Politicas+Sociais Final

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Polticas sociaisideias e prtica

ORGANIZAO

CENTRO RUTH CARDOSO

Polticas sociaisideias e prtica

Nota Os textos deste livro foram produzidos em forma de papers ou editados a partir das apresentaes dos participantes do I Seminrio Internacional Centro Ruth Cardoso, realizado nos dias 24 e 25 de novembro de 2010 em parceria com o Centro de Empreendedorismo Social e Administrao do Terceiro Setor da FEA/USP, nas dependncias da Universidade de So Paulo. A organizao dos temas obedece a programao original das mesasredondas, oficinas e palestras do Seminrio. As opinies expressas nos textos aqui publicados so de responsabilidade de seus autores. Centro Ruth Cardoso

2011, Centro Ruth Cardoso ORGANIZAO E EDIO: Centro Ruth Cardoso TRADUO DO ESPANHOL (CECLIA M. VELLEZ): Lgia Saad TRADUO DO INGLS (GERARD CLARKE, LESLEY E. REDWINE, EZEQUIEL REFICCO): Anne Speyer COORDENAO EDITORIAL: Srgio Couto REVISO: Afonso N. Lopes, Millyane M. Moura, Nancy H. Dias, Viviane T. Mendes PROJETO E EDITORAO: Ricardo Postacchini FOTOS: Gui Tamburus/Centro Ruth Cardoso COORDENAO DE PRODUO INDUSTRIAL: Wilson Aparecido Troque IMPRESSO E ACABAMENTO:

ISBN 978-85-16-07127-1

EDITORA MODERNA LTDA. Rua Padre Adelino, 758 Belenzinho So Paulo SP Brasil CEP 03303904 Tel. (11) 27901500 Fax (11) 27901501 www.moderna.com.br 2011 Impresso no Brasil

SUMRIO

Apresentao Polticas sociais na trilha da poltica participativa Lourdes Sola ....................................................................................... 107 Introduo Dos nossos compromissos de vida Graa Machel ..................................................................................... 111 Democracia e novas formas de participao social A democracia e a problematique da participao: as Filipinas no governo de Gloria Macapagal Arroyo (20012010) Gerard Clarke ...................................................................... 127 Novos padres de interao entre Estado e sociedade Elisa Reis.............................................................................. 161 Sntese da discusso: Democracia e novas formas de participao social Maria Helena Guimares de Castro .................................... 179 Educao e cidadania Os colgios em concesso da Colmbia Ceclia Maria Vellez............................................................. 191 Redefinindo a educao na Amrica: um olhar histrico e moderno sobre as estratgias de reforma que tratam do dficit de desempenho Lesley Esters Redwine ........................................................... 103 Sntese da discusso: Educao de qualidade para todos, premissa da reduo da pobreza e fator coadjuvante na aquisio do capital social Guiomar Namo de Mello ..................................................... 135 Empreendedorismo social e desenvolvimento sustentvel As empresas na sociedade: os limites das boas intenes Ezequiel Reficco ................................................................... 161 Empreendedorismo social: apontamentos para um debate Rosa Maria Fischer .............................................................. 183

Sntese da discusso: empreendedorismo social e desenvolvimento sustentvel Thereza Lobo ....................................................................... 207 Redes sociais e sociedade em rede Mudana social em rede Gustavo Cardoso.................................................................. 219 A sociedade da conexo: notas sobre a representao de rede Cssio Martinho .................................................................. 259 Sntese da discusso: Redes sociais e sociedade em rede Augusto de Franco............................................................... 287

Apresentao Polticas sociais na trilha da poltica participativaLourdes SolaLivredocente pela Universidade de So Paulo, conselheira do Ncleo de Polticas Pblicas da USP e presidente do Conselho Consultivo do Centro Ruth Cardoso.

A qualidade das democracias de massa depende de dois processos que so, de fato, os dois motores da democracia: concorrncia poltica; e participao social e poltica. O foco dos nossos trabalhos o segundo motor hoje, como no passado. Nosso ponto de partida o de Ruth Cardoso era fruto de uma constatao: entre as mudanas transformadoras que ocorreram nos anos de 80 e 90 em vrias frentes, o tratamento da desigualdade e da pobreza despontava como uma revoluo silenciosa. Seus contornos, ainda vagos para a maioria dos observadores, haviam sido identificados com preciso pela antroploga, com base em anos de pesquisa, ancorada em uma slida formao terica. Mas foram seu sentido de misso e seu compromisso com a construo de uma sociedade mais justa que entraram em cena quando o destino lhe pregou a pea de traz-la para o corao da vida poltica brasileira, como companheira do presidente Fernando Henrique. Nunca primeira-dama mas primeira em valer-se dessa condio para converter

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seus saberes em uma modalidade inovadora de poltica pblica republicana. dessa alquimia que gostaria de tratar antes de dizer a que viemos com o seminrio internacional1. A histria das democracias de massa inclui transformaes que, por serem graduais e levadas a cabo sem uma escalada de conflitos e sem grandes protagonismos, constituem revolues silenciosas. So gestadas por mudanas difusas nas preferncias sociais, expressam-se em novas formas de organizao coletiva e culminam na formao de consensos abrangentes e em novos critrios de legitimao poltica. Toda mudana social desse tipo s levada a bom termo quando os novos padres de ao coletiva logram moldar a agenda pblica. Quando isso ocorre, os governos democrticos so chamados a articular respostas inovadoras, a identificar os agentes sociais de mudana e a incorporar o novo consenso ao desenho de suas polticas pblicas. As funes do Estado democrtico se redefinem, pois embora incluam a universalizao dos direitos sociais, no se esgotam nisso. Essa travessia, porm, no automtica. Depende da ao deliberada de vrios agentes sociais, com vistas a converter os impulsos transformadores da sociedade civil em polticas de interesse pblico. A mudana nos padres de relao entre Estado e sociedade nos ltimos 20 anos caracteriza uma revoluo desse tipo, a partir de trs desdobramentos. Por um lado, mudou a forma de abordar as desigualdades sociais e a pobreza, em mbito nacional e em escala global: como questes cuja superao objeto de responsabilidade coletiva e no apenas do Estado. Por outro, o reconhecimento da vocao associativa demonstrada pelas comunidades carentes, cuja ao coletiva as capacita a construir, com relativa eficcia, suas estratgias de sobrevivn1 Este texto reproduz a fala de Lourdes Sola, presidente do Conselho Consultivo do Centro Ruth Cardoso, na abertura do I Seminrio Internacional Centro Ruth Cardoso.

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cia e suas aspiraes por melhor qualidade de vida. Finalmente, o estudo e a valorizao dessas capacidades e dos tipos de saber que as diferentes comunidades desenvolvem ao atuar sobre seus respectivos contextos implicavam tambm legitimar e fortalecer suas lideranas, como agentes sociais de mudana. Essas transformaes esto na raiz das novas prticas de interveno no espao pblico, inauguradas sob a gide da Comunidade Solidria, criada por Ruth Cardoso nos anos 90. Combater a desigualdade e a pobreza continuava sendo um dos deveres do Estado, mas as polticas sociais com foco nesse objetivo deveriam ser coerentes com as formas emergentes da poltica participativa e integrar em seu desenho as dinmicas comunitrias. Teriam por alvo o fortalecimento das capacidades e dos saberes j mobilizados pelas lideranas das comunidades em parcerias com as organizaes do terceiro setor, com o poder pblico e com setor privado. a partir dessa visomatriz, que moldou a Rede Solidria (RedeSol) a rede de todas as redes criadas nos ltimos 15 anos , que o Centro Ruth Cardoso define sua misso. Trata-se de desenvolver, decantar e atualizar as formas de interveno no espao pblico, na trilha da poltica participativa concebida como uma interao sustentvel entre setores da sociedade civil e as redes pblicas. Consciente das mudanas que j ocorreram no cenrio original e do conhecimento j acumulado pela RedeSol, o Centro guia-se por duas diretrizes. A primeira refere-se dimenso analtica e propositiva, inerente ao legado de Ruth Cardoso. Quer-se refletir sobre os elementos que balizam a reconfigurao do espao pblico nos ltimos anos no Brasil: luz das mudanas na sociedade civil, nas redes pblicas, nas formas de participao do setor privado, como parceiro da RedeSol.

Apresentao

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A segunda diretriz de ordem estratgica: consolidar o Centro como lcus de reflexo, nacional e internacional, sobre as experincias de interveno, dirigidas ampliao da poltica participativa. Em sintonia com o esprito republicano de Ruth Cardoso que nosso diferencial , o Centro promoveu um seminrio internacional, em torno de quatro eixos temticos: Democracia e novas formas de participao social; Educao e cidadania; Redes sociais e sociedade em rede; Empreendedorismo social e desenvolvimento sustentvel. Cada um deles com duas atividades: um painel integrado por pesquisadores e analistas; e uma oficina, integrada pelos que conduzem os experimentos em pauta.

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Introduo Dos nossos compromissos de vidaGraa MachelBacharela em Filologia da Lngua Alem pela Universidade de Lisboa. Em Moambique, atuou como professora e lutou clandestinamente com a Frente de Libertao de Moambique (FRELIMO) durante a Luta Armada de Libertao Nacional. Foi ministra da Educao e da Cultura no primeiro governo moambicano, durante 14 anos.

grande a honra que me concedida esta manh2, de partilhar um pouco da minha histria de vida entrelaada com a histria de vida de uma grande amiga, de uma grande mulher, de uma irm, que enriqueceu minha vida tambm. No pelo nmero de anos de convivncia que eu tive com Ruth que nossa relao se tornou indelvel de tal maneira, que do lado de l do Atlntico eu tenha sentido to profundamente essa perda, da partida dela, como se ela tivesse sido parte da minha vida desde o princpio. Mas sim pelo que ela e sempre ser que eu tive de aceitar vir aqui para falar, no porque eu tenha muito a acrescentar, mas para lhe prestar homenagem e para que a famlia, os amigos, o pas saibam que do nosso lado tem uma solidariedade sem limites, e ns tambm saberemos, nossa maneira, muito modesta, continuar os valores que ela representa.2 Este texto reproduz a fala de Graa Machel na abertura do I Seminrio Internacional Centro Ruth Cardoso.

