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POLÍTICAS DE CONTEÚDO LOCAL: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
JULHO/2018
CONSELHO DO IEDI
Conselheiro Empresa
Agnaldo Gomes Ramos Filho Eldorado Brasil Celulose S.A.
Alberto Borges de Souza Caramuru Alimentos S.A.
Amarílio Proença de Macêdo J.Macêdo Alimentos S.A.
Andrea Matarazzo Matarazzo S/A
Carlos Eduardo Sanchez EMS - Indústria Farmacêutica Ltda
Carlos Mariani Bittencourt PIN Petroquímica S.A.
Cláudio Bardella Bardella S.A. Indústrias Mecânicas
Claudio Gerdau Johannpeter Gerdau Aços Longos S.A.
Cleiton de Castro Marques Biolab Sanus Farmacêutica Ltda
Dan Ioschpe Vice-Presidente
Iochpe-Maxion S.A.
Daniel Feffer Grupo Suzano S.A.
Décio da Silva WEG S.A.
Erasmo Carlos Battistella BSBio Ind. E Com. de Biodisel Sul Brasil S.A.
Eugênio Emílio Staub Conselheiro Emérito
Fabio Hering Companhia Hering S.A.
Fábio Schvartsman Vale S.A.
Fernando Musa Braskem S.A.
Flávio Gurgel Rocha Confecções Guararapes S.A.
Geraldo Luciano Mattos Júnior M. Dias Branco S.A
Hélio Bruck Rotenberg Positivo Informática S.A..
Henri Armand Slezynger Unigel S.A
Horacio Lafer Piva Klabin S.A.
Ivo Rosset Rosset & Cia. Ltda.
Ivoncy Brochmann Ioschpe Conselheiro Emérito
João Guilherme Sabino Ometto Grupo São Martinho S.A.
CONSELHO DO IEDI
Conselheiro Empresa
José Roberto Ermírio de Moraes Votorantim Participações S.A.
Josué Christiano Gomes da Silva Cia. de Tecidos Norte de Minas-Coteminas
Lírio Albino Parisotto Videolar S.A.
Lucas Santos Rodas Companhia Nitro Química Brasileira S.A.
Luiz Alberto Garcia Algar S.A. Empreendimentos e Participações
Luiz Cassiano Rando Rosolen Indústrias Romi S/A
Luiz de Mendonça Odebrecht Agroindustrial S.A.
Marco Stefanini Stefanini S.A.
Marcos Paletta Camara Paranapanema S.A.
Ogari de Castro Pacheco Cristália Produtos Químicos Farmacêuticos Ltda.
Olavo Monteiro de Carvalho Monteiro Aranha S.A.
Paulo Cesar de Souza e Silva Embraer S.A.
Paulo Diederichsen Villares Membro Colaborador
Paulo Francini Membro Colaborador
Paulo Guilherme Aguiar Cunha Conselheiro Emérito
Pedro Luiz Barreiros Passos Natura Cosméticos S.A.
Pedro Wongtschowski Presidente
Ultrapar Participações S.A.
Ricardo Steinbruch Vice-Presidente
Vicunha Têxtil S.A.
Roberto Caiuby Vidigal Membro Colaborador
Rodolfo Villela Marino Vice-Presidente
Itaúsa - Investimentos Itaú S.A.
Rubens Ometto Silveira Mello Cosan S.A. Ind e Com
Salo Davi Seibel Duratex S.A.
Sérgio Leite de Andrade Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais - USIMINAS
Victório Carlos De Marchi Cia. de Bebidas das Américas - AmBev
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 1
POLÍTICAS DE CONTEÚDO LOCAL: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA1
Introdução
De acordo com as definições mais aceitas pelos principais organismos nacionais e
internacionais (Organização Mundial de Comércio, Comissão Europeia, Governo dos
Estados Unidos), Políticas de Conteúdo Local (PCL, doravante) são as ações públicas que
exigem a realização naquele país ou território de uma parcela da produção ou a
aquisição de fornecedores e produtores locais. Por essa definição, as PCL possuem
requisitos essencialmente análogos aos de políticas de substituição de importações,
uma vez que o investidor-produtor é obrigado a adquirir ou produzir insumos
localmente, mesmo quando prefira comprá-los em outro país.
São ao menos três justificativas teóricas para a adoção de PCL. A primeira é o
crescimento econômico que pode ser gerado pela produção decorrente da
implementação destas políticas. Evidentemente, a viabilidade da produção local de um
novo conjunto de produtos depende intensamente do aprendizado e da aquisição de
novas capacidades pelas firmas, o que se tornou cada vez mais importante com a
progressiva abertura das economias nacionais e as mudanças dos sistemas de produção
(o que, no Brasil, teve início no começo da década de 1990). Por isso, um dos principais
objetivos das políticas industriais - ao menos daquelas que estão efetivamente
preocupadas com o desenvolvimento econômico consistente no longo prazo - é a
geração de novos ativos baseados em conhecimento, que possibilitem às firmas
competirem no mercado global, gerando emprego e renda de maneira sustentável.
A crítica a esta linha de defesa é muito evidente e tem sido repetidamente utilizada nos
debates, aqui e no mundo: se a produção adicional decorrente da implementação da
política for mais cara do que as importações que ela substitui, talvez o conteúdo local
não represente um acréscimo muito vantajoso à geração de riqueza. Neste contexto, o
argumento de que é preferível manter a importação em detrimento da produção local
não carece totalmente de legitimidade, embora devamos ponderar que ele é
perfeitamente defensável se o custo adicional à sociedade incorrido pela aplicação de
PCL for temporário, em prol do ganho de novas capacidades que no futuro poderão alçar
a indústria local a um novo patamar de competitividade. Dito de outro modo, esta linha
1 Este documento foi elaborado sob coordenação de João Furtado – Economista, Professor na Escola Politécnica da USP – com a contribuição de Guilherme de Oliveira Marques, Celso Neris, Eduardo Urias e José Fucidji.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 2
de defesa e crítica das PCLs tem que ser examinada em perspectiva dinâmica: a situação
atual e as possíveis situações futuras, decorrentes das velocidades relativas de
aprendizado e capacitação – no país executor da PCL e nos demais países.
