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POLÍTICAS PÚBLICAS DO CEARÁ: Desde o final do Século XIX *Júlio Cesar Ischiara

**Juliana Pereira Ischiara

CEARÁ: Contextualização HistóricaO Nordeste, apareceu na história do Brasil, devido às primeiras explorações

econômicas, pós invenção do Brasil pelo colonialismo português, mas, como

categoria geo-política, somente surge oficialmente depois da divisão regional

efetuada pelo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, em 1941,

durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas. (ANDRADE,1993), sendo que antes da

divisão geográfica o Brasil era dividido em dois grandes blocos Norte e Sul. O

reconhecimento “sulista“ a respeito desta região, só veio com a criação do Banco do

Nordeste em 1952 e a fundação da Sudene ( Superintendência do Desenvolvimento

do Nordeste), quando em 1958, o nordeste foi assolado por uma das maiores secas

do século XX e o governo federal foi pressionado por lideranças políticas para que

fizesse algo para amenizar o sofrimento dos nordestinos nos períodos de estiagem.

A conquista do Nordeste, como a do Brasil, foi resultado do expansionismo

europeu, sob lógica de colônia ultramarina, na busca de compensações para o

declínio do comércio de especiarias com as Índias e de territórios novos para a

propagação da fé. Neste período habitavam as terras brasileiras inúmeras tribos

indígenas, que, apesar do estágio neolítico, ofereceram sistemática resistência aos

ocupadores. Logo depois dos primeiros contatos, os portugueses procuram inseri-los

no circuito comercial, com os primeiros itens de exploração situados na área que

hoje compreendemos como Nordeste: pau-brasil, cana-de-açúcar e algodão.

A primeira economia de mercado praticada no Brasil não necessitava de uma

estrutura montada, uma apropriação particular da terra, nem precisaria utilizar o

trabalho sob coação, pois, poderia ser feito sob o regime de escambo e usando a

mão-de-obra nativa. Portugal limitou-se a construir apenas algumas feitorias no

litoral, por onde escoava as mercadorias. As feitorias, além de servirem como uma

espécie de porto onde se controlava o embarque das mercadorias, serviam para

defesa ante a cobiça de ingleses, espanhóis, franceses e holandeses.

De acordo com ANDRADE (1993), uma das formas de ocupação mais

seguras encontrada pela coroa portuguesa foi a de criação de vilas litorâneas, como

Olinda, Ilhéus, Porto Seguro e Salvador. Um outro sistema utilizado foi o da

distribuição de terras em sesmarias às pessoas, européias e mais precisamente

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portuguesas, que dispunham de recursos, merecessem confiança e quisessem se

fixar na colônia.

Como os indígenas não se moldaram ao sistema de trabalho regular e

contínuo, dando muito trabalho por causa das endemias e epidemias do qual a

maioria era vitimada e os que escapavam se rebelavam, decidiu-se adotar o rico

comércio de tráfico negreiro, que já era conhecido e desenvolvido na Europa, para

suprir a mão-de-obra na agricultura, especificamente na cana-de-açúcar, sendo este

tráfico eliminado apenas em meados do século XIX, pela lei Eusébio de Queiroz.

A cana-de-açúcar seria, assim, o fator mais importante para a fixação e o

povoamento do Nordeste no primeiro século de colonização e foi, também,

responsável indireta pelo povoamento do interior, já que o gado vacum, por

prejudicar a agricultura do litoral, foi empurrado para o interior. No Ceará, o gado

entrou pelo o vale do rio Jaguaribe, numa migração sul-norte derivada do vale médio

do rio São Francisco. Do Jaguaribe o gado foi subindo pelo seus afluentes, como

Banabuiú e Sitiá, até chegar ao litoral para ser exportado, vivo e, posteriormente, em

forma de charque (carne salgada e secada ao sol). Durante a viagem, para o

descanso dos tangedores, foram sendo criadas as vilas que deram origem às

cidades de Crato, Lavras da Mangabeira e Icó, ocupando “as zonas do Banabuiú, do

Quixeramobim e do Jaquaribe, pelo curso do qual vieram até o Aracati, quase na

sua foz. Dali se irradiaram para os outros pontos do território” (BARROSO, 1962:73).