Introduo

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Foi-me pedido para falar sobre a experincia que eu desenvolvi na criao da Fundao para o Desenvolvimento da Comunidade em Moambique, mas achei por bem comear por fazer uma breve trajetria daquilo que me conduziu criao da Fundao, porque, como suponho que muitas pessoas no tero muito envolvimento com a histria de Moambique, ento ser muito til contextualizar. Vou falar sobre trs grandes conceitos que esto por trs da minha atividade social. A primeira sendo de carter pessoal: que no a origem social de quem tu s que determina o que s, o que queres ser e que o podes ser. O segundo conceito grande de que vou falar fazer da escola uma base para o povo tomar o poder. O terceiro grande conceito a emancipao da mulher uma necessidade fundamental da revoluo, garantia da sua continuidade e condio do seu triunfo. E ligando a histria da educao, fazemos da escola, fazemos do pas inteiro uma escola onde todos aprendem e todos ensinam. E, finalmente, os direitos da mulher, os direitos da criana como um compromisso de vida. Eu nasci em Moambique colonizado; a minha me ficou viva trs semanas antes de eu nascer e ficamos uma famlia de seis filhos. Minha me era analfabeta e morreu analfabeta, em 1999. Ns ramos uma famlia, em termos materiais, muito pobre, mas em valores de amor, de carinho, de solidariedade, uma famlia riqussima e que constituiu a ncora que permitiu a mim e aos meus irmos crescermos sem sentir o que so as dificuldades materiais, porque tnhamos os valores que nos uniam. Tive uma irm mais velha que considerei tambm uma segunda me. Por isso, meu universo de criana povoado e moldado por duas grandes mulheres, e isso depois vai ser a ex-

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plicao do que vem a seguir. Minha me ensinou a todos ns que no so as condies da tua origem, as condies em que nasces e cresces que determinam quem s, o que queres ser, o que podes ser. O importante teres educao, conquistares o saber para abrir possibilidades de fazer opes na vida, de fazer escolhas informadas, de desenhar o teu prprio destino. s um ser social que provm, molda-se e retorna para a famlia, a comunidade a tua volta, sociedade de que s parte. Por isso, a minha infncia foi sempre orientada para o no limites naquilo que eu poderia realizar, desde que eu tivesse a fora e a coragem de desenhar o meu prprio destino. E isso constituiu um lema de vida, que depois se traduz nas opes polticas e nas opes sociais que eu fiz mais tarde. A minha primeira grande escolha, ento, foi a minha adeso ao Movimento de Libertao de Moambique (FRELIMO). Colocava-se a questo: ou viver colonizada ou morrer livre. A nossa adeso ao movimento de libertao era realmente um pledge [compromisso] de vida: podamos viver como podamos morrer, mas estvamos preparados desde que isso constitusse a condio para que o povo moambicano fosse livre e pudesse determinar o seu prprio destino. Desde logo quando eu aderi ao movimento, h ideias que cativaram e desafiaram o meu intelecto e tambm galvanizaram o meu corao. A primeira grande ideia, o primeiro grande conceito foi de associao do movimento libertador por trs do grande motor de capacitar os moambicanos para terem acesso ao saber, acesso ao conhecimento, e que a libertao para ns tinha como condio ao fim e ao cabo como condio essencial sermos ns prprios, e para sermos ns prprios, tnhamos que dominar a cincia, tnhamos que fazer as opes informadas. E esse grande princpio de fazer da escola uma ponte para

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o povo tomar o poder instalou-se quer nos nossos centros de treino, nos centros sociais, nas bases militares inclusive. Por todo o lado estudar, combater o analfabetismo concentrando em jovens, obviamente, mas tambm nos adultos e soldados, que eram parte do movimento de libertao. Queria uma marca do lugar da educao e da cincia na vida de um pas e fiz uma ligao com a minha prpria experincia. Aquilo que me fez diferente de muitas e muitas meninas da minha gerao e na minha aldeia foi precisamente porque tive acesso educao, providenciada pela minha me e pelos meus irmos. Aquilo que tinha sido um lema de vida, a minha prpria opo em desenhar o meu futuro como pessoa, se transformou e igualou ao esforo do que Moambique e o povo moambicano s vai ser ele prprio se dominar os saberes da cincia, e assim a libertao do potencial, das energias, a afirmao da nossa identidade nacional foi sempre associada, portanto, a acesso e domnio do conhecimento e da cincia. O segundo conceito foi: a emancipao da mulher uma necessidade fundamental da revoluo, garantia da sua continuidade e condio do seu triunfo. Um movimento libertador que teve de ser a volta da luta armada como o nosso podia ter facilmente descarrilado para se concentrar na ao militar, mas desde logo se transformou numa revoluo social. O engajamento e a participao de todos os elementos da sociedade e, mais importante ainda, este princpio de emancipao da mulher que foi, portanto, ditado por Samora Machel na altura, , desde logo no primeiro ano da independncia, um empenho. Primeiro que a mulher devia lutar em p de igualdade em todas as aes de libertao. Segundo, era dizer: nem todas as mulheres podero estar na frente de combate ou na frente da educao e da sade, mas era importante que elas tivessem

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centralidade em todas as decises que ns tomssemos para o nosso futuro porque a transformao social que ns tnhamos em mente como revoluo significava que a mulher tinha que ter um papel central. E isto faz a ligao com a minha prpria vida. A centralidade da minha me e da minha irm como referncia que se transforma num projeto social e uma combinao que faz sentido para eu compreender que sem a participao da mulher, as conquistas que ns tnhamos em mente como libertao, como uma sociedade diferente; alis, ns falvamos de uma sociedade nova na altura, em que ns combatssemos as foras de opresso, que ns combatssemos as formas de discriminao e, bem devem saber, so vrias as formas de opresso e discriminao que ainda recaem sobre as mulheres africanas. Mas a FRELIMO tinha muita clareza nesse momento de que no era apenas libertar um povo, era tambm libertar todos os elementos e foras da sociedade, em particular a mulher. Aquilo que aparece mais tarde para outros com movimentos feministas, para ns era uma condio essencial de realizao do grande objetivo de libertar a terra e os Homens, e aqui querendo dizer Homens com H grande. A proclamao da independncia em 1975 levou-nos a que ns herdssemos um pas que tinha 93% de analfabetismo. Era o ndice mais elevado de qualquer pas africano em termos de condies de acesso ao conhecimento, e desde logo ns tambm associamos que no s nas zonas de controle da FRELIMO, mas em todo o pas, devamos fazer da escola, do pas, uma escola em que todos aprendem e todos ensinam. E assistimos a um movimento em que toda e qualquer pessoa alfabetizada, quer no local de trabalho, quer no local de residncia, nos engajamos numa massiva campanha de alfa-

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betizao. Uma combinao de expandir a rede escolar primria e secundria, mas de tambm fazer no local de trabalho, no local de residncia; era um movimento belssimo em que no intervalo das horas de trabalho nas fbricas as pessoas interrompiam duas horas e tinham trinta minutos para comer e uma hora e meia para fazer campanha de alfabetizao. As escolas funcionavam em trs turnos: de manh, de tarde e de noite com adultos. Aquilo que eram as cooperativas nas zonas rurais, as pessoas trabalhavam das sete s nove e antes de voltar para casa, sentavam e faziam campanha de alfabetizao. Foi um movimento que em cinco anos conseguimos reduzir de 93% e viemos para cerca de 78% de analfabetismo. Este foi um exemplo concreto de mobilizar todas as foras vivas em volta de um conceito que era a libertao para ns, o acesso ao conhecimento dava razo e dava contedo prpria libertao. Mas ns no tnhamos quadros, como era de esperar, e assim houve um grande chamamento ptria, e o presidente Samora na altura convidou que todos os jovens que estavam nas ltimas classes do ensino secundrio interrompessem seus estudos e que fossem treinados para realizarem tarefas no perodo de 24 meses, tarefas que pudessem assegurar o controle do Estado e que o moambicano comeasse de fato a dirigir os destinos do pas. Esse movimento chamado 8 de Maro, e jovens de todo o pas, de todas as classes aderiram entusiasticamente a esse chamamento da ptria, e so eles que ainda hoje asseguraram que Moambique tivesse a estabilidade poltica que ns temos. Apesar da desestabilizao que tivemos, o Estado manteve-se intacto, o pas no foi dividido e quem assegurou isso foram precisamente os jovens do 8 de Maro. A lio importante que vem daqui: colocar o interesse na-

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cional acima do meu prprio interesse pessoal. Esses jovens tinham sonhos, tinham projetos de fazer cursos que fossem de sua escolha, mas tiveram que aceitar que desviariam uma parte dos seus prprios desejos para responder aquilo que eram as prioridades que o chamamento da ptria indicava. Mas fizemos tambm disso, transformamos a emancipao da mulher em necessidade da revoluo como movimento nacional. Em Moambique as mulheres nunca tinham tido a oportunidade de se levantarem e falarem em pblico, as mulheres nunca tinham tido oportunidade de votar, muito menos participar numa assembleia e o movimento de participao das mulheres, desde aquilo que eram as unidades nas aldeias, nos distritos, nas provncias, constituiu a primeira oportunidade de desplantar a energia e a capacidade de mostrar a forma como a mulher pode participar e ser um elemento de transformao da sociedade. Isso levou a que tivssemos e dssemos expresso quilo que ns chamvamos na altura o poder popular, mas nisto tendo a centralidade da mulher na transformao da sociedade. Ns tivemos depois um grande conflito, como devem saber, a seguir desse perodo de alto entusiasmo e generosidade de toda essa gente para a construo. Ns construamos ao lado da frica do Sul do apartheid um modelo de sociedade, um estilo de implantao do poder popular, que era uma ameaa prpria natureza do apartheid, por isso a fria do apartheid caiu sobre ns para esmagar o modelo, para esmagar a experincia que tinha o potencial de transformar no s a frica do Sul, mas toda a frica Austral. E a guerra de desestabilizao caiu sobre ns de uma forma impiedosa. Eu vi, no meu prprio gabinete de trabalho, escolas que eu tinha ajudado a construir, professores que t-

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nhamos formado, crianas, tudo isso, escolas queimadas, professores raptados e alguns mortos, crianas, deslocamento das pessoas. Ns tivemos um grande movimento de refugiados nos pases vizinhos e no prprio interior do pas tivemos cerca de 5 milhes de pessoas internamente deslocadas. E, portanto, o modelo que estvamos construindo, o dissdio social moambicano foi violentamente desestabilizado, e com isto surgiu naturalmente um retrair de um grande espao de solidariedade nacional. As pessoas voltam-se mais para interesses de pessoa, de famlia, em detrimento, portanto, da consolidao de um projeto amplamente solidrio. a que surge a diferenciao de classe de uma maneira muito mais vista e a injustia social. Nesse perodo eu aprendo tambm a compreender a resilincia das famlias, das mes, o romper do crculo que as famlias tinham, as mulheres movimentam-se daqui para ali e continuam a fazer com que seja unido e no seja dividido, mas, sobretudo, garantir a sobrevivncia das famlias e das comunidades. As Naes Unidas deram a oportunidade de eu preparar um relatrio sobre o impacto do conflito em crianas, isso devido minha prpria experincia em Moambique. Essa experincia exps-me ao sofrimento de mulheres e crianas em Ruanda, Angola, Camboja, Bsnia, Serra Leoa, Colmbia, campos de refugiados palestinos no Lbano, enfim, muitos pases que eu tive de viajar e tive de ver a forma como mulheres e crianas esto sendo destrudas pelo impacto da guerra. Eu chorei lgrimas partilhadas com mes que sabiam, e eu tambm sabia, que os seus filhos no iriam vir no dia seguinte. Estvamos ambas impotentes de fazer o que fosse. Ainda hoje eu trago imagem dos olhos que me visitam, olhos de crianas que olhavam para