A segunda justificativa teórica apoia-se no argumento de que as PCL são instrumento de
diversificação industrial. Diversificação e especialização podem ser vertentes
complementares de uma mesma estratégia de crescimento. O conceito de diversificação
tem pelo menos três conotações. Em primeiro lugar, pode significar o desdobramento
de uma estrutura existente de modo a incorporar a produção de novos bens
intermediários, ou seja, gerar incrementos no nível geral de integração vertical,
internalizando a produção de insumos que até então eram adquiridos externamente. A
segunda conotação está relacionada ao aumento da variedade de produtos finais
fabricados (uma firma que fabrica motores começar a fabricar equipamentos para
energia eólica, por exemplo, sem abandonar a área “tradicional” de atuação). Uma
terceira conotação está relacionada a incrementos no número de áreas básicas de
produção nas quais a firma opera. Este último tipo de diversificação é de fundamental
importância e não pode ser avaliado pelo número de diferentes tipos de produtos, finais
ou intermediários, fabricados, pois está mais relacionada ao número de “plataformas
tecnológicas” disponíveis internamente (processos biotecnológicos e processos
químicos tradicionais, por exemplo). As três conotações para o conceito de
diversificação não possuem maiores oposições.
O conceito de especialização, no entanto, tem duas conotações muito diferentes e em
vários aspectos opostas. Especializar-se pode significar elaborar apenas alguns poucos
produtos ou pode significar fazer muito bem, com elevado rendimento e alta
produtividade. Aparentemente, numa visão que parece encontrar respaldo no cotidiano
dos indivíduos, executar muitas atividades dificulta fazer concomitantemente bem
muitas dessas atividades. Ocorre que o sistema industrial possui relações recíprocas –
idealmente sinérgicas – entre os seus elementos constituintes; o sistema industrial é um
todo orgânico, complexo, cujo bom funcionamento depende da interação virtuosa entre
seus componentes. Quanto mais elementos, maiores as possibilidades de combinações
criativas e sinérgicas. A especialização, no sentido de fazer muito bem feito, pode
beneficiar-se muito de um sistema produtivo diversificado.
A contribuição da diversificação à eficiência e à competitividade do sistema produtivo
só ocorre de forma efetiva e de modo positivo se os elementos constituintes do sistema
possuem níveis de produtividade adequados a um sistema global aberto e competitivo.
A incorporação de novas cadeias de valor e de novas etapas produtivas ao tecido
industrial demanda políticas consistentes, que incentivem a migração de recursos de
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 3
atividades consolidadas (agricultura, comércio ou indústrias estabilizadas, por exemplo)
para a exploração de áreas até então inexistentes (a exemplo da manufatura avançada);
mas isso precisa ser feito de modo coerente com os parâmetros do sistema econômico
globalizado, cujos processos de aprendizado se tornaram velozes e no qual novas fontes
de competição se tornam muito frequentes. Por isso, o aprendizado e o
desenvolvimento não têm ponto de chegada, são processos permanentes, que se
renovam e que demandam atenção constante das empresas e dos governos.
A terceira justificativa teórica para a adoção de PCL diz respeito à possibilidade de
emparelhamento, em termos do desenvolvimento industrial e tecnológico, em relação
aos países industrialmente mais avançados (o que se convencionou denominar de
catching-up). Tais saltos de longo alcance, como ensina a história, só são possíveis
quando as empresas e as políticas dos governos são capazes de promover avanços muito
rápidos e persistentes de produtividade, o que, por sua vez, demanda a criação e
incorporação de ativos baseados em conhecimento.
É necessário ponderar que as avaliações aqui desenvolvidas nos autorizam a afirmar que
as PCL podem agir, no limite, apenas como instrumentos facilitadores da dinâmica
descrita nos parágrafos anteriores, porém estão longe de ser uma condição suficiente.
É preciso sempre combiná-las com outros instrumentos, tanto de natureza industrial
como macroeconômica, em um conjunto coeso capaz de promover um ambiente
virtuoso, no qual os beneficiários destas políticas (as empresas locais) absorvam novas
capacidades que permitam, no futuro, prescindir das PCL. Não é descabido reforçar que
essas políticas possuem custos sociais relevantes, só justificáveis se forem capazes de
alicerçar o ganho de competitividade da indústria doméstica que, por fim, tornará a
existência destas políticas desnecessária. Nenhuma Política de Conteúdo Local deveria
durar para sempre e o seu sucesso deve ser medido também pela facilidade com que
pode ser abandonada ou substancialmente modificada para incorporar objetivos mais
ambiciosos.
Se as PCL não forem utilizadas como meio para ganho de produtividade podem se tornar
mero instrumento de compensação da incapacidade das empresas e do Estado de
executarem medidas que visem o aumento da competitividade empresarial e sistêmica.
Utilizá-las para simples protecionismo é fazer um uso limitado e anacrônico do
instrumento, além de representar o risco de mascarar temporariamente sintomas de
baixa competitividade sem, de fato, buscar solucionar as falhas estruturais que
condenam a economia ao atraso recorrente.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 4
Políticas de conteúdo local foram um dos pilares centrais das políticas industriais desde
pelo menos o século 18 e ganharam força política nos Estados Unidos e na Alemanha,
no século 19, associadas às obras de Alexander Hamilton (1757-1804), nos Estados
Unidos, e de Friedrich List (1789-1846), na Alemanha. Hamilton, um dos pais fundadores
da jovem nação norte-americana, foi também o seu primeiro ministro (secretário) da
Fazenda. A ele se devem várias instituições importantes que perduraram e moldaram a
economia dos EUA.
É tudo menos obra do acaso que tenham sido os Estados Unidos e a Alemanha, os dois
principais países que perseguiam a industrialização liderada pela Inglaterra desde o
século 18, aqueles em que surgiram as teses e os argumentos em favor de políticas de
proteção e promoção às indústrias nascentes. O conflito entre o liberalismo do líder
industrial inglês e as realidades econômicas das economias retardatárias dos Estados
Unidos e da Alemanha ofereceu o espaço social e político para a formulação e a
execução de ideias protecionistas. A história mostrou, pelo avanço que esses e outros
países alcançaram ao longo dos séculos 19 e 20, o acerto das proposições protecionistas
e de defesa da produção local. Mas essas políticas não aconteceram para depois
acabarem. Elas permaneceram, mesmo que isso ocorra sob novas formulações.
