Politica de Saude Mental BH Cotidiano de Uma Utopia

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POLTICA DE SADE MENTAL DE BELO HORIZONTE: O Cotidiano de uma Utopia

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POLTICA DE SADE MENTAL DE BELO HORIZONTE

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte Secretaria Municipal de Sade Fernando Damata Pimentel Prefeito Helvcio Miranda Magalhes Jnior Secretrio Municipal de Sade Maria do Carmo Secretria Municipal Adjunta de Sade Snia Gesteira e Matos Gerente de Assistncia Miriam Nadim Abou-Yd Polbio de Campos Souza Rosemeire Silva Coordenao de Sade Mental Organizao: Kelly Nilo, Maria Auxiliadora Barros Morais, Maria Betnia de Lima Guimares, Maria Eliza Vasconcelos, Maria Tereza Granha Nogueira, Miriam Abou-Yd. Reviso ortogrfica: Cybele Maria de Souza Ilustrao da capa: Mandala Ronaldo C. de Oliveira (C.C. Carlos Prates) Diagramao e impresso: Staff Art Marketing e Eventos . www.staffart.com.br Distribuio e Informaes: Secretaria Municipal de Sade - Coordenao de Sade Mental Av. Afonso Pena, 2336 - 5 andar - CEP 30130-007 - Tel: (31) 3277-7793 - e-mail: [email protected] Poltica de Sade Mental de Belo Horizonte: o cotidiano de uma utopia / Kelly Nilo; Maria Auxiliadora Barros Morais; Maria Betnia de Lima Guimares; Maria Eliza Vasconcelos; Maria Tereza Granha Nogueira; Miriam Abou-Yd.(Org.) Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Sade de Belo Horizonte, 2008. 258p. Inclui bibliografia 1.Sistema Unico de Sade 2. Sade Mental 3. Programa Sade da Famlia 4. Portadores de Sofrimento Mental I. NILO,Kelly II. MORAIS, Maria Auxiliadora Barros de III. GUIMARES, Maria Betnia de Limas IV. VASCONCELOS, Maria Eliza V. NOGUEIRA, Tereza Granha VI. ABOU-YD, Mirim VII. Belo Horizonte-(MG) Secretaria Municipal de Sade VIII. Ttulo. CDD: 362

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SUMRIOAPRESENTAO Secretrio Municipal de Sade de Belo Horizonte PREFCIO Comisso Organizadora INTRODUO Coordenao de Sade Mental CAPTULO I - CONSTRUINDO CAMINHOS EM REDE A Sade Mental na Ateno Bsica de Sade: Uma Parceria com as Equipes de Sade da Famlia Sade Mental e PSF: Testemunho de Um Trabalho Conjunto Uma Clnica Possvel em Sade Mental PSF e Sade Mental: Compartilhando Histrias Integrao do Programa Sade da Famlia com o Programa de Sade Mental em um Centro de Sade de Belo Horizonte A Interface Sade Mental, Programa de Sade da Famlia e Cersam na rea de Abrangncia do Centro de Sade Tupi Paisagens Humanas, Paisagens Urbanas

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Uma Corrente Sem Quebra A Criana e o Adolescente: Experincias da Ateno Bsica Yuri, Uma Criana Problema?: Uma Interface entre a Sade Mental e a Educao A Experincia da Equipe Complementar de Ateno Sade Mental da Criana e do Adolescente: Um Novo Olhar Interveno a Tempo e Tempo de Invenes: A Clnica com Bebs e seus Pais na Sade Mental CAPTULO II - ACOLHENDO O QUE TRANSBORDA Novos Caminhos Resposta Crise: A Experincia de Belo Horizonte Ao Estrangeiro da Razo: Hospitalidade Incondicional Os Auxiliares de Enfermagem e a Rede de Sade Mental de Belo Horizonte CAPTULO III - EXTENDENDO A REDE A Linha e a Letra Centros de Convivncia: Novos Contornos na Cidade

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Residncias Teraputicas: O Percurso de Belo Horizonte A Poltica Pblica de Insero Produtiva: Afirmao de um Projeto Projeto Arte da Sade: Ateli de Cidadania A Superviso na Rede Pblica de Sade Mental O Planejamento como Subsdio para Organizao dos Servios Substitutivos no SUS/BH CAPTULO IV - CONQUISTANDO A CIDADE A Sade Mental na Ateno ao Louco Infrator Uma Vizinhana, Uma Parceria: Construes Urbanas Acompanhamento Teraputico: Redescobrindo a Vida Frum Mineiro de Sade Mental: a Alegria e a Coragem de se Fazer Poltica Loucura e Cidadania Suricato: Um Mosaico de Sonhos A Loucura e a Rua: O Desafio de Pensar Uma Outra Cidade

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Mltiplas Dobras: Populao de Rua e Polticas Pblicas Eu Odeio Carnaval! (Mas Amo a Luta Antimanicomial!)

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APRESENTAO

O Sistema nico de Sade, audcia reivindicada pela sociedade brasileira no bojo da luta pela democracia, mais que estabelecer um direito, criou uma marca. Desde sua instituio em 1988 (h apenas duas dcadas!), a sade transpe, em passos firmes e seguidos, o fosso que separa os bens coletivos dos objetos de consumo, ganhando consistncia e visibilidade como um dos instrumentos mais potentes na construo de uma sociedade verdadeiramente democrtica, ao mesmo tempo em que altera geografias e modos de viver, alcanando existncias que a excluso tornava annimas e invisveis. Dores e sofrimentos que a sociedade no via, seja por desconhecimento ou por negligncia, ganham rosto, nome e histria, tornam-se uma questo pblica e enquanto tal interpelam gestores e cidados e, mais, exigem soluo. Foi assim com os portadores de sofrimento mental, sujeitos que a cincia e a poltica pblica condenaram no-existncia e humilhante condio de exilado da cidadania. O manicmio, ou melhor, o hospital psiquitrico, nome moderno de um mesmo modo de excluso, seus muros e interditos, so o real obstculo ao exerccio da cidadania do portador de sofrimento mental, mas sobretudo, o impedimento real para o fluir da vida destas pessoas. A experincia nos autoriza, nos d liberdade e segurana para afirmar nosso repdio excluso; testemunhamos o antes e o depois de uma condio social; conhecemos o interior e os efeitos de duas prticas, a do hospcio e a da rede de servios substitutivos. do privilegiado lugar de profissional de sade, mas tambm como gestor da poltica de sade e de sade mental que, sem medo de errar, declaramos, fazendo coro com os usurios: hospcio para ns, nunca mais! Interessa-nos produzir mais que cuidado em sade, a ousadia de poder inventar a sade como uma prtica, como um sistema pblico, que seja capaz de assistir e aliviar a dor dos sujeitos, ajudando-os a descobrir o seu modo de gastar a vida, de consumirem-se no combustvel que nos move: nosso desejo de viver, de descobrir o singular de nossa condio humana, ao mesmo tempo em que

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nos inserimos em um coletivo e nos tornamos cidados de um pas. A sade mental , dentro do SUS, uma rica fonte de experimentao e descobertas. Gestores, trabalhadores e usurios desvelam parte do que a sociedade escondia entre grades e muros, discursos e prticas que, se ainda e infelizmente, encontram acolhida, no se justificam, na medida em que, partem do pressuposto da sujeio, tornando arbitrrio, coercitivo e ilegtimo o poder de quem cuida sobre quem cuidado. A paixo que nos move, um dos ingredientes que sustenta nosso ato de deciso, nos leva a arriscar, inventar o que no se encontrava previsto pela cultura, nos leva ao encontro de situaes que nos desafiam. Angustiamo-nos ao sermos confrontados por limites impostos pela complexidade de alguns casos, para os quais os recursos, a princpio, revelam-se insuficientes, por um lado, mas que por outro, fomenta em ns o desejo de criar, de inventar, de ousar pensar, recriando o mundo e seu sentido. Os portadores de sofrimento mental ensinamnos que, muito alm da razo e sua norma, seus limites, a vida se faz criao e beleza, quando substitumos contenes por laos de solidariedade e incluso. Nos mltiplos territrios da desinstitucionalizao criados em Belo Horizonte: Centros de Referncia em Sade Mental (CERSAM), Centros de Convivncia, Servios Residenciais Teraputicos, Centros de Sade com suas Equipes de Sade Mental e de Sade da Famlia, Equipes Complementares, Projeto Arte da Sade, nos recm inaugurados CERSAMi e CERSAM-ad, assim como o SAMU, o Servio de Urgncia Psiquitrica (SUP), a Incubadora de Empreendimentos Solidrios, e todos os demais pontos da rede de sade, o que encontramos e que a cidade j experimenta e compartilha o colorido do viver. H o cinza da dor, mas tambm, todas as cores da alegria, em suas mais diferentes tonalidades, indicando a variedade do sentir, do modo de expresso de cada um e de suas escolhas. Este livro confirma, em cada um de seus textos, o que acabo de concluir. E mais que revelar o cotidiano de uma utopia, vale dizer, a da sociedade sem manicmios, orientao que a poltica escolhe e sustenta, destaca a singularidade, o jeito e a potncia dos que a fazem real, os trabalhadores de sade mental. Ao lado dos usurios e suas famlias, protagonistas deste novo modo de tratar a loucura, os trabalhadores legam, atravs do seu fazer, um ensinamento cidade. Escolher a incluso, opondo-se firmemente s opes de banimento, transforma a sociedade, sem dvida alguma, e radicalmente a ns mesmos. Tornamo-nos distintos, fazemos histria. A melhor, a mais alegre e viva histria. Helvcio Miranda Magalhes Jnior Secretrio Municipal de Sade de Belo Horizonte

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PREFCIO

A liberdade s presente, no promete pro futuro no comete ter saudade Tom Z

Estamos em festa! Orgulhosas, estamos comemorando os 15 anos da Poltica de Sade Mental de Belo Horizonte (1993-2008), e foi pensando nessa conquista, to cara para ns, que aceitamos o convite da Coordenao de Sade Mental para participar da Comisso Editorial deste livro. Constitumos um coletivo, formado por pessoas de diferentes dispositivos da Sade Mental de Belo Horizonte: trabalhadores e gestores, dos Centros de Convivncia, CERSAMs, Centros de Sade e nvel central. Cada um desses locais e cada uma de ns, em conjunto com os demais que se encontram no espao da cidade, formam a rede de servios e aes que nos permitem dispensar o recurso ao hospital psiquitrico e garantir aos nossos usurios, to orgulhosos quanto ns, o direito liberdade e cidadania. Os atores dessa Poltica tm construdo, ao longo dos anos, a possibilidade concreta de insero da loucura no territrio de Belo Horizonte. Sabemos dos desafios que se apresentam e das conquistas alcanadas. Gostaramos, aqui, de parabenizar a todos, profissionais, gestores, usurios, familiares e parceiros, que transformaram em realidade o que h to pouco tempo era apenas sonho. Este livro, assim como a nossa Poltica, o testemunho de um trabalho feito por muitos, e rene depoimentos de seus protagonistas, assim como as produes artsticas dos usurios e suas falas, refletindo a pluralidade baseada em uma mesma orientao tica. Os textos apresentados trazem na sua estrutura as diretrizes e o percurso que a este projeto so inerentes, divididos em quatro eixos: Construindo Caminhos em Rede - Traz a frtil e bela experincia dos profissionais de Sade Mental dos Centros de Sade e os do Programa Sade da Famlia, numa parceria que muito tem ensinado e potencializado o cuidado a nosso usurio. Acolhendo o que Transborda - Vem nos apresentar a face da urgncia e da crise e seus ousados locais de acolhimento, to necessrios para fazer frente

