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Política econômica. É possível mudá-la? 1

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Política econômica.

É possível mudá-la?

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

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Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor

Inácio Neutzling, SJ

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Cadernos IHU em formação

Ano 2 – Nº 9 – 2006ISSN 1807-7862

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Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

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Sumário

“Quem traça o rumo é a política, não a teoria econômica”Entrevista com Tânia Bacelar de Araújo ................................................................................ 5

O Brasil e seus desafiosPor Tarso Genro ................................................................................................................... 9

As conseqüências de governar para o mercadoEntrevista com Fernando Jose Cardim Carvalho................................................................... 13

A opção de Lula: dar adeus ao desenvolvimentoEntrevista com João Sicsú..................................................................................................... 16

A política econômica do governo LulaEntrevista com Pedro Paulo Zahluth Bastos .......................................................................... 20

Mudará a política econômica do governo Lula?Entrevista com Leda Maria Paulani ....................................................................................... 24

O governo entregou ao setor privado o desenvolvimento nacionalEntrevista com Gentil Corazza .............................................................................................. 32

Uma economia para os próximos anosEntrevista com Márcio Schweig............................................................................................. 36

“A opção do governo foi acomodada ou até medrosa, para não dizer covarde”Entrevista com Ivo Poletto..................................................................................................... 38

“A política tornou-se irrelevante”Entrevista com Francisco de Oliveira..................................................................................... 41

Quadro político atual: um resultado das opções econômicas e das alianças do governo LulaEntrevista com Plínio de Arruda Sampaio ............................................................................. 50

“O Brasil está na fase de doente terminal, achando que vai dar tudo certo”Entrevista com Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo ................................................................... 53

Um governo sem rumo?Entrevista com Pedro Cezar Dutra Fonseca........................................................................... 57

Não esperávamos do governo tão poucas e pouco ousadas açõesEntrevista com Gláucia Campregher ..................................................................................... 59

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A tragédia do governo LulaEntrevista com Reinaldo Gonçalves....................................................................................... 61

“O ponto de partida é definir o novo projeto nacional”Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio Jr. ....................................................................... 63

“Devemos passar do financeirismo ao produtivismo”Entrevista com Ricardo Ffrench-Davis ................................................................................... 69

O desafio da esquerda: articular os valores democráticos com a tradição estatista-desenvolvimentista

Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho................................................................................. 72

Um projeto de país para o Brasil em eleiçãoEntrevista com Gilberto Dupas .............................................................................................. 76

Políticas econômicas e sociais devem dialogar com políticas ambientaisEntrevista com Luciana de Almeida ...................................................................................... 82

“O Brasil só cresceu quando teve coragem para marchar sem o FMI”Entrevista com Dércio Garcia Munhoz .................................................................................. 86

A ortodoxia leva ao caloteEntrevista com Guilherme Delgado ....................................................................................... 89

O Brasil regido por um “novo” padrão de desenvolvimento capitalistaEntrevista com José Carlos Braga ......................................................................................... 92

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“Quem traça o rumo é a política, não a teoria econômica”

Entrevista com Tânia Bacelar de Araújo

Tânia Bacelar de Araújo, economista e soció-loga, também não vê “mudança à vista” na políti-ca governamental. Acredita que isso “tem a vercom a herança e com a fragilidade da base de apoiodo governo. Elegeu-se o presidente, mas não umabase de apoio, e ele precisa negociar a todo o mo-mento. Agora está em outro momento de negocia-ção. Há uma fragilidade política que pesa”. TâniaBacelar concedeu uma entrevista exclusiva à IHU

On-Line, por telefone, em 29 de novembro de2004. Ela atuou durante trinta anos na Sudene,especializou-se em Economia Regional, porémcom um pensamento multidisciplinar, transitandopela geografia, pelo urbanismo e pela política.Colabora com distintos movimentos sociais, par-ticipando hoje da Consulta Popular. Severa críticado neoliberalismo, com suas reflexões sobre refor-ma agrária, planejamento econômico e desenvol-vimento regional, tem contribuído para a formula-ção de alternativas para o Nordeste e para o País.Professora nos departamentos de Economia eCiências Geográficas da Universidade Federal dePernambuco (UFPE), Tânia Bacelar é bacharel emCiências Sociais pela UFPE, em Ciências Econômi-cas pela Universidade Católica de Pernambuco(UNICAP) e doutora em Economia Pública, Plane-jamento e Organização do Espaço pela Universitéde Paris I/Panthéon-Sorbone. A economista tam-bém lecionou nos cursos de Economia daUNICAP, foi diretora de Planejamento Regional daSudene, secretária do Planejamento, secretária daFazenda do Estado de Pernambuco e diretora doDepartamento de Economia da Fundação Joa-quim Nabuco. É diretora da Consultoria Econômi-ca de Planejamento (Ceplan) e atua como consul-tora de várias entidades nacionais e internacionais.

A economista exonerou-se do cargo de secretáriade Políticas de Desenvolvimento Regional do Mi-nistério do Trabalho do Governo Federal, em ja-neiro de 2004. O ministro Ciro Gomes a considera“uma das mais brilhantes inteligências da acade-mia brasileira”. Tânia Bacelar é autora de Ensaios

sobre o desenvolvimento brasileiro – Heran-

ças e urgências. Rio de Janeiro: Fase, 2000.

IHU On-Line – No que diz respeito à políticaeconômica, parece-lhe que o governo estáassumindo definitivamente o seu perfil or-todoxo ou ainda resta alguma alternativa?Tânia Bacelar – Não. Acho que tem muita firme-za na posição do governo. Não vejo mudança àvista.

IHU On-Line – E a que a senhora atribuiessa posição?Tânia Bacelar – Eu acho que tem a ver com aherança e com a fragilidade da base de apoio dogoverno. Elegeu-se o presidente, mas não umabase de apoio, e ele precisa negociar a todo o mo-mento. Agora está em outro momento de negocia-ção. Há uma fragilidade política que pesa.

IHU On-Line – Além de adotar essa posturapragmática o governo não teria abdicado deuma aliança com os movimentos popularese com a classe média?Tânia Bacelar – São coisas diferentes. A classemédia está perdendo o poder de compra. Sua ren-da está diminuindo, e ela está sentindo esse peso,principalmente a classe média que compra maisdo que ganha, que tem que pagar juros. Como osjuros estão muito altos, a médio prazo, o poder de

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compra vai sendo corroído, porque se deixa decomprar para pagar juros. Na classe média, o pro-blema é mais econômico. Ela está mais afetadapela política econômica do que a maioria pobreque, ao contrário, está até recebendo mais trans-ferência de renda. Passou-se de dois milhões epouco de pessoas com cobertura desses mecanis-mos de transferência para seis milhões de pessoas.Lá embaixo, na pirâmide social, até cresceu a co-bertura. O problema é nos estratos médios. A clas-se média tinha uma expectativa muito mais alta eestá vivendo uma realidade dura. É normal que asua reação seja de insatisfação.

IHU On-Line – Na classe baixa, na sua opi-nião, está havendo uma melhor distribuiçãode renda...Tânia Bacelar – Eu não diria distribuição de ren-da, porque o tamanho da concentração no Brasilé tão grande que esses programas assistenciaisnão são suficientes para falarmos em distribuiçãode renda. Entretanto, eles amenizam a vida dodia-a-dia lá embaixo, na pirâmide. Podemos verque onde o PT se saiu pior [nas eleições] foi ondeestá mais a classe média.

IHU On-Line – E a ampliação desse apoiodistributivo na classe mais baixa não se re-verte em apoio político?Tânia Bacelar – Não necessariamente. São pes-soas também vulneráveis a outro tipo de ação po-lítica, de clientelismo imediato na hora da eleição.Elas continuam vulneráveis apesar de receberemuma renda adicional.

IHU On-Line – A senhora atribui essa per-manência da política ortodoxa a uma arma-dilha que prendeu o governo?Tânia Bacelar – Foi uma escolha. Resta ver quaisserão as conseqüências políticas dessa escolha. Asconseqüências econômicas são mais fáceis de ver.As conseqüências políticas é que são mais difíceisde avaliar no médio prazo. Tanto foi uma escolhaque ela continua firme. Não foi um acaso. Foiuma escolha estratégica de fazer uma transiçãolenta, custe o que custar.

IHU On-Line – A senhora acredita que esta-mos em transição?Tânia Bacelar – Na estratégia deles, eles pensamem uma transição, que é lenta. Vai diminuindo arelação dívida versus PIB... é o discurso do gover-no. O problema é que, na campanha eleitoral, atéum certo momento, projetava-se uma mudançamais rápida. Esta é a contradição. Desde a metadede 2002, já se via uma opção por uma transiçãolenta, mudanças lentas. É isso que está sendoimplementado.

IHU On-Line – Há uma alternativa a essa or-todoxia econômica?Tânia Bacelar – Há, claro, sempre há alternati-vas. Alternativas técnicas sempre existem. E nessecaso também existem várias possibilidades. Sóque a escolha política por enquanto está sendoessa. A alternativa técnica sempre se submete àescolha política. Quando o presidente entregou oBanco Central a Meirelles, ele fez uma escolha po-lítica, não foi uma escolha técnica. Existem alter-nativas a Meirelles.

IHU On-Line – Ao governo, além de base polí-tica não lhe faltam também alguns instrumen-tos para oferecer uma opção diferenciada?Tânia Bacelar – Instrumentos técnicos sempreexistem. Quando não existem, criamos. Quemtraça o rumo não é a teoria econômica. Quem tra-ça o rumo é a política. Para cada momento de es-colha política, combinam-se os instrumentos quea teoria econômica nos ensina. Há instrumentospara uma outra política. Isso é inegável. Por isso,há o debate, porque não existe só essa solução,existem outras. O problema é que, conforme aanálise política do governo, essa ainda é a melhorsolução. Ou muda-se na política, ou não se muda.Não é apenas o debate técnico dos economistasque ocasionará a mudança, porque, embora hajadiscussão técnica quanto ao assunto, mantém-sea situação como estava. O debate econômico ébom, ele deve florescer. Estimular é educativopara a população também, para que ela veja quenão existe só uma possibilidade, existem várias.Há outras composições de política econômicapossíveis. A pergunta é: elas são politicamente

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viáveis neste momento? Tem-se revelado quenão. Eu estou convencida de que não haverá mu-dança de rumo nos próximos meses.

IHU On-Line – Politicamente não é viáveluma mudança de rumo?Tânia Bacelar – Seria viável com outras condi-ções políticas, mas não nessas que estão aí. A polí-tica econômica está tendo apoio político no Palá-cio do Planalto. Não tem ainda forças políticaspara mudar. O que não significa dizer que não épreciso criá-las. Os movimentos sociais e a socie-dade podem mudar esse quadro. Estou fazendouma análise fria. Quando eu olho para o cenário evejo o que está acontecendo, não vejo sinal demudança.

IHU On-Line – A senhora localiza, no gover-no, algum nicho de resistência?Tânia Bacelar – Sim. O ministro José Dirceu, devez em quando, mostra que ele gostaria que mu-dasse mais. Alguns ministros, internamente, fa-lam, externamente, não. Não há essa homogenei-dade favorável à ortodoxia, no governo. Só que,no debate interno, quem pressiona por mudar apolítica macroeconômica tem perdido. Por isso,digo que não vejo sinais de mudança.

IHU On-Line – A senhora acredita que a di-ferenciação entre capital nacional e estran-geiro deve ser ainda bem demarcada, comodefendia o presidente demitido do BNDES?Tânia Bacelar – Acho que sim. O Lessa teve po-sições muito importantes. Ele era um foco de resis-tência interno. A diferença é que ele externalizavaisso, por isso caiu. Os outros não externalizam, ouexternalizam bem suavemente. O Lessa foi maisexplícito e aí gerou uma situação em que sedesestabilizou.

IHU On-Line – A senhora acredita que a ins-tituição de plebiscitos ou consultas popula-res para o debate de alguns temas mais rele-vantes poderia mudar essa situação?Tânia Bacelar – Acho que sim. Esse é outro pro-blema. Em 2003, principalmente, um pouco me-nos em 2004, houve um momento de perplexida-

de dos movimentos sociais, da facção mais da es-querda do próprio PT. E aí não se teve uma movi-mentação que ampliasse o debate. Um presidenteadministra as pressões, e a pressão que vem dosmovimentos sociais tem sido modesta.

IHU On-Line – A que a senhora atribui isso?Tânia Bacelar – Eu atribuo a uma certa perplexi-dade. Esperava-se um governo mais ousado naárea econômica, ele não veio com essa caracterís-tica, e os movimentos viveram um momento deperplexidade. A postura política, para a oposiçãode esquerda, é muito delicada. Se bater com mui-ta força, nivela-se à direita. E a direita tem meiospara faturar isso politicamente. Tem grande parteda mídia, tem muito poder de verbalização, deformar opinião. Não estou criticando os movi-mentos. Estou dizendo que também para eles é di-fícil, porque não se pode jogar tudo fora. Bem oumal, qual é a alternativa? Pode ser uma volta auma composição de força muito pior. E essa alter-nativa não está descartada.

IHU On-Line – Então o destino do País estánas mãos dos movimentos sociais?Tânia Bacelar – Sempre esteve. Nunca acrediteique as elites brasileiras mudassem o Brasil. Quemmuda o Brasil é a população brasileira, de baixopara cima, a duras penas, e ela sabe que é um pro-cesso lento. Não vai ser fácil mudar o Brasil, mas épreciso insistir, porque o que se conseguiu foi commuita luta. Portanto, quem desistir de lutar e espe-rar que o governo faça, está em uma posiçãoequivocada.

IHU On-Line – Nessa atual onda neoliberale de globalização, o papel do Estado aindatem uma importância significativa?Tânia Bacelar – Acho que sim. Os grandes esta-dos mostram isso. Eles fazem um discurso liberalpara nós, mas defendem seus interesses comunhas e dentes. Temos que olhar primeiro paraeles e depois temos que ver que liberalismo emum país desigual como o Brasil só vai dar em maisdesigualdade. O liberalismo pode até dar algumresultado em sociedades mais homogêneas. Emuma sociedade profundamente desigual como a

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nossa, vai resultar em mais desigualdade sempre.Os grandes Estados nacionais dos países podero-sos do mundo defendem seus interesses com to-das os instrumentos de que eles dispõem. Não temnada de liberalismo. Então para um país como oBrasil, o Estado nacional ainda é fundamental.Enfraquecê-lo foi um dos nossos problemas. Esseé um dos nossos dramas. Nas últimas décadas, elese enfraqueceu muito. Houve uma desmontagem,uma destruição de muitas conquistas que tinhamsido feitas. E os neoliberais ainda querem mais.

IHU On-Line – O governo vem trabalhandopara fortalecer o Estado? A parceria públi-co-privada1 contribui para isso?Tânia Bacelar – A parceria público-privada nãofortalece o Estado, embora ela responda a uma si-tuação concreta. O Estado não tem condição defazer muitos investimentos. Se os investimentos ti-verem retorno, o capital privado pode até se inte-

ressar. No entanto, a parceria público-privada éum instrumento muito limitado para responder àsnecessidades que eu considero mais importantes,exatamente aquelas que não são rentáveis, ondeé necessário o Estado. Na minha região, em Per-nambuco, tem um exemplo. Há o projeto de cons-trução de uma ferrovia importante que ligaria oNordeste ocidental ao Nordeste oriental, a trans-nordestina, só que não dá retorno. Cadê a parce-ria público-privada? Ela só será construída, quan-do o Estado bancar um investimento maior.

IHU On-Line – O governo vem conseguindoapresentar algumas medidas que fortale-çam o Estado?Tânia Bacelar – É muito lenta ainda a reconstru-ção. Faz parte da ideologia do governo, mas, naprática, é muito lenta ainda. Essa é uma das con-seqüências ruins da política econômica Ela tam-bém bloqueia essa recuperação de um instrumen-to que é importante.

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1 Projeto de lei do Governo Federal que institui normas de licitação e contratação de serviços e obras, oferecendo à iniciativaprivada novas modalidades de participação (Nota da IHU On-Line).

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O Brasil e seus desafios

Por Tarso Genro

Tarso Genro é ministro de Estado chefe daSecretaria de Relações Institucionais da Presidên-cia da República. No texto a seguir, escrito espe-cialmente para a IHU On-Line, no dia 26 de ju-nho de 2006, o ministro analisa os desafios que oBrasil deverá enfrentar nos próximos cinco, dezou quinze anos.

O tema “O Brasil e seus desafios” exige umdesdobramento a partir de alguns eixos: a situa-ção econômica global; a situação política estrutu-ral do Brasil; os pressupostos que devemos enca-rar para enfrentar esses desafios; a identificaçãodos obstáculos a serem removidos; e, finalmente,como responder a estes desafios.

As propostas devem ser mediadas por umavisão determinada do processo político. Governa-mos num regime democrático e dentro do Estadode Direito,"contabilizando" conflitos de classe, in-teresses de grupos e reconhecendo o processo dedescoesão social que ocorre no país.

Em São Paulo, por exemplo, esta situaçãoatingiu o paroxismo, através da crise de segurançapública, que resultou em dois ou três dias de ano-mia, embora saibamos que a questão de seguran-ça pública não é um problema circunscrito àqueleEstado.

Há uma certa visão economicista, normal-mente “liberal”, que apresenta sempre um conjun-to de propostas aparentemente “científicas”, comose elas pudessem ser implementadas só através deum voluntarismo exercido a partir do poder deEstado. É um método que funcionou de forma au-tocrática, por exemplo, na época de Stalin, quandoa União Soviética chegou a crescer 20% ao ano.Funcionou também no nazismo. Tudo, porém, édiferente num país democrático, onde devemos fa-

zer as modificações sociais e políticas preservando oEstado de Direito e a democracia.

A primeira referência que faço é quanto àglobalização do capital financeiro, que tem duasconseqüências A primeira: a globalização oportu-nizou um verdadeiro engodo, de caráter teóri-co-metodológico autoritário, que tentou desauto-rizar a idéia e o projeto de Nação. Essa globaliza-ção do capital financeiro, de uma parte, “globali-zou a demanda” e, de outra, internacionalizou ra-dicalmente a disputa por recursos energéticos. Talsituação provocou uma situação econômica glo-bal orientada para um aumento crescente nos pre-ços dos combustíveis fósseis. A segunda conse-qüência, portanto, é o surgimento de uma situa-ção em que as crises de energia passaram a se dis-seminar rapidamente.

Tal fato, porém, fortalece as possibilidadesde um bom futuro para um país como o nosso,que tem um contingente populacional pequeno(se considerarmos a proporcionalidade em rela-ção ao seu vasto território) e que tem muitos re-cursos energéticos disponíveis. Este aspecto daglobalização, portanto, oferece grandes possibili-dades a um país como o Brasil, para a constituiçãodo seu projeto nacional.

Paralelamente a essa situação global, temosuma situação política estrutural, no país, muito di-fícil. Ela poderia ser representada por duas consta-tações, feitas por José de Souza Martins, em artigopublicado na grande imprensa: parte das lutas so-ciais pela construção de direitos, que conhecemosna modernidade, foram substituídas por lutas porprivilégios grupais e corporativos. O problemanão reside no fato das categorias e corporaçõesquererem salários melhores. Isso faz parte da dis-puta pela renda. O problema é o grau de legitimi-

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dade política alcançado por tais movimentos e aforça que tiveram nos últimos quinze anos, comdistorções brutais no setor público e com a plena“corporativização” das lutas sociais.

Há outra constatação: as lutas sociais que tra-dicionalmente visavam à construção dos direitosna modernidade - lutas para reduzir a desigualda-de dos incluídos - foram substituídas por novosconflitos sociais (“novos” conflitos de classe) quese apresenta hoje na forma de um conflito pré-moderno: a luta pela inclusão na sociedade declasses. Enquanto nos seus primórdios o capitalismo“classificava”, no estágio atual ele “desclassifica”.

A desestruturação da sociedade de classestradicional leva a um conjunto de movimentos“inclusivos”, que são constituídos pelos chamadosnovos e novíssimos movimentos sociais. A direitaautoritária vê tais movimentos com uma ótica re-pressiva. Para o centro democrático e para a cen-tro-esquerda, porém, a questão é outra: como in-corporar plenamente tais movimentos no diálogodemocrático permanente e na construção de polí-ticas públicas não meramente “setoriais”?

Passo para o terceiro eixo mencionado noinício, dos pressupostos a encarar, para enfrentaros desafios: quais são as condições concretas a se-rem criadas, para que as respostas não sejam sim-plesmente respostas formais (ou meramente “críti-cas”, como faz uma certa parte da academia, quesubstituiu a proposição por uma constatação ana-lítica) ? É preciso compreender a necessidade ime-diata de uma política industrial de longo prazo,que promova a aceleração dos processos de trans-ferência produtiva, que só as forças de mercadopodem operar, mas que o fazem com lentidão.Significa que o Estado deve ter uma capacidade deplanejamento e indução sobre as forças do merca-do, orientando a política industrial num sentido ra-cional, compreendendo o mercado mundial comointegrante desta dinâmica industrial.

A segunda urgência é relacionada com o de-senvolvimento regional, que no Brasil, tem algunsimpedimentos a serem superados no próximo pe-ríodo, como a guerra fiscal entre os estados. Poroutro lado, é necessária a implementação de umaforte política de compras governamentais, orien-tada para o desenvolvimento das regiões. Proce-

der assim é usar a capacidade de gasto da União,combinando-a com um conjunto de políticas demaior ou menor complexidade, relacionadas dire-tamente com um espaço geoeconômico.

Cito, agora, três obstáculos que devem ser re-movidos para o enfrentamento dos desafios. Oprimeiro é a redução drástica das despesas supér-fluas do Estado inclusive quanto aos salários abu-sivos pagos pelos entes federados, como uma me-dida exemplar. Isso só pode ser feito a partir deuma ótica em que se corte privilégios, não direitos.Vou dar exemplos concretos: há carreiras daUnião em que rapidamente o salário vai para qua-se de R$ 19 mil e o de “fim de carreira” chega a R$21 mil. Ou seja, praticamente não há carreira.

Para mudar isso, só através de uma EmendaConstitucional, ou talvez uma Constituinte espe-cífica para alguns capítulos da Constituição Fe-deral. Poderíamos, assim, remover a interpreta-ção arcaica e reacionária, que foi construída pelobacharelismo privilegiado no Brasil, do direitoadquirido. A valer este tipo de “direito adquiri-do”, os antigos senhores de escravos ainda pode-riam ter escravos, pois tinham “direito adquirido”sobre os descendentes dos cativos, consideradoscomo “coisas”.

A melhor possibilidade é fazer um corte, pre-sente ou futuro, que balize os maiores saláriospelo do Presidente, Governador ou Prefeito. A di-ficuldade é que há sempre uma união corporativados que percebem salários mais elevados comaqueles que dizem representar o setor mais “revo-lucionário”, mais combativo da sociedade. É aunião da elite assalariada com os supostos revolu-cionários da ultra-esquerda, como já ocorreu emalgumas oportunidades. É preciso, assim, criarcondições políticas para dizer à sociedade o quevai ser feito. Para mostrar por onde começa a ver-dadeira sanidade fiscal do Estado.

Depois, são necessárias medidas para drenarrecursos para os “de baixo”, para os salários, apo-sentadorias e pensões miseráveis, reequilibran-do-os através de uma diferenciação menor entre otopo e a base.

O segundo obstáculo é o desbloqueamentodo sistema político, que tem dois pontos incontor-náveis a serem resolvidos: a fidelidade partidária e

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a verticalização das alianças. Há outros obstácu-los, mas sem resolver estes dois, não haverá des-bloqueamento do sistema político, já que só asalianças entre partidos vão dar conforto e gover-nabilidade. O que temos hoje, no Brasil, é umpacto de governabilidade a partir de um conjuntode compromissos e de relações contratuais disper-sas, sem vocação de unidade e sem capacidadede pensar a Nação.

Se nós evoluirmos para uma democracia departidos, com responsabilidades partidárias defi-nidas, internas ao governo e externas à sociedade,vamos permitir que a “instituição-partido” possaenquadrar a sua base parlamentar para dar coe-rência ao governo. Assim, a reforma política deve-rá ser prioritária no próximo governo que emergi-rá, com legitimidade, do atual processo eleitoral.

É preciso aprofundar as políticas sociais ime-diatas que mantêm uma mínima coesão social nopaís. Quando ocorre descoesão social, e ela emer-ge sem um sentido revolucionário, com perspectivade poder e com capacidade de enunciar programa-ticamente seus objetivos (como teoricamente acon-tecia até o esvaziamento político do Leste), o queresulta desse processo é a barbárie, não é a revolu-ção. O que vem da barbárie é o fascismo.

Uma parte desse sentimento fascista, ou “fas-cismo societal”, pode resultar da ira dos setoresmédios, principalmente daqueles que não têmcondições de morar nos condomínios fechados eque tem de enfrentar a realidade das ruas para so-breviver na sua profissão, na sua atividade. Essa éuma questão de grande dramaticidade no país eque nos obriga a ter políticas de coesão social mí-nima, permitindo que os agentes políticos tenhamcapacidade de interlocução nos conflitos, paraque uma descoesão social grave não redunde embarbárie.

Tenho a Revolução de 30 como ponto departida da Revolução Democrática, no Brasil. Foiem 30 que começou o processo de modernizaçãodo Estado brasileiro e de modernização políticado país. As suas idas e vindas hoje têm uma gran-de síntese, que é a Constituição de 88 e o pactopolítico que ela conseguiu organizar.

Seguiram-se um conjunto de governos, comsinalizações diferentes, às vezes até contraditórias,mas que conseguiram reordenar a vida política

brasileira e nos permitiram pensar em questõescomo essas que estamos colocando aqui, que, emúltima análise, propõem a retomada da idéia e doprojeto de Nação.

Evidentemente tal projeto não tem o mesmosabor dos projetos nacional-democráticos revolu-cionários da década de 50 ou 60. Hoje, a sobera-nia só pode se dar pela integração cooperada en-tre nações, portanto nem pela submissão nempela ruptura. Esse é o sentido estratégico da idéiade Nação, que também significa disputar umanova ordem global.

Vou mencionar o que entendo sejam os de-safios de médio prazo, que foram colocados comotema central do nosso debate. Alguns desses desa-fios começaram a ser encaminhados no início dadécada de 90, às vezes de forma contraditória, àsvezes mais coerente.

Mas são desafios que ainda permanecem.Primeiro desafio: formar suporte tecnológico ade-quado para manter e/ou renovar a nossa baseprodutiva histórica e revolucionar a nossa baseenergética. Isso está vinculado ao ponto que haviacolocado inicialmente: a questão energética setorna cada vez mais importante e comunica-se in-tegralmente com os próprios padrões de acumula-ção que essa idéia de desenvolvimento vai orien-tar no próximo período.

O segundo desafio é reformar o Estado brasi-leiro. Esta questão tem como pressuposto comba-ter privilégios e poderia ser sintetizada no seguin-te: buscar dissolver as barreiras burocráticas e au-toritárias que separam o cidadão comum do Esta-do. Constituir o controle público do Estado, utili-zando inclusive os meios da revolução tecno-digi-tal, que podem determinar até mesmo, em 10 ou15 anos, a possibilidade de um permanente “re-call” universal. Ele seria processado através de ter-minais, nos quais as pessoas possam interagir comuma pergunta que o Estado faça – em determina-das circunstâncias – para aferir, para escutar, comcaráter vinculativo ou não, a opinião da cidada-nia. Esta reforma do Estado pressupõem a neces-sidade de combinar a idéia de Nação com a ques-tão da democracia e do desenvolvimento.

Esta refundação, ou reconstituição do con-trato político do país, não poderá ser feita contraas classes trabalhadoras. Assim como não será fei-

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ta só pelas classes trabalhadoras, porque elas,hoje, estão cada vez mais dispersas e com muitosdiferenciais internos: parte dela jogada na infor-malidade, quase na marginalização sócio-política,e a outra parte em profunda mutação social e téc-nica. Evidentemente a refundação desse contratopolítico não será feito só por um sujeito “classe”determinado, ou um sujeito “partido” determina-do. Será feito por um consenso político entre ospartidos mais democráticos e mais avançados,que possam responder os pontos centrais da “cri-se” da globalização. Nada poderá ser feito – po-rém - sem a concordância, sem a assimilação doque significa esse projeto pelas classes trabalhado-ras. Tanto as novas, quanto aquelas informais,como as parcelas tradicionais. Significa que esseconcerto hegemônico deve ser compartilhado.

O terceiro ponto que me parece importante épossibilitar que as famílias possam consumir. Paraalguns, isso é “populismo”, mas a formação deum forte mercado interno é essencial para viabili-zar a idéia de Nação, para integrar as pessoas nalegalidade do progresso, onde os sujeitos se reco-nhecem como capazes de trocar. É algo tão ele-mentar que chega a ser surpreendente que, emdeterminados períodos, falar de um “mercado in-terno de massas” era um pecado ou um atraso.

A quarta questão é a necessidade de inter-venção forte do governo no mercado de trabalho,através de grandes programas de obras públicas,para construção, reconstrução e reorganização deinfra-estrutura. Esse é um poderoso instrumentode intervenção no mercado de trabalho e de for-malização das relações trabalhistas, especialmen-te num país como o nosso. Aqui no Brasil há todauma infra-estrutura para construir e reconstruir,ao contrário dos países desenvolvidos, em queessa questão está resolvida e as modificações nainfra-estrutura são muito mais escassas. No Brasil,isso significaria uma demanda enorme de mão-de-obra não qualificada e semiqualificada, quenos permitiria integrar milhões de pessoas no mer-cado de trabalho e, portanto, na formalidade.

O quinto ponto: é preciso manter a inversãodo fluxo da balança comercial para gerar reservas

capazes de, gradativamente, nos libertar da neces-sidade de capitais de curto prazo. A inversão queestá ocorrendo hoje na balança comercial já é im-portante. Teremos, assim, um processo de acu-mulação interna pública e privada, capaz de fazercom que racionalizemos as nossas relações com adívida e, portanto, potencializemos o Estado bra-sileiro para promover um forte programa deinvestimentos.

Talvez sejam estes os desafios para os próxi-mos cinco, dez ou quinze anos. Eles não poderãoser superados se não constituirmos um conjuntode enunciados estratégicos, que possam coesio-nar todos os setores democráticos do Brasil, man-tidas as diferenças e, evidentemente, a luta políti-ca que caracteriza o processo democrático. Defen-do que tenhamos algumas cláusulas políticas pé-treas para afirmação das instituições do Estadodemocrático, e assim possamos projetar o futurode maneira menos fragmentária.

Um exemplo do que pode ser convenciona-do nesse processo de “concertação” para produziruma agenda, seria agir sobre o superávit primário,sobre a política de juros e a política cambial, e as-sim fazermos um acordo entre todas as forças de-mocráticas no Brasil, inclusive com a direita demo-crática, para definir quanto, por ano, o Estado de-veria aplicar em infra-estrutura. É possível chegar aum acordo, e depois verificar os instrumentos ne-cessários, para fixar um teto de inflação e um pisode crescimento? Eu acredito que é possível.

Em relação à reforma de Previdência, porexemplo, seria possível criar um conjunto de nor-mativas que drenassem recursos de cima para bai-xo, que aumentassem o poder de consumo dos“de baixo”, cortando privilégios para os quais al-gumas pessoas não contribuíram?

A disposição de debater tais temas é o que,em última análise, dará conforto e governabilidadeao próximo período, seja quem for o presidente daRepública. A necessidade de buscar enunciadospara um acordo de concertação, que não extinga asdivergências entre os partidos, mas que possa coesi-onar, minimamente, um forte campo hegemônicono processo democrático brasileiro, é o que vai darlegitimidade e possibilidade de governar.

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As conseqüências de governar para o mercado

Entrevista com Fernando Jose Cardim Carvalho

Fernando Jose Cardim de Carvalho é profes-sor titular no Instituto de Economia da Universida-de Federal do Rio de Janeiro e doutor em Econo-mia pela Universidade de Nova Jersey. Escreveuum capítulo no livro Adeus ao Desenvolvimen-

to: A Opção do Governo Lula. Belo Horizon-te, 2005, organizado por J. A. de Paula intitulado,FHC, Lula e a desconstrução da esquerda. No tex-to, o professor diz que nem PSDB, nem PT deramqualquer ênfase real aos objetivos da esquerda de-mocrática. Ambos governaram para o mercado enos estreitos limites fixados por ele. Segundo opensamento do professor Cardim de Carvalho, ogoverno de Lula herdou um programa econômicodesenhado pelo Fundo Monetário Internacional.Na entrevista concedida à IHU On-Line em 10 deabril de 2006, Cardim avalia a atual situação polí-tica e econômica do País.

IHU On-Line – O modelo político econômi-co do governo Lula desgastou-se ou já co-meçou mal?Fernando Cardim Carvalho – O governo Luladeu continuidade a um programa econômico her-dado do segundo governo de Fernando HenriqueCardoso e que tinha sido desenhado, em suas li-nhas gerais, pelo Fundo Monetário Internacional,quando concedeu financiamento ao Brasil paraque atravessasse a crise cambial de 1999. Esteprograma consiste na conquista da confiança dos“mercados”, palavra que designa os mercados fi-nanceiros locais e internacionais, na expectativade que a aprovação do governo pelos mercadosestimule empresas produtivas a fazer investimen-

tos, aumentar a produção, expandir o mercado detrabalho etc. Na prática, o pagamento de taxas dejuros, excepcionalmente altas, a dívida pública e apriorização absoluta das despesas financeiras so-bre todas as outras na alocação orçamentária ga-nham a confiança dos mercados financeiros.Tem-se assim uma combinação de políticas mo-netária e fiscal altamente perversas e com impac-tos perversos sobre a taxa de câmbio também doponto de vista do crescimento. Nos governosFHC, a postura liberal deixou o País à mercê demovimentos desestabilizantes de capitais financei-ros, como durante a crise mexicana, as crises asiá-ticas e depois a crise russa, até o colapso de 19992.No governo Lula, essa mesma postura fez o Brasilcrescer as menores taxas do mundo em um perío-do em que a economia internacional esteve ex-cepcionalmente favorável.

IHU On-Line – Qual sua avaliação em rela-ção às divergências entre o grupo do ex-mi-nistro Antonio Palocci e do ministro da Jus-tiça, Márcio Thomaz Bastos?Fernando Cardim Carvalho – A queda de Pa-locci não se deveu à sua política econômica, jáque o próprio Presidente insiste que não conheceoutra, mas a escândalos de corrupção, favoreci-mentos e, ao final, de abuso de poder no episódioda violação do sigilo bancário do caseiro. É exas-perante como neste país grupos que se alimentampor anos a fio da retórica moralizante entregam-seaos vícios de sempre quando chega a sua vez.Entretanto, francamente, mais exasperante aindaé a falta de idéias substantivas para o futuro do

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2 Colapso do Real. Houve uma alta na dívida pública e nos juros. (Nota da IHU On-Line)

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País. É difícil imaginar uma quebra de confiançamais grave do que ver o próprio Presidente refe-rir-se ao seu discurso de vinte anos como “brava-tas”. FHC pediu que esquecessem o que escreveu.Lula simplesmente afirmou que o que disse antesera “balela”.

IHU On-Line – Muitos nomes estão sendoanunciados para a candidatura à Presidên-cia da República. Que propostas econômi-cas podemos esperar deles?Fernando Cardim Carvalho – Havia grandeexpectativa de que uma candidatura do José Ser-ra, por mais paradoxal que isso possa soar, consi-derando-se que Serra foi ministro de FHC, abrissea possibilidade de discussão de alternativas efeti-vas de política. Serra, afinal, foi um crítico públicodas políticas econômicas de FHC, mesmo na qua-lidade de ministro da Saúde. A escolha do PSDB,no entanto, parece ter sido pela reafirmação desua face mais conservadora. Alckmin é uma in-cógnita fora de São Paulo, mas os sinais que dá,de aproximação com a equipe de FHC, promete opior. O ex-presidente Itamar Franco está sendocogitado, mas parece pouco provável que consigaa indicação de um partido fragmentado como oPMDB. De qualquer modo, não há ainda qualquerindicação do que seria seu possível programa degoverno. Apesar de sua personalidade mercurial,seu curto governo não foi ruim, sendo responsávelpelo plano de estabilização que FHC espertamen-te tratou de dar seu nome. Garotinho seria, muitoprovavelmente, um enorme desastre. O estadoem que está o Rio de Janeiro é prova viva da ca-pacidade administrativa da família Garotinho.Alem disso, o governo de sua esposa tem patroci-nado desastres inacreditáveis, como o ensino davisão criacionista nas escolas do Estado. Só nãonos tornamos uma piada mundial como no casode Kansas porque poucos prestam atenção no quefaz o governo do Rio. Seria inimaginável o que es-tas pessoas fariam com um ministério da educa-ção nas mãos.

IHU On-Line – Com toda essa crise política,o mercado brasileiro parece inalterado. Éverdade?

Fernando Cardim Carvalho – Até agora, sim.As alternativas eleitorais que apareceram não re-presentam nenhuma ameaça à continuidade daspolíticas implementadas nesses últimos doze anos.Com Lula ou com Alckmin o mercado está tran-qüilo. Com Itamar, quem sabe? Com Garotinhoseria além da imaginação.

IHU On-Line – Aparentemente, na AméricaLatina, as políticas econômicas de esquer-da e direita não apresentam grandes dife-renças. Exemplo disso é Lula no Brasil,Vázquez no Uruguai e Bachelet no Chile. Osenhor concorda? O que aconteceu com aesquerda?Fernando Cardim de Carvalho – Bachelet aca-bou de assumir, é difícil dizer o que será seu gover-no. No entanto, há diferenças importantes, como,por exemplo, o caso do Presidente Kirchner, naArgentina, para não falar de experiências populis-tas como a de Chávez. Eu tenho a impressão deque o contraste entre Kirchner e Lula é mais inte-ressante que a similaridade deste com Vázquez. OUruguai não tem muito espaço de decisão autô-noma, prensado pela convivência com dois vizi-nhos enormes, como o Brasil e a Argentina. Já aArgentina se confrontou com o FMI, por exemplo,e impôs seu ponto de vista. Manteve as políticasde juros que achou melhores e com isso conse-guiu uma disciplina fiscal semelhante à do Brasilsem sacrificar seu crescimento. Suas políticassociais têm uma natureza mais de apoio ao em-prego do que a de Lula, mais abertamente assis-tencialista. No aspecto político, de forma aindamais visível, Kirchner tem sido muito mais afir-mativo no trato com seu próprio passado. NaArgentina de hoje, é impensável que o coman-dante do Exército lançasse uma nota como a lan-çada aqui em 31 de março, expressando orgulhopelo golpe militar.

IHU On-Line – A América Latina vive ummomento de mudanças. O que podemos es-perar de, por exemplo, Evo Morales? Have-ria uma possibilidade de alianças entre Bra-sil, Venezuela e Bolívia potencializando di-versas fontes energéticas?

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Fernando Cardim Carvalho – As relações coma Bolívia são sempre muito delicadas devido às di-ferenças de desenvolvimento e poder político en-tre Brasil e Bolívia, um dos mais pobres países docontinente. O conflito atual com a Petrobras, porexemplo, parece de difícil solução, porque dolado brasileiro o problema do gás é principal-mente comercial, enquanto do lado boliviano éde soberania nacional. É possível que se cheguea uma solução aceitável para ambos, mas alian-ças com países de desenvolvimento similar,como a Argentina, mesmo que fora da região,como no caso da Índia e da África do Sul, sãomuito mais promissoras.

IHU On-Line – O senhor escreveu um artigointitulado FHC, Lula e a desconstrução da

esquerda. Quais as idéias fundamentais?Fernando Cardim Carvalho – O PSDB e o PTapareceram como propostas de renovação da es-querda, substituindo a sua tradição revolucionáriapor uma tradição democrática. Assim, apesar de oPT não gostar do rótulo, ambos nasceram complanos próximos ao do socialismo e da social-de-

mocracia européias. Incidentalmente, ambos tam-bém nasceram com ambições éticas mais notá-veis, o PSDB de um grupo do PMDB que rejeitavao “quercismo”, e o PT recusando toda a políticapartidária do Brasil. Como alternativas socialistas(no sentido europeu) e social-democratas, a retó-rica de ambos os partidos deveria privilegiar o ple-no emprego, o crescimento e a distribuição derenda e riqueza, por meios estruturais e não ape-nas assistenciais, como, por exemplo, pela refor-ma tributária que desse efetiva progressividadeaos impostos. Chegados ao poder, no entanto,nem PSDB, nem PT deram qualquer ênfase realaos objetivos da esquerda democrática. Ambos go-vernaram para os mercados e nos estreitos limitesfixados pelos mercados. A esquerda brasileira che-ga falida em meados da primeira década do milê-nio não porque se mostrou tão ou mais corruptaque todos os outros, por mais grave que isso possaser, mas porque chega desprovida de idéias e pro-postas. Deste revés, a esquerda democrática (por-que aos poucos, é verdade, remanescentes da es-querda revolucionária dirão que a democracia“burguesa” é inócua) brasileira não se recuperarátão cedo.

