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POLÍTICA E SOCIABILIDADE NO SÉCULO XIX: A RELAÇÃO ENTRE O
VISCONDE DE PELOTAS E O MARQUÊS DO HERVAL
I. INTRODUÇÃO
Esta pesquisa destina-se a melhor compreender a relação constituída entre os políticos e
militares, Manoel Luís Osório (Marquês do Herval) e José Antônio Correa da Câmara (2º
Visconde de Pelotas), durante a fase final da Guerra do Paraguai, especialmente, ao longo dos
anos posteriores ao conflito, marcados pela ascensão de Câmara à esfera política. Em outros
termos, busca-se a análise do vínculo estabelecido entre Osório e Câmara, por meio do estudo
das suas correspondências pessoais, trocadas ao longo do processo de emergência política de
Câmara que ocorreu após a Guerra do Paraguai. Portanto, em um contexto marcado pela
formação de redes de sociabilidades, pelo clientelismo político, bem como pela política de
favorecimentos especialmente entre membros da elite, procura-se por meio deste projeto
trabalhar com dois indivíduos membros da elite política sul-rio-grandense, com a finalidade de
melhor entender a dinâmica das relações políticas manifestadas e alinhavadas ao longo do
oitocentos.
Oriundos de famílias com tradição na carreira militar, José Antônio Correa da Câmara e
Manoel Luís Osório ingressaram no exército ainda muito jovens, por volta dos 15 anos. O
marechal, marquês e senador, Manoel Luís Osório, natural da Vila de Nossa Senhora da
Conceição de Arrôio, nasceu em 10 de maio de 1808 e faleceu em 04 de outubro de 1879, na
cidade do Rio de Janeiro. Em 1823, assentou praça no exército imperial brasileiro, participando
da Guerra de Independência na Cisplatina (1822 a 1823). Na sequência, já como alferes,
participou da Guerra da Cisplatina (1825-1828), saindo do conflito no posto de tenente. Sua
afeição liberal, de certa forma, levou-o a integrar as tropas rebeldes na Guerra dos Farrapos.
Seu apoio à causa chega ao fim no momento em que o conflito passa a ter teor separatista,
quando designa seus esforços ao exército imperial. Com o mesmo destaque, Osório participa
da Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852) e gradativamente aumenta a sua confiança e o seu
prestígio no Prata. Como consequência disso, assume o comando do I Corpo do Exército
Imperial na Guerra do Paraguai e, após grande desempenho e grande destaque, no ano de 1877,
torna-se Marechal do Exército.
José Antônio Correa da Câmara, o 2º Visconde de Pelotas, nasceu em Porto Alegre, no dia
08 de Fevereiro de 1824 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1893. Ao ingressar na Guerra do
Paraguai, já possuía uma boa experiência em campos de batalha, sustentando o posto de
Tenente-Coronel. Ingressou na carreira militar de forma voluntária, em 1839. Logo após, atuou
contra os farroupilhas e participou também da guerra contra o Estado Oriental (18511852), bem
como da Campanha do Uruguai (1864-1865). A atuação de Câmara, em solo paraguaio, por sua
vez, iniciou no ano de 1866 com marcante desempenho nos combates de Curuzú e Curupaiti,
sendo, então, promovido a Coronel. Em 1868, destacou-se nos confrontos de Passo Pocú e
Espinilho, assim como nas batalhas em Avaí e Lomas Valentinas, chegando, nesse mesmo ano,
ao posto de Brigadeiro do Exército.
A participação de Câmara na Guerra do Paraguai chega ao fim quando tropas sob o seu
comando – uma escolta de cavalaria e infantaria – encontra e executa Solano López, em 1º de
Março de 1870. Esse desfecho, além de ter marcado o fim da Guerra do Paraguai, torna-se
importante para a ascensão política de, até então militar, José Antônio Correa da Câmara. O
desfecho em Cerro Corá, onde López foi encontrado, somado a sua destacada atuação ao longo
do conflito, possibilitou ao Visconde de Pelotas a sua maior integração a grupos políticos
consideravelmente atuantes na política imperial.
