Políticas culturais para as cidades

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  • 8/3/2019 Polticas culturais para as cidades

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    c o l e o c u l t

    Antonio Albino Canelas Rubim

    & Renata Rocha (Orgs.)

    Polticas Culturais para as Cidades

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    Polt icas Culturais para as Cidades

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    univer sidade federal da bahiareitor Naomar Monteiro de Almeida Filho

    vice reitor Francisco Jos Gomes Mesquita

    editor a da uni ver sidade federa l da bahiadiretora Flvia Goullart Mota Garcia Rosa

    cult centro de estudos multidisciplinares em cultur a

    coordenao Linda Rubim

    vice-coordenao Leandro Colling

    conselho editorialTitulares

    ngelo Szaniecki Perret Serpa

    Alberto Brum Novaes

    Caiuby Alves da Costa

    Charbel Nin El-Hani

    Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti

    Jos Teixeira Cavalcante FilhoMaria Vidal de Negreiros Camargo

    Suplentes

    Antnio Fernando Guerreiro de Freitas

    Evelina de Carvalho S Hoisel

    Cleise Furtado Mendes

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    A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i m

    & R e n a t a R o c h a ( O r g s . )

    c o l e o c u l t

    e d u f b a

    s a l v a d o r , 2 0 1 0

    Polt icas Culturais para as Cidades

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    2010, by autores

    Direitos para esta edio cedidos edufba.

    Feito o depsito legal.

    coordenao editorial Flvia Goullart Mota Garcia Rosa

    transcrio Mariana Dias de A rajo

    reviso Cida Ferraz

    normalizao Os autores

    diagramao Genilson Lima

    foto da capa Ingrid Klinkby

    apoio Conselho Estadual de Cultura da Bahia (cec-ba)

    Textos adaptados das exposies proferidas no iv Ciclo de Debates emPolticas Culturais: Polticas Culturais para as Cidades, realizado de 11 a 14

    de agosto de 2008 .

    edufba Rua Baro de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina,

    Salvador Bahia cep 40170 115 tel/fax 71 3283 6164www.edufba.ufba.br [email protected]

    sistema de bibliotecas ufba

    Polticas culturais para as cidades / Antonio Albino Canelas Rubim & Renata Rocha (orgs.). - Salvador : edufba, 2010.

    212 p. - (Coleo cult)

    Textos adaptados das exposies no iv Ciclo de Debates em Polticas Cultura is :

    Polticas Culturais para as Cidades, realizado de 11 a 14 de agosto de 2008.

    isbn 978-85-232-0689-5

    1. Poltica cultural. 2. Cidades e vilas. 3. Patrimnio cultura l. 4. Poltica urbana.

    5. Pluralismo cultura l. I. Rubim, Antonio Albino Canelas. II. Rocha, Renata. III . Srie.

    cdd - 353.7

    editora filiada :

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    1World Urbanization

    Prospects The 2007Revision Population.onu, 2007. . Disponvelem: .Acesso em: 15 mar. 2010.

    2Perf il dos Municpios

    Brasileiros 2008.IBGE, 2008. Disponvelem: .Acesso em: 15 mar. 2010.

    Apresentao

    Ao longo do ano de 2008, a populao que vive em reas ur-

    banas atingiu a proporo de 50% do total mundial, segundodados da Diviso de Populao das Naes Unidas. 1 Em outraspalavras, cerca de 3,3 bilhes de pessoas esto morando atual-mente em cidades. Esta realidade, porm, evidencia algunscontrastes. Embora este ndice j tenha sido alcanado nas re-gies mais desenvolvidas do globo, desde o ano de 1953, nasregies menos desenvolvidas, ser um fato apenas em 2019.Entretanto, os impactos da vida e das culturas urbanas certa-

    mente j repercute, de modo significativo, nos valores, hbitose tradies das zonas rurais, a partir da influncia de variadosdispositivos, dentre eles as redes de comunicao.

    No Brasil, tambm no ano de 2008, eram realizadas eleiespara prefeito e vereador nos 5.564 municpios2 do Pas. Em Sal-

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    3Falecido em 17 de marode 2009. Deixou umimportante legado depesquisas, estudos ereflexes nas reas de

    direitos humanos,violncia (com nfaseem violncia urbana),educao, cidadania edemocracia.

    vador, a Cmara de Vereadores aprovara, em uma sesso bas-tante conturbada, em dezembro de 2007, o controverso PlanoDiretor de Desenvolvimento Urbano (pddu), tema que passoua permear os debates eleitorais e alcanou relativa importncia

    nas propostas dos diversos candidatos.Neste contexto, o Conselho Estadual de Cultura da Bahia

    (cec-Ba) e o Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultu-ra (cult), buscando acompanhar criticamente os itinerriosda cultura contempornea, promoveram, em conjunto como Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura eSociedade (ps-cultura), da Universidade Federal da Bahia(ufba), da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (secult) e

    da Associao dos Professores Universitrios da Bahia (apub) o iv Ciclo de Debates em Polticas Culturais, com a temtica:

    Polticas Culturais para as Cidades.Para este Ciclo, foram convidados pesquisadores, profissio-

    nais, gestores e polticos, oriundos de diversas reas, que tmse destacado, no estudo e na atuao, pelo debate sobre o temadas cidades e da cultura. So administradores, economistas, so-cilogos, antroplogos, educadores, gestores pblicos e, obvia-

    mente, urbanistas e arquitetos. A fim de promover a necessriamultiplicidade de interpretaes, perspectivas e maneiras deperceber a cidade, foi estabelecido um tempo reduzido para quecada um deles apresentasse, mais uma provocao, do queuma exposio em moldes tradicionais. As falas, transcritas ecuidadosamente revisadas, somadas a um artigo do socilogo eprofessor Gey Espinheira,3 escrito para o evento, tomaram en-to a forma deste livro. O resultado uma surpreendente, den-

    sa e expressiva ampliao do debate, atravs da pluralidade dasvises sobre este tema to atual quanto complexo: as conexescontemporneas entre cidade e cultura.

    A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i mR e n a t a R o c h a

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    s u m r i o

    1

    A Cidade como FenmenoCultural na Contemporaneidade

    13

    A p r es en t a o

    Leonardo Boccia

    17

    O F en m en o U r ba n o c o m o F en m en o C u lt u r a l

    Afonso Florence23

    C ida de C o n t em p o r n ea e C u lt u r a : Ter m o s de u m im p a s s e?

    Ana Fernandes

    29

    A C ida de c o m o F en m en o C u lt u r a l :

    a p o n t a m en t o s p a r a u m a a bo r da g em g eo g r f ic a

    Angelo S erpa

    33

    A s c ida des e s u a s c o n t r a di es

    Ubiratan Castro de Arajo

    39

    C ida de, C u lt u r a e P o l t ic a s P bl ic a s

    Maria de Azevedo Brando

    ii

    Cidade e Patrimnio Cultural

    49

    A p r es en t a o

    Antonio Albino Canelas R ubim

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    51

    C a r n a v a l , c u lt u r a u r ba n a e p o l t ic a s c u lt u r a is em Sa lv a do r

    Clmaco Dias

    57

    P a t r im n io C u lt u r a l : qu es t es p a r a u m deba t eEugnio Lins

    61

    A ex p er in c ia do ipac n a p r e s e r v a o

    do p a t r im n io c u lt u r a l n a B a h ia

    Frederico Mendona

    67

    D i f e r e n a versus I den t ida de n o s p r o c es s o s c u lt u r a is

    Pasqualino Romano Magnavita

    75

    O P a t r im n io de u m a C ida de

    Valdina Pinto

    iii

    Polt icas Culturais e Cidades85

    A p r es en t a o

    Paulo Miguez

    89

    C u lt u r a e C ida de

    Paulo Ormindo de A zevedo

    97Sa lv a do r e o des a f io da g es t o c u lt u r a l

    Paulo Costa Lima

    109

    C u lt u r a n a p o l t ic a de t r a n s fo r m a o dem o c r t ic a da c ida de

    Javier Alfaya

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    R ef lex es s o br e a c u lt u r a e a s c ida des

    Frederico Mendona

    123

    A r ede edu c a c io n a l c o m o ba s e p a r a a o e m edia o c u lt u r a lSergio Coelho Borges Farias

    iv

    Polt icas Urbanas e Cultura

    131

    A p r es en t a o

    Lia Robatto

    133

    O jo g o da c u lt u r a n o m u n do c o n t em p o r n eo

    Gey E spinheira

    135

    Sa lv a do r : C ida de C r ia t iv a ?

    Paulo Henrique de Almeida

    141Sa lv a do r : p r o blem a s e p o t en c ia is da p o l t ic a c u lt u r a l

    Marcus Alban

    149

    U m p r o jet o de g es t o p a r a Sa lv a do r

    Tnia Fisher

    v

    Diversidade e Culturas Urbanas

    159

    A p r es en t a o

    Ana Clia da Silva

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    161

    N o t a s s o br e C ida de e C u lt ur a

    Paola Berenstein Jacques

    167

    A c u lt u r a da c ida deEneida Leal Cunha

    173

    D ep o im en t o n o C o n s elh o de C u lt u r a

    Ruy Espinheira Filho

    181

    D iv er s ida de e C u lt u r a s U r ba n a s : u m a br ev e r ef lex o

    Antnio Jorge Victor dos Santos Godi

    An e x o

    191

    C u lt u r a , c ida de e dem o c r a c ia :

    o jo g o da c u lt u r a n o m u n do c o n t em p o r n eo

    Gey Espinheira

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    Ficha tcnica do evento

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    i

    A Cidade como FenmenoCultural na Contemporaneidade

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    *Professor (Coordenador) doPrograma de Ps-Graduao emCultura e Sociedade e do Institutode Humanidades, Artes e CinciasProfessor Milton Santos daUniversidade Federal da Bahia.

    Apresentao

    L e o n a r d o B o c c i a *

    Parece-me que a proposta fazer uma exposio dedez minutos, o que realmente pouco. Sempre cos-tumo dizer que um concerto de msica daria pelomenos uns vinte minutos, com temas, variaes, ex-posies... Ento, a gente no vai poder variar muitoaqui, apenas expor um tema e, entretanto, ao contr-

    rio, teremos debate aberto, logo em seguida.Eu preparei aqui algumas provocaes sobre a ques-

    to da cultura e depois passo a palavra para o nossoprximo palestrante. Bom, como eu tambm tenhodez minutos, vou fazer algumas provocaes.

