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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X PONCIÁ, AQUELA QUE VEM DO MAR, COMO METÁFORA DOS REFUGIADOS NO BRASIL Rafaela Elaine Barbosa 1 Cileide Luz Soares Inacio 2 Resumo: Brasil, 2016. Todos os dias, trens, barcos, navios e aviões trazem pessoas que, em busca da sobrevivência, chegam a nosso país. O número de solicitações de refúgio cresceu mais de 2.000% passando das 966 em 2010 para 28.670 em 2015 (CONARE, 2016). Desse total, 28% são mulheres que vêm com família ou sozinhas. Mulheres que perderam ou deixaram tudo, forçadas a uma travessia que, na maioria das vezes, não tem volta e que passarão a conviver com o estranho e serão tratadas como estranhas. Este trabalho traça um paralelo entre a situação das refugiadas no Brasil, sobretudo aquelas oriundas de países do mar do Caribe e da África, pois trazem em si as marcas do período da escravidão, também tão enraizadas em nossa sociedade, e a protagonista do livro Ponciá Vicêncio, escrito por Conceição Evaristo e publicado em 2003. Ponciá é a metáfora dessa imigrante, pois, apesar de não realizar o processo de imigração, mas o de êxodo rural, podemos compará-la à diáspora realizada pelas milhares de mulheres que buscam nosso país, devido à misoginia, à invisibilização social, à tessitura de novas identidades, à saudade do antigo lar (ou seria banzo?), ao preconceito que acometem tanto as imigrantes, como a personagem de Conceição Evaristo. Baseados nos estudos de Bhabha, Hall, Butller, Lugones, Mignolo, Spivak, Muelle, entre outros, serão traçados não só os processos de degeneração da personagem e das refugiadas, mas também, os de luta e resistência nessa nova vida em solo brasileiro. Palavras-chave: Refugiadas. Gênero. Mulher. Raça. A SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS NO BRASIL O Brasil é um país de imigrantes. Pessoas que fugiram das guerras, de perseguições, da fome, dos desastres climáticos e políticos. Pessoas que veem neste país de grandes dimensões territoriais, de muita pluralidade cultural e de abundância de recursos naturais uma possibilidade de futuro melhor. Podemos entender como imigração, o resultado de decisões individuais ou familiares, mas também um processo social. Em termos económicos, a migração é tanto um fenómeno mundial como o comércio de mercadorias ou de bens manufacturados. Designa o movimento das populações, mas faz parte de um modelo mais vasto e é um sinal de relações económicas, sociais e culturais em transformação. Todo o imigrante é emigrante e vice-versa, por isso falar em imigração é falar em (e)migração. Contudo, dentro dos fluxos das populações, a imigração refere-se ao movimento de entrada em dado país, região, cidade. (RUIVO, 2009, p. 3) ______________________ 1 Doutorado em Literatura, Linha de pesquisa: Crítica feminista e estudos de gênero,Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. 2 Mestrado em Educação, Linha de pesquisa: Educação e Movimentos Sociais,Universidade Federal de São Carlos, Sorocaba, Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

PONCIÁ, AQUELA QUE VEM DO MAR, COMO METÁFORA DOS REFUGIADOS NO

BRASIL

Rafaela Elaine Barbosa1

Cileide Luz Soares Inacio2

Resumo: Brasil, 2016. Todos os dias, trens, barcos, navios e aviões trazem pessoas que, em busca

da sobrevivência, chegam a nosso país. O número de solicitações de refúgio cresceu mais de

2.000% passando das 966 em 2010 para 28.670 em 2015 (CONARE, 2016). Desse total, 28% são

mulheres que vêm com família ou sozinhas. Mulheres que perderam ou deixaram tudo, forçadas a

uma travessia que, na maioria das vezes, não tem volta e que passarão a conviver com o estranho e

serão tratadas como estranhas. Este trabalho traça um paralelo entre a situação das refugiadas no