O Ceará foi povoado de dentro para fora, ou seja, do interior para o litoral, e

esta povoação se deu com o gado expulso do litoral baiano, pernambucano e

paraibano. Os rebanhos tangidos finalmente chegaram ao Ceará, enfrentando a

resistência dos índios jaguaribaras, anacés, paiacus, canindés, areriús e cariris,

habitantes originais desta região. No sertão foi travada a batalha entre os

tangedores de gado, na busca de encontrar campos com boas pastagens para o

criatório, e os índios residentes, em grande parte já empurrados para o interior pela

colonização militar do litoral (GIRÃO,1984).

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AS POLÍTICAS PÚBLICAS NOS PERÍODOS DE SECAS NO CEARÁO Ceará teve quatro grandes secas entre o final do século XIX e início do século XX,

a de 1877, 1900, 1915, esta conhecida por muitos quando descrita por Rachel de

Queiroz no seu romance “ O Quinze” e a de 1932, que tornaram-se importantes para

nossa análise das políticas de saúde da época.

A SECA DE 1877A varíola sempre foi a companheira das secas e nada pode se comparar àquela

epidemia ocorrida na de 1877, que teve duração de três anos, e que vitimou “mais

da metade dos 100 mil retirantes amontoados em abarracamentos providenciados

pelo governo na periferia de Fortaleza” (SOUZA, 2000:167) quando no dia 10 de

dezembro de 1878 morreram, num só dia, 1004 pessoas vítimas da epidemia,

ficando registrado na história como o “dia dos mil mortos”, deixando a população

amedrontada, principalmente quando a esposa do presidente da província foi

vitimada, mostrando que ninguém estava a salvo, nem mesmo os mais abastados

(SOUZA, 2000:167).

Nessa época a assistência pública se restringia ao “abarracamento”, onde os

retirantes eram confinados, o que contribuiu para o elevado número de mortes dos

seus ocupantes, principalmente crianças, e ao Lazareto aos que contraiam a

“bexiga”.

As pessoas morriam, também, ao perambularem pelas ruas em busca de

alimento ou pelo trabalho pesado onde: Um pobre homem cançado de uma longa viagem, enfraquecido de fome, póde caminhar todos os dias doze kilometros com uma pedra as costas para receber uma ração de um litro de farinha e quinhentas grammas de carne do sul?! Se é só, poderá escapar á fome, mas se tem, como na maioria d’elles, oito e mais pessoas de familia, qual o seu fim? (TEÓPHILO, 1922:164)

Esses eram os “socorros públicos” sempre manipulados por comissários que

decidiam quem, o quê, onde, em qual quantidade e a que horas, receberiam os

víveres, além de exigirem alguma retribuição que, muitas vezes, referiam-se ao calor

do corpo de alguma donzela que se lhes agradasse a visão e o “apetite”.

Finda a seca, o sertão sofre com uma praga de cobras cascavéis que fazem

dezenas de vítimas e, mais uma vez, os poderes públicos ficaram paralisados

quando, por iniciativa própria,

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Rodolfo Teófilo distribuiu aos 85 municípios, tantos eram os do Ceará naquele tempo, aparelhos de Pravaz, com solução de permanganato de potássio e um diretório, ensinando a aplicação do medicamento, etc., etc. (TEÓFILO, 1980:11)1.

Desenha-se um esboço do que viria a ser a interiorização das ações de saúde

e que comprova sua eficácia e sua eficiência, visto que solucionou o problema e foi

realizado através dos recursos financeiros de uma única pessoa.