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aos hospitais psiquitricos. Belo Horizonte tem de fato cumprido sua misso de substituir os manicmios e isso s possvel porque, estrategicamente, incluiu o atendimento crise como sua prioridade poltica. Estendendo a rede - Reflete toda a riqueza dos dispositivos que possibilitam o encontro dos usurios com a arte, com o trabalho cooperado, com o habitar/morar, enquanto direitos inalienveis do cidado e dos espaos de planejamento e reflexo to importantes na realizao de nosso trabalho. Conquistando a Cidade - Traz o depoimento e posio de nossos diversos parceiros, artfices de uma Belo Horizonte sem manicmios, e faz um registro do vigor da intersetorialidade da Poltica de Sade Mental com os vrios segmentos da sociedade. Por fim, muitas e gratas foram as surpresas com os trabalhos recebidos, mas nem todos puderam ser contemplados. Agradecemos a todos aqueles que, em suas generosas contribuies, responderam ao convite. Essa edio revela a construo de uma Poltica slida, consistente, corajosa, que aceita os preceitos e desafios da Reforma Psiquitrica, construindo verdadeiramente Uma Sociedade sem Manicmios. Convidamos voc, leitor, a mergulhar em meio beleza das cores, leveza dos poemas e na profundidade dos textos. Comisso Organizadora Kelly Nilo Psicloga do Cersam Barreiro e Centro de Sade Lindia. Maria Auxiliadora Barros Morais Psicloga do Cersam Noroeste e Centro de Sade Jardim Montanhs. Maria Betnia de Lima Guimares Terapeuta Ocupacional. Gerente do Centro de Convivncia Providncia. Maria Eliza Vasconcelos Farmacutica. Gerente do Centro de Convivncia Carlos Prates. Maria Tereza Granha Nogueira Psicloga do Cersam Venda Nova e membro da Coordenao de Sade Mental. Miriam Nadim Abou-Yd Psiquiatra, Psicloga, Coordenadora de Sade Mental.

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INTRODUO

De uma cidade, no aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que d s nossas perguntas. Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge. (As cidades Invisveis- Italo Calvino)

Para perguntas plurais, respostas sempre singulares. Uma para cada um, uma a cada vez. Efeito sensvel do que uma cidade pode oferecer a seus habitantes ou queles que chegam, seja este um estrangeiro ou algum que retorna do exlio, ou ainda um nativo que chega aps uma longa viagem. Para cada um, a cidade tem como desafio mostrar-se nica; ao olhar de cada um deles, deve revelar-se outra e ao mesmo tempo, a mesma, fazendo fluir por meio do emaranhado de suas redes, a vida e os sonhos que cada um traz, bem como seus medos e frustraes. Em seus pontos de ancoragem, naquilo que oferece de si, a cidade cria as condies para a inveno dos diferentes mundos que a constituem e a tornam possvel como o lugar de habitao do humano. Nem mera arquitetura ou delimitao geogrfica. O traado urbano se desenha e se conforma nos caminhos feitos por seus habitantes, que conduzem uns ao encontro de outros. Mas tambm pelo arranjo que cada um inventa e tece todos os dias na solido de suas fantasias ou em empreendimentos coletivos. Inveno humana a cidade permite aos homens se inventarem como sujeitos dentro de um contorno que margeia suas existncias e inscreve suas histrias. Desde seu incio, em 1993, a Poltica de Sade Mental de Belo Horizonte definiu como um de seus objetivos o dilogo com a cidade, formulando estratgias e criando dispositivos capazes de sustentar a presena pblica e digna do portador de sofrimento mental. Fazer caber a loucura na cidade tem sido um de seus pontos de orientao que se contrape lgica anterior, a do manicmio, aquela que separa, exclui e condena alguns a viverem fora da cultura. Por meio de arranjos sempre criativos e singulares, confronta a anulao e a homogeneizao, inscrevendo a diferena como um direito de cada homem ao mesmo tempo em que integra e participa da construo da sade como um direito. O Sistema nico de Sade, seu pilar, uma construo ousada, democrtica e recente na histria da sociedade brasileira. Um direito de cidadania, agenciador

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de processos que contribuem para a construo de novos modos de viver, de cuidar e se relacionar com o corpo, com o outro e com a cidade. Um processo de transformao que afeta a existncia dos sujeitos e altera a geografia do lugar em que estes vivem. A capacidade transformadora de uma poltica de sade encontra na Sade Mental, talvez, sua maior evidncia, na medida em que esta, quando levada a srio, quando tomada em sua radicalidade, capaz de mudar o cenrio e subverter o traado nico pela pluralidade de caminhos, cuidando, porm, de no confundir pluralidade com ecletismo. No se trata, para esta poltica, de associar caminhos de orientaes distintas; nem tampouco se admite a conjugao de rotas opostas, mas de acolher e oferecer percursos que conduzam sempre incluso de todos. Numa publicao anterior que registra um momento da histria de construo do SUS-BH: Sistema nico de Sade, Reescrevendo o Pblico encontra-se a afirmao das intenes da Poltica de Sade Mental de Belo Horizonte: substituir o hospital psiquitrico e incluir na cidade o portador de sofrimento mental. O artigo A cidade e a Loucura Entrelaces registra as concepes e os princpios que fundamentam a poltica e orientam os servios, as expectativas para o futuro que o aguardava, alm de testemunhar o esforo e a valorizao dada ao trabalho de reflexo e sistematizao de um conhecimento originado pela prtica. Um marco, cuja clareza contribui na elucidao de dvidas e na formulao de novas propostas. Em quinze anos de percurso, a Poltica de Sade Mental de Belo Horizonte, em meio a avanos e recuos, vem construindo uma das mais ousadas experincias de Reforma Psiquitrica no pas, ao articular dois objetivos estratgicos: a implantao de uma rede de servios substitutiva e a desativao de leitos psiquitricos, metas que possibilitaram, no decorrer destes anos, o fechamento expressivo de 1.600 leitos e de dois hospitais psiquitricos. Igualmente expressiva sua rede: so sete Centros de Referncia em Sade Mental (CERSAM), todos funcionando 24 horas (CAPS III), nove Centros de Convivncia, 58 Equipes de Sade Mental nos Centros de Sade, dez Servios Residenciais Teraputicos (SRT), um Servio de Urgncia Psiquitrica Noturna, a Incubadora de Empreendimentos Econmicos Solidrios e nove Equipes Complementares de Ateno Criana e ao Adolescente. Estes dispositivos contam com a parceria de dois importantes recursos da Rede de Sade que so o SAMU e as Equipes de Sade da Famlia, num total de 508 em toda a cidade. Passaro, em breve, a integrar a rede e suprimir duas de suas deficincias, o CERSAM-ad (para os usurios de lcool e outras drogas) e o CERSAMi (para a clientela infanto-juvenil). Duas novas dezenas de Servios Residenciais Teraputicos sero criados como medida imprescindvel ao fechamento de mais um hospital psiquitrico: a Clnica Nossa Senhora de Lourdes. A rede de ateno criana e ao adolescente

INTRODUO

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tambm ser ampliada, com a expanso do Arte da Sade para todas as regionais, respondendo de forma criativa e inclusiva s demandas e embaraos dos pequenos sujeitos. A continuidade de um percurso contribui, sem dvida, para seu avano. Ainda assim, seria ingnuo pensar e afirmar que o mesmo ocorreu sempre em condies iguais ou favorveis. Recuos e avanos fazem parte de todo processo histrico e no foi diferente com a Poltica de Sade Mental de Belo Horizonte. Ao primeiro momento de impulso e introduo desta poltica, sucederam-se outros, onde a construo prosseguia, apontando contudo para uma direo distinta da que lhe deu origem. Um terceiro tempo ento se fez necessrio. Uma escano, um intervalo de tempo para refletir e construir sadas: assim foi o incio do ano de 2003, momento do debate e construo de estratgias necessrias para retomar princpios, avaliar a prtica, recompor servios e equipes, e criar novos dispositivos de modo a possibilitar a superao de impasses e dificuldades experimentadas pelos trabalhadores e usurios no cotidiano da experincia. Vrias intervenes foram propostas e a maioria foi plenamente realizada. Das mais sutis a reformulao do modo de funcionamento dos SRTs, por exemplo, s mais evidentes, como a implantao do Servio de Urgncia Psiquitrica Noturna e da Hospitalidade Noturna ou a criao de uma Poltica de Incluso Produtiva, a Incubadora, um nico propsito: a reafirmao da tica antimanicomial como diretriz da poltica e a articulao do trabalho em rede. Rede como conceito e materialidade tece e possibilita um acontecimento novo na cultura, que a incluso da loucura na cidade e na cidadania. Na sustentao desta idia e desta prtica destaca-se, viva e nitidamente, o desejo decidido daqueles que emprestam seus corpos para substituir os muros e as grades e inventam novos modos de cuidar: os trabalhadores de Sade Mental, sujeitos que se fazem endereo e referenciam os novos percursos dos portadores de sofrimento mental. Causados pelo desejo de fazer diferente, perseguem em sua prtica a construo da utopia de uma sociedade sem manicmios. Ao seu lado, e como novos parceiros da loucura, encontram-se os ACS (Agentes Comunitrios de Sade), autorizados pela poltica, bem como pelo desejo de cada um, a participar da experincia de cuidado com a loucura na cidade; assim como os auxiliares de enfermagem que abdicam da condio de executores da ordem e agentes do silenciamento, passando a ocupar um novo lugar, de onde podem dizer da ruidosa alegria do trnsito entre os loucos e do protagonismo que sustentam no cotidiano dos CERSAMs e Centros de Sade. Encontram-se ainda os cuidadores dos SRTs, os mdicos generalistas e enfermeiros das Equipes de Sade da Famlia e o SAMU, sujeitos at h pouco, estranhos Sade Mental, hoje dialogam com os ditos loucos, com a poltica e a cidade. Os supervisores

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clnicos, sensvel presena e parte desta rede, testemunham as dimenses de um trabalho feito por muitos sob uma mesma orientao tica que abre espao para manifestao do sujeito. Como efeito e compromisso desta poltica, portadores de sofrimento mental se fazem empreendedores e contam sobre os modos de fazer caber seu corpo e seu ritmo no mundo do trabalho. Enfim, mltiplos discursos se articulam e contam sobre uma experincia viva, um trabalho em ato. Rica, plural e decidida, a rede, pelo seu trabalho, compe-se destes variados recursos e outros a serem inventados, no momento em que uma questo exigir uma soluo ainda no existente. Uma rede, portanto, inconclusa e parcial que se expande para fazer caber a todos, um de cada modo e vez, abrindo espao para as singulares invenes de mundo, na mesma medida em que recusa a massificao e a ditadura do modelo nico, a imposio da norma. Este livro, pequeno objeto porttil da cultura, ao ser manuseado, lido, ambiciona colocar em circulao estes discursos, transmitindo a alegria, inquietao e prazer que fez surgir seus escritos, respondendo a mltiplas questes de modos singulares, para sujeitos que as faam no singular de uma experincia qualquer com a loucura ou do convvio com um portador de sofrimento mental. Que de pgina a pgina se destaquem palavras que possam margear novas experincias de cidadania, para loucos e no loucos. Seguindo o desejo de Carlos Drummond de Andrade, possamos, no devir da cidade futura, da Belo Horizonte do amanh, construir uma ptria sem fronteiras, uma cidade sem portas. De casas sem armadilhas. Um jeito s de viver. Mas nesse jeito, a variedade. A multiplicidade toda que h dentro de cada um. Esse pas no meu. Mas ele ser um dia, o pas de todo homem. Concluso de um diagnstico e desejo de um novo futuro: que em seu devir a cidade oferea aos estrangeiros da razo, hospitalidade incondicional. Miriam Nadim Abou-Yd Rosemeire Aparecida Silva Polbio de Campos Souza Coordenao de Sade Mental SMSA/SUS-BH

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CAPTULO I

CONSTRUINDO CAMINHOS EM REDE

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O QUE PASSA NA MINHA CABEA? Uma garrafa rotulada Um baseado da pesada Uma pedra bem fumada Uma carreira esticada Uma agulha afiada Uma loucura inconformada Uma cuca embaraada Uma mulher linda, nua, desejada Um sexo sem freada No O que passa na minha cabea voc, divindade Ronaldo Xavier da Cruz Centro de Convivncia Carlos Prates.