Brasil, sobretudo aquelas oriundas de países do mar do Caribe e da África, pois trazem em si as

marcas do período da escravidão, também tão enraizadas em nossa sociedade, e a protagonista do

livro Ponciá Vicêncio, escrito por Conceição Evaristo e publicado em 2003. Ponciá é a metáfora

dessa imigrante, pois, apesar de não realizar o processo de imigração, mas o de êxodo rural,

podemos compará-la à diáspora realizada pelas milhares de mulheres que buscam nosso país,

devido à misoginia, à invisibilização social, à tessitura de novas identidades, à saudade do antigo lar

(ou seria banzo?), ao preconceito que acometem tanto as imigrantes, como a personagem de

Conceição Evaristo. Baseados nos estudos de Bhabha, Hall, Butller, Lugones, Mignolo, Spivak,

Muelle, entre outros, serão traçados não só os processos de degeneração da personagem e das

refugiadas, mas também, os de luta e resistência nessa nova vida em solo brasileiro.

Palavras-chave: Refugiadas. Gênero. Mulher. Raça.

A SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS NO BRASIL

O Brasil é um país de imigrantes. Pessoas que fugiram das guerras, de perseguições, da

fome, dos desastres climáticos e políticos. Pessoas que veem neste país de grandes dimensões

territoriais, de muita pluralidade cultural e de abundância de recursos naturais uma possibilidade de

futuro melhor. Podemos entender como imigração,

o resultado de decisões individuais ou familiares, mas também um processo social. Em

termos económicos, a migração é tanto um fenómeno mundial como o comércio de

mercadorias ou de bens manufacturados. Designa o movimento das populações, mas faz

parte de um modelo mais vasto e é um sinal de relações económicas, sociais e culturais em

transformação. Todo o imigrante é emigrante e vice-versa, por isso falar em imigração é

falar em (e)migração. Contudo, dentro dos fluxos das populações, a imigração refere-se ao

movimento de entrada em dado país, região, cidade. (RUIVO, 2009, p. 3)

______________________

1Doutorado em Literatura, Linha de pesquisa: Crítica feminista e estudos de gênero,Universidade Federal de Santa

Catarina, Florianópolis, Brasil. 2Mestrado em Educação, Linha de pesquisa: Educação e Movimentos Sociais,Universidade Federal de São Carlos,

Sorocaba, Brasil.

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Se na História de nosso país, podemos destacar as imigrações dos portugueses e dos

espanhóis no início de nossa formação, da 'imigração' forçada e violenta dos negros africanos

trazidos para serem escravos em nossas terras, dos alemães e italianos que se instalaram

principalmente no Sul e Sudeste do Brasil, e tantos outros que por algum motivo viram em nosso

país uma chance de mudança, hoje, nosso país continua chamando a atenção de alguns povos, como

sírios, angolanos, colombianos, congoleses, libaneses, iraquianos, liberianos e paquistaneses que

não são somente imigrantes, mas refugiados.

Segundo o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) do Ministério da Justiça,

atualmente o País abriga 8.863 refugiados de 79 nacionalidades. O número de refugiados

reconhecidos pelo Brasil entre 2010 e 2016 aumentou 127%. Além do aumento no contingente de

reconhecidos, o Conare registrou forte expansão nas solicitações de refúgio. Nos últimos cinco

anos, esses pedidos subiram 2.868%, passando de 966, em 2010, para 28.670, no ano passado.

Infelizmente, à medida que aumenta o número de refugiados no Brasil aumentam também o número

de casos de xenofobia. Segundo a extinta Secretaria Especial do Direitos Humanos, em 2015, as

denúncias de xenofobia em todo o Brasil cresceram 633% naquele ano em relação a 2014.

Foram 330 casos registrados pela plataforma Disque 100. Em 2014, foram 45 denúncias.