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mim como que a perguntar: Por qu? Eu nunca tive respostas para essas coisas, por isso lutar pelos direitos das mulheres e das crianas no foi uma opo intelectual, foi uma resposta a um compromisso de vida. Eu lembro-me sempre daquelas mes e digo: Elas provavelmente nunca tero a oportunidade de falar num Parlamento, de falar numa Organizao das Naes Unidas e eu tenho o dever de falar em nome delas. Eu tenho o dever de falar em nome das mulheres do meu pas e do meu continente, que ainda hoje, em todos os indicadores sociais do Continente Africano, so as mulheres e as crianas que ainda pagam o preo mais elevado da injustia social, dos conflitos, das desigualdades, e por isso ser ativista pelo direito da mulher e da criana realmente um compromisso de honra, um compromisso de vida e simplesmente uma contribuio muito modesta que me dada a oportunidade de responder. Aps o conflito armado, tivemos que voltar a construir o pas, e nisso tnhamos que olhar como e onde incidir a maior ateno. O pas decidiu que o distrito era o polo de desenvolvimento, mas para mim a questo que se colocava quando eu ia deixar o governo e deixar o Parlamento era: onde eu vou colocar minha ateno agora? E decidi ento criar essa Fundao para o Desenvolvimento da Comunidade. O prprio nome diz, o desenvolvimento com base na transformao da vida nas comunidades, quer dizer, so aldeias, so bairros, mas unidades manejveis a partir das quais se pode seguir a trajetria da transformao da vida daquelas comunidades. Mas, dentro das comunidades, concentrar na famlia e dentro da famlia, nas mulheres e crianas. So aquilo que, de uma maneira muito concreta, ns queramos ver, a transformao da vida das mulheres, os direitos da mulher a partir da relao mesmo na

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famlia, na relao e participao na sua comunidade para que ela seja capaz de continuar a influenciar as polticas nacionais. As crianas como o investimento melhor e maior que se pode fazer para o futuro do pas, que seja diferente da realidade de hoje. E para ns, trabalhar nas comunidades tem sido uma experincia de aprendizagem, uma experincia tambm de enriquecimento e, por isso, vimos que sozinhos no poderamos trabalhar, tnhamos que criar uma rede de instituies da sociedade civil. Portanto, criamos, promovemos e fortalecemos organizaes, redes temticas e educao para todos, mulheres rurais, luta contra o trfico de crianas. Muitas redes em Moambique tm alguma origem e, em certo momento, algum apoio da Fundao para o Desenvolvimento da Comunidade, porque preciso multiplicar as vozes que clamam, que realizam programas de justia social, ns s no seramos capazes. E, portanto, as centenas de milhares de pessoas que ns tocamos no so diretamente atravs de ns s, direta e indiretamente atravs das mltiplas redes que ainda funcionam com o nosso apoio. Agora eu quero dizer como que essas coisas acontecem. O destino que desenhamos para ns prprios uma resposta quilo que nos toca muito profundamente como nossa maneira de ser e de estar na sociedade. No apenas uma adeso intelectual e, naturalmente, nesse esforo ns ligamos o pessoal, o familiar, o comunitrio, o nacional, o global. E todas essas formas de adeso e participao esto interligadas. Deixe-me agora falar da minha irm, da Ruth. Como eu disse no princpio, eu no conhecia Ruth h muitos anos, no tive uma convivncia muito longa como muitos de vocs aqui nesta sala. Mas Ruth Cardoso uma pessoa que eu, desde a primeira hora, no contato do olhar, no abrao, nos sentimos

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irmanadas e sentamos que tnhamos de alguma maneira um destino comum, fazendo as coisas de maneira diferente, num contexto diferente, mas uma ligao profunda que ficou entre ns duas, uma grande solidariedade, uma grande amizade. A Ruth, a mim me impressionou pela sua presena serena, calma, um raciocnio muito claro, explicado com uma grande simplicidade, mas tambm com uma grande profundidade. Uma modstia sem limites. Quem conhecesse Ruth e no soubesse o que ela fazia na vida no poderia imaginar a grande fora anmica que estava dentro e por detrs daquela mulher. A Ruth, como acadmica, ter naturalmente aquilo que eu poderia chamar enabled. A Ruth era uma enable, ela influa, encorajava e instilava nas pessoas que elas tinham a fora para desenhar e realizar o seu prprio futuro atravs de aulas que ela deu aqui nessa Universidade, mas no s. A Ruth, quando ela prpria diz se ver numa posio de poder, ela reconheceu imediatamente aquilo que poderia ser a fora transformadora naquele lugar que se chama de primeiradama do pas. Ela fez coisas extraordinrias, que foi primeiro identificar claramente onde ela poderia fazer maior impacto, e ela decidiu que iria utilizar a posio em que ela estava primeiro para criar pontes entre diversas classes e diversos setores, a volta de uma solidariedade humana e nacional e, por isso, juntou universidades, comunidades, jovens, at envolveu o Exrcito para distribuir materiais de campanha de alfabetizao. Mas, neste cruzar destas pontes, a ideia essencial de uma nao em harmonia e em paz consigo prpria, uma nao que quer mover como uma nao una nesse sentido de solidariedade. Em poucos anos que ela esteve em Braslia, ela conseguiu reinventar o papel de uma primeiradama num pas. E no foi s aqui, foi no mundo. E no s usar isso como uma fora transformadora.

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A Ruth viveu muitas vidas numa vida s, e eu creio que ao longo dessa possibilidade de ter o Centro e tentar compreender o que ela , a vida da Ruth vai se multiplicar em diversas dimenses e diversas latitudes. Muitas das pessoas que foram beneficiadas por suas ideias no sabero muitas vezes que ela que foi a origem desses processos e movimentos sociais. E, para dizer a verdade, aquilo em que ela ficou em todos ns no aquilo que ns podemos contar, no aquilo mesmo que ns podemos dizer. Por mim, eu digo: a maneira como ela tocou minha vida, as palavras nunca podero ser capazes de expressar porque ficou no mundo das emoes, ficou no mundo de uma identidade profunda e ficou tambm nesse enabling que estou a dizer. Quando se d capacidade a algum de ser ela prpria, isso no se mede em nmeros, no se mede em palavras tambm. Esta uma vida que veio para estar e nunca partir e eu penso aqui que quero partilhar convosco aquilo que a nossa viso como africanos, ns nunca vamos compreender o fenmeno da morte, mesmo quando dizemos que compreendemos temos dificuldade de aceitar. Portanto, essa ausncia vai ser sempre muito grande em ns, mas h uma coisa que ns aprendemos como africanos que dizemos: As pessoas mudam de estado, no desaparecem. E atravs de tentar de uma maneira muito simples como foi a vida dela, implementar aquilo que foram suas ideias, ns mantemos: mantemos a Ruth viva, e viva conosco. E nesse sentido tambm que do lado de l do Atlntico, uma irm e, se quiserem, uma colega, no esforo de lutar contra as injustias sociais, de criar pontes e ligar vrias pessoas e vrias energias para criar naes, tem um sentido de solidariedade, de igualdade e equidade. Do lado de l vocs podem contar aqui uma irm, uma amiga que no seu trabalho e no seu

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dia a dia vai ter como referncia a experincia de luta e vida de Ruth Cardoso. E, finalmente, criei recentemente um Instituto para o Desenvolvimento da Criana e decidi que iria dar o nome da minha prpria neta, Zizile, porque me ajuda a olhar o mundo atravs dos olhos e das experincias da minha prpria neta, e mais, aquilo que eu gostaria que minha neta fosse aquilo que eu desejo para qualquer criana do mundo e do meu pas e que ela no tenha, como eu tive, que lutar por uma identidade. Para que ela no tenha que lutar porque discriminada, para que ela no tenha que lutar porque olham para ela como se ela fosse um ser inferior, para que ela ocupe na centralidade da vida o lugar que lhe devido porque ela um ser humano completo, no um ser humano inferior e diferente dos outros. O futuro, atravs dos olhos da minha neta, na interveno que eu continuarei para um mundo melhor, ter tambm e sempre uma grande referncia na histria de luta e de vida de Ruth Cardoso. Quero agradecer a oportunidade extraordinria que me deram de vir aqui e, como viram, eu no optei por fazer uma Aula Magna do ponto de vista intelectual, acadmico, no o meu forte. Isso vai se seguir com as pessoas que vo falar. Mas isso aqui um testemunho, e no s um testemunho, um compromisso. E nisto eu digo: a luta continua.

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Democracia e novas formas de participao social

A democracia e a problematique da participao: as Filipinas no governo de Gloria Macapagal Arroyo (20012010) Gerard Clarke Novos padres de interao entre Estado e sociedade Elisa Reis Sntese da discusso: Democracia e novas formas de participao social Maria Helena Guimares de Castro

A democracia e a problematique da participao: as Filipinas no governo de Gloria Macapagal Arroyo (20012010)Gerard ClarkeProfessor do Departamento de Estudos Polticos e Culturais Universidade de Swansea (Reino Unido).

Resumo Desde o colapso da ditadura de Ferdinand Marcos em 1986, as Filipinas recuperaram sua reputao como uma das democracias mais vibrantes da sia, com eleies regulares, imprensa livre e plena liberdade para o exerccio dos direitos civis e polticos. Uma nova constituio, aprovada em 1987, prev ampla participao social como parte de um processo de consolidao democrtica, mas tal participao no induziu s mudanas estruturais que se esperavam na poltica filipina. Como tal, as Filipinas continuam sendo um estado fraco com uma democracia frgil, apesar de ser vibrante. Este artigo examina a participao social durante os dez anos da Presidncia de Gloria Macapagal Arroyo (20012010) e argumenta que foi administrada de cima para baixo, de maneira corrupta, violenta e neopatrimonial, solapando o processo de consolidao democrtica. Mas, de forma mais controversa, argumenta que as organizaes da sociedade civil, antes crticas quanto poltica paternalista, incluindo-se a maneira paternalista da alocao de recursos, passou a ser cmplice na

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estratgia governamental, colocando em perigo o papel central de chamar o governo responsabilidade. O artigo encerra considerando as implicaes do regime Arroyo para o futuro da participao social nas Filipinas. Introduo No dia 20 de janeiro de 2001 Gloria Macapagal Arroyo se tornou a 14a presidente das Filipinas, em circunstncias incomuns e sem precedentes. Em vez de triunfar aps uma campanha eleitoral, Arroyo pacificamente destituiu Joseph Estrada, ento presidente, demitindo-se de seu gabinete em outubro de 2000 e liderando uma campanha de protesto que o obrigou a renunciar. Quando se candidatou Presidncia em 1998, sob a palavra de ordem Erap Para Sa Mahirap (Erap para os Pobres), Estrada mobilizou apoio eleitoral significativo entre os pobres do meio urbano e rural, prometendo encarar as elites socioeconmicas entrincheiradas e estabelecendo coalizes novas a favor dos pobres. Alm de seu populismo grandioso, porm, o comportamento de Estrada estava mais para mafioso do que para presidente da democracia constitucional mais antiga da sia. Ele aceitava propinas regularmente de chefes de jogatinas, ganhando fama de corrupto, e foi implicado na eliminao daqueles que buscavam revelar sua m conduta no cargo.1 Economista acadmica que se tornou senadora, membro do gabinete e vice-presidente antes de assumir o cargo mais1 Particularmente, o desaparecimento de Edgar Bentain em 1998 e o assassinato de Salvador Bobby Dacer e Emmanuel Corbito em 2000. Bentain supostamente passou uma fita de vdeo para um oponente de Estrada, que foi posteriormente distribuda mdia. A fita mostrava Estrada conversando com o chefe do jogo Charlie Atong Ang num cassino discutindo jueteng, a loteria ilegal da qual Ang supostamente fez sua fortuna. Segundo notcias, Estrada enfureceu-se por ter sido publicamente associado com Ang. O jornalista Salvador Bobby Dacer e seu motorista, Emmanuel Corbito, foram supostamente assassinados depois que Dacer tentou chantagear Estrada sobre um caso extraconjugal.