A SECA DE 1900Durante a seca de 1900 o Ceará continuou, praticamente, sem assistência pública,

principalmente no que se refere às medidas preventivas e valendo-se da ajuda dos

Estados do norte e do sul, quando se inicia um grande debate em torno da questão

da imigração preocupando os homens do governo, em mais um dos descalabros

políticos, pois a preocupação girava em torno do afastamento da mão de obra de seus locais de trabalho e dos eleitores dos seus locais de voto , além da discordância sobre se deveriam enviá-los para São Paulo ou Amazonas (SOUZA, 2000:85).

Evidentemente esse caloroso debate tinha como pano de fundo a

necessidade de embelezar Fortaleza para sua elite que desejava compará-la a Paris

e pela necessidade de manter a saúde dos potenciais trabalhadores das indústrias

que nasciam, salientando o paradoxo dessas decisões de cunho político, pois,

permitiram que surgissem fantásticos estudos que, se implantados com

planejamento eficaz, contribuiriam para a melhoria da qualidade de vida da

população, como nas conclusões de Thomaz Pompeu, filho do Senador Pompeu,

quanto ao planejamento urbano: ...o número elevado de edificações ... dificultavam o arejamento e a pureza do ar da Capital, pois restringiam a área de vegetação e o espaço livre à oxigenação das matérias putrecíveis, ruinosas à salubridade pública” e que “era necessário arborizar igualmente as ruas perpendiculares que facilitavam a entrada demasiada de poeira no interior das habitações e que as contaminavam com germes aeróbicos provocadores de moléstias respiratórias, como a tuberculose (PONTE, 2001:100).

Pompeu sugere, ainda, a criação de um sistema de esgotos para Fortaleza,

referindo-se “à carência de higiene doméstica e pública, particularmente da água

potável para os usos pessoais da população” (PONTE, 2001:100).1 Esta citação faz parte do prefácio do livro de Rodolfo Teófilo, sendo uma reprodução de publicações do jornal Tribuna de 19, 20 e 23 de Junho de 1917 – Rio de Janeiro.

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Embora a assistência pública tenha sido ínfima, Rodolfo Teófilo lembra que

não houve uma só epidemia, à exceção da varíola, unicamente, na sua opinião,

porque o governo não procedeu ao “abarracamento” dos retirantes, pois aglomerá-

los era o mesmo que assinar sua sentença de morte (TEÓFILO, 1980).

No dia 1º de Janeiro de 1901, Rodolfo Teófilo fazia sua primeira sessão de

vacinação contra a varíola com vacinas produzidas em seu vacinogênio e criando

comissões vacinadoras em vários municípios do interior, conseguindo acabar com a

doença no Ceará, com recursos próprios e mesmo lutando contra o governo

estadual que dizia que essa vacinação era prejudicial e feria o direito das pessoas

de escolher se queriam ou não ser vacinadas, afirmação que teve sua contradição

no ano de 1903 quando a vacinação foi obrigatória para que se controlasse a febre

amarela no Rio de Janeiro. Essas comissões vacinadoras foram instituídas e

constituídas por voluntários médicos, farmacêuticos e líderes comunitários, em 53

municípios do interior enquanto os trabalhos na capital foram executados (TEÓFILO,

1980).

A SECA DE 1915Fortaleza estava sendo ameaçada pela presença dos retirantes que, de certa forma,

agrediam a audaciosa burguesia que começa a se preocupar com a marginalização

e criminalidade devido à “invasão” de retirantes.

Em 1912 o pensamento burguês, com relação aos retirantes agrava-se, pois,

a população “maltrapilha” rebela-se, insuflada por setores liberais da capital, tirando

do poder o representante do sistema oligárquico e coronelístico, Nogueira Accioly.

Os revoltosos depredam tudo aquilo que representa o poder despótico e oligárquico.

A destruição é total, bondes, iluminação pública, calçamento, relógios, enfim, o caos

está criado e a dita “civilização” é destruída em poucos dias.

Dois anos mais tarde, 1914, explode um novo conflito que sacudiu todo

Estado. Uma guerra civil entre partidários e adversários do presidente Franco

Rabelo, substituto de Accioly e é sob tensão política, econômica e sócio-cultural que

adentramos 1915, em um período de escassez de chuva, despejando milhares de

flagelados na capital.