Nos dois anos anteriores, o governo federal tinha o registro de apenas dois casos. O Humaniza

Redes1, que recebe denúncias online de xenofobia, registrou no mesmo período 269 crimes.2 Se

durante muito tempo, os casos de xenofobia eram em sua maioria contra os nordestinos que migram

para as regiões Centro-oeste, Sudeste e Sul, a partir de 2015, o foco mudou. Os números da extinta

Secretaria Especial de Direitos Humanos mostram que os haitianos são a maioria das vítimas

(26,8%), seguidos por pessoas de origem árabe ou de religião muçulmana (15,45%). A maior parte

dos refugiados que buscam abrigo no país possui idade entre 18 e 59 anos, em várias situações

formadas por famílias compostas também por crianças e adolescentes. Conforme a convenção das

Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), refugiado é toda pessoa que por motivos

decorrentes de temores de perseguição à raça, religião, nacionalidade encontra-se fora de seu país

de origem3.

1 http://www.humanizaredes.gov.br/ (Acessado em 14 de fevereiro de 2017) 2 http://www.huffpostbrasil.com/2016/06/20/xenofobia-brasil-justica_n_10558742.html (Acessado em 14 de fevereiro

de 2017) 3 http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/05/brasil-abriga-8-863-refugiados-de-79-nacionalidades (Acessado

em 14 de fevereiro de 2017)

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“Uma pessoa não se torna refugiado por que é reconhecida como tal, mas é reconhecida

como tal porque é refugiado” (WHITE, 1992). E o que é ser refugiado? Alguns

responderiam de pronto o que preceitua a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados

de 1951, em seu artigo 1º, que, basicamente, elenca fundados temores de perseguição por

motivos de raça, religião, nacionalidade, ou pertencimento a determinado grupo social ou,

ainda, por conta de opiniões políticas como definidores. De fato, esta é a definição clássica

formalizada à luz da necessidade de sistematizar um mecanismo de proteção internacional

capaz de amparar o enorme e inédito número de pessoas perseguidas vítimas da Segunda

Guerra Mundial. O refúgio é um instituto de proteção à vida decorrente de compromissos

internacionais confirmados pelo Brasil em sua constituição nacional. Cumpre frisar que o

refúgio não é um instituto jurídico que nasce da vontade de um Estado soberano de ofertar

proteção a um cidadão estrangeiro que se encontra em seu território – é tão somente o

reconhecimento de um direito pré-existente à demanda formal do indivíduo. (WALDELY,

VIRGENS e ALMEIDA, 2014, p. 114)

São pessoas fugindo da guerra, de perseguições políticas, de gênero (em países como Iraque,

Síria e Líbano é ilegal ser homossexual, por exemplo), religiosas (como os sunitas e xiitas,

perseguidos pelo Estado Islâmico) e etnicorraciais (como os curdos, perseguidos na Síria e no

Iraque). Vale lembrar que todo refugiado é um imigrante. Um imigrante que não pôde escolher

partir. Claro que muitos imigrantes partem sem muitas chances de escolha, em busca de

sobrevivência, mas para um refugiado, a não partida representa um perigo de morte mais eminente e

violento. Além disso, a condição de refugiado pode ser considerada o maior nível de degradação

sofrido por um ser humano, visto que ser um refugiado é uma afronta ao Artigo 2º da Declaração

Universal dos Direitos Humanos:

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta

Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,

opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou

qualquer outra condição. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 2)

Diante disso, não há somente indivíduos que não têm seus direitos e suas liberdades

respeitadas, mas que correm risco de morte se permanecerem nesses locais e precisam migrar dali.

Segundo a ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, conhecido como

a Agência da ONU para Refugiados) estima que um a cada 113 habitantes do planeta sejam

refugiados, estejam solicitando o pedido de refúgio ou migrando dentro de seu próprio país,

enquanto busca ter o pedido de refúgio aprovado4. Nesse contexto, há um lugar de fala e de escuta

que se pretendem recíprocos:

A tarefa do intelectual pós-colonial deve ser a de criar espaços por meio dos quais o sujeito

subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa ser ouvido(a). Para ela, não

se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra a subalternidade, criando

espaços nos quais o subalterno possa se articular e, como consequência, possa também ser

ouvido. (SPIVAK, 2010, p. 16)

4 http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/ (Acessado em 14 de fevereiro de 2017)