A emergência política de Câmara e sua posterior chegada à Corte alinha-se a maior
participação dos sul-rio-grandenses na política imperial após o término da Guerra do Paraguai
(1864-1870), devido a maior facilidade de ocupação do poder político central por indivíduos da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Isto é, o encaminhamento, cada vez mais
frequente das elites mineira e paulista aos seus respectivos partidos republicanos, motivados
por uma série de discordâncias referentes ao centralismo político imperial, contribuiu
decisivamente para a inserção mais frequente dos sul-rio-grandenses nesse cenário. Da mesma
maneira, na própria província de São Pedro do Rio Grande do Sul, ressalta-se a ascensão do
Partido Liberal a partir de 1870, bem como o êxito desse partido nas eleições de 1872. Segundo
Piccolo, certos alinhamentos políticos, como o ingresso dos liberais progressistas no Partido
Conservador, enfraqueceu, no âmbito sul-rio-grandense, esse partido e, dessa forma,
favorecendo a ascensão do Partido Liberal também no âmbito provincial.
Desse modo, entende-se que a busca por um lugar no estreito cenário político do século XIX
por membros da elite, de certo modo, não significava apenas o simples desejo e a necessidade
de representação com relação ao governo imperial. Pelo contrário, simbolizava a “expectativa
dos seus familiares, das suas clientelas e dos seus eleitores e aliados políticos” (VARGAS,
2008: 46) pela diminuição da amplitude existente entre as suas localidades e a Corte. A exemplo
disso, Jonas Vargas, referindo-se a chegada de Osório à Corte1, sugere que “uma vez dentro
deste círculo, a distribuição de favores para amigos, parentes e clientes era quase que
instantânea. Ou seja, logo ao assumir o Ministério da Guerra, as primeiras medidas de Osório
foram direcionadas no favorecimento dos amigos e familiares” (VARGAS, 2008: 56).
Portanto, dentro de um contexto marcado pela prática de favorecimentos políticos, acredita-
se que a relação de reciprocidade entre José Antônio Correa da Câmara e Manuel Luís Osório,
constituída na esfera militar em larga escala transcende este limite e passa a favorecer no
processo de escalada política de José Antônio Correa da Câmara. Ou seja, salienta-se a relação
constituída por Câmara e Osório nos anos finais da Guerra do Paraguai, bem como dos anos
posteriores ao conflito. Também procura-se entender em que medida a relação entre Câmara e
Osório auxilia no processo de emergência política do Visconde de Pelotas, levando em
consideração a relevância de Osório no cenário político sul-rio-grandense e a sua maior
facilidade de inserção nos assuntos políticos da Corte, principalmente, após o grande empenho
e os esforços dispostos por Osório às tropas do exército imperial2.
Em outras palavras, esta proposta de pesquisa busca o estudo da relação entre dois indivíduos
pertencentes à elite sul-rio-grandense do século XIX, entendendo-os como membros de uma
rede de sociabilidade que, obviamente, possuía suas peculiaridades, mas que, de modo geral,
era definida por práticas próprias do seu contexto. Nessa perspectiva, entende-se que o estudo
das correspondências trocadas entre José Antônio Correa da Câmara e Manuel Luís Osório, ao
longo do processo de inserção política de José Antônio Correa da Câmara, em certa medida,
podem evidenciar aspectos próprios da dinâmica política que caracteriza o século XIX. Sendo
assim, ressalta-se que a ascensão política de José Antônio Correa da Câmara elevou-o a uma
posição de liderança dentro do Partido Liberal, alcançando cargos políticos no governo imperial
como Ministro da Guerra do gabinete Liberal de Saraiva e Senador Liberal entre 1880-1889.
Além de tornar-se já na República, o primeiro Presidente do Estado do Rio Grande do Sul
(15/11/1889 – 11/02/1890).
1 Manuel Luís Osório é eleito senador do Império em 1877 e, no ano seguinte, ocupa a pasta de ministro da Guerra.
Ver: VARGAS, Jonas. Marechal, marquês e senador. Política, nobreza e guerra no Segundo Reinado a partir da
trajetória do general Osório (1808-1879). História: Debates e Tendências – v. 10, n. 2, jul./dez. 2010. 2 Para maiores reflexões, ver: VARGAS, Jonas. Marechal, marquês e senador. Política, nobreza e guerra no
Segundo Reinado a partir da trajetória do general Osório (1808-1879). História: Debates e Tendências – v. 10,
n. 2, jul./dez. 2010, p. 244-263.