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    Para Milton Santos, conhecimento saber. Quero cit-lo por-que importante para a provocao que preparei. Conhecimentoe saber renovam-se do choque de culturas, sendo a produo denovos conhecimentos e tcnicas produto direto da interposio

    de culturas diferenciadas no somatrio daquilo que anterior-mente existia. Terry Eagleton, contudo, em seu livroA idia decultura, adverte que cultura, no sentido de religio, nacionali-dade, sexualidade, etnicidade etc., um campo de batalha feroz,de modo que, quanto mais prtica se torna uma cultura, menosela capaz de cumprir um papel conciliatrio e, quanto maisconciliatria ela , mais ineficaz se torna. A expresso guerrasculturais sugere batalhas campais entre populistas e elitistas.

    O choque entre culturas, com C maisculo e c minsculo,entretanto, j no mais simplesmente uma batalha de defini-es, mas um conf lito global. uma questo de poltica real, noapenas polticas acadmicas. Acho que todo mundo viu nas olim-padas de Pequim e no est assistindo um pouco essa questo,essa imposio, essa viso de espetculo da cultura... um poucosobre isso que eu quero falar. A vitalidade das culturas, para mim,depende tanto da preservao de seus valores como da criao de

    novos modelos. Porm, pelo lado do intercmbio contnuo, noencontro e nos choques com outras culturas, que proporcionamsaltos e deslocamentos essenciais expanso do conhecimentoe do sentimento, que sempre se fala em conhecimento, mas seesquece, por outro lado, que ns sentimos muito mais do quesabemos. Na maioria das vezes, essa renovao/expanso con-tnua, a questo do flutuar contnuo que permite saber e sentir,que se distinguem, que distinguem, unem e dividem as diversas

    regies do mundo, em seus valores, movimentos e transforma-es culturais, encontra na Universidade um espao favorvel investigao multi, inter e transdisciplinar.

    Diferentes conhecimentos cooperam entre si para observarcada objeto de estudo e descobrir novos dados essenciais sobre

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    a p r e s e n t a o 1 5

    as culturas que marcam grupos, regies e naes. Culturas queimprimem a marca representativa da imagem nacional que, vol-tada para o mundo, busca o intercmbio vital sua renovao.Embora isso possa parecer um pouco erudito, no fundo muito

    simples: o que eu quero trazer aqui que, nessa intensa circulaode signos e smbolos, neste momento, o contedo imaginrio fazcom que o gigantesco mercado de imagens, msicas e sons sejacobiado por grandes companhias transnacionais. Um exem-plo: a Corbis, empresa fundada por Bill Gates, em 1989, para sera maior provedora de imagens de arte e fotografia na Internet(www.corbis.com), anunciou sua entrada em um novo ramo denegcios, com a aquisio da Sigma, agncia lder no mercado

    de fotos jornalsticas. Esta aquisio revela os planos agressivosda Corbis para criar uma nova plataforma digital que oferecernotcias em tempo real, imagens de celebridades, para editorese consumidores, via Internet. Com a compra da Sigma, a Corbispassa a possuir a maior coleo de imagens do mundo, com maisde 65.000.000 (sessenta e cinco milhes) de fotografias, sendoque, mais de 2.000.000 (dois milhes) dessas imagens esto dis-ponveis on-line, tornando-a tambm detentora da maior coleo

    de imagens digitais. Mas, para alcanar novas metas, no intercm-bio entre as naes, preciso que a cooperao nacional assegurevantagens recprocas, pois apenas isso garante um mundo maisjusto, cidades mais humanas, lugares culturalmente dignos.

    Segundo o relatrio da Unicef, Children cover in rich country,de 2005, por exemplo, cerca de 47.000.000 (quarenta e sete mi-lhes) de crianas que vivem em pases ricos so pobres. Mxicoe Estados Unidos lideram a lista dos pases da Organizao de

    Cooperao e Desenvolvimento Econmico (ocde), de pa-ses onde vivem crianas em relativa pobreza. Mais de uma, emquatro crianas, no Mxico, 26,2%, e mais de uma, em cinco,nos Estados Unidos, 22,4%, so pobres. Contudo, esses dadosno costumam ser divulgados na mdia de massa ou raramen-

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    1 6 l e o n a r d o b o c c i a

    1Cf: < http://www.fco.gov.uk/en/about-us/publications-and-

    documents/publications1/pd-publication/national-reputation >.Acesso em: 27 jun.2008.

    te o so. Na realidade, os pases em desenvolvimento recebemmais cobertura miditica negativa que os pases industrializados.Segundo Simon Anholt,1 autor, pesquisador e membro inde-pendente do escritrio de Diplomacia Pblica da Comunidade

    Exterior do Reino Unido, a reputao nacional no pode serconstruda, ela s pode ser merecida. Contudo, essa estima in-ternacional que propicia aos pases ricos intercambiar entre asnaes da comunidade internacional, na maioria das vezes semgarantir vantagens recprocas, precisa ser construda, e paraisso, influentes e inteligentes companhias de mdia de massatransnacionais selecionam e distribuem produtos-chave, deudio e audiovisuais, nos quais, detalhes essenciais que nos

    permitem ver-ouvir o mundo como ele de fato , so simples-mente omitidos.

    A dependncia da mdia brasileira no mbito internacionaltem dificultado projetar outras imagens, sons do Brasil, a no seraquelas diariamente distribudas, de um coquetel de crimes, vio-lncia e drogas, insegurana e corrupo, impunidade e desres-peito aos direitos humanos. No entanto, nesse megaespetculomiditico mundial, e por motivos econmicos bvios, questes

    ideolgicas fundamentais e abuso aos direitos humanos, entreoutras crueldades, so geralmente silenciados ou primorosa-mente maquiados.

    Eu queria deixar essa provocao porque j que moro noBrasil h 32 anos e gosto muito da Bahia eu percebo que essacampanha para denegrir pases se tornou um grande negcio.Ento, quero deixar claro, que s vezes, cidades com qualidadesextraordinrias so vistas como cidades-problema ou pases-

    -problema. A gente assistiu agora, no caso da Olimpada, a umasrie de crticas ao regime e, no entanto, na festa de abertura, as-sistimos a esse megaevento, dirigido pelo cineasta Zhang Yimou,e que deu realmente a entender que aquela cultura de fato possuiuma fora extraordinria.

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    O Fenmeno Urbanocomo Fenmeno Cultural

    A f o n s o F l o r e n c e *

    Quero primeiro agradecer ao Conselho de Cultura eaos organizadores deste evento pela oportunidade devoltar ao ambiente de reflexo terica e, em particular,de poder interagir com tantos profissionais e pesqui-sadores universitrios.

    O fenmeno urbano eminentemente um fenme-no cultural. Esta afirmao ganha conotao universal,mas tambm particular, nacionalmente, entre as so-

    ciedades, assim como regional, e at mesmo intraur-bana, quando consideramos as metrpoles complexas.Do ponto de vista universal, possvel afirmar quea humanidade testemunhou muitos povos consti-turem diferentes experincias civilizatrias que se

    * poca, Secretrio deDesenvolvimento Urbano doEstado da Bahia. Mestre em HistriaSocial pela Universidade Federal daBahia. Professor da UniversidadeCatlica do Salvador.

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    1 8 a f o n s o f l o r e n c e

    expressaram em determinadas formas de aglomerao humana.Durante os ltimos duzentos anos, o sistema capitalista mundia-lizou-se de forma no pacfica e promoveu uma nova modalidadede aglomerao urbana, que pode ser submetida a uma catego-

    rizao que busque apreender as diferentes expresses daquiloque poderamos chamar de cultura material urbana. possvelafirmar que, do ponto de vista sistmico, h uma tendncia deuniformizao do padro urbanstico, a partir, principalmente,da produo corporativa das cidades, e da dinmica de reprodu-o da mais-valia urbana.

    A experincia de reproduo das cidades brasileiras no fogea esta regra geral das cidades capitalistas. Neste contexto, expe-

    rimentamos uma complexa dinmica histrica de constituiode diferentes modos de vida urbanos, em decorrncia da diver-sidade cultural nacional. A despeito das enormes diferenasculturais regionais, possvel afirmar que a dinmica econmicano Brasil propiciou condies de urbanizao muito similarese a reproduo de caractersticas urbanas comuns: crescimentodesordenado, segregao classista e tnica, baixa urbanizao naszonas urbanas ocupadas pela populao de baixa renda, assim

    como a constituio de variantes urbanas da estratificao socialdeterminada pela sociedade nacional.

    Nesta perspectiva, mais do que um fenmeno cultural, a cida-de um fenmeno cultural multifacetado que, tanto possui suadinmica de crescimento entrecortada pela lgica de acumulaodo capital como, tambm, por diferentes outros fatores.

    A histria recente no Brasil viu surgir novos personagens cole-tivos urbanos, constituindo um amplo e variado leque de classes,

    fraes de classe, segmentos sociais e grupos de presso comoas tribos urbanas. Viu surgir, ao mesmo tempo, um pujantemovimento social urbano que, nos anos 80 em Salvador, ganhoua forma de movimentos contra a carestia e, posteriormente, dedefesa dos favelados.

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    o f e n m e n o u r b a n o c o m o f e n m e n o c u l t u r a l 1 9

    Mais recentemente, conformou-se como movimento de lutapela moradia que, ao entrar na cena poltica, passou a interferirno destino das nossas cidades, protagonizando algumas dassuas dinmicas mais decisivas. Portanto, alm da dinmica de

    reproduo da mais-valia urbana e de outras variveis, tambmas presses dos segmentos sociais, que se organizam para lutarpor seus direitos, em particular, daqueles que lutam pelo direito moradia, passaram a interferir no processo de modelagem cul-tural das cidades. Assim, considerando a cultura como um modode vida, possvel afirmar que os segmentos sociais que lutampela moradia contribuem com a modelagem cultural das cidades.

    Isto se d desde a forma como edificam suas moradias e do

    urbanidade ao seu entorno dinmica entrecortada pela pressoda produo corporativa das cidades, pelo ordenamento do usodo solo exclusivamente sob a gide da reproduo da mais-valiaurbana at o impacto na dinmica urbana do seu cotidiano deorganizao e apresentao sociedade e, em especial aos pode-res constitudos, de suas reivindicaes.

    Tenho vivido a experincia do mandato de Secretrio em con-dies histricas muito particulares, menos pela minha trajet-

    ria de ativista dos movimentos sociais e mais pela circunstnciahistrica decorrente da confluncia entre a existncia de disposi-tivos constitucionais que garantem a funo social da proprieda-de e o direito moradia, com o Estatuto das Cidades (Lei Federal10.257/2001) e, no mbito estadual, da Lei 10.704/2007, quepermitiram a constituio do Conselho Estadual das Cidades,suas Cmaras Tcnicas de Habitao, Saneamento e Mobilidade,alm da implementao de uma arrojada poltica de participao

    e controle social na elaborao e execuo das polticas estaduaisde saneamento e habitao.