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A opção de Lula: dar adeus ao desenvolvimento

Entrevista com João Sicsú

João Sicsú é professor no Instituto de Econo-mia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,mestre em Economia pela Universidade FederalFluminense e doutor em Economia pela UFRJ. Oprofessor é organizador de, entre outros, Macroe-

conomia do Emprego e da Renda: Keynes e o

keynesianismo. São Paulo: Manole, 2003 e No-

vo-desenvolvimentismo: um projeto nacional

de crescimento com equidade social. Barueri:Manole, 2005. Na entrevista concedida à IHU

On-Line, no dia 3 de abril 2006, Sicsú disse que oBrasil precisa ter esperança novamente. “Precisa-mos ancorar nossas esperanças não só em promes-sas genéricas, mas em métodos específicos, particu-larmente em políticas econômicas. Temos que tergarantia de que determinadas políticas econômicassejam implementadas. E esperamos como resultadoa realização de promessas bastante conhecidas”.

IHU On-Line – Qual a análise que o senhorfaz da saída de Palocci? O que significa aescolha de Lula por Mantega?João Sicsú – Essa troca não muda muito. A po-lítica econômica vai continuar a mesma, e isso jáfoi declarado pelo Presidente e pelo novo minis-tro. O que houve foi apenas uma substituição denomes, porque o nome de Palocci já era insus-tentável, não pelos erros de política econômicaque ele cometeu, mas sim por problemas que es-tão no campo da ética, da moral. Seria positivo emotivo de alegria se Palocci tivesse sido retiradodo cargo ou tivesse pedido demissão, pelos errosque cometeu. Erros que são claros, porque ocrescimento do País nesse período em que ele di-rigiu a economia foi muito baixo. Não vejo ne-nhum significado especial na escolha de Mante-ga. Ele seguirá a política econômica do governo,patrocinada por Lula: a política de taxas de juros

elevadas, de corte de gastos públicos basicamenteem infra-estrutura e gastos correntes também emsegmentos essenciais. Seguirá com a política decâmbio flutuante e volátil, em que o câmbio estáprofundamente valorizado, prejudicando muitoas exportações, principalmente as manufatura-das. Não há nenhuma novidade em relação amudanças conceituais, embora tenha havidomudanças de nomes.

IHU On-Line – O que podemos esperar deMantega?João Sicsú – Podemos esperar somente umapressão para ter uma taxa de juros mais baixa e delongo prazo também: a TJLP, a taxa de juros queserve de orientação para o BNDES cobrar os seusempréstimos. Talvez nós tenhamos uma taxa dejuros menor. Isso, porém, não muda o modelo, sómuda a intensidade de uma das variáveis, a variá-vel da taxa de juros. Seria importante para o Paísse nós tivéssemos uma mudança mais completade política econômica, uma mudança deste con-junto todo de políticas: política fiscal, política mo-netária, política cambial. As políticas vão conti-nuar as mesmas, talvez só a política monetáriaseja menos restritiva que no período anterior.Então as coisas se mantêm como estão, exceto osjuros, o que eu poderia dizer que já é algo positi-vo, mas ainda muito limitado.

IHU On-Line – O período pós-Palocci signi-fica uma atitude antiPalocci? O governoLula muda suas orientações centrais sem oúnico homem forte que de fato teve até omomento?João Sicsú – O governo poderia mudar agorasem Palocci, porque quem indica o ministro é oPresidente, que é o patrocinador de qualquer polí-

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tica econômica em última instância. Se desejasse,Lula mudaria. Entretanto, ao indicar Mantega, an-tes de o novo ministro tomar posse, o próprio Pre-sidente já disse que a política econômica não mu-daria. Isso significa dizer que o ministro foi con-vocado para manter a mesma política econômi-ca. Então, esse período certamente não é um pe-ríodo antiPalocci. É um período de continuaçãoda mesma política de Palocci. É um períodopós-Palocci somente no sentido cronológico, ouseja, Palocci acabou, vem Mantega. Quanto aoconteúdo, contudo, representa simplesmente etão-somente continuidade.

IHU On-Line – Como o senhor vê a possibili-dade de mudanças na política econômicano caso de um segundo mandato de Lula?João Sicsú – No caso de um segundo mandato,não haveria por que mudar. Não há nenhum sen-tido em se pensar em mudança. O Presidente pa-rece convicto da orientação que este modelo eco-nômico tem e considera que, desde o início, desdetrês anos atrás, esse modelo poderia levar o Paísao desenvolvimento. Não há nenhum sentido emse fazer um modelo, como esse foi feito, para semudar num segundo mandato. O segundo man-dato, se existir, será também de continuidade. O

problema do campo da política é que estamos di-ante de duas possibilidades iguais: Alckmin eLula. O modelo econômico do PT é exatamenteigual ao modelo econômico do PSDB. A possibili-dade de mudança num segundo mandato deLula, ou num primeiro mandato do Alckmin, é ba-sicamente nula. Tudo continuará como antes.

IHU On-Line – E se, na sua política econômi-ca, Alckmin for assessorado por Luiz Men-donça de Barros, Nakano e Bresser Pereira?João Sicsú – Se de fato ele for assessorado poresses economistas, aí vão existir grandes mudan-ças. Eu não acredito, contudo, que esses econo-mistas sejam os preferidos de Alckmin. Ele temdado declarações, tem feito explanações, confe-rências, em que expõe idéias econômicas bastan-te diferentes das idéias do Yoshiaki Nakano3 e doBresser Pereira4. Entretanto, se ele seguir o cami-nho ou as proposições de Bresser na câmara, nósteríamos um outro modelo de política econômica.Isso já foi tentado no governo Fernando Henri-que, quando o Malan5 e o Armínio Fraga6 coman-davam a economia e existia um contraponto inter-no feito por Bresser, por Serra e pelo próprio Na-kano em São Paulo. Era um contraponto apenasde fachada, não era efetivo, porque quem manda-

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3 Yoshiaki Nakano é professor de Economia, diretor da Escola de Economia e chefe do Departamento de Economia da Escolade Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP). Foi secretário da Fazenda do Estadode São Paulo (1995 a 2001), diretor do Centro de Economia Política, secretário especial de Assuntos Econômicos doMinistério da Fazenda e consultor do Banco Mundial. Foi também secretário-adjunto do Estado de São Paulo (1985 a 1987) eocupou o mesmo cargo na Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, em 1987. (Nota da IHU On-Line)

4 Luiz Carlos Bresser-Pereira é economista e cientista social. Foi ministro da Fazenda, (1987), ministro da Administração e Reformado Estado (1995-98) e ministro da Ciência e Tecnologia (1999). É mestre em Administração de Empresas pela Michigan StateUniversity, doutor e livre-docente em Economia pela Universidade de São Paulo. É professor, desde 1959, da Fundação GetúlioVargas de São Paulo, onde ensinou inicialmente Administração e hoje ensina Teoria Econômica e Teoria Política. Cursou aFaculdade de Direito da USP. Foi, por 20 anos, executivo dos Supermercados Pão de Açúcar.(Nota da IHU On-Line)

5 Pedro Sampaio Malan é engenheiro. Foi professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Malan foi o ministroda Fazenda (Economia) durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2003. Atualmente, é presidentedo conselho de administração do Unibanco. (Nota da IHU On-Line)

6 Armínio Fraga Netto foi presidente do Banco Central do Brasil de março de 1999 a dezembro de 2002, na gestão do entãopresidente Fernando Henrique Cardoso. Anteriormente, ocupou durante 6 anos o cargo de Diretor Gerente da Soros FundManagement LLC em Nova York. Nos anos de1991 e 1992, Fraga ocupou o cargo de membro da Junta de Diretores. Foidiretor do Departamento de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil. Fraga também trabalhou na SalomonBrothers em Nova York e no Banco de Investimentos Garantia, no Brasil. Lecionou na Escola de Assuntos Internacionais daUniversidade de Colúmbia, na Escola Wharton e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, além da Escola dePós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. É doutor em Economia pela Universidade dePrinceton. Obteve seu mestrado em Economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1981, onde tambémse graduou. Atualmente, Fraga é o principal acionista de um grupo de investimentos chamado Gávea Investimentos, além deser membro do conselho de administração do Unibanco. (Nota da IHU On-Line)

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va na economia verdadeiramente eram Malan eArmínio Fraga. Não acredito que o PSDB mude delinha nesse momento, passando a condução dapolítica econômica a esses economistas. Acho quepoderia ter havido mudanças se de fato Serra fos-se o candidato do PSDB. Isso o próprio PT tem ex-pressado. O presidente do PT, Berzoini, chegou adeclarar que Serra era temido por segmentos em-presariais. Isso mostra que o prefeito de São Paulotinha, de fato, uma proposta diferente da de Lula.Chego a essa conclusão porque o Presidente daRepública não era temido pelos segmentos em-presarias. Se um era temido e o outro não, é por-que eles têm propostas diferentes. Serra seria umaalternativa a Lula. Não acredito que o Alckminseja.

IHU On-Line – Quem poderá ser o ministroda Fazenda num segundo governo Lula?Que características ele deveria ter?João Sicsú – Para Lula, não tenho a menor dúvi-da de que, o melhor ministro da Fazenda seriaaquele que fosse mais amigável aos olhos do mer-cado. Para ser coerente, Lula deveria colocar noMinistério da Fazenda alguém com o mesmo perfildo presidente do Banco Central atual, que ele in-dicou. Ele colocou no setor público pessoas quetêm idéias do setor privado, financeiro. Para nãohaver conflito em seu governo e para ser coerentecom seu modelo, acho que ele deveria escolherum economista ou banqueiro do setor privado.Encaixaria muito bem no modelo de Lula no se-gundo mandato.

IHU On-Line – E em que sentido essa criseabala a busca pelo desenvolvimento e peladistribuição de renda?João Sicsú – A crise só enfraquece eleitoralmen-te o PT, mas não enfraquece esse modelo, que é omodelo dos adversários de Lula também, doPSDB. Dizer que, no segundo mandato, teremosdesenvolvimento, distribuição de renda e cresci-mento econômico, é apenas promessa. Promessaque Lula fez durante 20 anos e quando teve a

oportunidade de executá-las, não realizou. Porque agora, nos próximos quatro anos, ele fariaaquilo que prometeu? Não vejo nenhuma coerên-cia nisso. A coerência é continuar as coisas comoestão. Prometer crescimento, desenvolvimento,igualdade social, não diferencia esquerda de direi-ta. A direita também concorda com isso, nenhumeconomista de direita vai ser contra o crescimen-to, contra a distribuição de renda. O que diferen-cia são os caminhos para atingir esses objetivos.Lula e PSDB têm os mesmos métodos para atingiresses objetivos.

IHU On-Line – Em que sentido o livro Adeus

ao Desenvolvimento: A opção do governo

Lula7 pode contribuir para a compreensãodo cenário político e econômico atual doBrasil?João Sicsú – Esse livro é importante, emboraseja muito heterogêneo. Existem artigos nele quedescrevem a trajetória do Partido dos Trabalha-dores, e isso nos permite compreender com deta-lhes o mundo da política brasileira. Existem arti-gos nesse livro sobre economia, que mostram queo modelo de política econômica de Lula é o mo-delo do Fernando Henrique, mas isso não é agrande novidade. A novidade do livro é indicarpolíticas econômicas que poderiam ser adotadas eque, de fato, levariam o Brasil ao crescimento, aodesenvolvimento, a ter uma melhor distribuiçãode renda. É um livro de diagnóstico da sociedadee da economia brasileira, que contém propostasalém das críticas. E as propostas que ele apresentamostram que a saída dessa estagnação que esta-mos vivendo não seria com solavancos, tropeços,possíveis crises cambiais, até sociais, e atritos polí-ticos. Seria uma saída possível desse modelo libe-ral para o modelo desenvolvimentista, uma saídaprocessual, que teria tensão, mas também calma-ria, ou seja, é possível transitar desse modelo paraum outro sem que isso represente uma grandedescontinuidade no plano político e social, masque provocaria uma grande descontinuidade napolítica econômica. Esse livro deve ser lido. O títu-

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7 João Antônio de Paula (Org.). Adeus ao Desenvolvimento – A opção do Governo Lula. Belo Horizonte: Autêntica,2005. (Nota da IHU On-Line)

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lo expressa bem o conteúdo do momento, ou seja,Lula deu adeus ao desenvolvimento. O País cres-ceu nesses três anos exatamente a média dos últi-mos 20 anos. Crescemos 2,5% em média, talvezaté um pouco menos. Um governo que abraça abandeira do desenvolvimento não pode comemo-rar como seu ponto forte o modelo de política eco-nômica que adota. Quem fez opção pelo desenvol-vimento não comemora taxas de crescimento tãobaixas. Não diz que o ponto forte da administraçãodo governo foi a administração da economia. Naverdade, o que o governo fez foi dar adeus ao de-senvolvimento. Essa foi a opção do governo Lula.

IHU On-Line – O que podemos esperar daseleições deste ano?João Sicsú – Espero muito pouco em relaçãoaos debates, porque a mídia está contaminadapela polarização dos dois grandes partidos, PT ePSDB, que vão discutir apenas a ética. Um vaiacusar o outro de ser corrupto, e talvez os dois es-tejam com a razão. Um vai acusar o outro de terum modelo que não leva ao desenvolvimento eambos estão com a razão também. A polarizaçãoficará entre dois grandes partidos que não ofere-cem uma alternativa de crescimento, desenvolvi-mento e melhor distribuição de renda para o País.

Acho que teremos dificuldades, pelo menos aque-les que, como eu, gostariam de ver o País em ou-tra situação, para escolher um candidato que te-nha viabilidade eleitoral e propostas desenvolvi-mentistas para o País. Eu gostaria de ter um nomeque tivesse densidade eleitoral e um programaque levasse o País àqueles objetivos com que to-dos concordam: desenvolvimento, crescimento,distribuição de renda, mas que tivesse também noseu programa políticas econômicas de taxas de ju-ros baixas, de investimento público em infra-es-trutura e de um câmbio bem mais desvalorizado,mais estável, que favorecesse as exportações e aformação de reservas por parte do Banco Central.Não basta ter o objetivo genérico do crescimento,é necessário dizer como vai chegar lá. É mais doque isso, é necessário se comprometer com estecomo, ou seja, o candidato tem que dizer comovai fazer e depois que ganhar as eleições tem quefazer aquilo que prometeu quanto ao método,não quanto a afirmações genéricas. A favor docrescimento todo mundo é. Uns acham que vãodistribuir renda melhor aumentando a taxa de ju-ros. Eu acho que é baixando as taxas de juros. Oscandidatos têm que se comprometer com os mé-todos sugeridos durante o período de campanhaeleitoral.

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A política econômica do governo Lula

Entrevista com Pedro Paulo Zahluth Bastos

Pedro Paulo Zahluth Bastos é graduado emCiências Econômicas e mestre em Ciência Políti-ca. Bastos é doutor em Ciências Econômicas pelaUnicamp. Sua tese intitula-se Dependência emProgresso: Fragilidade Financeira, VulnerabilidadeComercial e Crises Cambiais no Brasil, 1890-1954.O professor foi um dos coordenadores do Encon-tro Nacional de Economia Política realizado emCampinas em maio de 2004 pela Sociedade deEconomia Política, que elaborou a Carta de Cam-pinas. Na entrevistra à IHU On-Line, em 17 dejunho de 2005, Pedro Paulo Bastos afirmou que“o governo Lula realizou um contrato de credibili-dade com os mesmos interesses que eram favore-cidos ao longo do governo Fernando HenriqueCardoso, reforçando características institucionaisda política econômica que eram favoráveis a essesinteresses”.

IHU On-Line – Como o senhor vê a saída deJosé Dirceu do Ministério?Pedro Paulo Bastos – A saída do José Dirceufaz parte de uma estratégia mais geral do governode, em primeiro lugar, ter uma figura mais forte noCongresso. Desde a substituição do João PauloCunha, o Congresso está completamente desgo-vernado no que tange à agenda do governo fede-ral. É lógico, contudo, que esse não é o único sig-nificado da saída do José Dirceu. Isso está articu-lado a outras duas coisas. A primeira: tirá-lo doexecutivo, porque não sabemos ainda o grau deenvolvimento que ele pode ter com todas essasdenúncias, então é melhor que ele esteja no Con-gresso do que no Executivo. E a segunda, é vincu-lar a saída dele a uma reforma ministerial maisampla, que vai ter o sentido de trazer partidos

maiores para a base de apoio do governo de umamaneira mais consolidada. Eu posso estar enga-nado, porque tudo ocorre com uma velocidadetão grande que não sabemos o que pode aparecernos jornais de domingo [a entrevista foi concedidana sexta-feira, dia 17 de junho de 2005] sobre no-vas denúncias. Essa reforma ministerial vai abrirespaço para o PMDB entrar mais no governo demaneira que o PT não fique tão dependente des-ses pequenos partidos, que foi basicamente a es-tratégia política que o José Dirceu tinha constituí-do desde o início do governo. Ao contrário do go-verno Fernando Henrique, que tinha também re-lação com partidos menores, mas podia negociarmais concentradamente, porque tinha a seu ladoo PFL e, às vezes, o PMDB. Acredito que o PT vápartir para essa estratégia mais concentrada desustentação política com a aliança privilegiadacom um grande partido. Isso vai modificar a basede sustentação política do governo, desde que re-cupere o mínimo de estabilidade política, repetin-do um pouco o estilo de sustentação característicodo governo Fernando Henrique Cardoso.

IHU On-Line – Como se deu o contexto daelaboração da Carta de Campinas, bastantecrítica ao governo Lula?Pedro Paulo Bastos – É preciso esclarecer que,em geral, a Sociedade de Economia Política não éuma sociedade política, uma ONG, ou uma orga-nização partidária, nem está vinculada a nenhumpartido político em particular, e não tem comoprincipal finalidade influenciar o debate políticono País. É uma sociedade de cunho acadêmico ecientífico, que realiza congressos anuais sobre te-mas diferenciados, em que são apresentados pa-

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pers científicos. Desde o ano passado, conside-rou-se que havia a necessidade de um maior posi-cionamento político da entidade, porque há umnúmero muito grande de economistas que está naentidade que foram petistas, muita gente doPSDB, mas que comunga uma visão muito críticada política econômica. Esse posicionamento foifeito na Carta de Uberlândia, em 2004, que já tra-zia algumas críticas à repetição reforçada pelamesma política do regime macroeconômico her-dado do governo FHC pelo governo Lula. Só queainda existia, no ano passado, um certo compassode espera, porque o argumento do governo, pelomenos para a sua base, que criticava esse tipo deadesão ao pensamento único, era de que se pas-sava por uma primeira fase, vinculada à necessi-dade de superar a crise cambial e financeira que ti-nha sido levantada no processo sucessório em2002, pelos escândalos nas bolsas americanas,pela crise argentina, e que posteriormente seriamcriadas as condições para uma virada estratégicaem que finalmente a proposta de desenvolvimen-to do Partido dos Trabalhadores, em uma aliançaampla, teria condições de se efetivar. Depois des-se encontro, ficou muito claro que nada disso éverdade. Do ponto de vista político, pessoas vin-culadas a essa proposta alternativa saíram. Aí, ocaso mais emblemático é o do Carlos Lessa. Omovimento de redução das taxas de juros, que ti-nha ocorrido com base na idéia de que já se tinhasuperado a crise inicial que legitimou o aumentomuito forte da taxa de juros, não apenas foi inter-rompido, como foi revertido por nove meses.Com isso, aumentou a pressão da base do execu-tivo para garantir a independência do Banco Cen-tral, e para amarrar também futuros governos, vo-tando um projeto plurianual, que define superá-vits primários muito elevados, que preservam essesuperávit atual e até abre possibilidades de au-mentá-lo. Além disso, foram eliminadas do focode decisão político do Presidente a definição dequal vai ser a política fiscal e a meta de superávitque o futuro governo vai buscar alcançar. Issoporque o projeto plurianual tenta pré-definir quaisserão as metas de superávit nos próximos cincoanos. Então, isso tudo mostra que não ocorre ape-nas uma repetição dessa política, que é incapaz de

permitir o crescimento sustentado da economiabrasileira, mas que também proporciona umaconsolidação da coesão política do governo nosentido de garantir a sustentação da mesma políti-ca, não apenas ao longo desse governo, mas paraos próximos governos. Ficou claro que foi porágua a baixo a idéia de que uma primeira fase se-ria depois substituída por um outro projeto. É porisso que, na Carta de Campinas, o posicionamen-to desses economistas, que não são apenas petis-tas, muitos são ex-petistas, que, em geral, nãocompartilham dessa visão de política econômicaque o governo federal tem, foi muito mais agressi-vo e aberto do que aquele que foi realizado emUberlândia no ano passado.

IHU On-Line – Quais as críticas mais pon-tuadas feitas ao governo que aparecem nacarta?Pedro Paulo Bastos – A crítica fundamental quese faz a essa política é a seguinte: a idéia é a de quebasicamente o governo Lula realizou um contratode credibilidade com os mesmos interesses queeram favorecidos ao longo do governo FernandoHenrique, reforçando características institucionaisda política econômica que eram favoráveis a essesinteresses. Por exemplo, preservou e reforçou a li-vre mobilidade internacional de capitais, a possi-bilidade dos especuladores entrarem e saírem dosmercados de capitais do Brasil, quando bem en-tenderem, não em função de objetivos políticos eestratégicos do País, mas em função de seus inte-resses de curto prazo de realização de lucros. Essafinalidade estava clara antes ainda de o governoassumir e tinha o objetivo muito claro de apreciara taxa de câmbio. Por que a apreciação do real?Porque essa é a outra parte do contrato de credibi-lidade que o governo resolveu realizar, que é umcontrato de credibilidade com empresas locais en-dividadas em dólar, muitas delas que aproveita-ram a privatização de ativos públicos do governoFernando Henrique, e que geram receita em moe-da local, mas que tem passivos em moeda exter-na. Esse desequilíbrio patrimonial, social, essedescasamento de moeda entre ativos e passivos, éum elemento fundamental existente por trás dacrise financeira e cambial de 2002. A maneira de o

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governo reverter essa crise é não impondo contro-le de capitais ou induzindo um processo de rene-gociação dos compromissos externos ao que eraaté esperado pela banca internacional, mas basi-camente reforçando o câmbio, a mobilidade decapitais e sinalizando às empresas e aos bancostambém, que terão plenas condições de gerar re-ceita em reais para pagar dívidas que vão ser de-preciadas por conta da apreciação do real. As dívi-das são externas. Então, evidentemente, quantomais apreciado está o real, mais barata é essa dívi-da externa. E essas empresas terão garantia de ge-ração de receita em reais para sustentar o seu pa-trimônio, porque elas compraram ativos públicoscom endividamento externo, por meio de umapolítica de preço de tarifas administradas forte-mente favorável a elas e desfavoráveis aos consu-midores. Não haveria nenhum tipo de quebra decontrato, mesmo que as empresas desses setoresnão cumprissem suas metas de expansão do siste-ma, mesmo que elas precisassem renegociar dívi-das com o BNDES, utilizando subsídios públicosfiscais, mesmo que elas precisassem renegociar ospontos que lhes eram desfavoráveis. O governonão realizou nenhum movimento de, por exem-plo, alterar regras de formação de preços dessesmonopólios privados de serviços públicos, muitosdeles constituídos em condições extremamentesuspeitas do ponto de vista da legalidade da trans-ferência patrimonial que foi realizada. O governonão realizou nenhum movimento de, por exem-plo, substituir a regra de correção do IPA ou doIGP, pelo IPCA. A estabilidade monetária vai sergarantida por um regime de metas inflacionárias enão por qualquer tipo de controle cambial que, defato, garanta a estabilidade cambial.

Economia brasileira x economia mundial

É preciso entender que, devido a diversas cir-cunstâncias, a economia brasileira só cresce quan-do a economia mundial puxa. Não foi por causado governo Lula que tivemos esse crescimento de5% no ano passado. Não foi apenas porque abase do ano anterior era baixa, mas porque a eco-nomia mundial puxou, mesmo que o Banco Cen-

tral e o governo federal, por meio da política fiscale cambial, fizessem tudo para que esse crescimen-to não fosse multiplicado aqui no Brasil, para que,quando a economia mundial puxasse o Brasil pe-los cabelos, a economia brasileira não reagissetanto e não se acelerasse demais. A política para oexterior foi exatamente de tentar desacelerar essesrecursos de crescimento determinados pela eco-nomia mundial. Isso porque, como esses impulsosprovocam aumento dos custos das commoditiesimportadas, vinculados também não só ao impul-so da economia mundial, mas à inflação do preçodas commodities, e por causa desses contratos ab-surdos, ocorre a inflação dos preços de serviçosnão-vendáveis. A reação do governo para evitarque as metas inflacionárias não sejam realizadas,cumpridas, é não questionar essa estrutura de cus-tos, mas evitar que os empresários dos setorescompetitivos possam transferir pelo menos partedessa expressão de custo para os seus preços fi-nais. Como? Reduzindo suas margens de lucro. Ogoverno faz isso elevando sua taxa de juros, redu-zindo o crescimento prospectivo dos mercadoscompetitivos e forçando as empresas a cortarempreços, cortarem margens de lucros e demitiremtrabalhadores ou diminuírem os custos do traba-lho para que elas consigam preservar a parcela demercado sem transferir a expressão de custo queessa política econômica produz. A única maneirade fazer a economia caber na meta é desacelerar oseu crescimento, jogando todo o prejuízo e o custodo ajuste da preservação da meta ao setor compe-titivo, ao setor de empresas competitivas e aos tra-balhadores que estão empregados nesses setores.A meta de inflação no Brasil não é ambiciosa, emgeral. Cinco por cento não é muito, é muito ape-nas dados os instrumentos que o governo mobili-za. Se o governo não faz nada para garantir a esta-bilidade cambial, ela vai produzir uma elevaçãodo preço das commodities. Quando a taxa de ju-ros aqui começar a cair porque o governo conse-guiu jogar o setor competitivo na lona e foi inca-paz de rebaixar a pressão de custos e os preços fi-caram dentro da meta de inflação, a taxa de jurosvai cair. É como se o governo tivesse dito assim:“Olha, vocês dizem que eu não tenho credibilida-de. Como não? Eu vou mostrar que não apenas

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vou fazer o que o Fernando Henrique fez, comovou fazer ainda mais. Vou aumentar o superávitfiscal, vou aumentar as taxas de juros, vou reduziras metas de inflação, só vou usar a política de ju-ros para combater a inflação, não vou dar reajus-tes salariais exagerados para os servidores públi-cos, inclusive vou resolver finalmente a questãoprevidenciária contra os aposentados. Estou dan-do para vocês um cheque em branco, vocês têmque acreditar que eu sou crível, serei mais crívelainda do que o Fernando Henrique Cardoso”. Ogoverno Lula pagou para que acreditassem nele,para que ele assumisse, sentasse na cadeira, e fi-zesse as mesmas coisas que o governo FHC. Elepagou só que não foi com o dinheiro dele, foi como dinheiro do povo brasileiro, dos aposentados,dos que necessitam dos serviços públicos e dosque pagam essas tarifas absurdas para os mono-pólios privados.

IHU On-Line – O senhor considera que háoutros interesses que “conspiram” contra ogoverno na conjuntura atual? Pode estar emcurso um golpe ou um movimento capaz deinviabilizar o atual governo e sua sucessão?Pedro Paulo Bastos – É possível, porque o go-verno desenvolveu uma estratégia que punia suabase de apoio e não executou políticas que au-mentassem a sua popularidade, não só do Lula,mas de todo o governo, e que sustentasse uma po-lítica que não precisasse tanto desse jogo parla-mentar inescrupuloso que aparentemente o go-verno veio fazendo. Como ele prejudicou suabase de apoio e perdeu a popularidade perante apopulação, ele precisa recorrer a esses mecanis-mos parlamentares, às bases de sustentação quenão são as históricas do Partido dos Trabalhado-res. Isso mostra o grau de dependência do gover-no dessa base absolutamente inorgânica e de di-reita. Mesmo que Lula esteja se dizendo uma pes-soa crível e capaz de defender os interesses dessabase de direita com a presteza maior que a do Fer-nando Henrique, é evidente que ele, e particular-mente o PT, continua não sendo confiável. Écomo o novo domador que chega ao circo. Ele

precisa domar o leão enorme que está na frentedele. O que ele faz? Ele dá mais carne do que ooutro domador dava. Depois de um tempo, eleganha a confiança do leão e decide diminuir aquantidade de carne. Ele dá menos carne para oleão, que come o braço dele. É mais ou menosisso que está acontecendo. O governo Lula estácompletamente dependente dessa base de apoioinorgânica, que não confia muito nele e vice-versa.Se houver possibilidade de jogar Lula aos leões devez, vai ser jogado aos leões, o governo vai ser de-sestabilizado mesmo, e a sua base de apoio com-pletamente nocauteada pelo conhecimento dos ti-pos de método que esse governo fazia para coop-tar essa nova base.

IHU On-Line – O que a sociedade civil, mo-vimentos sociais etc., podem e devem fazerneste momento?Pedro Paulo Bastos – Os movimentos sociaisque têm base de apoio no PT, vão tentar estimularas esquerdas do partido para fazer alguma coisa.A tendência é a de que não somente os movimen-tos sociais se revoltem com o estado dos fatos,mas também a opinião pública. O tipo de soluçãoorganizada que isso pode ter é pequeno. Quemvai colher os frutos dessa falência política do go-verno não vai ser a sociedade civil, mas os interes-ses que estão na oposição do governo Lula, muitoprovavelmente. De qualquer forma, sem controlede capitais, sem mexer no direito dos monopóliosprivados de colocar os preços monopolistas ondequeiram, sem garantir estabilidade cambial pormeio desses controles do movimento de capitais,sem redução da taxa de juros, sem redução do su-perávit fiscal, é evidente que as bases para um cres-cimento sustentável, para um governo que seja sus-tentavelmente popular, do ponto de vista da popu-laridade, ficarão enfraquecidas. Sem isso, sem es-sas modificações estratégicas e econômicas de ge-ração de emprego, de controle da inflação etc.,muito dificilmente qualquer outro governo vá tercondições de estabilidade política, porque o graude crise, de herança maldita que o governo Fer-nando Henrique deixou, de fato, é muito grande.

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Mudará a política econômica do governo Lula?

Entrevista com Leda Maria Paulani

Leda Maria Paulani, professora da Faculdadede Economia, Administração e Contabilidade daUSP e presidente da Sociedade Brasileira de Eco-nomia Política (SEP), é doutora em Teoria Econô-mica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas daUSP com a tese intitulada Do Conceito de Dinhei-ro e do Dinheiro como Conceito. Paulani tambémobteve livre-docência pela Faculdade de Econo-mia, Administração e Contabilidade da USP, coma monografia Modernidade e Discurso Econômi-co. Signatária do Manifesto dos Economistas diri-gido, em 2004, ao governo federal, Leda MariaPaulani assevera que o título do referido docu-mento – E Nada Mudou – expressa, concretamen-te, a percepção dos seus idealizadores sobre a po-lítica econômica brasileira. É autora de diversos li-vros, entre os quais A Nova Contabilidade So-

cial São Paulo: Saraiva, 2000 e o recém-lançadoModernidade e discurso econômico, Boitem-po Editorial, livro no qual analisa as raízes filosófi-cas e ideológicas do que chama de doutrina neoli-beral. A professora Leda Maria esteve na Unisi-nos, convidada pelo IHU, participando do I Ciclo

de Estudos Repensando os Clássicos da

Economia, no dia 23 de junho de 2005. Na oca-sião, ela falou sobre O Capital de Karl Marx. O tí-tulo da sua palestra é A utopia de um novo para-digma para a economia. A economista concedeuduas entrevistas à IHU On-Line, uma no dia 19de junho de 2005, de sua residência, por telefone,e outra no dia 29 de novembro de 2004.

IHU On-Line – Como a senhora vê a saídado ministro José Dirceu? Ela vai reforçar apolítica econômica ortodoxa do ministroPalocci?

Leda Paulani – A saída em si era um desdobra-mento previsível da crise política. As conseqüên-cias para a política econômica são especulações,mas, evidentemente, há uma expectativa de forta-lecimento do ministro Palocci, uma vez que, noPlanalto, até agora, as duas maiores figuras eramo ministro Palocci e o ministro Dirceu. Com a saí-da deste, Palocci fica como estrela solitária. Nãodiria que isso provoque um aprofundamento dapolítica ortodoxa, mas que ele vai ter muito maisespaço político agora não resta dúvida. Será umespaço político para continuar a fazer a políticaeconômica do jeito que está fazendo e aprofun-dá-la, se for preciso.

IHU On-Line – A imprensa, hoje, publica anotícia sobre o projeto entregue pelo depu-tado Delfim Neto ao Presidente Lula e ao mi-nistro da Fazenda, de zerar o déficit nominaldo País num prazo de seis anos para poderreduzir a taxa de juros. O que significa tudoisso? Como a senhora vê esse projeto ou asinformações que se levantam sobre ele?Leda Paulani – É um projeto de inspiração orto-doxa. Ele parte do princípio de que o déficit públi-co é uma espécie de mau passo que precisa serpunido com a penitência, esquecendo que isso fazparte das economias capitalistas do mundo. Inclu-sive, a dívida pública foi uma das primeiras formasde acumulação primitiva de capital, nos inícios dosistema capitalista, mas há uma interpretação dis-so que puxa para o senso comum e que faz pare-cer que deve ser assim mesmo. Se o País tem umdéficit muito grande, ele tem que fazer um grandeesforço na economia para acabar com o déficit,então aí vem o paraíso. Eu lembraria que 80%, no

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mínimo, desse déficit, deve-se a esse próprio mo-delo. Não é um déficit originado em um enormegasto do Estado sem controle, não tem nada dis-so. O déficit cresceu substantivamente pela pró-pria política de juros. Desde a primeira gestão deFernando Henrique Cardoso, vem sendo utilizadacomo única ferramenta da economia. Assim,quando houve a crise asiática em 1997, a taxa dejuros chegou a quase 50%. Depois, em 1998,quando houve a crise russa, de novo houve umaenorme elevação da taxa de juros. Em 1999, hou-ve a crise cambial, antes disso, houve uma manu-tenção forçada e artificial da taxa de câmbio emum patamar muito baixo que redundou na crisecambial e, logicamente, em um aumento da dívi-da pública. Depois da crise cambial, quando seadotou o regime de taxa de câmbios flutuantes,continuou sendo utilizada a taxa de juros funda-mentalmente. Então, faz-se um enorme esforçofiscal, com superávit para reduzir o tamanho dadívida de um lado, mas de outro lado, aumenta-sea dívida com uma taxa de juros real injustificada-mente elevada. Há que desmitificar um poucoesse processo. Agora, stricto sensu, a política defazer um aperto fiscal maior do que já é, para, emprincípio, ter espaço para reduzir a taxa de juros,do ponto de vista da economia é trocar seis pormeia dúzia. Pensando nas variáveis que determi-nam o comportamento do produto, de um lado,consegue-se partilhar os juros e, em princípio, in-centivar os investimentos, mas, de outro, con-trai-se ainda mais os gastos públicos. Muito maisdo que já estão contraídos, porque o Estado arre-cada muito, mas paga muito de juros da dívida.

IHU On-Line – A senhora acha que o projetode Delfim Netto, de fato, vai ser implantado?Leda Paulani – Acho que é possível, sim, porquecomo há um grito geral em relação à taxa de juros,então politicamente, ainda mais no meio dessacrise, pode ser interessante reduzir a taxa de jurossem afetar o modelo. Pode-se fazer essa redução,ou pelo menos uma manutenção da taxa de jurose que ela produza o efeito político desejado e au-mentar o aperto fiscal. Em função do cenário polí-tico mais complicado e dada a reclamação, tantopor parte das posições mais a esquerda como dos

próprios empresários sobre as altas taxas de juros,acho que esse modelo tem grandes chances de serimplantado. Agora há as especulações de DelfimNetto voltar a ser ministro.

IHU On-Line – Embora ele negue...Leda Paulani – Exatamente. Se for, porém, ado-tado um modelo proposto por ele, fica uma certaobrigação do governo de colocá-lo no Ministério.Colocar alguém que foi ostensivamente ministroda ditadura como ministro de um governo do PTseria muito complicado. Se bem que o governo doPT já não tem mais nada do que se esperava e doque prometeu, mas, para todos os efeitos, é umgoverno do PT, ou seja, politicamente não é muitofácil admitir alguém como Delfim Netto como mi-nistro do governo Lula. Esse fato pode se tornarum empecilho para adotar, de forma direta ouimediata, essa proposta.

IHU On-Line – Que outras propostas o go-verno poderia adotar, considerando o pata-mar ao qual chegou?Leda Paulani – O governo Lula, do ponto de vis-ta da política econômica e em vários outros aspec-tos, tocou o governo como Fernando Henrique jávinha fazendo. Queimou-se um capital políticomuito grande que teria permitido espaço para mu-danças no início do governo. Nessa altura docampeonato, tentar mudar, tem um custo, masainda assim, acho que é um custo que deveria seravaliado, porque se essa direção for mudada, defato há perspectiva de crescimento mais sustentá-vel. São rumos que diversas pessoas estão comen-tando por aí e que nós resumimos na Carta deCampinas. Uma delas é o controle de fluxo de ca-pitais, a outra é acabar com o regime de metas deinflação, porque ele realmente não funcionanuma economia com taxas de câmbio flutuantes ecom preços administrados com muito peso nos ín-dices. Precisamos lembrar que esses preços são deserviços cuja propriedade são de não-residentes,de empresas estrangeiras. Elas são muito depen-dentes do comportamento do câmbio. Toda vezque o câmbio sobe há uma grande pressão sobreo governo para autorizar aumentos, mas quandoo câmbio cai, como está ocorrendo agora, não há

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a atitude contrária, evidentemente, ficando o Paísna mão dos interesses desses grandes grupos, doponto de vista de serviços essenciais, como ener-gia elétrica, comunicações etc. Na realidade, ha-veria que alterar a política de determinação depreços, que passa pelos acordos desses grandesgrupos com o Estado. Se isso acontecer, estariacolocando sob o arbítrio do Estado, se houvessevontade política, uma parte substantiva dos índi-ces de preços. Havendo controle dos fluxos inter-nacionais de capitais, a taxa de câmbio se tornamais estável. O que desestabiliza a taxa de câmbioé a balança de capitais. Hoje, apesar de nós ter-mos um equilíbrio na balança de transações cor-rentes, continuamos externamente vulneráveispor conta dessa liberdade de fluxos de capitais.Com essas duas medidas, se realizaria uma mu-dança de modelo. Haveria outras coisas comouma reforma tributária que, de fato, seja reforma enão o que foi feito. Uma reforma que penalize etribute mais a propriedade, tribute também a ren-da de um modo mais progressivo. Precisa tributarmais fortemente as faixas mais altas de renda.Hoje quem ganha mais de dois mil e cem reais émilionário, porque paga 27,5% de imposto derenda. A partir daí tanto faz quem ganha 2 mil ecem reais ou cinqüenta mil reais por mês, pagamo mesmo imposto proporcionalmente. Existem al-gumas questões importantes que devem ser revis-tas: os impostos que recaem sobre a sociedade, areforma agrária, entre outras.

IHU On-Line – Quais foram as repercussõesda Carta de Campinas?Leda Paulani – Como sempre, a grande impren-sa ignorou completamente. Já no ano de 2004com a carta de Uberlândia, houve uma pequenarepercussão na grande imprensa, porque ela fazquestão de ignorar. Repercutiu mais na Internet, eo único veículo da grande imprensa que deu espa-ço foi a revista Carta Capital. Este ano, porque oencontro foi na Unicamp, uma instituição impor-tante, a imprensa esteve muito presente no eventona época, mas depois, quando saiu a carta mes-mo, ninguém publicou. Foram publicadas infor-mações do encontro, mas não a carta. Nossa in-tenção não é escrever a carta e mandar para o go-

verno, e sim que a sociedade brasileira tenhaacesso a ela e quem tem obrigação de divulgar é agrande imprensa. Nós somos absolutamente mar-ginais a esse pensamento econômico que dominao governo Lula. Nossas vozes serão sempre abafa-das, mas achamos que é nossa obrigação falar.

IHU On-Line – Olhando para a crise atual dogoverno, qual pode ser seu andamento. Háquem pensa que se trata de uma conspira-ção contra o governo e até chegou a falar-seem possível golpe. Como a senhora vê essasafirmações?Leda Paulani – Essa história do golpe, na reali-dade, só pode vir do próprio PT, dos grupos maisligados ao governo. A idéia de que tudo isso seriafruto de uma conspiração que está sendo articula-da pelo PSDB e a mídia é uma hipótese absoluta-mente inaceitável, porque o PSDB não tem nada aver com as confusões que o PT arrumou, fazendoalianças com PTB e outros partidos. Quem fez asdenúncias maiores são aliados do próprio gover-no. O próprio governo está interessado nessa ver-são para diminuir o peso dos problemas de cor-rupção. É evidente que a versão de que um golpeda direita está querendo tirar Lula do governoacaba tirando o foco da corrupção em si. Até achoque, para o PSDB, o grande inimigo político (so-mente político, não de projeto, o projeto dos doispartidos para o País é o mesmo) é o poder, de verquem vai comandar o projeto: se o PT ou o PSDB.Não interessa roer a corda até arrebentar. Interes-sa para ele manter esta situação de crise até 2006.E se não vem daí, vem de onde? Dos militaresnão, porque não há mais condições históricaspara isso. O governo Lula não está ofendendo in-teresses constituídos no Brasil. Quando esses inte-resses são atacados é que a perspectiva de golpeaparece. Pelo contrário, a política do governoLula tem privilegiado os interesses dos que sem-pre dominaram o País.