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alto, Arroyo era considerada tecnocrata com slida compreenso intelectual da situao desagradvel do pas. E, mais importante, foi dela o mrito de idealizar a queda pacfica de Estrada, passando a ser uma testa de ferro para diversas foras sociais anti-Estrada. Em seu discurso inaugural de 2001, ela tentou estabelecer um novo tom para a Presidncia: Precisamos melhorar os padres morais no governo e na sociedade para que se possa oferecer um forte alicerce para a boa governana. Precisamos mudar as caractersticas de nossas polticas para criar campo frtil para as verdadeiras reformas. Nossas polticas personalistas e clientelistas devem ceder lugar para uma nova poltica de programas partidrios e processos de dilogo com a sociedade.2 Mas quando Arroyo deixou a Presidncia em maio de 2010 aquelas palavras j haviam sido h muito esquecidas, e sua imagem estava seriamente comprometida. Em especial, ela havia perdido o apoio das foras da sociedade civil propensas s reformas, apesar das iniciativas para promover a participao social e apoiar as foras que a haviam impulsionado Presidncia. Este artigo examina o registro controverso da administrao Arroyo na promoo da participao social e a resultante quebra de confiana com o povo filipino. Ao fazer isto, examina as dificuldades em promover a participao com base ampla em um estado fraco com democracia frgil, caracterizado pela dominao duradoura de uma elite e um sistema corrosivo de rentseeking3* e corrupo no mago da poltica pblica.2 Cf. http://www.asianinfo.org/asianinfo/issues/gloria_macapagal.htm, acessado em 27 de setembro de 2010. 3 Extrao de valor no compensado com os outros, sem fazer contribuio para a produtividade, como ganhar controle das decises governamentais que podem afetar consumidores ou empresas (N.T.)

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Os suportes constitucionais da participao (e sua anulao!) Na teoria, o colapso da ditadura de Marcos em 1986 criou campo frtil de possibilidades para melhorar a participao das foras sociais, h muito tempo excludas da influncia poltica, como povos indgenas, minorias religiosas, lavradores sem terra e pobres da rea urbana. Eleies multipartidrias competitivas, uma imprensa livre e direitos civis e polticos foram restaurados. E, em 1987, uma nova constituio foi promulgada, contendo disposies significativas e at radicais para a participao com base ampla na vida poltica, incluindo providncias a favor de: autonomia para regies com identidades distintas engajadas em lutas prolongadas contra o Estado centralizado ou unitrio;4 descentralizao do poder poltico do governo central para o nvel provincial, municipal, ou de vilarejo;5 formas novas de representao poltica no Congresso (um sistema de lista partidria);6 proteo dos direitos das organizaes da sociedade civil, incluindo as organizaes de base ou as de comunidades, para participar na vida nacional;7 e novos mecanismos institucionais para promover a participao e para proteger os direitos civis e polticos dos cidados.8 At 2001, quando Arroyo assumiu a Presidncia, muitas destas providncias constitucionais j haviam dado resulta4 Artigo 10, Seo 15. 5 Artigo 10, Seo 3. 6 Artigo 5, Seo 5. 7 Artigo 2, Seo 23; Artigo 3, Seo 8; Artigo 13, Seo 1516. 8 O artigo 3 estabelece uma declarao de direitos, enquanto o artigo 10, Seo 14, dispe sobre conselhos de desenvolvimento regionais com representao do governo, do setor privado e da sociedade civil.

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do significativo. Duas regies haviam conquistado autonomia substantiva por meio do estabelecimento, em 1989, da Regio Autnoma de Muslim Mindanao e a Regio Administrativa da Cordillera9. O Cdigo de Governo Local de 1991 levou a uma substantiva descentralizao de poder poltico e responsabilidade fiscal para os governos locais, incluindo 81 provncias, 118 cidades, 1.510 municpios e 41.995 barangays (ou vilas)10. Um sistema de lista partidria, abrangendo 50 dos 250 assentos da Cmara Baixa da legislatura Cmara dos Deputados foi introduzida em 1995, permitindo uma nova rota eleitoral ao Congresso para os partidos menores e organizaes setoriais.11 Ao final, as Filipinas conquistaram uma sociedade civil vibrante, onde organizaes no governamentais e populares poderiam participar no processo de elaborao das polticas por meio de um conjunto de mecanismos institucionais. Apesar destes ganhos, porm, restaram ainda problemas substanciais. Quase 22 anos depois do relato seminal de 1988 de Benedict Anderson sobre a poltica filipina, o pas continua residualmente uma democracia de caciques, no poder de uma oligarquia nacional de cls polticos, estabelecidos h muito tempo e predominantemente proprietrios de terras que exerciam o mando sobre o cargo eletivo de forma desproporcional (cf. Anderson 1988). Nos ltimos 20 anos, desde aquela poca, a elite se diversificou medida que os membros abandonaram as terras agrcolas para adquirir imveis ou investir no varejo ou na manufatura. O crescimento da mdia e o culto a celebridades permitiram que estrelas do cinema,9 Por meio de Atos da Repblica 6743 e 6766, respectivamente. 10 Nmeros da Diretoria Nacional de Estatstica. http://www.nscb.gov.ph/activestats/psgc/NSCB_ PSGC_SUMMARY_Dec06.pdf, acessado em 4 de outubro de 2010. 11 Em vez de nomear indivduos para disputar distritos eleitorais de uma nica cadeira, o sistema de lista partidria permite entidades registradas disputar em mbito nacional. Para ganhar assento, o partido deve receber 2% dos votos nacionais, e nenhum partido pode ganhar mais de trs assentos.

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cantores e ex-generais do exrcito ou da polcia pudessem ganhar assentos no Senado. E o crescimento da classe mdia permitiu que candidatos que no pertenciam aos cls polticos tradicionais ganhassem postos eletivos. De acordo com Coronel et Al. (2007), a diversidade dos negcios [hoje] torna difcil descrever o Congresso como bastio da oligarquia. Nem se pode dizer que as Filipinas podem ser corretamente descritas como uma democracia de caciques no sentido da preeminncia de riqueza de terras e poder (Coronel et al., 2007). 37). No obstante, 40% dos membros do Congresso em 2007 ainda possuam terras agrcolas (uma queda de 58% na dcada passada), enquanto dois teros dos membros da Cmara dos Deputados e metade de todos os senadores eram oriundos de dinastias polticas estabelecidas (ibid: 36 e 34). A democracia de caciques e a oligarquia dela originada esto certamente enfraquecidas, mas longe de serem irrelevantes nas Filipinas de hoje. Ademais, o pas ainda carece de um sistema poltico-partidrio eficiente. A maior parte dos partidos existe como coalizo temporria, organizada em torno de campanhas eleitorais especficas e para dar apoio a um ou mais candidatos. Na prtica, no existem partidos polticos com grande nmero de membros que apresentam escolhas ideolgicas claras para os eleitores.12 significativo que todos os presidentes, desde12 O Partido Lakas (Lakas ng Bayan, Esprito do Povo) marca o incio de sua histria em 1978. o mais prximo de um partido poltico estabelecido, tendo se envolvido em todas as administraes entre 1986 e 2010, mas tem uma base organizacional fraca. Os Partidos Liberal e Nacionalista tm suas histrias datando do perodo ps-independncia, mas suas estruturas organizacionais ou plataformas polticas so ainda mais fracas. O mais prximo que se chega a um partido poltico programtico com grande nmero de membros o Partido Comunista das Filipinas, embora no dispute eleies em seu nome.

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1986, governaram com o apoio de uma coalizo e no com um partido nico, disciplinado, com grande nmero de membros. Corazon Aquino (1996) e UNIDO-Lakas-PDP13; Fidel Ramos (1992-1998) e Lakas-NUCD14; Joseph Estrada (19982001) e uma coalizo tnue conhecida como Laban ng Makabayang Masang Pilipino LAMMP (Luta das Massas Filipinas Patriticas)15; e Gloria Macapagal-Arroyo (20012010) com Lakas-Kampi-CMD.16 Estas alianas inconstantes apontam menos para alternncia de poder entre partidos ideologicamente coerentes quando as prioridades dos eleitores mudam, e mais para o triunfo de interesses particulares sobre os interesses universais, assim como para a inabilidade dos partidos polticos e de suas lideranas superarem as foras gmeas entrelaadas de regionalismo e familismo (fidelidade a cls polticos tradicionais). Este triunfo do particular sobre o universal nasce de uma terceira faceta importante do panorama democrtico ps Marcos. Um sistema de governo presidencial no estilo Estados Unidos, onde os presidentes entram em acordo com o Congresso para assegurar apoio em prioridades legislativas,13 Corazon Aquino disputou a Presidncia em 1986 sob a bandeira do United Nationalist Democratic Organization (UNIDO), de Salvador Laurel, e no do partido Lakas ng Bayan fundado por seu marido Benigno Aquino, ou PDPLaban, a coalizo entre Lakas e o Partido Demokratikong ng Pilipinas (PDP, Partido Democrtico Filipino) estabelecido em 1984 e sob o comando de Aquilino Pimentel. Para eleies legislativas em 1987, candidatos pr-governo disputaram como parte de uma coalizo Lakas ng Bayan (ou Laban, como apelido) encabeada por UNIDO e incluindo Lakas e o PDP. 14 Uma coalizo entre Lakas ng Bayan e a Unio Nacional de Democratas Cristos. 15 LAMMP era uma aliana solta de partidos que representavam interesses particulares na administrao Estrada, incluindo o Nationalist Peoples Coalition, de Eduardo Cojuangco Jr., Edgar Angarras Laban ng Demokratikong Pilipino (Luta dos Filipinos Democratas), o de Estrada, Partido ng Masang Pilipino (Partido das Massas Filipinas), e os partidos LakasPDP, liderados por Aquilino Pimentel, junto com partidos menores e regionais. 16 Efetivamente, uma coalizo entre dois partidos, Lakas-CMD (Democrata-Cristos Muulmanos) e Kampi (Kabalikat ng Malayang Pilipino, Parceiros dos Filipinos Independentes), estabelecida especificamente para apoiar Arroyo. LakasCMD substituiu a velha aliana Lakas-NUCD, formada em 1992, que funcionou como partido de Fidel Ramos durante sua presidncia, e o mais prximo de um partido poltico coerente no poder que os filipinos tiveram desde 1986. Ramos era presidente honorrio de Lakas-CMD, mas recusou assumir o mesmo papel na unio de Lakas-Kampi-CMD.

