um tempo idlico,perdido em algum lugar do passado recente ou remoto.10Essas sensaes inte-graram-se definitivamente ao cotidiano dos paulistanos nessa dcada de 1930,revelando-se nas formas que a cultura popular urbana assumia na cidade, princi-palmente por meio da msica sertaneja.

    O final dos anos 20 e a dcada de 1930 constituram, portanto, o pero-do de formao daquilo que se denomina hoje de msica sertaneja. Nessa

    poca, certos traos da cultura caipira tradicional comearam a ser populari-zados pelos meios de divulgao de massa, transformando-se, adquirindo, aospoucos, tons mais urbanos. No incio, os produtores e os divulgadores damsica caipira eram exclusivamente pessoas vindas do interior, que canta-vam as modas de viola, em duplas e com tom anasalado, sobre intervalos detera, caractersticas das duplas caipiras at hoje. Na passagem da dcadade 1930 para a de 40, a msica sertaneja, j estabelecida como um fenmenodos meios de comunicao eletrnicos, comeou a ser feita por artistas das

    mais variadas procedncias, at mesmo por estrangeiros, ento residentes nacapital. Para Sorocabinha, essa rpida expanso descaracterizou aquilo queele considerava como msica sertaneja. Apesar de os precursores da msicasertaneja perderem espao na mdia, durante a dcada de 1940 (como Cornlio,Sorocabinha, Mandi etc.), o pblico consumidor da cidade tornava-se, por diver-sas razes, cada vez mais amplo.

    9Respectivamente, Capito Barduno, paulistano nascido em 1904, e Jos Rielli, nascido naItlia, em 1885; chegou ao Brasil em 1891.10Raymond Williams,A Cidade e o Campo. Na Histria e na Literatura, SP, Cia das Letras, 1989.

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    Srgio Buarque de Holanda salientou, em meados da dcada de 1930, demodo esclarecedor, que o desenvolvimento da urbanizao

    no resulta unicamente do crescimento das cidades, mas tambm do crescimentodos meios de comunicao [que], atraindo vastas reas rurais para a esfera dainfluncia das cidades, ia acarretar um desequilbrio social, cujos efeitos permane-cem vivos ainda hoje.11

    Na realidade, os desequilbrios ocasionados pelo vnculo entre urbaniza-o e meios de comunicao criaram novas relaes afetivas, mercados consu-midores e produziram e/ou metamorfosearam uma cultura rural/sertaneja, cujos

    efeitos ainda esto vivos.O quadro social e cultural nesse perodo foi, de maneira geral, caracte-rizado por desequilbrios de toda ordem (poltica, social, cultural, tecnolgicaetc.). Em primeiro lugar, a populao interiorana de diversas origens cresciana capital, por determinao do aumento do fluxo migratrio. Ao mesmo tem-po, para atingir esse mercado em crescimento, os meios de comunicao di-vulgavam a msica sertaneja com bastante entusiasmo, ampliando a audin-cia, o pblico e seus consumidores. Uma conseqncia imediata e visvel da

    expanso do setor nos meios de comunicao foi a multiplicao dos artistassemiprofissionais ou profissionais. Alm disso, a cidade transformava-se ra-pidamente, deixando um certo ar saudosista vagando pelas ruas e avenidas,fonte de inspirao para esse tipo de gnero. Finalmente, as referncias ru-rais (geralmente tambm saudosistas de um tempo melhor) ainda estavampresentes no imaginrio popular, porm cada vez mais rarefeitas ou entoreadaptadas ao universo urbano paulistano. E a msica sertaneja parece ter sidoum veculo excepcional para dar vazo a essas referncias e, principalmente, para

    realizar as transies e as interseces entre os universos rural e urbano.Chores e instr ument i stas

    No cenrio da msica instrumental e de acompanhamento, os artistaspaulistanos exerciam, quase que obrigatoriamente, outras profisses, que lhesgarantissem sua sobrevivncia (eram artesos, funcionrios pblicos, pequenoscomerciantes etc.). Para eles, a profissionalizao artstica ainda era muito pre-cria e rara, mesmo com o desenvolvimento das indstrias radiofnicas e das

    gravadoras. Geralmente, esses novos meios de produo e difuso estavam mais1Srgio Buarque de Holanda,Razes do Brasil, 8aed., RJ, Livraria Jos Olympio, 1975, p. 105.

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    interessados nos cantores e nos intrpretes, pois esses eram os nicos que atin-giam sucesso, dando retorno comercial s diversas empresas que viviam em tor-no da msica e dos espetculos (gravadoras, rdios, editoras, eletrnicas, publi-cidade etc.).

    Nas grandes cidades, e de modo especial em So Paulo, os instrumen-tistas de Choro tiveram importncia especial no desenvolvimento da msicapopular urbana. Tocando nas ruas ou em ambientes fechados, os choresanimavam serestas e festas, tendo inicialmente como remunerao ape-nas mesa farta e, principalmente, bebida. Geralmente, esses msicos paulis-tanos, como Joo D. Carrasqueira, Antonio Durea, Baro etc., eram mo-

    destos funcionrios pblicos, pequenos artesos e comerciantes, trabalhado-res da indstria, barbeiros, que somente noite se transformavam em ex-mios msicos populares de bandas, cinemas, teatros e das rodas de choro.12