IHU On-Line – Como está sendo refletidaesta crise no PT, haverá novas rupturas?Leda Paulani – No início do governo, quandoele começou a adotar aquelas medidas muito or-todoxas, houve uma interpretação diferente. Vá-

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rios pensavam que se tratava de uma estratégia deinício de governo, apenas para evitar que a crisese aprofundasse, mas que depois o verdadeiroprojeto do PT seria implementado e outros, comoeu, falamos, desde o início, que esse modelo ésem volta e que seria muito difícil qualquer altera-ção de curso. Nesse meio tempo, houve a expul-são de alguns parlamentares e, no interior do PT,permaneceu um grupo de 15 a 20 parlamentares,que vêm criticando o governo, mas não saem doPT, como Ivan Valente, Walter Pinheiro e outros.Os que saímos do PT, há muito tempo, os questio-namos, perguntando o que estão fazendo ali ainda.Eles sempre dizem por que continuam no partido.Agora está cada vez mais difícil a situação deles. Seeles são, de fato, pessoas honestas que ainda acre-ditam e lutam por uma mudança efetiva do Paísnão podem compactuar com esse nível de corrup-ção. Se, por um lado, se acaba de destruir o PT naforma como ele se colocou na história brasileira, deoutro, o PT vai ficar como outro partido qualquer,aliás já é como outro qualquer, tudo o que diferen-ciou o PT já foi jogado fora. De qualquer maneira,a permanência desse grupo faz barulho, para todosos efeitos é um grupo do PT que está criticando oque o governo está fazendo. Talvez o resultadodesta crise faça o PT ficar mais homogêneo no piorsentido. No sentido de um partido político qual-quer no qual o que fala mais alto são os interessesmais espúrios, e não os interesses do País.

IHU On-Line – A decepção política que o go-verno provocou em muitos dos que espera-vam mudanças seja no Brasil, seja no exte-rior, deixa sem esperanças políticas? Ondehá alguma força política diferenciada queresulte em mudanças efetivas?Leda Paulani – Se pensarmos na América Lati-na, temos, pelo menos um governo que, de fato,tem enfrentado os interesses que sempre domina-ram o Continente. O presidente Chávez, com to-das as críticas que possamos fazer a ele, tem tidocoragem de enfrentar esses interesses. Não estoudizendo que ele tenha um modelo perfeito quepossa ser copiado por qualquer país latino-ameri-cano e será bem-sucedido, porque a vida não étão simples assim. No entanto, quanto à postura,

pelo menos, ele tem uma postura que esperáva-mos ver no governo Lula, e não vimos nem som-bra. Com a reforma agrária, por exemplo, ele sim-plesmente disse: “Vamos fazer” e está fazendo.Não por acaso, ele foi objeto de um golpe. Comofalei antes, quando se atacam os interesses fortes éque surge a perspectiva do golpe. Tentou-se tirarChávez do poder, porque ele estava enfrentadoesses interesses, mas não deu certo o golpe, houveum plebiscito, ele ganhou, seus inimigos não tive-ram mais o que fazer. Ele tem essa postura maishonesta de alguém que se elegeu para fazer mu-danças, o que ele está fazendo. Metade da posturadele no Brasil já teria feito um estrago bom, nomelhor sentido da palavra. Eu gostaria de ir para arua agora para defender o governo Lula da possi-bilidade de um golpe, mas por essas razões queacabo de levantar, eu não vou para a rua defenderLula e o governo do PT, mas nem sob tortura. E eufui do PT desde o início, mas hoje não tenho a me-nor ilusão.

IHU On-Line – A senhora apresentará naquinta-feira, no I Ciclo de estudos Repen-sando os Clássicos da Economia o tema A

utopia de um novo paradigma para a econo-

mia, com base nas idéias de Marx. Quais se-rão os principais aspectos que irá desenvol-ver em relação ao tema?Leda Paulani – Eu estou pensando em fazer umresumo das críticas que Marx faz ao que ele chamade modo de produção capitalista. Recentemente,tive um debate com Francisco de Oliveira, sobreum livro que acabei de lançar, e alguém da platéiafez uma pergunta em relação à utopia, às caracte-rísticas do mundo utópico. O prof. Francisco deOliveira disse que utopia é sempre, em primeirolugar, uma grande crítica ao estado atual das coi-sas. É importante difundir essas críticas, mostrarque pontos de vista, por exemplo, Marx via comoprincipais problemas desse modelo de vida capi-talista. Agora, sobre como seria construído um ou-tro mundo, o Marx não falou. Seria uma falácia,um equívoco não-casual, dizer que a queda do so-cialismo real ou a queda das economias, que eramtão ligadas à União Soviética, foi uma demonstra-ção do equívoco das idéias de Marx. É absurdo,

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porque Marx nunca escreveu como seria o mundopós-capitalista, ele sempre escreveu uma crítica aocapitalismo. É um absurdo dizer que aquelas ex-periências de socialismo foram experimentos mar-xistas que deram errado.

IHU On-Line – Como o pensamento marxistapoderia iluminar a situação atual brasileira?Leda Paulani – O pensamento marxista é impor-tante principalmente por alertar para algumas ca-racterísticas dessa forma de organização socialque não são tão evidentes. Muitas vezes, aquiloque aparece como sendo objetivo do sistema, naverdade é o oposto. Parece que o sistema é feitotodo para a produção de bens e coisas úteis quesatisfaçam às necessidades humanas, ou seja, umsistema voltado para a produção e o consumo debens. Marx diz que isso não é verdade. A produ-ção e o consumo de bens, e, portanto, o atendi-mento das necessidades humanas é apenas umsubproduto de uma lógica cujo objetivo é a buscado lucro, da valorização monetária do capital in-vestido. Trata-se da busca de riqueza de formaabstrata, e não concreta. Então, para o capitalistanão importa o que vai produzir. Ele não vai pro-duzir sapatos, porque alguém precisa calçar os pése não vai produzir pão porque as pessoas não têmo que comer, ele produz, porque isso permite va-lorar o capital dele. Também pode produzir ar-mas, drogas, o que for necessário para valorizar ocapital dele. Uma forma que temos de perceber averdade dessa afirmação de Marx no capitalismode hoje é vendo como a lógica financeira dominacompletamente a lógica produtiva. Hoje em dia,todos os capitais estão mais preocupados com avalorização do lado financeiro que com a produ-ção propriamente dita. Essa discussão, por exem-plo, entre taxas de juros que oporia o capital fi-nanceiro ao capital produtivo é também um pou-co falaciosa, porque do ponto de vista do grandecapital não há essa divisão. Quem é afetado pelataxa de juros elevada? São pequenos capitais, pe-quenos negócios. O grande capital compõe sua

atuação, dançando conforme a música. No mo-mento em que as taxas de juros reais são eleva-das, é evidente que eles vão fazer uma composi-ção de seus capitais de modo a maximizar o seuretorno, tendo em vista as taxas elevadas. Quan-do a taxa de juros cai, é a mesma coisa, mas o pe-queno capital sofre, não tem essa flexibilidade.Portanto, o sistema é movido por uma lógica cujapreocupação não é o ser humano, as necessida-des humanas, e sim a valorização monetária docapital.

“Só uma crise de grandes proporçõesmudará o rumo do governo”

IHU On-Line – Na sua opinião, de fato, nadamudou8 no cenário econômico brasileiro?Leda Paulani – Nada mudou, isto é, mudou nopior sentido. Aprofundaram-se as diretrizes da po-lítica liberal e, se tivemos alguma mudança, nãofoi no sentido de algo diferente do que vinha sen-do feito particularmente na última gestão do go-verno do Fernando Henrique. Do ponto de vistada política econômica, strictu sensu, nada mudoumesmo.

IHU On-Line – Essa abordagem do tipo “nadamudou” não contém uma ênfase por demaisacentuada na questão macroeconômica?Leda Paulani – Eu não acredito que seja possívelseparar as coisas como esta visão faz crer que é.Quem defende esse tipo de postura e, ao mesmotempo, julga que é possível isso se combinar comuma postura desenvolvimentista ou mais à es-querda advoga o seguinte: política macroeconô-mica tem que ser assim, tem que ser uma políticadura, etc., e a gente faz a diferença na política so-cial. Quer dizer: toda a diferença estaria na políticamicroeconômica. E todos os problemas passam apoder ser tratados na esfera microeconômica. Euacho essa visão completamente equivocada. Pormais que sejam bem sucedidos os programas do

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8 A entrevistada foi uma das signatárias do Manifesto dos Economistas, intitulado E nada mudou, divulgado recentemente,defendendo um projeto nacional de desenvolvimento e criticando a condução da política econômica nacional. (Nota da IHU

On-Line).

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tipo renda compensatória como o Fome Zero,Bolsa Família – que estão sendo conduzidos deuma forma muito atrasada, muito antiga, comuma visão muito paternalista do Estado e do pró-prio Presidente –, o que temos são milhões de fa-mílias dependendo de uma espécie de esmola quevem do Estado. Seria muito diferente a situaçãodessas famílias se arrumássemos um empregopara o pai ou a mãe de cada uma delas. Isso é darcidadania, horizonte de vida, perspectiva. Do con-trário, o problema imediato é minorado, maspermanece o problema, propriamente dito, nãomuda a questão orgânica da sociedade. Que fu-turo tem essa gente? Com a política econômicaatual, esses problemas continuam absolutamentesem resolução.

IHU On-Line – O ambiente internacional se-ria favorável para uma mudança de rumosdo País ou isso pouco importa?Leda Paulani – Se o governo Lula tivesse utiliza-do o capital político que tinha no início, para fazermínimas mudanças, hoje teríamos uma autono-mia maior para deliberar internamente sobre osnossos rumos sem ficar dependendo tanto do queacontece no panorama da economia mundial.Cito os dois exemplos de sempre, China e Índia,que deliberam sobre as suas políticas. E por quê?Porque têm uma política externa, do ponto de vis-ta das relações econômicas, que os protege. Essespaíses têm uma espécie de escudo protetor. Entãoeles ganham autonomia para deliberar sobre acondução das suas economias internas. Hoje nósnão temos essa condição, mas isso é resultado dofato de termos perdido a oportunidade histórica,que tivemos em mãos, para justamente criar essacondição.

IHU On-Line – Essa oportunidade históricafoi perdida devido ao pragmatismo políticoou por uma convicção teórico-política daelite dirigente?Leda Paulani – Eu diria que isso se deve mais aopragmatismo político. Julgou-se que o caminho

menos conflituoso e doloroso, o caminho para amanutenção do poder, que custou tanto a chegar,(foram quatro eleições), o caminho que exigia me-nos esforço fosse esse. É mais fácil conciliar doque enfrentar os conflitos, isso é evidente. Entãose optou por isso. Eu não sei se o Lula acredita defato nisso, se o [Carlos] Lessa9 tem razão ao dizerque ele está sendo enganado pelas elites, achoque o Presidente não é nenhum ingênuo. Mastambém ninguém pode dizer que ele não possa,de repente, ter chegado à conclusão de que esse éo melhor jeito de fazer as coisas. Também achoque muitas pessoas do governo sabem que não épossível termos uma boa perspectiva para o Paíscom a continuidade dessa política. Contudo, achamque não têm nenhum espaço para fazer algo dife-rente. Como agora o que importa é manter o po-der conquistado, então o governo se mantém nes-sa linha.

IHU On-Line – A senhora acha possível queocorra uma reaglutinação dos movimentossociais, forçando o governo a mudar sualinha?Leda Paulani – Esse é um outro problema. Nosúltimos vinte anos, os movimentos sociais ficarammuito identificados com o Partido dos Trabalha-dores. Não por acaso, pois o PT foi um produto dasituação ditatorial vivida pelo país e nasceu de bai-xo, nasceu do movimento operário, dos movi-mentos sociais. Imediatamente ele ganhou umperfil de partido de esquerda, os intelectuais se ali-nharam a ele, e a partir de então, por todas essasrazões, o partido passa a capturar, a atrair todosos movimentos sociais. Veja-se, para ficarmos emdois casos paradigmáticos, a ligação do PT com oMovimento dos Sem Terra (MST) e com a criaçãoda Central Única dos Trabalhadores (CUT), queseria de trabalhadores autônoma, “não-pelega”...O que acontece hoje? O PT chegou ao poder enão está fazendo a política que se esperava, mas ofato de o partido estar no poder, de o Lula ser oPresidente, isso acaba constrangendo um poucoos movimentos sociais. O próprio MST anda falan-

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9 Ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), demitido no dia 18-11-2004 (Nota daIHU On-Line).

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do uma coisa aqui e outra acolá, critica a políticaeconômica, mas sempre preserva o Presidente.Com os resultados apresentados até agora, fosseoutro o Presidente, o MST estaria bem mais bravodo que está. O professor Francisco de Oliveira10

chama essa situação de “o seqüestro da sociedadecivil”. Ele fala justamente dos movimentos sociais,das associações de classe, dos sindicatos, que fica-ram meio aprisionados. Muitos militantes de basedo MST se recusam a acreditar que Lula não vá fa-zer aquilo que prometeu. Não se pode falar comeles e criticar o Presidente, eles não aceitam.Então não há um espaço político-ideológico com-pletamente aberto para uma aglutinação e umapressão para que o governo mude.

IHU On-Line – A sua perspectiva para o fu-turo do País é pessimista?Leda Paulani – Sim. Se considerarmos como oti-mismo a possibilidade de mudança, eu sou com-pletamente pessimista. Acho que daqui para o fi-nal do governo, o que aconteceu nos últimos diasdemonstra isso cabalmente, vimos Lula declararque a política econômica não mudará, que vai serisso mesmo, reafirma duramente a política adota-da. Como eu não acredito que se possa separar ascoisas, não se pode fazer um governo ortodoxo napolítica econômica e de esquerda no resto, isso éuma ficção, então eu acho que nada vai mudar. Amenos que qualquer evento inesperado, umagrande crise, faça com que o governo reavalie a si-tuação e decida por alguma mudança, mas essamudança só virá ao preço de uma crise de grandesproporções. Uma crise externa, ou social, ou polí-tica, alguma coisa que não está no cenário ainda.Com o cenário atual, eu acho que tudo permane-ce como está até 2006.

IHU On-Line – A manutenção desse rumonão se deve também a uma certa fragiliza-ção do ideário desenvolvimentista?Leda Paulani – Sem dúvida. Desde o começodos anos 1990, temos um ambiente muito ariscoàs idéias desenvolvimentistas, temos um ambienteagressivamente contrário a elas. Temos não sóuma desqualificação das políticas keynesianas11

de um modo geral, como temos, particularmentenos países do Terceiro Mundo, e mais particular-mente ainda na América Latina, a idéia de que odesenvolvimentismo foi uma coisa errada, burra.O ex-presidente do Banco Central Gustavo Fran-co dizia isso com todas as letras. Dizia que era pre-ciso apagar a Era Vargas – considerando a EraVargas como o rótulo de um período que começacom Getulio Vargas em 1930 e vai até os gover-nos militares, período em que ao Estado era atri-buído um papel substantivo na evolução econô-mica. Gustavo Franco definia o desenvolvimentis-mo e a Era Vargas como produtos da burrice. Esseera exatamente o termo que ele usava. Depois decinqüenta anos de “burrice” quanto à política eco-nômica, os iluminados iam fazer a política correta.Ele quebrou o País, que perdeu 45 bilhões de dó-lares por causa da sua política, mas quem é burrosão os outros... Criou-se um ambiente onde, emdeterminados circuitos de economistas, por exem-plo, falar em política desenvolvimentista é falarpalavrão, a pessoa é imediatamente marginaliza-da, considerada incompetente, atrasada, burra eoutras coisas mais. Logicamente, isso tudo acabainfluenciando as possibilidades concretas dessetipo de idéia voltar a ter espaço.

IHU On-Line – A opção ortodoxa tambémestá impedindo o governo de fortalecer o

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10 IHU On-Line entrevistou o sociólogo Francisco de Oliveira, na 123ª edição, de 16 de novembro de 2004, sobre o impacto daseleições de outubro no cenário político nacional. Esse foi o tema de um artigo de Chico de Oliveira, intitulado “Quem derrotouMarta? O governo Lula”, que publicamos na edição n.º 122 do IHU On-Line, de 8 de novembro de 2004. O sociólogoFrancisco de Oliveira, 70, é professor aposentado da USP e fundador do PT, com o qual rompeu em 2003. Ele é autor dofamoso livro O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. Sobre a obra, os leitores podem conferir uma entrevista comFrancisco de Oliveira na IHU On-Line n.º 77, de 29 de setembro de 2003, e outra concedida à IHU On-Line na edição n.º80, de 20 de outubro de 2003, por ocasião de sua vinda à Unisinos, no dia 17 de outubro de 2003, em que participou do Ciclode Estudos sobre o Brasil, abordando o tema Perspectivas do Brasil com o novo governo (Nota da IHU On-Line)

11 John Maynard Keynes (1883-1946), economista inglês. Suas idéias propunham a intervenção estatal na economia com opropósito de obter o pleno emprego. (Nota da IHU On-Line)

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Estado em algumas áreas ou algo está sen-do feito nesse sentido?Leda Paulani – Precisamos distinguir duas coisas.Por um lado, é preciso desmistificar a idéia correnteaté no discurso da esquerda de que hoje o Estado éfraco, não tem capacidade, não tem condições, seenfraqueceu e se reduziu. Não é verdade. O quehouve é que o Estado mudou de cara. No caso bra-sileiro, como se pode dizer que o Estado enfraque-ceu diante do aumento cavalar da carga tributária?Isso é contraditório. O Estado brasileiro, diferente-mente do Estado argentino, por exemplo, aindadetém instrumentos poderosos. Um deles é o pró-prio BNDES. Há algumas estatais poderosas comoa Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa EconômicaFederal. Alguma coisa se salvou do vendaval priva-tizante. São instrumentos poderosos, mobilizamuma parcela da renda nacional bastante substanti-va. Fora isso, temos o sistema de Previdência que,com todos os ataques que sofreu ainda é o respon-sável pelo programa social mais abrangente, achoque um dos maiores do mundo, que é, por exem-plo, a previdência dos trabalhadores rurais. O Esta-do brasileiro é muito forte, muito estruturado. Oque acontece é que se pode fazer uso desse Estadode um jeito ou de outro. Dizer que o governo estásem instrumentos para fazer uma política mais ade-quada ao desenvolvimento do País é algo que nãose pode aceitar. Como a política econômica é de-terminante e todas as demais ações de política, emqualquer esfera, acabam se subordinando às deci-sões da área econômica, então se diz que o Estadoestá falido. Mas estruturalmente o Estado teria to-das as condições de fazer um trabalho melhor.Como o Lessa, por exemplo, tentou fazer noBNDES, recuperando a capacidade do banco deser de fato um banco de desenvolvimento, finalida-de para a qual ele foi criado.

IHU On-Line – Para sairmos dessa situação,a senhora apostaria mais nos partidos polí-ticos ou nos movimentos sociais?Leda Paulani – Apostaria mais nos movimentossociais. Eles estão constrangidos, como vimos. Masa forma “partido”, particularmente com este desdo-

bramento da eleição de Lula, ficou muito fragilizada.Votou-se maciçamente em Lula e no PT, na espe-rança de que se mudasse alguma coisa de modosubstantivo e não mudou coisa nenhuma. Então aprópria idéia da política, essa que deriva da repre-sentação democrática por meio do parlamento, dospartidos, ficou muito fragilizada. Para a grande mai-oria das pessoas ficou parecendo que não há dife-renças, pode-se votar em qualquer partido. Eu estouapoiando a criação do PSOL12 mas acho que a for-ma “partido” e a própria idéia da democracia estáfragilizada. Podemos manter uma democracia for-mal sem que isso represente mudança. A história daascensão dos partidos de esquerda mostra que o re-sultado é a continuidade. Nesse sentido, apostomais nos movimentos sociais.

IHU On-Line – A senhora gostaria de acres-centar outros comentários?Leda Paulani – Temos um fato simbólico re-cém-ocorrido que foi a morte do professor CelsoFurtado. De uma certa forma, ele morreu juntocom o enterro das idéias desenvolvimentistas quetanto defendeu ao longo da sua vida. Celso Furta-do foi uma espécie de símbolo do desenvolvimen-tismo. Não só teoricamente, porque construiu oconceito de subdesenvolvimento, mas tambémporque ele tinha muito claro quais eram as provi-dências que o Estado brasileiro deveria tomar paratirar o País do subdesenvolvimento. Elas nuncapassaram apenas pelo desenvolvimento econômi-co strictu sensu, pela industrialização, por exemplo.Ele acrescentava a isso o planejamento, a partici-pação ativa do Estado como organizador da eco-nomia, a absoluta necessidade de redução das dis-paridades de renda e das disparidades regionais. Aisso também acrescentava a necessidade do forta-lecimento da sociedade civil e da democracia.Nada disso foi feito, os rumos do mundo depoisdos anos 1970 foram em direção contrária. E oBrasil é uma boa expressão desse movimento con-trário ao que ele pensava. Essas idéias foram sim-bolicamente enterradas, com estes dois eventos: ademissão do Lessa na quinta-feira [18-11-2004] ea morte de Celso Furtado no sábado [20-11-2004].

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12 Partido Socialismo e Liberdade, que está em processo de fundação.

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O governo entregou ao setor privado o desenvolvimento nacional

Entrevista com Gentil Corazza

Gentil Corazza não está muito surpreso comos rumos do governo. Lamenta, todavia, que o de-senvolvimento nacional tenha sido entregue ao se-tor privado, na medida em que as políticas desen-volvimentistas estejam sendo postas de lado. Dou-tor em Economia e professor da UFRGS, ele lembraque mesmo antes da vitória eleitoral os então futu-ros governantes já acenavam com a adoção de umapolítica ortodoxa. Daí porque não considera queestejamos vivendo uma fase de transição. “O go-verno nunca deixou dúvidas de que o rumo eraesse”, afirma, acrescentando que nunca foi emitidoqualquer sinal de adoção de políticas alternativas.Corazza é professor na Universidade Federal doRio Grande do Sul13. Ele foi entrevistado pela IHU

On-Line, por telefone, em 29 de novembro de2004. Graduado e mestre em Economia pelaUFRGS, sua dissertação de mestrado intitula-se Teo-ria Econômica e Estado. O professor é tambémdoutor em Economia, pela Unicamp, e sua teseleva o título A Interdependência dos Bancos Cen-trais entre o Governo e os Bancos Privados. Atual-mente, Gentil Corazza desenvolve o projeto depesquisa Relações Financeiras Externas da Econo-mia Brasileira. O professor é autor de Teoria Eco-

nômica e Estado – de Quesnay a Keynes. Por-to Alegre: FEE, 1986 e A Junta Comercial no

contexto da economia do Rio Grande do Sul

(com Pedro Cezar Dutra Fonseca). Porto Alegre:Editora da UFRGS, 2003. Entre outras, também or-ganizou a obra Métodos da ciência Econômi-

ca. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

IHU On-Line – Como o senhor vê a situa-ção atual do País, onde aparentemente háum embate entre desenvolvimentistas emonetaristas?Gentil Corazza – Eu vejo isso com muita preo-cupação. A saída do professor Carlos Lessa doBanco Nacional de Desenvolvimento (BNDES)significa uma definição importante nos rumos dapolítica macroeconômica e da política de desen-volvimento do País. Parece-me que houve umadefinição de governo, na medida em que foi afas-tada uma pessoa como o Carlos Lessa, com todaa sua trajetória e a sua visão, e com tudo o que elerepresentava no governo Lula. Parece que, noBNDES, ainda se concretizava um resto desse espí-rito, desse projeto de desenvolvimento que temtodo um passado, uma visão construída com basenas idéias da Cepal14, e que tem toda uma históriaque deixou um resultado importante nos anos1950 a 1980. No governo, concretiza-se, comisso, uma definição, uma dominância total do quejá existia.

IHU On-Line – Mas essa dominância eraapresentada como fase de transição, não?Gentil Corazza – Ela nunca foi apresentadacomo fase de transição. Na realidade, o governonunca deixou claro isso. Apareceu como umagrande surpresa, mas o governo nunca deixou dú-vidas de que o rumo era esse. Causou perplexida-de no início, porque se esperava que o governoconseguisse materializar seu projeto, que veio sen-

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13 Gentil Corazza participou do 1º Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, no dia 14 de abril de 2005,promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos, em que apresentou o tema Analisando o pensamento econômico de Malthus eRicardo. (Nota da IHU On-Line).

14 Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Órgão das Nações Unidas (Nota da IHU On-Line).

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do construído junto com o Partido dos Trabalha-dores e com o que ele representava. A definiçãoda política econômica do governo Lula causouperplexidade por todos os lados. Da parte daque-les que o elegeram foi uma decepção; da parte da-queles que eram contrários, uma surpresa. Elenunca apresentou essa política como uma transi-ção. Sempre deixou claro que essa era a única al-ternativa e não tentou uma alternativa diferente,nem sequer sinalizou alguma possibilidade de mu-dança. Apenas abriu algum espaço, em algumasáreas, para a discussão do projeto de desenvolvi-mento nacional. Parece-me que essa porta, esseespaço se fechou com a saída do professor Lessado BNDES.

IHU On-Line – Definiu-se, portanto, o papeldo governo para a área do desenvolvimentoeconômico e social...Gentil Corazza – Isso já estava bastante claro nadefinição da política macroeconômica, estrutura-da com base em alguns dogmas, que dizem caberao governo estabilizar a economia, que a estabili-dade é uma condição necessária e também sufi-ciente para o desenvolvimento, que a aberturacomercial e financeira é sempre benéfica, que aoEstado não compete mais atuar nessa área. Essaposição foi construída nesses pressupostos e elanão deixava dúvidas quanto a isso.

IHU On-Line – Essa visão está, necessaria-mente, ligada a uma idéia diferenciada dopapel do Estado?Gentil Corazza – Ela está claramente definidasob uma filosofia. Ela pode dizer que ao governonão cabe mais promover o desenvolvimento, queisso é um problema do mercado. Ao adotar-seuma política dessas está implícita toda uma con-cepção de desenvolvimento econômico. Ao go-verno cabe garantir a estabilidade monetária. Odesenvolvimento passa a ser um problema domercado. Os investimentos são os privados. Aogoverno não compete mais esse papel. Isso já es-tava claro. Apenas se abriu um espaço, e haviauma certa contradição. A saída do professor Lessanão deixou mais dúvidas quanto a isso. O gover-no tem um projeto de desenvolvimento, que não

compete mais ao Estado definir. É o setor privadoque vai promover o desenvolvimento nacional. Ogoverno se restringiu aos papéis mais clássicos, defazer a política monetária e fiscal. Isso significauma mudança, uma visão monetarista do proces-so. Entre a discussão do desenvolvimento e a esta-bilidade, venceu a estabilidade. Aqueles que pen-savam e ainda pensam diferente, na possibilida-de, ainda, de lutar, de construir um projeto de lon-go prazo, que acreditam ainda na necessidade deo governo ser um ator estratégico nesse processo,eles não estão mais no poder, no governo, perde-ram a importância.

IHU On-Line – Como se chegou a esse está-gio, uma vez que, durante anos, intelectuais,pesquisadores e militantes da área da eco-nomia elaboraram um projeto de desenvol-vimento diferente do adotado?Gentil Corazza – Na forma como o projeto veiose desenvolvendo nos anos 1950 a 1980, ele en-trou em crise, porque o Estado se endividou mui-to, enfraqueceu-se como ator estratégico. E oEstado enfraquecido, endividado, perde a força ea capacidade de articulação e tem que se voltarum pouco para o saneamento fiscal. Essa mudan-ça não é só um problema de lutas de idéias. Existetoda uma situação, uma conjuntura de crise doEstado, principalmente pelo endividamento. A dí-vida interna e o compromisso de pagá-la se tornauma prioridade da política econômica. A dívidaexterna e a necessidade de pagá-la faz a economiado País ser direcionada para essa finalidade. So-bre isso, constrói-se toda uma ideologia, uma filo-sofia. São idéias internacionais que vieram se con-solidando, e os organismos internacionais quemonitoram a economia, como o FMI e o BancoMundial, também, de certa forma, condicionamsua ajuda à adoção dessa política de saneamento.É isso que acontece. Talvez ainda haja espaçopara adotar um plano de desenvolvimento dife-rente. O baixo crescimento econômico, e as difi-culdades de retomar-se um crescimento estãomostrando isso. Os investimentos privados são in-suficientes para manter um crescimento dos em-pregos. Isso está ficando claro. O governo precisaacreditar que ele pode se dedicar a promover o

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desenvolvimento. Em primeiro lugar, precisa teridéias claras e convicções quanto a isso. Precisaassumir que, apesar da crise, o Estado ainda é umator importante, cabendo ao governo buscar re-cursos, definir políticas, prioridades. No entanto,no momento em que o governo, que veio comuma outra orientação, uma outra finalidade, umaoutra ideologia, abandona tudo isso, não acreditamais, quando fica evidente que ele não tem essasidéias nem as convicções políticas necessárias, oque está associado a uma dificuldade conjunturalde endividamento, de crise do Estado, é nessemomento que as coisas tomaram esse rumo queestamos vendo. Não foram só as idéias que muda-ram. A realidade mudou significativamente.

IHU On-Line – Pode-se dizer que o modelodesenvolvimentista padece de uma indefi-nição?Gentil Corazza – Ele se esgotou. As condiçõesinternas e externas que impulsionaram e deramforça àquele modelo se esgotaram. Não podemosmais voltar a ter aquelas condições. Isso não signi-fica que nada possa ser feito. Uma coisa é ver queas condições mudaram, que mudou o papel doEstado, que ele está em crise, mas isso não signifi-ca que não podemos fazer mais nada. Precisa serdebatido qual é esse papel. O Estado não pode fi-car reduzido a fazer política macroeconômica.Tem que procurar um saneamento fiscal, é evi-dente que sim, mas isso vem sendo feito, de certaforma, porque há um esforço fiscal grande no sen-tido de arrecadar mais. O governo aumentou suaarrecadação de forma espantosa nos últimos sete,oito anos. A carga tributária em 1994, estava em27%; hoje está em 38%. E há uma contenção dedespesas, de investimentos públicos. Há um suca-teamento generalizado das instituições, universi-dades, escolas... Verbas para a educação e a saú-de estão sendo contidas para gerar superávit. Estáse formando um superávit extraordinário, que,em parte, vem reduzindo o endividamento, masos juros que são pagos para conter a inflação vêmcorroendo, absorvendo esses recursos que são ge-rados pela política fiscal. Entretanto, há um espa-ço para o governo flexibilizar a política monetáriae a fiscal e criar as condições de devolver ao Esta-

do um papel mais importante nos investimentos,na infra-estrutura. Mal o País começa a engatinharno crescimento e já vem o pé no freio, que estámuito acentuado agora, porque nós não temos in-vestimentos. Qualquer pequeno crescimento de3% ou 4% já faz pressão sobre os recursos. Esse éo impasse, a camisa de força em que o governoestá metido. Para ele mudar a política macroeco-nômica e retomar o crescimento do País, ele temque investir.

IHU On-Line – Esse crescimento econômicoparalelo ao controle da moeda é uma rein-venção de um projeto desenvolvimentista...Gentil Corazza – Em escala menor, mais mo-desto. Aí tem um problema de concepção. A con-cepção monetarista acha que é possível estabilizara moeda de qualquer forma, por essas medidas.Na realidade, o que vemos é que estamos em umaluta de mais de dez anos de estabilização, combaixo crescimento econômico e uma estabilizaçãoque ainda não está garantida, não está sustenta-da, porque não se criaram as condições de umaestabilidade verdadeira. Ela só vem com o cresci-mento e as duas coisas têm que andar juntas. Sóestabilidade ou só o crescimento representa umfalso dilema. Naturalmente, os desenvolvimentis-tas também querem a estabilidade.

IHU On-Line – O senhor aponta no mundo,nas economias assemelhadas ao Brasil, al-guma iniciativa ou modelo que possa serestudado?Gentil Corazza – O que serve de modelo, consi-derando as experiências todas, mas ainda sinalizaa possibilidade de que algo diferente pode ser fei-to, são os países asiáticos, como a Coréia, a Malá-sia, Singapura, que passaram por uma crise, masnão abandonaram o antigo projeto, trataram deredefini-lo. Para eles, o Estado tem um papel im-portante. Eles estão nos dizendo que é possível fa-zer algo diferente e têm tido sucesso nisso. Eles es-tão crescendo, reduziram a fragilidade externa.Há muita coisa a ser discutida. A questão toda éque, quando as idéias cristalizam, elas viram dog-ma, doutrina e, se tornam hegemônicas, domi-nantes, tirando o espaço da discussão, e o gover-

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no não dá espaço para discussão. Então as portasse fecham, e ficamos pensando que só temos es-sas possibilidades, o que não é verdade.

IHU On-Line – O espaço para discussãohoje é menor do que há alguns anos?Gentil Corazza – O espaço para a discussão émenor. Não há dúvida nenhuma. O governo nãoaceita discutir a política econômica dele, mesmodentro do Partido dos Trabalhadores, em novem-bro de 2004, em que as posições críticas, mesmodos dirigentes do PT, não tiveram voz. O espaçopara o debate é restrito. A mídia também tem criti-cado aqueles que não estão de acordo. Cria-seuma mentalidade, uma ideologia, uma correntede opinião nacional que domina. Nas universida-des, há discussões, mas o espaço público para adiscussão é muito mais restrito do que já foi, semdúvida nenhuma.

IHU On-Line – Hoje as entidades e institui-ções são menos ouvidas, por que o governonão as escuta e por que a mídia tambémnão dá espaço para essas manifestações?Gentil Corazza – Forma-se uma espécie de una-nimidade nacional de que não há outro caminho.Mede-se o acerto e o erro pelos resultados. Não dápara negar que há algum resultado, mas o verda-deiro resultado da política econômica do governoé o crescimento econômico. Apesar de estar anun-ciado que vamos crescer 4,5%, é um crescimentoabaixo do mundial. E para o ano que vem já estáprojetado algo bem menor, porque não há nadaque o sustente. O que torna o crescimento econô-mico mais sustentável são os investimentos. E ataxa de investimentos está em 18, 19%. O gover-no reduziu as suas expectativas de crescimento.Ele acha muito bom crescer 3%. Esse é um cresci-

mento muito pequeno para dar emprego aos no-vos trabalhadores e para reduzir a massa de de-sempregados. Lula está se conformando com umasituação que não é nada boa. Nós precisamoscrescer 5% em média para poder dar emprego. Senão dermos emprego, temos que estar com umprograma de assistência social, fazendo caridadepara fazer a população sobreviver. Tem um customuito grande não crescer. Claro que essas condi-ções não se criam de uma hora para outra, mas jáestamos nessa política desde 1994. O rumo é esse,o governo Lula não só deu continuidade a esserumo, mas tornou-o mais ortodoxo ainda, por in-crível que pareça.

IHU On-Line – Qual é sua expectativa comrelação ao futuro do governo?Gentil Corazza – Eu não estou otimista. Falta aogoverno uma visão estratégica, de pensar a longoprazo, abrir os horizontes. Ele está preso à conjun-tura, fez uma opção de conquistar credibilidadedo mercado. Na minha visão de economista, omercado sozinho não nos leva a lugar nenhum, éinstável, precisa ser regulado. O Estado é impres-cindível, e não vejo nada dentro do governo quesinalize nessa direção. Alguma coisa melhorou,mas as coisas básicas ainda não foram tocadas. Épossível criar alguma estratégia de médio e de lon-go prazo. Temos que pensar nisso, senão os gar-galos não se resolvem. Ou então vai acontecer oque está acontecendo hoje, o governo botou o péno freio e tenta conter o crescimento econômico,por incrível que pareça, pois ele está preocupadocom a inflação. Se não se constroem as bases dodesenvolvimento, do crescimento econômico,qualquer problema na conjuntura internacionalgera pressão sobre a infra-estrutura. Aí o governotem que pisar no freio. Então, a perspectiva não ésustentável.

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Uma economia para os próximos anos

Entrevista com Márcio Schweig

Márcio Schweig é Mestre em Economia pelaUniversidade Federal do Paraná, UFP e professordo Curso de Economia na Unisinos. Ele conversoucom IHU On-Line, em 30 de setembro de 2002,sobre a proposta econômica de cada candidato.

IHU On-Line – Qual seria a medida econô-mica mais urgente que o próximo presiden-te deveria realizar?Márcio Schweig – As taxas de juros são o princi-pal instrumento para estimular o crescimento daeconomia. Se elas baixam, aumenta a capacidadede compra das pessoas, as empresas ampliamseus investimentos. Nos últimos quatro anos, oBrasil é campeão em taxas de juros. Todos os can-didatos dizem que baixarão as taxas de juros, masé óbvio que isso vai levar seu tempo. A dívida dosetor público cresceu de 30 a 60% desde o iníciodo plano real. Desde abril, houve um significativocrescimento nessa dívida pela instabilidade finan-ceira. Temos um sistema dependente que precisafazer qualquer coisa para atrair dólares. Entãoessa vulnerabilidade e a dependência do mercadoexterno devem ser diminuídas. Para isso deve-seorganizar bem a atividade produtiva.

IHU On-Line – Quais as diferentes alternati-vas dadas pelos candidatos para diminuir es-sas vulnerabilidades do sistema financeiro?Márcio Schweig – Todos dizem que ampliarãoas exportações, e isso é absolutamente necessário.É uma forma de diminuir a vulnerabilidade. Emrelação a isso, Ciro Gomes se contradiz. Ele disseque vai substituir a importação, produzindo aquiaqueles produtos que são importados, mas issodepende de uma forte política de intervenção do

Estado na economia. O assessor econômico deCiro é dos mais liberais e defende a não-participa-ção do Estado. Como se conciliam essas duas ati-tudes? Serra diz que ampliará as exportações e asimportações ao mesmo tempo. Ele segue umacorrente econômica, com a qual eu não comparti-lho, a exportação e a importação diminuem ograu de vulnerabilidade financeira. Essa postura édefendida pelos liberais com a perspectiva de umaintegração do mercado mundial. Eu acho que da-ria mais estabilidade fortalecer a exportação e li-mitar a aceleração da importação.

IHU On-Line – Como aumentar a produçãocom as altas cargas tributárias existentes?Márcio Schweig – É necessária a reforma tribu-tária. Em relação a isso, ou seja, a cobrar o impos-to no consumo, FHC disse que faria e não fez, por-que teria que contrariar certos interesses. Porexemplo, se os produtos da cesta básica não pa-gassem tributos, talvez a população toda tivesseacesso à alimentação, e o imposto seria cobradode produtos mais supérfluos. É uma decisão políti-ca. Nesse sentido, o Ciro se contradiz. Eu achoque não vai fazer. Garotinho nem sabe muito bemo que é a reforma tributária. Serra pode fazer, sim,uma pequena reforma. Pode ser o Lula quem vailevá-la mais adiante, porque o fato de cobrar im-postos diferenciados, conforme o produto, é dointeresse privado ao mesmo tempo que dos traba-lhadores. As altas cargas tributárias que incidemna produção devem ser passadas, então, para oconsumo. Os países modernos têm o Imposto aoValor Agregado (IVA), que é um imposto no con-sumo. Com isso acabaria a guerra fiscal. FHC nãofez isso, porque os governadores do Nordeste

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queriam levar as empresas para lá e, se o impostonão é cobrado na produção, não serviria paraeles. Ciro Gomes, como governador do Ceará,usou a guerra fiscal e levou várias empresas paralá. O PT sempre bateu muito contra a guerra fiscal.Se Lula continuar coerente com o que hoje estádizendo, ele fará urgentemente uma reformatributária.

IHU On-Line – Como avalia as propostaseconômicas do candidato Garotinho?Márcio Schweig – O candidato Garotinho che-ga a ser inconseqüente na sua fala. Aumentar osalário mínimo eu acho ótimo, mas ninguém podefazer isso, se não for dentro de um processo.Como financiaria a previdência, se aumentasse osalário agora? É uma irresponsabilidade. Brincaum pouco com os sentimentos das pessoas. É bemum discurso para atingir as massas populares.

IHU On-Line – Por que o senhor insiste na im-previsibilidade do candidato Ciro Gomes?Márcio Schweig – Em um momento, Ciro disseque mandaria as contas para fora do País, e omercado veio para cima dele. No dia seguinte,mudou. Se ele daria calote na dívida ou se blo-quearia a poupança, não se sabe.

IHU On-Line – Todos os candidatos dizemque buscarão um crescimento econômico.Como o senhor analisa as estratégias comque cada um fará crescer a economia?Márcio Schweig – Na década de 1990, o Brasilassumiu o chamado Stop and go. Trata-se de um

crescimento oscilatório, segundo o crescimentoou não da economia mundial. Isso é o que faz tãovulnerável a nossa economia. A China cresce 10%cada ano, nos últimos 30 anos, por isso a Ásia é oparaíso dos investidores. E a nossa instabilidadeespanta o capital produtivo. Lula disse que dimi-nuirá a instabilidade, acabando com o Stop andgo, entre outras coisas fortalecendo as instituições,por isso está conversando com todos os segmen-tos da sociedade. Serra vai manter a opção pelosistema financeiro, já que ele disse, por exemplo,que vai manter Armínio Fraga no Banco Central,portanto uma taxa de juros elevada e uma vulne-rabilidade elevada. Claro, se a economia mundialmelhorar, a nossa vai crescer, mas como saber.Garotinho tem pouca responsabilidade nesse sen-tido, e Benedita assumiu “uma bomba” ao assu-mir o governo do Rio.