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A SADE MENTAL NA ATENO BSICA DE SADE: UMA PARCERIA COM AS EQUIPES DE SADE DA FAMLIA

Ercilia Gama de Oliveira*

INTRODUO Nos ltimos quinze anos, o mapa da assistncia Sade Mental no municpio de Belo Horizonte ganhou uma nova configurao. Pautados numa lgica que visa a desmontar as prticas sociais e institucionais que excluem e segregam a loucura, os princpios e diretrizes da Poltica de Sade Mental da Secretaria Municipal de Sade tm como estratgia a desinstitucionalizao por meio do tratamento dos portadores de sofrimento mental grave e persistente em uma rede de servios substitutivos ao hospital psiquitrico. A implantao e a ampliao dessa rede, composta por instncias de cuidado articuladas entre si e conectadas com a vida da cidade, criaram um novo fluxo no atendimento: as Equipes de Sade Mental em Centros de Sade para o acompanhamento e a sustentao de projetos teraputicos singulares e territorializados; os CERSAMs (Centro de Referncia em Sade Mental) para situaes de crise; os Centros de Convivncia, para o resgate de laos sociais; os Servios Residenciais Teraputicos para a reabilitao civil de egressos de internaes de longa permanncia e as Equipes Complementares para dar suporte ao atendimento da Criana e do Adolescente. Embora tenham misses especficas, as equipes de sade dos diferentes equipamentos que compem a Rede visam oferecer um projeto teraputico complexo e contnuo, integral e singularizado, considerando tanto as aes relativas clnica do sujeito quanto aquelas relativas sua habilitao e a sua insero no mundo do trabalho e da cultura. Esse processo, que clnico, poltico e social, inclui atores de diferentes setores da administrao pblica e da sociedade civil. AS EQUIPES DE SADE MENTAL EM CENTROS DE SADE Diferente dos servios prestados pelos CERSAMs, Centros de Convivncia e Moradias Teraputicas, a lotao de Equipes de Sade Mental na Ateno*

Psicloga no Centro de Sade Alcides Lins, tcnica da Ateno Sade no Distrito Sanitrio Nordeste.

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Bsica no uma novidade. Em julho de 1985 (antes da municipalizao dos servios de sade, ocorrida em 1991), equipes compostas por um psiquiatra, um psiclogo e um assistente social foram lotadas em alguns Centros de Sade de Belo Horizonte, para o atendimento de portadores de sofrimento mental e egressos de hospitais psiquitricos. Nesta poca, alm da preocupao que havia com a qualidade da assistncia nos hospitais psiquitricos pblicos, as polticas municipais e estaduais de Sade Mental preconizavam a ampliao do atendimento na Rede Bsica com o intuito de evitar a expanso da Rede Privada, que detinha a maior parte dos leitos psiquitricos, custeados pelos cofres pblicos. Entretanto, as avaliaes que se fizeram dessa primeira tentativa de enfrentar os problemas decorrentes da hospitalizao psiquitrica, aps alguns anos de sua implementao, mostraram que a ampliao da Rede ambulatorial para o atendimento em Sade Mental no causou qualquer impacto sobre o nmero de internaes. As equipes dos Centros de Sade no assumiam de maneira significativa o atendimento clientela psiquitrica, que apresentava risco de entrar no circuito da hospitalizao e, ao mesmo tempo, criavam uma nova clientela que se estendia desde as crianas com problemas escolares e mulheres infelizes pelas precrias condies de vida, aos pacientes com graves problemas sociais, entre outros.1 Uma forte associao entre enfermidade, mdico e hospital era reforada pela precariedade da oferta de servios isolados da Rede Bsica e pela falta de um planejamento de aes especficas para os egressos, tornando a referncia hospitalar mais segura para o paciente.2No Centro de Sade Alcides Lins, tivemos a oportunidade de fazer essa pesquisa para um trabalho final da disciplina Planejamento e Elaborao de Programas, ministrada no curso de Sade Mental em Sade Pblica, realizado pela Escola de Sade de Minas Gerais (ESMIG), nos anos de 1986 e 1987. A partir do levantamento de 281 cadastros (de pacientes atendidos no perodo de julho de 1985, quando chegamos no Centro de Sade, at dezembro de 1987, poca da realizao da pesquisa), verificamos que dos 18% dos atendimentos do posto eram feitos pela equipe de Sade Mental, dos quais, 11,4% eram crianas encaminhadas das escolas e 68% eram mulheres includas numa faixa etria de 23 a 60 anos, neurticas e poliqueixosas, com problemas sociais acentuados (baixa renda, pouca perspectiva de vida, baixa escolaridade, sem um espao para trocas culturais e sem iniciativa para cri-los). No que concernia prioridade do Programa, verificamos que dos 281 cadastros, 16% eram psicticos, 24,9% eram egressos, sendo que apenas 11,7% chegaram encaminhados dos hospitais psiquitricos. 2 Em uma pesquisa realizada nos meses de julho/92 a janeiro/93 sobre os pacientes do Distrito Sanitrio Nordeste que chegavam nas urgncias dos hospitais psiquiticos pblicos de Belo Horizonte, verificou-se que 63% dos que chegavam ao Instituto Raul Soares e 73,2% daqueles que chegavam ao Hospital Galba Veloso no estavam em tratamento ambulatorial. Os dados mostraram tambm que dentre os encaminhamentos feitos pela equipe desses hospitais, aps a conduta tomada no ambulatrio de urgncia ou a internao, o mais comum era o encaminhamento para o ambulatrio do prprio hospital. Apenas 4,7% no IRS e 7% no HGV eram encaminhados aos Centros de Sade do Distrito, o que demonstrava a falta de integrao desses servios (Cf.1

A SADE MENTAL NA ATENO BSICA DE SADE

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Nos ltimos quinze anos, as aes das equipes de Sade Mental dos Centros de Sade deixaram de ser concebidas como tticas isoladas de enfrentamento das prticas segregadoras da loucura e o fato de estarem inseridas numa Rede fez retornar questes sobre o processo de trabalho dessas equipes. A priorizao do atendimento ao portador de sofrimento mental grave e persistente, o planejamento de aes especficas para os egressos, a integrao com os outros equipamentos da Rede, a sustentao da clnica, enfim. Essas e outras questes passaram a ser trabalhadas nas reunies distritais e, posteriormente, nas supervises clnicas, para que o Projeto assumido pela Secretaria Municipal de Sade pudesse ser sustentado. AS EQUIPES DE SADE DA FAMLIA ENTRAM EM CENA A implantao do Programa de Sade da Famlia (PSF) em fevereiro de 2002, imprimiu uma nova dinmica no trabalho das Equipes de Sade Mental. No segundo semestre de 2002 foram formados colegiados, fruns e oficinas de discusso, incluindo trabalhadores desde o nvel central at a ponta, para pensar um processo de trabalho das equipes de Sade Mental, tendo em vista a integrao/interface com as equipes de Sade da Famlia. No Distrito Sanitrio Nordeste de Belo Horizonte, as primeiras reunies entre as Equipes de Sade Mental (ESM) e de Sade da Famlia (ESF) aconteceram em dezembro de 2002, promovidas pela ESM do Centro de Sade Alcides Lins,3 em sua microrregio. Pde-se constatar que questes partiam de ambos os lados. A Equipe de Sade Mental, por um lado, temia que o modelo assistencial do Programa de Sade da Famlia, centrado na lgica da vigilncia sade e da qualidade de vida, levasse a um aumento da demanda de uma clientela no priorizada pelo Projeto, reforando essa indefinio.4 J as Equipes de Sade da Famlia, por outro lado, achavam-se despreparadas para o atendimento dos portadores de sofrimento mental. Diante dessa situao verificou-se a necessidade de incrementar discusses sobre como promover a integrao do Projeto deGRECO, M. G. Aplicao de um mtodo de planejamento local para a incluso da clientela psiquitrica nas prioridades de Ateno sade no Distrito Sanitrio Nordeste de Belo Horizonte. 1994. Monografia (Curso e Especializao em Sade Mental) Belo Horizonte: ESMIG. 3 Desde a implantao das Equipes de Sade da Famlia, no primeiro semestre de 2002, a Equipe de Sade Mental do CS Alcides Lins referencia 15 Equipes em sua microrregio: cinco no CS Alcides Lins, quatro no CS Gentil Gomes, trs no CS Cidade Ozanan e trs no CS Cachoeirinha. 4 Pelo fato de estarem num equipamento que a porta de entrada do sistema de sade que, por sua vez, recebe as diferentes demandas em estado bruto, o estabelecimento de prioridades no atendimento pelas Equipes de Sade Mental das Unidades Bsicas sempre implicou um cuidadoso trabalho de escuta. Sendo assim, dizer que a prioridade dessas equipes consiste no atendimento de psicticos, egressos e neurticos graves no suficiente, sobretudo quando sabemos o tamanho da brecha que se abre sob o rtulo de neurticos graves.