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É importante ressaltar que Ponciá Vicêncio, personagem de Conceição Evaristo, que emigra

do campo para a cidade em busca de melhores condições de vida, e que balizará as explanações

deste trabalho, promove este espaço e, consequentemente, passam por processos semelhantes, tais

como: diáspora, invisibilização social e resistência. Apesar do termo diáspora significar "o

espalhamento dos povos, que saem de sua terra de origem para concretizar a vida em outros países

ou em outros continentes" (CANCIAN, 2007, p. 2), percebemos que a personagem Ponciá também

passa por esse processo, visto que o ambiente em que ela cresceu (o campo) e o ambiente para qual

ela emigra (a cidade), são muitos distintos e colocam-na numa posição social diversa daquela em

que vivia.

O ROMANCE PONCIÁ VICÊNCIO

Ponciá Vicêncio foi publicado em 2003, escrito por Conceição Evaristo e conta a história da

protagonista, uma mulher negra, que dá nome ao livro numa jornada de busca pela identidade e por

seu lugar no mundo, ao mesmo tempo que convive com inquietações e memórias de seus ancestrais.

Sobre a autora, Arruda (2007) discorre

A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946, numa favela no alto

da Avenida Afonso Pena, área valorizada da capital. Com o tempo, a população que lá vivia

foi desfavelizada, removida para outros bairros da cidade e da área metropolitana, pois

novos prédios e ruas foram construídos na região. Tendo vivido a infância nesse local,

Conceição traz na memória acontecimentos e pessoas desse tempo que, vez ou outra,

participam de suas narrativas. Sua mãe, dona Joana, teve nove filhos, era doméstica, lavava

roupas para fora e ainda encontrava tempo para lhes contar histórias, palavras que também

fazem parte do “acervo” de Evaristo, que se diz nascida rodeada delas. A autora também

trabalhou como doméstica na capital mineira enquanto estudava. Formou-se professora no

antigo curso Normal, em 1971, e depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada

em um concurso municipal para magistério e, posteriormente, no curso de Letras na

Universidade Federal daquele Estado. As leituras sempre a acompanhavam: Clarice

Lispector, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Carolina

Maria de Jesus, Adão Ventura, entre outros, foram de grande influência para ela. Conceição

é mestre pela PUC/RJ, onde defendeu, em 1996, a dissertação Literatura negra: uma poética

da afro-brasilidade e doutora em Literatura Comparada pela UFF. A autora publica poemas

e contos na coletânea Cadernos Negros desde 1990, e é chamada para palestras e

congressos em todo o Brasil e no exterior, nos quais aborda as questões de gênero e etnia na

literatura brasileira. Ponciá Vicêncio é o primeiro romance de Conceição Evaristo e vem

sendo tema de artigos e discussões no meio acadêmico desde sua publicação em 2003.

(ARRUDA, 2007, p. 8)

Ponciá Vicêncio tem se destacado no meio literário por inúmeras características que podem

ser vistas como rupturas na forma como as personagens negras foram predominantemente retratadas

em nossa literatura. A linguagem do romance é visceral, crua. Frases e capítulos curtos. É

impossível não sentir a angústia das personagens no decorrer da história.

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A narrativa não linear transita entre o passado da protagonista, suas lembranças da família e

os fortes traços de ancestralidade, ao mesmo tempo em que, retrata seu processo de apagamento

social na cidade, sua relação violenta com o marido e sua resistência a essas formas de opressão.

Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. […] Mulheres

brancas tem um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem

branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes

dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas,

pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem

homens, e exercem a função de o “outro” do outro. (KILOMBA, 2008, p. 124).

Conceição Evaristo inicia a história de Ponciá contando sua infância, numa época em que as

condições eram difíceis para sua família descendentes de escravos, o pai e o irmão trabalhavam nas

terras do antigo senhor, a mãe e Ponciá fazem peças de barro para vender. No entanto, Ponciá era

feliz, gostava de si mesma:

Naquela época, Ponciá gostava de ser menina. Gostava de ser ela própria. Gostava de tudo.

Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, dos pés de pequi, dos pés de

coco-de-catarro, das canas e do milharal. (EVARISTO, 2003, p. 13)

E com o pai e o irmão trabalhando na terra dos brancos e passando muito tempo fora, Ponciá

carrega em si uma influência bastante forte do avô.