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d origem a um elaborado sistema de patrocnios. Membros do Senado e da Cmara dos Deputados desfrutam de expedientes significativos com os dispndios pblicos e competem para trazer recursos nacionais para suas reas de jurisdio regionais ou provinciais. O sistema comea com alocaes definidas para cada membro do Congresso pelos Fundos Assistenciais de Desenvolvimento Prioritrio (Priority Development Assistance Funds PDAFs): PhP17 65 milhes (US$ 1,5 milho) para um membro da Cmara dos Deputados e PhP 200 milhes (US$ 4,58 milhes) para um senador em 2006 (Coronel et al. 2007: 181).18 Assim como o prprio sistema presidencial, este sistema de poltica clientelista remonta aos anos 1920 e lei colonial americana. Mas o sistema s comea a. Juntamente com seus PDAFs pessoais, os membros do Congresso na coalizo do governo tm acesso a fundos controlados pelo presidente, enquanto todos os membros do Congresso fazem lobby intenso para assegurar recursos das agncias governamentais para seus distritos.19 A poltica clientelista leva alocao errnea de recursos pblicos em escala significativa. Membros do Congresso gastam grande parte de suas alocaes em escolas, hospitais e estradas, mas tambm gastam valores significativos em projetos denominados soft, que criam ligaes benfeitorcliente diretas com os eleitores, por exemplo, a aquisio e distribuio de medicamentos, fertilizantes ou material de construo, ou bolsas de estudos para os constituintes. Mas a poltica clien17 Pesos filipinos (N.T.). 18 Baseado em taxa cambial de US$ 1 = 43.62 pesos filipinos (PhP), em 5 de outubro de 2010. Esta taxa usada para todas as converses PhP/US$ neste artigo. 19 Membros do Congresso podem ter como alvo alocaes oramentrias especficas ou funding windows, tal como o Fundo de Obras Pblicas, do Departamento de Obras Pblicas e Estradas, ou o Fundo de Construo de Escolas do Departamento de Educao. Tais funding windows so projetadas para facilitar gastos de poltica clientelista e refletem o poder do Congresso em configurar o oramento anual do governo.

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telista tem dois outros efeitos falsos e enganosos na poltica pblica. Primeiramente, os membros do Congresso usam seu poder de patrocinadores para assegurar a propina das empreiteiras, alimentando corrupo significativa na alocao de fundos pblicos. E, segundo, por causa das riquezas a que podem assegurar acesso, os membros do Congresso gastam grande quantidade de recursos para se eleger, marginalizando os que no so capazes de gerar fundos suficientes.20 Neste ambiente, um candidato Presidncia que pensa em reformas encontrar dificuldade em estabelecer apoio eleitoral sem o acesso vasta soma em dinheiro para aquecer a mquina eleitoral. Para assegurar estes recursos, os candidatos devem fazer negcios com figuras polticas estabelecidas e os chefes polticos dos cls. Sem uma enorme habilidade poltica, este processo de construo de alianas rouba de um presidente eleito espao ou margem para uma atuao significativa nas polticas e pode envolv-lo em barganhas faustianas que mais tarde voltaro para mord-lo.21 Em segundo lugar, uma vez eleito, o presidente achar difcil gerar apoio no Congresso sem um partido poltico disciplinado ou uma coalizo para lhe dar sustentao. Na ausncia de tal disciplina partidria, um presidente forado a estabelecer alianas com indivduos ou pequenos grupos na base de questo por questo, esvaziando seu capital poltico. Esses dilemas significam que os presidentes jogam um jogo complexo para formar alianas, tanto dentro quanto fora do Congresso, por meio do controle dos recursos do Estado como sua principal arma poltica. De maneira especial, esses20 Para conseguir acesso aos PDAFs de PhP 65 milhes, por exemplo, candidatos da Cmara tipicamente gastam mais que PhP 10 milhes em suas campanhas (Coronel et al. 2007: 28). 21 Por exemplo, a revelao de condutas corruptas, ou supostamente corruptas, um dilema perene nas Filipinas com sua imprensa relativamente livre e competitiva.

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dilemas efetivaram o solapamento da Presidncia de Arroyo e, como resultado, sua habilidade para fomentar a participao social de maneira reformista, construindo sobre os ganhos de 15 anos de governo democrtico desde 1986. Arroyo chegou Presidncia em 2001, sem concorrer a uma eleio, mas em 2004 ela concorreu reeleio. Nos seus esforos para estabelecer uma mquina eleitoral bem-sucedida, ela empregou prticas que subverteram as instituies projetadas para sustentar a participao social. Para levantar fundos para sua campanha eleitoral, alega-se que ela aceitou propinas em grandes contratos governamentais.22 Similarmente, nas suas relaes com o Congresso ou agncias governamentais autnomas, foi forada a sustentar a poltica clientelista e empregou prticas corruptas.23 Comentaristas tm apontado para as consequncias da Presidncia de Arroyo e os problemas estruturais que a solaparam. Escrevendo em 2008, por exemplo, Hutchcroft anota que Arroyo no exibe nenhum escrpulo em ter solapado as instituies j fracas do pas e, em consequncia, as estruturas democrticas, h muito existentes, correm perigo. De maneira semelhante, Eaton (2003) argumenta que as organizaes da sociedade civil tm sido impedidas de desempenhar (...) os papis necessrios para a consolidao da democracia, tanto antes quanto durante a Presidncia de Arroyo. Hutchcroft e Rocomora (2003) concordam, e, juntamente com Eaton, argumentam que a nica reforma que mais provavelmente poderia terminar com o dficit democrtico existente seria a introduo de medidas que encorajas22 Notadamente no escndalo NBN-ZTE, em que ela foi acusada de pedir propinas de uma firma chinesa ZTE durante negociaes de um contrato para ajudar a desenvolver uma rede de banda larga nacional (NBN). 23 Arroyo defendeu programas estabelecidos de poltica clientelista no Congresso, tais como Fundos de Assistncia ao Desenvolvimento Prioritrio. No escndalo Hello Garci, ela foi acusada de tentar manipular os resultados das eleies presidenciais de 2004 em telefonema ao presidente da Comisso de Eleies.

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sem partidos polticos duradouros e com um grande nmero de filiados, orientados por metas programticas em vez de particularistas (Hutchcroft e Rocomora [2003]: 259). Junto a estas crticas, acrescento estudos de caso que apontam o papel da administrao Arroyo em obstruir aes de instituies projetadas para promover a participao social. Tambm aponto o desafio que agora existe para revitalizar estas e outras instituies democrticas. Examino: (i) O supostamente uso corrupto das fundaes para dispersar liberalidades antes das eleies de 2004; (ii) suas tentativas desajeitadas de cooptar membros da Comisso Nacional Contra a Pobreza (National AntiPoverty Commission); (iii) uma parceria extraordinria com a Conveno da Rede de ONGs para o Desenvolvimento (Caucus of Development NGO Networks CODE-NGO), que deu origem s alegaes de comportamento rentseeking por parte de um ator da sociedade civil, com a conivncia ativa da administrao de Arroyo; e (iv) a violenta supresso da sociedade civil pela administrao Arroyo e seus partidrios, especialmente no massacre de Ampatuan em 2009. As fundaes da presidente As Filipinas tm uma sociedade civil vibrante, na qual relativamente fcil formar e registrar fundaes filantrpicas e de caridade. Os polticos, porm, frequentemente estabelecem fundaes para promover seus interesses, e os reguladores tm encontrado dificuldades em controlar fundaes com vnculos com o regime no poder. Arroyo, porm, foi acusada de abusar do status de fundao em escala maior do que qualquer outro presidente desde Ferdinand Marcos, o ditador deposto em 1986. O Centro Filipino de Jornalismo Investigativo (Philippine Center for Investigative Journalism PCIJ) afirma que o Departamento da Agricul-

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tura distribuiu mais de PhP 3 bilhes (US$ 67 milhes), por meio de congressistas, governadores e prefeitos, antes das eleies de 2004, a maior parte repassada via fundaes privadas obscuras.24 Mais de PhP 700 milhes (US$ 16 milhes) destes recursos foram implicados no escndalo JocJoc Bolante (ou do Fundo de Fertilizantes), em que fundos do Departamento da Agricultura, planejados para providenciar fertilizante subsidiado para fazendeiros, foram repassados para oficiais locais por meio de um nmero de fundaes, cooperativas e organizaes do povo, algumas delas registradas com a Comisso de Seguridade e Cmbio (Securities Exchange Commision SEC), mas muitas delas desconhecidas das agncias reguladoras.25 A pessoachave no escndalo foi Jocelyn Joc-Joc Bolante, um subsecretrio no Departamento da Agricultura nomeado logo depois que Arroyo foi empossada presidente em 2001. Bolante tambm era amigo ntimo de Mike Arroyo, esposo da presidente e associado do Rotary Clube de Manila, do qual um nmero de oficiais na administrao Arroyo foram recrutados. Em dezembro de 2005, logo depois que o escndalo estourou, Bolante fugiu para os Estados Unidos, mas as autoridades filipinas emitiram uma ordem de priso que resultou em sua extradio e ele voltou para ser julgado em outubro de 2008. Em 2009, Arroyo tambm fora acusada pelo PCIJ de manter uma rede obscura de nove fundaes controladas por famlias, muitas das quais recebiam recursos ou emprstimos governamentais.26 A lei filipina no probe polticos de estabelecer fundaes nem coloca restries a respeito dos membros de suas diretorias, mas, como notou o PCIJ, o controle24 Luz Rimban, Billions in Farm Funds Used for Arroyo Campaign, 2829 de setembro de 2005. http://www.pcij.org/stories/2005/farmfunds.html, acessado em 22 de setembro de 2009. 25 Ibid. 26 Rowena C. Paraan, Arroyos run a horde of foundations, Philippine Center for Investigative Journalism, 8 de setembro de 2009. http://pcij.org/stories/arroyosrunahordeoffoundations/, acessado de 22 de setembro de 2009.

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familiar destas fundaes gerou suspeitas sobre suas atividades e fontes de financiamento, assim como suas implicaes na conduo das polticas. Porm, somente trs destas fundaes satisfizeram as exigncias de relatrio do SEC, levantando suspeitas particularmente sobre as outras seis. Alm da rede de fundaes controladas por famlias, Arroyo tambm estava implicada nas atividades de fundaes estabelecidas ou administradas por amigos ntimos.27 A Fundao Lualhati, por exemplo, foi considerada uma das favoritas por Arroyo durante a sua vicepresidncia (1998-2001), quando era administrada por seu chefe de gabinete, Edgard Arroyo (nenhum parentesco). Em 2003, porm, a presidente Arroyo foi acusada de filtrar PhP 8 milhes (US$ 183 mil) de empresrios controvertidos e de um exmembro da Cmara dos Deputados, Mark Jimenez, por meio de suas contas.28 Para os oficiais da SEC, no entanto, as atividades das fundaes prximas a polticos representam um campo poltico minado, no qual entram com relutncia.29 At o final de 2009, por exemplo, nenhuma ao tinha sido tomada pela SEC contra as nove fundaes de Arroyo, reveladas pelo PCIJ, no obstante as diretrizes que exigem que as fundaes declarem as fontes de seus recursos, que devem ser certificados pelas autoridades locais. De acordo com um oficial graduado, por exemplo, a SEC depara com dificuldades significativas em acompanhar histrias da mdia ou reclamaes de membros do pblico, com respeito a estas fundaes, na ausncia de cooperao interagncias.30 Fica implcita a realidade de que a cooperao interagncias nesse contexto inclui o Gabinete do presidente.27 Ibid. 28 Lualhati Foundation funds depleted, only P70k left, The Daily Tribune, 7 de maro de 2006, www.tribune.net.ph, acessado em 22 de setembro de 2009. Veja tambm ibid. 29 Entrevista annima com oficial da SEC em outubro de 2009. 30 Ibid.