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Sade Mental e do Programa de Sade da Famlia.5 Com base na experincia vivida nesse processo no C.S. Alcides Lins e nas diversas discusses nas reunies do Distrito Sanitrio Nordeste, chegou-se a um consenso de que essa integrao uma estratgia de grande importncia para a sustentao das prioridades do Projeto de Sade Mental da cidade. Hoje, segundo tticas diferentes, apropriadas realidade de cada Equipe de Sade Mental, ela acontece nos seis Centros de Sade Referncia do Distrito, em que participam tambm tcnicos do CERSAM. ACOLHIMENTO: UM TRABALHO MULTIDISCIPLINAR A construo de um caso clnico na sade pblica feita a partir da prtica de muitos e ela comea no acolhimento, na porta de entrada do servio. Partindo do pressuposto de que toda a populao (criana, adolescente e adulto) deve ser acolhida e referenciada por uma Equipe de Sade da Famlia, tambm o paciente referido como sendo da Sade Mental deve entrar na Rede de Sade por esta Equipe. No Centro de Sade Alcides Lins, todos os casos so recebidos no acolhimento das equipes de Sade da Famlia, exceto aqueles de pacientes egressos do CERSAM e dos hospitais psiquitricos, em condio de alta, que por meio de um contato telefnico so diretamente agendados para um dos profissionais da Equipe de Sade Mental que, por sua vez, responsabilizarse- pelo contato com a Equipe de Sade da Famlia. A Equipe de Sade Mental far um trabalho de parceria com estas equipes sempre que for solicitada. Alm de uma parceria pontual, no momento mesmo do acolhimento, a agenda dos profissionais psi est aberta diariamente para receber casos encaminhados pelas Equipes de Sade da Famlia devidamente referenciados. Entendemos o acolhimento como a porta de entrada de uma linha de cuidados sistematizada de acordo com as necessidades do paciente. As respostas disponveis e proporcionveis pelos membros da equipe da Unidade de Sade so, geralmente, hierarquizadas de acordo com o seu grau de complexidade, e a escuta no acolhimento deve ser capaz de conjugar a natureza do problema apresentado com os critrios de prioridade para atendimento imediato ou programado, somados e ponderados com critrios de complexidade e competncia das diferentes respostas disponveis.6 Cabe ressaltar, e isso especialmente importante no acolhimento dosEm setembro de 2004 foi realizado pela Secretaria Municipal de Sade um Seminrio da Ateno Bsica do Municpio, que foi uma oportunidade de avaliar as primeiras tentativas desse trabalho integrado, possibilitando ampliar as perspectivas, evidenciar os ns crticos, bem como apontar sugestes para a construo deste trabalho conjunto a partir das particularidades das experincias apresentadas. 6 Cf. ALEIXO, J. L. M. in: Porta(s) de entrada do sistema de sade: acolhimento ou recepo acolhedora. Belo Horizonte, 1999 (mimeo).5

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pacientes da Sade Mental, que o grau de complexidade das respostas disponveis em um Servio de Sade no se confunde com o grau de resolutividade que pode ser alcanado. Iniciativas simples e pontuais realizadas durante o acolhimento podem ser muito eficazes. Consideramos que o acolhimento no se reduz a um primeiro encontro com o paciente e nem que ele tenha que ser realizado por um nico profissional. Um retorno poder ser agendado para melhor apreciao do caso e/ou um outro profissional poder ser convidado a dar o seu parecer. Segundo o relato de alguns colegas que fazem o acolhimento, ocorre, freqentemente, a demanda de um atendimento especializado, alegando-se que o enfermeiro ou auxiliar de sade no esto aptos para faz-lo. Como sabemos, a superao do paradigma que supe o saber mdico como hegemnico no acontece de uma hora para outra e exige uma mudana na posio de todos os sujeitos que alimentam a linha de cuidados: profissionais e usurios. Ademais, o trabalho multidisciplinar realizado pela parceria entre as equipes de Sade da Famlia e de Sade Mental, no qual estamos apostando, no busca enfatizar o grau de complexidade das respostas disponveis, mas alargar competncias comuns, desmontando e reorganizando poderes e saberes estabelecidos.7 Nessa linha de cuidados, todos so convocados a contribuir na montagem de um projeto teraputico, que supe atos variados no contexto de uma estratgia global em que a utilidade e o valor relativo dos saberes e aes particulares so norteados e organizados pelas necessidades mltiplas dos nossos pacientes.8 O que vem coroar esse processo o vnculo que se estabelece entre o profissional (ou profissionais) e o paciente, o que ser fundamental para o tratamento. De um lado, o voto de confiana depositado pelo paciente no profissional que o referencia; de outro, o convite para que o paciente participe da cena dos cuidados, sustentando sua posio de sujeito responsvel pelo seu estado de sade. REUNIES COM AS EQUIPES DA MICRORREGIO E SUPERVISO CLNICA As Equipes de Sade da Famlia, porta de entrada dos servios de sade, so tambm responsveis pelo acolhimento e conduo dos casos no priorizados pelo Projeto de Sade Mental, bem como daqueles que no momento se encontram estabilizados. A Equipe de Sade Mental, lotada no Centro de Sade, referencia as Equipes de Sade da Famlia do territrio adscrito. Ser referncia para um determinado territrio no algo que se impe pela fora do espao geogrfico7 8

Cf. SADE Mental na Assistncia Bsica, julho de 2003 (mimeo). Ibidem.

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simplesmente. Entendemos que uma referncia construda e legitimada pelo efeito de seus atos no territrio. Este, por sua vez, constitudo por aes coletivas que precisam ser identificadas para que haja o reconhecimento de parcerias e resistncias, bem como para que sejam ampliadas oportunidades e detectados recursos disponveis na regio para a realizao de aes voltadas para a promoo da sade. Para isso, dependemos de um estreitamento de laos entre os diferentes atores do processo, tanto aqueles da sade quanto de outros setores da sociedade. Nas reunies com a microrregio, trabalhadores da Sade Mental e da Sade da Famlia vo construir conjuntamente um trabalho territorial: agendar visitas domiciliares, decidir pela busca de parcerias com outras instituies, esclarecer as competncias e prioridades dos outros equipamentos da Rede de Sade Mental, divulgar fluxos etc. tambm o momento para construir conjuntamente projetos teraputicos, discutir o manejo de psicofrmacos, definir estratgias e condutas que minimizem a demanda de benzodiazepnicos, bem como de esclarecer critrios de prioridade e protocolos de encaminhamento e agendamento. No Centro de Sade Alcides Lins, a equipe de Sade Mental temse responsabilizado pelo agendamento destas reunies com as equipes da rea de abrangncia, embora j houvesse casos em que a realizao de uma ou outra reunio partiu da iniciativa das equipes de Sade da Famlia. Nesse processo, a participao dos profissionais do PSF nas supervises clnicas mensais, onde feita uma interlocuo com a psicanlise, passa a constituir um espao de construo de projetos teraputicos, de esclarecimento de diagnsticos, de orientao sobre o manejo de casos de difcil conduo. Esse espao, que consideramos privilegiado no que toca questo da formao, possibilita ainda, a partir da particularidade de cada caso, reconhecer aquilo que paradigmtico de uma estrutura clnica, o que auxilia na conduo do tratamento de um sujeito, seja na Clnica Mdica, na Sade Mental ou no momento do acolhimento. No que toca a ateno Sade Mental da criana e do adolescente, cabe ressaltar o papel do Frum da Criana e do Adolescente. Na Regional Nordeste, as reunies so mensais e, atualmente, contam com a participao de representantes de diferentes setores da administrao pblica (Sade, Educao, diferentes Programas da Assistncia Social, Conselho Tutelar, Promotoria de Justia da Infncia e Juventude etc) e da Sociedade Civil. Desde o incio de 2006, foi proposto um novo formato para as reunies, que tm sido temticas, reservando a discusso mais exaustiva de casos especficos para Grupos de Trabalho eleitos de acordo com o caso (considerando a rea de abrangncia, o foco do problema levantado e os atores envolvidos).

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RESULTADOS Antes da implantao do Projeto de Sade Mental de Belo Horizonte, as nicas referncias para pacientes graves ou em crise eram os hospitais psiquitricos. Desde a implantao do Projeto em 1993, foram fechados 1.600 dos 2.100 leitos existentes para portadores de sofrimento mental. Hoje esses pacientes esto sendo cada vez mais absorvidos pela rede substitutiva aos hospitais psiquitricos. Para o atendimento desses casos na rede substitutiva houve a necessidade de desenvolvimento de uma parceria com o Programa de Sade da Famlia, uma vez que ele representa a porta de entrada dos servios de sade. Pode-se observar como resultado desse trabalho que a parceria ESM/ ESF tem permitido uma captao mais rpida do portador de sofrimento mental grave pela Rede de servios substitutivos, diminuindo o nmero de atendimentos de casos agudos em hospitais psiquitricos pblicos. A organizao do fluxo de atendimento da Sade Mental, no contexto dessa parceria, monta uma linha de cuidados em que todos so convocados, inclusive o paciente, a contribuir na construo de um projeto teraputico, fundamentado no vnculo estabelecido entre o paciente e a Rede que o referencia. Verifica-se uma melhora na relao entre os usurios e os diferentes servios da rede, permitindo um avano na qualidade do atendimento e uma maior facilidade de acesso do portador de sofrimento mental grave s agendas da Equipe de Sade Mental da Rede Bsica, j que a agenda desses profissionais pode permanecer aberta para receber casos novos. Alm disso, a participao do CERSAM Nordeste nas reunies da microrregio facilitou o balizamento das prioridades do Projeto de Sade Mental com as ESF, contribuindo para maior responsabilizao e clareza nos encaminhamentos. Considerando que os usurios crnicos de benzodiazepnicos e antidepressivos formavam um contingente muito expressivo nas agendas dos profissionais da Sade Mental, foram buscadas e inventadas estratgias e condutas visando a minimizar essa demanda. A responsabilizao do PSF por estes usurios no s tornou mais gil o acesso do paciente grave, quando necessrio, Sade Mental, como tambm imps um desafio clnica mdica tradicional, que passou a ter que buscar outras sadas. Por meio de uma variada gama de aes festas, debates, hortas comunitrias, tardes culturais, oficinas de artesanato, coral, escola de samba criaram-se vrias atividades coletivas. Este movimento em direo cultura, fortalecido pelo decisivo lugar de destaque ocupado pelo Centro de Convivncia na Rede, como potente equipamento de promoo da sade e de incluso social dos portadores de sofrimento mental grave e persistente, d um perfil singular e um eixo de sustentao parceria PSF/Sade Mental, tal como vem ocorrendo no Distrito Nordeste de Belo Horizonte.

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FACILITADORES E DIFICULTADORES DO TRABALHO A parceria ESM/PSF tem sido facilitada pelas aes empreendidas pela Coordenao de Sade Mental da Secretaria Municipal de Sade. Cabe ressaltar sua participao nas reunies distritais, a promoo de seminrios temticos e a oferta mensal de um curso de capacitao em Sade Mental para generalistas e enfermeiros, estendido recentemente para outros profissionais da sade. O apoio do Distrito facilita essa parceria, buscando o envolvimento de todas as gerncias das UBS com o Projeto de Sade Mental, participando das reunies das microrregies, redefinindo metas a partir do levantamento do perfil de atendimento dos profissionais da Sade Mental, organizando cronogramas, promovendo encontros etc. A maior integrao entre os hospitais psiquitricos pblicos e a Rede de Ateno Sade tem favorecido a continuidade no tratamento dos casos graves. O Hospital Galba Veloso tem encaminhado mensalmente ao Distrito uma listagem dos nomes dos pacientes que chegaram na urgncia (< 24 horas ou internao) bem como a conduta adotada pela equipe hospitalar, facilitando a rpida captao desses pacientes pela Rede Bsica, que tem realizado a busca ativa. Tambm o agendamento com as Equipes de Sade Mental referncia dos egressos em situao de alta hospitalar, por meio de um contato telefnico prvio com o Distrito, tem contribudo para a continuidade do tratamento do portador de sofrimento mental na Rede bsica, evitando novas internaes. Entre os aspectos dificultadores do trabalho integrado ESF/ESM, ressaltamos a mudana de paradigma no modelo assistencial. A mudana de um modelo curativista centrado na figura do mdico para um modelo que enfatiza o trabalho em equipe e a vigilncia sade, representa um desafio e um aprendizado tanto para as equipes de sade, que tem que assumir uma nova postura perante o paciente, quanto para o usurio que convidado a sustentar uma posio na cena dos cuidados com a sade. A carncia de recursos humanos no Distrito Sanitrio Nordeste um outro dificultador para o desenvolvimento das aes integradas das equipes. Atualmente, 16% das Equipes de Sade da Famlia no contam com o mdico generalista e as Equipes de Sade Mental de dois Centros de Sade esperam, h dois anos, o profissional psiquiatra. CONSIDERAES FINAIS A no-responsabilizao do conjunto da populao pelos portadores de sofrimento mental, construda historicamente com a entrada dos saberes da psiquiatria e da psicologia, volta pauta nas reunies distritais de Sade Mental, na superviso clnica de casos de pacientes psicticos atendidos pelos mdicos generalistas, enfermeiros e agentes comunitrios, na construo compartilhada