IHU On-Line – As conseqüências das deci-sões econômicas do próximo governo leva-rão muito tempo para serem percebidas, da-das as circunstâncias em que o novo presi-dente vai encontrar o País?Márcio Schweig – Para mim a diferença está naconcepção política, que é a marca da implementa-ção econômica. Do ponto de vista da política eco-nômica, há uma coisa que devemos ter clara: aeconomia é um processo histórico e como tal estásujeita a algumas condições. Com isso quero dizerque nenhum dos candidatos poderá fazer umamudança a curto prazo, mas, no curto prazo, se-rão tomadas as decisões que marcarão o médio eo longo prazo.

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“A opção do governo foi acomodada ou até medrosa,para não dizer covarde”

Entrevista com Ivo Poletto

Ivo Poletto, filósofo, teólogo, cientista social eeducador popular, não mede as palavras ao falarsobre a postura do governo Lula com relação aopagamento da dívida externa brasileira. Para essegaúcho de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, umaauditoria na dívida liberaria mais recursos paraprojetos sociais.

É justamente sobre sua participação no go-verno que ele fala no livro Brasil: oportunida-

des perdidas – Meus dois anos de governo

Lula (Rio de Janeiro: Garamond). Poletto, que foio primeiro secretário-executivo da Comisão Pas-toral da Terra e integra e assessora diversas institui-ções, entre elas, a Cáritas Brasileira, fala do livro eda sua experiência, ligando tudo isso à crise políti-ca atual. Na entrevista concedida à IHU On-Line,em 26 de setembro de 2005, Poletto fala das opor-tunidades perdidas por Lula, nos dois primeirosanos de governo.

IHU On-Line – Que oportunidades foramperdidas nos seus dois anos de trabalho nogoverno Lula?Ivo Poletto – Em primeiro lugar, a oportunidadede fazer um amplo movimento de educação po-pular, porque o programa Fome Zero em seus vá-rios projetos tem como um de seus objetivos atin-gir 11 milhões de famílias que não têm ainda ga-rantidas alimentação e nutrição. Podemos fazerisso por meio de um mecanismo que agora se cha-ma Bolsa Família e chegar com um apoio financei-ro. Poderia também fazer, ao mesmo tempo, umtrabalho de abordagem, de visitas, de diálogo, delevantamento de expectativas e organizar com es-sas famílias um trabalho de educação popular.

Por que um governo que foi eleito com estaorientação não assume uma perspectiva de edu-cação popular ligada ao Fome Zero? Há ainda ofato de o governo confirmar uma política econô-mica que é o contrário disso. É uma política depoucos para cada vez menos. Manter essa contra-dição, fez eu me sentir com falta de condiçõespara continuar apostando em um trabalho no go-verno e voltar a atuar na sociedade para poderexigir mudanças.

IHU On-Line – Seu livro tem uma posiçãocrítica ao governo Lula?Ivo Poletto – O livro testemunha esses aconteci-mentos e coloca-os em debate por meio de umaseqüência de crônicas para ampliar a possibilida-de de leitura. Estou interessado na democratiza-ção desse debate. É importante deixar claro que otexto é crítico, mas não na maneira como nóscompreendemos a crítica, não é apenas negativo,significa compreender nas contradições, nos even-tos da história, o que está acontecendo. Compararo que se faz com o que se poderia fazer. Minha po-sição crítica é radicalmente contrária à posição crí-tica dos partidos conservadores que querem me-nos investimentos no social e mais vantagens eco-nômicas. Quero uma economia que favoreça atodos.

IHU On-Line – Era possível perceber que oPT ia mal?Ivo Poletto – Nos textos, isso aparece. Eu mesurpreendi com a permanência de umas experiên-cias das esquerdas, por exemplo, a facilidade comque os grupos passam da diferença de ponto de

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vista para se combaterem uns aos outros, para tor-nar os outros quase seus inimigos. Isso se perce-bia, e percebe-se, no governo. As áreas estão lo-teadas para os diferentes grupos. Há dificuldadespara se trabalhar com essa dimensão de universa-lidades. Agora, honestamente, eu não conseguiaperceber que as dificuldades do PT tinham essecaráter que apareceu. Havia quase um excesso decuidados para evitar que houvesse o mau uso dosrecursos públicos. Realmente o que apareceu nãoé tão estranho para quem acompanha um certoabandono de valores por parte da militância dopróprio PT.

IHU On-Line – Que tipo de conflito o senhorenfrentou?Ivo Poletto – A dificuldade de se conseguir dialo-gar na base da confiança, da consciência de quetemos uma missão comum. Olhamos a realidadee tentamos ver qual é a necessidade. Essa reflexãosempre foi difícil de ser feita, há uma visão fecha-da sobre o burocrático, sobre o possível. Temospoucos recursos, vamos fazer o mínimo possível.A segunda dificuldade entra aí: não houve possi-bilidade no governo de discutir a política econô-mica. O próprio Paul Singer, secretário da econo-mia solidária, diz nunca ter sido convidado a tro-car idéias sobre a política econômica do governofederal. Esse isolamento burocrático e ideológicodos ministérios da Fazenda, do Planejamento e doBanco Central é complicado. Não precisariamconsultar-nos, mas deveriam dialogar conosco. Adecisão do que fazer com recursos disponíveis émaior: trata-se de ver o que é essencial, se temospoucos recursos. Melhorar a vida das pessoas oumanter em dia o pagamento de dívidas? Essa dis-cussão foi inviabilizada e impedida pelo governo.

IHU On-Line – O senhor poderia citar nomes?Ivo Poletto – É difícil citar nomes, porque teriade entrar em detalhes. Prefiro não citar nomes.No livro, mencionei Frei Betto, do ministro doDesenvolvimento Social e Combate à Fome,Patrus Ananias, os grandes responsáveis pelosprogramas.

Auditoria da dívida é proposta porex-colaborador do governo Lula

IHU On-Line – Qual é a posição do Presi-dente Lula em relação aos programas sociaisdo governo?Ivo Poletto – O que temos percebido é que eletem respaldado essa política econômica, assumiuo discurso e a justificativa do grupo da área eco-nômica do governo. Por que fez isso? Não sei. Oque sei é que, com relação a alguns programas so-ciais, ele tem exigido maior eficácia dos ministros.Lula continua, na raiz, ligado à vontade de fazer omelhor possível no trabalho social, mas está es-trangulado, porque há uma briga pelos poucos re-cursos que sobram depois que se faz o orçamentode tudo que é necessário para o governo. Enquan-to Lula, ou qualquer outro presidente, não conse-guir se livrar do que foi construído historicamente,não vamos dar os passos que enfrentem os proble-mas da maioria da população brasileira.

IHU On-Line – O senhor não acha complica-do dizer: não vou pagar a dívida?Ivo Poletto – Ninguém diria: não vou mais pagara dívida. Isso não funcionaria. Agora, há procedi-mentos para encaminhar a auditoria pública dadívida. Isso é legal e reconhecido internacional-mente. É um estudo da dívida no processo de suaformação. Verificar os títulos da dívida, de ondevieram os recursos, quem os tomou, o compro-misso assumido e acompanhar o desdobramentodisso. Ver se tudo foi correto ou não. Se não hou-ve acréscimos ilegais. Até hoje, a única auditoriafeita foi no governo Getúlio Vargas. Na época,viu-se que não estava correto. Ninguém isolou oBrasil por causa disso. A dívida pode também irpara o judiciário. Na Argentina, a dívida externafoi julgada e condenada como um crime contra apopulação argentina porque foram os militaresque tomaram os empréstimos, que não eram osrepresentantes legítimos do país. Quem emprestaa militares sabe que a dívida pode não ser reco-nhecida depois. Poderíamos ir além disso: estabe-lecer um amplo debate sobre a utilização dos re-

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cursos da dívida. Poderíamos fazer um exercícioda Auditoria Cidadã da Dívida, coordenado peloscompanheiros da Unafisco, sindicato dos audito-res fiscais. Eles fizeram um recálculo da dívida apartir de 1978, aplicando 6% por ano de juros. Éuma média que fica acima do que os países ricospagaram entre eles de dívida. Em 1989, o ano emque deveria ter sido feita a auditoria marcada pelaConstituição, a dívida já seria zero. No final doano, teria mais de US$ 3 bilhões de crédito. Se-gundo o cálculo, até o final de 2004, teria um cré-dito US$161 bilhões. Esse recálculo, que já estáfeito, pode vir a servir de base para um processointernacional de julgamento da própria dívida ex-terna brasileira.

IHU On-Line – E por que essa auditoria nãosaiu ainda do papel?Ivo Poletto – Aí vem a questão fundamental: elei-to por 53 milhões de brasileiros, Lula teria três al-ternativas para governar. Uma seria fazer aliançaspor cima. Ele construiu alianças e deu no que deu.A outra seria governar com base em um projeto depaís, definindo as prioridades e indo para o Con-gresso quando fosse necessário para propor publi-camente mudanças na legislação e para realizar oque fosse essencial para o País. A terceira alterna-tiva poderia ser forçar a regulamentação constitu-cional do plebiscito e consultar a população sobreassuntos que dizem respeito a ela. A opção do go-

verno foi acomodada ou até medrosa, para nãodizer covarde. Preferiu não alimentar o caminhode conflitos políticos. Achou que o caminho me-lhor seria a construção de uma maioria para go-vernar. Sabemos no que deu esse tipo de aposta.Por essas alianças, não poderia questionar a dívi-da, por não querer conflito internacional com oFMI e outros países.

IHU On-Line – Plínio de Arruda Sampaio fa-lou no debate A esquerda e a crise política

no Governo Lula que esse governo é piorque o de Fernando Henrique Cardoso. O se-nhor concorda com essa afirmação?Ivo Poletto – Tenho dito que, se compararmosos oitos anos de governo Fernando HenriqueCardoso com os dois anos e meio de Lula nasmesmas políticas, Lula é melhor que o FHC pra-ticamente em tudo. Mantido o mesmo padrão, émelhor na administração da economia, pois tocauma política de exportação eficiente, consegueabrir novos mercados, consegue diminuir umpouco a dívida em dólares. As políticas sociaistambém. A crítica não é comparar com FHC,mas recordar o motivo por que a população ele-geu Lula, e não o candidato de FHC. Elegeupara fazer um governo diferente, com mais par-ticipação do povo. Não foi eleito para ser admi-nistrador da dívida e da economia do jeito queera feito pelo FHC.

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“A política tornou-se irrelevante”

Entrevista com Francisco de Oliveira

Sem grandes esperanças ou expectativaspara 2006, o sociólogo Francisco de Oliveira nãomediu palavras na entrevista que concedeu à IHU

On-Line, por telefone, em 6 de abril de 2006: “oano se desenvolverá da forma como vem se de-senvolvendo há 12 anos: medíocre”. É com osmesmos adjetivos que ele define como imagina seras eleições deste ano: “vai ser uma campanha me-díocre e mentirosa”.

Francisco de Oliveira é sociólogo e coordenao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania daUSP. É também fundador do PT, com o qual rom-peu em 2003, e autor do livro O ornitorrinco.São Paulo: Boitempo, 2003. Sobre este livro, osleitores podem conferir uma entrevista com Fran-cisco de Oliveira na IHU On-Line n.º 77, de 29de setembro de 2003, e outra concedida à IHU

On-Line na edição n.º 80, de 20 de outubro de2003, por ocasião de sua vinda à Unisinos, no dia17 de outubro de 2003, em que participou do Ci-

clo de Estudos sobre o Brasil, abordando otema Perspectivas do Brasil com o novo governo.Dele também publicamos um artigo na 134ª edi-ção da IHU On-Line, de 28 de março de 2005,sobre os 25 anos do PT. O sociólogo Francisco deOliveira concedeu três entrevistas à IHU On-Line,a primeira na 123ª edição, de 16 de novembro de2004, sobre o impacto das eleições de outubro nocenário político nacional, a segunda na 155ª edi-ção, de 12 de setembro de 2005, sobre a situaçãopolítica do País e do governo Lula e a terceira na170ª edição, de 6 de março de 2006, sobre “A po-lítica tornou-se irrelevante”.

IHU On-Line – O que podemos esperar parao cenário político em 2006? O PT tentará semanter no posto e o PSDB recuperar o quefoi seu? E os outros partidos?

Francisco de Oliveira – A pergunta já definiuqual o eixo principal: PT contra PSDB. Os outrospartidos são linhas auxiliares. Eles não têm influên-cia em uma eleição majoritária para presidente.Apenas são importantes para somar tempo de TV,fazer palanques estaduais, mas não terão nenhumainfluência no resultado presidencial. São simplesacessórios. Não espero nada de bom nem de muitoelevado da disputa entre PT e PSDB. Vai ser uma re-petição dos últimos 12 anos. Os tucanos vão tentarrepetir os seus êxitos passados, e Lula vai repetir oque ele considera um êxito, que é o seu governo nãoter caído. Não vai haver nada extraordinário. Lulavai insistir com as chamadas medidas sociais, nãovai distribuir renda coisíssima nenhuma. Basta ver olucro dos bancos para descobrir o que está havendono Brasil: uma espantosa concentração de renda.Vai ser uma campanha medíocre e mentirosa.

IHU On-Line – O que poderá significar umaeventual vitória de Lula para o País?Francisco de Oliveira – Vai significar a continua-ção da mesmice. Lula tem muita chance de se ree-leger, mas não vai mudar uma vírgula no programaeconômico e vai continuar as suas políticas sociaisde remendo. Não há nada novo no horizonte. Dolado dos tucanos, se ganharem, eles também con-tinuarão. Estamos em um ciclo da economia e dasrelações internacionais que não têm nenhuma no-vidade, e os dois partidos principais não têm pro-grama para transformar o que aí está.

IHU On-Line – Como a crise política tão for-temente vivida em 2005 afetou a credibili-dade do PT e do sistema político dentro efora do País?Francisco de Oliveira – Afetou seriamente. Ospartidos perderam relevância e a capacidade de

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transformação. Sobrou, então, o velho personalis-mo na política brasileira. O que conta são as per-sonalidades, as lideranças. Ninguém vai à eleiçãopor causa de partido. Essa crise afetou seriamentea credibilidade do sistema político.

IHU On-Line – De que maneira o predomí-nio da economia sobre a política afetouconcretamente a democracia brasileira?O ministro Palocci é um símbolo dessainversão?Francisco de Oliveira – Há muito tempo a eco-nomia se sobrepõe à política. O PT apenas se ren-deu a esse domínio. A política econômica é a prin-cipal prioridade de todos os governos, que setransformaram em administradores da políticapara conter as reivindicações políticas. A econo-mia, portanto, pode navegar em águas soltas. Du-rante toda a crise do ano passado, o que os jornais,os âncoras de televisão e os líderes políticos diziamé que a crise não podia afetar a economia. Ora,quando a política não afeta a economia, porque énisso que consiste o poder dos cidadãos, então apolítica torna-se irrelevante.

IHU On-Line – Há muitas possibilidades deque a história se repita, ou seja, governosde esquerda que dão continuidade às pro-postas de seus ex-adversários? Como o se-nhor vê isso no Uruguai de Tabaré Vázquez?Como está vendo Evo Morales, na Bolívia,Michele Bachelet, no Chile?Francisco de Oliveira – Não sei. Não conheçobastante a situação da Bolívia e do Uruguai. NoUruguai, o governo de esquerda tem uma mar-gem de manobra muito estreita. O caso da Bolíviaé mais incógnito ainda para mim. Trata-se de umasociedade muito complexa, onde relações étnicastêm muita força. A Bolívia é hoje o paraíso petro-leiro da América Latina. Resta ver como eles secomportarão. Não podemos esquecer que a Pe-trobras é responsável por 15% do PIB boliviano.Essa é uma porcentagem que não existe em ne-nhum outro país do mundo. Veremos como a Pe-

trobras e o governo brasileiro se comportam dian-te da Bolívia. O Evo Morales tem um discursoprometedor, mas tenho poucos elementos parajulgar se ele será capaz de cumprir suas promes-sas ou se voltará ao redil dos governos confor-mistas da América Latina. Quanto ao Chile, aBachelet não apresenta mudança nenhuma. Elacontinua um programa que os socialistas chile-nos já estão seguindo desde que as eleições presi-denciais voltaram a ter vigência no Chile. Talveza única novidade é ter sido eleita uma mulherpara a presidência do Chile.

IHU On-Line – Ainda há diversos países queterão eleições na América Latina. O senhorse sente otimista em relação a possíveismudanças?Francisco de Oliveira – De maneira nenhuma.Não sinto nenhum otimismo, não vejo perspectivade mudanças importantes. Um país como a Co-lômbia, que é tão importante para a América Lati-na, está inteiramente mergulhado na sua própriacrise interna. Não há nenhuma razão para otimis-mo. O máximo de otimismo é acreditar que o go-verno Kirchner continuará acertando na políticaeconômica. E, é claro, o elemento de otimismoque existe e ainda persiste em relação à Venezue-la. No restante da América Latina, não há ne-nhum sinal de mudança.

IHU On-Line – O que vai acontecer, em2006, como seqüência das investigaçõesda CPI dos Correios e da CPI dos Bingosetc.? O senhor acha que o PT deve realmen-te “andar de cabeça erguida” como disse oPresidente?Francisco de Oliveira – De cabeça erguida,não, mas não vai acontecer nada. A CPI dos Cor-reios, que é a mais efetiva, vai terminar com umrelatório certamente importante, mas nada vai sedar de seqüência às investigações. A CPI dos Bin-gos, embora a oposição atue mais livremente, émais limitada, não conseguiu produzir nada comcredibilidade. A morte de Celso Daniel15 vai con-

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15 Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André, foi assassinado em janeiro de 2002. O irmão de Celso Daniel, segundo o noticiário,se transferiu para o exterior. (Nota da IHU On-Line)

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tinuar sendo abafada. Não vai acontecer nadaneste capítulo.

IHU On-Line – O que há de verdade e o quehá de mito por trás da imagem de cresci-mento econômico, PIB crescendo, exporta-ções também, inflação sob controle?Francisco de Oliveira – De verdade, há o se-guinte: a média do crescimento econômico brasi-leiro nos últimos 12 anos, aí encontraremos a ver-dade, não passa de 2 ou 2,3%. Como dizia um an-tigo âncora de televisão: “é uma vergonha”. Ocrescimento econômico é um mito, é pífio, um dosmais fracos da própria América Latina e, quandocomparado com outros países, é uma coisa de en-vergonhar qualquer um.

IHU On-Line – De que reforma política maisurgente o Brasil precisa?Francisco de Oliveira – Seria um pouco comoos argentinos fizeram: que se vayam todos. Seriauma limpeza geral do quadro político. Isso não vaiacontecer. Não há força social capaz de promoverisso. Não é acabar com a política, mas renovar osquadros políticos de uma forma radical. Do PTnão se pode esperar muita coisa. Elegeu-se umadireção que tem algumas mudanças, como o RaulPont, mas o cabeça do partido é o Ricardo Berzoini.O PT não vai apresentar nada de novo, nem ago-ra, nem num futuro próximo. O PSDB está imersonesta disputa irrelevante entre dois pré-candida-tos e também não promete nenhuma mudançapor aí. O Serra tornou-se um político convencio-nal. O Alckmin é o que se vê nos jornais, é aquelemesmo. Espera-se, apenas, que siglas como oP-Sol cresçam muito, mas não crescerão o sufici-ente para abalar o predomínio dos dois principaispartidos.

IHU On-Line – O que se deve esperar dos in-telectuais neste ano tão importante para oPaís?Francisco de Oliveira – Dos intelectuais de-ve-se esperar o que sempre foi tarefa deles: a críti-

ca implacável, sem concessões, que ajude a socie-dade. Esse é o papel dos intelectuais, o que elesnão têm feito muito bem e não fizeram bem em2005. É o que se espera deles, mais exatamenteporque os movimentos sociais estão muito debili-tados. Os intelectuais não podem falar por si só.Eles não são ventríloquos de si mesmos. Essa rela-ção entre os partidos que estão fracos, os movi-mentos sociais que estão fracos e os intelectuaisleva a que não se espere grandes movimentos in-telectuais. Agora mesmo, aqui em São Paulo,para tocar num ponto sensível dos intelectuais,acontece um caso que envolve a universidade ca-tólica de São Paulo, a PUC. Ela tem uma históriamuito forte, foi a primeira que elegeu seu reitorpela própria comunidade, em eleições diretas, foia que ofereceu sua sede para realização da famo-sa SBPC, de 1977, que foi uma espécie de basta àditadura16. Essa universidade está sendo dilapida-da e apropriada pelo Bradesco. Vai virar uma es-pécie de departamento universitário do maiorbanco brasileiro, e a reação dos intelectuais é mui-to pífia. A própria reação da imprensa, que deve-ria ser um veículo de reivindicações intelectuais, épífia, para não dizer nada pior. O que sobra são ospróprios professores, tentando se organizar pararesistir a uma demissão avassaladora, e a tentativade transformar a PUC de São Paulo numa univer-sidade dessas que batem recordes de faturamentoe recordes de, ao mesmo tempo, má qualidade.Isso mostra que os intelectuais não se mobilizarampara algumas tarefas importantes em 2006.

IHU On-Line – E o que esperar dos movi-mentos sociais?Francisco de Oliveira – Para falar sobre os mo-vimentos sociais, só podemos citar sempre o eter-no MST. É só o que podemos citar. Outros movi-mentos sociais não existem ou estão muito reco-lhidos. A eleição de Lula a esse respeito foi um de-sastre, porque ele desarmou a crítica, cooptoumovimentos sociais. Ele levou para o Ministériodo Trabalho o presidente da CUT. Isso não é à toa.Significa, ao mesmo tempo, que a CUT perdeu

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16 Em 1977, a PUC São Paulo abrigou a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que sempreacontecia nas instituições públicas, e que, na época, havia sido proibida pela ditadura militar. (Nota da IHU On-Line)

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força e que o governo fez a manobra clássica decooptar um importante movimento social. Alémdos tombos que o movimento sindical leva porconta da economia que não cresce há 12 anos, te-mos um presidente ex-operário, que fez a opera-ção de cooptação mais descarada da história bra-sileira pós-Vargas. Depois de Vargas, ninguém fezo que Lula está fazendo com o movimento sindi-cal. Não se deve esperar grande coisa. O ano sedesenvolverá da forma como vem se desenvol-vendo há 12 anos: medíocre.

IHU On-Line – Qual deve ser o papel de uni-versidades particulares que pretendem ser“públicas não-estatais”?Francisco de Oliveira – O papel da universida-de pública, estatal ou não-estatal, está dado noBrasil há muito tempo. Isso ainda não vai variarmuito. É lutar por um ensino de qualidade, pelaampliação daqueles que tenham acesso à univer-sidade pública e fazer dela o lugar de acolhimentodo pensamento crítico, ajudar a produzir um pen-samento crítico sobre o País. Não faz muita dife-rença se estatal ou não-estatal. Isso é irrelevanteaté certo ponto.

IHU On-Line – O que o senhor espera para2006?Francisco de Oliveira – Nada. Pelo que já dissenas minhas respostas, não espero nada. Só esperoestar vivo e comemorar o próximo Natal. Não te-nho nenhuma ilusão, nem esperança.

“Lula não tem idéia de seu papelde presidente”

IHU On-Line – O senhor disse a O Estado de

S. Paulo do dia 4 de setembro de 2005 queo Presidente Lula já vive uma situação deimpeachment. O senhor acha que a ameaçaé real?Francisco de Oliveira – Um impeachment per-feito tem de ser um ato jurídico no qual se destituio Presidente da República. Isso não será feito por-que estão todos interessados em não afetar a eco-nomia, e isso de fato afeta. Lula não governamais, só governa agora com o consentimento do

PSDB e do PFL. Isso acontece desde a reforma daPrevidência. Agora, é pior ainda: o Congressoestá inteiramente parado. As CPIs são corretas,devem ser feitas, mas estão prolongando as CPIsindefinidamente para ter uma arma, para estabe-lecer uma queda de braço com o governo. O go-verno cede em tudo, desde que não se toque naeconomia. É isso também que os tucanos querem.É como se fosse um impeachment político. Lula sógoverna administrativamente, assina decretos,leis, mas governar, que é escolher, decidir, darrumo às políticas públicas não faz mais.

IHU On-Line – E a reeleição de Lula? Nempensar?Francisco de Oliveira – Existe hoje uma peque-na chance de reeleição. O PT irá avaliar se Lulavai concorrer. Ele não tem problema de prazo,isso é só para a filiação de quem vai concorrer. Elevai esperar o resultado das CPIs para decidir. Euacho que ele não vai concorrer.

IHU On-Line – Quem iria concorrer no lugardele?Francisco de Oliveira – Não sei. É difícil saber.Parece que estão depositando todas as fichas noPalocci... Os outros estão queimados.

IHU On-Line – Inclusive o Tarso Genro?Francisco de Oliveira – O Tarso acabou de sequeimar. Com essa saída do Ministério da Educa-ção, aconteceu a velha história: em vez de ficarcom um pássaro na mão, preferiu dois voando.Ele quebrou a cara.

IHU On-Line – O que o senhor quis dizercom dois pássaros voando? Ele estaria inte-ressado em uma possível candidatura àPresidência?Francisco de Oliveira – Ele estava pensandoem uma possível candidatura à Presidência em2010. Essa era toda a estratégia de Tarso Genro.Não deu certo. Ele parece um político amador.Não percebeu que ali havia uma cama de gato,uma armadilha do grupo do ex-chefe da Casa Ci-vil. Esse grupo continua a dominar o partido.Aquilo é cama de prego.

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IHU On-Line – O senhor falou sobre o lulis-mo. O que seria isso?Francisco de Oliveira – O lulismo é uma per-versão do petismo. É esse carisma de Lula combi-nado com assistencialismo. Esse círculo que cercaLula que forma isso. É diferente do petismo, masestá dominando todo o petismo. A única reaçãopossível é que a militância faça a diferença parasalvar o partido.

IHU On-Line – Tem tudo a ver com a ques-tão do assistencialismo?Francisco de Oliveira – Claro. Não tem políti-ca, na verdade, tem assistência. Isso é seguradopelo carisma da liderança de Lula.

IHU On-Line – Quando o senhor percebeu olulismo?Francisco de Oliveira – Isso se tornou claromais recentemente por causa das políticas sociais,dos altos superávits primários junto com políticassociais. O fato de, na crise, Lula procurar afastar aimagem dele da do PT. Isso explicitou o que existiaapenas como um circuito interno, da gente maisapegada que fazia a corte de Lula. O povo tem essapaixão, virou um mito para muitas categorias so-ciais, principalmente para os mais pobres.

IHU On-Line – O senhor falou que, no Bra-sil, hoje, o que rege o país é a economia, enão a política. O que acontece em uma so-ciedade assim?Francisco de Oliveira – Acontece um processode concentração de renda sem que a política te-nha condições de corrigi-la. É uma lástima. E oPresidente está se gabando de que a crise políticanão afeta a economia. Ele devia lastimar isso. Lulanão percebe que está dizendo que ele é inútil, quea economia passa bem sem ele, que ele é supér-fluo. Ele deveria dizer que a economia precisadele, da direção do PT.

IHU On-Line – Ele não tem idéia de seu pa-pel como presidente?Francisco de Oliveira – Ele não tem idéia dopapel dele de presidente. A idéia é de garoto-pro-paganda da economia e de agente comercial. Ele

não sabe propriamente o que é política. Nãoaprendeu. Ele confunde política com negociação.Ele transferiu para a política a concepção que eletem do sindicato.

IHU On-Line – Governar um país é diferente?Francisco de Oliveira – Sim. No sindicato, só temdois lados interessados. Patronato e trabalhadores.A negociação é simples. Governar o País é outra coi-sa. Não pode ter essa concepção simplória.

IHU On-Line – Em que ponto Lula se perdeu?Francisco de Oliveira – Não acho que ele tenhase perdido. Ele nunca se achou. Ele fez uma car-reira que passou do sindicalismo para a políticasem nenhuma mediação. A única vez que ele tevechance de ver a política de outra forma foi quandose elegeu como deputado mais votado para aConstituinte e renunciou, no outro ano, para con-correr à reeleição para deputado, dizendo que éum lugar de 300 picaretas. Não se anotou nenhu-ma iniciativa marcante de Lula durante a Consti-tuinte. Aconselhou o partido a não assiná-la, oque foi um equívoco formidável. Tudo isso mostraque ele, de fato, tem horror à política. Não sabe oque é política e não sabe como fazê-la.

IHU On-Line – O problema do PT hoje foicausado pela força dos pragmáticos dentrodo partido ou havia já um ambiente propí-cio para essa corrupção que estamos vendoagora?Francisco de Oliveira – Isso é orientação dospragmáticos. A grande militância não tem nadadisso. Não é corrupta. Não é feita de santos e an-jos, mas isso é bom. Santos e anjos, Deus deixoupara o céu. Aos homens, cabe administrar essa mi-séria daqui mesmo. Os pragmáticos controlaram opartido, cortaram relações com as bases que nãointerferem mais nada e vão administrando de acor-do com suas teses, concepções e interesses.

IHU On-Line – O que será do PT nas próxi-mas eleições?Francisco de Oliveira – Vai perder substantiva-mente bancada, representação proporcional e ar-risca-se a perder a eleição para Presidente. Vai se

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reduzir a um partido comum, com mais base doque outros, pois tem uma larga base social. Se nãotiver, porém, um candidato forte à Presidência, arepresentação proporcional vai cair muito. Até pe-los que vão sair do PT e têm redutos eleitoraisimportantes.

IHU On-Line – O PT já perdeu o senadorCristovam Buarque. Quem mais vai pulardo barco que está afundando?Francisco de Oliveira – Obviamente, quemestá mais à esquerda. Eles vão esperar até a elei-ção direta do partido. Dependendo do resultado,se for uma confirmação da dominância do campomajoritário, tem, pelo menos, dez deputados quevão sair. Ivan Valente, deputado da Ação Socialis-ta por São Paulo, já está dizendo isso.

IHU On-Line – O senhor, como fundador doPT, está triste com o que está acontecendoao partido?Francisco de Oliveira – Tristeza não, não estoucom vontade de ficar triste por essas coisas. Vejoum risco para a democracia no País, um risco paraa esquerda. Não estou apostando em sua dissolu-ção, apesar de ter saído do partido. A diminuiçãoda qualidade do PT como um partido transforma-dor é visível e, até onde sei, irreversível.

IHU On-Line – Quem seriam hoje os candi-datos fortes à Presidência da República?Francisco de Oliveira – Não são candidatos for-tes, são fortes na ausência da candidatura do PT.Todos estão situados no campo dos tucanos. Vãose contrastar com o PT sem querer o impeachment.Vão guardar as armas, segredos de CPI e tal, para,a cada momento, tirar da gaveta e atirar na carado PT e do Lula. Isso é uma tática velha e conheci-da e que, provavelmente, vai dar certo.

IHU On-Line – Quem disse para o PT dartanta munição à oposição?Francisco de Oliveira – Pois é, o PSDB estavamantido em álcool canforado, e o PT e o Lula de-ram injeção de vitamina a ele. O PSDB voltou a vi-ver. Estava resumido a FHC, posando de grandeestadista. Na verdade, ele é um sósia do Bill Clin-

ton. Agora, voltou a ter espaço, voltou a ter o quefalar. Ele é muito prudente, está se pondo comoreserva. Deixando o Alckmin e o Serra se pegarempara sair como solução de conciliação.

IHU On-Line – José Dirceu queixou-se, emartigo à Folha de S. Paulo intitulado Fuzila-

mento Político, da maneira como tem sidotratado pela imprensa.Francisco de Oliveira – Ah! Sim. Mas e ele, tra-tava como? Ele é um tremendo de um trator. Nãorespeita nada. Os caras estão devolvendo a ele oque ele deu. Ele não tem amizades, tem fidelida-des. Os italianos sabem o que quero dizer com isso.

“O PT não compreende o paísque governa”

IHU On-Line – O senhor tem sido um doscríticos mais ácidos do governo federal. Asua obra destaca a complexidade do pro-cesso de desenvolvimento brasileiro e de-monstra como os modelos explicativos tra-dicionais não desvendam a realidade nacio-nal. Diante da complexidade da cena brasi-leira, que a sua obra ilumina, o senhor nãoestaria sendo muito rigoroso nas críticasque faz ao governo, passados apenas novemeses da posse?Francisco de Oliveira – Eu procuro evitar que aminha crítica seja dogmática, sectária ou irrefleti-da, mas eu não tenho paciência com o governoLula, porque nós estamos com uma longa acumu-lação de resistência dos setores populares, dasclasses médias, da universidade, desde a ditadura.No final dos anos 1970, uma das forças desseenorme complexo, dessas forças democráticas,transforma-se no Partido dos Trabalhadores, quese alimenta disso, reforça o processo e dá umacontribuição notável para a democratização. Por-tanto, agora ele tem a obrigação de mudar o País,daí a minha falta de paciência.

IHU On-Line – Logo depois da eleição deLula, o senhor disse que não se podia espe-rar milagre, que as transformações deman-

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dariam acordos e consensos, chamou aatenção para os interesses internacionais,que rapidamente poderiam se tornar hostis.O governo não está agindo de acordo comessas observações?Francisco de Oliveira – Acho que o governoestá esquecendo disso. Eu dizia isso por entenderque o Brasil não é um país menor, sem importân-cia. Não somos irrelevantes nem na América Lati-na nem no mundo. Atento a tudo isso, eu nãopeço milagres ao governo, mas tenho pouca pa-ciência com a lentidão do PT. Na verdade, ele nãoestá atento à complexidade nacional, ele está ren-dido à complexidade nacional. Com isso, ele des-mente a acumulação histórica da qual ele foi, aomesmo tempo, o produto e um fator estruturante.

IHU On-Line – Mas já se trata de uma capi-tulação ou de uma luta para sobreviver à“orfandade de novas teorias” que o senhortambém registra?Francisco de Oliveira – Acho que é uma capitu-lação. Nós estamos órfãos de novas teorias, é ver-dade. Nessa orfandade, contudo, que a esquerdamundial assinala, o PT era uma das poucas novida-des num quadro mundial de uma esquerda que seestiolava e que, na Europa havia sucumbido aoêxito, pois a esquerda européia não deixou de serradical por fracasso, mas pelo êxito. Além disso, te-mos o estiolamento trágico, dramático, da esquer-da liderada pela União Soviética. Na América Lati-na, depois da tragédia chilena, a esquerda lati-no-americana perdeu-se. Neste quadro, o PT era aúnica novidade. Portanto, a história do PT informaque é possível romper, que é possível, mesmo semuma teorização muito acabada, inventar novos ca-minhos na história. Ao não fazer isso, ele rompecom a sua história e desmente a novidade que ele é.

IHU On-Line – Lula está fazendo históriasob circunstâncias que lhe foram legadas etransmitidas ou ele sequer percebe essascircunstâncias?Francisco de Oliveira – Ele faz a história segun-do circunstâncias que lhe foram legadas e transmi-tidas. Essas circunstâncias e essa herança são pe-sadas. O PT, durante os oito anos do governo

FHC, avaliou mal e subestimou o que estava sepassando. Parte dos problemas que o PT enfrentano governo deriva do fato de não ter entendido oque se passou. Julgava que tudo era questão depolítica econômica, que mudando-a, que mudan-do a vontade política, tudo mudaria. Isso foi o quedisseram, de forma insistente os porta-vozes do PTna economia, durante os dois mandatos de FHC.Acontece que a coisa é muito mais complicada,porque, no governo Fernando Henrique, mu-dou-se profundamente o caráter do estado brasi-leiro, a sua potência regulatória, a composição deforças dos capitais, dos empresários, da burgue-sia, dos trabalhadores organizados. Então, há oproblema do legado, da herança recebida, mas hámuito mais o problema de não ter entendido oque se passou. Esse conjunto de enormes modifi-cações não pode deixar supor que a política eco-nômica é facilmente mudada. Em decorrênciadessa má avaliação, o PT capitula e prefere conti-nuar fazendo o mesmo que o governo anterior,para não se arriscar. Portanto, há um encontro en-tre uma pesada herança e uma má avaliação. OPT subestimou essa pesada herança, e foi surpre-endido com o fato de que o País que ele encon-trou para governar era profundamente diferentedaquilo que ele supunha que era.

IHU On-Line – Mas as derrotas anteriores doPT não se deveram, em boa medida, à pou-ca importância que o partido deu para asquestões econômicas, como foi no caso doPlano Real? Esse apego à questão econômi-ca não seria uma reação aos equívocos dopassado?Francisco de Oliveira – Sem dúvida, seguidasvezes, o PT subestimou a economia, não a com-preendia. Não foi esse, porém, o fator primordial.E o comportamento de hoje é uma reação ao pas-sado, nas palavras do próprio Presidente Lula. Elediz que as coisas ditas antes eram bravatas. Se éassim, não precisava mudar, pois a equipe econô-mica de Fernando Henrique fazia a mesma coisa.Se houve uma mudança eleitoral, foi porque a so-ciedade concluiu que os rumos da política econô-mica não eram mais satisfatórios nem suficientespara reconduzir o País ao crescimento econômico.

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IHU On-Line – O senhor tem alertado paraas conseqüências danosas da reivindicadaautonomia do Banco Central, lembrandoque a moeda é a maior ferramenta do Esta-do. Ao mesmo tempo, o senhor diz que, a ri-gor, não temos essa moeda que atue comoferramenta, assim como os Estados Unidosfazem com o dólar. O governo usa a mesmajustificativa para relacionar-se de maneiraortodoxa com o mercado financeiro. Comose explica esta contradição?Francisco de Oliveira – A presença do Brasil nocomércio mundial não chega a um por cento. OBrasil já foi muito importante no comércio inter-nacional, hoje é ridiculamente desimportate. So-mos desimportantes também do ponto de vista dacirculação internacional de capitais. Para que ser-ve essa desimportância? Serve para nos aprovei-tarmos dela. Não precisamos ter uma moeda talcomo as moedas hegemônicas. Isso é uma vanta-gem, porque nos permite ter uma política quasemonetária que não esteja parametrizada por aqui-lo que é exigido de uma moeda nacional com pro-jeção internacional. Enquanto nós pensamos quetínhamos uma moeda, até os anos 1930, inseridana órbita da libra esterlina e depois na órbita dodólar, nós tivemos uma política livre-cambista,não-protecionista e um crescimento econômicoque só não foi zero graças ao café. Depois dessafase, o Brasil consolidou-se como o segundo paíscapitalista do mundo a sustentar a segunda maiortaxa de crescimento econômico durante um sécu-lo, como demonstram as estatísticas do IBGE. Fi-zemos isso sem a pretensão de ter uma moeda.Fizemos pela política fiscal, política estatal. Aí, osneoliberais inventaram que nós precisamos teruma moeda com esse rigor monetário, ficam que-rendo administrar a moeda como se nós tivésse-mos a responsabilidade de pautar o comércio in-ternacional. Nós não precisamos disso, é um privi-légio não precisar disso, não uma desvantagem.Os neoliberais desconhecem a vantagem que é serperiferia no cenário internacional. Aí, os neolibe-rais querem um rigor monetário para uma moedaque não tem importância internacional. Isso éuma bobagem, a história do País mostra isso. Nósnão temos uma moeda importante, e é bom não

ter. Existe a contradição, mas ela joga a nosso fa-vor. É preciso aproveitar aquilo que é específicodessa complexidade e entendê-la. Não temos quecontrolar e regular a alocação de recursos pormeio de moeda. Isso só existe em esquemas e fór-mulas. Um país da periferia faz diferente. Então,quem quer a autonomia do Banco Central a querpara que ele seja infenso à política, como se pu-desse haver política monetária sem política.

IHU On-Line – Com freqüência, o governoalega que não há antecedentes históricospara o enfrentamento de uma situação so-cial como a do Brasil...Francisco de Oliveira – Há, sim. Muitos estu-dos mostram como se faz redistribuição de renda,e mostram que quem faz isso é o Estado, o merca-do não pode fazer. Não existe a auto-regulação domercado. O mercado é regulado pelo social, quefornece parâmetros e previsibilidade ao sistema.O mercado opera dentro de uma previsibilidadeque é dada pelo social, por meio da política.

IHU On-Line – Quais os pontos básicos dapolítica que o PT deveria implantar?Francisco de Oliveira – Nós não precisamosbuscar taxas elevadas de crescimento, mas deuma fortíssima redistribuição de renda, até paraviabilizar o crescimento econômico. Recentemen-te a Folha de São Paulo publicou uma matéria so-bre o professor Darc Costa, muito ligado à EscolaSuperior de Guerra, que é o atual vice-presidentedo BNDES, no qual exerce muita influência. Elepublicou recentemente um livro, resultado de seusestudos acadêmicos, onde diz que, para a econo-mia brasileira sair da atuação atual, deve atingiruma taxa de crescimento de dez por cento, duran-te os próximos vinte anos, e um coeficiente de in-vestimento sobre o PIB de trinta e quatro por cen-to, sendo o coeficiente de hoje de dezoito por cen-to. Acho que estas projeções são um delírio. Elemesmo reconhece que nenhum país da AméricaLatina logrou jamais nada parecido. No mundo,resultados desse porte só foram conseguidos emregimes totalitários, à exceção do Japão. Suasprojeções não são compatíveis com a democracia.É preciso muito mais redistribuir do que tentar al-

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cançar essas taxas, nós não precisamos dessas ta-xas, mas de uma fortíssima distribuição de renda.