Políticas de conteúdo local, como vertente de políticas de promoção da produção local,
têm sido utilizadas regularmente países dos mais diversos perfis. Nos Estados Unidos, o
instrumento mais explicitamente voltado para o apoio à produção local é o Buy
American Act, que desde 1933 torna obrigatórias as compras de fabricantes locais em
projetos de investimento federais, estaduais e municipais. Em 1982 esse instrumento
foi reforçado, passando a incluir as compras de todos os projetos financiados com
recursos públicos. Ao lado desse instrumento de caráter bastante horizontal, que cobre
todos os tipos de compras públicas (diretas e indiretas), as encomendas públicas
direcionadas para investimentos de natureza tecnológica constituem um poderoso
instrumento de promoção do desenvolvimento, abrindo novas oportunidades pela
criação de produtos, processos, indústrias e mercados.
Mas existem também muitas evidências de que essas políticas que produziram
resultados muito aquém dos almejados. Em alguns casos, há um abismo entre os
resultados obtidos (diminutos) e os custos incorridos (extensos). Este abismo
dificilmente pode contribuir para uma defesa incondicional dessas políticas. E uma
avaliação criteriosa que considere os sucessos obtidos (frequentemente aquém dos
prometidos) e os insucessos cabais é fundamental para a compreensão do instrumento
– do seu potencial, dos seus riscos e das suas limitações.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 5
O Brasil praticou políticas protecionistas e políticas de conteúdo local durante muito
tempo, com resultados que continuam a ser debatidos. Se por um lado existe o
reconhecimento de que a industrialização e o desenvolvimento brasileiros devem muito
às políticas que os promoveram, por outro lado tem havido críticas que lhes atribuem
muitos dos nossos males, incluindo o atraso industrial e as deficiências competitivas de
nosso sistema produtivo. Por mais que o debate esteja ainda vivo, é incontestável que
as políticas de substituição de importações e de conteúdo local foram alicerces da
constituição de um Brasil industrial que teve dinamismo e densidade elevados até pelo
menos a entrada dos anos 1980, quando a convergência de uma nova revolução
tecnológica e industrial, de um lado, e os efeitos de uma crise externa, de outro,
contribuíram para uma paralisia prolongada na evolução do sistema industrial.
Uma síntese das políticas de conteúdo local no Brasil
O governo brasileiro concebeu e implementou recentemente políticas setoriais para
diversas áreas, com resultados que ainda carecem de avaliações sistemáticas e
aprofundadas. O presente documento reúne evidências sobre essas políticas,
procurando avançar em direção a uma análise equilibrada sobre as políticas brasileiras
de conteúdo local: automóveis, petróleo, informática, equipamentos para a produção
de energia eólica e produtos farmacêuticos.
A proteção e o fomento à indústria de material de transporte rodoviário (automóveis,
caminhões etc) têm origens remotas (anos 1950) e o setor nunca deixou de ter algum
tipo de instrumento específico ao longo destes mais de 60 anos. O Inovar-Auto parece
ter sido mais um programa de apoio à indústria sem capacidade efetiva de promover
uma mudança estrutural ou elevar de modo significativo a sua competitividade e a sua
inserção em bases competitivas. Em nossa avaliação, a análise da PCL aplicada à
indústria automobilística no Brasil ajuda a refletir sobre o futuro de um programa que
representa um insucesso ou, na melhor das hipóteses, um sucesso apenas muito parcial.
Com relação ao estímulo à inovação tecnológica – este um dos principais objetivos
declarados do programa – os críticos sustentam que durante a sua vigência o gasto em
Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) do setor automotivo caiu de 2,8% da receita
operacional líquida das empresas do setor em 2011 (antes do Inovar-Auto) para 2,1%
em 2014. O número de patentes automotivas registradas pelo Brasil também se reduziu
no mesmo período (em 20%). Dessa forma, concluem eles, o Inovar-Auto não apenas
não estimulou a atividade tecnológica, como bem pode tê-la desestimulado.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 6
Em relação à fronteira tecnológica, não apenas a indústria local não avançou, como
parece estar se distanciando ainda mais. A opção estratégica pelo carro popular, ao
massificar o consumo e permitir maior escala, “aprisionou” a indústria em uma trajetória
que se encontra em franco declínio. Em relação a ela, o Inovar-Auto é um fracasso – não
apenas reforçou esse caminho, como não promoveu nenhum movimento em direção a
carros da próxima geração, como os elétricos e os autônomos. Mais grave ainda, a
incapacidade da indústria instalada no Brasil de responder aos desafios da
desaceleração do mercado interno com exportações substanciais revela a divergência
entre os seus padrões e aqueles vigentes internacionalmente. Quando finalmente as
exportações apresentaram um novo dinamismo, isso deu-se com vendas para mercados
periféricos, onde os padrões de desempenho e eficiência são mais frouxos ou
inexistentes. Por outro lado, em relação ao padrão produtivo local, o Inovar-Auto foi
bem-sucedido – o que na maioria das vezes passa despercebido pela crítica – ao
estimular atividades de engenharia para adaptar tecnologias aos veículos brasileiros e
assim internalizar conhecimentos e competências.
O Inovar-Auto criou, também, dificuldades junto aos organismos internacionais que
regulam (e fiscalizam) o comércio internacional, como a Organização Mundial do
Comércio (OMC). Os defensores dessa política setorial apontam ganhos relevantes, mas
não é difícil constatar que ela não promoveu um revigoramento robusto e com projeção
internacional digna de nota.
A análise realizada sobre o Inovar-Auto mostra que a combinação de forte proteção com
estímulos estruturantes frágeis é uma fórmula muito pouco promissora. A diretriz que
se pode indicar nesse caso é no sentido de um novo enquadramento da indústria
automobilística brasileira, inserida numa perspectiva de futuro da mobilidade, da
urbanização e dos novos modelos emergentes - inteligentes, autônomos,
compartilhados, integrados. Correr na retaguarda de uma trajetória em esgotamento
deveria dar lugar à conquista de posições nas tendências emergentes, enquanto não se
formam barreiras e a entrada não é dificultada ou impedida.