Dentro desse panorama, na historiografia atual acredita-se que o estudo das relações entre
indivíduos membros da elite política do século XIX, diferentemente daquelas entre indivíduos
socialmente desiguais, marcadas pelos vínculos de dependência, pode-se salientar, geralmente,
ligação de amizade e de sociabilidade, reafirmadas pelas relações constituídas nos meios sociais
que esses indivíduos circulavam. Nesse contexto, lembra-se que a sociedade brasileira, já no
início do século XIX, acostumou-se com a ampliação dos espaços de interação e de diálogo,
favorecendo, em certa medida, a sociabilização. Assim, conjuntamente às análises de rede,
emerge, entre os historiadores que trabalham a História Social e Política desse século, a visão
da importância de locais e de situações que, aparentemente, não seriam associadas ao debate e
ao arranjo político, mas que promoviam os alinhamentos políticos.
Sobre essa questão, Jonas Vargas afirma:
Os salões e os bailes, por exemplo, também serviam como local de grandes debates
intelectuais e políticos e eram mantidos e frequentados pelas mesmas elites que
residiam na Corte. Além disso, os encontros nas confeitarias e nos teatros somavam-
se ao itinerário destas famílias e eram igualmente fundamentais no processo de
socialização destes grupos, ajudando a reproduzir a própria hierarquia social no brasil
oitocentista. (VARGAS, 2008: 1-2)
Nessa lógica, Richard Graham estabelece que a política e o Estado imperial brasileiro
durante o século XIX, foram constituídos e comandados por um grupo seleto de privilegiados.
O clientelismo, em vista disso, simbolizava, por um lado, a ocupação de cargos ou funções
político-administrativas, e, por outro, o amparo aos menos favorecidos. Conforme o autor, essas
duas faces do clientelismo, por vezes, eram utilizadas na perspectiva de estreitar os vínculos e
de reduzir a amplitude existente entre as localidades e a Corte. Assim, os indivíduos
pertencentes à elite política, no período imperial, reconhecidos e reverenciados em suas
localidades, presenciavam o crescimento de sua clientela e, por conseguinte, da possibilidade
de manter as estruturas sociais e a disparidade econômica no interior da província. Ou seja,
tratando-se da elite política brasileira oitocentista, “ao ocuparem altos cargos políticos, a sua
capacidade de fazer e encaminhar pedidos e de conceder favores aumentou muito o seu poder"
(VARGAS, 2008: 45). As disputas políticas, no interior da província, em vista disso, também
proporcionavam enfrentamentos de influência, poder e favorecimentos entre os indivíduos da
elite política.
Retomando a discussão anterior, Richard Graham, ao definir e estudar as manifestações
marcantes de relações clientelistas ajustadas no contexto do século XIX, destaca a correlação
de forças entre indivíduos de grupos sociais distintos, mas sobretudo no núcleo da elite política,
para diferentes finalidades. No entanto, na leitura dessa obra, José Murilo de Carvalho, de certa
forma, assinala um certo reducionismo do autor ao considerar as dinâmicas de relações, no
contexto do Brasil imperial, uma simples decorrência do clientelismo, desconsiderando outras
formas de conceituação e de análise, como, por exemplo, o mandonismo e o coronelismo.
Em outra esfera de análise, em alguns trabalhos, ao estudarem o clientelismo no contexto
oitocentista brasileiro, assim como na tentativa de definir as manifestações marcantes dessas
relações clientelistas, em certa medida, pode-se visualizar algum descrédito por parte dos
historiadores com relação às eleições locais. A aparente não relevância e o grande descrédito à
definição dos postulantes ao Congresso, segundo Graham, torna-se fundamental para essa
interpretação. Entretanto, essas eleições mediavam, avaliavam e evidenciavam a autoridade dos
chefes locais. Assim sendo, conforme o autor, a “família e a unidade doméstica constituíam os
fundamentos de uma estrutura de poder socialmente articulada, o líder local e seus seguidores
trabalhavam para ampliar essa rede de dependência” (GRAHAM, 1997: 17), que se manifestava
de diferentes modos, mas, sobretudo, por meio de suporte e de votos nas eleições realizadas nos
potentados locais.