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O presidente Benjamim Barroso, temendo novas invasões de emigrantes e

com eles a criminalidade, prostituição e doenças, cria uma instituição para abrigar o

retirante. A instituição foi denominada “Campo de Concentração do Alagadiço”.

Neste “abrigo”, pouco higiênico e com uma concentração imensa de pessoas,

havia uma proliferação de doenças, onde morriam centenas de pessoas que eram

sepultadas em valas comuns. As condições subumanas dos doentes e mortos eram

tantas que o farmacêutico Rodolfo Teófilo, assustado com a gravidade da situação,

instalou na porta do campo de concentração um posto de vacinação contra a varíola.

Nesta seca o retirante passa a ser conhecido como flagelado, denominação

contestada por Rodolfo Teófilo que considera flagelado todos os moradores da

cidade durante as calamidades, pois “não será um flagelo ter-se a porta cheia de

famintos, de manhã à noite, pedindo esmola pelo amor de Deus?” (TEÓFILO,

1980:55).

O governo não organizou um plano de socorro contra os efeitos da seca,

impedindo que o sertanejo abandonasse sua terra e nem mesmo, no caso de ser

impossível fixá-lo, impedir que se tornasse um imigrante ou abarracá-lo em núcleos

(TEÓFILO, 1980).

Teófilo (1980) sugere que se espalhe os retirantes ao longo da estrada de

ferro, onde seriam empregados em serviços na vizinhança de suas moradas,

efetuando os reparos necessários às estradas de rodagem paralelas à estrada de

ferro, mas, infelizmente, o governo criou a semente da maior desumanidade que um

ser vivente pode submeter a outro: o campo de concentração.

O Campo de Concentração do Alagadiço chegou a abrigar(?) 8.000 pessoas

para proteger a cidade da invasão dos retirantes que, talvez pela experiência

adquirida pelas sucessivas secas, “já sabiam o melhor momento de abandonar o

sertão e conseguir uma passagem” e que “eram conduzidos, assim que chegavam,

diretamente para o “curral” de arame farpado de onde não poderiam mais sair”

(SOUZA, 2000:87).

A concentração de um contigente tão grande de pessoas num ambiente

pouco higiênico facilitou a proliferação de doenças e de morte onde, segundo

Rodolfo Teófilo, passaria a se denominar de Campo de Concentração para Campo

Santo e um cemitério de crianças, tantas foram as mortes no local, dificultando até

mesmo o sepultamento, pois os corpos eram empilhados no aguardo dos

carregadores que os jogariam em valas comuns (SOUZA, 2000).

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Finda a seca e, surpreendentemente, em meados de 1916 já desciam do

sertão boiadas de gado sadio e gordo e, como diz Teófilo (1980:90), “ O Ceará é a

fênix da Mitologia; vive a renascer de suas próprias cinzas”.

A SECA DE 1932O registro de maior relevância ou vergonha histórica sobre a seca de 1932 refere-se

ao florescimento da semente do campo de concentração de 1915 que gerou outros

sete, sendo cinco no interior e dois em Fortaleza, com um claro objetivo de fixar e

controlar o homem, deixando-o próximo de sua terra.

Mais uma vez o governo pouco fez para minimizar os danosos efeitos da

seca, além de estabelecer princípios de combate, afinal estávamos no Governo

Provisório, que se resumiam à solução hidráulica e fixação do homem no campo,

que consistia na canalização de recursos para a construção de grandes

reservatórios de água, atraindo retirantes famintos e protegendo a Capital da

invasão dos flagelados.

Para viabilizar esses princípios o Governo Provisório criou os cinco campos

de concentração cobrindo as principais rotas de migração do Estado nas cidades do

Crato, Cariús, Quixeramobim, Ipu e Senador Pompeu, além de dois em Fortaleza e,

para ao menos se imaginar o tamanho dessa inominável atitude, basta dizer que

esses campos reuniram cerca de 90.000 pessoas em janeiro de 1933 e que

somente o localizado na cidade do Crato reuniu 60.000 “habitantes” (SOUZA, 2000).