O primeiro homem que Ponciá Vicêncio conhecera fora o avô. Guardava mais a imagem

dele do que a do próprio pai. Vô Vicêncio era muito velho. [...] Ele chorava e ria muito.

Chorava feito criança. Falava sozinho também. [...] Ela reteve na memória os choros

misturados aos risos, o bracinho cotoco e as palavras não inteligíveis de Vô Vicêncio. [...]

No dia em que Ponciá desceu do colo da mãe e começou a andar, causou uma grande

surpresa. [...] Andava com um dos braços escondido às costas e tinha a mãozinha fechada

como se fosse um cotô. [...] Todos deram de perguntar por que ela andava assim. Quando o

avô morreu, a menina era tão pequena. Como agora imitava o avô? (EVARISTO, 2003, p.

15-16)

Mas havia uma questão em si própria que incomodava Ponciá: seu nome.

O tempo passava, a menina crescia e não se acostumava com o próprio nome. Continuava

achando o nome vazio, distante. Quando aprendeu a ler e a escrever, foi pior ainda, ao

descobrir o acento agudo de Ponciá. Às vezes, num exercício de autoflagelo, ficava a copiar

o nome e a repeti-lo, na tentativa de se achar, de encontrar seu eco. E era tão doloroso

quando grafava o acento. Era como se estivesse lançando sobre si mesma uma lâmina

afiada a torturar-lhe o corpo. [...] Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor,

de um tal coronel Vicêncio. (EVARISTO, 2003, p. 29)

E com a certeza de que o fato de saber ler e escrever poderia lhe dar condições de vida

melhores na cidade, Ponciá parte, quase que num rompante:

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e

repentina. Estava cansada de tudo ali. [...] Ela acreditava que poderia traçar outros

caminhos, inventar uma vida nova. E avançando sobre o futuro, Ponciá partiu no trem do

outro dia, pois tão cedo a máquina não voltaria ao povoado. Nem tempo de se despedir do

irmão teve. (EVARISTO, 2003, p. 33)

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No entanto, o novo mundo lhe é muito mais hostil do que o imaginado (como ocorre com

boa parte dos imigrantes) e as péssimas condições de trabalho e a servidão aos brancos, que antes

eram no campo e agora persistem em sua vida na cidade, somada à saudade enorme que sente da

família, fazem com que personagem, antes cheia de esperança e vigor, vá se fechando cada vez

mais em si mesma:

Ponciá Vicêncio não queria mais nada com a vida que lhe era apresentada. Ficava sempre

olhando um lugar de outras vivências. Pouco se dava se fazia sol ou se chovia. Quem era

ela? Não sabia dizer. [...] O homem de Ponciá Vicêncio começou a achar que a mulher

estava ficando doente. Impossível tanta lerdeza, tanta inanição em quem era tão ativa.

(EVARISTO, 2003, p. 90-96)

Reparemos que a personagem tem uma trajetória que não é única. Ela enquanto cresce, vai

construindo sua identidade que também não é somente uma. Sobre o conceito de identidade(s), Hall

afirma:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em

relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais

que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito

assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas

ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em

diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente

deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a

morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma

confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente identificada,

completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de

significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma

multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das

quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2014, p. 13)

E qual é o papel da diáspora na formação de identidade de Ponciá? E na dos refugiados? A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidades, a guerra, as perseguições

políticas e religiosas e a violência tendem a forçar as pessoas a migrar, o que causa o

espalhamento, a dispersão. Stuart Hall, morando na Inglaterra há mais de 50 anos, sabe que

jamais se considerará um inglês, assim como admite que também não se sente em casa na

Jamaica (HALL, 2009). Ainda que cada disseminação carregue consigo “a promessa do

retorno redentor”, não se pode falar nesse, após a diáspora, sem levar em conta que a terra

de onde se evadiu não é mais sagrada nem esteve vazia, ao contrário, foi violada, e

esvaziada. A terra se tornou irreconhecível e os elos pensados como naturais e espontâneos

foram irrevogavelmente interrompidos nas experiências diaspóricas. Se alguns,

eventualmente, sentem-se felizes por “voltar para a casa”, ainda assim, cabe perguntar à

qual casa eles chegaram. (RIBEIRO, 2012, p. 45)

Onde é a casa de Ponciá? E é a casa dos refugiados? Ponciá sente logo na chegada na cidade

que lá é tudo diferente. Sente a solidão, o abandono, o início do processo de invisibilização social.