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A Comisso Nacional Antipobreza Alm de seu uso de fundaes para levar adiante seus prprios interesses, Arroyo tambm subverteu a Comisso Nacional Antipobreza (National Anti-Poverty Commission NAPC), penalizando organizaes que criticavam a sua administrao ou solapavam suas pretenses eleitorais. Estabelecida em 1998, aps a eleio de Joseph Estrada a presidente, a Comisso foi projetada para demonstrar o compromisso de Estrada em levar adiante seus compromissos eleitorais com os pobres. Sua campanha populista, porm, falhou na conquista de ONGs que trabalhavam junto aos pobres, e Estrada buscou atrair o apoio destas depois de sua eleio. O estabelecimento da NAPC foi o mecanismo-chave nesta estratgia. Uma caracterstica-chave da NAPC foi um dispositivo prevendo delegados representando cada um dos 14 setores bsicos que constituam ou apoiavam os pobres das Filipinas: crianas, populaes indgenas, pessoas com necessidades especiais, jovens e alunos, vtimas de desastres e calamidades naturais, mulheres, trabalhadores do setor informal, terceira idade, organizaes no governamentais, pobres urbanos, pescadores e agricultores.31 Alm disso, a Comisso recebeu um papel significativo e prtico em 2001, quando o governo estabeleceu o Programa Kalahi-CIDSS para combater a pobreza nos barangays (vilas ou pequenos distritos locais) mais pobres nas Filipinas.3231 Conforme especificado em Republic Act RA 8425. 32 Kapit-Bisig Laban sa Kahirapan (juntando os braos contra a pobreza) foi projetado para ser o programa de reduo da pobreza do governo Arroyo e representava uma continuao e expanso do Entrega Integrada e Abrangente de Servios Sociais (Comprehensive Integrated Delivery of Social Services (CIDSS)), programa que comeou em 1994 como parte do programa Estratgia de Reforma Social e Erradicao da Pobreza (Social Reform and Poverty Alleviation Strategy) do governo Ramos (conforme determina Republic Act 8425). Uma das partes integrantes de Kalahi, conhecida como KalahiCIDSS, foi financiada com um emprstimo inicial de US$ 130 milhes do Banco Mundial em 2002, e buscou providenciar subvenes de PhP 300 mil (US$ 6.900) cada para 5,378 barangays por cinco anos (NAPC 2005: 66). O programa foi levado adiante pela administrao de Benigno Aquino III, com mais financiamento do Banco Mundial (http://kalahi.dswd.gov.ph/, acessado em 6 de outubro de 2010).

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Mas, comandada pelo presidente e com representao de 41 agncias governamentais diversas 33, a NAPC foi um campo poltico minado, no qual coalizes de trabalho foram frequentemente experimentais e instveis, e em 2004 o programa tinha dado alguns passos modestos, na melhor das hipteses.34 Arroyo tinha um relacionamento geralmente positivo com as ONGs e com grande parte dos setores da sociedade civil, desde que assumiu a Presidncia em 2001 (aps a renncia de Joseph Estrada) at a sua eleio a presidente em 2004 (como veremos mais adiante). Ela havia servido anteriormente como secretria do Departamento de Trabalho Comunitrio e Desenvolvimento Social e, como economista acadmica, considerava-se com bom domnio das causas da pobreza filipina. Portanto, o trabalho da NAPC prosseguiu sem obstculos nos primeiros anos de sua presidncia. No entanto, aps as eleies de 2004, de onde originaram os escndalos de compra de votos e de corrupo, as relaes comearam a deteriorar. Dentro da NAPC o processo se desdobrou gradativamente, mas em 2007 as relaes tinham se tornado to inquietantes que Arroyo aprovou uma Ordem Administrativa (Administrative Order AO) em julho, que estabelecia um novo esquema de credenciamento para as organizaes, buscando trabalhar com a NACP, controlada pelo gabinete da presidente. O lance foi amplamente visto como uma tentativa de vetar e cooptar as ONGs que trabalhavam com os pobres e provocou alvoroo nos vrios setores da sociedade civil. Como resultado, a Ordem Administrativa 187 foi rescindida em 2009, ostensivamente por causa dos custos de credenciamento por conta das consequncias da crise financeira global.35 A deciso foi um indicador revelador33 Para uma lista completa destas agncias, veja NAPC 2005: 48. 34 Para detalhes sobre realizaes, veja Ibid: 6267. 35 Jesse Ilacan e Hannah Quinsay, Basic Sectors Unit, National AntiPoverty Commission, entrevista, Manila, 29 de outubro de 2009.

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do capital poltico esgotado de Arroyo depois que uma srie de controvrsias havia corrodo sua reputao entre as ONGs progressistas e as organizaes populares. A saga das Obrigaes do PEACe36* Muitas das dificuldades subjacentes ao engajamento de Arroyo com a sociedade civil, nos ltimos anos de sua administrao, foram prognosticadas por uma controvrsia anterior que acabou por estabelecer o padro para o restante de sua administrao. Na saga das Obrigaes do PEACe, Arroyo foi acusada de premiar organizaes que a ajudaram a projet-la Presidncia em janeiro de 2001 e se esforar para manter seu apoio por meio do uso de incentivos financeiros tpicos de prticas de compra de voto e rentseeking, endmicas na poltica filipina. Essencialmente, o governo ajudou desde o comeo a estabelecer uma das maiores organizaes da sociedade civil (em termos financeiros) ao providenciar acesso sem precedentes aos mercados de capitais Conveno das Redes de ONGs de Desenvolvimento (The Caucus of Development NGO Networks CODENGO). Alegou-se que isto se deu em retribuio ao papel vital da CODENGO na coordenao de Kompil II, 37 o movimento de massa. e a coalizo que precipitou, com xito, a remoo da Presidncia do antecessor de Arroyo, Joseph Estrada (cf. FDC 2002). Igualmente desconfortvel, a CODENGO, a maior e mais independente coalizo de ONGs de desenvolvimento das Filipinas, foi parceira ativa no processo e beneficiria direta, na opinio de seus crticos, de prticas de rentseeking, que havia previamente condenado (cf. Segovia 2008: 230).* 36 Certificados de Erradicao e Conciliao da Pobreza (Poverty Eradication and Alleviation Certificates PEACe) 37 O nome resumido do Kongreso ng Mamamayan Pilipino II, ou o Congresso dos Cidados Filipinos II. Para uma anlise mais detalhada do papel de Kompil II na queda de Joseph Estrada, consulte Velasco 2004.

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A saga das Obrigaes do PEACe comeou em janeiro de 2001, quando Marissa Camacho Reyes, empreendedora dinmica e filantropa, se tornou a nova presidente da CODE-NGO. Camacho Reyes tentou profissionalizar a administrao das ONGs ao introduzir princpios do setor privado. Tambm buscou avanar na segurana financeira dos membros da CODE-NGO, reduzindo sua dependncia nas doaes externas, que, por serem de curto prazo, destruam progressivamente a sustentabilidade a longo prazo dos programas das ONGs, e, no declnio destas a longo prazo, deixavam uma lacuna significativa no financiamento. Para tratar das duas metas simultaneamente, ela persuadiu o Conselho Curador da CODE-NGO a participar dos mercados de capitais de Manila, criando assim um financiamento novo, a longo prazo, para investir nos programas de reduo da pobreza.38 O plano original foi aprovado na reunio da diretoria no dia 6 de maro de 2001, a mesma reunio em que CamachoReyes foi eleita presidente. Durante as semanas seguintes, porm, Camacho-Reyes e uma equipe de consultores se reuniram com oficiais do Departamento de Finana (Department of Finance DOF) e o Departamento do Tesouro (Bureau of Treasury BTr) e apresentaram uma nova e radical argumentao: que o BTr venderia exclusivamente para a CODE-NGO, por intermdio de uma intermediria licenciada, PhP 30 bilhes (US$ 670 milhes) de obrigaes de cupom-zero de 10 anos, a preos com descontos significativos, equivalente a 15,5% de juros anual (CODE-NGO 2007: 94). A CODE-NGO props que deveria colaborar com um banco domstico credenciado para38 Alm de CODE-NGO 2007, o caso das Obrigaes do PEACe feito em Danilo A. Songco, CODE-NGOs PEACe Bonds: Financing Civil Societys Fight Against Poverty, Philippine Daily Inquirer, 17 de fevereiro de 2002. Para um relato entusiasmado do papel de Camacho-Reyes, vide Polestico (2006).

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comprar ttulos do governo, e que o banco depois os venderia para outras instituies financeiras credenciadas para participarem no mercado secundrio. O prximo passo seria garantir um parceiro e, em meados de abril de 2001, a CODE-NGO fechou um acordo com a Rizal Commercial Banking Corporation (RCBC) para subscrever os ttulos em que a RCBC compraria os ttulos em nome da CODE-NGO e depois os venderia com lucro sua subsidiria, RCBC Capital (ibid: 94). A CODE-NGO posteriormente negociou agregar uma srie de caractersticas especiais para realar a negociabilidade com o BTr., a Comisso de Seguro e da Secretaria da Receita Federal (Insurance Commission and the Bureau of Internal Revenue), mas, por insistncia do Bangko Sentral ng Pilipinas, estas caractersticas que foram agregadas ao ttulo no foram concedidas CODE-NGO, como era esperado. E em mais um lance surpreendente, as autoridades monetrias decidiram que o ttulo deveria ser leiloado em vez de emitido exclusivamente para a CODE-NGO, colocando todo o esquema sob ameaa (ibid: 99-100). No dia 9 de outubro de 2001, o governo anunciou um leilo de at PhP 50 bilhes (US$ 1,11 bilho) de obrigaes de cupom-zero de 10 anos, isentos dos 20% de imposto final retido com vrias caractersticas que realavam seu valor, incluindo a elegibilidade para reserva secundria. O leilo foi realizado uma semana mais tarde, no dia 16 de outubro, e atraiu 45 lances de 15 licitantes credenciados. Isto inclua seis lances da RCBC, dos quais quatro eram em parceria com a CODE-NGO, com taxa de juros subentendidas de 12,2 a 13,4 % ao ano por PhP 10 bilhes, ou duas parcelas de PhP 5 bilhes. Ao final, as autoridades emitiram PhP 35 bilhes (US$ 802 milhes) de ttulos com a taxa de juros padro a 12,75%,