Nessa mesma perspectiva, ressalta-se, nas últimas décadas, entre os historiadores vinculados
à História Social e Política, uma nova interpretação do cenário político do século XIX, pois as
discussões políticas deixam de ser compreendidas exclusivamente como acordos tradicionais
definidos em espaços institucionais. Nesse aspecto, valorizam-se, na historiografia atual, locais
e ocasiões que reafirmam os laços de afetividade e de confraternização, isto é, momentos de
aproximação entre os indivíduos e/ou grupos que poderiam acontecer nos espaços urbanos, mas
que, tratando-se da elite, em grande parte, aconteciam por meio de jantares, de recepções, de
festas particulares etc. Assim, Adriano Comissoli ressalta que:
No início do século XIX os espaços de interação entre as pessoas se multiplicavam,
aumentando as possibilidades e as formas de sociabilidade, elemento de grande
importância para o desenvolvimento de uma esfera pública da política. Essa
convivência política se entrelaçava a interesses econômicos concretos, relações
parentais e amizades, criando e reforçando a coesão necessária aos grupos mais
atuantes na gerência política. (COMISSOLI, 2011: 256-257)
Nessa mesma linha de raciocínio, José Murilo de Carvalho ressalta a importância dos cursos
superiores, especialmente, o curso de Direito no processo de ingresso e de alinhamento político
ao longo do oitocentos. Esse fenômeno, segundo o autor, deve-se muito às relações que eram
estabelecidas entre as elites nos bastidores das academias. No entanto, Jonas Vargas ao estudar
as famílias da elite sul-rio-grandense, bem como a ascensão de seus membros à Corte, ressaltou
que “os campos de batalha também uniam estes homens da elite” (VARGAS, 2008: 57). Isto é,
as redes de sociabilidade não se estabeleciam exclusivamente no âmbito acadêmico. Ao
contrário, salienta-se que, entre os estudos ligados à história política do século XIX, poucos
destinam-se a refletir acerca da inserção de militares à esfera política.
Sobre isso, Vargas, em estudos referentes à elite política sul-rio-grandense, bem como em
trabalhos relacionados ao ingresso da elite sul-rio-grandense à esfera política da Corte, apesar
de se aproximar da relação estabelecida entre José Antônio Correa da Câmara e Manuel Luís
Osório, de modo geral, não destina maiores esforços em estudar esta relação.
Em outro momento historiográfico, Rinaldo Pereira da Câmara (1899-1979) que, além de
escritor e historiador ligado ao Instituto Histórico e Geográfico, era neto e admirador dos feitos
de José Antônio Correa da Câmara, descreveu em três volumes, de maneira epopeica, a
trajetória de vida do seu avô. A narrativa biográfica, dividida em eixos temáticos, aborda, entre
outras coisas, passagens referentes à sua vida militar e à sua vida política.
Nesse aspecto, ressalta-se que a historiografia nas últimas décadas tem dedicado maior
atenção com relação ao papel dos indivíduos na história, principalmente, diferenciando-se das
análises de outrora, baseadas na valorização das trajetórias de grandes indivíduos e na
construção de narrativas simplificadoras e lineares. Nessa perspectiva, pode-se compreender
que a análise de uma trajetória individual deve ser construída a partir da circulação e do diálogo
do indivíduo em campos que lhes são peculiares, sejam estes políticos, religiosos e/ou
econômicos. Ou seja, “não podemos aplicar os mesmos procedimentos cognitivos aos grupos e
aos indivíduos; e a especificidade das ações de cada indivíduo não pode ser considerada
irrelevante ou não pertinente” (LEVI, 1996: 182).
Portanto, acredita-se que a relação constituída por José Antônio Correa da Câmara e Manuel
Luís Osório necessita de maiores diálogos e discussões. Em outros termos, entende-se que a
análise da relação entre estes indivíduos possa apresentar elementos singulares do passado,
assim como práticas políticas próprias do contexto, reproduzidas ao longo do oitocentos.
Segundo Fertig, ao investigar os aspectos individuais e sociais de indivíduos pertencentes à
elite do século XIX, o historiador deve compreender aspectos individuais, bem como aspectos
do contexto em que tais indivíduos estão situados, almejando estabelecer o diálogo e a
“articulação necessária e fundamental entre texto/contexto, indivíduo/sociedade” (FERTIG,
2012: 231-245).
No presente trabalho, em vista disso, torna-se fundamental a compreensão dos estudos sobre
redes de relação e suas formas de manifestação entre os membros da elite política do século
XIX. De modo geral, entende-se por redes sociais a formação de alinhamentos políticos e/ou
econômicos que visam ao beneficiamento mútuo entre indivíduos que compõem um contexto
social e político.