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de projetos teraputicos, no convvio dirio da sociedade com esses pacientes, que agora voltam a circular pelas ruas da cidade. O portador de sofrimento mental deixou de ser um problema exclusivo do profissional psi. O Projeto de Sade Mental, sustentado pela Rede de Servios de Sade Mental em parceria com as Equipes de Sade da Famlia, tem incrementado e ampliado as aes na Rede Bsica, contribuindo para uma mudana da posio tica e poltica dos profissionais em relao a esse paciente. Nesse sentido, a parceria que se busca desenvolver entre as Equipes de Sade Mental e de Sade da Famlia baseia-se numa concepo de sade marcada pela constante interlocuo com a cultura, que faz, tanto do PSF quanto da Sade Mental, no apenas cuidadores ou terapeutas no sentido estrito, mas agentes sociais que buscam formas diferentes de relao e convvio com a populao referenciada.

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SADE MENTAL E PSF: TESTEMUNHO DE UM TRABALHO CONJUNTO

Kelly Nilo*

Em agosto de 2004, uma Equipe de Sade Mental com dois psiclogos e um psiquiatra se estabeleceu no Centro de Sade Lindia, que pertence ao Distrito Sanitrio Barreiro. At ento, a populao referenciada por ela e pelas unidades Regina e Itaipu era atendida no Centro de Sade Tirol. Momento peculiar aquele, em que mudanas administrativas e, por conseqncia, de processo de trabalho estavam fervilhando nas trs unidades. Esse novo grupo de trabalhadores tenta se instalar e se localizar diante dos acontecimentos. Alis sua chegada era mais um acontecimento... Mudanas so habitualmente encaradas com dificuldades porque apontam para o inesperado, o que est fora do planejado, do combinado. Situaes assim exigem muitas vezes reposicionamentos subjetivos, o que no sempre fcil. Fcil continuar tudo como sempre foi, embora o preo muitas vezes seja a mortificao das pessoas, dos relacionamentos. A chegada, portanto, desses profissionais criou a expectativa de que todos os problemas relacionados a qualquer sofrimento psquico da populao assistida seriam resolvidos. Mas no foi bem assim... O que Freud chamou de mal-estar da civilizao est radicalmente associado condio humana. Sofremos porque somos, e sabemos que somos, incompletos, imperfeitos e finitos. Ou em termos freudianos, sofremos por causa da castrao. Desconstruir essa demanda no foi tarefa fcil. Trabalhar com uma prioridade: os psicticos e neurticos graves, num Sistema nico de Sade que tem como princpio a universalidade foi, por vezes, embaraoso... Mas j que tudo era novo em termos da histria da assistncia da sade no Brasil, o SUS muito novo, novssimo o PSF o trabalho conjunto Equipe de Sade Mental e Equipe de Sade da Famlia estava comeando. Era indispensvel inventar uma forma de trabalhar conjuntamente. A desospitalizao*

Psicloga do Cersam Barreiro e do Centro de Sade Lindia.

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psiquitrica uma realidade to inexorvel como o fortalecimento da ateno bsica na sade pblica. Duas tendncias globais, duas diretrizes polticas, dois motivos para esse grupo de trabalhadores se entenderem. Na construo dessa histria, a ferramenta utilizada sempre foi o dilogo, a interlocuo, a troca. Encontros formais mensais e outros ocasionais no corredor, no refeitrio, na porta do consultrio, na recepo. Conversas inicialmente speras que o tempo e a histria suavizaram. Com a adoo do conceito ampliado de sade as demandas que chegam para uma equipe de profissionais de sade da famlia so mltiplas e complexas. Complexificou-se a oferta, o mesmo ocorreu com a demanda. A conduta mdica que at h pouco tempo se resumia a quase exclusivamente medicao e/ou pedidos de exames agora se multiplicam. E importante lembrar que no mais s o mdico o nico responsvel pela sade de um cidado. O enfermeiro, o auxiliar de enfermagem e especialmente a figura inovadora do Agente Comunitrio de Sade (ACS) so fundamentais para a assistncia bsica em sade. Portanto, com a chegada da Equipe de Sade Mental criou-se a expectativa de que ela poderia responder por uma srie de demandas que expressam o sofrimento psquico da populao e que no h um remdio especfico que cure. No incio, os encontros tinham apenas um objetivo: passar o caso. Encaminhar aquele que sofre de males no-orgnicos para aquele que estudou e aprendeu a lidar com os males psquicos. Estava ali colocada a diviso de tarefas. E outro princpio do SUS ameaado: a integralidade. Mente e corpo inconciliveis. Desconsiderado o ser integral. Era importante desfazer esse abismo, afinar os instrumentos, porque o motivo para o trabalho conjunto era tambm um s: o paciente, o usurio, o sujeito. Seja qual for a forma de tratamento, sabemos que ele indivisvel, nico, particular... Mas quem entra e quem no entra? Quem passa? Esse era o grande embarao no incio. Quanto aos psicticos no ficavam dvidas, mas e em relao aos neurticos graves? O que caracteriza uma neurose grave? A gravidade de um ato como uma tentativa de auto-extermnio? Todas as tentativas de autoextermnio refletem um adoecimento psquico grave? Ou seria importante saber como esse fato se processou? O que o sujeito que o cometeu pensa sobre o que fez? Em que condies fez o que fez? Qual era a inteno no momento, se fez outras vezes... Estandardizar uma conduta nica para todos os casos de tentativa de auto-extermnio, luto, uso de drogas, rompimentos afetivos, fracasso escolar era o que havia de mais distante para uma assistncia efetiva em sade mental. E o pior era desconsiderar os recursos pessoais e comunitrios de quem passa por dificuldades srias, mas transitrias. Necessrio era desfazer a idia de que estar com um psiclogo ou psiquiatra era a conduta nica e possvel para todo aquele que sofre de um mal no orgnico.

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Ou seja, medicalizar ou psicologizar o sofrimento humano. Nesse percurso algumas construes foram realizadas conjuntamente. Muitas vezes o melhor para aquele que sofreu uma grande perda deix-lo seguir sua vida, apontando recursos que o sujeito j conta com eles, mesmo sem saber. Em algumas situaes o sofrimento o do profissional que escuta. o no suportar a angstia do outro que faz surgir a necessidade de uma conduta, uma ao, ou uma atuao para fugir da situao. Que fazer terapia no uma terapia no sentido ldico da palavra, ao contrrio, penoso, e muitas vezes caro porque requer retificaes subjetivas que o sujeito no est disposto a bancar. Que manter-se no trabalho, na escola, preservando os laos afetivos e sociais so bons ndices de que o sujeito diante do inusitado da vida est respondendo bem e provavelmente se recuperar do golpe. Que coloc-lo em um tratamento psi pode comprometer esses laos e principalmente sua autoconfiana em atravessar as intempries da vida. Em relao aos psicticos outros foram os aprendizados. A equipe ficou um ano sem psiquiatra. E nesse perodo os generalistas se viram forados a acompanh-los, garantindo o uso da medicao prescrita. As reunies continuaram a acontecer, prova de que no era uma reunio de mdicos e, sim, de profissionais responsveis pela assistncia de uma determinada populao. Em muitos casos o generalista iniciou e continuou o tratamento. Desmistificando a idia de que aos loucos, o psiquiatra, a medicao. E quando a equipe foi recomposta pelo psiquiatra alguns generalistas ponderaram que no era preciso repassar o paciente para a psiquiatria: eles dariam conta de continuar conduzindo os casos. claro que isso no significa que a equipe pode ficar bem sem um psiquiatra. Constatou-se a melhoria da qualidade do servio com a presena deste profissional. Os generalistas ficam mais seguros para conduzir os casos, quando podem trocar informaes, orientaes e sugestes com esse profissional. E em muitos outros, a complexidade do caso pedia um acompanhamento mais criterioso, uma abordagem mais especfica, ou seja, a conduo do psiquiatra. Mas, nesse perodo de um ano, pouco se recorreu ao Cersam para esses pacientes acompanhados pelos generalistas e psiclogos, mostrando mais uma vez que loucura no cabe exclusivamente um saber. Aprendeu-se tambm que falas como paciente psiquitrico ou da sade mental s elucidam a excluso que, durante tantos anos, vitimou esses sujeitos. Que o louco tem um corpo e por vezes est a a causa do seu adoecimento, e que por isso no tem sentido segreg-lo a s tratar-se com psiclogos e psiquiatras. Descobriu-se o quanto um ACS pode contribuir no tratamento de um portador de sofrimento mental com seu interesse por ele, com visitas que, discutidas antes e depois com a Equipe de Sade Mental, no seriam invasivas,

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seriam uma presena tolervel para aqueles mais resistentes a irem ao Centro de Sade, acompanhando sua medicao, colhendo informaes com a famlia sobre o estado do paciente. O momento, hoje, de construo do caso. A inteno saber quem est por detrs daquele relato, o sujeito, sua histria, suas particularidades. O que um encontro com um profissional da sade mental, seja para tratar, orientar, acolher poder benefici-lo. E o trabalho conjunto extrapolou a construo de casos... Tentativas bem-sucedidas de grupos operativos com a participao do mdico generalista com algumas pacientes viciadas em benzodiazepnicos propiciaram um momento de reflexo sobre o remdio que buscavam de fato e para que mal. E os efeitos dessa bengala imaginria. O acolhimento compartilhado momento em que um profissional da Sade Mental com um enfermeiro da Equipe de Sade da Famlia entrevista um usurio que representa a demanda (dele ou do profissional) de tratar-se com um psiquiatra ou psiclogo. Algum que independente de dar incio a um tratamento ou no poderia de qualquer forma se beneficiar de uma escuta mais aprofundada. O que perguntar, quando se calar, o que valorizar na fala do outro foram saberes transmitidos muito mais no fazer do que por meio de teorizaes complexas e muitas vezes inalcanveis. A equipe tambm participa do colegiado gestor, da comisso local de sade, o que faz dela no um apndice, mas um grupo atuante nas questes relevantes da unidade que sabe de sua importncia e do papel que desempenha na integralidade das aes de sade. Fato esse decisivo para que os demais profissionais passassem a ver essa equipe como parceiros e no estrangeiros que teriam o poder de decidir sobre a oportunidade de algum estar em tratamento psicolgico ou psiquitrico ou no... Isso fez toda a diferena!!!