IHU On-Line – Por quê?Francisco de Oliveira – Porque, com o padrãode política econômica adotado, com a distribui-ção de renda atual, haverá maior exclusão e nãomaior inclusão. Com a distribuição de renda atualnós não vamos a lugar nenhum. Veja o ProgramaFome Zero. Eu não posso ser contra. Embora eunão seja religioso, a minha formação é cristã, eisso me diz que eu não posso ser indiferente àque-les que passam fome. Além disso, eu sou socialis-ta, e para o socialismo a miséria é um desafio, nãoé um estorvo. Ela é um estorvo para os liberais.Por isso, o Programa Fome Zero me comove. Maseu o critico, por quê? Como uma família no inte-rior do Piauí gasta o dinheiro que ganha ou o queo governo lhe dá? Ela vai gastá-lo em alimenta-ção, isso é uma conhecida lei estatística: à medidaque a renda cresce, a curva de gastos indica que,num primeiro momento, os gastos vão para a ali-mentação. O que o Programa Fome Zero pode fa-zer com uma família pobre no interior do Piauí?Recebendo cinqüenta reais por mês, ela vai gastarno quê? Em alimentação. Qual alimentação? Aproduzida no Piauí, vai comprar mais farinha demandioca. Isso move o País? Isso é deixá-la nomesmo nível, isso não é distribuição de renda.Essa é a minha crítica.

IHU On-Line – Onde esses recursos deveriamser aplicados?Francisco de Oliveira – Se pegarmos esses re-cursos e outros mais e os aplicarmos em progra-mas mínimos de habitação, nos vários aglomera-dos metropolitanos do País, aí temos um setor quemuda a distribuição de renda real da sociedade.Basta fazer um programa de habitação popular ri-goroso e massivo. Quanto as pessoas gastam com

habitação? As estatísticas mostram qual é o pesoda habitação no orçamento mensal de uma famí-lia. Por aí se pode fazer redistribuição de renda.Basta usar a Caixa Econômica, nós não vamos fa-zê-la falir: em vez de pôr o programa de distribui-ção de comida no orçamento, põe-se no orça-mento o dinheiro para a Caixa Econômica, que oempresta, segundo regras bancárias. Isso redistri-bui renda poderosamente, ativa toda a cadeia in-dustrial da construção civil, o efeito é outro. Porque diabos não fazem isso, enquanto o Ministériodas Cidades morre à míngua, e ninguém sabe queele existe?

IHU On-Line – Qual a sua avaliação sobre apolítica internacional do governo Lula? Elase distingue da política interna?Francisco de Oliveira – Sim. Ela tem sido umaexceção à regra, mas já estão “fritando” o Ministrodas Relações Exteriores, porque ele está sendo ocondutor de uma política externa independente,autônoma, de um país que quer ser alguém nasdiscussões internacionais. E essa política, que é ajóia do governo Lula, está sendo “fritada” e não seagüentará por muito tempo se estiver em disso-nância com a política interna. Como poderemosauxiliar a Argentina, por exemplo, o que seria sau-dável, se a política interna se mantiver restritiva,com seu dinamismo sufocado.

IHU On-Line – Quem está “fritando” o Mi-nistro das Relações Exteriores?Francisco de Oliveira – Conforme a imprensa,são verbalizadores das posições contrárias ao Itama-rati, sobretudo na questão da Alca, os Ministérios daAgricultura e do Desenvolvimento e Indústria. Sãosetores que acham que, com a Alca, o agronegóciobrasileiro cresceria. Parece que se vêem contraria-dos com a condução criteriosa e autônoma que oItamarati vem dando à questão da Alca.

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Quadro político atual: um resultado das opções econômicase das alianças do governo Lula

Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio

Plínio de Arruda Sampaio questiona a ma-neira de o Presidente Lula governar o País. Ementrevista, por telefone, à IHU On-Line, em 22de agosto de 2005, o advogado e economista falasobre conjuntura política, sem poupar críticas aogoverno federal e ao atual comando do PT. A res-peito da recente reforma ministerial, é direto: “Mi-nistro tem de ser uma liderança, uma referência,não simplesmente uma forma de conseguir votosno Congresso”.

Sampaio é um dos fundadores do partido eex-deputado federal constituinte. Especialista naquestão fundiária no Brasil, participou, antes de1965, da construção do Partido Democrata Cris-tão (PDC). Trabalhou durante 30 anos na FAO(órgão da ONU voltado para a agricultura e aalimentação).

IHU On-Line – Como o senhor descreveria asituação atual de crise?Plínio de Arruda Sampaio – É uma crise políti-ca que está adquirindo contornos de crise grave,institucional. Estão sendo publicados atos de irre-gularidades muito fortes, atingindo parlamentarese até ministros do governo, é de muita gravidademesmo. A raiz dela é uma enorme decepção polí-tica, uma enorme surpresa política decorrente dofato de que temos um presidente e um partido quesobem ao governo com uma história e um progra-ma que representam 25 anos de trajetória. E essegoverno executa uma política completamente dis-tinta dessa história. Isso provocou uma rupturagrande na unidade do partido. Isso se reflete nessadificuldade atual.

IHU On-Line – Como o senhor avalia o pedi-do de desculpa feito pelo Presidente Lula ea forma como ele está se posicionando antea crise atual?Plínio de Arruda Sampaio – O pedido foi fra-co, não esclareceu muita coisa. Foi um pouco re-tórico, sem convicção. Eu acho que Lula não estáse posicionando bem. Deveria ser mais firme, tertomado providências mais severas. É onde está oerro. A idéia dele de defender o governo e suapolítica econômica a qualquer custo é um errogravíssimo. As irregularidades que vemos hojesão decorrentes da política econômica adotadapelo governo. Essa política que exige uma gover-nabilidade baseada no Congresso Nacional, naqual tem que se entender com esses partidos quecontaminaram o próprio Partido dos Trabalha-dores (PT).

IHU On-Line – Quais seriam as providênciasseveras?Plínio de Arruda Sampaio – Lula deveria termodificado o governo já na época do escândalodo Valdomiro Diniz. Sobretudo deveria ter modifi-cado a política econômica. Essa política dá comoresultado esse tipo de quadro político e seu siste-ma de alianças. Agora acabou de fazer uma refor-ma ministerial. Só que tenho certeza de que nin-guém sabe o nome dos novos ministros. Figurasabsolutamente opacas, indicadas pelos partidossem qualquer referência na sociedade. Não é pos-sível, ministro tem de ser uma liderança, uma refe-rência. Não simplesmente uma forma de conse-guir votos no Congresso.

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IHU On-Line – Que tipo de política econô-mica o senhor sugere?Plínio de Arruda Sampaio – Uma política derenegociação da dívida externa, essa é a raiz detudo. Suspender o pagamento, abrir uma audito-ria e chamar os credores a uma negociação.

IHU On-Line – Uma suspensão do pagamen-to da dívida não traria conseqüências maisnegativas do que positivas para o País?Plínio de Arruda Sampaio – A experiência nãoé bem essa. Os argentinos acabam de fazer isso.Desvalorizaram a dívida em 80%, só começarama pagar depois do acordo e estão crescendo maisdo que o Brasil. Não consigo pensar em uma re-presália que seja tão devastadora a ponto de im-pedir essa suspensão. Entretanto, há também oaspecto da soberania da nação. Não se pode viversob ameaça. Assim o Brasil não é uma nação, éuma colônia.

IHU On-Line – A situação do Presidentepode se tornar politicamente insustentável?Plínio de Arruda Sampaio – Vai depender doandar das Comissões Parlamentares de Inquérito(CPIs). Até agora, não tem nada de concreto nessalinha. Se houver indício da participação do Presi-dente em qualquer ilegalidade, vai estar configu-rada a situação do impeachment. Isso dependedas investigações.

IHU On-Line – Muito se fala em limpeza in-terna do governo e do PT. Por onde ela co-meçaria e até onde poderia ou deveriachegar?Plínio de Arruda Sampaio – Eu defendo a tesede que a maioria do diretório, os dirigentes dachapa majoritária, não têm condições políticasde dirigir o partido. Demonstraram enorme in-competência. Deveriam sair todos. Com isso, se-ria possível reconstruir penosamente uma ima-gem construída em 25 anos e arrebentada emmenos de 15 dias.

IHU On-Line – É necessária uma refundaçãodo PT?

Plínio de Arruda Sampaio – A palavra refun-dação virou uma espécie de panacéia. Tarso Gen-ro fala em refundação, Cristovam [Buarque] falaem refundação. Eu não estou pensando em refun-dar o PT, mas quero, sim, trazer o partido para sero que era antes. O que precisamos é voltar à pro-posta original do partido que foi distorcida pelogrupo que tomou conta do PT há dez anos.

IHU On-Line – Podemos continuar falandoem Partido dos Trabalhadores quando hátantos desempregados?Plínio de Arruda Sampaio – O desempregadoé um trabalhador na condição presente da falta deemprego. Não é um comerciante, um empresário.A denominação é muito correta. Indica claramen-te a natureza do partido, que busca polarizar a lutade classes contra o pólo capital.

IHU On-Line – Parece irônico o senhor dizerhoje que o partido existe para polarizar aluta de classes contra o pólo capital...Plínio de Arruda Sampaio – É uma tragédia.Até certo ponto da vida do PT, até 1995, o partidopolarizou a luta de classes. Eram todos e o PT. De-pois, com a ampliação de alianças, com o progra-ma mais adocicado, aconteceu essa confusão.Hoje é difícil dizer que o PT polarize a defesa dostrabalhadores.

IHU On-Line – Quando a situação ficou crí-tica dentro do PT?Plínio de Arruda Sampaio – Tenho uma posi-ção de oposição a essa direção há mais de dezanos. Declarei que isso iria acontecer em 1998.Sou contra a campanha feita por meio do marke-ting político. É um expediente para dourar a pílu-la. E a pílula do PT não é fácil de ser dourada. Seoferecemos a pílula dourada e, depois, demons-tramos o que é, acontece um choque violentíssi-mo. Para não haver esse choque, a pílula acabou,na verdade, sendo modificada. O exemplo maistípico é a reforma agrária. Na cabeça de todo omundo, até dos adversários, estava a idéia de queo PT faria a reforma agrária. A minha proposta dePlano Nacional de Reforma Agrária (em 2003) foi

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entregue ao Presidente, e ele cortou-a pela meta-de com a alegação de falta de recursos. A propos-ta era de assentarmos um milhão de famílias emquatro anos. Essa meta foi reduzida pela metade enem isso está sendo cumprido. Hoje, temos ainda130 mil famílias acampadas na beira de estradas eem terras ocupadas.

IHU On-Line – Como o senhor avalia os po-sicionamentos dos diversos movimentossociais ante a atual crise?Plínio de Arruda Sampaio – O processo é detomada de consciência. Alguns tomam antes, ou-tros, depois. A decepção é grande, a surpresa égrande. Compreende-se a demora. As pessoasprecisam de tempo para perceber que realmentehouve uma mudança completa de rumos. Todo omundo quer salvar a figura da liderança porquetem uma afeição grande por ela.

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“O Brasil está na fase de doente terminal,achando que vai dar tudo certo”

Entrevista com Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo é professordo Instituto de Economia da Universidade deCamnpinas (Unicamp) e doutor em economiapela mesma instituição em que trabalha, com teseintitulada Um Estudo Sobre a Crítica da EconomiaPolítica. Entre seus livros publicados, citamos De-

pois da Queda – A Economia Brasileira da

Crise da Dívida aos Impasses do Real. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2002. Belluzzoconcedeu uma entrevista por telefone à IHU

On-Line, no dia 26 de setembro de 2003. O eco-nomista faz um resgate de aspectos da Era Vargase aponta alguns caminhos para o desenvolvimen-to do País.

IHU On-Line – Qual é a leitura que o senhorpode fazer hoje do projeto de desenvolvi-mento nacional tão presente na Revoluçãode 1930?Luiz Gonzaga Belluzzo – A revolução de 1930ocorre no momento de transformação de um paísrural e oligárquico que estava embalado por ummovimento mundial de crise profunda do capita-lismo. A crise dos anos 1930, a chamada grandedepressão, foi um dos fatos mais dramáticos doséculo XX, que teve conseqüências importantes,como a descoberta das políticas anticíclicas e asbrutais relações econômicas promovidas pelo na-zismo e pelo fascismo. Ademais havia a experiên-cia soviética, que parecia imune aos efeitos da cri-se. A Rússia havia iniciado uma industrializaçãoforçada sob o comando brutal do stalinismo. Parao mundo capitalista, porém, parecia uma trajetó-ria inalcançável. Então, as políticas nacionais ga-nharam, naquele momento, uma grande impor-

tância. A economia alemã, que estava com 44%de empregos, só saiu da crise com uma grande in-tervenção do Estado, e o Brasil captou essas in-fluências muito fortemente, com uma adaptaçãolocal dessas propostas industrializantes de incenti-vos da economia nacional que se prolongaramdurante os anos 1930, sobretudo depois do golpede 1937 e durante a guerra. Nesse momento, co-meçou uma política de reformas: Getúlio fez a re-forma do serviço público, criou a carteira de crédi-to industrial do Banco do Brasil, houve o projetoda Companhia Siderúrgica Nacional, que se com-pletou durante a guerra numa negociação com osamericanos. O nascimento e o desenvolvimentode projetos nacionais prosseguiram com a guerrapor conta das reformas que foram feitas na econo-mia internacional, e depois, pelo consenso de queera preciso, no caso dos países desenvolvidos,manter o pleno emprego e incorporar as massasàs normas de consumo capitalista. Nos países pe-riféricos, o correspondente eram os projetos nacio-nais de industrialização. O Brasil emergiu da Se-gunda Guerra, com projetos de redemocratizaçãoe, depois, com a volta de Getúlio ao poder, comum projeto nacional de desenvolvimento que teveseqüência, com os militares. Eles interromperam oprocesso democrático, mas não perderam o rumono que diz respeito ao desenvolvimento econômi-co, ao projeto nacional. Isso só entrou em crise,realmente, nos anos 1980 e se esfacelou comple-tamente nos anos 1990.

IHU On-Line – O novo cenário internacionalpermitiria um projeto de desenvolvimentonacional?

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Luiz Gonzaga Belluzzo – Se olharmos o mun-do no final do século XIX, ou mesmo no século XX,o consenso era que a economia precisava se ajus-tar aos constrangimentos externos. Havia a con-cepção liberal de que, à economia internacional,devia-se colocar o mínimo de obstáculos possíve-is. Isso era o equivalente à globalização. Eu suspe-ito que, neste momento, estamos vivendo umacrise muito mais profunda da globalização do quepodemos imaginar. Há uma pressão, porém, mui-to grande dos países desenvolvidos, sobretudodos Estados Unidos e dos países europeus, contraa China, que foi a principal beneficiária desse pro-cesso de globalização. Surgem pressões protecio-nistas nos Estados Unidos, para que se preserve amanufatura americana e os empregos de melhorqualidade na indústria. Entramos numa crise mui-to profunda de projeto globalitário, comandadapelas grandes corporações americanas e pelosmercados financeiros. Penso que essa crise vaicontaminar a política. O debate nos Estados Uni-dos, no período eleitoral, vai ser centrado nessasquestões. Eu não sei se vamos voltar, nos mesmosmoldes, aos projetos nacionais, mas vai haveruma ênfase maior sobre as economias nacionais.Ou se reforma completamente o sistema interna-cional e encontra-se uma forma de integrar aseconomias nacionais sem destruí-las, ou vamosassistir a uma crise sem precedentes, tão profun-da, não com a mesma morfologia, mas, tão pro-funda quanto a crise dos anos 1930. Isso vai colo-car as forças sociais na busca de uma solução me-lhor para a integração das economias nacionais,numa economia internacional mais regulada.

IHU On-Line – Que tipo de projeto de paísestá sendo construído atualmente. O gover-no do PT tem um projeto de desenvolvimen-to nacional?Luiz Gonzaga Belluzzo – Acho que não. O PTnunca teve isso muito claro. O PT tinha duas cor-rentes, uma sindical, mais pragmática, que é a queestá no poder, e que tem uma visão de que é pos-sível, por meio de política das alianças, criar umambiente mais favorável ao desenvolvimento. Aoutra corrente, mais socialista, não pensou a ad-ministração de uma economia capitalista. Eu sem-

pre brinco dizendo que o operário no poder nãoquer dizer o poder dos operários. O PT sempre foimuito reativo à idéia de um projeto nacional emuito negativo na avaliação do chamado períodopopulista. A continuidade de um projeto de de-senvolvimento nacional não faz parte da culturado PT.

IHU On-Line – O que é necessário revertermais urgentemente nas políticas do gover-no atual?Luiz Gonzaga Belluzzo – Em primeiro lugar,reduzir muito a dependência do financiamentoexterno. Participamos de dois tipos de endivida-mento externo: um na década de 1980, e o outroem 1990. Eles submeteram a política econômica,e o País teria que, rapidamente, reduzir isso, mas acircunstância não é tão fácil assim, porque esta-mos entrando numa etapa de maior protecionis-mo dos países desenvolvidos. Há um conflito co-mercial de grandes proporções. O País, porém,não pode submeter sua política econômica a umreajuste imposto por um endividamento externoexcessivo e por uma dívida interna que tem difi-culdade de ser paga, até porque as taxas nãocaem em função do endividamento externo muitoalto e dos compromissos em moeda estrangeiraque não vamos conseguir pagar. Essa é a questãocentral. Suspeito que não é fácil combinar a ne-cessidade de redução com o crescimento mais ele-vado da economia.

IHU On-Line – A moratória da dívida externaserá algo inevitável também para o Brasil?Luiz Gonzaga Belluzzo – Isso é o que vai aca-bar acontecendo, porque a dívida é muito onero-sa para a economia brasileira. Reestruturar a dívi-da atualmente até está sendo aceito pelo FMI.

IHU On-Line – Como o senhor vê os passosque o Governo Kirchner, na Argentina, estádando nesse sentido?Luiz Gonzaga Belluzzo – Pode parecer parado-xal, mas o governo Kirchner tem uma grande van-tagem em relação a nós, porque a Argentina de-cretou moratória. É impossível para o governo ar-gentino ter outra atitude que não seja propor a

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reestruturação da dívida. Desde o período dapós-independência até agora, a história de Améri-ca Latina é um pouco essa, uma história de crise,endividamento e moratórias. As pessoas não que-rem admitir isso, porque não estão informadas, ouas que estão informadas, agem de má fé. Achoque há uma complacência – que os países asiáti-cos, por exemplo, não têm – com esses ciclos de fi-nanciamento externo que se esgotam, às vezes, deforma catastrófica. Nós já tivemos dois, mas pare-ce que a experiência não é uma boa guia das polí-ticas de endividamento externo. Kirchner está di-zendo o óbvio, o FMI foi cúmplice da política deconvertibilidade, que a Argentina ia ter uma crisecambial financeira, era óbvio, qualquer pessoacom um mínimo de experiência em história eco-nômica e história financeira sabe que o modeloargentino estava fadado ao desastre. Isso ficoumais claro ainda depois da crise mexicana e dacrise asiática. É impossível, sem um desconto nadívida, que a economia argentina volte a ter ummínimo de viabilidade. Agora vai depender muitode como o Kirchner vai administrar a economiadoméstica. Espera-se que a economia retome ocrescimento. O Brasil está ainda naquela fase emque o doente terminal está achando que vai dartudo certo. É meio chocante, mas é verdade.

IHU On-Line – Acha que o presidente argen-tino foi mais ousado que o brasileiro?Luiz Gonzaga Belluzzo – Não tenho certezaque seja uma questão de ousadia. Acho que, nocaso de Lula, ele ficou muito impressionado pelarapidez com que a situação internacional mudou.Ela que, aparentemente, estava fora do controleno período eleitoral, foi colocada sob controle, atéporque a situação internacional melhorou muitoespontaneamente.

IHU On-Line – Como o senhor vê as críticasdo governo anterior e do atual à Era Vargas?Luiz Gonzaga Belluzzo – O Presidente Fernan-do Henrique fez uma avaliação incorreta do quefoi a Era Vargas. A idéia dele de que, na verdade,quem moveu o desenvolvimento no Brasil foi ocapital estrangeiro é um erro de interpretação. Foia convocação entre o Estado Nacional, a criação

do empresariado nativo, autóctone e forte e o ca-pital estrangeiro. Soube combinar as três coisasjunto com políticas que buscavam proteger o pro-cesso de desenvolvimento nacional dos solavan-cos da economia internacional. Ajudou também ofato de que o mercado internacional de capitaisestava praticamente desmontado. No entanto, aidéia de que o Brasil pudesse fazer uma integraçãonacional de tipo liberal, como Fernando Henriquepropôs, reproduzindo fórmulas que já tinham sidoexperimentadas e que não tinham dado certo,tem uma origem muito paulista. São Paulo foi oestado que mais se beneficiou com a estratégianacional desenvolvimentista, e, na verdade, quegerou a mentalidade mais hostil a essas políticas,por causa do cosmopolitismo paulista. E é umpaulista quem está fazendo essas afirmações. SãoPaulo sempre ergueu a bandeira das reformas li-berais e mesmo a esquerda paulista sempre foimais liberal que o resto da esquerda brasileira.Muito mais liberal que a esquerda gaúcha, que émuito mais nacionalista, e o PT nasceu aqui, noABC. Uma vez, há muitos anos, Lula dizia paramim “Se a empresa é nacional ou internacionalnão me interessa”, é tudo igual. Essa idéia de ter-minar com a Era Vargas e equiparar isso ao pro-cesso de modernização do Brasil é um equívoco.Pode-se superar a Era Vargas no sentido hegelia-no, superar conservando. Agora destruir a EraVargas é uma besteira monumental, porque isso éconstitutivo do País. É possível superá-la, mas éimpossível dar um salto para a contemporaneida-de ignorando o fato de que Brasil é um país perifé-rico, fato essencial na percepção dos ideólogos dovarguismo. Na cabeça deles, estava muito claroque o Brasil precisava de políticas muito distintasdas dos países desenvolvidos.

IHU On-Line – Onde estão os herdeiros dabusca de um projeto de desenvolvimentonacional?Luiz Gonzaga Belluzzo – São muitos grupos,mas muito dispersos e muito enfraquecidos doponto de vista de sua capacidade de influenciar.Temos a formação partidária nos partidos políti-cos, tanto de esquerda como de direita. Na inte-lectualidade, há muita gente que a imprensa retra-

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ta mal, porque a imprensa também é cosmopolita.Há, por exemplo, na Universidade de Campinas,um núcleo interessante de pessoas que pensa asquestões estratégicas, assim como há também noBanco Nacional de Desenvolvimento Econômicoe Social, assim como nas Forças Armadas, queteve um papel importante no período desenvolvi-

mentista. Além disso, a juventude brasileira estácomeçando a perceber, depois de ter passado porum período de reeducação de valores liberais mui-to individualistas que o futuro dela está muito li-gado ao do País, que não adianta se mudar paraMiami, particularmente a da classe média.

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Um governo sem rumo?

Entrevista com Pedro Cezar Dutra Fonseca

Pedro Cezar Dutra Fonseca é diretor da Fa-culdade de Ciências Econômicas da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (UFRGS), presiden-te da Sociedade Brasileira de Economia Política edoutor em Economia pela Universidade de SãoPaulo (USP). É autor de Vargas: o Capitalismo

em Construção. São Paulo: Brasiliense, 1989,entre outros. Suas pesquisas abrangem a economiabrasileira e a história do pensamento econômico.Pedro Cezar concedeu entrevista à IHU On-Line,

no dia 13 de outubro de 2003, destacando os ru-mos da política econômica do governo.

IHU On-Line – Os economistas brasileiros,em várias ocasiões, alertaram o governopara a necessária retomada dos investimen-tos nas áreas públicas, a redução dos juros,o desenvolvimento de uma política voltadapara o mercado consumidor interno. O se-nhor acha que o governo começa a se movernessa direção?Pedro Cezar – Eu acho que sim, embora timida-mente. Isso sugere que mais do que ter convicçãocom relação a isso, o governo está sendo pressio-nado a ir nessa direção. É bom, porém, que o go-verno comece a baixar os juros, a sinalizar parauma retomada dos investimentos e que tenhauma perspectiva de maior crescimento no anoque vem.

IHU On-Line – Quem está pressionando ogoverno?Pedro Cezar – Essa pressão vem de vários lados.De pessoas historicamente ligadas ao PT, que sesentem decepcionadas e esperavam um outro tipo

de política, embora na campanha eleitoral o can-didato Lula tenha dito que faria algo parecidocom o que ele está fazendo hoje. Há uma frustra-ção vinda da esquerda. Há também uma críticavinda dos empresários, de grupos que não se afi-nam ideologicamente com a esquerda. O própriovice-presidente da República, às vezes, externaessa crítica, vinda de grupos que imaginavamuma economia em crescimento, esperavam umamudança na orientação em favor do desenvolvi-mentismo. O discurso de Lula na campanha elei-toral, aliás, era muito parecido com o de [José]Serra. Parte dos empresários achou que o discur-so de Lula era mais sincero, resolvendo apoiá-lo.A pressão vem de vários lados, vem da própria mí-dia. A comparação com a Argentina, por exem-plo, deixa o governo em uma situação complica-da. Parece que aquele país está sinalizando paraum lado mais radical do que o Brasil.

IHU On-Line – Pode-se dizer que o governoainda não sabe para onde vai?Pedro Cezar – Essa é a minha principal crítica. Oproblema das taxas de juro é temporário, tópico,não é o principal. O governo, porém, deveria ace-nar com uma perspectiva de longo prazo. Definirqual a política industrial, por exemplo. E a substi-tuição de importações, prometida na eleição,ocorrerá? Em quais ramos? Vamos exportar oquê? Quais são os nichos do Brasil no comérciointernacional? Qual será a política agrícola? Have-rá financiamento? Por meio de bancos públicosou privados? Está faltando essa repactuação, issoé essencial. Essa é a grande lacuna: a inexistência,ainda, de uma política de desenvolvimento.

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IHU On-Line – Nas suas manifestações, osenhor tem dito que, quanto ao desenvolvi-mento, não se deve esperar que o Estado de-sempenhe o mesmo papel que exerceu nopassado. Ao mesmo tempo, o senhor temafirmado que o governo deveria criar insti-tuições que assegurassem as bases para umnovo ciclo expansivo. Nesse caso, qual se-ria o papel do Estado?Pedro Cezar – Eu não imagino que o Estado váinduzir o desenvolvimento por meio de empresasestatais, ou de organismos financiadores como oBanco Nacional de Desenvolvimento Econômicoe Social (BNDES), como no passado. Acho difícilque o Estado tenha condições de bancar financei-ramente uma arrancada para o crescimento. OEstado, contudo, pode criar condições propíciaspara isso, com uma política fiscal mais adequada,por exemplo, por intermédio de certos incentivospara determinadas áreas. O Estado pode fazercertas políticas a favor de setores que se queira de-senvolver. No entanto, não imagino que isso ocor-rerá por meio das estatais, por exemplo.

IHU On-Line – O sociólogo Francisco deOliveira tem chamado a atenção para a au-sência de intelectuais no governo, o que di-ficultaria a formulação de planos para odesenvolvimento. O senhor acha que osintelectuais têm um papel mais ativo adesempenhar?Pedro Cezar – A relação de intelectuais com ogoverno é algo muito delicado. O papel dos inte-lectuais não é estar dentro do governo, emboraisso possa ocorrer. O que cabe ao governo é ouviros intelectuais, dialogar com eles. O governo atualestá tentando fazer isso, pelo menos com os inte-lectuais petistas. Talvez outros pudessem ser ouvi-dos. Essa crítica, porém, não deve ser feita, não épapel do governo chamar os intelectuais para aju-dar a governar. Nenhum governo tem essa res-ponsabilidade. Como disse, os intelectuais devemser ouvidos, essa é a contribuição deles.

IHU On-Line – Com freqüência, os gover-nantes do País chamam a atenção para oineditismo da situação brasileira, para a

inexistência de precedentes históricos, in-dicando a saída da situação vivida pelo Bra-sil. O governo tem condições políticas eteóricas para a formulação de um plano dedesenvolvimento? Esse plano deve ficar nosmarcos do capitalismo ou deverá ter contor-nos socialistas?Pedro Cezar – Acho que o governo tem condi-ções, sim. Temos amplas condições de desenvol-ver o País, por meio de um projeto que poderá sercapitaneado e gerenciado pelo governo, num am-plo consenso nacional. No entanto, está fora dequestão que esse projeto não seja capitalista, nãovejo as mínimas condições para um projeto socia-lista. Pode haver elementos de uma economia so-lidária, de distribuição de renda, de maior igual-dade social, de melhora de indicadores sociais Ogoverno pode bancar isso. Esse projeto é possível,mas eu só o vejo como um projeto capitalista.

IHU On-Line – O senhor considera satisfató-ria a política externa praticada pelo governo?Pedro Cezar – Temos desajustes, problemas ma-croeconômicos, mas o Brasil tem condições de li-derar internacionalmente vários segmentos pro-dutivos. Em vários ramos, temos produtividade,obrigando os países líderes a inventarem barreirassanitárias, sociais ou com o propósito explícito debarrar os produtos brasileiros. Isso nos dá umacerta confiança no Brasil. Não é possível desejarque o País pague a sua dívida regularmente e nãopossa exportar. Essa negociação pode ser feita. Arigor, nem na política interna, nem na externa, oatual governo difere muito do anterior. No gover-no do Fernando Henrique Cardoso, já se diziaque ele era de esquerda quando saía do País eaqui dentro era conservador. A política internacio-nal do Presidente Lula, às vezes, é um pouco maisagressiva na linguagem, mas é basicamente amesma, é uma política de independência, mas ne-gociada. Essa é a política que deve ser feita. Háum grupo de países intermediários, que não seconfunde com a grande massa de países margina-lizados, como os do continente africano. Os paísesmédios podem ocupar um grande espaço, e a li-derança do Brasil é oportuna. Acho que o Presi-dente da República está se saindo muito bem.

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“Não esperávamos do governo tão poucas e pouco ousadas ações”

Entrevista com Gláucia Campregher

Gláucia Campregher é professora na áreade Ciências Econômicas da Unisinos. Ela é gra-duada em Ciências Econômicas, mestre e douto-ra em Economia pela Unicamp, com tese intitula-da Contribuição à crítica da economia política donão-trabalho. Gláucia concedeu entrevista à IHU

On-Line, em 13 de outubro de 2003, sobre asações do governo.

IHU On-Line – O sociólogo Francisco deOliveira tem se referido ao modelo econô-mico e social que está sendo desenhadopelo atual governo como um “ornitorrinco”,devido às suas características esdrúxulas.Essa metáfora lhe parece adequada? O quecaracterizaria as desproporções do referidomodelo? Quais os seus equívocos?Gláucia Campregher – Sim, a metáfora faz al-gum sentido, porque parece que o governo temagido com o sinal trocado para além do que se po-deria esperar. Mesmo que já esperássemos um go-verno mais soft – dado o encalacre que nos foi dei-xado e dada a pouco profunda discussão da cam-panha eleitoral –, não esperávamos tão poucas epouco ousadas ações em todas as áreas (social eeconômica) em meio a tanto esforço para a reali-zação de reformas para “mercado ver”. Veja bem,a crise fiscal do Estado é mesmo séria, e teria defato de ser enfrentada. Além disso, o PT sempreprezou finanças públicas saneadas, como o de-monstram suas administrações anteriores ao go-verno federal. Entretanto, isso não justifica o con-teúdo pouco diferenciado (em relação ao governoFHC) das reformas tributária e previdenciária. Ouseja, há falta de links com um projeto alternativopara o desenvolvimento nacional, como, por

exemplo, com a redistribuição de renda, ou o fi-nanciamento do investimento produtivo, ou a de-mocratização da gestão. O que está acontecendonão é, a meu ver, só uma questão de “despropor-ção” – muita atenção às reformas e pouca àsquestões sociais mais amplas (ou seja, além do“Fome Zero”). É que ambas não se cruzam emponto algum! Veja, quando se faz uma lei para oFundopem (como o PT fez aqui no RS, e agoraestá sendo desfeita...), que previa incentivo sópara investimentos novos e geradores de empre-go, a questão fiscal está casada com a questão so-cioeconômica maior: de desconcentrar o incenti-vo nos grandes de sempre e de estimular o merca-do interno (via gastos dos trabalhadores futura-mente empregados). Logo, é de se pensar que adesproporção vem da natureza das “reformas queacalmam o mercado”, que não têm nada a vercom as “reformas que põem o país para andar”.

IHU On-Line – Em sua defesa, o governotem alegado que a experiência brasileira éinédita, inexistindo acúmulo teórico paradar conta, a curto prazo, das contradiçõesque caracterizam o Estado e a sociedadebrasileira. Quais as lições que podem serextraídas do cenário internacional, em be-nefício de uma mudança nacional em favordos pobres e excluídos?Gláucia Campregher – Esta alegação faz e nãofaz sentido. Não faz, se pensarmos que o acúmuloteórico é enorme, quando o volume de experiên-cias históricas de diferentes países em construirmodelos alternativos aos da dominação do capita-lismo central é também bem grande. Veja, Alema-nha, Japão e até os Estados Unidos são países que

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se tornaram capitalistas, quando a Inglaterra já erauma potência capitalista dominante. Cada um de-les desenvolveu modelos bem próprios para a suaindustrialização. As experiências socialistas tam-bém trazem muito à reflexão, bem como os capi-talismos reformados do “bem-estar social” dopós-guerra. Isso sem falar dos “tigres asiáticos” e,mais recentemente, de casos regionais de desen-volvimento em meio à riqueza (Europa) e mesmoem meio à pobreza (Índia). A lição é sempre amesma: estado com clareza de objetivos estratégi-cos, desconcentração da propriedade e da renda einvestimento nas capacitações humanas (leia-seeducação). Agora, faz sentido se pensarmos que omundo de hoje, cuja dominação do capitalismocentral é “extratentacular” – é cultural, financeira,militar, tecnológica, e muito mais! –, que estemundo deixa poucas opções para países onde asburguesias nacionais são míopes, os intelectuais,distantes, os trabalhadores bem formados (cultu-ral e politicamente), poucos e os miseráveis, mui-tos. O “cenário internacional”, nestes novos tem-pos, não tem apresentado nenhum projeto nacio-nal de sucesso. China e Europa são muito maisque nações. Justo por isso, temos causado tantacuriosidade e mesmo sucesso; e, talvez isso nãoseja pouco. Nesse mundo da “política como espe-táculo”, talvez Lula, o show man, seja o nossomaior trunfo.

IHU On-Line – Há espaços, no cenário inter-nacional, para o desenvolvimento de umprojeto nacional? A senhora acredita que osdirigentes do País reúnem condições paraformulá-lo? Qual o papel que caberia aosmovimentos sociais e aos trabalhadores?Gláucia Campregher – Para mim, hoje, ou o na-cional é melhor articulado dentro (regionalmente)e fora (continentalmente), ou ele não tem futuro.Por isso, eu dizia que talvez o que o governo estejafazendo de melhor seja projetar o Presidente.Atrair todas as atenções, viajar muito, articular earticular, talvez seja algo de fato estratégico. Sóduvido desta estratégia, porque para dentro nãoadianta só criar um espaço de “diálogo para con-certação”. O pacto federativo teria de ser repensa-

do de verdade, como o pacto social. Os poderesdas oligarquias locais, dos grandes monopóliosempresariais, dos grandes controladores das fi-nanças nacionais, isso tinha de estar sendo colo-cado em cheque. O governo tinha de estar identi-ficando os não-míopes entre os empresários, osnão-corporativos entre os sindicalistas, os bem-intencionados entre os críticos... E todos os movi-mentos sociais devem se esforçar para fazer avan-çar o debate dentro dos espaços abertos pelo go-verno e também para além deste.

IHU On-Line – Ao considerar que o governoestá em desacordo com as expectativas dosque elegeram Lula, o citado sociólogo sus-tenta, mesmo, que estaria surgindo uma“nova classe” de dirigentes, oriundos dossindicatos, mas desvinculados dos interes-ses históricos dos trabalhadores. Esta abor-dagem não está presa a um modelo antigode análise, que atribuía à classe operáriaum papel transformador?Gláucia Campregher – Não teria como respon-der a essa pergunta em poucas palavras, até por-que eu já falei muito sobre esse tema (na minhatese de doutorado). Não vou pela linha dos “inte-resses históricos” da classe trabalhadora, nem dosmotivos por que os trabalhadores eram revolucio-nários antes, e não hoje, nem o significado de“classe social”, etc. etc. Assim sem complexificar(o que seria necessário) o que é ser trabalhadorhoje, vou pela linha da identidade entre os diri-gentes petistas e os demais trabalhadores dentro efora do partido. É verdade que muita gente dentrodo PT, ao virar “dirigente” (e daí deputado, secre-tário, ministro, chefe disso ou daquilo), ganhouuma respeitabilidade quase burguesa. Quero di-zer, do mesmo modo como o capitalista organizaa força de trabalho para a produção coletiva (e aapropriação privada), o dirigente partidário acu-mula privadamente os resultados do trabalho co-letivo. Muitos que trabalham com estes, trabalhampara estes. Escrevem “para eles”, defendem“suas” posições, etc., etc. Não que estes dirigentesnão trabalhem mais. Como os capitalistas, eles seempenham em concorrer uns com os outros, eisso dá um trabalho do cão.

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A tragédia do governo Lula

Entrevista com Reinaldo Gonçalves

Reinaldo Gonçalves é professor titular daUFRJ, doutor em Economia pela University ofReading, diretor da Sociedade Brasileira de Eco-nomia Política e da Associação Nacional de Cur-sos de Graduação em Economia. Recebeu o Prê-mio Jabuti em 2001, na área de economia, direitoe administração. É autor de mais de duas centenasde trabalhos publicados em 18 países. Na entrevis-ta concedida à IHU On-Line, no dia 17 de abrilde 2006, o economista e ex-filiado do PT, fala daatual conjuntura econômica e social brasileira, nãopoupa críticas à esquerda do País e considera ogoverno Lula uma “tragédia”.

IHU On-Line – O que o senhor definiriacomo problema principal da conjunturaeconômica e política atual no Brasil?Reinaldo Gonçalves – O governo Lula é umatragédia moral, política, social e econômica. Nessequadro, é difícil destacar o principal problema.Podemos mencionar alguns segundo a esfera es-pecífica. A tragédia moral está claramente docu-mentada no relatório da CPI dos Correios. A tragé-dia política se expressa na base política do gover-no fora e dentro das instituições, inclusive, com oapoio dos rentistas e banqueiros cujos lucros sãoabusivos. A tragédia social é evidente com a de-gradação crescente do tecido social, com menosserviços de utilidade pública, mais violência e me-nos esperança. A tragédia econômica tem váriasfaces e uma delas é o péssimo crescimento darenda. Em mais de 100 anos de história econô-mica do Brasil, somente no governo Collor, oPaís teve um crescimento relativo (comparativa-mente ao resto do mundo) tão ruim quanto o dogoverno Lula. O Brasil de Lula está andando

para trás, está cada dia mais atrasado, subdesen-volvido. Enquanto isso, o filho de Lula, o Lulinha,ganha “rios de dinheiro”. Voltamos, então, à tra-gédia moral.

IHU On-Line – O senhor tem um artigo so-bre a análise das esquerdas intituladoEnterremos Lula e, sem compaixão, deixe-

mos o PT chorar os seus mortos. O senhor jáfoi filiado ao PT e hoje não é mais. Está de-cepcionado com o partido? O que seria “en-terrar” Lula e deixar o PT chorar?Reinaldo Gonçalves – Não estou decepcionadonem desiludido. Entre 1999 e 2002, convenci-mede que o PT era dominado por um grupo dirigentedesprovido de um projeto para o País. Eles só ti-nham um mesquinho projeto de poder. E, portan-to, “enterrar” Lula significa derrotá-lo nas próxi-mas eleições. O governo de Lula tem representa-do não somente a derrota do povo brasileiro dian-te do neoliberalismo, mas também a humilhação.

IHU On-Line – O que houve com a esquerdabrasileira? Isso é um fenômeno mundial?Reinaldo Gonçalves – Metade dos canalhas éde direita, a outra metade é de esquerda. Isso seaplica à esquerda brasileira. A esquerda brasileiratem a sua própria “canalhocracia”, que apóia osdonos do poder e pensa com o bolso. Em com-pensação, temos em parte da esquerda brasileiraum conjunto expressivo de homens e mulheresque não agem segundo ânsias de glória, riqueza,poder e luxúria. O fato é que o PT e seus dirigentesdecidiram seguir a “linha de menor resistência” eda pusilanimidade, além, naturalmente, de tentarrealizar suas ânsias.