Nesses campos do concentração foram instalados 18 postos de saúde,

iniciando-se um grande processo de imunizações contra varíola e febres do grupo

coli-tifo-desentérico. Além das vacinações, foram administradas medicações contra

helmintoses, bouba, malária, leischmânia e tracoma e mesmo assim o número de

mortes foram significativos, pois, em Fortaleza, de abril de 1932 a abril de 1933 o

número de óbitos chegou a 16.062, sendo 11.122 de crianças (POMPEU

SOBRINHO, 1953).

A SAÚDE PÚBLICA NO CEARÁ

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Entre o final do século XIX e meados do século XX, a profissão de Doutor em

Medicina era reservada aos ricos, cujas famílias almejavam a conquista de altas

posições, principalmente na política, consequentemente alcançando status relevante

no cenário local e regional.

A Medicina, no Brasil, caminhou entre o misticismo e o charlatanismo até o

início do século XIX, quando as Escolas Anatômica, Cirúrgica e Médica da Bahia e

do Rio de Janeiro, criadas por D. João VI:foram elevadas à categoria de Faculdades de Medicina com direito de conferir o título de Doutor em Medicina aos seus alunos aprovados em todas as matérias do Curso e que fizessem defesa de teses sobre assuntos médico ou cirúrgico, no ano de 1832 (GIRÃO, 1945:469).

O território do Ceará tem duas características que o diferencia dos outros

Estados que compõem o Nordeste brasileiro, uma que se refere ao fato de seu

povoamento ter sido feito do sertão para o litoral e outra, decorrente de condição

climática singular, de semi-árido hostil.

A desatenção ao desenvolvimento da região, tanto do governo Imperial como

dos Republicanos, causou perdas irremediáveis à população que lentamente foi se

instalando, como o atraso na adoção de tecnologias produtivas de agricultura e de

indústria e de tecnologias sociais de educação e de saúde. O analfabetismo, as

migrações, a insalubridade e as pestes desqualificaram ou ceifaram milhares de

vidas.

Mais de 80% do território do Ceará sofre secas intermitentes com seus efeitos

catastróficos conhecidos desde a época do Império, quando D. Pedro II ordenou o

envio de ajuda à população, inclusive para a construção do secular açude do Cedro,

ciente de que o socorro imediato através de alimentos constituía iniciativa de

emergência e que o armazenamento de água representaria atitude mais eficiente e

mais eficaz no combate aos efeitos da seca e em sua prevenção.

Para avaliar as conseqüências de uma seca cearense do fim do século XIX,

a de 1900 que levou mais de 100 mil pessoas a Fortaleza, basta conhecer a capital

do Estado, como a descreve Sebastião Ponte:A capital encerra aquele período com 30 mil habitantes, 72 sobrados, 9 mil pessoas com profissão e 17 mil sem ocupação definida, além de 17 mil analfabetos. Contava ainda com equipamentos e serviços urbanos que reforçavam o ideal de progresso e civilização que as elites locais tanto ansiavam para a cidade, tais como o alinhamento de ruas provido pelo plano urbanístico de 1875, ferrovia (1873), Passeio Público e bondes puxados a burro (1880), telégrafo (1882), telefonia (1883), e o Instituto Histórico Geográfico do Ceará, criado em 1887, composto por bacharéis,

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médicos e demais profissionais liberais e presidido pelo médico (e Barão) Guilherme Studart (PONTE, 2001:95).

Nessa época, o número de médicos em Fortaleza era reduzido, entre 20 e 30,

mas eles tiveram atuação de fundamental importância nos primórdios da saúde

pública, pois, “continuaram problematizando faltas e necessidades nas cidades ou

no campo, cumprindo assim o seu papel de colaboradores científicos (mas críticos)

do Estado (PONTE, 2001:95).