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UMA CLNICA POSSVEL EM SADE MENTAL Maria Auxiliadora Barros Morais*O correr da vida embrulha tudo: a vida assim: esquenta e esfria, aperta e da afrouxa, sossega e depois desinquieta: o que ela quer da gente coragem. (Guimares Rosa Grande Serto Veredas)

Em tempos to difceis, alegra-me poder falar do desejo que sustenta um trabalho e tambm de esperana, no sentido que nos ensina Snia Viegas: Ter esperana apostar em algum ou em algo, mesmo sem previso objetiva possvel de que o que esperamos acontecer. H 16 anos, estou na Prefeitura de Belo Horizonte trabalhando na sua maior regional a Noroeste , desde o incio numa Unidade Bsica de grande complexidade o Centro de Sade Jardim Montanhs e, h 4 anos tambm no CERSAM do mesmo Distrito Sanitrio. Durante todo este tempo, tive oportunidade de acolher centenas, milhares de pessoas cada uma trazendo sua singularidade. Tenho, portanto, experincia em Sade Mental desde antes da implantao do Programa de Sade da Famlia, cuja estratgia de atendimento trouxe mudanas em nossa prtica clnica. Hoje, os Centros de Sade esto estruturados em equipes constitudas por mdicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes de sade que atendem famlias de determinada rea de abrangncia e tm a Sade Mental como apoio matricial. No mesmo barco, na mesma Rede, estamos todos: Centros de Sade, CERSAM, Centros de Convivncia e CERSAMi. O que nos torna parceiros a constante tessitura desta Rede, ou seja, toda uma linha de cuidados para nossos pacientes, que culmina no que chamamos de Projeto Teraputico. Qual a clnica possvel nesta travessia mar adentro? Atualmente, ns, profissionais da Sade Mental, temos trabalhado com as Equipes do Programa de Sade da Famlia numa delicada e rica construo, que implica em abrirmos mo da arrogncia, da hegemonia de um saber sobre os demais e numa aposta na parceria interdisciplinar. Nossa microrea constituda de trs Centros de Sade: Jardim*

Psicloga do Centro de Sade Jardim Montanhs e CERSAM Noroeste.

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Montanhs, So Jos e Jardim Alvorada, com 2 Equipes de Sade Mental compostas de quatro psiclogos e uma assistente social. H mais de dois anos no contamos com a presena do profissional psiquiatra, o que no tem impedido a discusso e conduo de casos e nem tem resultado em mais encaminhamentos dos mesmos ao CERSAM, pelo contrrio, no momento, verificamos que esta microrea tem o menor nmero de pacientes em permanncia-dia.1 Os profissionais do Programa de Sade da Famlia tm sustentado o acompanhamento de casos e, quando necessrio, tm referenciado os mesmos s equipes de Sade Mental, com encaminhamentos adequados e precisos. Os generalistas e enfermeiros, particularmente os que pertencem ao Centro de Sade Jardim Alvorada, tm participado ativamente das reunies de microrea e das supervises clnicas, o que tem possibilitado uma interlocuo fecunda e uma relao de mtua confiana. O que nos sustenta o nosso desejo, para alm da burocracia, do maior ou menor empenho de gerncias, da organizao de agendas, de reunies marcadas para o ano em curso. Procuramos oferecer a quem nos procura uma escuta do mal-estar que o traz a ns. Ainda que seja mais uma mulher, entre tantas, na maioria das vezes, donas-de-casa insatisfeitas com sua vida, queremos tornar possvel o aparecimento de sua singularidade. Entendemos que nossa funo no corrigir, adaptar ou consolar, pois no pretendemos anestesiar a dor que vem da alma, mas permitir que o sujeito entre em contato com ela, a fim de produzir algo novo. No oferecemos a cura no sentido de supresso de sintomas, no prometemos e nem damos garantia, a no ser a de sustentarmos uma escuta que possibilite ao outro encontrar sadas, viver de modo mais criativo, construir, afinal, um sentido para sua vida. A cura um conceito discutvel, quando se trata da dimenso psquica. Ela significa muito mais aprender a lidar com problemas do que querer resolvlos de forma definitiva. (Inez Lemos) Parece-me, ento, ser possvel uma clnica de Sade Mental que a da escuta de cada um, o que no exclusividade dos profissionais psi, mas de todos os que acolhem algum que est sofrendo ou que demande algo. Trata-se de uma clnica a ser inventada a cada dia, a cada acolhimento, que no se deixa engolir pela voracidade da demanda pblica, sobretudo de medicao, mas que tem como direo de tratamento o rigor de uma tica que se dispe a escutar o caso a caso.Este texto foi escrito em maro de 2007, em momento anterior chegada do novo psiquiatra no Centro de Sade Jardim Montanhs.1

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Portanto, fundamental sairmos do automatismo, do imperativo da pressa e da resolutividade e nos abrirmos para o indito, contemplando a radical alteridade do outro. necessrio, cada vez mais, qualificarmos nossa escuta, fazendo da demanda que no cessa uma pergunta do sujeito sobre si mesmo. Em nosso horizonte, colocamos uma ateno bsica em que todos os profissionais se apropriem da Sade Mental; que a loucura possa transitar entre ns, que a tristeza no seja chamada de depresso, que os lutos sejam vividos sem medicao e que aqueles de quem cuidamos tornem-se responsveis pelo seu prprio destino. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS LOBOSQUE, Ana Marta. Princpios para uma clnica antimanicomial e outros escritos. So Paulo: Hucitec, 1999. A CONDUO do Tratamento em Sade Mental. SIRIMIM, jan./abr. de 2004. DISPOSITIVOS de Tratamento em Sade Mental na Rede Pblica: Construindo um Projeto (Ncleo Pr-Formao e Pesquisa do CERSAM Barreiro) - Gesto 1995 VASCONCELOS, Rosa Maria. Referncias... Um tear na rede. SIRIMIM , out./ dez. 2005. LEMOS, Inez. A dor que vem da alma. Estado de Minas, Caderno Pensar, 6 maio 2006. VIEGAS, Snia. Carta s filhas. Belo Horizonte, fev. 1983. CARVALHO, Frederico Zeymer Feu de. A clnica do CERSAM (texto redigido por ocasio do primeiro aniversrio do CERSAM Leste de Belo Horizonte). Metipol, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, 1998. ROSA, Joo Guimares. Grande serto veredas. 32. imp., So Paulo: Nova Fronteira, 1988.

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PSF E SADE MENTAL: COMPARTILHANDO HISTRIAS

Rosnia Aparecida da Silva*

No nosso dia-a-dia no Centro de Sade, deparamo-nos com toda sorte de queixas, demandas e necessidades. Com a D. Maria, que vem controlar sua presso, vem a solicitao de receita de Diazepan, que faz uso h mais de 20 anos, e j nem se lembra mais porque comeou; com o Sr. Jos, que vem procurar um pouco de alvio para sua falta de ar, vem o pedido desesperado de ajuda para dormir, coisa que, segundo ele, j nem sabe o que faz tempo; com a Sra. Imaculada, que h 2 dias perdeu o filho matado a tiros, por engano, ele tinha acabado de sair da escola, noitinha, e foi confundido com um outro sujeito, na frente do Posto, vem o desespero, a agonia, a tristeza e a inconformidade que nenhuma letra ser capaz de descrever e definir; com a D. Josefina, preocupada com o seu diabetes que no tem jeito, dotora, desse acar no sangue baixar, acho que isso coisa posta, vem o desalento de ter sido abandonada jovem ainda, por quem foi o primeiro grande amor da sua vida, com os filhos todos pequenos pra criar, sozinha, com a fora e o suor do seu corpo apenas, que reclama eu nunca fui amada na vida..., e que apesar de tudo, ainda espera viver um grande amor quero me casar na igreja, com vu, grinalda e tudo..; com a D. Terezinha vem as lgrimas e a confidncia de ter sido abandonada pelos filhos, est morando sozinha, j bem idosa, com dificuldade pra andar e cuidar de si prpria, estou mngua ... a gente fica doida pros filhos crescerem, e quando eles crescem e vo embora uma saudade... e de seus olhos caem alguns pingos salgados de amargura e de solido; com o Josivaldo, moo ainda, na cadeira de rodas, desde o incio da sua mocidade, foi tiro, dotora,..... dos 22 amigos que tinha de criana, s dois viraram trabalhador, o resto tudo bandido, vem a denncia da falta de condies bsicas para sobrevivncia na qual vivem muitos e desabafa que jovens aos 12, 13 ou 14 anos, mesmo de famlias com firmes princpios ticos e morais, em um ambiente de criminalidade e misria,*

Mdica Generalista do Centro de Sade Pedreira Prado Lopes.

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ausncia de muito do que primordial para uma vida de cidadania, muito dificilmente no seriam seduzidos pelo crime; com a D. Marcilene vem dores mltiplas, di tudo, da pontinha do p ao final do fio do cabelo, vem as dores do corpo para dar visibilidade s dores da vida; e vem tambm aquela moa gritando, dizendo alto que esto querendo mat-la, que ela est ouvindo vozes dizendo isso. Ela olha para os que esperam na recepo e esboa investir-se contra eles porque a esto olhando, e ela chora, e ao mesmo tempo ri, e quer rasgar papis da mesa, e diz que a polcia invadiu sua casa, e ela est inconformada, e vem dividir a sua dor conosco, a dor que a descompensou, a dor que a desatinou e tambm vem o que implora essa cachaa t acabando com a minha vida, com o meu emprego, a minha famlia, me d um remdio para tirar este maldito vcio...eu j no agento mais, j fiz de tudo...mas no tenho foras pra parar. E so tantas dores, tantos pedidos de ajuda, tantas demandas para as quais no sabemos, nem de longe, onde encontrar sadas; mas tambm no precisa, muitos j sabem da sua misso de encontrar os prprios caminhos, eles querem ser ouvidos, compartilhar vivncias, experincias, histrias. No fundo, eles querem ser tratados como gente, pessoas completas, que sentem dor na carne e na alma tambm, eles querem, alm da receita que muitas vezes lhes fazem calar a boca para encurtar a consulta porque a fila est grande ou preciso cumprir uma produo, uma oportunidade de se expressarem enquanto cidados, gente de direito e desejos. Naturalmente os assuntos da sade mental misturam-se rotina e prtica da equipe. Mesmo que algum no esteja enxergando, no goste ou no queira, a integrao sade mental e sade da famlia vem acontecendo, sorrateiramente, na rea de abrangncia, no nosso encontro dirio com o usurio, que teima em nos dizer todo dia, que corpo, mente e alma no existem separados, que no tem como tratar das suas partes sem considerar e dar ouvidos a esse todo, que ele, pessoa inteira, e que insiste em se pronunciar, em pedir ajuda para os vrios trabalhadores da sade, que consigo e a comunidade so responsveis pela sade dele. Ns, profissionais do Centro de Sade Pedreira Prado Lopes, no obstante nossa necessidade diuturna de aperfeioamento, caracterstica de qualquer ser humano no alienado no seu tempo, temos nos esforado para acolher com dignidade e humanizao as pessoas que nos procuram, cada um cumprindo seu papel, obviamente, com envolvimento diferenciado, ditado pelas afinidades e o que cada qual est disposto e pode doar de si. Um elo companheiro e acalentador tem sido a assistente social da unidade, aberta s necessidades de escuta e afeto dos usurios e nossas, pois nos deliciamos, mas tambm sofremos com o nosso fazer em sade. Trabalhamos na perspectiva de oferecer pessoa o cuidado que ela