A primeira impressão sentida por Ponciá Vicêncio no interior da igreja foi de que os santos

fossem de verdade. Eram grandes como as pessoas. Estavam limpos e penteados. Pareciam

até que tinham sido banhados. Eles deveriam ser mais poderosos do que os da capelinha do

lugarejo onde ela havia nascido. Os de lá eram minguadinhos e mal vestidos como todo

mundo. [...] Ponciá olhou as pessoas ao redor. Combinavam com os santos, limpas e com

terços brilhantes nas mãos. (EVARISTO, 2003, p. 35-36)

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É evidente para personagem que até os santos da cidade têm mais poder e prestígio, do que

aqueles mais modestos que estão na capela do lugar onde vivia. Vale ressaltar que assim como

Ponciá quando chega a cidade, o primeiro lugar que ela visita é a igreja, e para muitos refugiados,

são as igrejas e suas organizações que surgem como primeiro ponto de acolhimento.

PONCIÁ: METÁFORA DOS REFUGIADOS NO BRASIL

É impossível não acompanhar a trajetória de Ponciá e não se lembrar dos tantos refugiados

que chegam a nosso país. Pessoas que enfrentam as dificuldades de um lugar estranho, hostil,

muitas vezes, sem ter a quem recorrer numa situação de dificuldade.

Temos refugiados chegando em nosso país em trens, ônibus e navios que podem ser

considerados verdadeiros navios negreiros atuais, ou seja, aquelas embarcações que trouxeram os

africanos para serem escravos no Brasil. Uma jornada que em nosso país começou a mais de 300

anos, com tantos negros, trazidos à força para serem escravos nas terras dos brancos, e que assim

como os refugiados, foram e são expostos às mais terríveis condições de segregação. Quantos

navios, barcos, botes, ônibus, trens que carregam esses refugiados podem ser (re)significados como

uma releitura daqueles navios negreiros que trouxeram os africanos que seriam escravizados aqui?

Castro Alves, poeta da 3ª geração do Romantismo, conhecida como Condoreirismo, cuja principal

característica são as denúncias sociais, em seu poema 'Navio Negreiro' descreve o sofrimento dos

africanos, conforme podemos ler no trecho abaixo:

Ontem a Serra Leoa,

A guerra, a caça ao leão,

O sono dormido à toa

Sob as tendas d'amplidão!

Hoje... o porão negro, fundo,

Infecto, apertado, imundo,

Tendo a peste por jaguar...

E o sono sempre cortado

Pelo arranco de um finado,

E o baque de um corpo ao mar...5 (CASTRO ALVES, 1869)

E hoje, a realidade que temos não é muito diferente. Quantos morrem ao longo dessa

jornada? Não só no Brasil, mas no mundo inteiro, visto que deslocamento forçado é um problema

global6, ocasionado por instabilidades econômicas e políticas em diversos países.

No lado dos países emissores, formando a primeira ponta da atual crise migratória, estão

países localizados no centro e no norte da África, além daqueles no Oriente Médio. Em sua

5 http://www.academia.org.br/academicos/castro-alves/textos-escolhidos (Acessado em 14 de fevereiro de 2017) 6 https://nacoesunidas.org/onu-alerta-para-aumento-de-mortes-de-refugiados-e-migrantes-no-mediterraneo/ (Acessado

em 14 de fevereiro de 2017)

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grande maioria, são países que passaram pela já pretérita Primavera Árabe e não

conseguiram sustentar uma trajetória rumo a uma democracia liberal, tampouco operaram

estruturas capitalistas articuladas com o provimento de bens e serviços públicos. Tratam-se,

em suma, de países que, no vácuo de liderança após os movimentos da dita primavera,

caíram em crise institucional e fiscal, agregando-se à temida lista de failed states.