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todas para a CODE-NGO via RCBC. Neste patamar de juros, a RCBC pagou PhP 10,16 bilhes. para os ttulos que foram revendidos RCBC Capital por PhP 11,9 bilhes, e a CODE-NGO recebendo a diferena de PhP 1,83 bilho (US$ 42 milhes). Depois de pagar PhP 239 milhes RCBC, baseado numa taxa de 2% para subscrever, e PhP 98 milhes a seus consultores financeiros, a CODE-NGO recebeu PhP 1,49 bilho, dos quais PhP 150 mil foram retidos e PhP 1,34 bilho (US$ 31 milhes) foram doados Fundao Paz e Equidade (Peace and Equity Foundation PEF), estabelecida para administrar esta dotao (Ibid 101). A PEF foi formalmente lanada em novembro de 2001, prometendo PhP 100 milhes anuais de investimento para os programas de reduo da pobreza, financiados pelos juros anuais recebidos do fundo. A CODE-NGO alegou que o esquema obteve enorme sucesso, e nos quatro anos, de 2002 a 2006, pagou PhP 803 milhes em doaes e emprstimos para 750 projetos de conciliao relacionados pobreza por toda as Filipinas (ibid: 101-102). Porm, no obstante os ganhos, o esquema provocou enorme controvrsia, expondo a CODE-NGO a uma investigao pela mdia e pelo Congresso, assim como oposio por parte das organizaes da sociedade civil, das quais antes estava prxima.39 Essencialmente, a CODE-NGO foi acusada de comportamento de rent-seeking, usando acesso privilegiado e preferencial aos formuladores de polticas do governo, que de outro modo no teria acesso, para ganhar mais retorno econmico (cf. FDC 2002; Segovia 2008: 230). A acusao foi sria, porque a CODE-NGO, em comum com outras ONGs que se inclinavam para a esquerda, assim como os movimentos sociais,39 Sobre a vigilncia da mdia e do Congresso, veja, por exemplo, Margarita H. Dubuque, CODE NGO Under Pressure to Use P1.4B gain well, Philippine Daily Inquirer, 22 de fevereiro de 2002.

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havia criticado governos sucessivos ao longo de muitos anos por tolerar comportamento de rentseeking por empresrios e polticos e, como consequncia, de sobrecarregar os filipinos com nveis escorchantes de dvidas. Em maro de 2002, no auge da controvrsia, a presidente da CODE, CamachoReyes, e seu executivo renunciaram40, vtimas da maior controvrsia a abalar o movimento de ONGs filipinas desde a restaurao da democracia em 1986. Crticos, liderados pela Coalizo pela Libertao da Dvida (Freedom from Debt Coalition FDC), indicaram um nmero de pontos que apoiavam a acusao formal central. Primeiro, que o secretrio das Finanas na poca do leilo, e, por este motivo, a autoridade do governo central responsvel pela questo das Obrigaes, era Jose Isidro Camacho, irmo da presidente da CODE-NGO, Camacho Reyes, o qual, consequentemente teria um conflito de interesses significativo. Camacho tornou-se secretrio das Finanas no dia 8 de junho de 2001, quando a novidade da questo das Obrigaes comeou a tomar forma. Posteriormente ele insistiu que havia se distanciado do processo de negociao, mas os crticos insistiram que ele participou ou procurou influenciar nas negociaes em pontos crticos (FDC 2002). Em segundo lugar, os crticos argumentaram que o perodo de sete dias entre o anncio do leilo e o prprio leilo era curto demais para outros potenciais licitantes prepararem suas propostas, dadas as caractersticas especiais, embutidas nas obrigaes que eram difceis de avaliar. Eles argumentaram que o envolvimento da CODE-NGO e a RCBC, ao longo dos meses durante a estruturao da questo das obrigaes, deu a eles uma vantagem desleal no que diz respeito ao preo dos lances competitivos e levantamento do capital necessrio para40 Carta de Songco and Camacho-Reyes, Today, 5 de maro de 2002. Tambm: www.filglobalfellows.org/lettersongcocamacho.html, acessado: em outubro de 2009.

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a compra das obrigaes. Ademais, reclamaram os crticos, a Secretaria do Tesouro deixou de dar pleno conhecimento do leque completo das caractersticas das vantagens agregadas s obrigaes quando anunciou o leilo, retardando outros licitadores nos seus esforos de aprear lances competitivos. E em terceiro lugar, os crticos alegaram que, a uma taxa de juros de 12,75%, o Tesouro pagava acima da probabilidade na questo das obrigaes. O BTr alegava que a taxa de 12,75% comparava favoravelmente com o benchmark de 14,14% do yield to maturity41 para ttulos de 10 anos, mas os crticos sugeriram que a iseno dos 20% de impostos sobre os juros pagos falsearam a comparao, e os outros participantes no leilo teriam feito lances menores se tivessem pleno conhecimento das caractersticas das obrigaes (FDC 2002). Tomadas todas juntas, as crticas do FDC CODE-NGO representavam um ataque a um ator importante da sociedade civil feito por outro, ressaltando o papel da administrao Arroyo em costurar discrdia dentro da comunidade de ONGs, prejudicando ainda mais a causa da participao social sustentvel e institucionalizada. A represso violenta sociedade civil No entanto, as iniciativas canhestras de legislao e polticas que comprometem a integridade da sociedade civil perdem importncia quando comparadas aos esforos violentos em reprimir as organizaes da sociedade civil e suas lideranas durante a administrao de Arroyo. Durante todo o perodo desde a restaurao da democracia em 1986, governos sucessivos enfrentaram dificuldades em conter movimentos insurgentes armados. A principal ameaa vinha do Exrcito dos Novos Povos (New Peoples Army NPA), a ala armada do Partido Comunista41 Rendimento ao vencimento (N.T.).

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das Filipinas (Communist Party of the Philippines CPP), que tem se empenhado em campanha militar contra o governo desde 1969 (cf. Chapman 1987; Jones 1989). O NPA uma organizao ilegal, embora o CPP tenha sido uma organizao legal desde 1992, quando o Congresso revogou a Lei Antissubverso. Uma importante organizao de frente da CPP, a Frente Nacional Democrtica (National Democratic Front NDF), tambm legal, embora opere basicamente na surdina, trabalhando prioritariamente por meio de organizaes da sociedade civil com mais visibilidade. Outra ameaa significativa vem dos insurgentes muulmanos em Mindanao, incluindo a Frente Moro de Liberao Islmica (Moro Islamic Liberation Front MILF) e Abu Sayaaf. Para conter estas insurgncias, os militares permitiram graus variveis de autonomia s foras regulares e paramilitares, para matar, torturar e deter suspeitos acusados de conluio com o CPP ou NPA, mesmo considerando o status legal daquele, e este empenho se estendeu a uma extensa gama de organizaes reconhecidas como simpticas aos CPP, NDF ou NPA. Sob a administrao de Fidel Ramos (1992-1998), a situao dos direitos humanos nas Filipinas melhorou substancialmente. Por exemplo, de 64 salvagings ou assassinatos extrajudiciais ao ano, no perodo de 1992-93, o nmero caiu para sete nos seis meses at dezembro de 1995, e os desaparecimentos, de 14 para um (cf. Clarke 1998: 190). Mas, depois de 1998, a situao dos direitos humanos se deteriorou medida que a confiana entre governo e grupos insurgentes desabou e os controles executivos e judiciais sobre as foras armadas ficaram mais relaxados. Sob Arroyo, por exemplo, os militares continuaram exercendo influncia sobre polticas referentes supresso de insurgncias armadas e os abusos contra os direitos humanos

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aumentaram, com desaparecimentos e assassinatos extrajudiciais. A maior parte se relacionava com a Operao Bantay Laya (Guarda Livre), uma campanha revigorada contra a insurgncia, lanada por Arroyo no final de 2001, seguindo os ataques da Al Qaeda em Nova York e Washington no dia 11 de setembro. Por causa de sua visibilidade, as organizaes da sociedade civil e ativistas associados levaram a pior. Em um relatrio autoritrio de 2008, Philip Alston, o Rapporteur Especial da ONU sobre execues extrajudiciais, sumrias ou arbitrrias, apontou especificamente este ataque sobre a sociedade civil: Nos ltimos seis anos houve um exagero de execues extrajudiciais de ativistas de esquerda, incluindo defensores dos direitos humanos, sindicalistas, defensores da reforma agrria e outros. As vtimas tm pertencido de forma desproporcional a organizaes que so membros do Bagong Alyansang Makabayan (Bayan, a Nova Aliana Patritica) ou que, de outra forma, esto associadas ideologia nacional democrtica tambm esposada pelo CPP/NPA/NDF. Estas matanas eliminaram lderes da sociedade civil, que teve um intimidado um grande nmero de atores, estreitando o discurso poltico da nao (Alston 2008: 7-8). Em seis anos, at 2008, Alston estimou que pelo menos uma centena, e possivelmente muitas centenas de ativistas da sociedade civil foram mortos nestas condies (Ibid 2).42 A culpa por estas mortes, argumentou ele, estava seguramente nas mos42 As estimativas variam muito. Uma organizao de direitos humanos, Karapatan, afirma que mais de 800 pessoas foram mortas extrajudicialmente por foras ou agentes do governo entre 2001 e 2009. Human Rights Watch refere-se a centenas de assassinatos extrajudiciais desde 2001 (HRW 2007: 2 & 2010: 338). A Polcia Nacional filipina estima que 115 membros de lista de partido/ membros militantes e 26 pessoas da mdia foram mortos entre 2001 e 2006. (HRW 2007: 25).

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do governo, especialmente por causa de seu fracasso em coibir a supresso militar de organizaes legais da sociedade civil. Duas iniciativas de polticas so de especial importncia para compreender por que as matanas continuaram. Primeiro, a estratgia de contrainsurgncia dos militares contra CPP/NPA/NDF enfoca de forma crescente o desmantelamento das organizaes da sociedade civil que supostamente so grupos de frente da CPP. Segundo (...), o sistema judicial criminal fracassou em deter, condenar e encarcerar os responsveis pelas execues extrajudiciais. Isto se deve em parte a uma distoro de prioridades em que os responsveis por impor a lei centram em processar lderes da sociedade civil em vez de seus assassinos (Ibid: 8). Alston desvenda estas duas iniciativas de polticas. Na primeira, as foras armadas fornecem relatrios para funcionrios do governo, argumentando que um nmero grande de organizaes da sociedade civil e suas lideranas constituem uma ameaa para a segurana pblica. Os jornais filipinos, relata Alston, regularmente veiculam histrias de organizaes que servem de frente, supostamente da CPP, mencionando militares, mas sem citar os nomes (ibid: 9). E a base para estas histrias, sugere ele, so relatos militares fundamentados em servios de inteligncia inadequados ou rumores no confirmados, incluindo um relatrio de 2006 que vazou para ele. Em cerca de 110 pginas, argumenta Alston, o documento arrola centenas de grupos e indivduos notrios da sociedade civil que foram classificados,

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fundamentados em dados da inteligncia, como membros de organizaes que os militares resolveram considerar ilegtimas (ibid). Este e outros documentos relacionados, argumenta Alston, constituem ordens de guerra em que policiais e militares traduzem o aviltamento de inimigos na sociedade civil em planos operacionais regionalmente especificados. Alm da polcia e das foras armadas, Alston argumenta que os mecanismos ad hoc inter-agncias tm sido usados para suprimir organizaes legtimas da sociedade civil, especialmente o Grupo Inter-Agncia de Ao Legal (Inter-Agency Legal Action Group IALAG), estabelecido em 2006. Por meio do IALAG, argumenta Alston, funcionrios seniores do governo esto tentando usar execues para desmantelar as numerosas organizaes da sociedade civil e grupos de listas partidrias que eles acreditam servir de frente para o CPP, apesar do fato destes raramente cometeram qualquer delito criminal bvio (ibid: 18). Porm, mais importante, sugere ele, uma sequncia de constrangimentos institucionais que solapam o controle efetivo das foras armadas: a relutncia da polcia em investigar alegaes contra os militares, a coordenao fraca entre policiais e promotores pblicos, a inadequao do programa de proteo a testemunhas, capacidade forense limitada, falta de independncia por parte do Ofcio do Ombudsman, e procedimentos medocres dos tribunais (ibid: 1921). Sustentando estas afirmaes, Human Rights Watch observa que, desde o final de 2009, somente 11 pessoas haviam sido condenadas por assassinatos extrajudiciais cometidos desde 2002, incluindo policiais e agentes militares remunerados, mas nenhum membro da ativa, dos militares na poca dos assassinatos, foi levado justia por tais crimes (HRW 2010).