Além de avanços no âmbito coletivo, as técnicas clínicas e cirúrgicas também

avançavam, como se depreende do texto a seguir, sobre uma operação de tumor na

face, realizada quarenta anos antes da introdução da anestesia com clorofórmio, tida

como a primeira cirurgia realizada no Ceará: O paciente, o jovem Vicente Antunes, portador de um tumor cancroso na face, foi operado pelo Dr. Joaquim José do Espírito Santo Barros, na cidade de Quixeramobim. (...) Deitaram o pobre homem numa mesa e enquanto dois auxiliares o continham pelos braços e pernas o cirurgião entrou em ação esfolando a cara do paciente para extirpação da tumoração (VASCONCELOS, 1994:48).

Até a primeira década do século XX, segundo GIRÃO (1945), o Ceará

dispunha apenas da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza, fundada em 1846 e

do Asilo de Alienados São Vicente Paula, fundado em 1886. As cirurgias eram feitas

nas casas dos doentes, onde já se observavam sinais da prática de esterilização,

pois, “o instrumental para as operações era fervido e refervido em latas de

querosene ou em chaleiras” (GIRÃO, 1945:471).

Em 1913 nasce o Centro Médico Cearense que agrupou médicos,

farmacêuticos e odontólogos, estabelecendo intercâmbio cultural, a defesa e amparo

dos interesses “morais e materiais” das três categorias. A partir de então o Ceará

assiste aos progressos e a realizações avançadas da ciência médica, na clínica e na

cirurgia, porém vai se atrasar bastante no que diz respeito às Políticas Públicas de

Saúde (GIRÃO, 1945:472) .

Somente em 1987, determinado por mudanças federais, cria-se o Sistema

Unificado Descentralizado de Saúde–SUDS, que representou, naquele momento,

um rearranjo institucional extraordinário com o objetivo de universalizar o

atendimento à saúde, reordenar os princípios e as práticas de integração,

hierarquizar e regionalizar o sistema de saúde e efetuar dispositivos de controle

social. A sua implantação foi importante na reforma administrativa do setor, pois

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provocou o desmonte de uma máquina previdenciária meramente assistencialista,

curativa e excludente (ANDRADE, 1997).

Em 1990, também determinado por mudanças federais, mas com o Ceará

iniciando um processo de participação intelectual, cria-se o Sistema Único de

Saúde–SUS, com o objetivo de organizar “ações e serviços de saúde de modo

descentralizado e com direção única em cada esfera de governo, além das diretrizes

de atendimento integral e da participação da comunidade”, seguindo a Constituição

Federal de 1988 e as determinações do Relatório Final da 8a Conferência Nacional

de Saúde, de 1986, que estabelece a saúde como direito social universal a ser

garantido pelo Estado (ANDRADE, 1997:19).

A criação do SUS permitiu que as políticas de saúde passassem para a

responsabilidade dos estados e municípios, com o acompanhamento da sociedade

civil, que se torna parceira no planejamento, nas decisões e na fiscalização, através

dos Conselhos Estaduais, Municipais, Distritais e Locais de Saúde. Além disso, os

princípios fundamentais do SUS, como eqüidade, integralidade, universalidade e

acessibilidade, permitem o desenvolvimento das ações de atenção primária à saúde

nos municípios.

O Estado do Ceará desenvolveu o sistema de microrregiões definidas como

sendo espaços territoriais compostos por um conjunto de municípios integrados e

interdependentes, com vontade política para pactuarem na busca de soluções para

problemas comuns e que avançou para a estruturação da Norma Operacional de

Assistência à Saúde–NOAS, de 2001, do Ministério da Saúde. Foram criadas três

macrorregiões, Fortaleza, Sobral e Cariri, responsáveis de pela atenção terciária e

pela alta complexidade, e 21 microrregiões, responsáveis pelas atenções secundária

e terciária de até média complexidade. A atenção primária é definida como

responsabilidade precípua do nível municipal.