    Com a Poltica Estadual de Habitao de Interesse Social(pehis) instituda atravs da Lei 11.041/2008 conseguimosexecutar o maior e mais importante programa de habitao

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    2 0 a f o n s o f l o r e n c e

    popular da histria da Bahia, investindo cerca de R$ 1 bilhoentre recursos da Unio e do Estado baiano: o Programa Casada Gente, do governo da Bahia. Sero mais de 50 mil unidadeshabitacionais, construdas ao longo de quatro anos, atravs de

    parcerias com prefeituras, entidades da sociedade civil represen-tativas dos movimentos sociais de luta pela moradia nas cidadese entidades representativas de movimentos sociais de luta pelaterra no campo.

    Alm disso, destacamos a presena de diversas entidades dasociedade civil algumas integrantes do Conselho das Cidades(Concidades) e sua participao na execuo da poltica es-tadual de habitao de interesse social e no Programa Casa da

    Gente, inclusive na captao de recursos junto aos governos esta-dual e federal. Assim, com o protagonismo de entidades como aFederao dos Trabalhadores na Agricultura no Estado da Bahia(fetag), a Federao dos Trabalhadores da Agricultura Familiar(fetraf) e a Unio Nacional por Moradia Popular, entre outras,no exagero afirmar que contribumos para um cenrio emque estes novos personagens entraram em cena. Vale ressaltarque estas entidades da sociedade civil tambm participaram

    do processo de elaborao da Poltica Estadual de SaneamentoBsico que, como a de habitao, foi originada em intensa partici-pao social. Para cada uma delas foram realizadas 16 audinciaspblicas, com a participao de mais de duas mil pessoas, discu-tindo cada uma das respectivas propostas de polticas, no casoda habitao, j com uma minuta do Projeto de Lei. A PolticaEstadual de Saneamento Bsico abriga o Programa gua ParaTodos, que investe cerca de R$ 3 bilhes o maior programa de

    gua e saneamento da histria da Bahia.Com o surgimento destes novos personagens sociais, somado

    ao acelerado processo de urbanizao da sociedade brasileira, possvel afirmar que, no bojo das transformaes ocorridas noseio da sociedade civil brasileira, merece destaque o surgimen-

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    o f e n m e n o u r b a n o c o m o f e n m e n o c u l t u r a l 2 1

    to de uma nova agenda poltica: a sustentabilidade das cidades. fato que esta noo possui vrias interpretaes, mas, no quediz respeito s demandas do movimento de luta pela moradia,podemos identific-la com a busca de condies dignas de mo-

    radia, ou seja, a habitabilidade das cidades. no mbito da sociedade civil, dentro do mosaico de foras so-

    ciais com que se articula e aliana o movimento de luta pela mo-radia, que a luta pela habitabilidade das cidades ganha contornosambientais e o apoio de outros importantes segmentos sociais.Portanto, com o acrscimo de um conjunto de pontos propria-mente ambientais, que a luta pela qualidade do habitaturbanose delineia como agenda de luta pelas cidades sustentveis.

    Com o fenmeno das mudanas climticas, associado a umconjunto de problemas ambientais urbanos, assim detectadospor um nmero crescente de formadores de opinio e por umnmero cada vez mais amplo de setores mdios urbanos, en-trou na agenda poltica a busca de solues sustentveis para ascidades. Com isto, ao tempo em que o movimento de luta pelamoradia ganhou mais legitimidade poltica, surgiu um pujantemovimento pela sustentabilidade e pela busca de um padro

    de vida mais saudvel nas cidades. Mais do que uma identidadedecorrente da posio ocupada no processo de produo, estadinmica de luta poltica urbana constitui mltiplas identida-des e laos de solidariedade que, a partir de diferentes matrizesclassistas, majoritariamente da populao de baixa renda, cos-tura um bloco de foras sociais e polticas que articula um novotecido social urbano, dirigido para a construo de cidades maissolidrias, justas e sustentveis.

    neste complexo contexto, marcado pela coliso entre a pro-duo corporativa das cidades e a luta por cidades sustentveis,constitudo por diferentes atores sociais, que se delineiam impor-tantes dimenses da cultura urbana brasileira contempornea.

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    Cidade Contempornea e Cultura :Termos de um impasse?

    A n a F e r n a n d e s *

    *Professora da Faculdade de

    Arquitetura da UniversidadeFederal da Bahia. Pesquisadora doConselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico eTecnolgico (cnpq). Conselheira doConselho Estadual de Cultura.

    Em primeiro lugar, eu gostaria muito de agradecer o

    convite a todos os promotores deste evento e dizer quesempre me sinto muito honrada em participar dessetipo de discusso, em poder compartilhar com pessoasto emritas o debate sobre as cidades, sobre a cultura.

    Comearia dizendo que a relao entre cidade ecultura uma relao de longussima temporalidadee que, portanto, tratar dessa questo em dez minutosexige, obviamente, um recorte para que ela comece a

    ser trabalhada. O tema da mesa A cidade como fen-meno cultural na contemporaneidade e uma opo

    buscar pensar na cidade brasileira hoje, mais particu-larmente na Salvador de hoje, como essa relao entrecidade e cultura vem sendo aqui construda.

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    1O presente seminrioaconteceu em agostode 2008, momento ao

    qual imediatamente seseguiu a abertura daenorme crise financeirainternacional, queavassalou os mercadose as atividadeseconmicas, de modogeral.

    Logo que o atual Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula daSilva, foi eleito, ele comeou a apregoar o espetculo do cresci-mento e durante algum tempo isso foi motivo de anedota. O quese assiste desde 2007 um processo de crescimento econmico

    no Brasil, e no s no Brasil. 1 Este momento de crescimento tambm um momento de crise, entendendo crise como pro-cesso de destruio do existente e de criao do novo. A crisedo crescimento, portanto, nos abre a mudana e a transfor-mao como perspectivas ou, esperanosamente, a possibi-lidade de conquista de melhores condies sociais, culturais,urbanas e urbansticas.

    Assim, vemos, por todo lado, um processo de construo e

    de reconstruo extremamente acelerado das cidades, seja pelolado fsico, concreto, palpvel, seja pela interface imagtica edigital. Mas esse processo nem sempre nos traz uma perspectivaagradvel, do ponto de vista do sentido em que as cidades estose transformando hoje, particularmente em termos da cultura.

    E para particularizar a abordagem dessa relao cultura-cidade,vou privilegiar um campo da produo cultural da cidade, minharea de trabalho, que a arquitetura e o urbanismo campo nem

    sempre, alis, reconhecido como esfera de produo de cultura,relegado que foi esfera da produo bruta de mercadorias imo-

    bilirias e de obras questionveis de infraestrutura.De incio, importante reincorporar a ideia da cidade como

    obra, formulao de Henri Lefebvre, ainda nos anos 60, quandobuscava contrapor, produo, de forma majoritria e hegemni-ca, da cidade como valor de troca, a cidade como valor de uso. Issosignifica atentar para os processos de produo que esto alm

    dos valores puramente mercantis, reduzidos a um equivalentegeral e intercambivel, ou seja, para os processos simblicos, desociabilidade, de criao, de urbanidade.

    Entender a cidade como obra traz, portanto, como possibilida-de, o entendimento dos seus complexos processos de significa-

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    2Para Milton Santos,o espao pode sercaracterizado como umsistema de objetos e umsistema de aes.

    o, parte essencial de sua produo material, ambos respostas snecessidades da vida coletiva. A produo de objetos na cidade,2portanto, estaria duplamente e indissociavelmente vinculada aduas esferas de inteligibilidade: material e simblica. A cidade

    entendida (e produzida) como obra traria ento a possibilidadede prevalncia da necessidade e da liberdade do uso sobre a cir-culao e a realizao da mercadoria.

    Pode-se interrogar ento como vem se dando a produo deobjetos urbanos, da arquitetura e do urbanismo na cidade con-tempornea, e mais particularmente em Salvador.

    A arquitetura, evidente, tem uma tradio de ser pensadaenquanto objeto cultural na cidade. Grande parte de sua histria

    construda nessa perspectiva. No entanto, a crise de crescimen-to atual parece estar colocando em cheque, em nossa cidade, oconjunto da produo de objetos, pela reafirmao de mo nicado mercado e uma pfia ou simplria regulao pblica dessa pro-duo. O que vem gerando, de forma crescente, contnua e cruel,um processo de despossesso de valor simblico acentuaoacelerada da insignificncia e/ou do exibicionismo e um pro-cesso de despossesso de valor tcnico tecnologias utilizadas

    de forma conservadora, sem explorao das possibilidades queelas carregam ao lado de uma produo acelerada de objetos ede intervenes de dimenses cada vez maiores na cidade.

    Ento, o entendimento da cidade, como obra ancorada no valorde uso, deveria estar calcado em uma capacidade de problema-tizao da sensibilidade contempornea, em sua complexidadee multiplicidade, adversidades e abertura criao. No entanto,nossas cidades hoje esto prenhes de um processo de produo

    de objetos que voraz, desigual, contnuo, recorrente.Em Salvador, a crise da produo contempornea de objetos

    urbanos, inclusive a arquitetura e o urbanismo, tem demonstra-do, a meu ver, muito mais sua faceta conservadora e oportunista,do que a abertura a novos processos de (re)criao da vida cole-

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    3Artigo 347 da Lei

    7.400/2008 , ou Lei doPlano Diretor deDesenvolvimentoUrbano.

    tiva. Os programas tm sido repetitivos; as propostas, formais,enfadonhas; o acesso, restrito; a tcnica, maquiada.

    Podem ser apontadas trs ncoras principais desse processo:a cultura da privatizao, a cultura do desperdcio e a cultura da

    ignorncia e do imediatismo.Em termos de cultura da privatizao, evidente o momento

    de crise do espao pblico em que vivemos, onde, recorren-temente, tudo que pblico, tudo que coletivo entendidocomo algo menor, como algo desimportante, como algo peri-goso, que ameaa e que no responde s nsias de crescimentoeconmico, de gerao de empregos e de acmulo e desfrutede riqueza. Nesse sentido est se produzindo, sem sombra de

    dvida, uma anticidade, onde os condomnios fechados tmcada vez mais espao, tm cada vez mais legitimidade cultu-ral, social, econmica, poltica e jurdica. Particularmente nocampo jurdico, vale ressaltar que, nesse momento, tramita naCmara dos Deputados um projeto de lei chamado de Lei deResponsabilidade Territorial. Pela constituio atual, toda reapblica de livre acesso e isso que garante, ou deveria garantir,que ruas, praas e praias estejam acessveis a todos. Esse Projeto

    de Lei bastante polmico pois, ao mesmo tempo em que tentagarantir que as reas pblicas dos loteamentos (muitos trans-formados posteriormente em condomnios) fiquem acessveisa todos, fora dos muros, ele tambm regulamenta a existnciade reas fechadas ao acesso pblico, situao que, a dependerde sua dimenso, pode gerar transtornos enormes de fluideze mobilidade no tecido urbano, alm de legitimar a construode cidadelas como soluo urbanstica para a cidade contem-pornea. Salvador, nesse sentido, infelizmente antecipou-se aesse projeto de lei, na medida em que foi aprovado, pela atualgesto municipal, que empreendimentos de at cinco hectares,independentemente do nmero de unidades que os integrem,no precisam mais fazer doao de reas pblicas na cidade.3

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    Essa legitimao aciona vrias esferas e, inclusive, existem pro-postas vindas de parte do prprio movimento social hoje, de queos loteamentos fechados passem a compor tambm alternativaspara a habitao de interesse social.