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IHU On-Line – Esta é a primeira eleição emque a elite está tranqüila porque os doisprincipais candidatos são francamentepró-mercado. O que se pode prever com avitória de um ou do outro?Reinaldo Gonçalves – É a banalização da me-diocridade. É o que denominei em um dos meuslivros, a “africanização” do País, ou seja, desesta-bilização macroeconômica, esgarçamento do teci-do social, degradação política e institucional.

IHU On-Line – O deputado e ex-ministro doPlanejamento Delfim Netto (PMDB-SP) pre-viu que Guido Mantega seria um ministroda Fazenda “completo, que não veio paratapar buraco” após a saída de Antonio Pa-locci. O que senhor acha disso?Reinaldo Gonçalves – Nada. Tenho “respeitoqualificado” por esse cidadão, que está sempreagradando aos que estão no poder.

IHU On-Line – O governo francês está so-frendo com as milhares de manifestaçõesestudantis devido ao polêmico contrato deemprego para jovens. Quais são os princi-pais problemas no mundo do trabalho? NoBrasil, como avalia as políticas trabalhistasdo governo que está encerrando?Reinaldo Gonçalves – O governo Lula não tempolítica para o mundo do trabalho. E o neopele-guismo da CUT é uma expressão desse fato. ACUT é uma central sindical desfibrada, invertebra-da, uma vergonha para o trabalhador.

IHU On-Line – A crise do capitalismo seaguçou nos últimos anos? Que alternativastemos?Reinaldo Gonçalves – Temos que escolher gru-pos dirigentes que, apesar das prebendas e daspressões, têm se mantido coerentes nesses últimosanos. Refiro-me a dirigentes no campo democráti-co e popular. E, ademais, o povo precisa sair des-sa apatia e cobrar coerência, dignidade e respon-sabilidade dos homens públicos. Daí, o “Lulanunca mais”.

IHU On-Line – A Alca morreu, está agoni-zando? Que acordos bilaterais ou multilate-rais seriam necessários? Há alguma possi-bilidade de construir o eixo Brasil-Venezue-la-Bolívia?Reinaldo Gonçalves – O Brasil deveria evitartodo e qualquer esquema plurilateral e concentrarsua política externa em esquemas bilaterais, isto é,Venezuela, Bolívia, Argentina, Estados Unidos,China e todos os que passam em testes de “cus-to/benefício".

IHU On-Line – Para a América Latina, quaisas perspectivas econômicas e sociais quepodemos esperar, considerando que haveráeleições em vários países neste ano e queforam candidatos de esquerda que assumi-ram o poder em países, como Bolívia, Uru-guai etc.?Reinaldo Gonçalves – Imprevisibilidade é o fa-tor marcante. Se formos tomar Lula como exem-plo, esses novos dirigentes latino-americanos re-presentaram não somente a derrota como a humi-lhação do povo.

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“O ponto de partida é definir o novo projeto nacional”

Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio Jr.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor doInstituto de Economia da Universidade de Campi-nas (Unicamp), co-editor do Correio da Cidadaniae membro dos conselhos editoriais da Revista dosSem-Terra e do jornal Brasil de Fato. Também in-tegra o Diretório Nacional do PT. É autor do livroEntre a Nação e a Barbárie. Petrópolis: Vozes,1999, no qual sustenta que, ao manter-se em umaposição de dependência em relação aos paísescentrais, o Brasil não se construirá como nação,caminhando para uma situação de crise social e debarbárie. Plínio de Arruda Sampaio Jr. concedeuduas entrevista à IHU On-Line, uma no dia 13 deoutubro de 2003 na qual defende um modelo dedesenvolvimento com bases políticas voltado paraos interesses nacionais, e a outra entrevista, con-cedida no dia 24 de abril de 2006, com o títuloO governo Lula está entregue de corpo e alma àordem neoliberal, na qual sustenta que “o gover-no Lula continuou e aprofundou as políticas neoli-berais de seu antecessor”.

IHU On-Line – No artigo que o senhor escre-veu para a revista Reportagem, (publicadona edição de setembro, intitulado Desen-

volvimento não é apenas crescimento), o se-nhor afirmou que o problema do desenvolvi-mento não é técnico, mas político. Que me-didas o governo poderia tomar que expres-sassem essa vontade política e enfrentas-sem os obstáculos técnicos?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Os obstáculostécnicos que temos hoje são, de maneira emble-mática, a dívida externa e a dívida interna. É estadinâmica de funcionamento da economia brasilei-ra em função dos pagamentos dos serviços dessas

dívidas, que amarra a economia brasileira. Parapoder desobstruir o caminho para o crescimento epara o desenvolvimento temos que enfrentar osinteresses externos e internos que sustentam essasdívidas. Teríamos que redefinir a nossa relaçãocom a comunidade financeira internacional, redefi-nir a relação com os grandes rentistas do País. Esseseria o nó górdio que deveria ser rompido a fim deabrirmos horizontes para a economia brasileira.

O que não queremos?O que queremos?

IHU On-Line – Feito isso, como se desenha-ria o desenvolvimento que o senhor defende?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Para superar-mos o neoliberalismo e organizarmos a economiabrasileira em função dos interesses dos brasileiros,nós temos que saber o que não queremos e o quequeremos. Não queremos uma economia quefunciona em função da lógica do grande capital fi-nanceiro. O que, porém, desejamos pôr no lugardo neoliberalismo? O ponto de partida é definir onovo projeto nacional. Hoje, a economia brasilei-ra funciona em função de duas lógicas: a dos ne-gócios do grande capital financeiro e a da moder-nização dos padrões de consumo. A economiabrasileira está organizada para perseguir os estilosde vida dos países centrais. Esse é o projeto queestá em curso. Para termos outro padrão de de-senvolvimento, precisaríamos de outra agenda,outras prioridades: a terra, o teto, o trabalho e asoberania nacional, ou seja, a reforma agrária, areforma urbana, uma política de pleno emprego euma política organizada em função dos interesses

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nacionais. Isso exige um movimento político deformação de uma nova opinião pública no País.Não acho que tenhamos, no curto prazo, condi-ções políticas para fazer uma guinada desta mag-nitude, mas é importante que comecemos a acu-mular para que ela possa ser feita.

Política externa frágil

IHU On-Line – Os movimentos do governono cenário internacional estariam começan-do a desenhar o esboço de uma soberanianacional?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Sinceramente,a política externa do governo Lula é ambígua efrágil. É ambígua porque, nos fóruns internacio-nais, o nosso governo está pedindo coerência aosneoliberais. Deseja que todos sejam mais neolibe-rais. Essa é uma política que, no médio e no longoprazo, é mortal para o Brasil, pois não temos con-dição de competir nos mercados internacionais. Éuma política muito frágil. É impossível termosuma política externa autônoma, sendo um paíscompletamente dependente dos capitais interna-cionais. Essa política é uma espécie de bravata.

IHU On-Line – A implantação de uma políti-ca de pleno emprego exige o enfrentamentoda desestruturação das relações tradicionaisde trabalho e da erosão de uma base socialque contribuiu para a vitória do atual gover-no, por meio do PT. O sociólogo Franciscode Oliveira tem chamado a atenção para oúltimo ponto, especialmente. Que políticaspoderiam ser desenvolvidas para enfrentaressas transformações?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Do ponto devista técnico, a política para gerar emprego é rela-tivamente simples. É preciso fazer a reforma agrá-ria e reduzir a jornada de trabalho, para socializaros empregos existentes. É preciso uma forte inter-venção do Estado, criando empregos na área dosserviços públicos. Chico de Oliveira tem destaca-do a falta de atores sociais para a viabilização depolíticas com este grau de radicalidade, que é anecessária para enfrentarmos os problemas pela

raiz, pois a base de organização da classe operáriaacumulada nos últimos trinta anos, tanto no planopartidário quanto no sindical, está sendo coopta-da pelo status quo. A esquerda vive um momentobem delicado, que exige a refundação de instru-mentos políticos para termos eficácia na luta polí-tica. Precisamos construir os atores capazes de fa-zer isso, começando por gerar empregos.

PT: solução neoliberal para a crisedo neoliberalismo

IHU On-Line – O partido que lidera o gover-no pode se firmar como um partido transfor-mador ou será necessário gerar um novoinstrumento?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Acho que, se oPT não resgatar os seus compromissos históricos,portanto protagonizando uma reviravolta dos seusúltimos movimentos, só um novo instrumento po-lítico seria capaz de estar à altura dos desafios queestão postos pela nova conjuntura histórica. Talcomo está no governo, o partido procura dar umasolução neoliberal para a crise do neoliberalismo.Na verdade, o governo Lula está procurando im-por o seu movimento ao partido, está procurandoenquadrar o partido nessa trajetória. Se ele forbem sucedido nesse esforço, o Partido dos Traba-lhadores não será mais um partido de luta. Masesta é uma questão que ainda está em disputa.

IHU On-Line – Francisco de Oliveira temdito com insistência que está surgindo umanova classe social e refere-se à atuação da-nosa de representantes dos trabalhadoresnos fundos de pensões, nos quais eles esta-riam atuando como administradores de prá-ticas capitalistas que geram desemprego. Osenhor acha que está surgindo uma novaclasse social?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – O Brasil estápassando por grandes transformações, na bur-guesia e na classe operária. A burguesia, que ti-nha a sua força lastreada na indústria, subdesen-volvida, mas com um parque industrial forte,passa a assumir negócios de intermediação de

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papel, como a compra e a venda de mercadoriasno comércio internacional, a compra e a vendade patrimônio nacional, público e privado. Esta éuma burguesia muito mais frágil. Também esta-mos assistindo a muitas mudanças na classe ope-rária, que enfrenta uma precarização do trabalhoe se torna heterogênea. E há este fenômeno de-tectado pelo Chico, que eu interpreto como sen-do uma espécie de neopeleguismo. Uma parte daburocracia dos sindicatos mais avançados foi co-optada pelo sistema, nos fundos de pensão. Osdirigentes sindicais passaram a integrar o Estadoonde, como sócios menores, mas estratégicos,passam a impedir que a classe operária influencieo rumo da política.

Um movimento estratégico: aprofunda-mento do neoliberalismo

IHU On-Line – Essas novas característicasde parte dos dirigentes sindicais e os movi-mentos ortodoxos do governo não podemser vistos como preliminares necessárias deum projeto de desenvolvimento nacional,considerando o cenário internacional?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Essa é umaboa pergunta. O Presidente tem insistido nisso,tem pedido paciência, dizendo que esses são mo-vimentos táticos, não são movimentos estratégi-cos. No entanto, eu não leio os movimentos dogoverno como táticos, eu os leio como estratégi-cos. Explico: nós enfrentamos uma grave crise e,quando isso ocorre, a sociedade discute como sairdela, que solução dar à crise. Isso significa comodistribuir o ônus dessa crise e como definir quemvai ganhar com os novos horizontes de expansãoda economia. A cara do País define-se no mo-mento da crise. O mais grave, por exemplo, na po-lítica econômica do governo, não é o exagero doaperto fiscal, que jogou a economia numa brutalrecessão. O mais grave é a natureza das reformasque estão sendo propostas. Elas sinalizam na dire-ção de um aprofundamento do neoliberalismo.Qual é a estratégia? É ganhar a consciência dosbanqueiros, para ver se, com isso, consegue-se aentrada de recursos necessários para reciclar a dí-

vida externa e dar um novo fôlego para o modeloneoliberal. É isso que nós criticamos.

IHU On-Line – Mas não há uma semelhançaentre os ajustes atuais e a política desenvol-vida por Celso Furtado, no começo do gover-no João Goulart, com o seu Plano Trienal?Ele não sofreu críticas semelhantes às suas?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Sim, foram se-melhantes, mas injustas. Há uma semelhança e háuma diferença. Qual é a semelhança? Os dois go-vernos assumiram a necessidade de fazer umagestão econômica num contexto muito adverso,com uma correlação de forças inadequada. Por-tanto, tiveram de fazer uma política ortodoxa deadministração da crise. A diferença é que o Furta-do fazia essa política para ganhar tempo e depoissinalizar à esquerda, para as reformas de base, en-quanto Lula está ganhando tempo para fazer re-formas neoliberais, para uma saída à direita.

IHU On-Line – O enfrentamento dos proble-mas básicos para o desenvolvimento nacio-nal mencionados pelo senhor, como asquestões da terra, do teto, do trabalho e dasoberania, se enquadram nos marcos do de-senvolvimento capitalista. O senhor traba-lha com a idéia de uma via sociodemocratapara o desenvolvimento ou acredita que osocialismo detém ainda o poder de transfor-mação que o inspirou?Plínio de Arruda Sampaio Jr. – Vou ser bemhonesto intelectualmente: eu acho que nós não te-mos capacidade de dar uma solução para os pro-blemas do Brasil nos marcos do capitalismo. Umamudança dessa envergadura, enfrentando os pro-blemas referidos, é algo que só pode se dar nocontexto de uma transformação muito radical nasociedade. Enquanto o núcleo da economia mun-dial for controlado por nações capitalistas, quemestá na periferia do sistema não tem nenhuma al-ternativa de sobrevivência sem estruturar o estadonacional, que é um instrumento burguês. As mu-danças, porém, deveriam ter o protagonismo dostrabalhadores, e não se restringiriam essas mu-danças aos marcos burgueses. Aí, teríamos umasituação tipicamente socialista.

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“O governo Lula está entregue de cor-po e alma à ordem neoliberal”

IHU On-Line – Levando em consideração odocumento Agenda Interditada – Uma Alter-

nativa de Prosperidade para o Brasil, houvea esperada guinada na política econômicabrasileira ou continuamos num beco semsaída?Plínio Arruda Sampaio Jr. – No início, o go-verno Lula justificou a continuidade da políticaeconômica sob o argumento de que não se pode-ria dar “cavalo de pau” num porta-aviões. O altocomando petista pedia paciência. Todos reafirma-vam o compromisso de realizar mudanças, masressaltavam que, para evitar aventuras, elas preci-sariam ser graduais. Não foi o que ocorreu. Naverdade, não havia a menor disposição de mu-dança. O governo Lula continuou e aprofundouas políticas neoliberais de seu antecessor. Isso ficaclaro não apenas na orientação ortodoxa da polí-tica macroeconômica e na implementação deuma agenda de reformas reacionárias, ditada peloFMI e pelo Banco Mundial, mas também no cará-ter da política social, baseada em medidas com-pensatórias, na natureza de sua política de meioambiente, subordinada às exigências do agrobusi-ness, na política indigenista, sempre relegada aum papel residual e compensatório etc. Enfim, portodos os ângulos em que se observe o governoLula, encontraremos uma “continuidade sem con-tinuísmo”, para utilizar o slogan de seu adversáriode campanha em 2002.

IHU On-Line – O governo Lula abriu-se aodebate solicitado pela Agenda Interditada?Plínio Arruda Sampaio Jr. – Existia uma gran-de expectativa de que o governo Lula propiciassemaior abertura no debate sobre os rumos da polí-tica econômica. Apesar de seu conservadorismo,muitos imaginavam que o governo federal que-braria o monopólio absoluto da agenda liberal.Acreditavam que a marginalização dos postos decomando seria assim como uma espécie de prê-mio de consolação, compensada com recursospara a pesquisa. No entanto, nada mudou. Os re-cursos continuaram canalizados para os centros

de investigação controlados pelos conservadores.A mediocridade e o conservadorismo da produ-ção do IPEA no último triênio é uma prova cabalde que não houve o menor interesse em fomentarum debate qualificado sobre o futuro do Brasil.Tal fato só tem uma explicação: o governo Lulaestá entregue de corpo e alma à ordem neoliberal.O “medo pânico” em relação a qualquer atitudeque pudesse abalar a “confiança” da comunidadeeconômica internacional levou-o a reforçar a in-terdição do debate econômico. Após o governoLula, o senso comum de que não há alternativa depolítica econômica viável ao neoliberalismo ficouainda mais forte.

IHU On-Line – Por que a saída de Paloccinão representa uma mudança substancialem nossa economia?Plínio Arruda Sampaio Jr. – Muitos acredita-ram na idéia de que o governo Lula estava em dis-puta. Confundindo a luta pela ocupação de espa-ço nos aparelhos de Estado com a defesa de pro-jetos políticos distintos, alguns chegaram a identi-ficar uma polarização entre supostos desenvolvi-mentistas, liderados por José Dirceu, e convictosmonetaristas, capitaneados por Palocci. Nadacomo um dia após o outro para desfazer ilusões.Varrido por uma enxurrada de escândalos, Paloccipassou, e a política econômica permaneceu incó-lume. Ninguém pode ter qualquer dúvida. O ver-dadeiro fiador da política econômica neoliberal éo próprio Lula. Tanto Dirceu como Palocci nãopassavam de operadores da política de Lula.

IHU On-Line – Em caso de reeleição, acredi-ta que a política econômica de Lula sejamantida? Se for, quais seriam as conse-qüências para o desenvolvimento do Brasil?Plínio Arruda Sampaio Jr. – A opção de Lulapelo neoliberalismo é estratégica e não tática. Naeventualidade de um segundo mandato, não te-nho dúvida de que não haverá grandes surpresasna política econômica. Podem ocorrer mudançaspontuais e, dependendo da conjuntura internacio-nal, uma atenuação do draconiano ajuste mone-tário e fiscal imposto ao povo brasileiro, mas nãoacredito que exista a menor possibilidade de uma

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mudança qualitativa de rumo. Os eixos funda-mentais da política econômica – abrir oportunida-des de negócios para o grande capital; gerar me-gassuperávits comerciais para pagar a dívida ex-terna; e produzir gigantescos superávits fiscaispara alimentar os rentistas do Estado – permane-cerão os mesmos. As conseqüências desta políticapara o Brasil são dramáticas. Ao desarticular o sis-tema econômico nacional, aumentar o desempre-go e a precarização das relações de trabalho, in-tensificar a desnacionalização da economia, acir-rar a crise federativa que ameaça a própria unida-de nacional, desmantelar os centros internos dedecisões e intensificar o mimetismo cultural, o neo-liberalismo desencadeia um processo de reversãoneocolonial que coloca em risco a própria sobrevi-vência do Brasil como sociedade nacional.

IHU On-Line – Como podemos entender aposição do governo Lula em relação ao FMI?É possível fazer alguma comparação com asrelações que outros governos mantêm como FMI, como a Argentina, por exemplo?Plínio Arruda Sampaio Jr. – O grau de subor-dinação do governo Lula em relação ao FMI sur-preendeu até os seus mais severos críticos. Issofica patente logo no início da administração quan-do, antecipando-se ao Fundo, Palocci comprome-teu-se com a realização de um superávit fiscal he-róico, muito superior ao que o próprio Fundo pe-diria. E fica evidente também na antecipação dopagamento da dívida com o Fundo – medida quesó beneficiou o próprio Fundo. A incapacidade dedefender os interesses nacionais diante do Fundofica ainda mais evidente quando comparamos ostermos do acordo obtido pelo Brasil e o consegui-do pela Argentina. Mesmo em condições de altís-sima vulnerabilidade externa e precária estabilida-de política, o governo Kirshner obteve melhorescondições em todos os quesitos do acordo.

IHU On-Line – Como entende a conduçãoda questão agrária pelo governo atual?Plínio Arruda Sampaio Jr. – A atuação do go-verno Lula na questão agrária é um vexame. Lulaconseguiu ser pior do que FHC. É uma façanha.Quem diz isso são os próprios sem-terras. Acaba

de sair uma publicação da Associação Brasileirade Reforma Agrária (ABRA) que corrobora as críti-cas dos sem-terras. Fica claro que falta ao governoLula “vontade política” para fazer uma verdadeirareforma agrária. Pior ainda. Ao fazer uma opçãopreferencial pelo “agronegócio”, o governo Lulacomeçou a remontar uma economia de tipo colo-nial, isto é, voltada para o atendimento do merca-do internacional, baseada em grandes proprieda-des, monocultura, mão-de-obra barata e depre-dação do meio ambiente. Em outras palavras, ogoverno Lula está fazendo o oposto de uma refor-ma agrária, está priorizando o latifúndio e as gran-des corporações que controlam os negócios quecaracterizam a agricultura capitalista contemporâ-nea. Sua política agrária é enxugar gelo. Nãomexe nas estruturas responsáveis pela pobreza nocampo. Ao contrário, tende a agravá-la.

IHU On-Line – Em relação às reformas pro-postas por Lula, quais são seus pontos posi-tivos e negativos?Plínio Arruda Sampaio Jr. – As reformas im-plementadas pelo governo Lula não possuem as-pectos positivos. Elas não foram feitas para ampliaro direito dos trabalhadores e aumentar a autono-mia do Estado nacional, mas justamente o contrá-rio. O aprofundamento das reformas liberais aten-de aos interesses do grande capital internacional,dos organismos financeiros internacionais e doEstado norte-americano. A reforma da Previdên-cia foi feita basicamente para gerar um grande ne-gócio para o capital financeiro. A reforma univer-sitária não apenas incentiva a mercantilização e aprivatização do ensino superior como tambémabre brechas para a sua internacionalização. Asmedidas tomadas para aumentar a autonomia doBanco Central significam uma usurpação do po-der da sociedade brasileira decidir sobre questõesmonetárias. A parceria público-privada é, por as-sim dizer, uma nova modalidade de privatização.

IHU On-Line – Há alternativas para a Améri-ca Latina fugir do totalitarismo do merca-do? Quais seriam?Plínio Arruda Sampaio Jr. – A história nãoacabou. Cuba é um exemplo vivo de que nem to-

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dos sucumbiram ao neoliberalismo. Com tudoque Cuba passou na década de 1990 e que conti-nua passando em razão do cerco econômico im-posto pelos Estados Unidos, a taxa de mortalida-de infantil é cerca de seis vezes inferior à brasileirae a expectativa de vida do cubano uns cinco anosa mais. Fica claro, portanto, que existem alternati-vas. O problema é que, para alcançar uma organi-zação alternativa da economia e da sociedade, épreciso fazer uma ruptura profunda com a ordemvigente. Sem rupturas profundas com o capital fi-nanceiro internacional, sem uma mudança quali-tativa na estrutura de prioridade da sociedadebrasileira, é impossível enfrentar o problema dapobreza, da desigualdade social, da falta de auto-nomia do Estado nacional. Não acredito que talmovimento possa ser feito sem colocar em ques-tão a própria ordem capitalista.

IHU On-Line – Quais são as perspectivaseconômicas que se pode aguardar dos no-vos governos da América Latina, como o deEvo Morales, o de Bachelet, o de Vázquez?Plínio Arruda Sampaio Jr. – Os últimos anosrevelam que o povo latino-americano busca de-sesperadamente sair do neoliberalismo do qualnão é fácil sair. O governo de Hugo Chávez, naVenezuela, é o que tem levado a ruptura com a or-

dem global mais longe, mas ainda lhe resta umlongo caminho a percorrer para consolidar umatrajetória alternativa. O governo de Bachelet, noChile, está perfeitamente enquadrado no neolibe-ralismo. Bachelet só pode ser entendida como umgoverno de esquerda, se estivermos falando da es-querda do modelo econômico imposto pelo gene-ral Pinochet. Os socialistas chilenos são a esquer-da no “pinochetismo”. Nada mais do que isso. Ogoverno Evo Morales, na Bolívia, é uma esperan-ça. Se o movimento indígena e popular continuarmobilizado nas ruas, exigindo reformas a favor dopovo, a Bolívia vai abrir uma nova frente de lutacontra a ordem global.

IHU On-Line – É possível darmos o atestadode óbito à Alca ou ela ainda pode surgir deoutras formas?Plínio Arruda Sampaio Jr. – A Alca expressa oprojeto de dominação imperial dos Estados Uni-dos na América Latina. Sua implantação repre-sentaria uma mudança de qualidade no processode reversão neocolonial em curso. A Alca, talcomo originalmente proposta, pode ter perdidofôlego, mas não está morta. A Alca só deixará deser uma ameaça no dia em que os povos lati-no-americanos que se levantam contra o projetode reversão neocolonial, forem vitoriosos.

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“Devemos passar do financeirismo ao produtivismo”

Entrevista com Ricardo Ffrench-Davis

Ricardo Ffrench-Davis é doutor e mestre emEconomia pela Universidade de Chicago e enge-nheiro comercial titulado pela Universidade Cató-lica do Chile.

Em 2005, recebeu o Prêmio Nacional de Hu-manidades e Ciências Sociais do Chile. Atua comoassessor regional principal da Comissão Econômi-ca para a América Latina e Caribe (CEPAL) e comoprofessor de Economia no Instituto de EstudosInternacionais e da Faculdade de Economia naUniversidade do Chile. Foi diretor de estudos eeconomista chefe do Banco Central do Chile, alémde professor pesquisador nas Universidades deOxford e de Boston e em institutos da Espanha,França, Itália e Suécia. Na Corporação de Investiga-ções Econômicas para a América Latina (CIEPLAN),com sede em Santiago, foi diretor, vice-presidentee pesquisador. É membro do Conselho de PolíticaExterior do Chile. Desde 2002, é co-diretor com oprofessor Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Econo-mia, de um grupo internacional sobre Macroeco-nomia para o Desenvolvimento.

Escreveu centenas de artigos técnicos, publi-cados em oito idiomas e em mais de vinte países.Seus livros mais recentes são: Reformas para

América Latina. Buenos Aires: Siglo XXI Edito-res, 2005, Para reformar las reformas en Amé-

rica Latina: macroeconomía, comercio, fi-

nanzas. Santiago de Chile: McGraw Hill, CEPAL,1999, Entre el neoliberalismo y el creci-

miento con equidad en Chile. Buenos Aires,Siglo XXI Editores, 2004, e é um dos organizado-res da obra Os fluxos financeiros na América

Latina – um desafio ao progresso. Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1997. A entrevista a seguir foiconcedida à IHU On-Line, por telefone, no dia17 de abril de 2006.

IHU On-Line – Quais os pontos fortes e quaisos pontos fracos do novo governo do Chile?Ricardo Ffrench Davis – É muito interessanteque o Chile tenha uma presidenta mulher, é umelemento novo que faz parte da modernização,um reconhecimento à significação do gênero. Esteé um novo governo, depois de três governos da“concertação”, nos quais tem havido um desen-volvimento econômico importante, com uma no-tável diferença de crescimento médio nos 16 anosda “concertação”, em que o crescimento é de 5,6 %por ano, versus um crescimento de só 2,9 % nos16 anos da ditadura do Pinochet, ambos são 16anos, é muito interessante, ou seja, uma diferençanotável, com uma distribuição de renda que na di-tadura tinha determinado/worsened enormemen-te e na “concertação”, do governo democrático,tem melhorado levemente, mas a distribuição derenda ainda deve melhorar. Michelle Bachelet temfeito fortes pronunciamentos sobre a igualdade,sobre combater a desigualdade nas suas distintasexpressões: no gênero, na distribuição de renda,na participação, na educação, na saúde, que hádiferenças de acesso para os diversos setores so-ciais, apesar das melhorias que têm havido nesses16 anos da “concertação”. É necessário ainda fa-zer correções, mais correções ao modelo econô-mico que a democracia herdou da ditadura. De-vemos passar de um enfoque que tem ingredien-tes neoliberais a um enfoque com ingredientes decrescimento com eqüidade, e isso passa pelo apo-io à pequena e média empresa, que ela tenhaacesso ao mercado de capitais e no campo da ma-croeconomia a ênfase é de passar com maior in-tensidade de uma macroeconomia, que se preo-cupa com a inflação e com a responsabilidade fis-cal, a uma macroeconomia, que também se preo-

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cupa fortemente que os empresários não tenhamque se defrontar com acelerações e freadas muitointensas. Essas aceleradas e freadas têm estado nocerne das crises financeiras que tem sofrido aAmérica Latina e na crise que o Chile enfrentou de1998 a 2003. É uma correção que passa da ma-croeconomia neoliberal a uma macroeconomiapara o desenvolvimento produtivo.

IHU On-Line – Podemos esperar mudançasreais na política econômica dos governosde esquerda que assumiram ou assumirão opoder na América Latina?Ricardo Ffrench-Davis – Estamos em um mo-mento maduro para fazer correções. Minha idéianão é começar do zero, é reformar a reforma, re-formar coisas que estão mal feitas. A América Lati-na, de 1990 a 2005, cresceu apenas 2,7% porano. É um fracasso. Hoje temos 13 milhões de po-bres a mais que em 1990. Devíamos ter reduzidofortemente a pobreza. Estamos investindo poucoprodutivamente. Fizemos reformas privatizado-ras, e o setor privado não nos responde investin-do. Acredito que chegamos a essa situação por-que houve falhas muito graves na reforma quenão foram amigáveis com os investidores produti-vos. As reformas foram amigáveis com os especu-ladores, mas não com investidores produtivos,com os inovadores, com os modernizadores. De-vemos passar do financeirismo ao produtivismo.

IHU On-Line – Quais seriam os pontos es-tratégicos que teríamos que corrigir?Ricardo Ffrench-Davis – Acredito que o pri-meiro é o comércio internacional, o segundo, asreformas financeiras internas e nossa conexão fi-nanceira com o exterior, e para a maneira de fazera macroeconomia, nesses três terrenos, nós temospropostas. Foram liberalizadas as exportações enão fizemos o esforço de melhorar a qualidadedas exportações. Esse esforço deve ser feito. Otipo de câmbio foi deixado à mercê do fluxo docapital, que é muito instável. Isso é péssimo para odesenvolvimento produtivo, para a qualidade das

exportações e para exportações com valor agrega-do. Temos que passar a uma política cambiáriaadministrada pela autoridade econômica, se qui-sermos ter desenvolvimento produtivo. É umamensagem que vale para o Brasil, para o Chile epara outros países. O dólar vai baixando e casti-gam-nos os exportadores com valores agregados,ficamos exportando recursos naturais, e isso nãodá emprego produtivo, não dá eqüidade nem ino-vação tecnológica.

IHU On-Line – Quais as mudanças no siste-ma financeiro que o senhor propõe?Ricardo Ffrench-Davis – Toda a América Lati-na tem desenvolvido o overnight17. O desenvolvi-mento produtivo não se faz com overnight, isso éum desenvolvimento financeirista. Isso significareforma do mercado de capitais que a institucio-nalidade cria para longo prazo, com preferênciapara a pequena e média empresa. Se deixarmos aeconomia totalmente aberta aos fluxos de capitais,seremos dominados pelas crises financeiras, oauge de 1996-97, a queda de 98-2003, o auge de2004. No futuro, continuarão as aceleradas e frea-das nos mercados financeiros das economiasemergentes como as latino-americanas.

IHU On-Line – Como fica a política diantede uma economia tão aberta aos fluxosfinanceiros?Ricardo Ffrench-Davis – Isso é profundamentepreocupante para a democracia. A democraciasente que a economia neoliberal é dólar, contaquem tem mais dólares e não as pessoas. Há umacontradição profunda entre uma visão economi-cista e uma visão democrática. Não basta uma po-lítica econômica que constitua iniqüidade. Porisso, podemos afirmar que não há uma economia,há várias economias: uma neoliberal, outra algoneoliberal, outras que privilegiam muito fortemen-te o crescimento com eqüidade. No mundo, omercado estadunidense não é igual ao canaden-se, que não é igual ao francês, que não é igual aosuíço ou que não é igual ao sueco, há variantes.

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17 Overnight: Depósito interbancário vigente do dia da negociação até o dia seguinte, ou, nos fins de semana, de sexta parasegunda-feira. (Nota da IHU On-Line)

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Não podem dizer que há um só caminho na eco-nomia, é o que nos diz o Fundo Monetário Inter-nacional. Há opções. Devemos gastar nossa inteli-gência e vontade política em optar por crescercom eqüidade e sair das receitas neoliberais quedizem que devemos ter um câmbio livre, os capi-tais abertos totalmente, e o Estado deve ser neu-tro. Não! A sociedade deve escolher seu caminho.Economia de mercado sim, não há opção. Masque a economia de mercado devemos escolher?Democracia é optar.

IHU On-Line – Como vê integrações regio-nais como o Mercosul?Ricardo Ffrench-Davis – Eu sou um entusiasta dainiciativa do Mercosul, apesar dos muitos proble-mas. São muito importantes para a América Latinaos esforços de integração regional. Acho que as ali-

anças devem caminhar mais na direção de construiruma globalização integradora. A atual é uma globa-lização que conspira contra a democracia.

IHU On-Line – Não acha que há uma contra-dição, no caso do Chile, em ter acordoscom os EUA e estar inserido no Mercosul aomesmo tempo?Ricardo Ffrench-Davis – Eu vejo que há espa-ços para coexistências importantes, e o Chile játem isso e sobre isso tem que construir. A coopera-ção regional na América Latina deve ser mais bemimpulsionada em diversos âmbitos: comercial,macroeconômico, de transporte, normatização docomércio. Ainda há dificuldades para que che-guem alguns produtos do Brasil ao Chile por terra,por exemplo. Isso já deveria estar resolvido. Te-mos uma tarefa intensa que deve ser feita

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O desafio da esquerda: articular os valores democráticoscom a tradição estatista-desenvolvimentista

Entrevista com Daniel Aarão Reis Filho

Daniel Aarão Reis Filho é professor da Univer-sidade Federal Fluminense (UFF). Daniel é gradua-do e mestre em História pela Université de Paris VII,da França, e é doutor em História Social pela USP,tendo sua tese o título As organizações comunistase a luta de classes no Brasil – 1961-1968. Fez li-vre-docência na UFF, e sua monografia intitu-lou-se A crise dos projetos socialistas contemporâ-neos – a social-democracia e o socialismo soviéti-co. Daniel Aarão Reis Filho ainda obteve doispós-doutorados, sendo um pela Ecole des HautesEtudes en Sciences Sociales, em Paris, na França,e outro pela Université de Paris VIII, também naFrança. É autor de Ditadura Militar, esquer-das e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000;As revoluções russas e o socialismo soviéti-co. São Paulo: Editora da UNESP, 2004. A entre-vista a seguir foi concedida à IHU On-Line no dia1º de agosto de 2005.

IHU On-Line – A partir de um determinadolegado getulista, como é possível a socieda-de brasileira avançar, refletindo sobre esselegado?Daniel Aarão Reis Filho – Em primeiro lugar,em relação ao legado, Getúlio Vargas representaum conjunto de tradições, como o projeto nacio-nal desenvolvimentista, o projeto de afirmar econstruir o Brasil. Há muitos que dizem que o Bra-sil foi inventado a partir de 1930, talvez seja umcerto exagero, mas, sem dúvida, a partir de 1930e, sobretudo durante o Estado Novo, entre 1937 e1945, e mais uma vez depois no governo demo-crático de Getúlio, houve um investimento muitoconsistente na construção do estado nacional bra-

sileiro. Foi todo um investimento na defesa da suaautonomia, da sua afirmação. Getúlio tem a vercom essa afirmação nacional do Brasil, que tevemúltiplos aspectos. Não foi só o desenvolvimentoeconômico, mas também a afirmação de uma cul-tura nacional. Houve todo um investimento no rá-dio, no teatro, no patrimônio histórico nacional,no mito das três raças. Investiu-se na defesa do es-tado nacional e na defesa do Brasil como país, nainstauração da auto-estima do brasileiro, orgulho-so de sua nacionalidade. As ações vão muito alémdo desenvolvimento econômico, que também,naturalmente, foi bastante afirmado. As grandescompanhias estatais no mundo da economia, comoa Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do RioDoce e a Petrobras – duas delas foram recente-mente privatizadas –, durante muitos anos foramum símbolo da busca da autonomia desenvolvi-mentista. Então há essa tradição do desenvolvi-mento econômico do estado nacional, do Brasilcomo país. Há a integração dos trabalhadores,como cidadãos, à legislação trabalhista. O símbo-lo disso é a Consolidação das Leis do Trabalho e,sobretudo no governo de 1950 a 1954, houve uminvestimento, que começou a partir de 1943, namobilização e organização dos trabalhadores ur-banos. A tradição getulista não alcançou o campo,embora no segundo governo, de 1950 a 1954,Vargas tenha começado a querer integrar a di-mensão agrária, com a modificação das relaçõesde trabalho no campo. Mas o peso, a força da tra-dição, foi mais consubstanciado na legislação tra-balhista. Esse também é um aspecto muito impor-tante da tradição varguista. Finalmente mencio-no, como projeção de tudo isso, o aparecimento

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do Brasil na cena internacional, com um estilopróprio, tentando dialogar de igual para igual comas grandes potências do momento. Vargas procu-rou brechas nas rivalidades dessas potências parafazer valer o interesse nacional. Ele também bus-cou uma dimensão em que o Brasil poderia se si-tuar internacionalmente em uma experiência sin-gular, que pudesse desempenhar algum tipo de li-derança naquilo que, depois da Segunda GuerraMundial, foi se chamar de Terceiro Mundo. Te-mos aí tradições muito fortes, que têm a ver com amodernização do Brasil.

IHU On-Line – Como a característica autori-tária presente no governo Vargas se con-fronta com o sonho de democracia do povobrasileiro?Daniel Aarão Reis Filho – Existem aspectosque nem sempre os admiradores de Getúlio gos-tam de lembrar, mas que é preciso lembrar, que éuma tradição basicamente autoritária. É uma tradi-ção que está associada à ditadura do Estado Novo,entre 1937 e 1945, em que as oposições foramreprimidas, em que o Estado foi todo-poderoso,em que houve censura à imprensa. O Departa-mento de Imprensa e Propaganda, o famigeradoDIP, que desempenhou, no País, um papel simul-taneamente de estímulo e repressão, é símbolo dis-so. Embora Getúlio tenha sido eleito pela maioriado eleitorado em 1950, voltando ao Palácio doCatete nos braços do povo, a verdade é que essatradição hierárquica, de cima para baixo, de trans-formações articuladas verticalmente, autoritaria-mente, é parte muito importante desse legado. Odesafio atual da sociedade brasileira, é como lidarcom esse legado. É possível, nos dias de hoje, deintensa globalização, de uma, cada vez maior, in-terdependência entre as economias e os estados,com a construção de megamercados e de comuni-dades supranacionais, manter aquela perspectivade estado nacional autárquico e autônomo? Épossível, nestes tempos atuais, manter o estado in-tervencionista? Até que ponto isso é essencial àpreservação do País na sua identidade? Isso tudohoje está sendo discutido. Até que ponto esse es-tado intervencionista traz com ele o autoritarismo?Não traz com ele, necessariamente, a tentação da

ditadura, que é algo do qual a sociedade brasileiraparece estar querendo se livrar? Desde os anos1980, temos, apesar de todas as imperfeições, aconstrução de um projeto democrático. Pelo me-nos aparentemente, nenhum partido, nenhumaforça política consistente, colocou em questão osvalores democráticos que a sociedade brasileiravem tentando construir a partir dos anos 1980.Até que ponto esse legado varguista é compatívelcom uma sociedade que se aperfeiçoa do pontode vista democrático?

IHU On-Line – Como o senhor analisa aprojeção internacional de Vargas e suasnegociações com os Estados Unidos e aAlemanha?Daniel Aarão Reis Filho – Esse jogo do EstadoNovo, essa política de barganha entre os EstadosUnidos e a Alemanha nazista, tem que ser com-preendida de vários ângulos. De modo geral, osadmiradores da tradição de Getúlio gostam deapresentar apenas o aspecto de um jogo inteira-mente ordenado e orientado em função dos inte-resses nacionais do Brasil, que estaria procurandoencontrar uma brecha entre as grandes potências.Desse ponto de vista, o jogo é claramente legiti-mado pelos admiradores de Vargas. É importantelembrar certos elementos que são muito impor-tantes para compreender a conjuntura dos anos1930 e início dos anos 1940, em que os valores li-berais estavam profundamente enfraquecidos.Eles vinham sofrendo um processo de enfraqueci-mento antes da primeira grande guerra. Nesta,com a economia de guerra nas várias potênciasbeligerantes, eles sofreram um recuo. Depois nosanos 1920, esses valores ganharam um novoalento. Em 1929, houve a grande crise introduzi-da pelo crack da bolsa de Nova Iorque. Isso enfra-queceu de modo fundamental o culto aos valoresliberais. Isso aconteceu até nos Estados Unidos ena Inglaterra, que são grandes trincheiras dos va-lores liberais. Pelo new deal do presidente Roose-velt, esses valores, de certo modo, foram redefini-dos. A conjuntura dos anos 1930 é o contrário daconjuntura em que vivemos hoje. Aquela era umaconjuntura de desprestígio muito acentuada dosvalores liberais. Ergue-se, como alternativa aos

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valores liberais, o corporativismo, que aparece naEuropa Central e em vários países do TerceiroMundo, inclusive aqui no Brasil. Aparece tambémo fascismo italiano, o nazismo alemão, e, final-mente, a economia planificada soviética, a pontode certas lideranças intelectuais liberais dos anos1930 acreditarem que o liberalismo estava desti-nado à extinção. É preciso repor nesse contexto ogoverno Vargas dos anos 1930, com o centralis-mo e a tentação autoritária. Na equipe de Vargas,é notório que havia pessoas que admiravam pro-fundamente o sistema militar hierarquizado ale-mão. É o caso do general Góes Monteiro, que,embora sempre se dizendo antinazista, confessaclaramente sua simpatia pelo establishment mili-tar, com sua eficiência, ordem, hierarquia e auto-ridade, elementos centrais do ponto de vista doestablishment militar alemão. E, além dessa sim-patia que havia pelas tradições do exército ale-mão, pela sua organização, havia elementos nogoverno Vargas que simpatizavam abertamentecom os corporativismos mais autoritários e atémesmo com o fascismo italiano ou com o nazismoalemão. Era o caso, por exemplo, de Filinto Müllere Francisco Campos, um jurista que elaborou aconstituição de 1937. Outros próceres importan-tes do governo Vargas não escondiam sua simpa-tia pelos regimes italiano e alemão, não apenas doponto de vista da sua organização militar, mas dasua organização política. Essa barganha que Var-gas opera nos anos 1930, não é apenas um Esta-do Nacional barganhando entre duas potências. Érealmente um Estado Nacional que estava, de cer-to modo, dilacerado entre uma aliança com osEstados Unidos, não apenas com a potência Esta-dos Unidos, mas com os valores que representa-vam, e a aliança com o nazi-fascismo, representa-da não apenas como uma potência econômica,mas como um modelo de valores. Portanto, o le-gado que essa política externa traz e é, muitas ve-zes, recuperado, é apenas do estado nacional bar-ganhando entre duas potências. É preciso, no en-tanto, integrar a essa análise que havia ali nãoapenas um jogo para ver o que o Brasil podia le-var de melhor na barganha entre os Estados Uni-dos e a Alemanha. Havia também uma dilacera-ção de preferências por modelos políticos ideoló-

gicos. Isso geralmente os admiradores de Vargasnão gostam de lembrar, mas é preciso lembrarpara se ter uma adequada visão da história.