Enquadram-se aqui Líbia, Marrocos, Egito, Argélia, Iêmem e Síria, por exemplo,

considerando que a este último se agrega a questão do Estado Islâmico. Outro perfil de

países que compõem o conjunto emissor é caracterizado pelo histórico baixo desempenho

econômico, gerando abalos das instituições nacionais e ocasionando conflitos armados

locais e guerras civis, incluindo aqui Eritreia, Guiné, Gambia e Sudão. [...] Um outro traço

marcante no plano dos países emissores são os conflitos armados e as guerras, que se

somam ao baixo perfil econômico e social. Aqui se destacam Síria e Iraque, que sofrem o

avanço do Estado Islâmico, além de Nigéria, pressionada pelo Boko Haram, e o

Afeganistão, em situação de conflito com restantes adeptos do Talibã. Aqui se trata de

variável importante, vez que, somada aos elementos da esfera econômica, constitui o

arranjo do contexto produtor de emigrantes. Essa arena política supera em larga medida as

teorias sobre migrações concentradas em uma explicação econômica. (NOGUEIRA

COSTA, 2016, p. 19-20)

Outro ponto de convergência entre a personagem Ponciá Vicêncio e os outros tantos

refugiados é o significado de seu nome e o local de onde essas pessoas vêm.

Entretanto, a origem do prenome da personagem, Ponciá, com o qual ela também não se

identificava, permanece uma incógnita. Possivelmente vem do nome “Pôncio”, que também

dá origem a “Ponciano”. Segundo alguns dicionários de origem de nomes, Pôncio, além de

nos remeter à figura bíblica de Pôncio Pilatos, tem procedência latina (Pontius) ou grega

(póntios). No caso da origem grega, significa “vindo do mar”, na latina seria o “original de

Ponto, pequeno reino da Ásia Menor”. A origem latina do nome não nos remete ao passado

da protagonista, porém sua origem grega, “vinda do mar”, lembra-nos a triste história da

diáspora que aqui comentamos a qual pode simbolizar, portanto, a rejeição da menina ao

nome: seria a metáfora para sua recusa ao triste passado escravocrata, especialmente a

viagem de navio. (ARRUDA, 2007, p. 45)

Os refugiados, assim como Ponciá e seu povo trazido como escravos para o Brasil, vieram

do mar. Vieram do mar não só trazendo seu trabalho, mas também sua cultura e identidade,

aspectos que sofreram mudanças irreversíveis ao chegar no seu destino, conforme já citado: "A terra

se tornou irreconhecível e os elos pensados como naturais e espontâneos foram irrevogavelmente

interrompidos nas experiências diaspóricas." (RIBEIRO, 2012, p. 45). E, perante a

anulação/invisibilização social que Ponciá e os refugiados sofrem, muitas estratégias de resistência

são esboçadas por essas pessoas. Ponciá encontra como estratégia se fechar em si mesma, cada vez

mais ficando ausente do mundo em que estava.

Ponciá vive isso se definhando aos poucos. Sua mudez constitui uma espécie de recusa e,

ao mesmo tempo, de retomada desse passado afrodescendente. Ser o Outro naquele

contexto parece torná-la ainda mais distante de sua procura e mais alijada da sociedade em

que vivia, essa fase seria seu ágon, a parte conflituosa de sua procura. Procura que passa

também pela história de seus ancestrais, negros trazidos da África e seus descendentes,

como Vô Vicêncio. (ARRUDA, 2007, p. 56)

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Essa estratégia se assemelha muito ao banzo, patologia que acometeu muitos de seus

ancestrais escravizados e que consistia numa espécie de forte melancolia, nostalgia ou depressão,

ocasionando, muitas vezes, a morte.