    A complexidade de suas harmonias e modulaes, as dificuldades rt-micas, os improvisos e sua original formao instrumental tornavam o chorouma espcie de msica popular de cmara, tocada em boa parte por instru-mentistas geralmente habilidosos. Dessa forma, o msico de choro necessa-riamente deveria ter um conhecimento profundo das sonoridades, das capa-

    cidades e das tcnicas de seus respectivos instrumentos, fosse atravs doautodidatismo, da prtica diria ou do estudo sistemtico formal. Baro reve-la de maneira clara tal situao, ao afirmar que o choro uma arte difcil; no qualquer um que pode toc-lo; preciso estudar uns 10 anos. preciso terbossa, domnio tcnico e sentimento.13

    Msicos de boa capacidade tcnica, capazes de improvisar, solar e acom-panhar com igual competncia, esses artistas exerciam atividades musicaisbastante variadas, transitando social e culturalmente por diversos espaos e

    universos. Apesar do crescimento das atividades profissionais remuneradas,continuavam participando de atividades informais, como das animaes defestas e das tradicionais rodas de choro, que geralmente ocorriam nas resi-dncias dos chores ou dos aficcionados. Tanto um como outro eram espaosfundamentais para os chores e os msicos, pois se tornaram autnticas esco-las populares e local de permanente exerccio musical autodidata, fato decisivo

    12Depoimentos de Antonio Durea, Antonio Rago, Baro e Joo D. Carrasqueira, ArquivoMIS-SP.13Depoimento de Baro, Arquivo MIS-SP.

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    para os instrumentistas (que no passaram pelo ensino formal de msica) semformao escolar musical.

    O armazm do pai de Antonio Durea, no Bom Retiro, foi um dessespontos de encontro, por volta de 1927/28. Nos fundos do armazm, Dureaorganizava alguns encontros semanais, reunindo diversos msicos amadores,entre os quais o pequeno Garoto.14Alguns dos msicos amadores que fre-qentaram essas reunies acabaram trabalhando nas rdios paulistanas. Afas-tado do choro para tornar-se cantor de orquestras de baile, Durea voltaria apromover encontros em sua casa somente na dcada de 1950.15Entre o finalda dcada de 1920 e incio da de 30, as rodas de choro permaneciam na cidade

    de maneira totalmente informal, surgindo vrias delas em bairros com fortestradies italianas, como a Mooca, a Lapa, o Bom Retiro e o Bexiga, mas tam-bm em diversos outros, como Ponte Pequena, Barra Funda e at no lon-gnquo Santo Amaro.

    As atividades dos instrumentistas de choro nas reunies informais per-maneceram mesmo durante o rpido desenvolvimento dos espetculos, dordio e do disco, contrastando com a poca em que elas deveriam ser qua-se totalmente extintas pelas transformaes culturais, sociais e materiais, j

    em curso naquele momento. Elas resistiam e multiplicavam-se, pois eramum ncleo de trocas e encontros sociais e culturais, fundamental para a exis-tncia do choro, dos msicos e dos instrumentistas. Por isso que AntonioDurea afirma, de modo bastante marcante e incisivo, que o choro preci-sa de ambiente para tocar e se desenvolver; sem ambiente para escutar e to-car o msico no pode se desenvolver.16Com a diminuio dessas ativida-des, nos anos seguintes, os encontros e o choro quase desapareceram do ce-nrio musical paulistano, mantendo-se vivos apenas entre os aficionados e os

    msicos de boa capacidade tcnica.Os bons instrumentistas, gerados nos encontros informais, ocuparam pau-

    latinamente os inmeros espaos pagos de entretenimento, que se multiplicavampor So Paulo. Se, nas dcadas anteriores, eles se encontravam nas salas de

    14Anbal Augusto Sardinha, SP, 1915, RJ-1960.15Esses encontros eram freqentados por Jacob do Bandolim e Isaas e nos quais se formou oConjunto Atlntico, no incio da dcada de 1950. Com formao incerta e instvel, o conjuntoalcanou relativo profissionalismo nos anos 70. Do Conjunto Atlnticoparticiparam inmeros

    chores de So Paulo, que, depois, acabaram formando seus prprios grupos, como, p. ex., odo bandolinista Isaas.16Depoimento de Antonio Durea, MIS-SP.

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    cinema, nos teatros e nos circos, a partir dos anos 30 comearam a se deslocarpara atividades mais profissionais, em gravadoras, orquestras de rdio e nos con-juntos que acompanhariam os intrpretes mais famosos, mais tarde conhecidosnas rdios e nas gravadoras como Regionais. Assim, gradativamente, esseambiente cultural popular e informal passou a produzir msicos profissionais damais alta qualidade, que se constituram em autnticos intermedirios culturais,17

    transitando entre o universo da cultura da elite e o da cultura popular urbana, entreo formal e o informal, entre o espao pblico e o privado. Lentamente, os cho-res paulistanos invadiam as rdios, como instrumentistas, e com seus conjuntos,porm, muito raramente, com suas composies. O violonista Canhoto18foi um

    dos primeiros instrumentistas de destaque a circular pelo ambiente informal dochoro e das serestas e a trabalhar nas rdios paulistanas. Instrumentista de raracapacidade musical, logo se tornou muito requisitado pelas rdios e pelas grava-doras. Em 1925, j participava como msico daRdio Educadora Paulista. Suafama na cidade era anterior era do rdiopaulistana. Desde o incio dos anos20, j era reconhecido por sua tcnica e musicalidade violonstica.