PSF E SADE MENTAL: COMPARTILHANDO HISTRIAS

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necessita, seja no mbito do Centro de Sade e das nossas competncias ou extramuros, acionando o trabalho de outros atores da rede de sade e de ajuda, porque concebemos rede como suporte para o usurio e para o trabalhador, envolvendo outros parceiros, algumas vezes at de outros setores. Temos conseguido, apesar de alguns dissabores, dividir responsabilidades, discutir caminhos e projetos teraputicos coletivamente, dentro e fora da unidade. Estamos inseridos em um modelo de referenciamento de trs Centros de Sade para uma Equipe de Sade Mental, composta por um psiquiatra, quase sempre sem lotao, e duas psiclogas, que muito tm contribudo no nosso aprenderfazer em servio. A lacuna do psiquiatra da Equipe de Sade Mental de referncia, algumas vezes insubstituvel, tem sido solidariamente preenchida pela parceria com muitos profissionais do CERSAM, aqui tambm com o papel de atender prioritariamente s crises e aos casos graves. Eles tm-se desdobrado, para juntamente conosco, medida do possvel, construirmos alguns dos laos imprescindveis desta rede. Seja por telefone, por discusses presenciais de casos no CERSAM ou em nossa unidade de Sade, ou por visitas domiciliares envolvendo as Equipes do Sade da Famlia e da Sade Mental, estamos construindo, no exerccio de nossas atividades, um saber que se qualifica e amplia a cada dia, na perspectiva nica e coletiva de atender melhor o nosso usurio. Obviamente, h muitas faltas, muitas ausncias, muitos caminhos por percorrer, muitas parcerias a serem fortalecidas, construdas, muita gente ainda a ser envolvida, muitos de ns a serem esculpidos, brotados, crescidos, muitas arestas a serem acertadas. Em nenhum caminho h s flores. O desafio maior roar de dentro de ns possveis espinhos do no-querer, do no se envolver, do no se implicar, do no se dispor em construir juntos e, principalmente, o da desesperana. E seguir viagem....

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INTEGRAO DO PROGRAMA DE SADE DA FAMLIA COM O PROGRAMA DE SADE MENTAL EM UM CENTRO DE SADE DE BELO HORIZONTE

Guilherme Cunha Ribeiro* Andria Maria Ribeiro Alonso** Maria Aparecida das Graas Pedroso Pinto*** Slvia Catarina Patrocnio de Oliveira****

INTRODUO Iniciamos nossa reflexo sobre a integrao entre os Programas de Sade da Famlia (PSF) e de Sade Mental (PSM) lembrando que, na histria, a loucura era considerada como o estranho, o desconhecido. Freqentemente, os loucos eram asilados e segregados, o que conduziu formao dos manicmios, instituies que tinham mais por objetivo a excluso do que o tratamento, com os loucos tomados como o suporte visvel do mal. O progresso cientfico nos tratamentos psiquitricos foram acompanhados, principalmente nas ltimas dcadas do sculo XX, do intenso trabalho de incluir os portadores de sofrimento mental na sociedade. Os programas de desospitalizao e uma viso do doente mental como sujeito em sua comunidade e no como objeto de excluso esto associados Reforma Psiquitrica, movimento ainda em andamento. A orientao de oferecer o atendimento aos portadores de sofrimento mental prximo ao local de residncia dos usurios, dando continuidade ao programa de desospitalizao, nos conduz a criar novas formas de atendimento. A partir da, a integrao entre as equipes do PSF e de Sade Mental em umPsiquiatra do CS Santa Ins, Psicanalista membro correspondente da Escola Brasileira de Psicanlise, seo Minas Gerais. ** Gerente do Centro de Sade Santa Ins. *** Psicloga do CS Santa Ins. **** Mdica generalista do Programa de Sade da Famlia do CS Santa Ins.*

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Centro de Sade se tornou um dos mecanismos que podero viabilizar o atendimento de qualidade em sade mental. Para descrevermos nossa experincia de integrao entre PSF e PSM na ateno bsica sade interessante situarmos caractersticas demogrficas situacionais da rea de abrangncia onde atuamos. A regio Leste de Belo Horizonte se caracteriza pela existncia de grandes diferenas na situao socioeconmica e educacional da sua populao. Convivem nessa regio realidades sociais que se aproximam s condies de vida da populao da Blgica e, tambm, realidades sociais nas quais a populao vive privaes socioeconmicas e educacionais semelhantes do Norte da frica. O bairro Santa Ins considerado de classe mdia, com cerca de 14 mil habitantes. Quando aplicamos os critrios de risco populao da rea de abrangncia do Centro de Sade Santa Ins (CSSI), encontramos 35% da mesma em situao socioeconmica de mdio risco, os outros 65% esto em situao de baixo risco. Observa-se grande nmero de idosos, representando 25 a 30% da populao da rea de abrangncia. HISTRICO O PSF foi implantado no CSSI em 2002, quando foram designadas duas Equipes de Sade da Famlia (ESF) para atuarem nas reas de populao de mdio risco social. O Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) j havia sido implantado no CSSI desde 2001. A populao de baixo risco social continuou sendo atendida no CSSI pelos profissionais da unidade que no haviam aderido ao PSF e tambm pelos profissionais do PSF, contudo, fora de uma relao de responsabilizao. No final de 2003 e incio de 2004, esta incmoda situao acabou, quando o PSF foi estendido a toda a populao da rea de abrangncia. As duas equipes iniciais se reorganizaram para atender 100% da rea de abrangncia do CSSI. Assim toda a assistncia bsica sade passou a ser realizada pela estratgia do PSF, tendo como apoio uma equipe composta por dois pediatras, um clnico, um ginecologista com atuao completa e outro com meio horrio, uma enfermeira, seis auxiliares de enfermagem, dois auxiliares administrativos e uma Equipe de Sade Mental composta por um psiquiatra e uma psicloga, uma equipe de sade bucal composta por um dentista e uma auxiliar de higiene dental, e a gerente da unidade. O PSF E A COMUNIDADE O PSF, desde seu incio, contou com o apoio irrestrito da comunidade por meio das associaes e instituies que atuam na rea de abrangncia do CSSI. A populao j se fazia representar na unidade de sade por meio da

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comisso local de sade, que se tornou mais forte com a implantao do PSF. A populao da rea de abrangncia muito exigente, com grande capacidade de reivindicao, porm muito receptiva e sempre atende prontamente a todos os chamados do CSSI. O CSSI tem uma grande credibilidade na sua comunidade. Um exemplo pode ser dado quando analisamos os pacientes acamados e domiciliados, apesar de 50% dos mesmos possurem convnios de sade, eles no abrem mo do atendimento realizado pelas ESF e pelos profissionais do Centro de Sade. INCIO DA INTEGRAO PSF E PSM Com a implantao do PSF passamos a conhecer melhor nosso usurio, no seu cotidiano e na sua famlia. Os usurios passaram a ser atendidos percebendo-se melhor suas dificuldades e angstias. Em 2003, os profissionais do PSF j sentiam uma necessidade de fazer uma integrao maior com a Equipe Sade Mental. Obedecendo orientao da Secretaria Municipal de Sade (SMS) foi iniciado o processo de integrao. A Equipe de Sade Mental recebe os casos encaminhados pelos profissionais da unidade de sade, casos egressos de instituies psiquitricas e casos encaminhados pelos CERSAMs. A orientao da Coordenao de Sade Mental da Secretaria Municipal de Sade para o trabalho dessas equipes em unidades bsicas de privilegiar os casos de psicose e de neuroses graves. A equipe do PSF recebe todo o tipo de demanda de atendimento a partir da populao e procura filtrar quais os casos sero encaminhados para a Equipe de Sade Mental. Ficou claro durante as reunies que uma parcela da populao, que tem queixas relacionadas sade mental, j chega unidade de sade solicitando uma medicao especfica, em geral uma medicao antidepressiva ou um ansioltico e hipntico. Outra parcela da populao apresenta queixas que conduzem aos diagnsticos de distrbios ou doenas mentais, dados pela equipe do PSF. Cabe equipe do PSF decidir se encaminha para a Equipe de Sade Mental ou se assume a responsabilidade de tratar esses casos. Constatou-se que as duas opes conduziam a entraves que no resolviam o problema da demanda excessiva. Encaminhar para a Sade Mental os casos que no se enquadravam naqueles que deveriam ser privilegiados, seja para a psicologia ou para a psiquiatria, gerava uma tendncia a psicologizar ou psiquiatrizar as queixas, normatizando o sintoma de acordo com os critrios burocrticos de diagnstico, que encontram seu melhor exemplo nos manuais diagnsticos baseados no DSM e no CID. A resposta simples da demanda por parte da equipe do PSF, utilizando esses manuais diagnsticos, conduziu ao excesso de medicaes prescritas e, naturalmente, a um aumento da demanda, pois os usurios reconheciam ali a possibilidade de resposta a seu pedido.

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Para lidar com os entraves surgidos, organizamos o trabalho de integrao por meio de reunies para discusso de casos de pacientes portadores de sofrimento mental. Essa era, inicialmente, a principal forma de integrao, sem protocolos e metas definidas pelos programas. Com o tempo surgiram questes relacionadas aos profissionais e as angstias e dificuldades de lidar com o sofrimento mental. Outras demandas surgidas a partir do atendimento foram colocadas pelos profissionais do PSF, demandas essas acolhidas pela Equipe de Sade Mental. Um dos principais problemas existentes por parte dos usurios foi a demanda abusiva de medicaes com tranqilizantes. Durante o nosso percurso tambm se observou grande dificuldade de se lidar com os familiares dos acometidos pelo sofrimento mental. De acordo com os problemas surgidos foram selecionados textos para discusso, alm da produo de textos pelas prprias equipes. PROTOCOLO X SUBJETIVIDADE As equipes do PSF e de SM tm um potencial agregado de vrios saberes que devem ser compartilhados pela busca do conhecimento no protocolizado, pois o uso do protocolo tem como linha de trabalho o alcance de metas, diferente dos objetivos visados no nosso trabalho. Buscamos durante todo o tempo a apropriao do saber que poderia gerar transformao. A partir dessa idia, os espaos que foram criados para efetivarmos encontros entre as equipes de PSF e SM permitiram o surgimento de algum aprendizado. Durante o trabalho foi percebida a angstia vivida pelos profissionais, especialmente ao trabalhar com o acolhimento. Percebemos a necessidade de estudar a demanda, conhec-la de forma diferenciada, no uniformizada pelos protocolos que possam orientar o atendimento. Os protocolos buscam produzir uma igualdade entre os usurios, sem levar em conta a subjetividade, e disso resulta uma verdade que s pode ser parcial. Dessa verdade produzida pelos protocolos na forma de diagnsticos que definem condutas, resultam a excluso subjetiva. Devemos lembrar que, alm das igualdades relacionadas s doenas, fundamental levar em conta a particularidade de cada sujeito. Ao reduzir os usurios s suas doenas, rotula-se o usurio como doente, o que leva a um aumento da demanda do mesmo aos servios de sade, para tratamentos cada vez mais complexos, de ltima gerao, que com freqncia so solicitados sem critrios. No nosso trabalho buscamos os saberes que possibilitassem a produo de vida, para que o usurio pudesse se ver alm da doena. Ficou evidente que uma escuta ampliada, levando em conta no apenas a queixa ou a doena, mas, sim, a vida do usurio e sua relao com as equipes de atendimento, facilitou o ganho de autonomia pelo usurio e o lidar com a doena