As evidências reunidas mostram que o Inovar-Auto é mais do que uma sucessão de
políticas ou instrumentos que há muito tempo não podem ser consideradas uma
contribuição efetiva à transformação estrutural da indústria automobilística, que
sempre teve importância e em relação à qual a sociedade brasileira mantém elevada
expectativa. Vem daí a pergunta que cabe fazer, de modo quase inevitável: vale a pena
prosseguir numa corrida que a esta altura parece ser, além de improdutiva (em face dos
resultados), cada vez mais irrelevante, quando os carros elétricos e os autônomos, além
das novas formas de uso compartilhado, poderão reduzir drasticamente as dimensões
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 7
das frotas e colocar os fabricantes em posição subalterna frente aos provedores de
serviços de mobilidade?
A indústria naval e a indústria fornecedora para a indústria (extrativa) do petróleo são
objeto de políticas de conteúdo local em muitos países. A razão é evidente: um grande
número de países que possui jazidas de petróleo (e de gás) é desprovido de outras
atividades econômicas comparáveis à importância do petróleo e procuram por isso
utilizá-lo para ampliar os transbordamentos - geralmente diminutos - que ocorreriam de
maneira mais ou menos automática. Em outros países, com estruturas de produção e
sistemas econômicos mais desenvolvidos, os efeitos de uma fonte de recursos oriundos
da venda do petróleo (ou dos investimentos externos associados) induz uma valorização
da moeda local e com isso há uma redução dos níveis de competitividade de todas as
demais atividades - a chamada “doença holandesa”. Esse efeito produtivo decorrente
dos fluxos monetários (entrada de divisas) motiva os países - mesmo os mais
desenvolvidos - a buscarem novas áreas competitivas, com a diversificação de suas
estruturas produtivas associadas à cadeia do petróleo.
A situação brasileira pode ser considerada intermediária em relação a essas duas
situações polares. Por um lado, o Brasil possui uma pauta de exportações diversificada,
mas com uma elevada proporção de produtos agropecuários e minerais. Por outro lado,
a base industrial herdada do período de industrialização acelerada (1930-1980), mesmo
que esteja muito enfraquecida, ainda oferece os elementos para aspirações maiores. Foi
nesse contexto, entre essas duas condições extremas, que no Brasil a indústria do
petróleo foi alçada à condição de grande promessa para o desenvolvimento industrial.
Vários fatores concorriam para isso: as condições singulares do petróleo brasileiro,
concentrado em águas profundas; a presença de uma empresa de controle estatal em
posição dominante; e a construção de uma tradição tecnológica que remonta aos anos
1950, quando a Petrobras foi responsável pela implantação de novos segmentos
industriais.
O exame da política de conteúdo local para a indústria de petróleo deve dissociá-la dos
eventos estranhos que a marcaram negativamente no período recente. É possível que
os investimentos realizados por essa grande empresa contribuíssem para o
revigoramento do tecido industrial brasileiro e para a sua diversificação em bases
competitivas, sem, no entanto, onerar os próprios investimentos da indústria do
petróleo? É difícil separar os elementos que compuseram no período recente essa
trajetória da indústria do petróleo dos elementos que afetam as indústrias de
commodities nos auges cíclicos de seus preços, quando os custos permanecem
essencialmente vinculados aos investimentos feitos no passado e os preços disparam,
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 8
gerando volumes de recursos que parecem, como o café nos anos 1920, “dar para tudo”,
pagar qualquer conta, inclusive a conta de investimentos que não se justificam
economicamente. É por isso que o caso da indústria de petróleo e gás é o mais
complexo, pois nele se combinam fatores muito diversos que influenciam os resultados
da política e as percepções que deles são extraídos pelos observadores e pela sociedade.
A sistematização aqui feita sobre as avaliações dos resultados da política neste caso
mostra que a PCL no setor de petróleo e gás é considerada, em geral (o que não significa
completamente), um fracasso, devido aos vários problemas que enfrentou, alguns
relativos à concepção e condução da política, outros à dinâmica e ao desempenho
específico do setor. No primeiro caso, ressalta-se a baixa seletividade e a falta de
estímulo ao desenvolvimento de atividades tecnológicas ou às exportações por parte
das empresas. Por conta do desenho da política, que requer conteúdo local mais elevado
das atividades mais fáceis, os componentes mais intensivos em tecnologia podem ser
importados. Somada à baixa exportação, o resultado é que a PCL não reduziu o déficit
comercial do setor. No segundo caso, apresentam-se a queda dos preços do petróleo a
partir de 2014 e, no mesmo período, a crise da principal operadora do setor, a Petrobras.
A política de conteúdo local destinada ao setor de P&G foi submetida a uma forte crítica
a partir de 2014. Como é preciso destacar, uma parte das críticas proveio de
fornecedoras internacionais de componentes e serviços, que viram seus interesses
prejudicados pelo desenho da política. Mas parte das críticas partiu de diversos estudos
preocupados com a baixa eficiência produtiva (na maioria dos estudos) e com a falta de
incentivos, seja para o desenvolvimento de atividades mais sofisticadas, seja para a
busca de competitividade das empresas do setor. Há bastante substância em tais
críticas, em nossa opinião. Se a PCL se resumiu a elevar o emprego e a renda doméstica,
com efeitos apenas de curto prazo; se, além disso, o fez incentivando a atuação nos
segmentos menos “nobres” da cadeia de fornecimento; e se os custos dos insumos
foram maiores e sua qualidade e prazo de entrega piores do que o congênere importado
– como não avaliar negativamente a política?
É preciso ressaltar, contudo, que existem casos notórios de sucesso, ainda que parciais
e isolados, resultantes da PCL e do crescimento setorial que ela induziu. Esses casos
encontram-se na engenharia de projetos, nos quais os escritórios de engenharia
desenvolveram soluções para as operações de Exploração e Produção (E&P) e hoje se
posicionam internacionalmente. Há também resultados positivos na criação de centros
de P&D de empresas multinacionais no Brasil, que não seriam possíveis sem esforços
incisivos da política. No entanto, ainda assim a pergunta se mantém pertinente: esses
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 9
resultados justificam os grandes custos sociais relacionados à PCL destina à indústria de
P&G no Brasil?