    Para sobreviver de suas atividades musicais ou, simplesmente, reforar ooramento domstico, os chores tocavam os vrios gneros musicais que sua

    capacidade e conhecimento permitiam. Joo Carrasqueira, por exemplo, foi umflautista de formao e vida profissional bastante ecltica, que trafegou entre opopular e o erudito. Nas emissoras em que trabalhou (Rdios Educadora, Cru-zeiro do Sule Kosmos), ganhava salrio sempre inferior ao do emprego quemantinha na ferrovia. Em 1939, foi para a Record, tocar no Regional doArmandinhoe na orquestra da rdio, onde ganhou de Raul Torres o apelido decanarinho da Lapa.

    No decorrer da dcada de 1930, os conjuntos Regionais multiplicaram-

    se pelas rdios e pelas atividades musicais em So Paulo. A expanso e a va-riedade dos programas musicais ao vivo e dos espetculos em teatros e empraas pblicas alargaram o campo de trabalho remunerado dos instrumentistas.Todo esse crescimento foi seguido por uma exploso do nmero de cantores(as)dos mais variados gneros, que, como j foi salientado, deveriam ocupar lugar dedestaque no cenrio musical. Assim, principalmente nas rdios que precisavam

    17Ver Michel Vovelle,Ideologia e Mentalidades,SP, Ed. Brasiliense, 1987.18Amrico Jacomino, SP, 1889/1928. Autor deAbismo de Rosas, considerada uma das primeirasobras clssicas do repertrio do moderno violo popular brasileiro. Boa interpretao maisrecente est emRelendo Dilermando Reis, Raphael Rabello, RGE, 1994.

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    de acompanhamento para os cantores, osRegionaiscresceram de maneira sig-nificativa, a maioria constituda pelos msicos amadores, gerados nos encontrosmusicais informais. No havia uma norma ou regra exata para a formao e aexistncia dos conjuntos. Variavam na composio dos instrumentos (mas sem-pre com a tradicional base fixa dos violes, do cavaquinho ou do bandolim e dospequenos instrumentos de percusso), incluindo ou retirando uns e outros (comoas flautas, os clarinetes, os trombones etc.), de acordo com as necessidades e adisponibilidade ou no de bons msicos. A existncia dos conjuntos podia ser longaou efmera; a permanncia numa emissora, duradoura ou passageira. Os msi-cos que recebiam cachs participavam de vrios conjuntos ao mesmo tempo (noRegionalde uma rdio e na orquestra de outra). Apesar do intenso processo deprofissionalizao dos conjuntos, geralmente seus msicos mantinham uma cer-ta tradio domstica de identific-los com o nome do lder do conjunto:Regi-onal do Canhoto(Educadora), do Armandinho(Educadorae Record), doMiranda(Record), do Pinheirinho(Record), do Esmeraldino(Tupi), doMauro Silva(Piratininga) e do Rago(Tupi).

    O violonista Antonio Rago foi um desses msicos nascidos no ambientemusical popular e informal e que teve o desenvolvimento de sua carreira profun-

    damente vinculado s atividades profissionais das rdios e dos espetculos.19Eleiniciou suas atividades tocando em bailes e conjuntos de circos, mas logo come-ou a freqentar os estdios das rdios para aprender com os grandes violonis-tas: Sampaio, Garoto, Aimor, Poli (...).20Entre 1936 e 37, excursionou e apre-sentou-se em rdios argentinas. Quando retornou, havia ampliado seu campo detrabalho como bom acompanhador de tangos. Tocou tambm nasRdiosRecord,So Pauloe Cruzeiro do Sul, antes de transferir-se para a Tupi, a convite dolder do Regional, Zezinho do banjo (o homem dos sete instrumentos, mas que

    ficaria mais conhecido como Z Carioca, pois foi a referncia brasileira para WaltDisney criar o personagem dos desenhos animados). Antonio Rago tornou-se,portanto, o prottipo do msico ecltico ou, como ele mesmo diz, um autnticoquebra-galho, presena obrigatria e permanente nas gravadoras e nas emis-soras de rdio. Esses instrumentistas acompanhavam qualquer ritmo ou cantor,transitando da msica italiana ao tango, passando pelo samba e pelo choro. A

    19O crtico Zuza Homem de Mello, no prefcio da obraRago: A Longa Caminhada de umviolo,

    SP Livraria Editora Iracema, 1986, p. 11, chega a dizer que Rago e rdio para mim so duaspalavras que se confundem. Rago e rdio. No parece quase a mesma coisa?.20Depoimento de Antonio Rago, Arquivo MIS-SP.

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    maioria dos msicos dessa tradio era capaz de tirar qualquer melodia ou rit-mo de ouvido e produzir arranjos no calor da hora, dentro do prprio estdio.

    possvel perceber, ento, por meio desse rpido quadro sobre as ativida-des musicais vinculadas ao Choro, aosRegionaise aos instrumentistas, como osmsicos dessa rea permaneceram, durante toda a dcada de 1930, em uma si-tuao repleta de ambigidades. De um lado, no se desvincularam daquilo queAntonio Durea chamou de ambiente para tocar e se desenvolver,21realida-de que encontravam nas reunies informais das rodas de choro, nas festas e nosbailes, onde tinham o prazer de tocar e a possibilidade de desenvolver sua prti-ca. Por outro lado, eram requisitados e empurrados para o universo das gravado-

    ras e da radiofonia, o que eles tambm no deixavam de desejar. Esse novoambiente musical necessitava de msicos competentes para os quadros perma-nentes de suas orquestras e de seus Regionaispara acompanhar as grandesestrelas que vendiam msicas e discos. Portanto, esses msicos circulavam per-manentemente entre ambientes privados e pblicos, informais e formais, amado-res e profissionais, ldico-prazerosos e sistemticos, desregrados (da boemia) eregrados (dos estudos e das gravaes). A grande maioria, no entanto, perma-neceu incgnita, sustentando musicalmente as empresas produtoras e as

    divulgadoras, sendo reconhecidos apenas pelos colegas de profisso e no pelogrande pblico.