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Coletivamente, estes constrangimentos sancionam uma cultura de impunidade na qual a agentes do estado, especialmente foras armadas regulares e polticos eleitos da localidade, so facultados poderes pela poltica do governo (incluindo tanto atos de comisso quanto de omisso) para atacar organizaes da sociedade civil e suas lideranas. Esta cultura de impunidade coloca limites na sociedade civil politicamente assertiva das Filipinas, na qual as CSOs podem criticar o governo e reclamar explicaes ou sustentar os direitos do cidado. Evidncia dramtica desta cultura foi dada em 2009, quando 57 pessoas foram sequestradas e mortas num incidente nico da provncia de Maguindanao em 23 de novembro (HRW 2010: 338). Trinta mortos eram jornalistas, incluindo membros da Unio Nacional de Jornalistas das Filipinas (National Union of the Journalists of the Philippines NUCP)43, fazendo disto a maior atrocidade em um nico evento contra jornalistas em todo o mundo. Outras duas vtimas, que tambm morreram, eram advogados de direitos humanos e membros da Unio de Advogados do Povo em Mindanao.44 O massacre ocorreu quando Datu Ismael Toto Mangudadatu, vice-prefeito da cidade de Buluan, despachou um grupo de membros da famlia para registrar seus documentos como candidato a governador de Maguindanao. Isto o colocou em desacordo com Datu Andal Ampatuan Sr., ento governador de Maguindanao e homem forte local45, e com seu filho, Andal Ampatuan Jr., prefeito de Shariff Aguak, capital da Provncia. Os Ampatuans faziam parte de um cl poltico de longa data43 Nmero de jornalistas mortos no massacre sobe para 30, press release, Reporters Without Borders, 26 de novembro de 2009. http://en.rsf.org, acessado em 22 de julho de 2010. 44 Karapatan 2010: 45, and Philippine Daily Inquirer, At massacre site, loud cries for justice, No local do massacre demanda por justia 25 de janeiro de 2010. 45 The Philippine Daily Inquirer o descreveu como Godfather dos tempos modernos. (Maguindanao governor modernday Godfather, Philippine Daily Inquirer, 14 de maro de 2007).

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em Maguindanao, conhecidos por usar seus contatos polticos nacionais para construir uma base econmica de poder por meio da violncia. Eles apoiaram Ferdinand Marcos nas eleies presidenciais de 1965 e de 1969 e, na sequncia e com a sua proteo, fizeram uma fortuna limpando terras florestadas, vendendo-as a colonizadores cristos antes de expuls-los. Os que ficaram foram vtimas de extorso, e muitos se rebelaram, alimentando mais violncia (McKenna 1998: 153). Em 2008, Ampatuan Sr. continuava a dominar a poltica de Maguindanao, leal a Arroyo e generosamente recompensado por seu papel em assegurar a vitria do regime em vigor nas eleies presidenciais e do Congresso (a presidente obteve vasta maioria em Maguindanao nas eleies presidenciais de 2004; e em uma das cidades suas rivais no conseguiram um nico voto).46 Ampatuan Sr. tinha programado se aposentar governador em 2010, mas tambm tinha como projeto entregar o posto a seu filho. O comboio da famlia de Mangudadatu foi atacado nos arrabaldes de Shariff Aguak por uma gangue de cerca de 100 homens armados, que sequestrou o grupo e levou-o a um morro, onde foram assassinados e rapidamente enterrados em covas rasas (HRW 2010: 338). A esposa de Mangudadatu e duas irms foram mortas junto com jornalistas e ativistas de direitos humanos que as acompanhavam, justamente para impedir o risco de tal ataque. Os assassinatos foram amplamente alardeados, tendo como culpados Andal Ampatuan Jr., alguns de seus parentes e o exrcito particular de seu pai.47 Policiais, inclusive um superintendente de polcia, tambm foram implicados. Uma descrio de46 Philippine Daily Inquirer, 14 de novembro de 2007. 47 Em meados de 2010, Andal Ampatuan Jr. continuava em custdia, acusado de assassinato, juntamente com dois de seus primos, Zaldy e Akmad Ampatuan (Philippines refiles murder charges, BBC News, 5 de maio de 2010. http://newsvote.bbc.co.uk, acessado em 22 de julho de 2010).

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Ampatunan Sr feito por um jornal diz que ele tem quatro esposas e 30 filhos, a base de seu poder poltico.48 Dos 22 prefeitos em Maguindanao em 2007, argumenta, 18 eram filhos, netos ou outros parentes.49 Outro filho, Zaldy Ampatuan, era governador da Regio Autnoma de Mindanao Muulmana (ARMM), onde se localiza a provncia de Maguindanao,50 dando ao cl fartura de cargos eletivos na regio, na provncia, e at nos municpios. Isto d a Ampatuan Sr. enorme influncia sobre cargos locais de agncias governamentais, inclusive a polcia nacional filipina, e o permite cooptar foras paramilitares como as Unidades Geogrficas das Foras Armadas Civis (Civilian Armed Forces Geographical Units CAFGUs), organizaes voluntrias civis (CVOs) e Unidades Auxiliares da Polcia (Police Auxiliary Units PAUs) em um exrcito particular controlado pela famlia. Inevitavelmente, portanto, o massacre envolveu um conjunto amplo de foras individuais e institucionais,51 ilustrando a fora de um poderoso indivduo antissociedade civil, em oposio ativa s foras da sociedade civil, sustentada e apoiada pela administrao Arroyo. Concluso Considerados em conjunto, estes quatro casos apontam uma faceta significativa da poltica contempornea filipina. Apesar de ter reconquistado sua posio como uma das mais vibrantes democracias da sia, o estado filipino continua fraco e incapaz de regular uma srie de foras poderosas da sociedade, de dinastias polticas estabelecidas e de seus exrcitos particulares, a grandes interesses empresariais, vidos por acesso48 Ibid. 49 Ibid. 50 Ibid. 51 De acordo com Human Rights Watch, por exemplo, autoridades locais e foras paramilitares estavam implicadas nas matanas (HRW 2010: 338).

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a contratos governamentais, a insurgentes armados buscando autonomia regional ou reforma estrutural da poltica econmica do pas. Fraqueza do estado significa que os mecanismos institucionais para promover a participao social esto distorcidos por um conjunto de foras estruturais fundamentais. Esta anlise sugere que a participao social durante a presidncia de Gloria Macapagal Arroyo foi distorcida por trs foras principais: primeira, o recurso corrupo; segunda, a tendncia pela cooptao; e terceira, a promoo ou tolerncia de uma violncia sistemtica contra elementos organizados da sociedade civil, crticos do governo. A primeira, o recurso corrupo, foi ilustrada pelo escndalo Joc-Joc Bolante (ou Fundo de Fertilizantes) e por outras controvrsias em torno do uso de fundaes por parte da administrao para espalhar sua generosidade financeira dentre os que a apoiavam na corrida das eleies presidenciais em 2004. Pesquisa do Centro Filipino de Jornalismo Investigativo revela que mais de US$ 67 milhes foram distribudos por meio de fundaes obscuras a congressistas, governadores e prefeitos para usar o recurso como pump-prime52* nas suas mquinas eleitorais. Isto representa um desvio significativo de recursos pblicos, obtidos com impostos e destinados a prover bens pblicos e no a de garantir a reeleio da presidente e de seus apoiadores. A segunda, a tendncia de cooptar igualmente apoiadores e opositores, ilustrado pelas relaes medocres com os comissrios da Comisso Nacional Antipobreza depois das eleies de 2004 e de sua desajeitada tentativa de controlar opositores pela Ordem Administrativa 187, esquema de creden52 Ao governamental para estimular a economia, como, por exemplo, gastar no setor comercial, reduzindo impostos, ou reduzindo taxas de juros. Grandes gastos pelo governo com a inteno de estimular gastos por parte da indstria privada. N.T.

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ciamento controlado diretamente pelo Gabinete do presidente. Arroyo foi pessoalmente menosprezada pela oposio dos comissrios, mas tambm estava consciente do fato de que o capital poltico de sua administrao, que tal oposio simbolizava, declinava rapidamente. Mesmo assim, suas tentativas de cooptar e control-los serviu principalmente para afugent-los, solapando a NAPC como baluarte institucional da participao social. E ainda, sua tendncia pela cooptao de apoiadores ilustrada pela saga das Obrigaes do PEACe, uma histria que tambm revela a tnue diviso entre a cooptao e a corrupo sem reservas no comportamento de sua administrao. Embora no seja ilegal, a emisso de US$ 800 milhes de Obrigaes de cupomzero de 10 anos em 2001 representou uma prtica de gesto medocre do tesouro e um comportamento temerrio ao passar a dvida do governo para uma administrao futura. Ademais, representou a sano explcita, se no o encorajamento, de comportamento rentseeking pela CODENGO, importante coalizo de ONGs que ajudaram a projet-la Presidncia em 2001 e que ela esperava que poderia apoi-la nas eleies de 2004. Estas acusaes servem para acentuar que a natureza do estado filipino continua soft, sua confiana, conforme visto por seus crticos, est em regras que existem somente para governar os que esto fora (...) do crculo do poder, regra esta que aqueles que esto dentro do crculo podem vergar, subverter ou abertamente quebrar (...) para favorecer os poucos escolhidos (FDC 2002). E, enfim, ilustra o uso opaco do poder poltico pela administrao Arroyo para seletivamente fortalecer e apoiar setores especficos da sociedade civil filipina. E finalmente, a promoo ou tolerncia de Arroyo violncia sistemtica contra grupos organizados da sociedade civil, realados pela condenao humilhante de Philip Alston sobre

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abusos de direitos humanos na sua administrao e pelo sequestro e assassinato de 57 pessoas, em novembro de 2009, por um exrcito particular controlado por um dos homens fortes da presidente. Estes casos revelam uma carac