Deixando de lado o fato de que os fornecedores foram afetados também pela crise pela
qual passa o setor de P&G como um todo, uma reflexão sobre as críticas supracitadas
encaminha uma proposição menos sombria. Ao invés de abandonar a PCL, como fez o
governo atual, um direcionamento mais construtivo seria elaborar um diagnóstico dos
fornecedores da cadeia de P&G, identificando suas competências, o que pode – e o que
não tem condições – de ser produzido localmente. A partir daí, se preservariam as
competências adquiridas e o conhecimento acumulado no período de expansão do
setor, entre 2007 e 2014. Os centros de pesquisa tecnológica também seriam apoiados,
uma vez que esse “investimento fixo” sofisticado é o mais importante feito em virtude
da PCL. Finalmente, é importante registrar que incentivos diretos ao aprendizado e à
construção de novas competências no setor (principalmente à P&D e à exportação)
podem funcionar melhor do que um complexo sistema de monitoramento e punição
por não cumprimento dos requisitos de conteúdo local, se o que se deseja é impulsionar
a competitividade internacional da indústria brasileira de P&G.
O contraponto da política de conteúdo local da indústria de petróleo com outro
segmento de energia não poderia ser mais nítido. Foi em uma indústria nova para o
Brasil (e para os demais países) que a política de conteúdo local alcançou os resultados
mais promissores. Uma combinação inteligente entre a política energética (Ministério
das Minas e Energia) e a política de financiamento aos investimentos (BNDES) das
empresas de geração de energia eólica produziu resultados muito substanciais.
O Brasil tem experimentado ganhos expressivos na capacidade de geração de energia a
partir dos ventos. A participação da fonte eólica na energia gerada no período pelas
usinas do sistema alcançou 8,3% em março de 2018. Com isso, a energia eólica já empata
com o gás natural como terceira fonte de energia em capacidade instalada no Brasil e
se aproxima cada vez mais da biomassa, com 9,3%, segundo informações do jornal Valor
Econômico2. De acordo com a ABEEólica, a associação representativa do setor, a energia
gerada pelas eólicas já chega a abastecer mais de 10% do País em alguns meses do ano
(chegando a mais de 60% no Nordeste nos meses da “safra de vento”, ou seja, de junho
a novembro) e é suficiente para abastecer cerca de 22 milhões de residências por mês3.
2 Valor Setorial (2018) Energia 3 ABEEólica (2018) Brasil chega a 13 GW de capacidade instalada de energia eólica. Disponível em <http://www.abeeolica.org.br/noticias/brasil-chega-a-13-gw-de-capacidade-instalada-de-energia-eolica/>.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 10
Assim como em outros empreendimentos de geração de energia, a construção de
parques eólicos tem custos de capital elevados, com longos períodos de amortização. O
acesso a fontes competitivas de recursos financeiros, portanto, é de grande
importância. O BNDES exerceu papel fundamental no crescimento do setor eólico no
país. A Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) estima que 90% dos
parques eólicos do Brasil tenham sido financiados pelo Banco4. Os desembolsos do
BNDES para geração eólica bateram recorde em 2017, duplicando o valor de 2016. Os
empréstimos do BNDES para o setor totalizaram 7 bilhões de reais e representaram mais
da metade do total destinado pelo Banco para a área de energia no ano de 2017.
Mais do que isso, o BNDES teve atuação crucial no desenvolvimento da cadeia industrial
de produção do aerogerador no Brasil. A metodologia concebida e colocada em vigor
pelo banco de desenvolvimento em 2012, para o credenciamento de aerogeradores
passíveis de financiamento, foi muito oportuna ao estabelecer metas físicas de aumento
gradual, de incorporação de novas capacidades nas montadoras e fornecedores de
componentes. Em combinação com os leilões de energia - que garantiram demanda
consistente para novos projetos, com remuneração adequada - esta política de fomento
gerou encadeamentos relevantes de aprendizado e de construção de novas
capacidades, que se tornaram o alicerce para que o Brasil viesse a assegurar a produção
integral do aerogerador em bases competitivas. A ação pública permitiu o
desenvolvimento da cadeia produtiva, com a internalização de atividades tecnológicas
de maior complexidade, até então inexistentes, e a gradativa incorporação de novos
componentes e processos produtivos.
A política de conteúdo local aplicada ao desenvolvimento da cadeia produtiva do
aerogerador no Brasil ensina uma importante lição em termos de política industrial: as
políticas podem e devem evoluir com base em avaliações contínuas dos resultados
obtidos, em contraposição aos seus sempre existentes custos sociais, tendo como
principal parâmetro as metas inicialmente propostas. Na sociedade voltada para o
conhecimento, as empresas, que são os elementos constituintes centrais das indústrias
e dos mercados, concebem estratégias e implementam ações que resultam em
aprendizado - individual e coletivo. Isso pode ocorrer com elevada intensidade e resultar
em progressiva elevação do patamar de competitividade e da qualidade dessa
competição, que se desdobram em resultados positivos para a economia e a sociedade.
4 ABDI (2014) Mapeamento da Cadeia Produtiva da Indústria Eólica no Brasil. Disponível em <http://www.abdi.com.br/Estudo_Backup/Mapeamento%20da%20Cadeia%20Produtiva%20da%20Ind%C3%BAstria%20E%C3%B3lica%20no%20Brasil.pdf>.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 11
Para se ter uma ideia da evolução da indústria brasileira de equipamentos para energia
eólica nos últimos anos, até 2009 o Brasil contava com a presença de apenas duas
montadoras de aerogeradores (Wobben e Impsa) e duas produtoras de pás eólicas
(Tecsis e Wobben). Atualmente, o país conta com a presença de pelo menos oito
montadoras (Wobben, Alstom, Gamesa, Vestas, Siemens, Acciona, General Eletric e
WEG) e quatro produtoras de pás eólicas (Tecsis, Wobben, LM e Aerys).
As políticas industriais para o setor energético, mais precisamente para o segmento de
energia eólica, parecem ter sido capazes de promover um aprendizado coletivo,
envolvendo as empresas e o setor público, desde os primeiros leilões (sem resultados),
passando pela modificação nos critérios de nacionalização dos equipamentos
(impedindo uma especialização de baixo potencial tecnológico e industrial), até os
resultados dos leilões realizados no fim do ano passado, que permitiram investimentos
consideráveis associados a uma oferta de energia nova a preços competitivos.