    A questo principal que a soma ou a justaposio de espaosprivados no faz uma cidade. Essa uma crise e um drama docrescimento atual, na medida em que se est abandonando a ideiamais simples e mais corriqueira de cidade: as relaes de troca,de convivncia, do encontro do diferente, do coletivo e da possi-bilidade de solidariedade e de conf litualidade no espao urbano.

    Em termos da cultura do desperdcio, j se est acostumadoa que os objetos computador, geladeira, fogo, mquina foto-

    grfica devam ser trocados a cada trs ou quatro anos. Nadamais dura muito. Tudo tem que ser recorrentemente trocado,abandonado, e isso est acontecendo tambm com o espao dacidade. A produo infindvel de espao novo, caracterstica decertas formas de crescimento, faz necessariamente sucumbirreas inteiras da cidade. Quanto mais se constri na vertenteatlntica de expanso de Salvador Iguatemi, Paralela, Orla,Lauro de Freitas , mais se esvaziam, na mesma medida, outras

    reas da cidade. Assim, assistimos repetio e acelerao de pro-cessos que j esvaziaram reas centrais, como o Comrcio aquiem Salvador. Simplesmente porque no h demanda que sejacapaz de dar conta dessa quantidade de novos objetos que vmsendo construdos na cidade. Portanto, a produo se pauta hojepor uma populao inexistente, o que, muito em breve, podefazer com que os espaos novos que pontuam nossos horizontes

    j sejam, eles mesmos, espaos fantasmas na cidade. Isso pode

    ser visto em vrias cidades americanas, com a ltima crise, a dabolha imobiliria, que devastou enormes reas urbanas. Ento,ao lado de reas cada vez mais privadas, de reas de circulaoextremamente restritas e controladas, ns vamos ter tambmreas vazias em nossas cidades.

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    Por fim, ignorncia e imediatismo, derivados de uma culturaadministrativa e de uma cultura poltica reduzidas a uma di-menso meramente eleitoral, geram, em nome de uma pretensagovernabilidade, um processo de acordos e de decises parti-

    cularmente no que se refere a grandes investimentos na cidade que, em grande parte, abdica da complexidade da vida urbana ede suas vrias instncias de urbanidade. Isso tem gerado um em-pobrecimento avassalador da cultura tcnica e da produo dosobjetos, o que pode ser visto com muita facilidade nas interven-es que vm sendo feitas sequenciadamente em nossa cidade.O que so os projetos da Via Expressa, da cobertura de rios, dasbarracas de praia, dos novos empreendimentos imobilirios?

    Essa constatao pode mesmo englobar as vrias formasde manifestao da cultura, desde a produo da cermica deMaragojipinho hoje bastante atordoada pela maneira comoela passa a ser inserida no mercado turstico at a produode edifcios, a produo de espao pblico, a produo de equi-pamentos coletivos, que passam a ser regidas por uma lgicacorporativa e eleitoreira, onde o papel do pblico em grandeparte se desfaz, desprezando-se as possibilidades de construo

    material e simblica de outras formas de vida coletiva.Os processos de constituio e de amadurecimento da socie-

    dade civil so longos e o papel da crtica fundamental nessecaminho. As possibilidades de ao so muito maiores e ins-tigantes, e elas so reais, essas possibilidades, naquilo que ascidades nos trazem enquanto vida coletiva e enquanto criaocoletiva da vida.

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    A Cidade como Fenmeno Cultural :apontamentos para uma abordagem geogrf ica

    A n g e l o S e r p a *

    *Professor Associado do

    Departamento de Geografia daUniversidade Federal da Bahia,pesquisador do Conselho Nacionalde Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico (cnpq).

    1Ver, por exemplo: lefebvre, H.O direito cidade. So Paulo:Moraes, 1991 e lefebvre, H.

    A revoluo urbana. 2 reimp.Belo Horizonte: ufmg, 2004 .

    A fonte inicial de inspirao para esta breve reflexo

    o pensamento do filsofo Henri Lefebvre1 e o desafioposto o de pensar a cidade como fenmeno cultural.Esta uma reflexo de algum que trabalha com geo-grafia urbana e com uma abordagem cultural para osestudos e pesquisas no campo da Geografia.

    A ideia de cidade como fenmeno cultural poderiaser traduzida e sintetizada atravs da ideia de centra-lidade. Pensar a cidade como centralidade leva tam-

    bm a pens-la como a possibilidade de encontro, deaproximao, de simultaneidade, de reunio, de inter-cmbio e de relaes. Ento, a cidade como fenmenocultural , sobretudo, uma cidade que centraliza ascriaes humanas.

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    2virilio, P.A bombainformtica. So Paulo:Estao Liberdade,1999.

    A palavra-chave para entender a cidade enquanto fenmenocultural parece ser, portanto, articulao. Articulao de dife-rentes contedos e de diferentes ideias de cultura.

    preciso, por outro lado, negar categoricamente o carter

    ontolgico da cultura. A cultura uma inveno burguesa e,portanto, trabalhar a cidade como fenmeno cultural implicapartir justamente da possibilidade de manifestao de outrasideias de cultura na cidade.

    necessrio tambm admitir a manifestao e o embate dediferentes ideias de cultura na cidade. O que h, na verdade, somltiplas cidades e mltiplas ideias de cultura. De um lado, umacidade que se descola da realidade dos lugares, que se autos-

    segrega em condomnios, grandes shoppings centers, centrosempresariais etc., seus habitantes priorizando o automvel comomeio de transporte, servidos naturalmente por grandes avenidas,os eixos necessrios deste descolamento mencionado e destaestratgia de autossegregao.

    Ento, aqui a ideia de centralidade vai ganhar novos sentidosque vo negar a cidade como lugar de articulao e como lugar deencontro. Estas centralidades so centralidades hierrquicas, ar-

    ticuladas em rede e sob a lgica da produo capitalista, centrali-dades da produo e do consumo, inclusive do consumo cultural.

    Paul Virilio2 diz que nestas centralidades no existe maisaqui, tudo agora, em decorrncia da compresso do tem-po e da acelerao das velocidades. Tudo acontece sem que sejanecessrio partir, ir ao encontro dos seres nossa volta, ir aoslugares que nos rodeiam. A interao virtual parece superar todaao e todo ato concreto.

    A questo que se coloca aqui como fazer frente a este desco-lamento e dar novos sentidos ideia de cidade como fenmenocultural, como centralidade cultural. Isso nos leva tambm ideia de centralidades vividas, que se constituem a partir daesfera da reproduo da vida e do cotidiano de relaes socio-

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    espaciais em cada lugar concreto, especialmente nos bairrospopulares das metrpoles.

    So necessrios cuidado e ateno para revelar os agentesque produzem e reproduzem mltiplas ideias de cultura, ideias

    estas alternativas ideia hegemnica de cultura, nos lugaresda cidade contempornea, onde parece ainda haver aqui e nemtudo s agora.

    Mesmo com dficits evidentes de infraestrutura, com umquadro generalizado de pobreza, desemprego, problemas am-

    bientais etc., os bairros populares das metrpoles so centraispara a diversidade social e cultural no espao metropolitano.Isso vai acontecer apesar da concentrao dos equipamentos

    culturais nos bairros de classe mdia. E Salvador um exemploevidente deste fato.

    Um estudo realizado na Faculdade de Comunicao da ufbademonstrou que existem 35 teatros em Salvador, mas apenas umdeles pode ser considerado como localizado em uma rea popular.Este teatro ficou fechado por dcadas e somente h dois anos foireaberto, contribuindo para a instrumentalizao de grupos, aesetc., no bairro de Plataforma, no Subrbio Ferrovirio de Salvador.

    importante observar, no contexto colocado aqui, que nose trata de modo algum de uma ideia hegemnica de cultura,mas, ao contrrio, de ideias de cultura alternativas, que vo semanifestar no dia a dia destas reas.

    Se levarmos realmente a srio a ideia de cultura popular, entoseria necessrio tambm questionar a inadequao dos equipa-mentos socioculturais em nossa cidade. E aqui evidente que nose trata apenas da ausncia destes espaos nos bairros populares.

    As reas populares de nossa cidade constituem-se em centrosda cultura urbana de Salvador: elas so o corao de diferentesmanifestaes de cultura. Se lembrarmos do Carnaval, percebe-mos que so tambm estas reas o lugar de nascimento da maio-ria dos artistas que movimentam a indstria cultural de massa.

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    Por outro lado, muitas manifestaes e grupos culturais per-manecem absolutamente invisveis, mantendo-se vivos graasao trabalho de associaes de moradores, de organizaes nogovernamentais, terreiros de candombl etc. Estas manifesta-

    es da cultura popular acontecem muitas vezes sem nenhumapoio institucional ou financeiro. Elas representam, a meu ver,um capital cultural desconhecido, muitas vezes invisvel, doqual as cidades e seus habitantes poderiam tirar mais proveitodo que ocorre at aqui.

    Recentemente, um colunista de poltica do jornal A Tardereclamou que ningum liga para o bal do Teatro Castro Alves eque a Secretaria de Cultura estadual s se interessa pelo Bumba-

    Meu-Boi. Pergunta-se: Qual o problema de se preocupar com oBumba-Meu-Boi? Isso parece dar vazo a um preconceito velado,que , por outro lado, extremamente revelador das dificuldadesque se colocam at aqui para a formulao e a implementao depolticas culturais que se pretendam descentralizadoras e plurais.

    H, portanto, um desafio colocado para a formulao de po-lticas culturais: o de como instrumentalizar agentes e grupospopulares sem coopt-los e sem necessariamente desejar vend-

    -los para uma cidade turistificada, uma cidade que se vende emguerra por investimentos com outras etc. E isso algo para serdiscutido e aprofundado pela Universidade, pelos governos e,sobretudo, pelos cidados de Salvador.