    A nova face do samba e o carnaval paul istano

    A realidade do carnaval popular e do samba, na cidade de So Paulo, nosanos 30, tambm foi bastante ambgua, justamente nesse momento crucial detransformaes culturais. Se, nesse perodo, ocorreu a consolidao do notvelprocesso iniciado em meados da dcada de 1910, foi nessa mesma dcada queocorreu seu rpido esgotamento. Seguindo o mesmo ritmo da metrpole do caf,aproximadamente em trinta anos o samba regional paulistano organizou-se, ex-pandiu-se e entrou em decadncia, quase desaparecendo j nos anos 40.

    Esse samba paulistano assumiu sua real face urbana nos cordes carna-valescos, e seus originais espaos de criao e difuso cultural estabeleceram-se preponderantemente nas festas populares religiosas ou profanas, principalmentena festa de Bom Jesus de Pirapora (cidade homnima, vizinha de So Paulo) eno pequeno carnaval de rua. Originados nos ncleos urbanos, com forte presen-a de negros, como a Barra Funda, o Bexiga e o Lavaps/Liberdade, os cordes21Depoimento de Antonio Durea, Arquivo MIS-SP.

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    tinham pelo menos trs peculiaridades, na sua estrutura, que os distinguiam, dan-do-lhes certa originalidade: 1) A utilizao dos conjuntos de choros, isto , pe-quenos conjuntos instrumentais de cordas e sopros, que existiam em profusopela cidade, cuja funo era acompanhar as msicas nos cortejos e paradas; 2)O ritmo de marcha-sambada: apesar da dificuldade em defini-lo, para os sambis-tas do perodo ele caracterizava o samba paulistano e era composto por umapolirritmia percussiva sobre uma base de marcha. De maneira mais simples,Geraldo Filme diz que era batuque no ritmo e marcha na boca;223) O bumbode Pirapora, um grande surdo de som mais abafado (alguns tambm o denomi-navam, de modo confuso, de zabumba). Esse bumbo era o instrumento que de-

    terminava e marcava o ritmo nas festas de Bom Jesus de Pirapora e que, maistarde, foi transportado para o samba urbano da capital.23

    Os primeiros cordes paulistanos com essas caractersticas apareceramna dcada de 1910, nucleados em famlias e crculos de vizinhana. Os pre-cursores foram o Grupo Carnavalesco Barra Funda, mais conhecido na pocacomo Camisa Verde e Branco,24de 1914, e o Campos Elseos, que surgiu no anoseguinte. Nos anos 20, apareceram oFlor da Mocidade(Barra Funda),Despre-zados(Campos Elseos) e o Vai-Vai(Bexiga), este, j na virada da dcada.

    Inicialmente circunscritos aos bairros de maior concentrao de negros, oscortejos e os desfiles das agremiaes se expandiram, durante a dcada de 1920,pelas regies mais centrais da cidade.25

    No transcorrer dos anos 30, os cordes carnavalescos multiplicaram-sepelos bairros, evidenciando a expanso e o amadurecimento de uma culturapopular urbana que se institura na cidade desde o incio do sculo XX. Sal-tando fora dos limites dos ncleos negros, eles surgiram em diversos bairrosde So Paulo, como o Geraldino, em 1933, na Barra Funda; oEsmeraldino, na

    Pompia; osMarujos Paulistas, no Cambuci;As Caprichosas, na Casa Verde; aMocidade LavapseBaianas Paulistas, no Lavaps; e Caveira de Ouro, em Pi-

    22Depoimento de Geraldo Filme, no Programa Ensaio, TV Cultura.23No bom trabalho Histria do Samba Paulista I, CPC/Umes, 1999, possvel identificarem rpida passagem algumas das origens e das influncias que colaboraram para construiralgumas dessas caractersticas. Em um raro registro sonoro, a vinheta D. Maria Esther e

    Batuqueiros de Pirapora, que introduzBatuque de Pirapora, de Geraldo Filme, revela a forte erstica batida do bumbo, que logo em seguida acompanha por inmeros e desregrados ins-trumentos de percusso.24O Grupo Carnavalesco Barra Fundarecebeu esse apelido, pois, em seu primeiro desfile, seuscomponentes saram vestidos com camisas verdes e calas brancas. No confundir o G.C.B.F.com a atual escola de samba paulistana Camisa Verde.

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    nheiros. Isso significa que o universo do samba e do carnaval paulistano ocupavacada vez mais espao na vida cultural informal da cidade.

    A conseqncia imediata do crescimento e da reproduo dos cordes,ao longo dos anos 30, foi o desenvolvimento de atividades musicais que noestavam restritas ao perodo propriamente carnavalesco. Os bailes mensais,que serviam de boa fonte arrecadadora para as agremiaes, tornaram-se se-manais. A msica tocada nessas ocasies festivas variava entre as composi-es prprias dos cordes e as canes de sucesso dos discos e das rdios. Narealidade, durante os anos 20, houve um relativo crescimento de sales eescolas de dana popular, acompanhando o crescimento das atividades de lazer

    pago,26e os gneros ali tocados eram bem diversificados, variando dos nacio-nais aos estrangeiros Essa febre de sales de baile expandiu-se pela cidade,alcanando a populao negra de maneira geral e no apenas aquela parcelaagrupada nos cordes. Esses sales da raa27gradativamente se tornarammais um espao de lazer e experincias culturais e sociais dos negros.