Mas, justiça seja feita, essa engenharia foi idealizada por Rodolfo Teófilo há

exatamente 100 anos, quando de sua luta contra a varíola:“ ... dividi a cidade em algumas circumscripções e convidei auxiliares, pois estava convencido de que trabalhando sosinho seria preciso muito tempo para concluir a vaccinação em Fortaleza.Accederam ao meu convite os Srs. Dr. Antonio Theodorico da Costa, tomando conta do bairro da Aldeiota; professor Herminio Barroso, da Estrada de Mecejana; capitão Antão José de Souza, do bairro do Matadouro e major Raymundo Guilherme, do bairro da Jacarecanga e do arraial Moura Brazil” (TEÓPHILO, 1997:180).

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Além da divisão do município de Fortaleza em áreas geográficas, que, hoje,

chamamos de Áreas Descentralizadas de Saúde-ADS, também, foi idealizado como

estratégia de combate à varíola, a formação de equipes no interior, muito parecidas

com o que denominamos de Diretorias Regionais de Saúde-DERES, sendo que a

diferença consiste no fato de, naquela época, essas equipes terem sido formadas

por pessoas que responderam ao apelo de Teóphilo para trabalhar em regime de

voluntariado e fora do serviço de saúde oficial do estado: “Das setenta e nove

pessoas a quem dirigi-me cincoenta e tres haviam respondido-me acceitando a

incumbência” (TEÓPHILO, 1997:157).

CONSIDERAÇÕES FINAISAnalisamos as políticas públicas num período de meio século, entre 1887 a 1933,

onde a iniciativa governamental pouco contribuiu para uma resolução definitiva de

um problema tão conhecido e tão previsível como é a seca na região do semi-árido

do Ceará e mostra atitudes que, de tão vergonhosas, caíram no esquecimento ou

simplesmente foram sublimadas da memória, mas que revelam o pensamento

político da época, voltado exclusivamente para a manutenção do poder e do status

quo.

Devemos levar em conta que o caráter se curva ante uma desgraça tão

prolongada como no caso de um flagelo causado por anos de seca – “E na tortura

toda carne se trai...” (ZÉ RAMALHO, 1997) e assim, a corrupção por parte das

autoridades constituídas, a prostituição, o roubo, o saque, a mendicância e a

conivência, por parte dos desgraçados pela sorte, roubam o que resta de dignidade,

orgulho e altivez do ser humano.

Não há, num cenário como este, política pública que siga com seus objetivos

nem leis que sejam respeitadas.

Difícil conceber que após séculos de convivência com o clima cearense, as

autoridades ainda não se tenham dado conta ou ignorado o fato de que o Ceará é

um estado com imenso potencial gerador de riquezas.

Pensadores respeitados, universidades, indústrias, solo fértil e povo forte,

numa combinação que, com investimentos nas áreas social e tecnológica, fixariam o

homem no campo com geração de recursos para uma vida digna e com fartura.

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O mundo já conhece técnicas agrícolas que oferecem produção abundante

em terras com clima muito mais agressivo e com índices pluviométricos inferiores ao

cearense e que podem modernizar a vocação agropecuária do nosso sertão mas, no

entanto, podemos presenciar uma política populista e paternalista que perpetua uma

situação de miséria e mendicância, onde o sertanejo produz apenas para seu

sustento e de seu pequeno rebanho, quando os invernos são regulares,

desvalorizando a terra e promovendo apenas a esperança da chegada do dia em

que receberão o dinheiro da bolsa-escola, bolsa-alimentação, cestão, aposentadoria

dos seus velhos e benefícios dos seus inválidos.

Já dizia o poeta, com a sensibilidade que é peculiar aos artistas, sobre as

políticas governamentais paternalistas, principalmente quando aplicadas nas épocas

de seca:Mas dotô, uma esmola A um hôme qui é sãoOu lhe mata de vergonhaOu vicia o cidadão.É por isso que pedimoProteção a vosmicêHôme pus nóis escuídoPara as rédeas do pudêPoi doutô dos vinte estadoTemos oito sem chuvêVeja bem, quase a metadeDo Brasil tá sem cumê Dê serviço a nosso povoEncha os rios de barrageDê cumida a preço bomNão esqueça a açudageLivre assim nóis da esmolaQue no fim dessa estiageLhe pagamo até os júroSem gastar nossa corage.“ ( Vozes da Seca, Zé Dantas e Luiz Gonzaga, )

Nessa obra poética podemos ver que há tempos se conhece o caminho da

convivência com a seca e se repudia as ações imediatistas de ajuda quando,

infelizmente, não existe outra alternativa.