    A valorizao destas ideias alternativas de cultura poderiafuncionar, sem sombra de dvida, como uma eficiente estra-tgia de desconstruo do estigma e do preconceito em relaoa grupos frgeis socioeconomicamente, mas, por outro lado,ricos e diversos no tocante ao capital cultural que dispem ereproduzem em seu cotidiano.

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    As cidades e suas contradies

    U b i r a t a n C a s t r o d e A r a j o *

    *Diretor Geral da Fundao PedroCalmon Centro de Memria eArquivo Pblico da Bahia,historiador e professor daUniversidade Federal da Bahia.

    1Historiador francs nascido emLumville-en-Ornois, um dos maisimportantes representantes daEscola dos Annales e conhecido pela

    introduo de renovaes nosmtodos historiogrficostradicionais.

    O fenmeno cultural na cidade contempornea, naperspectiva de historiador, apenas um instante, ummomento. Volto para o fundador da nossa histriasocial, Fernando Braudel1 para mostrar que a primeiragrande contradio na humanidade foi a contradiocidade x campo. E por qu? Porque se desenvolveu ummodo de convivncia humana em grandes aglomera-dos, maiores ou menores, nas cidades, em contrapo-

    sio ao tipo de convivncia de pessoas dispersas empropriedades, muito mais dadas ao exerccio de umaliberdade individual. As cidades construram umacultura de convvio, uma cultura de comportamentospadronizados, que a condio das sociedades orga-

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    3lefebvre, Georges.O grande medo de 1789:

    os camponeses e a

    Revoluo Francesa.Rio de Janeiro: Ed.Campus, 1979.

    2Alemo de origem

    judaica, Norbert Elias um dos representantesprincipais da Sociologiacontempornea. A suaprincipal obra, e que o

    ajudou a tornar-seconhecido foiO processo civilizador,

    publicada pela primeiravez em 1939, na Sua.

    nizadas, segundo Norbert Elias.2 Temos que engolir o animal eo emocional que temos dentro de ns, para nos comportarmosa partir de critrios mais ou menos aceitos, porque somente acompatibilidade de comportamentos garante a conviviabilidade.

    Nas cidades, a gente tem que ser civilizada. Da que o prprioconceito de civilizao ligado cidade. O que do campo, rurcola, o rstico, rude. Isso vem do tempo dos romanos edos gregos antigos.

    A grande questo que esse modo de vida urbana sempreproduziu representaes que marcaram a cidade com algumascaractersticas que geram muito preconceito, entre os campone-ses. Em sociedades predominantemente rurais, a cidade era mal-

    vista. Um exemplo eloquente o grande processo da RevoluoFrancesa. A insurreio revolucionria irrompeu no momentoem que o povo se armou para a guerra civil e invadiu os castelose prises. Isso se d, exclusivamente por conta de uma consci-ncia poltica, ou mesmo da insatisfao com os privilgios danobreza e do clero, como aparece nos livros? Na grande obra deGeorges Lefebvre, O grande medo,3 mostra-se claramente queos camponeses franceses pegaram em armas porque souberam

    da notcia de que o povo de Paris, a grande cidade, lugar de gentedegenerada, de maus costumes, derrubou a Bastilha, libertoutodos os bandidos desta priso. Temiam que estes liberados seespalhassem por todo o interior, saqueando aldeias e proprieda-des. Assim, o primeiro impulso que desencadeou a revoluo foio impulso anticidade. Depois, j que estavam de armas na mo,fizeram o servio completo. Tomaram os castelos, desapropria-ram as terras, fizeram enfim uma revoluo.

    Hoje, o modelo de vida em cidade predominante em todoo mundo, ou seja, as sociedades rurais hoje so raridades. Ata Amaznia vista como uma raridade e contra ela se lanamveredictos condenatrios, exatamente porque ela no constituiuum mundo urbano, de grandes conglomerados, em maiores ou

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    menores cidades, unificado por uma cultura global que defineos padres de comportamento ditos civilizados.

    Na Antiguidade, no prprio conceito de cidade, v-se o cortefundamental, no interior das prprias cidades. Entre os gregos

    havia uma grande diferena entre apolis e a demos. Os romanosestabeleciam a diferena entre a civitas e a urbis. Quando retoma-mos a experincia histrica da Antiguidade, percebemos que osgrupos que dominavam o espao das cidades reservavam para si a

    polis e a civitas, que exatamente a esfera de tomada de decisessobre o conjunto do espao urbano, em detrimento dos outrosgrupos dominados, que eram apenas parte da demos, e moravamna urbis. Da demos, emergiu a democracia que foi a luta do povo,

    que morava dentro das cidades gregas, e que no tinha lugar nagora, que no dava pitaco e que eram, digamos assim, prisio-neiros da elite, para integrar apolis. Em Roma a mesma coisa,a civitas do senado. A civitas de quem participa do poder daRepblica, das grandes famlias, das crias e das assembleias.O povo a urbis. Urbis, s conta como local. O entendimentomais firme de que a urbis, no s um espao fsico, mas tam-

    bm o conjunto das pessoas, consideradas como coisas, como

    escravos. como a cidade de Salvador, no tempo da escravido,os senhores, que participavam da Cmara de Vereadores, eramos homens bons, que olhavam para o grande povo que moravana cidade, no como gente, mas como as coisas, como animais,que estavam dentro do territrio e que lhes pertenciam.

    Esse um corte, uma linha de tenso permanente na histriada vida urbana. O capitalismo e a revoluo industrial superaramesta tenso? Na verdade, ele a sofisticou. Ao produzir grandes

    metrpoles, ao aprisionar grandes contingentes de pessoas nascidades, como exrcito industrial de reserva, terminou definindoo prprio conceito de classe operria. A rigor, o conceito de classe,praticado por Lnin, significa o conjunto de pessoas, a multidoaprisionada no espao urbano disposio do capital. O capital

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    4Socilogo francs,considerado um dosfundadores dasociologia doquotidiano e conhecidopor suas anlises sobrea ps-modernidade,o imaginrio e,sobretudo, pelapopularizao doconceito de tribourbana. Construiu uma

    obra em torno daquesto da ligaosocial comunitria e aprevalncia doimaginrio nassociedades ps-modernas.

    teve que produzir espaos, prises, comportamentos padroniza-dos, bem como aparatos simblicos de poder, como as grandesobras monumentais, para manter essa multido sob controle.

    Essa a grande cidade tal como a conhecemos. Ora, qual a

    posio dessa demos aprisionada dentro de uma urbis controladapelapolis capitalista? Como um dos mecanismos de controle, ocapitalismo criou toda uma esperana de democracia. Mas quedemocracia esta? Para que essa demos entrasse napolis e to-masse decises, era necessrio domesticar as classes subalternas,de fato civiliz-las, torn-las cidads. Elas tinham que mudarde lngua, mudar de identidade, que se comportar imagem esemelhana dos homens bons, para serem parlamentares. Esse

    ideal de que todos ns seramos parlamentares e governantesfoi alimentado pelos partidos polticos. A dinmica explodiuquando o capital, em uma etapa ps-fordista, no precisa mais dagrande massa disponvel nas cidades. A reproduo da acumula-o capitalista no est mais se dando dentro das cidades. Ele sed dentro da cidade, fora da cidade, por cima da cidade, em uni-dades menores, em unidades de alta tecnologia, que absorve mode obra cada vez mais seletiva e qualificada. O povo voltou a ser

    demos, sucata, voltou a ser aquilo que dispensvel, que o siste-ma capitalista apenas tem que gerir. Esta a tendncia que vemdo ps-fordismo, que se chama tambm de ps-modernidade.

    Nos ltimos vinte anos, emerge um sentimento e um conjun-to de atitudes coletivas em que as grandes massas perceberamque no tm mais chances reais de entrar napolis. Hoje, a falnciamoral e poltica da democracia urbana ocorre no mundo inteiro.

    Em Salvador, uma cidade com tanta tradio de luta demo-

    crtica, de luta contra o racismo, a grande massa aos poucosafasta-se da prtica poltica, perde o gosto! Este fenmeno foidenominado pelo socilogo Michel Maffesoli,4 tribalizao domundo e transfigurao da poltica. Nele ocorre asecessio plebis,em latim, a secesso da plebe, ou melhor, a plebe virou as costas

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    para a poltica. como na greve romana. Se o povo no sentemais a possibilidade de ser includo, ele vai embora. A secessio

    plebis, no Brasil, eloquente, nos casos do Rio de Janeiro e deSalvador. S assim podemos entender o empobrecimento, o

    aviltamento da poltica nestas cidades, que antes sediavam osprincipais movimentos polticos do Pas e que, de repente, vi-ram a sua poltica ser ocupada pelos tipos mais vulgares, comochaguismo, carlismo etc...

    Em Salvador, nunca tnhamos convivido com prefeitos toruins. Eles tm sido fracos, incapazes de falar, incapazes de pen-sar cidade. Autossustentabilidade, incluso social passam a seralguns dos chaves, largamente utilizados pelos marqueteiros

    nas campanhas eleitorais, sem nenhuma eficcia poltica. Issoo povo percebe. O que se v em tempos de eleies o pequenointeresse da populao em se mobilizar. O povo vota para pre-sidente, porque est em jogo a Bolsa-famlia e o salrio mnimo.Para eleger prefeito, vota em qualquer um que vier a, em quemder mais. Elegem vereadores tambm chinfrins, que negociamblocos, telhas, pequenos favores, e esto pouco se incomodandocom o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano.

    Nesse quadro qual hoje o dilema? A ausncia do povo dapoltica ou da luta pelo poder na cidade criou um grande vazio depoder que hoje est sendo ocupado, em Salvador, e j foi ocupadono Rio de Janeiro, pelo crime organizado. Assistimos hoje, naBahia, grande tenso de massacres que parte da luta do crimeorganizado para se territorializar, para conquistar, manobrar edirigir espaos urbanos em que vivem pessoas que no tm nexospolticos e muito menos tm meios de defesa. Hoje, o grande

    esforo de tentar recuperar esses espaos.Aqui na Bahia, ns vivemos um momento chave. importan-

    te que se diga para todo mundo que este o momento que umagrande cidade, a terceira do Pas, com a conexo internacional

    bastante fcil, pelo turismo, em que o crime est tentando se

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    territorializar. Os massacres so intimidao da populao local,de reas populares indefesas, Mussurunga, Garcia, Engenho

    Velho da Federao, Paripe, Bairro da Paz. O que eles querem exatamente governar esses espaos.