    Fora dos cordes e dos sales de baile, as reunies de samba continua-vam a ocorrer informalmente nas ruas e em alguns locais de tradicional con-centrao negra. Em 1937, no Largo da Banana, na Barra Funda, ainda per-

    sistia um velho ncleo de sambistas e jogadores de tiririca. Na mesma poca,na Praa da S, na do Patriarca e na do Correio, os negros tambm continua-vam a se reunir para cantar, sambar e jogar tiririca. De forma totalmente infor-mal e sem qualquer instrumento, batucavam nas latas de lixo, nas caixas de en-graxate e com as palmas das mos.28Em 1941, ainda era possvel identificarresqucios dessas reunies nas batucadas e nas cantorias dos engraxates, que, semelhana dos velhos batuqueiros e capoeiristas, usavam as caixas, as latas eas palmas das mos como instrumentos. Nesse ano, o jornalista Tlio de Lemos,

    freqentador da Praa da S, recolheu material raro e de inestimvel valor paraa histria da cultura popular urbana da cidade:

    25Sobre o assunto, ver Jos Geraldo V. de Moraes, Sonoridades Urbanas, Revista Cultura no

    3, maio-junho de 1993; Olga R. Moraes Von Simson,A Burguesia se Diverte no Reinado do Momo:60 anos de evoluo do Carnaval na Cidade de So Paulo (1855/1915), Mestrado, FFLCH-USP;Wilson R. Morais,Escolas de Samba em So Paulo (Capital), SP, Secretaria de Estado da Cultu-ra, Coleo Folclore no 14, 1978.26Nicolau Sevcenko, op. cit., pp. 89 a 92.27Olga R. Moraes Von Simson,Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano (1914-1988),Cpia da Tese de Doutorado, FFLCH-USP, 1989.

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    Batendo-se-lhe na superfcie lisa [da caixa, o engraxate] emitir um som relativo aodos bambas, som que uma habilidosa presso das mos do tocador modificar

    para mais claro ou mais escuro (...). Enfim todos os apetrechos de trabalho dosengraxates, em contacto com a musicalidade desses trabalhadores humildes, soelevados condio de instrumentos de msica.29

    O outro local de reunio de sambistas de rua era a esquina da Av. SoJoo com a Praa do Correio, voltada para o Vale do Anhangaba, em meioaos bondes, buzinas e transeuntes apressados. Geralmente, esses grupos eramformados apenas de negros, que se agrupavam para tocar seriamente e can-tar. Em um deles, por exemplo, havia

    quinze negros sentados no cho, rodeando um cantor preto tambm, que dep, enviava a sua voz para o alto, com a cabea bem erguida, os olhossemicerrados e uma expresso de dor no rosto retinto e brilhante. Os que es-tavam sentados formavam uma orquestra; sem dvida a mais original das or-questras, composta exclusivamente de instrumentos de percusso (...).30

    A realidade social desses trabalhadores e artistas populares das ruas eramuito dura, sobretudo porque o grau de marginalizao era crescente, pois,alm de negros e sambistas, muitos eram engraxates, considerada profissode vagabundo, acumulando, assim, diversos elementos discriminatrios,presentes na sociedade paulistana.

    O crescimento dos cordes e a permanncia do samba nas ruas e nosbairros produziram certo aquecimento e excitao no perodo carnavalesco.O poder municipal e as jovens emissoras radiofnicas, buscando maior populari-dade e audincia, comearam a promover desfiles e concursos no carnavalpaulistano, dando vazo produo musical e carnavalesca, crescentes na ci-dade. Apesar das tentativas do poder municipal em organizar os concursos, eles

    foram surgindo de modo totalmente desordenado. A primeira atitude da Prefei-tura foi estabelecer, logo no incio da dcada de 1930, um concurso de msicas emarchas carnavalescas, nos moldes dos eventos cariocas.31Com relao aoscordes, at a passagem dos anos 30, a municipalidade procurava control-lossem muita rigidez, cadastrando-os, fichando seus componentes e carimbando seus

    28Depoimentos de Geraldo Filme e P Rachado, Arquivo MIS-SP.29Tlio de Lemos, O Canto dos Engraxates Paulistanos,Revista Planalto, SP, Setembro de1941, pp. 7 e 8. O sambista paulistano Germano Mathias transporta ao universo dos meios de

    comunicao, no incio dos anos 70, essa figura do engraxate sambista. Ele prprio era ouainda um virtuoso na latinha de graxa.30Idem, ibidem, p.7.

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    estandartes.32Entre 1934 e 36, o prefeito Fbio Prado promoveu os primeirosconcursos organizados pela prefeitura, oferecendo certa estrutura, premiao emdinheiro e taas. A comisso de organizao foi composta por figuras de relevono cenrio cultural da poca, como Menotti Del Picchia, Victor Brecheret e ocartunista Belmonte. Os desfiles oficiais municipais ocorreram entre as ruas Li-bero Badar e So Bento, e o nmero de cordes foi bastante representativo,reunindo aproximadamente 46 grupos.