O que esta experiência revela é a capacidade das políticas públicas de sinalizar para as
empresas de modo claro os seus propósitos, gerando correspondente conjunto de ações
privadas. A existência no Brasil de um parque industrial metalmecânico bastante
diversificado, com empresas detentoras de capacidades produtivas e competências
tecnológicas pertinentes para a indústria de aerogeradores, facilitou o aprendizado
relativamente rápido, para os padrões brasileiros da velocidade de incorporação de
conhecimento. A relativa simplicidade e elevada transparência da política que foi
proposta e executada por um número relativamente pequeno de atores públicos
também cumpriram um papel relevante. Por isso, mais do que simplesmente sustentar
a efetividade da política que foi concebida e executada no período recente, a análise da
política de equipamentos para energia eólica sugere pelo menos duas novas questões.
A primeira diz respeito aos possíveis desdobramentos dessa política. Tendo alcançado
um patamar de competitividade aceitável, tendo feito bom uso dos incentivos
construídos e criado um ambiente saudável, como pode ela se desdobrar agora em
novos desenvolvimentos (a exemplo de inovações nos equipamentos ou nos processos
de fabricação) de modo a promoverem um novo impulso de competitividade? Pode o
Brasil ambicionar tornar-se um polo de fabricação de equipamentos ou partes e
subsistemas de aerogeradores com projeção internacional? Quais ações privadas e
públicas deveriam ser adotadas para que a indústria possa ser alçada a essa posição
competitiva?
A indústria de informática constitui também um exemplo de política antiga e
relativamente persistente, a despeito das mudanças que sofreu ao longo do tempo. As
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 12
políticas industriais voltadas para o complexo eletrônico, da qual o segmento de
informática (componentes, equipamentos e software) faz parte, remontam ao final dos
anos 60 do século passado.
A política atual, no entanto, surgiu na década de 1990. A Lei da Informática, como ficou
conhecida, concede incentivos fiscais às empresas do setor que cumpram determinado
esforço mínimo de P&D e um conjunto de atividades conhecido como Processo
Produtivo Básico (PPB). O incentivo fiscal consiste na redução do IPI em produtos
habilitados/incentivados. O PPB é um mecanismo para determinar o nível de
nacionalização necessário para cada tipo de produto que é objeto de incentivo.
É preciso reconhecer que a utilização dos incentivos fiscais vinculados a esta política é
responsável pela permanência ou instalação de muitos empreendimentos industriais no
Brasil, tanto no Polo Industrial de Manaus, como em outras localidades do País. No
entanto, os resultados dessas políticas são alvo de grandes polêmicas que ainda
permanecem inconclusivas. A análise a seguir destaca aspectos importantes da natureza
da informática, esse universo que se iniciou com um dispositivo aparentemente muito
precário (a patente dos Laboratórios Bell, em 1949) e vem caminhando para transformar
de maneira muito radical a produção, os modelos de negócios, o consumo e a vida dos
indivíduos e da sociedade global.
No Brasil, o mínimo que se pode dizer como crítica à política de informática é que ela é
extremamente dispendiosa de recursos públicos sem que os resultados para a sociedade
estejam em proporção razoável. Há resultados? Sem dúvida que sim. A indagação que
se coloca é se esses resultados permitem que a informática, com o seu substrato
eletrônico e a difusão digital, entregue para a sociedade tudo o que ela espera ou pelo
menos aquilo que lhe permitiria melhorar de modo efetivo a produtividade e a
competitividade do sistema produtivo e os padrões de consumo e de vida dos indivíduos
e das famílias. As informações aqui reunidas não permitem dar uma resposta afirmativa
a esta pergunta.
É preciso reconhecer que o advento da indústria 4.0, da internet das coisas e da
digitalização generalizada deverão transformar de forma inédita os ambientes de
produção e de consumo, bem como as vidas privada e social. Por isso, qualquer política
de informática na atualidade tem diante de si o desafio de ser capaz de oferecer a todos
os setores produtivos, às cidades, às famílias e aos indivíduos os meios para o pleno
aproveitamento dessas oportunidades. A indústria 4.0 e os modelos emergentes de sua
difusão no Brasil parecem indicar que as políticas brasileiras para a informática são
insuficientes ou inadequadas para que ela possa cumprir o papel estruturante que mais
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 13
do nunca se tornou necessário. A informática é muito mais do que uma indústria, ela é
um vetor do desenvolvimento de todas as indústrias, que viabiliza novas soluções e
difunde tecnologias. Por isso, o seu desenvolvimento deve, mais ainda do que em outros
casos, ser avaliado por suas relações com o sistema industrial, com todas as demais
atividades e com o consumo de serviços avançados, e não por seu desenvolvimento
“endógeno”.
É na informática e nas tecnologias de informação e comunicação que a dicotomia
moderna entre o físico e o imaterial se expressa de modo mais nítido. Os componentes
materiais da indústria vão perdendo terreno para os elementos digitais que comandam
a produção e o consumo, bem como as relações entre eles. O sonho brasileiro de
protagonismo da fabricação microeletrônica e na montagem de seus artefatos finais,
por legítimo que seja, não deveria ofuscar a prioridade que deve ser dada à constituição
de soluções inteligentes para a digitalização dos sistemas fabris.
E, neste plano, a prioridade das prioridades deveria ser atribuída à difusão massiva de
tecnologias digitais no sistema de produção das centenas de milhares de empresas que
só poderão sobreviver se migrarem rapidamente para esse estágio preparatório do
modelo 4.0. As grandes empresas, as empresas líderes de seus setores, as filiais de
grupos multinacionais instaladas no Brasil, essas sempre poderão assimilar os pacotes
tecnológicos da manufatura avançada. Mas o tecido industrial habitado por muitas
médias e pequenas empresas, que dão sentido à expressão sistema industrial, não
poderá seguir a mesma trajetória e dependerá de uma fase prévia de preparação para
a etapa digital antes de reunir as condições mínimas para ingresso no novo modelo
emergente. Por isso é crucial que a política de informática desloque os seus estímulos
da montagem local de artefatos para a difusão de tecnologias habilitadoras da
digitalização. Se possível, esse impulso da digitalização massiva poderá servir de
estímulo para um conteúdo local progressivamente maior. Mas esse deveria ser um
resultado derivado, não um objetivo constitutivo.