    Qual o grande desafio para ns? Como fazer com que essepovo, que virou as costas para a poltica, volte a se integrar auma nova poltica, que no seja a do aprisionamento de grandesmassas sob o controle do capital ou de outras formas de controlemassivo? Que a gente construa caminhos culturais que respei-tem a diversidade dessa populao e que passem a incorpor-la,no enquanto grande massa a servio do capital, nem grandemassa unida pela questo de salrio e da condio de classe, mas

    enquanto segmentos diferenciados que possam ter oportunida-des, tanto de uso de equipamentos como de expresso, formaoe consolidao de identidade.

    Hoje, os movimentos sem teto, sem comida, o movimen-to negro, movimento das mulheres, todos os movimentos somovidos pelas identidades culturais construdas, pelas solida-riedades que decorrem delas. Estas solidariedades somam-se pauta de interesses materiais que podem uni-los: trabalho, renda

    e moradia. Esse um grande desafio para todos ns, da rea decultura. A cultura hoje est no centro de um novo padro de lutade classes. No teremos nunca mais operrios organizados, comoantigamente, em torno somente da cgt, e das grandes centraissindicais. Teremos, sim, que constituir redes de movimentossociais diferenciados, identificados com caractersticas culturaisespecficas que possam, a partir delas, interferir na poltica evoltar a dirigir a cidade.

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    Cidade, Cultura e Pol t icas Pbl icas 1

    M a r i a d e A z e v e d o B r a n d o *

    Numa cidade cada vez mais condenada pelo poderpblico a cumprir o papel de uma usina de merca-dorias ditas culturais, paisagsticas e ambientais, difcil discutir os temas cultura e polticas pblicas,sem questionar a pretenso de conferir-se ao Estado

    seja a Prefeitura, os Governos Estadual e/ou Federal

    o poder de exercer sobre Salvador e sua regio umapoltica cultural e de gesto do espao urbano e dosrecursos territoriais e ambientais, a menos que am-plamente discutidos com os diferentes segmentossociais e tcnicos da sociedade.

    1Este texto baseia-se no roteiro daexposio oral da autora.

    *Sociloga e professora daUniversidade Federal da Bahia.

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    3scrates. O refgiodos homens. CartaCapital, S. Paulo, SoPaulo: Ed. ConfianaLtda., n 576, 16 dez.2009, p. 84.

    2Conceito criado por E.Durkheim, usado nasCincias Sociais,indicando o sistema deideias, valores e regras

    que propiciam ascondies necessrias vida em sociedade,desde pequenascomunidades a grandescomplexos sociais.

    Por essa razo, este texto focaliza trs pontos: a relao entrecidade e meio socioambiental, a importncia da relao entre te-cido urbano e violncia e a necessidade de uma ateno vigilantecom relao s polticas pblicas de cultura e gesto territorial

    e ambiental.

    C i d a d e e C u l t u r a

    As cidades surgem, na Histria, como locais de encontro e abrigo,portanto frente avanada do contrato social2 e territrio estra-tgico da linguagem e das liturgias da convivncia. E, como emtodo jogo sustentvel, essa liturgia do contrato socialexige tanto

    vises socialmente partilhadas do mundo e da vida, como umaesttica da ao, da linguagem, do fazer e da troca das coisas feitas

    infraestrutura, edificaes, objetos e desempenhos normaliza-dos artes plsticas e performticas, literatura, cincia e tcnicas.

    As cidades atuais, entretanto, vm destruindo sistematica-mente essa esttica, ou seja, sua tica, condenando-a a cederlugar pura competio e truculncia. O urbano contempor-neo tornou-se um espao selvagem, e o trgico que hoje tudo

    urbano. As redes de informao, de marketing comercial epoltico, de circulao e consumo de bens e servios interferemsobre a vida de cada um e de todos ns, alm dos limites fsicosdas cidades, com a mesma potncia e virulncia com que operamnos espaos de produo e consumo especificamente urbanos.

    Vende-se tudo, ao custo da renncia da convivncia atenta, dodilogo e da lucidez.

    A s C i d a d e s c o m o E s p a o s d e B a r b r i e

    Em O refgio dos homens, artigo publicado em Carta Capital,3Scrates o atleta, hoje mdico e ensasta, assinala nossa neces-sidade de paz, silncio, bem-estar e proteo para reposio

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    das foras que nos escapam na guerrilha da vida, condies queum dia conhecemos no tero materno. E cita o poeta FerreiraGullar, sobre a vida hoje:

    A mentida, a ferida, a consentida; vida j ganha, j perdida e ganha outravez [...]; o sfrego pulsar entre constelaes e embrulhos, entre engulhos.

    Alguns viajam, vo a Nova York, a Santiago do Chile [...]; todos te buscam,

    facho de vida, escuro e claro, que mais que gua na grama, que o banho

    de mar, que o beijo na boca, mais que a paixo na cama; todos te buscam

    e s alguns te acham. Alguns te acham e te perdem. Outros te acham e

    no te reconhecem e h os que se perdem por te achar.

    E Scrates avana:

    Vida que a vida moderna insiste em querer estigmatizar, como se apenas

    uma forma, uma s postura, uma nica situao, uma forma de realidade

    nos fosse concedida. Vida que a cada um de ns se apresenta como um

    gigantesco entulho a que devemos dar bom encaminhamento, para que

    no sejamos engolidos, perfumados, escolhidos por ele para, quem sabe,

    dele fazermos parte.

    E mais uma vez cita F. Gullar emA vida bate:

    [...] estamos na cidade sob as nuvens e entre as guas azuis. Vista do alto

    ela febril e imaginria, se entrega inteira como se estivesse pronta. Vista

    do alto, com seus prdios, ruas e avenidas, a cidade o refgio do homem,

    pertence a todos e a ningum. Mas vista de perto revela o seu trbido

    presente, sua camadura de pnico; as pessoas que vo e vm, que entram

    e saem, que passam sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro

    sangue humano movido a juros! So pessoas que passam sem falar entre

    vozes e runas. s quem? [.. .] Onde escondestes a vida que em teu olhar se

    apaga e mal se acende?

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    essa capacidade do mundo contemporneo de produzir ascidades como espaos de barbrie que exige a discusso crti-ca do conceito e das prticas de poltica cultural e ambiental esobre a centralidade da violncia como contingncia social de

    territrios cruis.Contra uma ao manipuladora, seja a servio de empresas,

    partidos ou carreiras polticas individuais, mas pelo contrrio, afavor de uma poltica comprometida com viabilizar, sem controleautoritrio, oportunidades de expresso cultural e social, valetomar o caso da prpria Salvador, para apontar a prtica abertado dirigismo estatal, na estridente valorizao do que se informacomo o melhor para vender a Bahia.

    T u r i s t i z a o e A t r o p e l o

    Sob a justificativa de criao de oportunidades de trabalho erenda, o discurso oficial e os incentivos ao turismo atravs da va-lorizao da cultura e da paisagem levaram turistizao detudo, das prticas religiosas manipulao do ambiente natural.A mstica comercial da praia trouxe a consagrao exclusiva do

    coqueiro como nica espcie vegetal a marcar o litoral atlnticoe produo de dunas de argila, ou talvez mesmo de entulho,em lugares onde elas nunca teriam existido, embora elas existam,sim, e de areia, feitas pelo vento, a quatro, cinco quilmetros da

    beira-mar, a contemplar, de longe, os cordes arenosos, filhosdo movimento das mars.

    So esses cordes, hoje em grande parte destrudos, que opoder chama de dunas e violenta com a fabricao ou ampliaoartificial com elevaes sem vida, feitas com a terra removidadas encostas recortadas da topografia natural do stio urbano,e como aterro de entulhos. Ser isso o fruto de alguma falta deinformao em histria e botnica, ou puro atropelo autoritriodo direito da Cidade a sua verdade histrica e geogrfica?

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    5garcia lorca,Frederico. Paisagem damultido que vomita. In:Poeta em New York,Vol. viii, 1929 . Reedio:Ed. LetrasContemporneas.Florianpolis, 2003.

    4Ver: santos, Milton.

    A natureza do espao;Tcnica e tempo, razo

    e emoo. So Paulo:Hucitec, 1996.

    Exemplos como esses demonstram porque poltica culturale intervenes sobre espaos e territrios vividos no se podemfazer sem ateno dimenso histrica e poltica dos mesmos4e sem garantir-se que as aes governamentais resultem da dis-

    cusso pblica de cada projeto, somente e quando visando apoiare induzir oportunidades de expresso cultural livre e diversa.

    C a r n a v a l - N e g c i o e F e l i c i d a d e d e E x p o r t a o

    No haja iluso: a multido quepula no Carnaval da Bahia umtrabalhador no pago, servindo na arena do seu cho usurpado,para a festa-mercadoria de interesse das empresas do negcio-

    Carnaval, ocupantes das caladas pblicas, fechadas ao povo, parauso de suas freguesias locais e de longe. A situao dessefolio-

    -povo sugere a da multido que vomita do poema de FredericoGarcia Lorca,5 sobre os que partem do extremo de Manhattan,em New York, para contemplar de perto a Esttua da Liberdade.

    Ao mesmo tempo, por aqui, novos produtos estaro sendotrabalhados, como uma contribuio certamente apreciada pormais e melhor vender a Bahia, com sua principal mercadoria

    a felicidade, um servio por conta dos prprios compradores.Ao mesmo tempo, a garantia dos direitos do cidado nem sem-pre faz-se um dever do Poder Pblico, no opaco cotidiano dasubcidadania.

    Mais significativo do que tudo isso, entretanto, o fato deque esse mesmo povo proibido vem, cada vez mais, rua comum crescente nmero de blocos e outras apresentaes de seusbairros. E a questo que se impe aqui saber-se se sero respei-

    tadas sua esttica e suas mensagens.

    E s p a o s d e V i v e r e V i o l n c i a

    H uma relao ntima entre a natureza dos espaos onde se vive

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    7scrates, op. cit , p. 84 .

    6A-nomia: ausncia denormas; situao emque um grupo,

    categoria social oucomunidades inteirascomportam-se semreferncia e ateno avalores e regrassocialmenteparticipados.

    e a violncia. Mesmo pequenos animais, quando em espaosexguos, so conduzidos a um processo de agresso recproca eoutros sintomas de anomia.6

    Imagine-se grupos humanos vivendo em situaes de tre-

    mendo congestionamento, sob uma difcil possibilidade de di-logo, conforme assinalado no texto citado de Scrates? Qual ocusto da no transparncia de bairros onde as pessoas no tmo controle sequer do seu espao imediato?