    Todavia, com a falta de incentivo da Prefeitura, os concursos foram assu-midos informalmente por algumas emissoras de rdio. Sem qualquer sentidouniformizador, vrias emissoras promoviam seus prprios concursos em um mesmo

    ano, como a Record, a Kosmose a Cruzeiro do Sul33e at a Cia. Antrcticade bebidas.34No final dos anos 30, esta mesma indstria de bebidas comeou apromover concursos carnavalescos no Parque Antrtica, no bairro da gua Bran-ca, instituindo ali a Cidade da Folia. O pblico pagava para entrar, brincar ocarnaval e ver os desfiles dos cordes. As agremiaes deviam seguir algumasregras bsicas, que ordenavam as apresentaes. Os prmios eram em dinheiro,o que atraa os grupos carnavalescos. Para os sambistas, a rea tornou-se, como tempo, o principal centro de atividades do carnaval paulistano. Tanto que al-

    gumas rdios chegaram a promover ou ajudar o carnaval da Cidade da Folia,como fez aRdioSo Paulo, em 1941, e a Record, em 1942.

    A oficializao informal, atravs das emissoras, de certa forma impediaa represso contra sambistas e folies, dando segurana aos cordes durante osdesfiles carnavalescos. Elas no pretendiam e muito menos queriam responsabi-lizar-se pela organizao direta das apresentaes e dos desfiles, que ficava acargo exclusivamente dos cordes, mas escolhiam as vencedoras e concediamas premiaes. A sobreposio e a informalidade dos concursos geraram diver-

    31Em 1932, a Comisso de Divertimentos Pblicos instituiu o primeiro concurso. Ari Barro-so, na poca vivendo em So Paulo, participou com a marchinha Paulistinha Querida, Sr-gio Cabral,No Tempo de Ari Barros, RJ, Ed. Lumiar, 1993, p. 156. Em 1935, o vencedor doconcurso foi o sambaDona Boa, do estreante Adoniran Barbosa, em parceria com J. Aimber,no qual faz referncia aos cordes carnavalescos de So Paulo:Dona Boa, Dona Boa. Vem proCordo. E no fica assim toa.32Esse carimbo da Prefeitura era abominado pelos sambistas, pois se desfazia durante os cor-tejos, manchando e enfeando o estandarte do cordo. Ver Depoimento de Zezinho da CasaVerde, Arquivo MIS-SP.33Edith G. Mendes, Octvio Gabus Mendes. Do Rdio Televiso, SP, Ed. Lua Nova, 1988, p. 52.34O jornal O Estado de S. Pauloanunciava, em 17/02/1935, que a companhia organizavaparaos 4 dias de carnaval grandiosos bailes populares nas praas Patriarca, S e no Largo da Concrdia,

    sendo o fator no1 do primeiro carnaval paulista.

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    sos desfiles e, principalmente, vrios vencedores em um mesmo ano. A impren-sa escrita no dava muito valor aos desfiles e aos concursos, e raros eram osjornais que registravam os eventos, como O Dia. Por essas razes, muitas vezesos sambistas paulistanos se confundem, atrapalhando-se com datas, nome dasemissoras, vencedores e locais de concursos, dificultando a verificao mais clarado que realmente ocorreu. Em virtude desse quadro, que retrata um momentobastante desorganizado e confuso da cultura popular urbana, torna-se muito dif-cil determinar uma genealogia exata dos vencedores dos carnavais paulistanos.Com a documentao baseada quase exclusivamente na memria dos sambis-tas, as informaes sobrepem-se, contradizem-se e so extremamente parci-

    ais. Cada sambista ou cada carnavalesco atribui a si ou sua escola as virtudesda vitria de um determinado ano, operando uma verdadeira seleo de memria doevento.

    Entretanto, quando so lembradas algumas caractersticas gerais dasapresentaes e dos sambas da poca, as opinies so convergentes, quaseunnimes. Os aspectos ldicos dos desfiles, repletos de alegria e divertimento,destacam-se nas reminiscncias dos sambistas da velha guarda. As disputaseram importantes e at acirradas, mas secundrias em relao diverso e

    alegria.De acordo com eles, isso produzia um carnaval melhor, pois era maisfestivo e solto. Portanto, ainda no era um carnaval regrado e limitado pornormas, enredos e posturas estticas, morais e, sobretudo, musicais. As mar-chas-sambadas, que acompanhavam os cortejos, os desfiles e as brincadei-ras, eram originais dos compositores dos cordes, que no se prendiam a umenredo preestabelecido nem ao destino de suas msicas, se fariam sucessoou no, na indstria do rdio e do disco. Sem a obrigatoriedade de seguir umenredo e sem as imposies da indstria da cultura, geralmente as canes de-

    senvolviam temticas bastante simples, relacionadas com o universo que os cir-cundava.

    Ao mesmo tempo em que os cordes cresciam e multiplicavam suasatividades, transformavam sua estrutura tradicional, dando incio sua deca-dncia. Se, de um lado, a incipiente organizao do carnaval significou apoio,destaque e dinheiro para as estruturas amadoras dos cordes, de outro, im-ps certas padronizaes, subtraindo-lhes o carter informal e local. A con-corrncia entre eles tornou-se mais aguda, ultrapassando os costumeiros li-

    mites de uma ingnua e sadia disputa entre comunidades e bairros, obri-gando-os a uma maior organizao. Os desfiles foram perdendo a aura ldica

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    e descompromissada, e as disputas tornaram-se mais acirradas, gerando brigascostumeiras entre os cordes. Os confrontos mais famosos naqueles anos 30 foramentre o Camisa Verdee o Vai-Vai, que protagonizaram batalhas de rua, nas quaisos paus das balizas e os estandartes, instrumentos de percusso, transformaram-se em armas.