A indústria farmacêutica brasileira tem sido alvo de políticas que costumeiramente
buscam conciliar o que pode não ser conciliável. Por um lado, pretende-se desenvolver
uma indústria a partir de seu aprendizado tecnológico, partindo de curvas
inevitavelmente desfavorecidas no início (em função do retardo no ponto de partida); e
por outro lado, utiliza-se o poder de compra do Estado, por meio do Ministério da Saúde,
para realizar aquisições que desde o início precisam ser feitas (por razões
orçamentárias) em bases de preço reduzidas. O curto prazo torna-se assim inimigo do
longo prazo.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 14
No período recente, mais precisamente em 2008, o Governo Federal iniciou por meio
do Ministério da Saúde a consolidação de um marco institucional para apoiar a
capacitação tecnológica em indústrias relacionadas à saúde, que foram definidas como
o "Complexo Industrial da Saúde". Esta iniciativa foi parte da Política de
Desenvolvimento Produtivo, a Política Industrial Brasileira para o triênio 2008-2010.
Este quadro institucional abriu o caminho para o lançamento, em abril de 2009, de 11
Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs) para a produção local de medicamentos
e produtos estratégicos – incluindo seus princípios ativos. Essas parcerias seriam
formadas entre fabricantes nacionais e estrangeiros e laboratórios estatais para
produzir e fornecer localmente ao sistema de saúde pública. Nestes arranjos, a empresa
privada assume a produção dos ingredientes ativos e os fornece ao parceiro público, um
laboratório estatal que formulará o medicamento. Além disso, os laboratórios privados
devem transferir a tecnologia para a produção da droga para laboratórios públicos
dentro de cinco anos, enquanto o Ministério da Saúde garante a exclusividade nas
compras governamentais do medicamento durante esse período.
Tal exclusividade na prática significa que os parceiros garantiriam um mercado viável se
a produção local do medicamento fosse desenvolvida com sucesso, enquanto (1) o
preço unitário no primeiro ano do contrato deve ser inferior ao preço unitário da última
licitação pública; (2) este preço deve se reduzir gradualmente durante o contrato de
cinco anos com uma taxa mínima de 5% ao ano.
Segundo o Ministério da Saúde, atualmente, existem 83 PDPs em andamento para a
produção local de 38 drogas sintéticas, 24 produtos biológicos (incluindo biossimilares
e vacinas) e 21 dispositivos médicos. Ainda segundo o Ministério, desde março de 2017,
35 PDPs estão fornecendo o produto correspondente ao Ministério da Saúde, gerando
uma redução de gastos estimada em um total de US$ 1,5 bilhão em aquisições de
produtos para o sistema de saúde pública. No entanto, tal economia é calculada com
relação ao preço da última aquisição pública e não considera a redução de preços no
mercado internacional ou de fornecedores alternativos, no caso de produtos não
protegidos por patentes.
Em março de 2017, o Ministério da Saúde redistribuiu as PDPs de alguns produtos
biológicos. Tal redistribuição considerou a expertise das instituições para fabricar
insumos usados no tratamento de artrite, câncer e doenças autoimunes com o objetivo
de promover especialização dos laboratórios e oferecer competitividade, escala de
comercialização dos produtos e capacitação dos pesquisadores.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 15
Pode ser ainda muito cedo para avaliar o impacto real desta política em termos de
criação de capacidades tecnológicas. Esse processo é complexo e leva tempo para que
os retornos do investimento realizado possam ser colhidos. Por isso, não está claro se
os incentivos proporcionados por esta política pública estão repetindo os erros
anteriores das políticas de substituição de importações. A exclusividade de mercado e a
modesta redução obrigatória de preços podem gerar acomodação. Se for esse o caso, o
efeito colateral será o acesso reduzido aos medicamentos, não apenas no curto, mas
também no longo prazo. A produção local de produtos farmacêuticos, incluindo
ingredientes ativos, indiscutivelmente é importante para a acumulação de
conhecimento. No entanto, isso não deve ser uma desculpa para a falta de
competitividade da indústria local e para a imposição de preços elevados para os
pacientes e para o sistema de saúde brasileiro.
As parcerias público-privadas da indústria farmacêutica pretenderam enfrentar a
contradição costumeira das políticas voltadas para esse setor com um novo arcabouço.
Os resultados das recentes edições de políticas ainda não tiveram uma avaliação
suficiente, mas os indícios são menos auspiciosos do que o desejável. Parece haver
aprendizado, mas a sua velocidade ainda não assegurou os benefícios pretendidos e
prometidos.
Conclusões: as políticas de conteúdo local como instrumento de
aprendizado, capacitação e desenvolvimento
O desenvolvimento econômico, do ponto de vista de um determinado país, pode ser
compreendido como um processo em que se passa de um conjunto de ativos baseados
em produtos primários para um conjunto de ativos baseados no conhecimento,
explorado por recursos humanos qualificados em atividades muito específicas, de alto
grau de complexidade. Essa transformação exige que se atraia capital (físico e humano)
do comércio e das atividades do setor primário (agricultura, mineração) para a indústria,
que é o motor do crescimento econômico moderno. Em todo o mundo, é no setor
manufatureiro que os ativos baseados no conhecimento foram cultivados e usados com
mais intensidade. É nesse sentido que a indústria é o coração do desenvolvimento: ela
gera os ativos que, ao serem incorporados pelos outros setores da economia, vão
permitir a sua propulsão a um patamar superior de eficiência e competitividade. Não é
difícil encontrarmos exemplos nesse sentido. Basta citarmos dois: a revolução que os
agroquímicos provocaram na produção de alimentos; e os produtos da microeletrônica
que deram uma nova conotação ao que conhecemos por “serviços”.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 16
O conhecimento é um ativo econômico muito especial, porque é escasso: é difícil acessá-
lo, seja pela sua produção seja pela sua aquisição. O conhecimento é conceitual, no
sentido de que envolve combinações de pedaços de informação que interagem de
múltiplas formas. Assim sendo, o conhecimento é específico a cada usuário (organização
ou empresa), sendo apropriado na medida do possível de modo a gerar rendas
tecnológicas exclusivas.