Mesmo assim, atuando de forma paralela, encontramos pessoas que através

de atos individuais e eficientes encontraram soluções antes impossíveis ou

justificadas como impossíveis de contornar e que exigiam grandes somas de verbas

públicas.

Pessoas como Rodolfo Teófilo, incansável e abnegado, que lutou contra

epidemias e o sofrimento de um povo e, talvez a sua mais árdua luta tenha sido

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contra a inércia e a inépcia de alguns políticos inescrupulosos e que tinha um caráter

laborioso irrefreável, além de ser citação obrigatória em qualquer pesquisa sobre

saúde pública do Ceará.

Outros com visão futurista, voltada para a saúde e o bem-estar da população,

que se traduzia em melhoria da qualidade de vida de todos e, como conseqüência,

traduzir-se-ia em lucro financeiro, como Thomaz Pompeu, considerado o mais

notável homem do saber local, por volta da década de 1890, que via a “importância

da vida humana como fator de riqueza” e que “em igualdade de condições naturais,

será mais forte e rico o Estado que possuir maior número de cidadãos aplicados à

indústria e artes” (PONTE, 2001:97, 98).

Embora não citados, pessoas com espírito humanitário muito contribuíram

para minimizar o sofrimento dos que eram vítimas das secas atuando de forma

solidária, com risco de prejudicar a sua saúde e de seus familiares e, na maioria das

vezes, anonimamente.

Essas pessoas, nomeadas ou anônimas, foram as precursoras do que

podemos denominar de saúde coletiva no Ceará quando, lutando contra as forças

da natureza e, mais difícil de enfrentar, a força dos homens sem escrúpulos,

mostraram o caminho para que chegássemos próximo do nosso objetivo, que é a

eliminação de endemias geradas da pobreza e da miséria, as chamadas doenças do

terceiro mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Manuel Correia de. O Nordeste e a Questão Regional. 2ª edição.

Editora Ática. São Paulo, 1993

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BARROSO, Gustavo. À Margem da História do Ceará. Imprensa Universitária do

Ceará. Fortaleza, 1962

DANTAS, Zé; GONZAGA, Luiz. Vozes da Seca. Disco Gonzagão e Fagner. BMG.

Rio de Janeiro, 1987

POMPEU SOBRINHO, Thomaz. História das Sêcas. Monografia nº 23. 2º Volume. Fortaleza: Editora A. Batista Fontenele, 1953.

PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reforma urbana e controle

social (1860 – 1930). 3ª edição. Edições Demócrito Rocha. Fortaleza, 2001.

SOUZA, Simone de. (Org.). Uma Nova História do Ceará. Edições Demócrito

Rocha. Fortaleza, 2000.

THEOPHILO, Rodolpho. A Fome: Scenas da Secca do Ceará. Imprensa Ingleza.

Rio de Janeiro, 1922

_______; Varíola e Vacinação no Ceará. Fundação Waldemar Alcântara. Fortaleza,

1997.

TEÓFILO, Rodolfo. A Seca de 1915. Edições UFC. Fortaleza, 1980

RAMALHO, Zé. 20 Anos: Antologia Acústica. Faixa 4 - Vila do Sossego. BMG

Brasil. São Paulo, 1997.

AUTORES:*Júlio Cesar Ischiara é psicólogo, especialista em saúde pública pela UVA- Universidade Vale do Acaraú e mestre em Saúde Pública pela UECE- Universidade Estadual do Ceará.

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**Juliana Pereira Ischiara é graduada em História pela UECE–Universidade Estadual do Ceará.