    Foi nesse intenso quadro de transformaes dos cordes, que lenta-mente perdiam importncia e destaque cultural no final da dcada, que sur-giram as primeiras escolas de samba paulistanas. A precursora, e de vida muitoefmera, foi criada por seu Elpdio Faria, em 1936, e chamou-se, Escola deSamba Primeira de So Paulo. Baseada na sua companhia de mulatas, criada

    para fazer uma viagem pela Itlia, organizou a escola de samba ainda com umaestrutura muito semelhante dos cordes. Contudo, um ano antes, um gru-po de vizinhos e parentes da regio do Lavaps havia criado o bloco denomi-nadoBaianas Paulistas. Composto por cerca de 20 mulheres, lideradas porMadrinha Eunice, o agrupamento saiu s ruas com o ritmo e o batuque sobresponsabilidade dos homens, comandados por seu marido, o filho de italia-nos, Francisco Papa. Em 1936, M. Eunice esteve no Rio de Janeiro, paraparticipar das festas carnavalescas, e trouxe a idia de organizar uma escola

    de samba em So Paulo. No ano seguinte, ela j desfilava com a Escola deSamba Lavaps, originando, de fato, a primeira escola de samba paulistana,organizada e com atividades permanentes, diferente daquele primeiro eefmero agrupamento de Elpdio Faria. Nesses primeiros anos, aparentemen-te as duas primeiras escolas de samba paulistanas ainda mantinham os cho-ros, as balizas e os estandartes. Apesar de inicialmente manter elementos doscordes, aLavapsj tentava organizar-se como uma escola de samba nosmoldes das cariocas.35A prpria fundadora, M. Eunice, diz que foi sua escola a

    primeira a usar as referncias cariocas e que, para trazer as novidades, sempreviajava ao Rio de Janeiro. No h como negar, portanto, que seus critrios emodelos para a organizao e a participao daEscola Lavapsnos concursose nos desfiles paulistanos geralmente vinham da capital da Repblica. Assim, emvez de se apresentar ao som e ao ritmo da marcha-sambada, a Lavapstocavae danava as marchas carnavalescas de forte acento carioca. No havia maisespao para os choros.36Alm disso, os sambistas, o mestre-sala e a porta-ban-deira ocuparam o lugar de destaque das balizas, e as vestes da Escola tornaram-

    se mais elaboradas.

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    Esse tipo de grupo carnavalesco j supunha maior participao,grandiosidade e organizao do samba e do carnaval. M. Eunice confirmaessa nova dimenso, ao afirmar que a cada ano a Escola aumentava seu n-mero de participantes e, com eles, o grau de organizao e a responsabilida-de nas disputas e nos confrontos. Com apenas trs anos de existncia, aLavapstornou-se a grande fora do carnaval paulistano, saindo vitoriosa emdiversos concursos. Na esteira do sucesso da Lavaps, surgiram outras esco-las paulistanas, entre o final da dcada de 1930 e incio dos anos 40: RosasNegras,Brinco de Ouro,Brasil Moreno, entre outras.

    A emergncia das escolas de samba no final dos anos 30 foi bastante

    significativa, pois revelava que os tradicionais cordes paulistanos cediam seuespao como protagonistas privilegiados da msica/cultura popular negra.Apesar de sua permanncia e convivncia com as escolas de samba durantea dcada de 1940, eles perderam o papel de destaque e referncia no quadrodas culturas populares paulistanas. Ou seja, o carnaval e o samba urbano, comcaractersticas especficas de So Paulo, se esvaam, tendendo a se tornar umacultura regional, perdida na memria da cidade, que, mais uma vez, rapida-mente, sem poder parar, passava por cima de sua histria. Anunciando a

    descaracterizao e a decadncia do samba e dos cordes paulistanos, os cho-ros j haviam perdido importncia e quase desaparecido no final da dcada de1930. No mesmo perodo, o tradicional bumbo de Pirapora j no existia, mes-mo nos cordes; e o som e o ritmo da marcha-sambada eram esquecidos pelosnovos sambistas que surgiam.37

    A instvel base de sustentao sociocultural da populao negra, quediminua em So Paulo, e o confronto com as outras experincias culturaisexistentes na cidade dificultaram a permanncia de suas manifestaes re-

    gionais, obstruindo a integrao e a conquista de um espao social e culturalmais slido na cidade. Gradativamente, a forte penetrao do criativo samba

    35Em 1937, as escolas de samba do Rio de Janeiro j estavam plenamente consolidadas e seusdesfiles eram muito disputados. Desde 1932, j realizavam desfiles competitivos, promovi-dos pela imprensa e pelo poder municipal. Em 1934, foi fundada a unio Geral das Escolas deSamba (U.G.E.S.), para defender e organizar os interesses das escolas. Ver Srgio Cabral, As

    Escolas de Samba. O que, quem, como, quando e por qu, RJ, Ed. Fontana, 1974.36Se o modelo era carioca, preciso levar em conta que, em 1933, foram estabelecidas as se-

    guintes regras nos desfiles de carnaval: obrigatoriedade da ala das Baianas (talvez isto ajudea explicar o sugestivo, mas pouco comum nome em So Paulo deBaianas Paulistas) e a proibiodos instrumentos de sopro, uma das caractersticas bsicas do cordopaulistano, ibid., p. 98.