Hespanha e Xavier, estudando a formação de redes no contexto do Antigo Regime em
Portugal, definem que a prática de favorecimentos na distribuição e nas trocas de pertences,
privilégios e cargos, em grande parte, caracterizavam a formação das redes sociais, assinaladas
pelos autores como: “sistema de Dom contra Dom”. Nessa sistemática, o valor material dos
bens trocados, de modo geral, não era o principal símbolo da relação, podendo, muitas vezes, o
grande interesse estar na inter-relação de favores e benefícios entre os indivíduos. Os autores
observam também que a correlação entre as partes, em muitos casos, era decorrente de “laços
afetivos”, de “amizades”. Nesse sentido, é possível entender que essas redes estavam
alicerçadas no encontro entre as práticas de interesses e as ligações afetivas.
Dentro dessa perspectiva, José María Imízcoz, ao estudar as relações políticas e,
principalmente, as econômicas de beneficiamento mútuo entre indivíduos de uma família de
comerciantes no contexto do Antigo Regime, destaca que as análises de redes sociais têm
mostrado notável interesse pelas redes de relações de poder, não só pelas articulações políticas
da sociedade do Antigo Regime, mas também pelas relações interpessoais entre as elites no
século XIX.
Nesse contexto, considera-se elite, de forma genérica, grupos de indivíduos que ocupam
posição privilegiada na sociedade da qual fazem parte. No entanto, entende-se que o conceito
de elite e as características que o compõe, de maneira alguma, são exemplos de concordância
entre cientistas políticos, historiadores e outros pesquisadores. Nesse sentido, Simmel e Bobbio
encontram-se nas suas contribuições referentes ao assunto, especialmente, na ideia de elite –
aristocracia para Simmel - como a representação de um grupo pequeno que detém, senão o
monopólio, grande parte do usufruto do poder, em oposição a um grande grupo que está distante
de usufruir deste.
Entretanto, percebe-se que o conceito de elite apresenta uma descrição bastante variável.
Flávio Heinz considera que a interpretação do conceito de elite não se resume à manifestação
econômica ou política, mas a uma série de outros aspectos que devem ser considerados, entre
outros: reconhecimento, status, entre outros. Nesse sentido, valorizam-se as contribuições do
autor referentes aos estudos sobre à história das elites, desenvolvida na obra Por outra história
das elites. Sobretudo pelas suas interessantes e necessárias reflexões metodológicas sobre o
assunto.
Christophe Charle indica que, a partir do descrédito do marxismo e da história estrutural
proveniente da Escola dos Annales, pode-se observar o afastamento da história econômica da
história social e, assim, com maior autonomia, a história social passa a destinar maior ênfase na
análise de outros tipos de agrupamentos sociais, entre eles as elites. Em outro aspecto, o autor
assinala a existência de certos estudos da burguesia e da elite sob grande influência das teorias
acerca do poder, desenvolvidas por Foucault, que visam defini-las originalmente por meio de
suas relações sociais. Isto é, especialmente a partir do olhar para um renovado grupo de fontes,
outras esferas de análise, pouco exploradas anteriormente, tentaram explicar o conceito, tais
como: a correlação entre os serviçais e os senhores, bem como os delineamentos das
sociabilidades que, em grande medida, influenciam na crítica a visão exclusivamente
econômica das elites.
Andrius Noronha alinha-se a essa perspectiva, sobretudo, por entender que a elite, mais
especificamente a elite política, é definida não somente pelo aparato burocrático estatal, ao
contrário, para o autor, a elite “possui uma origem social descentralizada, muitas vezes
estrategicamente articulada nas instituições da sociedade civil” (NORONHA, 2008: 26). Ou
seja, a elite política não pode ser caracterizada exclusivamente pelas suas proximidades
embrionárias do tipo econômicas, culturais e sociais, mas devem ser vistas como uma relação
de troca ou possível alinhamento estrutural. Tal alinhamento que, muitas vezes, “fornece todas
as condições para os mecanismos de reprodução social desse segmento” (NORONHA, 2008:
27).
De qualquer forma, esta proposta de trabalho não se destina a discutir de maneira mais ampla
o conceito de elite ou a própria Teoria das Elites. No entanto, observou-se a necessidade de
elaboração dessas considerações, sobretudo, para definir quais os elementos e os limites
conceituais estipulados para o estudo de indivíduos, pertencentes à elite política sul-rio-
grandense.