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de forma mais produtiva. ELEMENTOS TERICOS QUE SUSTENTAM A INTEGRAO A partir da orientao de realizar a integrao entre as equipes do PSF e de Sade Mental, buscamos um ponto terico que pudesse nos orientar. Aps a avaliao de como a interao j ocorria e de quais suas caractersticas, foi possvel escolher a demanda como o tema mais apropriado para ser o vis do trabalho, pois ela est presente em todas as atividades do Centro de Sade. Partimos do pressuposto de que quando um usurio demanda alguma coisa, uma medicao, um pedido de cura ou alvio, enfim, quando ele se dirige ao Centro de Sade com uma demanda, essa demanda est articulada com o saber. O paciente procura o profissional que tem uma resposta para lhe dar, sobre seu corpo, sobre seu sofrimento, uma resposta sobre o mal que ele apresenta. Para estudar essa demanda de saber que o usurio dirige ao profissional, advogamos que necessrio que haja uma reapropriao de saber. Vejamos como isso pode ocorrer. MODOS DE APROPRIAO DO CONHECIMENTO Para sustentar a nossa proposio de trabalho, procuramos estudar o tema dos modos de apropriao do conhecimento, para favorecer a compreenso do processo. Encontramos em Zizek (2005, p. 194), em uma referncia a Lacan, a distino de modalidades de apropriao do saber: 1. o conhecimento prtico, do arteso, do criado, que poderia tambm ser chamado de teoria desinteressada; 2. o conhecimento que transformado e reapropriado pelo mestre, que ocorre numa dependncia da relao entre mestre e aprendiz/pupilo, nesse conhecimento h o pressuposto de uma relao de transferncia de amor; 3. o conhecimento moderno, cientfico, que no baseado na figura de um mestre e encontrado em manuais impessoais e no equipamento tcnico, a princpio acessvel a todos; 4. o conhecimento burocrtico, que o processo de registro, de catalogar tudo o que existe (ou que deveria existir), de arquivar. Na rea da sade pode-se circular por todas as modalidades de apropriao do saber, cada profissional pode saber o momento de usar cada um deles. No entanto, fundamental reconhecer que, na atualidade, h o predomnio da utilizao do saber cientfico. Na verdade, isso se deu a partir de um longo processo de evoluo das prticas na rea da sade. O predomnio da cincia decorre de processos que iniciaram na era do

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iluminismo e atinge o auge nos nossos tempos. Hoje, estamos nos tempos de elevao dos objetos produzidos pela cincia ao pice da sociedade (JA, 2005). Uma das conseqncias desse predomnio a tendncia para transformar os profissionais ligados sade em mero aplicadores de manuais tcnicos, que produzem o seu saber de forma absolutamente impessoal. Os profissionais da rea de sade so convidados a aplicar esse saber sobre os objetos dessa mesma forma, impessoal e, freqentemente, o fazem sem nenhuma crtica. O saber cientfico est disponvel a todos e possvel verificar isso na disponibilidade de informaes sobre a sade na mdia e de como os profissionais so, a todo momento, defrontados diante de demandas que so estimuladas pelo discurso da cincia. Com freqncia, em nosso meio, como j foi falado, um paciente demanda uma medicao manipulada para o tratamento de depresso. O profissional que responder essa demanda utilizando os manuais de diagnsticos que se orientam pelo DSM ou pelo CID, no encontra outra sada a no ser responder demanda do paciente. Essa forma de resposta demanda, que leva em conta somente os saberes cientfico e burocrtico, no leva produo de nenhum saber subjetivo pelos personagens. No se levou em conta a transferncia como amor ao saber e, principalmente, no houve nenhuma reapropriao de saber pelo mestre. O que chamamos de transferncia o que est subjacente a uma demanda por parte do paciente. O que o paciente demanda uma resposta a uma questo e est implcito que o que o paciente quer o saber do profissional. Quando o paciente ama o profissional que o atende, este um amor de transferncia, um amor ao saber. Porquanto que o amor de transferncia seja um amor verdadeiro, como nos ensinou Freud, necessrio fazer um uso adequado dele. O TRABALHO DO PROFISSIONAL DE SADE E A POSSIBILIDADE DA REAPROPRIAO DO SABER Devemos levar em conta a possibilidade de um profissional de sade circular entre as formas de conhecimento. Utilizar a reapropriao do saber pelo mestre, a forma de conhecimento que leva em conta a relao entre o mestre e o pupilo/aprendiz, pode abrir as possibilidades no momento de responder a uma demanda. A dialtica hegeliana,1 includa nessa forma de saber, leva em contaA distino entre o senhor (mestre/amo) e o servo (aprendiz/pupilo), com sua conseqente dialtica, nasce a partir da considerao de que o senhor arriscou o seu ser fsico na luta e, na vitria, tornou-se efetivamente o senhor. O servo teve medo da morte e, na derrota, para salvar a vida fsica, aceitou a condio de escravido e tornou-se como que uma coisa dependente do senhor. O senhor usa o servo e o faz trabalhar para si, limitandose a desfrutar das coisas que o servo faz para ele.1

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que o detentor do saber o pupilo/aprendiz, que trabalha em resposta ordem do mestre. Este, por sua vez, nada sabe, apenas ordena. Entre o pupilo e o mestre h uma relao de transferncia de amor e quando se leva em conta a transferncia de amor, que amor ao saber, abre-se a possibilidade de alguma reapropriao do saber. O mestre perdeu a possibilidade de dialetizar e se tornou dependente das coisas e de seu pupilo, poder ento se reapropriar de algum saber. Essa possibilidade de reapropriao de saber tem efeitos de subjetividade nos parceiros dessa relao. O profissional de sade, que trabalha como um escravo para responder a uma ordem de seu mestre inconsciente e tambm s ordens e orientaes que existem na realidade social e de trabalho que ele est inserido s conseguir escapar do chamado estresse se permitir alguma reapropriao de saber em sua atividade. A utilizao dos saberes prontos da cincia e dos protocolos burocrticos levam ao cansao excessivo do trabalho escravo, s reclamaes contra um mestre impiedoso, que o faz trabalhar sem cessar. Esse mestre est personalizado pelas instituies nas quais os profissionais trabalham. Para abrir espao ao saber necessrio que haja um manejo clnico no momento de responder demanda do paciente. a partir de um certo silncio, ou de uma no-resposta imediata demanda, que se abre a possibilidade de produo daquilo que chamamos de um efeito subjetivo, que sobrevm quando o paciente comea a falar. No apenas queixar, mas falar daquilo que lhe incomoda, dos significantes que orientam sua vida e de como ele se posiciona diante desses significantes. A partir da produo desses significantes, dessas palavras, que se torna possvel a construo da relao transferencial, que pode ser entendida como a percepo, por parte do paciente, que o profissional que o atende carrega em si algumas caractersticas que so as mesmas que o paciente identifica naquelas pessoas que fazem parte de sua vida privada. Como conseqncia, o paciente dirige ao profissional os mesmos afetos que ele dirige aos seus, amor, dio, indiferena... A transferncia desses afetos deve ser entendida como amor ao saber. o fato de o profissional supostamente saber algo sobre o paciente que permite a existncia da transferncia. necessrio zelar pela manuteno dessa transfernciaA partir dessa relao desenvolve-se um movimento dialtico que acaba por levar subverso dos papis. O senhor acaba por se tornar dependente das coisas, ao invs de independente, como era, porque desaprende a fazer tudo o que o servo faz, ao passo que o servo acaba por se tornar independente das coisas, fazendo-as. Ademais, o senhor no pode se realizar plenamente como autoconscincia, porque o escravo, reduzido a coisa, no pode representar o plo dialtico com o qual o senhor possa se confrontar adequadamente. O escravo tem, ao contrrio, no senhor o seu plo dialtico tal que lhe permite reconhecer nele a conscincia, porque a conscincia do senhor a que comanda, enquanto o servo faz o que o senhor ordena. Assim, Hegel identifica perfeitamente o poder dialtico que deriva do trabalho.

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e isso s possvel bancando esse jogo, ou seja, mantendo-se como quem sabe alguma coisa preciosa do prprio paciente. O reconhecimento da transferncia como amor ao saber pode vir a substituir a vaga preocupao dos profissionais, principalmente mdicos, com a relao entre os profissionais e os pacientes. As tentativas de apropriao desse tema sempre caem em uma armadilha, que a da intersubjetividade, ou seja, o profissional como ponto de identificao para o paciente. Essa identificao visa essencialmente a sustentao de uma orientao prescrita pelo profissional e qualquer posio do paciente que no seja a aceitao dessa prescrio tida como uma resistncia ao tratamento. Reconhecer a transferncia que o paciente dirige ao profissional como amor ao saber permite uma sada para esse impasse. Pelo menos um dos dois parceiros nessa empreitada supostamente sabe algo que o outro no sabe, isso que permite uma dessimetria essencial nessa relao, e que possibilita uma reapropriao do saber pelo mestre. Isso pode ser feito por meio de avaliao que indique a melhor resposta a ser dada ao paciente. Veremos frente que nem sempre aquilo que o paciente pede na demanda o que ele deseja, e responder ao que ele pede nem sempre o mais adequado para um tratamento. A uma demanda de prescrio de um antidepressivo, por exemplo, possvel abrir um espao para a fala do paciente, que poder se apropriar de quais so as causas daquele afeto depressivo. A no-aceitao imediata da demanda abre a possibilidade para a fala produzir seus efeitos. Com muita freqncia, durante o nosso trabalho, essa nova apropriao de saber permitiu uma suspenso da demanda por parte do paciente que, por sua vez, pode reencontrar uma forma de lidar com seus afetos e tristezas que no o simples pedido de alvio. A partir da possibilidade de elaborao dos sintomas por parte do paciente no exclui a utilizao dos recursos tcnicos e cientficos, como a medicao. Ela pode ser utilizada de outra forma que no a mera aplicao de uma etapa de um protocolo dito cientfico, mas como uma substncia que um profissional escolheu como adequada para o paciente, ou seja, respeitando uma transferncia de saber. O resultado dessa operao vem em efeitos de subjetividade, tanto do lado do paciente quanto do profissional. , portanto, fundamental caminhar na direo de reconhecer a existncia da transferncia na relao entre o usurio que demanda e o profissional que se encontra no lugar de responder a essa demanda. No se pode abrir mo do conhecimento cientfico na aplicao da prtica de cada profisso. No entanto, observamos um forte vis cientfico nas prticas que envolvem o conhecimento, e isso principalmente na rea da

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sade. A excluso do saber, que pode ser reapropriado pelo mestre, impede uma relao de transferncia que pressupe o amor ao saber. A utilizao do saber na forma burocrtica, na forma moderna ou cientfica e mesmo na forma prtica ou desinteressada, sem levar em conta a possibilidade de reapropriao do saber pelo mestre, sem levar em conta a transferncia como amor ao saber, conduz a uma resposta automtica demanda, o que leva a uma realimentao da mesma. A DEMANDA SE CONSTITUI COMO DEMANDA DE RECONHECIMENTO Passamos ento a trabalhar a noo de demanda, que foi eleito como o n a ser desa