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    e das msicas do carnaval cariocas, impulsionados pela indstria do rdio e dodisco, encontrou em So Paulo um ambiente propcio para germinar e se expan-dir. O samba urbano paulistano, em construo desde o incio da dcada de 1910,e que se desenvolveu nos anos 20 e 30, j no final da terceira dcada tinha difi-culdade em sobreviver na moderna cidade industrial que se erguia. O sambapaulistano no sobreviveu e nem conseguiu transformar suas tradies no novoespao urbano, que definiu o futuro da cidade, e tampouco ingressou nos meiosde comunicao como um elemento definidor. Nesse mesmo perodo, o sambaurbano carioca ocupava e consolidava com muita fora seu espao na radiofonianacional, impondo-se como padro nacional. A produo musical da capital da

    Repblica tornava-se, ento, referncia para os sambistas e os carnavalescos detodo o pas, homogeneizando as composies e as formas musicais. Esse fatocolaborou para que o samba paulistano perdesse ainda mais espao, levando-oao retraimento e estabelecendo restries s comunidades de sambistas de SoPaulo, enfraquecendo-o como realidade cultural em uma cidade em vertiginosoprocesso de crescimento.

    Pequena Coda

    Esse rpido painel revelou que o panorama diversificado das formas deentretenimento popular nos meios urbanos, que se multiplicava nos grandes cen-tros urbanos de todo pas, no incio do sculo, tambm se materializou na cidadede So Paulo. Desde o comeo do sculo, um notvel quadro de manifestaesculturais e musicais circulavam38pela cidade em diversas direes e experinci-as. E essas culturas populares relacionavam-se de inmeras maneiras entre simesmas e com as culturas formais, interagindo, resistindo, influenciando e sub-metendo-se.

    A msica popular urbana em So Paulo emergiu de uma srie de mis-turas e conflitos e permitiu o surgimento e ascenso de vrios tipos de artis-tas populares, que ganharam novos espaos de difuso e profissionalizao,participando de algum modo do processo de construo dos modernos gne-

    37Para Mrio de Andrade, mais preocupado com as razes e a originalidade do samba ruralpaulista, estas caractersticas j se haviam perdido desde o comeo dos anos 30, como eleobservara nos carnavais paulistanos de 1931, 33 e 34, pois o samba tocado na grande metrpo-le j no tinha mais relaes com o de Pirapora. Mrio de Andrade, O Samba Rural Paulista,

    Aspectos da Msica Brasileira, Braslia, Ed. Martins/INL, 1975, pp. 145-146-147, e Mrio Wag-ner da Cunha, Descrio da Festa de Bom Jesus de Pirapora,Revista do Arquivo Municipal,SP, Vol. XLI, 1937.

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    Polifonia na metrpole: histria e msica popular em So Paulo

    ros musicais urbanos. So Paulo, portanto, no era um vazio musical como osesteretipos fazem crer.39Essas anlises e compreenses restritas da realidadehistrica e cultural impediram que a msica/cultura popular, produzida e difundi-da na cidade, fosse revelada e compreendida nas suas especificidades e comple-xidades.

    Os anos 30 foram fundamentais para a construo do que denomina-mos hoje, genericamente, de msica popular brasileira, e So Paulo, bem oumal, esteve presente nesse processo. Esse quadro histrico pluralizado epulverizado das primeiras dcadas do sculo XX criou especificidades queainda precisam ser estudadas e investigadas mais sistematicamente. No en-

    tanto, o trabalho investigativo nessa rea da histria social e cultural, que tra-ta da msica popular, ainda permanece bastante restrito. Mrio de Andradej dizia, em meados do sculo XX, que o estudo cientfico da msica brasi-leira ainda est por fazer,40e seu alerta parece que ainda faz sentido. E tra-balhar em uma rea de difcil acesso e de registros frgeis, como a da msica/cultura popular urbana, exige a articulao de inmeras fontes dispersas erenitentes e cuidado redobrado do historiador.41

    Seguindo nessa linha, este trabalho procurou aproximar-se do quadro his-

    trico difuso e fragmentado da cultura popular urbana do perodo, tentando per-mitir que algumas das vozes variadas e opostas, presentes na realidade brasi-leira, geralmente esquecidas ou ento enquadradas em discurso unvoco, tives-sem oportunidade de se manifestar. A histria cultural da msica popular brasi-leira ainda formula e ajusta seus primeiros acordes e nesse tom que deve se-guir a discusso.

    38Mikhail Bakthin, A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento, 2aEd., Ed.Hucitec/UnB, SP, 1993; Carlo Ginzburg, O Queijo e os Vermes, Cia. das Letras, SP, 1987.39Por incrvel que possa parecer, essa ainda no uma questo ultrapassada. Veja, p. ex., arti-go relativamente recente do respeitvel crtico e historiador Jos Ramos Tinhoro, que evi-dencia, de modo revelador, esses esteretipos: Salvador deu Capoeira, Recife deu Frevo,Rio deu Samba. E So Paulo: no deu Nada, D.O. Leitura, no10, Imesp, SP, fevereirode 1992.40Mrio de Andrade, A Msica e a cano populares no Brasil, Ensaio sobre a msica brasi-

    leira, SP, Livraria Martins Editora, 1962, p. 163.41Ver Jos Geraldo Vinci de Moraes, Histria e msica: a cano popular e conhecimentohistrico,Revista Brasileira de Histria, Anpuh, no39, agosto 2000.

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