Retomando as contribuições de José Maria Imízcoz, destaca-se o retorno dos indivíduos,
como sujeitos da história, dentro da noção de avanço da História social e política, através do
desenvolvimento de métodos mais específicos de observação, como: a micro-história, a
prosopografia e a biografia. As análises de rede social, à vista disso, consideram o estudo
relacional entre os indivíduos, os “atores sociais”, na dimensão de reconstruir suas redes e seus
principais aspectos. A partir disso, destaca-se a importância de certos aportes documentais que,
em certa medida, favorecem a análise dos sujeitos e de suas relações, tais como: as
correspondências, as autobiografias, os diários etc.
Nessa perspectiva, acredita-se que atualmente a historiografia tem utilizado as
correspondências não apenas para a consulta de informações, mas também como objeto de
análise e compreensão de um indivíduo, em grande parte, devido à nova interpretação do papel
dele na história. Portanto, tornando a utilização das correspondências como fonte reveladora da
história. Nesse processo, o historiador, por intermédio da análise das correspondências, busca
se aproximar-se de aspectos “privados da vida”, das expectativas, das experiências, das
hesitações, das incoerências e das preocupações dos indivíduos, questões que são inerentes à
própria existência humana e que são expressas numa conversa a dois, a fim de reduzir as
distâncias entre os sujeitos envolvidos. Ou seja, para o estudo dos indivíduos na história, as
correspondências pessoais são vestígios fundamentais para o ofício do historiador. “Trata-se de
escrita de si, na primeira pessoa, na qual o indivíduo assume uma posição reflexiva em relação
à sua história e ao mundo onde se movimenta” (MALATIAN, 2009: 195).
Desse modo, na perspectiva de reduzir distâncias entre os atores históricos, as
correspondências simbolizam “uma escrita de si que constitui e reconstitui suas identidades
pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas” (GOMES, 2005: 52). Por esse viés, pode-
se inferir que a prática epistolar corresponde também a uma prática cultural, a um hábito social
de extrema relevância ao longo do século XIX. Logo, o estudo da prática epistolar confere outra
grandeza às relações de sociabilidade durante esse século, uma vez que a “correspondência
pessoal de um indivíduo é portanto um espaço definidor e definido pela sua sociabilidade”
(VENANCIO, 2001: 32).
Sendo assim, no presente estudo, adota-se, como o aporte documental e como fonte principal
de análise, as correspondências pessoais trocadas entre José Antônio Correa da Câmara
(Visconde de Pelotas) e Manuel Luís Osório (Marquês do Herval). Apresenta-se, a seguir, a
tabela expositiva referente às correspondências pessoais recebidas pelo Visconde de Pelotas,
entre os anos de 1869-1879, na qual se ressalta o grande fluxo de correspondências do Marquês
do Herval. Todavia, na perspectiva de melhor compreender a dinâmica dessa relação, entende-
se que é de grande importância também, a exploração das cartas enviadas por Câmara ao general
Osório, as quais se encontram disponíveis à consulta no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB)3.
Remetente Número de Missivas Porcentagem
3 Ressalta-se, dessa maneira, que as fontes documentais citadas como fontes principais de análise desta proposta
de pesquisa, estão sob domínio do autor.
Manuel Luís Osório 84 28,0 %
Outros Correspondentes (76
Indivíduos)
139 72,0 %
Total de Missivas 299 100,0 %
Correspondências encontradas no Fundo General Câmara do (IHGRS), de 1869 a 1879.
Desse modo, na perspectiva de reduzir as distâncias entre os atores históricos, as
correspondências simbolizam “uma escrita de si que constitui e reconstitui suas identidades
pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas” (GOMES, 2005: 52). A prática epistolar,
nessa perspectiva, anuncia a própria dinâmica de transformações que ocorrem no transcorrer
das trajetórias pessoais, as diferentes facetas que são assumidas ao longo da vida de um
indivíduo pertencente ao seu tempo histórico, dividido entre os espaços de trabalho, de
sociabilidade etc.
Em outras palavras, ressalta-se a relevância dos documentos pessoais, em especial as
correspondências pessoais, para o estudo dos indivíduos na história. Sobre essa questão, Ângela
de Castro Gomes, em uma de suas contribuições acerca da escrita de si, aponta que “o
documento não trata de ‘dizer o que houve’, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e
experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento.” (GOMES, 2004: 14)
Assim, entendidas não apenas como objeto de aproximação entre os atores históricos, as
correspondências desnudam características, posturas e interpretações dos seus remetentes que,
muitas vezes, não observadas pelos historiadores ao trabalharem com outras fontes
documentais.
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