IHU On-Line – O senhor considera que Getú-lio Vargas teve inclinações nazi-fascistas?Daniel Aarão Reis Filho – Vargas, como perso-nalidade, nunca pareceu ter uma empolgação como nazismo ou com o fascismo. Ao contrário, sem-pre teve certas reservas claras. Vargas foi um ho-mem ligado a uma tradição positivista, castilhista,aqui do Sul do País, que é favorável à ordem, à hi-erarquia, mas também à justiça social, à integra-ção social. Ele não precisava do fascismo parapensar, como o fascismo pensou, a integração dostrabalhadores em uma ordem corporativa. Vargastinha uma tradição própria brasileira, gaúcha prin-cipalmente, que é a do positivismo, que oferece aele esse quadro de referências que cultivou. Var-gas nunca se empolgou com o fascismo brasileiro,assumido a partir dos anos 1930 pela Ação Inte-gralista Brasileira. Ele se aliou com essa facção,não reprimiu os seus próceres, alguns homens deconfiança que tinham simpatias abertas pelo fas-cismo. Ele estabeleceu alianças com a Ação Inte-gralista Brasileira, sobretudo para eliminar o co-munismo, a Aliança Nacional Libertadora. De-pois, ele se livrou da Ação Integralista Brasileiraem 1938, quando esta, insatisfeita porque ele ha-via dissolvido os partidos políticos, tentou assaltaro poder e inclusive matá-lo. A partir daí, no entan-to, apesar de se livrar da Ação Integralista, elemanteve as portas abertas para a aliança com onazi-fascismo. Manteve também elementos do seugoverno que tinham essa simpatia. Só muito maistarde, já na Segunda Guerra Mundial, quando oBrasil entra ao lado dos aliados, através da aliançaestabelecida com os Estados Unidos, é que essastradições, essas inclinações para o nazi-fascismoserão um pouco varridas para debaixo do tapete.Procurando resumir: Vargas, como líder, pessoal-mente, não parece nunca ter tido nenhum empol-gação com o nazi-fascismo, mas conciliou, culti-vou e manteve, no seu governo, elementos que ti-nham essas inclinações, de sorte que sua políticaexterna de barganha, de jogo entre potências, nãopode ser vista apenas, insisto nisso, valorizando

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esse lado da afirmação nacional e de uma socie-dade relativamente fraca que tenta, no jogo inter-nacional, barganhar entre dois modelos. Isso hou-ve, essa dimensão existiu, mas não se pode esque-cer a dimensão política, ideológica, cultural quefazia realmente o governo hesitar entre os valoresliberal-democráticos e os valores do corporativis-mo, do nazismo e do fascismo.

IHU On-Line – Tendo negado o legado tra-balhista, o senhor acha que a esquerda bra-sileira vai conseguir construir uma ponte,unindo o que Vargas deixou de bom às ne-cessidades futuras da nação?Daniel Aarão Reis Filho – As esquerdas brasi-leiras, desde os anos 1980, com a redemocratiza-ção do País, enfrentam esse grande desafio.Como articular essa tradição nacional estatis-ta-desenvolvimentista, com a opção por um de-senvolvimento econômico sustentado, por um de-senvolvimento integrador? Como resgatar essatradição, articulando-a com os valores democráti-cos que se tornaram o patrimônio das esquerdasbrasileiras a partir dos anos 1980? As esquerdasbrasileiras tinham antes dos anos 1980, como to-das as forças políticas brasileiras e, sobretudo

como as direitas, valores autoritários, que consi-deravam a democracia apenas um instrumentopara chegar ao poder. As esquerdas brasileiras co-meçam, a partir dos anos 1980, a cultivar e a ela-borar os valores democráticos. O grande desafio ésaber se é possível e como fazer para articular essatradição nacional estatista-desenvolvimentista comos valores democráticos, presentes em segmentosimportantes da sociedade brasileira, sobretudoentre as camadas mais populares, que se mantêmmuito ligadas a essa tradição nacional estatista. Aspesquisas recentemente realizadas flagram a per-manência da popularidade de Getúlio Vargas. Elee a princesa Isabel, associada ao abolicionismo,são duas figuras na história do Brasil que se man-têm no imaginário popular com muita força. É pos-sível resgatar essa tradição combinando-a com osvalores democráticos? Esse é o grande desafio,porque, de modo geral, essa tradição nacional es-tatista-desenvolvimentista foi associada historica-mente no Brasil ao autoritarismo, a formas ditato-riais de controle da sociedade e do pensamento.Como resgatar isso sem esquecer os valores demo-cráticos? Essa é a questão que as esquerdas brasilei-ras terão diante de si ao longo do século XXI, oupelo menos nas primeiras décadas do século XXI.

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Um projeto de país para o Brasil em eleição

Entrevista com Gilberto Dupas

Gilberto Dupas é o coordenador geral doGrupo de Conjuntura Internacional (Gacint) daUniversidade de São Paulo (USP) e presidente doInstituto de Estudos Econômicos e Internacionais(IEEI). É membro da Comissão Nacional de Avalia-ção da Educação Superior (CONAES) do Ministé-rio da Educação e Cultura do Brasil, do ConselhoSuperior de Economia da Federação das Indústriasdo Estado de São Paulo e co-editor da Revista Po-lítica Externa. Foi professor em várias universida-des brasileiras nas áreas de Política Econômica ePlanejamento Estratégico, membro do ConselhoDiretor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e deseu Comitê de Planejamento Estratégico e profes-sor no European Institute of Business Administra-tion – Insead (França). Foi secretário de Agricultu-ra e Abastecimento do Estado de São Paulo e pre-sidente da Caixa Econômica do mesmo estado. Éautor de vários livros nas áreas de economia, deglobalização e de desenvolvimento, entre eles:Economia Global e Exclusão Social. São Pa-ulo: Paz e Terra, 1999; Ética e Poder na Socie-dade da Informação. São Paulo: Unesp, 2000;Hegemonia, Estado e Governabilidade. SãoPaulo: Ed. Senac, 2002; Tensões Contemporâ-neas entre o Público e o Privado. São Paulo:Paz & Terra, 2003; Renda, Consumo e Cresci-mento. São Paulo: PubliFolha, 2004; Atores ePoderes na Nova Ordem Global. São Paulo:Unesp, 2005. Dupas proferiu a conferência deabertura do Simpósio Internacional Terra Habitá-vel sob o título Terra habitável: um desafio para ahumanidade, que aconteceu na Unisinos, em maiode 2005.

Ele foi entrevistado, por telefone, pela revistaIHU On-Line, no dia 6 de março de 2006, sobre

as perspectivas para 2006, na política e na econo-mia do Brasil, da América Latina e do mundo. Emsuas respostas, reforçou o que já vem afirmandohá algum tempo: a necessidade de um projeto depaís para o Brasil. “O compromisso com o cresci-mento econômico e com uma taxa de juros com-patível deveria ser a meta de um projeto nacionale não a meta de inflação, que é burocrática, im-portante, mas que não pode ser colocada de for-ma a sufocar a alternativa de um crescimento maisrigoroso, com responsabilidade”, disse Dupas.

IHU On-Line – 2006 é ano eleitoral. O queesperar para o Brasil?Gilberto Dupas – 2006 é um ano muito impor-tante porque ele poderá marcar uma alteração derumos nos últimos 15 anos de evolução do País.Estamos inseridos no contexto latino-americanoem um período muito pobre quanto ao cresci-mento econômico e social. Nos últimos 15 anos, oPIB brasileiro cresceu 32%, o que significa umataxa de 2,1% ao ano. Como a população cresceuaproximadamente 1,4%, o crescimento real doPIB foi 0,6%, valor insignificante para as necessi-dades do País. Sabemos que um país como o Bra-sil, para poder minorar a condição social de em-prego e de renda, e poder iniciar um processo au-to-sustentável de crescimento, cujos benefícios seextravasem para toda a população, precisa cres-cer na ordem de 5%. Neste mesmo período de 15anos, países que se assemelham ao Brasil em pa-drão de desenvolvimento, conseguiram ter umcrescimento bastante elevado, mesmo na AméricaLatina. O Chile e a Coréia, neste período, cresce-ram 130%, e a China, 250%, enquanto o Brasilcresceu 32%.

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A falta de um projeto de país

Trata-se, no fundo, de uma situação na qual,numa sucessiva rodada de governos, pós-períododitadura militar, acabamos nos conformando emesquecer a idéia de um projeto de país. Abrimos aeconomia para o exterior. Acreditamos que basta-va abrir, privatizar e estabilizar, que tudo o maisnos seria dado por acréscimo. E não nos foi dado,porque nos faltou o elemento fundamental: nãoesquecer a idéia de que a economia global é umdado irreversível para participar do jogo global, enão ficar só com os prejuízos, mas também com asvantagens desse jogo. É preciso não perder a pers-pectiva de ter um projeto nacional de inserção queutilize as vantagens comparativas que o País tem,para que ele possa crescer de uma maneira relati-vamente autônoma, com forças próprias, e comisso equilibrar o jogo da globalização. A Índia fezisso, a China e a Coréia do Sul também. Nós nãoo fizemos e tivemos esse crescimento medíocre. Oresultado foi um crescimento geral do desempre-go que praticamente dobrou nesses últimos dezanos. O aumento da informalidade, que não é umfenômeno só brasileiro, mas fundamentalmenteum crescimento econômico muito pequeno, signi-fica um aumento da concentração de renda. Porisso tudo, o ano de 2006 é bastante decisivo paraverificarmos se finalmente nessa campanha eleito-ral que aí virá, a questão de um projeto para o Paísserá efetivamente levantada como um elementode diferenciação. Eu espero com muita força queisso ocorra.

IHU On-Line – O que falta para que tenha-mos no Brasil um projeto de país?Gilberto Dupas – É preciso, em primeiro lugar,que o Brasil compreenda as suas especificidades,as características que podem beneficiá-lo e comoele pode jogar essas características a favor de umprojeto de inserção global. A China não apenaslembrou que o desenvolvimento tecnológico é umdos fatores fundamentais para agregar valor deum país na sua lógica de integração com o mun-do. Ela criou 53 centros de pesquisa espalhadospelo país todo, e seis desses centros são os moto-res do desenvolvimento tecnológico da China.

Hoje, na balança comercial brasileira/chinesa e deserviços, exportamos commodities para a China,produtos com baixo processamento, e importa-mos da China produtos de tecnologia, o que mos-tra bem a diferença do processo dos dois países. ACoréia, neste período, também acreditou na pos-sibilidade de ter uma indústria nacional forte epassou de uma dinâmica de produção para tercei-ros para marcas próprias e liderança em segmen-tos importantes dos produtos globais. A Coréia,portanto, em uma geração, basicamente, transfor-mou-se de um país pobre, como era, parecidocom o Brasil, em um país rico, que tem hoje umarenda per capita de 18 mil dólares por ano, com-parável à renda de vários países europeusimportantes.

Os novos caminhos da Índia

A mesma coisa fez a Índia, que, neste mesmoperíodo, acabou descobrindo a sua vocação parao grande centro de serviços mundial em que setransformou com base na sua qualificação emsoftware e em matemática e a do entendimentoda importância e da influência que a língua ingle-sa passou a ter no país, encontrando, assim, o seuespaço. O Brasil continuou esperando para alémda sua agricultura, do seu agrobusiness, que émuito competente e adiciona alguma tecnologia.O País marcou passo, e isso mostra como há mui-tos espaços que podem ser explorados. A Coréiado Sul, por exemplo, é hoje um dos grandes fa-bricantes de navios do mundo. Por que a Coréiado Sul pode ser, e o Brasil não foi capaz de ser?São escolhas que um país faz quando governoscompetentes percebem que a decisão sobre oprojeto nacional é fundamental e precisa mobili-zar a sociedade em torno de características e devantagens comparadas que o país não tem ou nãopode desenvolver.

IHU On-Line – Que diagnóstico o senhor fazsobre o estado atual da economia brasileira?Gilberto Dupas – A economia brasileira atualpassa, sob o ponto de vista clássico da interpreta-ção ortodoxa dos parâmetros monetários e fiscais,

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por um período de estabilidade. Só que esse pe-ríodo de estabilidade é reforçado porque existeum imenso saldo comercial que abarrota de dóla-res o País e como o País não cresce a uma taxa ra-zoável, ele não tem o que fazer com esses dólares.O nível de importação é baixo. Isso deprime amoeda local e, a médio prazo, pode causar, inclu-sive, problemas de exportação, mas esse é o ân-gulo do investidor externo. Sob a lógica financei-ra, o País está em fase equilibrada e estável, sóque conformado, discutindo se vamos crescer pou-co mais ou pouco menos do que 3% ao ano,quando deveríamos estar nos perguntando comofazer para crescer 6%. Do ponto de vista do inves-tidor externo e da visão internacional, dos que ga-nham com a taxa de juros absurda que continua-mos a ter no mercado interno e que faz o paraísodos rentistas e dos investidores, mas não da ativi-dade produtiva, nós estamos bem. Só que isso émuito pouco para um país que tem o nível de de-semprego e informalidade que tem e que precisaencontrar maneiras de empregar seus jovens e decontinuar a crescer. Nós precisaríamos estar discu-tindo o País em outro patamar, e não estarmos fe-lizes e conformados com o crescimento da ordemde 3%. Precisamos discutir como poderíamos en-contrar um patamar bem mais elevado de cresci-mento. O Chile, que praticou políticas de naturezabastante ortodoxa nesses últimos anos e foi vistoaté como um exemplo, tem uma meta de inflaçãomais alta que o Brasil e tem uma intervenção doEstado, por exemplo, no fluxo do capital externotambém maior do que a brasileira.

IHU On-Line – O que ainda se pode esperarnesse último ano do governo Lula?Gilberto Dupas – O governo Lula demonstrouuma capacidade surpreendente de reação à imen-sa crise que aconteceu no ano passado, principal-mente em relação à figura do presidente, que sur-preendeu muitos analistas políticos quando reto-mou o controle do governo depois daquela criseque despedaçou o seu partido em função da cor-rupção e retomou o eixo de governo. Este ano,Lula entra no processo eleitoral com chances bas-tante fortes de poder ser reeleito, porque conse-guiu reaglutinar o núcleo do governo e está fazen-do uma política na área econômica muito mais or-

todoxa do que se esperava. Ele tem os seus defen-sores e uma política externa vivaz, ativa, com umainserção internacional interessante, como é o casoda presença no Haiti. O governo Lula entra, no fi-nal do seu mandato, razoavelmente revigorado ecom o Presidente mostrando uma capacidade derecuperação bastante importante. A política eco-nômica é conservadora, e, embora muito elogiadapelos círculos financeiros nacionais e internacio-nais, tem dificuldade de promover um crescimen-to, uma taxa alta. Uma das razões fundamentaisdisso é, além do excesso de ortodoxia, o fato denão conseguir articular um projeto de país quemobilize efetivamente o Brasil em torno de proje-tos nacionais de envergadura que permitam aoPaís um foco na sua inserção global.

IHU On-Line – Que aspectos fundamentais,em sua opinião, não poderiam faltar naspropostas econômicas dos partidos políti-cos, para que haja um projeto de país?Gilberto Dupas – Evidentemente, antes detudo, temos uma situação absolutamente anor-mal e inaceitável, que é a taxa real de juros daeconomia nacional. Ela só beneficia os rentistas,aqueles que vivem de juros, e o capital internacio-nal, que ganha muito bem com isso. Para o País,isso é muito ruim, porque inibe o consumo e osinvestimentos, o que obriga o governo a ter gas-tos imensos no seu orçamento só para pagar osjuros e, portanto, acaba causando uma inibiçãogrande da sua capacidade de investir, que deve-ria ser, com o setor privado, um dos vetores paraque o País retomasse esse crescimento econômi-co no patamar necessário de 5 a 6%. Isso exigeinvestimento público, que hoje está baixíssimo,porque o orçamento não tem condições de geraro superávit que ele precisa para estabilizar e aomesmo tempo pagar os juros e ainda sobrar parao investimento. Aqui aparece a necessidade deum investimento externo e interno privado. Oexterno é desmotivado, nesse momento, pelacotação do dólar, e o interno é desmotivadopelo taxa de juros, que é um fator crítico e fun-damental para que possamos mudar este qua-dro. Não tenho dúvidas de que, nesse ponto, astaxas de juros poderiam ter cedido muito maisrapidamente.

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O desemprego e a informalidade

A segunda questão fundamental é retomar o focode que o crescimento ou a estabilização do nível dedesemprego e de informalidade no País, na situa-ção atual, gera tensões de natureza psicossocialextremamente graves. Também gera uma zonacrescente de anomia do Estado, em que a informa-lidade se mistura com as atividades ilegais ou clan-destinas. Isso acaba em zonas em que o Estado nãomais controla e que são propícias para a acomoda-ção do grande desemprego da juventude brasileiraem atividades que certamente nós gostaríamos queestivessem longe dos nossos olhos. O compromissocom o crescimento econômico e com uma taxa dejuros compatível, deveria ser a meta de um projetonacional e não a meta de inflação, que é burocráti-ca, importante, mas que não pode ser colocada deforma a sufocar a alternativa de um crescimentomais rigoroso, com responsabilidade.

IHU On-Line – E no âmbito internacional, oque a conjuntura atual prevê para o decor-rer de 2006? E quais os impactos mais dire-tos no Brasil?Gilberto Dupas – O governo Lula se beneficioude uma conjuntura internacional bastante favorá-vel nesses últimos três anos em que, ao mesmotempo em que o mundo crescia empurrado pelaChina e sua parceria exótica com os Estados Uni-dos, o preço das commodities e a sua demandacresciam, e a taxa de juros internacional se manti-nha bastante baixa, só agora está começando acrescer ligeiramente. Esse era um quadro impor-tante do qual alguns países da Ásia, e mesmo aquida América Latina, se beneficiaram, conseguindouma taxa de crescimento maior, mais do que oBrasil nesse período. Essa é uma situação que nãodeve ter grandes surpresas este ano. Tudo indicaque a economia internacional operará, em um ce-nário mais provável, com uma ligeira queda decrescimento e com um ligeiro aumento da taxa dejuros. Se esse for o quadro, continuaremos em2006 um período internacional razoavelmente be-névolo. Isso certamente ajudará o Brasil, emboraas nossas exportações estejam caindo por contada diminuição da competitividade em função des-

sa taxa de dólar absurdamente inconveniente.Ainda assim, se o cenário for esse, será um anoainda em que o Brasil crescerá empurrado, entreoutras coisas, agora pelo aumento do salário míni-mo, pelas transferências do governo para progra-mas sociais e também pelos programas especial-mente na área educacional. Como é um ano elei-toral e, por isso, um ano normalmente aquecido,tudo indica que, sob esse aspecto, se não houvernenhuma surpresa na área internacional, 2006será um ano de crescimento econômico bastanterazoável, talvez melhor do que o ano passado.Isso é um ponto a mais no governo Lula na buscada sua reeleição. Espero ainda que exista nestepáreo um candidato da oposição que possa discu-tir com a situação atual do governo alternativas deprojeto de país e que não fique meramente na re-tórica típica eleitoral ou em discursos pasteuriza-dos, meramente gerenciados.

IHU On-Line – Quem são os atores protago-nistas hoje no cenário global?Gilberto Dupas – Não há dúvida de que a Chi-na continua a ser o grande fator dinâmico da eco-nomia mundial. A China é um país que tem umatrajetória recente extremamente vigorosa, é o maiordemandador dos acréscimos, dos crescimentos dademanda mundial por commodities. Ela precisagerar dez milhões de empregos por ano para ab-sorver a população que vem do campo. E está fa-zendo seu jogo global com muita inteligência. AChina é um fator de impulsão importante, mas va-mos lembrar que o Japão, finalmente depois demais de uma década de estagnação, volta a dar si-nais de crescimento. Cresceu 2,8% e é a segundaeconomia do mundo hoje, com 6 trilhões de PIB.Portanto, deve ser considerada a possibilidade deo Japão ser um fator diferencial. Os Estados Uni-dos, no entanto, com seu PIB gigantesco de quase12 trilhões, continuará crescendo a uma taxa de3,5 a 4% o que é um fator certamente de impulsio-namento da economia mundial, uma vez que aEuropa tem crescido numa taxa mais baixa. AÍndia é um país a se observar, porque tem conti-nuado a crescer a uma taxa de 6% ao ano em umperíodo bastante longo, e este é um bom exemplode referência para o Brasil.

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IHU On-Line – De que maneira o senhor vêacordos como o Nafta e a Alca? O senhoracredita que haverá novidades sobre a Alcaem 2006? E sobre o Mercosul?Gilberto Dupas – Acho que não haverá novida-des sobre a Alca. Os Estados Unidos desistiramtemporariamente da Alca, e isso foi muito positivopara o Brasil, porque a Alca era prejudicial a paí-ses do tamanho do Brasil, já que ela afeta funda-mentalmente mercados muito importantes emque nós somos muito competitivos, como todos osagrobusiness. Os Estados Unidos não estão dis-postos a fazer concessões com seus mercados quenos compensem. Se a Alca era um projeto interes-sante para pequenos e médios países da AméricaLatina, era um projeto muito perigoso para o Bra-sil. Ela não avança além do que já avançou. A li-nha sinérgica por onde se pode avançar, especial-mente aqui na América do Sul, é a criação de ummercado sul-americano de nações, aproveitandoimensas sinergias que existem em pelo menos trêseixos principais.

Os três eixos de sinergiasna América do Sul

O primeiro deles é o eixo energético. Juntan-do Brasil, Bolívia e Venezuela, somamos o gás daBolívia, o petróleo da Venezuela, os recursos hí-dricos e a biomassa do Brasil. Assim temos gran-des espaços para criar sinergias em projetos de in-tegração nesta área que podem avançar. O segun-do eixo é o projeto amazônico de desenvolvimen-to sustentável. A Amazônia é uma região tipica-mente transnacional. São sete ou oito paísessul-americanos que participam da Amazônia e,portanto, sem colocar todos na mesma cesta, nãohá como desenvolver um projeto amazônico. Aregião tem sinergias importantes, tendo em vista asua condição ambiental mundial altamente dife-renciada. Se nós não tomarmos conta da Amazô-nia aqui na América do Sul, outros pensam even-tualmente em fazê-lo por nós. O terceiro eixo é asaída Pacífico – Atlântico, que permitiria não sóganhos sinérgicos de transporte para a Ásia docentro-oeste brasileiro, como também permitiria à

Bolívia algumas vantagens por ser um país de pas-sagem e permitiria, eventualmente, à América doSul lidar com um problema político-histórico gra-ve, que são as tensões entre Peru, Chile e Bolíviapor conta da saída para o mar. Há espaços muitograndes de sinergia que poderiam avançar numprojeto sul-americano se os governantes sul-ame-ricanos deixassem de lado a luta pela defesa dassuas pequenas soberanias e conseguissem enca-rar que há grandes vantagens na sinergia entre es-ses países. Isso permitiria soberanias de outra es-cala, numa visão regional, que permitiria à Améri-ca do Sul uma inserção global pesada e de poderinternacional. O Mercosul é muito pequeno paraisso. Sozinho, ele não dá conta dessa tarefa.

IHU On-Line – Qual o lugar da América Lati-na no contexto de desenvolvimento mundialque hoje vivemos? Como esse lugar influi erepercute sobre as possibilidades de desen-volvimento do Brasil?Gilberto Dupas – A América Latina vem deduas décadas perdidas, fundamentalmente, emque ela cresceu muito pouco, teve seu nível de po-breza, de violência, de marginalização, atingindorecordes mundiais. Aqui estão alguns dos paísesque têm a pior distribuição de renda do mundo,aqui há um acúmulo de pobreza muito intenso,zonas intensas de anomia, em que o Estado se re-colheu e uma nova onda de esquerda latino-ame-ricana que varia no seu tom de retórica, mais oumenos radical, de Lula a Chávez, mas que busca,na área econômica, caminhos que ainda não en-controu, uma vez que todos esses países são umpouco prisioneiros das regras internacionais orto-doxas e não conseguem encontrar espaços paradefinir uma taxa adequada. A América Latinamarcou passo nessas últimas décadas.

EUA não têm proposta para a AméricaLatina

Os Estados Unidos revelam hoje que nãotêm mais proposta para a América Latina. Achamque deixaram de entender a América Latina. A úl-tima proposta foi o Consenso de Washington, que

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eles mesmos declaram que fracassou. Portanto, osEstados Unidos hoje se preocupam com a questãoda droga e para que não haja novos Chávez. Sãoas duas fixações americanas com relação à Améri-ca Latina. Esta pouca prioridade que os EstadosUnidos dão à América Latina é uma vantagem.Para o governo Lula também está sendo umavantagem, porque ele pôde mobilizar com inteli-gência, um certo papel de mediador dessas novastensões da esquerda latino-americana que lhe deuum papel importante adicionado à questão doHaiti. A América Latina está em busca de um ca-minho, de uma inserção no mundo global, que atéagora lhe trouxe mais desvantagens do quevantagens.

IHU On-Line – Quais são suas expectativaspessoais para 2006?Gilberto Dupas – Espero, em primeiro lugar, noBrasil, que tenhamos uma campanha eleitoral emque debatamos não em um estilo de crônicas deNelson Rodrigues, não ficando restritos às ques-tões relativas à crônica do submundo da política,mas que debatamos efetivamente um projeto paraesse País, o que nós não soubemos fazer nesses úl-timos 15 anos. Precisamos discutir quais são as

premissas para construir uma nova sociedade ba-seada em uma estrutura que privilegie uma taxade juros baixa, um crescimento econômico debom padrão. O papel dos políticos é apresentarsoluções. Efetivamente eu espero que o debateeleitoral deste ano possa ter posições divergentesclaras, mas que incluam fundamentalmente umprojeto para o País. Espero também que, na áreainternacional, nós possamos ter uma diminuiçãodessas tensões absurdas que estão causando umenorme risco de fragmentação da sociedade mun-dial, que é o crescimento da intolerância de natu-reza cultural e religiosa, seja motivada por radicali-zações do lado do fundamentalismo americano,seja motivada por radicalizações do mundo islâ-mico. Precisamos encontrar um espaço de enten-dimento das diferenças e de diminuição da radica-lização que só serve para causar clivagens e frag-mentação nesse cenário mundial já tão cheio deproblemas. Espero que a realidade internacionalpossa, durante esse ano e a partir do ano quevem, encontrar caminhos para uma maior tole-rância e compreensão das diferenças culturais ereligiosas, criando espaço para realmente encon-trarmos um caminho para a recuperação, especial-mente dos países mais pobres, que precisam deespaço para crescer.

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Políticas econômicas e sociais devem dialogarcom políticas ambientais

Entrevista com Luciana de Almeida

Luciana de Almeida é professora do Departa-mento de Economia da Universidade Estadual Pau-lista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Na entrevistaconcedida à IHU On-Line, no dia 6 de março de2006, Luciana fala sobre as políticas ambientaisbrasileiras e sua importância neste ano de eleições.

Luciana é graduada, mestre e doutora emEconomia pela Universidade Estadual de Campi-nas (UNICAMP). Sua dissertação de mestrado in-titula-se Instrumentos de Política Ambiental: De-bate Internacional e Questões para o Brasil, e suatese de doutorado leva o título HarmonizaçãoInternacional das Regulações Ambientais. UmEstudo da Petroquímica Brasileira.

Para a professora, o desafio principal que opróximo governo do Brasil terá pela frente, no quediz respeito às políticas ambientais, é o de “conciliara construção do desenvolvimento sustentável noPaís com a adoção de políticas econômicas e pú-blicas que priorizam um modelo de desenvolvi-mento condenado do ponto de vista ambiental”. Eela chega à conclusão de que, “hoje, com as inú-meras evidências de problemas ambientais globais,temos que pensar em uma orientação de desen-volvimento que priorize a sustentabilidade”.

Luciana de Almeida é autora de PolíticaAmbiental: Uma Análise Econômica. Campi-nas: Papirus, 1998 e co-organizadora de Globali-zación y medio ambiente: Lecciones desdelas Américas. Santiago: RIDES GDAE, 2005.

IHU On-Line – Quais seriam as principaisconseqüências das políticas ambientaisque nortearam o atual governo? O que po-demos esperar ainda para 2006?

Luciana de Almeida – A política ambiental daministra Marina e do governo Lula, de modo ge-ral, se orienta por um princípio correto, de que, hámuito tempo, vários pesquisadores já ressaltavama importância: o da transversalidade. Esse princí-pio também pode ser visto como a necessidade deintegração da política ambiental com as políticaspriorizadas nos outros ministérios, ou nas agên-cias ambientais estaduais. Essa orientação, depensar a política ambiental não como um instru-mento de responsabilidade só do Ministério doMeio Ambiente, ou de secretarias estaduais domeio ambiente, mas como um compromisso a serassumido pelas diversas áreas de política pública,é um princípio correto. Em alguma medida, o go-verno conseguiu avançar, mas isso é no plano dodiscurso. Na prática, essa integração não ocorreude forma efetiva, ou pelo menos não tanto quantose esperava.

A área ambiental e o agronegócio

Esse discurso, para sua eficácia na prática,esbarra no problema estrutural. Esbarrou, de for-ma mais direta, ao se conflitar com interesses ex-portadores agrícolas brasileiros. Esse também éum tema que apareceu com certa freqüência naimprensa. A dificuldade de assumirem-se compro-missos mais rigorosos, estritos, na área ambiental,esbarra nos interesses do chamado setor do agro-negócio e, principalmente, no fato de que o Brasilé fortemente dependente da geração de dólarespela via da exportação de produtos do agronegó-cio. Sabemos muito bem que a exportação de

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commodities agrícolas, produzidas em larga esca-la, intensivas em atividade de monocultura, tra-zem, ao menos potencialmente, problemas ambi-entais sérios para os especialistas que analisam osriscos ambientais. Obviamente, temos estrutural-mente um país que depende dessa atividade,como chave para gerar rendas internamente e, es-pecialmente, para gerar divisas. Estamos presos aum padrão de produção para exportação que, emprincípio, não é, em si, benéfico para o meio am-biente. Todas as vezes que o Ministério do MeioAmbiente tentou introduzir medidas que atendiamo propósito de proteger o meio ambiente no País,mas isso tinha algum potencial de conflito com osinteresses do setor agrícola, contribuía para a fa-mosa controvérsia entre a ministra Marina e o mi-nistro Roberto Rodrigues.

O controle do desmatamentoda Amazônia

Outra iniciativa feita pelo Ministério que me-rece destaque por ter sido razoavelmente bem-su-cedida em 2005 é o controle do desmatamento naAmazônia. Em 2003 e 2004, estava batendo re-corde de desmatamento e em 2005 conseguiramreduzir cerca de 30% a taxa de desmatamento naAmazônia. Isso se deve a medidas de fiscalizaçãoe às iniciativas de criação de unidades de conser-vação na região amazônica. Aumentou a fronteiraconsolidada de áreas protegidas e, com isso, con-seguiu-se algum sucesso no controle do desmata-mento. Obviamente, ainda aquém do ideal, masjá foi um dado um pouco melhor. Na questão daAmazônia, obtivemos esse relativo sucesso. Noentanto, permanece uma outra ameaça por contado padrão produtivo e das atividades priorizadasna região e na fronteira que já se avizinha: a ex-pansão da fronteira de produção de soja para aexportação. A produção de soja e até mesmo ca-na-de-açúcar está penetrando com força no cerra-do também. Essas grandes atividades de mono-cultura agrícola já avançaram a fronteira do Sul,Sudeste e em direção ao Centro-Oeste e, segundoalguns analistas, já estaria se aproximando muitode áreas ecologicamente muito sensíveis, inclusi-

ve com risco para a região amazônica. De novo, éo problema de que, por mais que o governo se es-force para tomar medidas de política ambientalexplícitas, específicas, esbarra no padrão produti-vo ou no padrão de uso e ocupação do solo. Nocaso da Amazônia, é a pecuária em larga extensãoo grande fator causal do desmatamento no local.

O Brasil e o Protocolo de Quioto

O Protocolo de Quioto, que discute o proble-ma do aquecimento global e o efeito estufa entrouem vigência no início do ano passado e está com-pletando um ano. Esse acordo ambiental multila-teral, que teve adesão do Brasil, é uma iniciativamuito interessante para o nosso país, apesar de oBrasil não ser enquadrado nos compromissos deredução de gases causadores do efeito estufa, quenormalmente são medidos pela emissão de dióxi-do de carbono (CO2). No entanto, o Protocolo deQuioto é muito importante para o Brasil, porquetraz a possibilidade de se desenvolverem projetos.A iniciativa privada, a iniciativa pública, o gover-no ou as ONGs podem elaborar projetos com o in-tuito de reduzir a emissão de CO2 ou de fazer usode energias renováveis. Esses projetos podem sebeneficiar de recursos de países desenvolvidos,que estão submetidos a metas de abatimento deCO2, podem, em vez de reduzir, nos seus países deorigem, investir recursos em projetos de reduçãode CO2 em países em desenvolvimento. O Brasil jáiniciou a elaboração de projetos nessa área. É ochamado mecanismo de desenvolvimento limpo.

Diversidade biológica

No início deste ano, já houve uma movimen-tação interessante sobre um problema ambientalque interessa muito ao Brasil e que faz parte tam-bém de um acordo ambiental multilateral, que é aConvenção sobre Diversidade Biológica (CDB).Dos grandes eventos que já estão anunciadospara este ano na área ambiental, um dos mais im-portantes acontecerá no Brasil. Pela primeira vez,haverá uma reunião das partes da Convenção de

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Diversidade Biológica (CDB), que é um acordoambiental multilateral do qual o Brasil também fazparte. A 8ª reunião da CDB ocorreu no final demarço, em Curitiba18. Foi a primeira vez que oBrasil sediou uma convenção das partes da CDB.Com essa reunião, aconteceram diversos outroseventos paralelos que apresentaram novos estu-dos na área ambiental. Houve debates sobre aperda da biodiversidade do Planeta e, em particu-lar, do Brasil. Esses estudos revelaram dados inte-ressantes e alarmantes. Por exemplo, o dado deque temos ainda um profundo desconhecimentoda nossa fauna e da nossa flora. Apesar de alarde-armos para todos os cantos, e com razão, temoscerteza de que somos um país megabiodiverso. Sónão temos certeza alguma da extensão desta me-gabiodiversidade. Segundo os próprios especialis-tas da área da biologia, que atuam no Ministérioou que estão na academia, temos um conheci-mento pífio sobre nosso grande ativo ambiental.Obviamente, para pensarmos em medidas de pro-teção da biodiversidade, é fundamental conhecera biodiversidade que temos. O Brasil conheceapenas 6,17% de todas as nossas espécies animais.A unanimidade é de que há um número muito re-duzido de profissionais para realizar esse inventá-rio de biodiversidade. Essa seria uma área estraté-gica brasileira que mereceria investimento.

IHU On-Line – A senhora considera que ospartidos políticos que disputarão as elei-ções em 2006 têm condições de propor po-líticas ambientais novas? Quais são as maisnecessárias?Luciana de Almeida – Provavelmente os parti-dos que estarão polarizados nas eleições desseano serão PT e PSDB. A linha de atuação do PT,na frente da política ambiental, está mais explícita,por conta da atuação recente do Ministério. O que

viria a ser uma política ambiental do PSDB é algoainda muito no ar. O que persiste como desafioprincipal é a necessidade de conciliar a construçãodo desenvolvimento sustentável no País com aadoção de políticas econômicas e públicas quepriorizam um modelo de desenvolvimento conde-nado do ponto de vista ambiental. Entretanto, éinegável que, do ponto de vista empresarial, pri-vado, houve iniciativas bastante promissoras degestão ambiental. São iniciativas até certo pontovoluntárias, mas induzidas também por forte regu-lamentação na área ambiental. Por meio delas, osetor privado passou a mudar a sua cultura de ges-tão diante das questões ambientais e abandonou,de modo geral, aquela visão mais tradicional deque melhorias ambientais sempre acarretariamcustos adicionais para a empresa e trariam prejuí-zos para a competitividade. Houve uma reorienta-ção desse discurso e passou a olhar-se o desempe-nho ambiental da empresa como sendo umaoportunidade de negócios.

IHU On-Line – Como se relacionam as polí-ticas ambientais nacionais com o debate in-ternacional sobre o meio ambiente?Luciana de Almeida – Esse debate tem váriasinterfaces. Uma delas é a discussão internacionalsobre os acordos ambientais internacionais. Alémdisso, há todo o debate sobre questões ambientaisdentro das negociações comerciais na Organiza-ção Mundial do Comércio (OMC). Sabemos que apolítica ambiental brasileira é um tema muito sen-sível na opinião pública internacional. A Amazô-nia é um tema que costuma ganhar rapidamentenoticiários internacionais, até por conta da ima-gem de credibilidade do governo. De modo geral,a comunidade internacional passa por adotar umcomprometimento mais sério na área ambientalno Brasil.

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18 A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo decisório no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Asreuniões da COP são realizadas a cada dois anos em sistema de rodízio entre os continentes. Trata-se de reunião de grandeporte que conta com a participação de delegações oficiais dos 188 membros da Convenção sobre Diversidade Biológica (187países e um bloco regional), observadores de países não-associados, representantes dos principais organismos internacionais(incluindo os órgãos das Nações Unidas), organizações acadêmicas, organizações não-governamentais, organizaçõesempresariais, lideranças indígenas, imprensa e demais observadores. A COP 8 ocorreu de 20 a 31 de março de 2006, emCuritiba-PR, no Centro de Convenções Expotrade. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Quais as controvérsias exis-tentes hoje entre livre comércio e proteçãoambiental?Luciana de Almeida – Esse é um longo debate.Sendo, contudo, o mais concisa possível, esse é otema que hoje está batendo forte dentro da OMC.De modo geral, eu poderia identificar dois posicio-namentos polarizados. Contra os livres comérciosestão os setores ambientalistas de modo geral.Eles acreditam que o livre comércio, ao alimentaros fluxos de comércio internacional, transferepressões ambientais que seriam localizadas emâmbito nacional. Por exemplo, um país que nãotem intercâmbio com o exterior explora seus re-cursos naturais até um certo limite e pára. Comisso, ele passa a gerar uma produção anual, quevai além do que seus recursos internos são capa-zes de proporcionar. Esse país acaba chegando aum limite de produção, mais cedo do que aquelepaís que tem abertura com o comércio internacio-nal. É via comércio que se alimenta um fluxo in-cessante de produção, que vai além dos recursosnaturais retidos internamente. A outra visão é ados defensores do livre comércio, que é o ideárioliberal de sempre, que acredita que as forças libe-

ralizantes induzem a mais competitividade, sele-ciona empresas mais bem capacitadas tecnologi-camente. Portanto, o livre comércio é um indutorde inovações, inclusive em favor do meio ambien-te. Há um debate polarizado entre os que achamque o livre comércio é a solução para tudo, eaqueles que acham que o livre comércio pode seruma grande causa para a destruição ambiental.Obviamente, no meio do caminho, se situam ou-tras visões.

IHU On-Line – Qual a contribuição da eco-nomia no debate sobre o desenvolvimentosustentável e em que passo está o Brasilnessa discussão?Luciana de Almeida – O Brasil tem uma parteestratégica e essencial nessa discussão, dadas asdimensões territoriais e as riquezas naturais quedetemos, e também como um líder negociador deinteresses de países em desenvolvimento. Ele játem uma posição destacada em matéria de diplo-macia externa nas negociações internacionais.Obviamente, hoje, com as inúmeras evidências deproblemas ambientais globais, temos que pensarem uma orientação de desenvolvimento que prio-rize a sustentabilidade.