    As cidades opacas negam ao cidado e sociedade como umtodo, a oportunidade de criarem-se as condies para a formaodas relaes saudveis de vizinhana, base significativa de supor-te do contrato social. Quando no se consegue ser vizinho e no

    se pode ver por onde brincam as crianas, que garantias havercontra a violncia? Qual aparato policial poder garantir a paz,o silncio e a proteo para reposio das foras que escapam naguerrilha da vida, conforme cobrados acima?7

    A s V i a s - E s g o t o d o s B a i r r o s d a P o b r e z a

    No discurso oficial, a Cidade do Salvador orgulha-se das vias-

    esgoto que substituem os sistemas de infraestrutura e os cami-nhos de andar do urbanismo desumano destinado aos bairrosda pobreza. As escadas drenantes no unem, mas desencorajamqualquer forma de convivncia entre vizinhos e privam qualquerme da capacidade de saber onde estaro seus f ilhos, muitas ve-zes nos esgotos que lhes sobram como espaos de brincar.

    O importante nisso tudo a total insensibilidade dos rgospblicos, mas certamente e muito da parte da prpria so-

    ciedade, quanto aos recursos e potenciais do ambiente naturale de reas capazes de atender aos requisitos de sobrevivncia,comunicao, lucidez e cooperao entre as pessoas.

    A verdade que essa relao entre poder e sociedade, que de-nuncia o prprio vnculo entre cultura e lucidez, enfraquece a

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    capacidade de trazer-se discusso o presente, com a liberdadede pensar-se projetos de futuro. O que pouco pensado e muito tolerado pela prpria sociedade a estratificao social dostemas de debate, estratificao condicionada s normas sociais

    de um passado que ainda insiste em ser presente, dividindo oconhecimento e a comunicao entre as diferentes camadas dapopulao e que ainda hoje refletem e redefinem, sem elimi-nar, o apartheidcultural que nos restou de uma Independnciaenvergonhada e tmida frente a questes culturais e de umaAbolio inconclusa.

    Que escolas e que mdia abrem de fato ao grande pblicotemas restritos aos gabinetes e escritrios fechados, como o

    caso de uma verdadeira poltica de desenvolvimento urbano, daquesto nunca resolvida da reforma agrria e da anlise crtica einovadora do sistema educacional, anlise que no pode conti-nuar restrita estatstica das vagas, mas pelo contrrio, insistirem avaliar o contedo do que efetivamente se ensina e permiteaos alunos aprender?

    O que interessa no valorizar ou no, encenar ou no, o BumbaMeu Boiou oSamba de Roda, mas incorporar a eles e a outras ma-

    nifestaes populares o melhor instrumental e conhecimentotcnico existentes, a melhor qualificao possvel dos seus atores,conduzindo-os a tornarem-se efetivos produtores culturais deelite. isso que poder fazer o Brasil crescer como personalidadecultural, ao contrrio da exibio de ritos religiosos e festas-

    -mercadoria, das miniaturas-souvenir e dos mitos estreis daautodesignada cultura que se impe dentro de casa, no empenhode reproduzir-se como mercadoria.

    Ser possvel, alm do estmulo liberdade de criao, pensar--se em medidas que efetivamente incentivem a discusso do queimporta sobre a vida, o desenvolvimento de competncias reaise a multiplicao de iniciativas prticas diversas?

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    Isso significa viabilizar aos diferentes segmentos da popu-lao a possibilidade de propor e participar de debates pblicoshonestos sobre temas cruciais, de que a populao em geral vemsendo privada por todos os cinco sculos de Brasil, e abrir a dis-

    cusso tanto de questes de vanguarda em cincia, em polticaspblicas econmica, urbana, agrria, internacional, energticae outras , quanto de projetos hoje frequentemente negociadosa portas fechadas.

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    Cidade e Patrimnio Cultural

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    * poca, Presidente do ConselhoEstadual de Cultura. Atualmente, Conselheiro desta instituio,professor titular da UniversidadeFederal da Bahia (ufba) e Diretordo Instituto de Humanidades, Artese Cincias Professor Milton Santosda ufba.

    Apresentao

    A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i m *

    Boa noite a todas e a todos. Esta a segunda mesadeste iv Ciclo de Debates sobre Polticas Culturais

    Polticas Culturais para Cidades, na qual vamosdiscutir especificamente a relao entre Cidade ePatrimnio Cultural. Acredito que a relao entre ci-dade e patrimnio est absolutamente colocada em

    cena, no s em termos mundiais, mas tambm porum conjunto de acontecimentos que vm ocorrendoem Salvador. Infelizmente esse tema foi inscrito naagenda pblica de forma no muita alvissareira, porque ns temos tido nos ltimos anos, nos ltimos

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    1Respectivamente,gegrafo e educadora.

    meses e nos ltimos dias, um conjunto de atentados, diramos,ao nosso patrimnio, ao patrimnio da cidade de Salvador. Elestm assumido variadas formas. Nosso desejo era que o tema dopatrimnio no estivesse to em cena por esses motivos. Ns

    gostaramos que ele estivesse na agenda pblica por motes muitomelhores. Por exemplo: que nossa cidade tivesse desenvolvido,seja no plano da legislao, seja no plano das prticas sociais ouda educao patrimonial, uma srie de comportamentos quefossem, na verdade, motivos para estarmos aqui comemorandodeterminadas atitudes positivas em relao ao patrimnio, sejapatrimnio material ou patrimnio imaterial. Infelizmente otema est colocado, como eu disse, na cena poltica, talvez da pior

    maneira possvel. Mas vamos tentar discutir o tema, no restrin-gindo essa discusso a Salvador, mas ampliando, fazendo umadiscusso mais ampla sobre a relao entre patrimnio e cidades.

    Muitas pessoas estiveram aqui ontem. Ns estamos fazendoum seminrio que tem uma grande quantidade de pessoas namesa. Assim, nossa proposta que cada uma fale em torno dedez minutos para que a gente tenha depois um debate. A ideia deter uma maior quantidade de convidados na mesa permitir, na

    verdade, um conjunto diferenciado de olhares. E tambm, claro,como na mesa de ontem, intervenes altamente qualificadaspara discutir o tema do patrimnio. Ns tivemos um desafionessa mesa. No convidar somente arquitetos, j que o tema dopatrimnio sempre solicita muitos arquitetos. Ns conseguimosisso. Temos o Clmaco Dias e a Valdina Pinto,1 que no so ar-quitetos. Mas temos tambm muitos arquitetos. No se trata deexcluir, mas de diversificar e tornar o debate sempre mais plural.

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    Carnaval , cultura urbanae pol t icas culturais em S alvador

    C l m a c o D i a s *

    *Professor do Departamento deGeografia da Universidade Federalda Bahia.

    Gostaria de agradecer ao convite para participar deuma reunio to importante. Eu digo importante,porque h uma disposio do Estado em discutir po-lticas culturais e essa disposio uma coisa relati-vamente nova, sobretudo entre a gente.

    Eu queria chamar a ateno, e agradeo ao Albino

    Rubim por ter chamado a minha ateno, de que adiscusso que fao de patrimnio muito ampla,muito mais dentro do patrimnio imaterial do quedo patrimnio material, se bem que no concebo umsem o outro, porque me baseio no pressuposto de

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    5 2 c l m a c o d i a s

    Milton Santos de que a forma e o contedo no se separam.Forma, funo e processo so inseparveis num prdio. Umarua sem o sentido social no existe, no tem sentido. Essa umaquesto fundamental.

    Passo a discutir uma questo rapidamente, porque so dez mi-nutos. Eu digo que tudo que voc fala em cinco horas, pode falarem cinco minutos. Tudo. Ento, vou discutir algumas questesacerca de cultura de massa e cultura popular como patrimnios,a cultura popular como patrimnio e a cultura de massa comoalgo que busca retirar e podar esse patrimnio e o exemplo claroque eu discuto, a partir de trabalhos que realizei, principalmenteacerca do Carnaval de Salvador.

    O Carnaval de Salvador hoje um exemplo bom para qualquercidade do Brasil, porque uma manifestao popular genuna,autntica, mas essa manifestao vem sendo hegemonizada pelacultura de massa. Um grupo dessa cultura de massa apreende,engessa essa cultura popular de vrias formas e esse grupo umgrupo cada dia mais reduzido e que leva o carnaval de Salvadora um engessamento, e por que o engessamento? Porque huma manifestao clara das entidades populares no espao do

    Carnaval, mas elas no tm visibilidade. O candombl est l,esta l o samba de roda, esto l todas essas manifestaes, masso manifestaes sem visibilidade. A visibilidade dada porum grupo que domina, e o que mais grave, bem mais grave, que esse um grupo que tem popularidade. A, parece que cultura popular. No, esse grupo popular dentro de umaapreenso da cultura de massa. Ento, o poder poltico no temo empoderamento suficiente para mexer com esse grupo, no

    tem condies polticas, porque mexer com esse grupo mexercom voto, mexer com a prpria poltica. Essa uma questo,para mim, absolutamente clara.

    A cultura popular, a despeito disso, segundo Milton Santos,est ganhando a parada da cultura de massa. Ele diz isso numa

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    c a r n a v a l , c u l t u r a u r b a n a e p o l t i c a s c u l t u r a i s e m s a l v a d o r 5 3

    entrevista com essa expresso: ganhando a parada. O profes-sor Milton Santos, todo formal, falando ganhando a paradapara a cultura de massa, em que nvel? Em que perspectiva?Em que dimenso? Existe a metrpole, e ela produtora de um

    volume de cultura popular to imenso que, por mais poderosaque seja a cultura de massa, ela no consegue apreend-la, nemcapturar essa cultura popular. No porque a cultura popular boa nem porque a cultura popular m, porque a culturade massa no consegue capturar toda quantidade e diversidadedessa cultura popular.

    Ento, nessa perspectiva que eu creio que as polticas depreservao desses patrimnios da cidade sero polticas sempre

    relativas.. . No digo fceis, porque no tem nada fcil, so polti-cas relativas, os caminhos no so relativamente fceis. Onde selocalizam essas pessoas durante o carnaval, de que perspectivaelas falam? Dou um exemplo claro. O camarote do ex-ministroda cultura que discursa em prol da preservao do patrimnioimaterial, por que ele est na Barra? Alis, por que tem camarotede ministro? uma outra pergunta. Camarote de ministro nodeveria existir, em minha opinio. Mas, j que existe, ento por

    que ele se localiza na Barra?Ento, h uma questo fundamental tambm envolvendo

    essa captura dos setores populares, que as polticas culturaisviriam minorar essa questo, o que isto? a questo da prpriapoltica cultural funcionando como um fator de fiscalizaodesse chamado patrimnio imaterial, de que forma? ter me-canismos que permitam que hoje grupos culturais expressivos,de manifestao cultural expressiva, no sejam capturados, ou

    por polticas de Estado de cooptao, ou capturados pelo podereconmico. Digo isso a voltando para o carnaval de Salvador.Boa parte de donos de blocos pequenos sobrevive s custas dessaspolticas culturais de carnaval. Um dinheirinho aqui, outro ali,uma coisinha aqui, outra ali. E, enquanto expresses verdadei-

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    ramente culturais, quando eu estou falando verdadeiramenteculturais so expresses que esto coladas no cotidiano de umacomunidade, de um bairro, de uma cidade, essas mesmas ex-presses passam ao largo dessas polticas culturais. Ento, esse

    patrimnio acaba negligenciado. Quer ver um patrimnio queestamos vendo se esvair: estamos perdendo numa velocidadeimensa, por conta disso, as nossas chamadas festas de largo, porqu? Porque a cultura de massa no se interessou pela festa delargo e quando se interessou o modelo dela no se adequava e,hoje, a festa de largo desapareceu, ou minguou, no nosso cenrio.