As diferentes tecnologias (o motor a combustão interna, os processos petroquímicos e
os semicondutores, por exemplo) podem ser compreendidas como “pacotes” de
conhecimento. Em parte, este conhecimento é tangível e formalizado (em normas, em
regras de operação e em artefatos físicos), mas em grande medida é tácito, ou seja, é o
“saber fazer” que não está formalizado e que, portanto, é de difícil transferência - o que
a literatura denomina “conhecimento desincorporado”. Capacidades tecnológicas
capazes de gerar novos produtos e novas técnicas de produção são parte dos ativos
intangíveis de uma corporação. Tais ativos permitem à empresa ser mais eficiente que
seus concorrentes, vendendo a preços relativamente maiores ou produzindo a custos
relativamente menores. Como ativos baseados em conhecimento são exclusivos,
específicos à firma que o possui, eles permitem à empresa obter rendas desse
monopólio (temporário) que, no longo prazo, estão no cerne de sua sobrevivência.
Depreendemos da análise dos parágrafos anteriores que o grande desafio dos países em
desenvolvimento, como o Brasil, é superar a escassez de ativos baseados em
conhecimento, o que conduz esses países à inabilidade para concorrer globalmente em
bases competitivas com os países mais avançados, mesmo em indústrias mais
compatíveis com sua dotação relativa de fatores produtivos (a indústria têxtil, a
petroquímica, a automobilística etc). Este deve ser, portanto, o objetivo com primazia
em políticas industriais: a geração e incorporação de ativos baseados em conhecimento,
como capacidades tecnológicas avançadas, que permitam ao país que as adota ter
empresas capazes de sobreviver em um sistema de competição global.
É neste contexto que se inserem as políticas industriais e, mais especificamente, as
políticas de conteúdo local. Essas políticas foram ampla e intensamente utilizadas por
muitos diferentes países desde pelo menos o século 19, quando as economias
retardatárias da Europa e dos Estados Unidos procuraram desenvolver as suas
estruturas econômicas contando com o reforço da mola propulsora do mercado interno.
Países da América Latina, da Ásia e da África, bem como das periferias da Europa,
trilharam o mesmo caminho no século 20, com resultados variáveis segundo os países e
os setores.
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 17
O advento da globalização, com suas transformações nas cadeias de produção, nas
configurações empresariais e nos aparatos institucionais reguladores dos fluxos
mundiais de comércio, modificou substancialmente o modus operandi e as
possibilidades de funcionamento dessas políticas promotoras da produção local. Se no
passado, com regimes de proteção elevados e duradouros, o aprendizado induzido pelas
políticas de conteúdo local podia ter uma velocidade relativamente reduzida, no
presente, cada vez mais as políticas de conteúdo local terão que produzir os seus
resultados tão rápida e eficazmente quanto possível, sob o risco de enfrentarem
oposições ferozes e abandonos com custos irreparáveis.
Isso impõe ao desenho das políticas algumas restrições e recomendações objetivas. Em
primeiro lugar, se as distâncias que separam a base da indústria local do horizonte
internacional de referência são muito grandes, a prudência recomenda que a política de
conteúdo local não seja instituída antes de uma fase preparatória que reúna os
elementos necessários para o preenchimento do hiato identificado. Em segundo, se a
mudança na fronteira internacional de referência for muito acelerada, talvez a
recomendação mais apropriada seja a de evitar investimentos em conteúdo local para
além dos pilotos ou segmentos bem delimitados em que os custos eventuais da política
não excedam as vantagens de um aprendizado que poderá, oportunamente, oferecer as
condições para uma política de desenvolvimento local da produção mais abrangente.
Políticas que imponham custos temporários aos consumidores poderão ser mais
factíveis do que políticas que imponham custos ao sistema industrial. A razão é simples:
os custos temporários (e dentro de certos limites) aos consumidores representam um
ônus que se dilui sobre a cesta de consumo, enquanto sobre segmentos específicos do
sistema industrial poderão representar a inviabilidade de uma indústria inteira (o
conjunto de empresas congêneres dependentes desse insumo) e a subtração em cascata
de competitividade sobre sucessivos segmentos. Em todos os casos, sem exceção, a
política de conteúdo local deveria atentar para os três parâmetros básicos de seu
sucesso: a distância que separa a base local do horizonte internacional, a velocidade de
transformação desse horizonte e a capacidade local de superar a defasagem existente
com ações deliberadas e vigorosas de aprendizado e aquisição de competências.
Uma vez que a capacidade do sistema industrial para se mover em direção à fronteira
da concorrência internacional é dependente de apoios do sistema público e de ações
complementares por parte de instituições associativas e coletivas, é preferível que as
políticas desenhadas para a promoção desse “emparelhamento” sejam concebidas com
uma panóplia de instrumentos suficiente para assegurar o seu rápido sucesso ou
abandono liminar. A consequência dessa proposição é clara: as políticas de conteúdo
Políticas de conteúdo local: a experiência brasileira 18
local precisam ser extremamente seletivas. Sem isso, além de se somarem custos sobre
os setores relacionados (sobretudo os demandantes de seus produtos), dilui-se a
capacidade limitada do aparelho público em apoiar, acompanhar e monitorar
detalhadamente o avanço do aprendizado e da conquista de uma posição competitiva
sustentável.
Por isso, uma recomendação importante que a contemporaneidade impõe à Política
Industrial deve ser a concepção de uma extrema seletividade das políticas de conteúdo
local, acompanhada do oferecimento de apoios suficientes para o alcance de resultados
que devem ser, desde a partida, considerados suficientes para o alcance de
competitividade internacional. Assim, o setor beneficiário de uma política passa
rapidamente do rol dos portadores de deficiências ou insuficiências competitivas para o
dos competitivos. Com isso, minimizam-se os custos da política e aumentam-se as
possibilidades de seu sucesso.
É útil recordar, por fim: o maior risco de uma política industrial é provocar a sua perda
de legitimidade perante a sociedade. A prudência recomenda, por isso, que a ousadia
dos seus objetivos seja sempre acompanhada dos meios para a sua consecução. São os
sucessos que reforçam a base industrial e a confiança da sociedade na capacidade
pública de formular políticas e nas estratégias privadas para executar as ações
correspondentes. Só eles podem evitar a descontinuidade das políticas, que provoca a
dilapidação de recursos públicos e privados e a imposição de custos sociais sem
contrapartida.