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“O Brasil só cresceu quando teve coragem para marchar sem o FMI"

Entrevista com Dércio Garcia Munhoz

Dércio Garcia Munhoz, economista e profes-sor da Universidade de Brasília (UnB), concedeuentrevista, por e-mail, à IHU On-Line, no dia 1ºde dezembro de 2003. Ex-presidente do Conse-lho Federal de Economia e do Conselho Superiorda Previdência Social, Dércio Munhoz é bacharelem Economia pela Universidade de Brasília, comMestrado em Economia pela Universidade de SãoPaulo. É também professor de Economia no Cur-so de Pós-Graduação em Economia e Ciência Po-lítica, da UPIS – Brasília, e professor de Economiaem cursos de pós-graduação da Fundação GetúlioVargas, núcleo de Brasília. Possui cinco livros deeconomia: Demografia no Distrito Federal.Distrito Federal: Codeplan,1970; A Renda e aDemanda de Produtos Alimentícios no Dis-trito Federal. Distrito Federal: Codeplan, 1971;Economia Agrícola. Uma Defesa dos Subsí-dios. Petrópolis: Vozes, 1982; Dívida Externa.A Crise Rediscutida. São Paulo: Ícone, 1988;Economia Aplicada. Técnica de Pesquisas eAnálise Econômica. Brasília: Editora da UNB,1989.

IHU On-Line – A partir da herança deixadapor FHC, teria havido outras possibilidadespara os rumos econômicos de nosso país?Dércio Munhoz – As restrições decorrentes doPlano Real são grandes e criaram condicionamen-tos difíceis de superação. Basta dizer que os dese-quilíbrios externos do País se aproximaram de du-zentos bilhões de dólares nos oito anos até 2002,significando três dólares para cada dólar de au-mento do PIB. E a dívida pública federal aumen-tou do equivalente de US$ 115,0 bilhões ao finalde 1994 para US$ 380,0 bilhões em dezembro de

2002 – perto de quatro dólares de aumento do en-dividamento para cada dólar de crescimento doPIB. Mas é claro que, se existem caminhos alterna-tivos, estes jamais poderiam ser procurados, man-tendo exatamente a mesma política econômica,mantendo as mesmas pessoas no comando daárea econômica e financeira, mantendo a mesmalinha de pensamento responsável pelo Plano Real.

IHU On-Line – Alguns membros do governoafirmam que foi retomado o controle daeconomia, que há sinais de recuperação,que a inflação cedeu etc... O senhor concor-da com isso?Dércio Munhoz – Alguns sonham. Ou procu-ram, com fantasias, fazer os outros sonharem. Obrutal aumento da carga tributária, mais os au-mentos das tarifas dos setores privatizados acimada inflação, mais a política de internar no País ospreços internacionais do petróleo, para atrair em-presas estrangeiras, transferiram aproximada-mente quinze por cento do PIB para essas áreas fa-vorecidas, o que necessariamente levaria a haverperdas de rendas de outros agentes. E os salários,que é base da renda da família, ficaram desprote-gidos num mundo de indexação plena, com o ele-vado desemprego criado para enfraquecer os sin-dicatos e os trabalhadores – assim como todosaqueles que vivem da renda do trabalho, comoautônomos e pequenos empresários, tiveram depagar a conta com uma queda de aproximada-mente um terço na renda do trabalho. Como cres-cer sem demanda, que depende da renda e doemprego? Como investir sem que existam com-pradores? Só o governo, com uma política de in-vestimentos na infra-estrutura urbana e na recu-

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peração de rodovias, é que pode iniciar a retoma-da. Criando milhões de empregos, com investi-mentos que, alongados em vários anos, são perfei-tamente suportáveis. Basta que se retome a capa-cidade política de tomar decisões na área econô-mica, e se devolva ao Congresso a capacidade dediscutir livremente as grandes questões nacionais,deixando de ser apenas uma instituição submissaàs pressões do executivo e mera sancionadora daspolíticas impostas pelo FMI.

IHU On-Line – Como são percebidas as dife-rentes tendências dentro do próprio governoem relação à política econômica do País?Dércio Munhoz – O governo atual não assumiua área econômica. E os que encenam publica-mente como se tomassem decisões, não têm a mí-nima noção do que aconteceu na administraçãoanterior, e nem as causas que levaram ao trava-mento da economia.

IHU On-Line – Não existiriam divergênciasdentro do próprio governo?Dércio Munhoz – Se existem divergências,numa frente politicamente tão heterogênea, apreocupação com os cargos e as verbas orçamen-tárias não têm permitido que aflorem, dando a im-pressão de uma unanimidade de pensamento esolidariedade total na manutenção das políticasdo Plano Real, que marcaram a segunda décadaperdida, e praticamente já asseguram a desastrosaperda também da terceira década.IHU On-Line – Como avalia a política exter-na do governo Lula, inclusive as negocia-ções da Alca?Dércio Munhoz – Parece que aí está o ponto po-sitivo do governo. No entanto, os interesses degrupos internos – especialmente aqueles ligadosaos ganhos fáceis com a especulação financeira –se movimentam, buscando fazer o País marcharpara uma “união carnal” com os Estados Unidos,o que é um risco para a manutenção da políticaatual. Também preocupa a tentativa de o governose posicionar externamente como socialmenteavançado, enquanto, internamente, mantém umprojeto econômico excludente e dá salvaguardaao capital financeiro garantido pelos emprés-timos-reservas do FMI; que têm a finalidade de dar

aos capitais especulativos a garantia de que o Brasilnão vai quebrar e de que a liberdade de movimen-tação e a remessa dos ganhos não correm riscos.

IHU On-Line – Que características da eco-nomia e das finanças brasileiras (ou de seusgovernantes) impediram o Brasil de tomar ocaminho que outros países, como a Argenti-na, adotaram com relação à dívida externa?Dércio Munhoz – A preocupação do governoanterior foi fazer todas as concessões para, assim,obter o apoio financeiro para o projeto políticoque custou centenas de bilhões de dólares e exigiafinanciamento internacional – ou alguma formade fluxo de recursos para cobrir os déficits, aindaque de capital de curto prazo. A tônica não mudouuma linha – o importante são os aplausos de Da-vos, o entusiasmo do FMI em ver como a lição éfeita com total presteza e fiel submissão, a satisfa-ção do invisível mercado em poder continuar ga-nhando dinheiro fácil, rápido, sem riscos. Aparen-temente sem riscos, pois de há muito o Tesouro foifalido, nem o aumento da carga tributária, nem oscortes mais absurdos de itens essenciais dentro doOrçamento, nem os tais superávits primários, po-dem fazer o governo, mesmo mantendo o País pa-ralisado, conseguir pagar mais que a metade dosjuros reais.

IHU On-Line – Quais seriam as prioridades,ou medidas mais urgentes, a serem tomadas?Dércio Munhoz – Investimentos na infra-estru-tura urbana e em rodovias, criando milhões deempregos. Invenção de outros milhões de empre-gos para os trabalhadores com pouca ou nenhu-ma qualificação, pintando muros de grupos esco-lares e paredes de hospitais, na vigilância de pré-dios públicos, escolas e hospitais, ou simplesmen-te pintando de cal o meio-fio das ruas. Num pro-grama conjunto União, estados e municípios, tal-vez com a participação de ONGs, com regime es-pecial de contribuição ao INSS. Assim, se poderiair saindo do sufoco e melhorar as receitas do go-verno com paralela redução da carga tributária.Desse modo, poder-se-ia avançar no resgate dadignidade dos milhões de desempregados – cadavez mais agraciados por doações e vales de toda aespécie, que ferem a dignidade humana, porque

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transforma milhões de brasileiros em simplespárias.

IHU On-Line – Na sua opinião, que rumo oBrasil tomará de fato? Haverá alguma mu-dança a curto ou longo prazo?Dércio Munhoz – Não se vê perspectiva de mu-danças. Depois das recentes declarações do Mi-nistro da Fazenda, de que todos os indicadoresapontam no sentido do crescimento – isso no mes-mo dia em que se anunciava aumento do desem-prego e novas quedas dos salários – como ter es-peranças? A esperança é que o Ministro ao menosdiga a que país estaria referindo-se, pois pode serque ali se tenha o que de bom imitar.

IHU On-Line – O senhor percebe em algunssetores da sociedade, entre os quais se inclui,uma certa decepção com os governantes?

Dércio Munhoz – A decepção de os governan-tes não perceberem que o Brasil só cresceu nosperíodos em que houve coragem para marcharsem a presença desastrosa do FMI, ou mesmocontra o FMI, com Getúlio e JK, no período domilagre, e de, alguma forma, antes que a crise dopetróleo jogasse o País nos colos do Fundo, noinício dos anos 1980. Afinal, os quadros do Fun-do não são de luminares – haja vista que, há 50anos, só submete países periféricos, e impõe asmesmas políticas elitizantes, que sempre fechama conta sobre os que vivem do trabalho e, emconseqüência, favorece a concentração crescenteda renda. E também não somos tão medíocrespara não conhecer como realmente funciona aeconomia, e para não perceber o que realmentefavorece o País, e o sentido geopolítico dos mode-los que vêm imobilizando e inviabilizando a eco-nomia brasileira, e marginalizando o Brasil noquadro da economia mundial.

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A ortodoxia leva ao calote

Entrevista com Guilherme Delgado

Guilherme Delgado é doutor em Economiapela Universidade de Campinas, com tese intitula-da Capital financeiro e agricultura no Brasil. Coor-denou o plano de estágio da agricultura alimentarna reforma agrária e participou, junto com Plíniode Arruda Sampaio, da elaboração do Plano Na-cional da Reforma Agrária. Atualmente assessoraprogramas da área social no Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (IPEA), vinculado ao Ministé-rio do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG)e participa da construção do Conselho Nacionalde Segurança Alimentar (Consea). GuilhermeDelgado é um dos economistas consultados pelaConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)quando se trata de assuntos econômicos. Ele éco-autor do folheto sobre as Contas CC-5, publica-do pela Comissão Brasileira Justiça e Paz, da qualé membro. Na entrevista a seguir concedida à IHUOn-Line, no dia 1º de dezembro de 2003, Delga-do destaca os rumos da economia brasileira.

IHU On-Line – A partir da herança deixadapor FHC, teria havido outras possibilidadespara os rumos econômicos de nosso país?Guilherme Delgado – O que foi executado atéagora tem dois momentos. Nos primeiros 90 diasde governo, não se vislumbrava uma maneiramais eficaz de montar o governo que não fosseum compromisso com o Fundo Monetário Inter-nacional (FMI) para garantir uma certa governabi-lidade. No entanto, isso se prolongou por um pe-ríodo muito maior do que o necessário. E comoconseqüência se produziu um prolongamento eaprofundamento da estagnação. O mais grave é oprolongamento dessa estratégia, pelo que per-

meia a quarta carta de intenções e a presumívelquinta carta de intenções que o FMI está pensandocom o Ministério da Fazenda. Eu acho que não é,necessariamente, inevitável a política executadadurante estes dez últimos meses. Ela pode ser dife-rente. Esse conceito de “inevitável”, “irreversível”,é muito idolátrico, de uma postura de alguém quenão está querendo ver outra coisa. Se tomarmos odesemprego aberto que herdamos do governoFHC e que se prolonga no governo Lula, não mu-dou em nenhuma proporção. Nós estávamos como desemprego aberto em torno de 12, 13% da po-pulação economicamente ativa e não reverteunada. Cadê os dez milhões de empregos que Lulaqueria criar? Temos uma dívida associada a umataxa de juros das mais altas do mundo e um PIBque estagnou, mas é evidente que a relação dívida– PIB cresce. Com essa relação crescendo, qual é a“sabedoria” que esta política está gerando? Narealidade, ela está acumulando tensões a curtoprazo. Conseguimos atender a voracidade doscredores, por quanto tempo? Se não consegui-mos, com sustentabilidade, tornar virtual o regimeda economia, como podemos garantir que vamosrolar um serviço dessa dívida que não pode seratendida por 4,2% do PIB, que tiramos dos supe-rávits primários? É apenas um terço do serviço dadívida. Temos que gerar, 12 ou 13 pontos percen-tuais do serviço da dívida ou então capitalizarpara a frente. Então estamos criando uma bola deneve. Eu não sou tão generoso para dizer que essapolítica é a única possível. Temos que assumir umcompromisso mais forte entre crescimento, igual-dade e serviço dessa dívida para que as coisas setornem viáveis.

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IHU On-Line – Alguns membros do governoafirmam que foi retomado o controle daeconomia, que há sinais de recuperação,que a inflação cedeu etc. O senhor concor-da com isso?Guilherme Delgado – Do ponto de vista dosconstrangimentos externos, que eram mais fortes,deste ano e do próximo ano, de certa forma, fina-liza um déficit em conta corrente bem menor queo do governo FHC, portanto haveria uma situaçãode necessidade de financiamentos externos bemmenor. Entretamto, há um problema grave de ro-lagem da dívida interna, que, na estratégia adota-da pelo governo, não somente não melhorou,como piorou a situação. Há uma dívida internamaior por causa da alta dos juros. Portanto, essapolítica agrava os problemas. É preciso sinalizarcom alguma recuperação no gasto público parafazer economia e crescer no ano que vem. Assim,estaríamos fugindo do modelo e do desenho orto-doxo adotado nos dez últimos meses e na promes-sa da quarta e quinta carta de intenções que é demanter um superávit fiscal de 4,25% do ProdutoInterno Bruto (PIB). Acho que há perspectivaspela frente, evidentemente tendo que mudar al-guns rumos. É claro que mudar rumos é enfrentarriscos, mas manter os rumos atuais tem riscos bemmaiores.

IHU On-Line – Quais seriam esses novosrumos?Guilherme Delgado – Precisamos, do ponto devista da governabilidade, resolver alguns proble-mas da segurança social e da segurança da nação,porque temos demandas de segurança social, pú-blica externa, saúde, educação, geração de em-prego e desafios da criminalidade que são muitoviolentos e estão nos apontando uma certa ruptu-ra do tecido social. Não podemos pensar a econo-mia divorciada da realidade. Quando pensamosuma estratégia econômica que aumenta a tensãoe a possibilidade dessa ruptura do princípio social,estamos aumentando em riscos de perda de go-vernabilidade. Nós não podemos governar o Paíspensando só na segurança dos credores. Os cre-dores têm que fazer um compromisso de pensarna segurança da nação. Não vamos dizer que che-

ga de pagar qualquer coisa aos credores, mas te-mos de fazê-lo, com equilíbrio, para que o Estadopossa prover os serviços que ele está impedido derealizar. A infra-estrutura está parada, a segurançapública e social estão precárias, e os investimentosnecessários para a economia crescer e voltar a terum mínimo de sustentabilidade estão constrangi-dos por conta dessa estratégia de mitigação dogasto público. Ou fazemos esse movimento e cor-remos os riscos de desagradar os credores para fa-zer um compromisso com a governabilidade, ouagradamos aos credores, correndo o risco de per-der tudo, inclusive a possibilidade de tratar os cre-dores daqui a um ou dois anos com essa beneme-rência com que vêm sendo tratados.

IHU On-Line – Que características da eco-nomia e finanças brasileiras (ou de seus go-vernantes) que impediram o Brasil de tomaro caminho que outros países, como a Argen-tina e a Rússia, adotaram com relação à dí-vida externa?Guilherme Delgado – A Argentina não caiu nodefault por políticas de soberania. Ao contrário,foi pela ultra-ortodoxia do ministro argentino Do-mingo Cavallo e pela impossibilidade de fazerqualquer pagamento. O mesmo aconteceu com aRússia. Em 1999, caiu no default, porque usou apolítica ultra-ortodoxa do FMI, assim como algunspaíses asiáticos. Nós temos agora espaço paramanobrar, para fazer uma política diferente e co-locar compromissos de segurança social e nacio-nal na frente desse compromisso de segurançados credores. Do contrário, corremos o risco denão ter segurança de ninguém, como aconteceuno caso da Argentina, ou da Rússia, que aliás, jápassados quatro anos não quebraram, continuamfuncionando. Meu maior receio é nós postergar-mos a política do FMI mais dois, três, quatro anos.Já viemos mantendo-a desde 1998, e sem nenhu-ma função. Se a política do FMI fosse boa, nós jáestamos na quarta carta de intenção, a situaçãoseria diferente. A primeira foi em 1998. De lá paracá, estamos reproduzindo todo ano esse receituá-rio que não permite a economia crescer. Sem cres-cimento, não se faz uma série de compromissosque a sociedade requer. Temos que fugir da orto-

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doxia. Ela nos leva ao default. Não é o contrário.Às vezes, a mídia explica bem o contrário. A orto-doxia nos leva ao calote não por opção, mas porabsoluta impossibilidade de cumprir. Ou então elaleva a uma crise social de caráter ingovernável. Amídia, muitas vezes, não nos ajuda a fazer ligaçõesentre as diversas instâncias da sociedade. Quandovemos a criminalidade organizada crescendo dojeito que está, pensamos que isso é um fenômenode polícia, mas não é só de polícia, é de política,ou seja, há um banditismo que envolve narcotráfi-co, sistema financeiro, contrabando, descaminhos,droga e tudo o mais que, na realidade, está seimiscuindo nesse espaço criado pela falta de espe-rança e pela falta de política para o País resolverseus problemas de desigualdade. Não se pode tra-tar a sociedade segmentando-a: a política econô-mica é boa, a política social é má. A política é pés-sima, está nos mantendo numa espécie de falsootimismo, porque quase não resolvemos nem en-frentamos os problemas do País.

IHU On-Line – Essa postura reflete o pensa-mento de uma corrente dentro do governo?Guilherme Delgado – Reflete a forma de comoas pessoas do governo estão dirigindo-o: semcompromisso com a sociedade. O compromissobásico é sustentar um superávit primário quemantenha também os mercados capitalistas finan-ceiros satisfeitos e confiantes. Se nós não temosessa lógica e apresentamos uma outra engenharia

de encaminhar a solução, estamos perdidos. Issoé uma idolatria do sistema financeiro sobre asociedade.

IHU On-Line – O senhor acredita que possahaver mudança?Guilherme Delgado – Não pela iniciativa do go-verno, talvez por alguns setores da sociedade, nosentido de resgatar compromissos históricos doPT, como a carta da reforma agrária, uma negocia-ção mais soberana na Alca, uma tentativa do go-verno Lula de abrir canais de comunicação inter-nacionais com outros segmentos fora do binômioUnião Européia – Estados Unidos, por aí talvezpossamos vislumbrar alguma coisa. Acho que anegociação da Alca foi uma das poucas iniciativasdo governo Lula bem construídas. Ele conseguiu,num gesto de competência, afastar o argumentodos serviços e da Alca total, da agenda de discus-são. Demonstrou que o governo, quando sabepara onde quer ir, consegue reverter o jogo de for-ças. Quando não sabe o que quer, fica subordina-do ao jogo ideológico do adversário. A negocia-ção da Alca é um bom exemplo de sabedoria polí-tica. É possível, porém, ver que, no governo, hásetores que trabalham fortemente contra isso, quedefendem um alinhamento automática com osEUA e com a estratégia do FMI. Estou vendo sinaiscontraditórios. Estou torcendo para que esses si-nais se construam, se pavimentem, mas não tenhoainda clareza.

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O Brasil regido por um “novo” padrão de desenvolvimento capitalista

Entrevista com José Carlos Braga

José Carlos Braga, professor no Instituto deEconomia da Unicamp, decidiu tornar pública asua diferença no modo de ver a conjuntura nacio-nal com relação a alguns de seus colegas econo-mistas da Unicamp. Na entrevista que concedeu àrevista IHU On-Line, em 29 de maio de 2006,Braga se contrapõe à opinião de seu colega eco-nomista Ricardo Carneiro, que acredita que oBrasil ainda vive numa crise de desenvolvimentodesde os anos 1980. Ricardo Carneiro concedeuuma longa e instigante entrevista ao Jornal da Uni-camp que reproduzimos nas Notícias Diárias, nodia 26-5-06, do sítio www.unisinos.br/ihu.

No entanto, o professor Braga afirma que vêesse debate e essa explicitação pública “comouma riqueza do nosso Instituto”. Braga é professorlivre-docente em Economia pela Unicamp e dire-tor do Centro de Estudos de Relações EconômicasInternacionais dessa mesma Universidade. Bragapublicou, entre outros, o livro Temporalidadeda Riqueza – Teoria da Dinâmica e Financei-rização do Capitalismo. Campinas : Editora doInstituto de Economia da UNICAMP, 2000. A en-trevista de Braga contribui para uma análise da si-tuação atual brasileira nos campos da economia eda política.

IHU On-Line – Quais as maiores divergên-cias sobre a realidade brasileira dentro doInstituto de Economia da Unicamp?

José Carlos Braga – Ricardo Carneiro diz o se-guinte no Boletim número 7 do Centro de Con-juntura, lançado em abril de 2006: “... a economiabrasileira ainda permanece à deriva. (p. 1) ...o pa-drão stop and go, típico dos últimos 25 anos...continuou a caracterizar a economia brasileira noperíodo recente” (p. 17). Pois bem, isso está erra-do simplesmente. Minha divergência é a seguinte:a partir de 1994, nós temos no Brasil um padrãode desenvolvimento capitalista que superou a cri-se do desenvolvimentismo que teve vigência entre1980 e 1994. Esse padrão que aí está não é umpadrão de que eu goste. Não é um padrão de de-senvolvimento furtadiano (de Celso Furtado19),que é o padrão que eu creio que a maioria dosbrasileiros gostaria que existisse. Entretanto, nósnão vivemos uma infindável crise econômica. NoBrasil, o padrão de desenvolvimento capitalista émedíocre, de baixas taxas de crescimento e baixainflação, e precisa ser mudado, mas não está à de-riva. Os problemas graves são o desemprego e adistribuição da renda, a pobreza e a miséria. A in-flação está baixa, não há estagnação econômica,tem superávit de balança comercial. As empresastêm lucro operacional e financeiro. Tem superávitfiscal primário demais. O problema é que é usadopara pagar juros demais. O capitalismo não temcompromisso com o emprego, nem com a distri-buição de renda e de riqueza, nem com cresci-mento sustentado.

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19 Celso Monteiro Furtado (1920-2004), bacharel em Direito e doutor em Economia pela Universidade de Paris-Sorbonne, foi omais importante economista brasileiro e um dos mais destacados intelectuais do País ao longo do século XX. Suas idéias sobreo desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiram das doutrinas econômicas dominantes em sua época e estimularam aadoção de políticas intervencionistas sobre o funcionamento da economia. (Nota da IHU On-Line)

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Já temos um sistema financeiro

Para entender as características desse novopadrão, deve-se entender primeiro que temosaté um Banco Central que, na prática, já é “inde-pendente” por ordem do Presidente Lula. Isso écomplicado e até indesejável, mas é mais um sin-toma de padrão de capitalismo moderno (sic!) dedesenvolvimento, queiramos ou não. Segundo,já temos um sistema financeiro “novo”. Algunscolegas da Unicamp, como o professor Carneiro,crêem que ainda temos restrições estruturais taiscomo “dificuldades de mobilização de recursospelo sistema financeiro doméstico” (p. 19 do Bo-letim do Cecon). Não concordo com isso também.O que falta no Brasil não é oferta de crédito, e sim,demanda de financiamento, falta demanda decrédito. E isso ocorre porque nós não temos umapolítica vigorosa de investimento público e assimnão há demanda efetiva geral já que o setor pri-vado fica “olhando” e “molhando a mão na liqui-dez da grana fácil com juros pagos pelo setor pú-blico”. Falta demanda de crédito ao sistema finan-ceiro, tanto público quanto privado. Os bancospúblicos no Brasil já estão prontos para financiar –BNDES, BB, CEF, BASA, BNB. O que falta é umprograma ampliado de investimento, tanto públi-co quanto privado.

Já temos uma moeda nacional

Terceiro, nós já temos uma moeda nacionalque está refundada desde 1994. Antes disso, nósnão tínhamos moeda, estava tudo monetariamen-te desorganizado. Era o chamado “dinheiro finan-

ceiro”, nas palavras da professora Maria da Con-ceição Tavares20. A moeda era indexada, dinheirodos ricos. A crise monetária e financeira que ex-pressou a crise do desenvolvimentismo des-dobrou-se entre 1979 e 1994. Belluzzo21 e JulioSergio Almeida analisaram-nas “definitivamente”no livro Depois da Queda22. Hoje, não é mais as-sim. Temos uma moeda que, ainda que seja incon-versível internacionalmente, que é o real, junta astrês funções básicas. O real serve para medir pre-ços, para ser meio de pagamentos e é reserva devalor internamente. O capitalismo está tão “inova-dor” e fictício que até já se especula no exteriorcom o próprio real. Isso ocorre no jogo financeirodos mercados derivativos dos grandes players, dosgrandes atores mundiais. É claro que, se o turistabrasileiro descer em Paris ou Nova Iorque, e depo-sitar uma nota de real na mesa de bar, o garçom vaichamar a ambulância ou o carro da polícia.

As empresas estão “muito bem,obrigado”!

Quarto ponto: as empresas brasileiras, tantoas nacionais quanto as multinacionais – grandes emédia-grandes – que estão aqui dentro do País,estão muito bem, obrigado. Elas estão com seusbalanços apresentando resultados muito bons, ga-nhando muito dinheiro. Todos esses quatro as-pectos somados constituem um padrão de desen-volvimento capitalista, padrão que está funcio-nando. Essa história de dizer que não tem padrãode desenvolvimento capitalista é uma históriavelha, de economista que ficou “viúva” do desen-volvimentismo antigo.

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20 Maria da Conceição Tavares (1930) é economista portuguesa e naturalizada brasileira. É também professora-titular daUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Filiada aoPartido dos Trabalhadores, Maria da Conceição já foi deputada federal pelo estado do Rio de Janeiro e é autora de diversoslivros sobre desenvolvimento econômico. (Nota da IHU On-Line)

21 Luiz Gonzaga Belluzzo é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutor emEconomia pela mesma instituição em que trabalha com tese intitulada Um Estudo Sobre a Crítica da Economia Política. Doprofessor Belluzzo, IHU On-Line publicou um artigo intitulado Até o FMI já percebeu, na edição nº 65, de 23 de junho de2003, uma entrevista exclusiva, com o título O Brasil está na fase de doente terminal, achando que vai dar tudo certo, na ediçãonº 77, de 29 de setembro de 2003 e o artigo O processo de mercantilização é antinatural especialmente elaborado peloprofessor para a edição da IHU On-Line sobre Karl Polanyi, de 27 de junho de 2005, nº 147. (Nota da IHU On-Line)

22 Depois da Queda – A Economia Brasileira da Crise da Dívida aos Impasses do Real. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002.

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As alternativas de saída

O que temos que fazer, em primeiro lugar, écompreender esse novo capitalismo que está aí,acoplado à globalização financeira, desde 1994,com a política de Fernando Henrique Cardoso ede Antonio Palocci. Em segundo lugar, para mu-dar isso, não temos que fazer (nuances e seqüen-ciamentos à parte) o que o Deputado Delfim Net-to, os senhores das “Garças” (Arida23, Bacha24 etalii) e até mesmo parte da “esquerda” estão a di-zer: que basta corrigir a taxa de câmbio, corrigir osuperávit primário e baixar a taxa de juros deva-garzinho. Não é isso!

Aliás, um debate à parte seria sobre o pessoalque “fundou” o “socialismo macroeconômico”,segundo a ironia do José Luiz Fiori25. Em vez dediscutir uma nova sociedade, ficam discutindo ascasas decimais da meta inflacionária, do superávite da taxa de juros.

Sugestões de mudança

É preciso colocar no centro o trinômio inves-timento-emprego-distribuição (de renda e de ri-queza). O início, por suposto, implica uma mu-dança negociada com o poder nacional e interna-cional acerca de alterações substantivas em câm-bio-juros e fisco. Aqui não são as casas decimais.É metamorfose mesmo. Por isso, é preciso nego-ciar, pois do contrário vem, aí sim, o “Exocet26”!Para isso mudar, deve haver um programa de in-vestimento público enorme, porém com respon-sabilidade fiscal. É preciso chamar o setor privadoe propor a rediscussão de um programa de inves-timento público e privado. Temos que liberar osbancos públicos para financiar investimentos, por-que eles estão travados pelo Fundo Monetário epelo Banco Mundial. E travados pelo Tesouro Na-

cional do Ministério da Fazenda do Brasil. Temque destravar. Os bancos públicos só podem em-prestar até 45% do seu patrimônio líquido para opróprio setor público. Isso tem que mudar. O novopresidente, seja ele quem for, tem que rediscutir oscritérios de investimento público, liberando espa-ço para o Brasil na STN, no BIRD, no FMI, nessaordem. Mesmo que sigamos com um superávit de3 a 4%, o que for investimento tem que sair daconta de despesa. Essa discussão chegou a acon-tecer, mas o que nós conseguimos de liberação fo-ram só dois bilhões de dólares, o que é ridículo.

O centro: distribuição de rendae crescimento

Precisamos, além disso, colocar no centro dadiscussão o crescimento com distribuição de ren-da. Alguns caíram no falso juízo de que basta reto-mar o crescimento que depois, na seqüência, ve-mos o que fazer com a questão distributiva etc.Não, eu penso que não mesmo! Nós já crescemosno passado, com Delfim Netto, que agora estápousando de neodesenvolvimentista, sem que apopulação tenha se beneficiado rigorosamente docrescimento. Falo do deputado Delfim apenas porele servir de paradigma para economizar palavrase ficar logo claro qual é a crítica. Temos que discu-tir, ao mesmo tempo, crescimento e distribuiçãode renda e a meta histórica de superar o subde-senvolvimento. Esse é o ponto, a essência daargumentação.

IHU On-Line – Quais os maiores problemasque o senhor vê com a divulgação da idéiade que o pensamento dentro do Instituto deEconomia tem uma posição única?José Carlos Braga – Em alguns momentos doBrasil, houve “naturalmente” uma posição única,

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23 Pérsio Arida é economista e um dos idealizadores do Plano Cruzado, em 1986, no Brasil, durante o governo do presidente JoséSarney. (Nota da IHU On-Line)

24 Edmar Lisboa Bacha é economista e diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica da Casa das Garças e ex-presidentedo IBGE (1985/86). (Nota da IHU On-Line)

25 José Luiz Fiori é cientista político. De Fiori reproduzimos o artigo A Bolívia, Honduras e o resto do mundo, originalmentepublicado no jornal O Globo, nas Notícias Diárias de 26 de maio, no sítio www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)

26 Arma de guerra.

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porque eram momentos fortes e necessários comoo da luta contra a ditadura e o da reconstituiçãoda democracia, após a queda da ditadura. Hojeem dia, porém, a discussão é sobre que tipo deprograma de desenvolvimento nós queremos.Então, as divergências se explicitam. Hoje, noInstituto de Economia, temos diferentes visões.Como o Instituto sempre se pautou por um debateintelectual e político muito intenso, o que aconte-ce é que essas divergências evoluem e serão expli-citadas publicamente. Eu tomei a decisão, e al-guns outros colegas também, de explicitar publi-camente essas opiniões. E isso é saudável. Mostraa força intelectual e política do Instituto.

As bases do Instituto de Economia

Porque nós somos uma escola de economiapolítica, cuja força teórica está calcada nos estu-dos de Marx27, Schumpeter28, Keynes29, Celso

Furtado, Caio Prado30, Florestan Fernandes31,Sergio Buarque de Holanda32, Conceição Tavarese de todos esses autores que pensaram o capitalis-mo e a sociedade com muita força e liberdade in-telectual, essa divisão de idéias é saudável, por-que o pensamento único emburrece. E a burricenão é privilégio nem da direita, nem da esquerda.Quando o pensamento vira único, a burrice tomaconta. Eu vejo esse debate e essa explicitação pú-blica como uma riqueza do nosso Instituto.

IHU On-Line – Por que o senhor consideradiscutível a afirmação de Ricardo Carneiro,quando ele diz que somos meramente pro-dutores e exportadores de bens primários enão podemos nos conformar com isso. Queevidências empíricas existem no sentido dedesmentir essa afirmação?José Carlos Braga – Todas. O Brasil é um paísque exporta aviões, celulares, automóveis, auto-peças etc. Sobre um país que tem esses itens de

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27 Karl Heinrich Marx (1818 – 1883), filósofo, cientista social, economista, historiador e revolucionário alemão, é um dospensadores que exerceram maior influência sobre o pensamento social e sobre os destinos da humanidade no século XX. Marxfoi estudado no Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia. A palestra A Utopia de um novo paradigmapara a economia foi proferida pela Prof.ª Dr.ª Leda Maria Paulani, em 23 de junho de 2005. O Caderno IHU Idéias, ediçãonúmero 41, teve como tema A (anti)filosofia de Karl Marx, com artigo de autoria da mesma professora. (Nota da IHUOn-Line)

28 Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) é um dos mais importantes economistas do século XX. Nasceu no impérioAustro-Húngaro, atual República Checa, foi um entusiasta da integração da sociologia como uma forma de entendimento desuas teorias econômicas. (Nota da IHU On-Line)

29 John Maynard Keynes (1883-1946), economista e financista britânico. Sua Teoria geral do emprego, do juro e dodinheiro (1936) é uma das obras mais importantes da economia. Esse livro transformou a teoria e a política econômicas, eainda hoje serve de base à política econômica da maioria dos países não-comunistas. De Keynes, publicamos um artigo e umaentrevista na 139ª edição, de 2 de maio de 2005, outra entrevista na 144ª edição, de 6 de junho de 2005, dois artigos na 145ªedição, de 13 de junho de 2005, e um artigo no Cadernos IHU Idéias número 37, de 2005. (Nota da IHU On-Line)

30 Caio Prado Júnior (1907-1990), pensador e político, publicou em 1942 sua obra mais importante, A Formação do BrasilContemporâneo, sofrendo perseguições devido ao seu alinhamento político com orientação comunista, tendo seu mandatocassado dois anos depois da publicação do livro. Seu livro criou, porém, uma tradição historiográfica no Brasil, identificada,sobretudo com o marxismo, buscando uma explicação diferenciada da sociedade colonial. Essa obra foi apresentada noevento I Ciclo de Estudos sobre o Brasil, promovido pelo IHU, em 14 de agosto de 2003, pela professora Marica EckertMiranda, da Unisinos, que concedeu uma entrevista ao IHU On-Line número 70, de 11 de agosto de 2003. (Nota da IHUOn-Line).

31 Florestan Fernandes (1920-1995), considerado o pai da sociologia brasileira, tem como principal obra o livro A revoluçãoburguesa no Brasil. Esse livro foi apresentado no I Ciclo de Estudos sobre o Brasil, promovido pelo IHU, em 9 deoutubro de 2003, pelo Prof. Dr. Carlos Águedo Nagel Paiva, pesquisador na FEE, que concedeu uma entrevista à IHUOn-Line número 78, de 6 de outubro de 2003. (Nota da IHU On-Line).

32 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), historiador brasileiro, também crítico literário e jornalista. Entre outros, escreveuRaízes do Brasil, de 1936. Obteve notoriedade com o conceito de “homem cordial”, examinado nessa obra. A professoraDr.ª Eliane Fleck, do PPG em História da Unisinos, apresentou, no evento IHU Idéias, de 22 de agosto de 2002, o tema Ohomem cordial: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e, no dia 8 de maio de 2003, a professora apresentou essamesma obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, nessa oportunidade, uma entrevista à IHU On-Line,publicada na edição nº 58, de 5 de maio de 2003. (Nota da IHU On-Line)

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exportação não se pode dizer o que ele disse.Alguém da Unicamp tinha que dizer o contráriopara não ficar parecendo que temos um “pensa-mento único e equivocado sobre um Brasil neo-primário-exportador”. Aí foi a gota d’água! Tomeia decisão: o debate precisa deixar de ser interno àUnicamp. E o professor Ricardo, que é um ho-mem a favor do debate e, quero frisar, grande ba-talhador na evolução institucional da Unicamp,compreendeu meu posicionamento de forma civi-lizada como não poderia deixar de ser. Nós, alémde produzirmos e exportarmos produtos primá-rios, temos aumentado a nossa pauta de exporta-ção de bens industrializados. Então, o professorCarneiro está equivocado.

IHU On-Line – O senhor fala da hipótese deque existe desde 1994, um novo padrão dedesenvolvimento capitalista na economiabrasileira coetâneo à globalização financei-ra. O que seria esse novo padrão de desen-volvimento capitalista, tendo em conta aglobalização?José Carlos Braga – Um padrão de desenvolvi-mento capitalista não pode ser confundido comprocesso de superação do subdesenvolvimento.O capitalismo não tem nenhum compromissocom a distribuição de renda, de riqueza, não temnenhum compromisso com o pleno emprego. Ocapitalismo só tem um compromisso, como nóssabemos, que é com a geração de lucro. Desteponto de vista, existe um novo padrão no Brasil.Com o real, foi resolvida a crise monetária. Foi fun-dada uma nova moeda, que cumpre as três fun-ções básicas que eu citei antes. Quando essa moe-da fraqueja, como fraquejou durante o governoFHC – 1998/1999, o FMI, os EUA, os países desen-volvidos credores vêm e bancam essa moeda fa-zendo empréstimos em dólar. Pode ser que um diaos EUA e os outros não a banquem, por isso há umpadrão instável e sujeito a crises, mas é um padrão.Eu diria que é um padrão do ponto de vista mone-tário, que é neodependente-americano-associado.

Privatizações e internacionalizações

Esse padrão também abarca a estruturaçãodo sistema financeiro. Os bancos públicos esta-duais foram privatizados. Poderiam em parte tersido reestruturados e seriam mais um instrumentohoje a serviço do desenvolvimento. Hoje os ban-cos internacionais têm uma participação impor-tante no sistema financeiro privado brasileiro, masainda não mostraram os benefícios prometidos.Poderão vir a fazê-lo num novo “modelo” de quefalaremos à frente. Já, os bancos privados nacio-nais foram reorganizados e estão se mantendomuito bem e até comprando parte dos estrangei-ros. E o sistema financeiro está pronto para finan-ciar o investimento. O que falta é demanda, faltaorganizar publicamente o investimento estatal eprivado com um determinado perfil de distribui-ção também.

Quem está bem e quem está mal nessaeconomia

As empresas que estão comandando essaeconomia estão muito bem. Quem não está bemnessa economia? São dois conjuntos importantes:as pequenas e média-pequenas empresas e agrande maioria da população. Entretanto, esta atéque melhorou com as políticas sociais do governoLula, o que não é suficiente, óbvio, mas melho-rou. A verdade é essa. As pessoas não querem re-conhecer isso. Mas por que o Presidente está bem,apesar dos problemas graves que o governo deletem? Ele está bem porque está fazendo uma políti-ca de rendas que está favorecendo o pessoal “debaixo”. As políticas sociais, como o Bolsa Família,estão favorecendo. O povo não está “desavisa-do”. Se não fosse favorecido, o povo não estaria“direcionado” para o presidente Lula, apesar dospesares. E bota pesares nisso!

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As exportações evoluem bem

Outra característica do atual padrão: apesarde a taxa de câmbio estar valorizada, as exporta-ções caminham muito bem no Brasil. Sim, é ver-dade que a explosão de crescimento internacionalexplica boa parte, mas é também porque as em-presas brasileiras exportadoras e as multinacio-nais que estão no País, estão microeconomica-mente preparadas para competir e têm uma certaestratégia de participação nos mercados, tendoem conta a “divisão internacional de trabalho” emandamento. Por isso, elas exportam.

IHU On-Line – Quais as conseqüências deuma economia em que a taxa de câmbio écorrigida, a carga tributária reduzida, masos juros praticamente não são reduzidos?José Carlos Braga – Diante desse padrão que aíestá, podemos usar de novo o “paradigma” Del-fim Netto. Ele defende a redução da carga tributá-ria, a correção da taxa de câmbio e a redução gra-dativa da taxa de juros. Quer reduzir gastos sociaispara produzir superávit fiscal nominal para pagarjuros e amortizar divida pública! Quando diz isso,é apenas para ajustar o padrão de desenvolvi-mento capitalista que acabei de descrever. E pon-to final. Isso significaria aperfeiçoar esse padrãode desenvolvimento que está aí, padrão esse queé perverso do ponto de vista da população. Den-

tro desse padrão, a população fica a depender“eternamente” de programas como o Bolsa Famí-lia. É um capitalismo, como diz o economista JoséRoberto Afonso33, do tipo Bolsa de Valores & Bol-sa Família. Não dá para continuar assim!

O projeto de desenvolvimento ideal

A população precisa de um desenvolvimentodo tipo idealizado por Celso Furtado que integreos âmbitos monetário-financeiro, produtivo-ino-vativo, distributivo, nacional e popular. Isso seriasuperar o subdesenvolvimento. Tão necessárioquanto imensamente difícil. Fazer o quê? Conti-nuar! Não se trata, portanto, de aperfeiçoar essemodelo que hoje existe. Nós temos que transfor-mar esse padrão que aí está.

IHU On-Line – Então a melhor proposta deprojeto de desenvolvimento para o Brasil dehoje seria o desenvolvimento furtadiano?José Carlos Braga – Ah! sim. É uma pena queele já tenha ido, porque a esquerda está ainda porreformular uma proposta. Nós só temos tido pro-postas muito limitadas, como essa de aperfeiçoaresse modelo perverso neodependente-america-no-associado. Conceição Tavares, porém, tem or-ganizado os seminários do Centro Celso Furtadoque têm levado adiante os debates e os ideais domestre enquanto a história segue aberta.

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33 José Roberto Afonso é economista brasileiro. (Nota da IHU On-Line)

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