    Ento, so formas de polticas que eu acho que podem serconcebidas como antdoto, mas que antdoto teramos para isso?

    Eu aqui falo da cultura popular, no estou falando da culturada classe mdia, que a cultura da classe mdia tem muita gentecuidando dela. Se bem que a classe mdia tem um papel impor-tante nessa chamada preservao da cultura popular em Salvador.

    Eu acho que estamos passando por um momento grave nasmetrpoles brasileiras, pois a cultura popular tem uma produode rua. E no Brasil a gente acaba com a rua, a cada dia, e aqui temmuito arquiteto que discute isso, quase todo dia, a rua como ponto

    de encontro, a rua como ponto de efervescncia. Ento, Salvadorpassa por um momento de violncia de gangues, violncia que uma disputa pelo centro, mas isso outra discusso. Essa disputadas gangues pelo centro da cidade, sendo o centro uma faixa lito-rnea e paralela, que restringe, de certa forma, a possibilidade darua, a possibilidade do encontro, a possibilidade desse cotidiano.E se a segurana passa a ser uma questo crucial, ns ficamos cadadia mais vulnerveis a essa chamada cultura de massa no carnaval,

    essa cultura de apropriao, essa cultura da corda, do camarotee do baile privado. A cultura que fez um modelo de carnaval queagora est em crise e no acha soluo para este modelo.

    Em linhas gerais, eu diria que ns estamos atualmente em ummomento de crise nas cidades, principalmente quando se fala

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    c a r n a v a l , c u l t u r a u r b a n a e p o l t i c a s c u l t u r a i s e m s a l v a d o r 5 5

    das metrpoles e de preservao, desse chamado patrimniocultural, principalmente da maioria da populao pobre des-sa cidade, por conta de violncias, por conta de um modelo deapropriao, por conta de um sistema de modo de vida que vem

    eliminando a cada dia essas grandes manifestaes culturaisdas cidades. Embora entenda, como disse anteriormente, queessa produo ainda muito densa e variada e que possvelestabelecer polticas pblicas que no sejam de cooptao ouengessamento dos mltiplos patrimnios imateriais existentesna nossa cidade.

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    Patrimnio Cultural :questes para um debate

    E u g n i o L i n s *

    *Arquiteto, doutor em Histria daArte, mestre em Arquitetura eUrbanismo. Professor e Pr-Reitorde Extenso da UniversidadeFederal da Bahia.

    Gostaria, inicialmente, de agradecer ao convite e dizerque um prazer estar aqui participando dessa dis-cusso, principalmente por que uma discusso queenvolve no somente Salvador, j que o ttulo da mesa Cidade e Patrimnio Cultural. Mas retomandoum pouco Salvador, as pessoas esto falando muito

    da destruio, tanto do patrimnio material comodo patrimnio imaterial. Eu considero que a maiordestruio que est sendo cometida em Salvador com relao a sua geografia, com relao a seu stio. E ostio, a gente sabe que um elemento importantssimo

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    na definio da cultura de uma cidade e consequentemente doespao construdo. Ento, daqui a pouco, no saberemos mais seSalvador tem morros e vales, se teve rios, se teve enseadas, porque est tudo ficando com uma nica cara, desaparecem todos

    os elementos geogrficos da cidade. Para mim, no momentoatual, esse o maior, ou um dos maiores atentados cometidoscontra esta cidade.

    Eu gostaria, porm, de discorrer, nesses dez minutos, sobredois temas que tm me incomodado muito, recentemente, e quedizem respeito histria do patrimnio no Brasil, e so bastanterelativos: a questo da identidade nacional e sua construo, e aquesto do carter de excepcionalidade do bem cultural.

    sabido que a grande poltica de preservao do patrimniocultural, principalmente do patrimnio urbano, forjada nosanos 30, perodo da ditadura de Vargas, quando o Estado Novoconstri o que chamamos hoje a Nao Brasileira ou o EstadoBrasileiro, e parte para a elaborao tambm do que seria umaidentidade nacional, que deveria reunir toda a sociedade brasilei-ra dentro de um nico olhar. A questo das identidades nacionaissurge na Europa no sculoxix e, no Brasil, ganha fora na dcada

    de 30. O problema da Identidade Nacional que, para suaconstruo, geralmente se eliminam outras identidades, todasaquelas outras que incomodam ou que so pontos de conflito,no mbito desse projeto unificador de identidade. Com nfase naconstruo da identidade nacional, foram construdas inmeraslegislaes de proteo do patrimnio, e dessa maneira que soforjadas as instituies responsveis pela proteo do patrim-nio cultural nacional de diversos pases, inclusive o Brasil. Essa

    mentalidade est presente at hoje e perpassa muitas das aesainda hoje vigentes. Nos Conselhos de Cultura Estaduais, noConselho de Patrimnio Nacional, ainda perdura essa questoda Identidade Nacional e do carter de excepcionalidade dos

    bens culturais.

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    Nesse processo, consolidado nos anos 30, tudo aquilo que noestava dentro de um princpio nico foi eliminado, foi jogadode escanteio. Assim, ao longo de praticamente 70 anos de aesvoltadas para a preservao dos bens culturais, apenas mais recen-

    temente de maneira efetiva observa-se que outros elementos cul-turais de determinados segmentos da sociedade brasileira estosendo efetivamente incorporados. Nesse processo de construoda identidade nacional eliminou-se temas da cultura afrodes-cendente, da cultura indgena, porque o que se tentou forjar erauma identidade brasileira que se espelhava principalmente nossegmentos da sociedade que sempre detiveram o poder religioso,econmico e poltico. Dentro dessa perspectiva que se elegem

    os bens culturais produzidos no Estado de Minas Gerais, do s-culoxviii, como os mais representativos da identidade nacional,pois passam a ser considerados os genuinamente brasileiros. Esteconceito de brasilidade foi desastroso para o Pas, principalmenteem relao ao patrimnio urbano das cidades, pois praticamentes os ncleos urbanos mineiros, frutos do ciclo da minerao doouro e do diamante foram merecedores, recebendo o ttulo dePatrimnio Nacional, e consequentemente legislao prpria para

    sua proteo at as dcadas de 60 e 70. Apenas a partir dos anos70, quando o conceito de patrimnio comea a ser ampliado queas cidades do Nordeste, e outras cidades brasileiras, passam a serprotegidas, a ter o seu patrimnio arquitetnico, urbanstico epaisagstico protegido; por exemplo, Salvador s passa a ter reasurbanas protegidas a nvel nacional nos anos 60. Muitas edifica-es, reas urbanas e rurais de interesse histrico e cultural foramperdidas nesse processo, por no serem consideradas como parte

    da Identidade Nacional, em razo de no possurem o carter deexcepcionalidade do ponto de vista artstico-histrico-cultural.De certa forma, esta foi uma poltica que contribuiu para o desapa-recimento ou mutilao de inmeros ncleos urbanos, inmerosespaos pblicos e diversas paisagens...

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    Ento, chamo a ateno para o fato de que, num certo sentido,essa poltica ainda permanece. A poltica do iphan ainda recai nocarter, por exemplo, da identidade nacional e recai no carter daexcepcionalidade. E como a poltica do iphan uma poltica que

    influencia os estados e os municpios, vemos essa poltica proli-ferando e permanecendo. Claro que hoje j vemos ecos e j vemosaes que se contrapem a isso, embora esta poltica perdure, naminha opinio, principalmente porque o conselho do iphanainda age muito dentro dessa tica, bem como os conselhos dealguns organismos ligados a patrimnios estaduais e municipais.

    necessria tambm uma reviso profunda da legislao, quepossa, realmente, abarcar todas as formas de manifestaes cul-

    turais do Brasil, todas as identidades, porque ns no somoshomogneos, pelo contrrio, somos extremamente heterog-neos. Nossa histria feita, muitas vezes, de conflitos e essesconflitos tm que vir tona, tm que ficar expostos, precisamser reconhecidos porque fazem parte do nosso crescimento, danossa formao como nao. Considero que o momento de re-visar uma srie de legislaes, uma srie de conceitos, uma sriede preconceitos, para que realmente muitas das cidades possam

    ser incorporadas e possam ser visualizadas como patrimniosculturais. Uma cidade do serto do Cear pode ser patrimnio na-cional tanto como uma cidade como Ouro Preto. No h porqueno ser, tanto na sua forma de manifestao do espao pblico earquitetnico como na questo do patrimnio imaterial que ficoutambm muitos anos esquecido e agora comea a ser resgatado.

    Nesse sentido, minha interveno muito mais uma pro-vocao porque, como atuei em rgos de preservao, estas

    questes hoje me inquietam muito e considero necessrio quese faa uma reviso profunda nas legislaes de proteo e nasinstncias de poder, principalmente na constituio dos conse-lhos, instncia que exerce papel fundamental, no que deve ouno deve ser protegido.

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    A experincia do ipac n a p re se rv a o

    do patrimnio cultural na Bahia

    F r e d e r i c o M e n d o n a *

    *Arquiteto, Diretor Geral doInstituto do Patrimnio ArtsticoCultural da Bahia (ipac).

    Agradeo a oportunidade que o Conselho Estadualde Cultura criou, particularmente a Albino Rubim,ao juntar esse conjunto de inteligncias e de sensibi-

    lidades, para que se discuta o tema de cultura e cidade,porque, de fato, as cidades tornam-se o grande local, agrande construo cultural deste sculo que se inicia,o sculo xxi. Estamos cada vez mais concentradosnessas mudanas urbanas e num contexto.

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    Quero dar continuidade ao que o Eugnio Lins falou, masdestacando um tema com o qual temos nos defrontado desde quecheguei ao ipac, no comeo do ano passado: o que patrimnio,nas diversas cidades que ns estamos percorrendo, neste pas

    chamado Bahia? Temos observado que vrias cidades de portemdio tm sentido um fluxo econmico mais dinmico e umapresso imobiliria, ambos acompanhados, em alguns casos,pela demanda para que o rgo de Patrimnio do Estado v