O banzo, “um ressentimento entranhado por qualquer princípio”, seria causado por “tudo

aquilo que pode melancolizar”: “a saudade dos seus, e da sua pátria; o amor devido a

alguém; à ingratidão, e aleivosia (...); a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a

meditação continuada da aspereza [da tirania] com que os tratam (...).” Esta “paixão da

alma, a que se entregam, que só é extinta com a morte” (...) (ODA, 2007, p. 356)

Quantos refugiados não passam pelos mesmos sentimentos de solidão, tristeza e saudades da

pátria em que moravam? Quantos refugiados não estão nas mesmas condições de Ponciá, às

margens das sociedades num misto de anulação/invisibilização social e de esperanças no reencontro

com os seus? Banzo, depressão, o nome não importa, o que corrói essas pessoas lentamente é o

sentimento de solidão, de 'ninguém se importa'.

...apesar de tudo, ela e ele estavam desesperadamente sozinhos. Desde então, ao perceber a

solidão da companheira e a sua própria, o homem viu na mulher seu semelhante e tomou-se

de ternura imensa por ela. Conseguiu, então, entender as falas dela. A saudade que ela dizia

sentir do pai e do avô mortos, da mãe e do irmão desaparecidos. (EVARISTO, 2003, p.

109)

Sendo assim, serviços como apoio psicológico e programas que auxiliem a recolocação no

mercado de trabalho são fundamentais para autoestima e bem-estar dessas pessoas. Outra maneira

de buscar essa ligação com sua ancestralidade encontrada por Ponciá, é o artesanato que ela produz

no barro. Desde pequena tinha habilidade para a arte e há um boneco específico feito por ela que

sintetiza essa força das memórias, da história, da identidade e da ancestralidade negra que ela

carrega: seu avô, Vô Vicêncio.

Ponciá Vicêncio também sabia trabalhar muito bem o barro. Um dia ela fez um homem

baixinho, curvado, magrinho, graveto e com o bracinho cotoco para trás. [...] O que havia

com aquela menina? Primeiro andou de repente e com todo o jeito do avô. Agora havia

feito aquele homenzinho de barro tão igual ao velho. [...] ...um dia ele (Luandi) voltaria ao

povoado e tentaria recolher alguns trabalhos dela e da mãe. Eram trabalhos que contavam

parte de uma história. A história dos negros talvez. [...] Na primeira manhã que Ponciá

Vicêncio amanheceu novamente no emprego, depois do retorno à terra natal, levantou-se

com uma coceira insistente entre os dedos das mãos. Coçou tanto até sangrar. [...] Ponciá

Vicêncio cheirou a mão e sentiu o cheiro do barro. (EVARISTO, 2003, p. 21-130-74)

É a forma que Ponciá e muitos refugiados encontram de preservar sua cultura através dos

tempos. Essa formas de artes, na grande maioria das vezes, têm esse status negado pelo cultura

euro-ocidental, pois conforma corrobora Mignolo (2013) “a modernidade não é um período

histórico, mas a autonarração dos atores e instituições que, a partir do Renascimento, conceberam-

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se a si mesmos como o centro do mundo”, (MIGNOLO, 2013)7. Bhabha (1998), ao interpretar o

livro de Frans Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, nos traz o conceito de violência

epistemológica que o olhar branco aplica às outras formas de artes e saber que se diferenciem,

deturpando e estereotipando essas artes e esses saberes.

De dentro da metáfora da visão que compactua com uma metafísica ocidental do Homem,

emerge o deslocamento da relação colonial. A presença negra atravessa a narrativa

representativa do conceito de pessoa ocidental: seu passado amarrado a traiçoeiros

estereótipos de primitivismo e degeneração não produzirá uma história de progresso civil,

um espaço para o Socius; seu presente, desmembrado e deslocado, não conterá a imagem de

identidade que é questionada na dialética mente/corpo e resolvida na epistemologia da

aparência e realidade. Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem negro e

nesse ato de violência epistemológica turbado. (BHABHA, 1998, p. 72)

Mas, assim como o barro e sua arte são vitais para Ponciá Vicêncio, a continuidade e

disseminação de artes e saberes dos refugiados são uma das estratégias de resistências que mantém

essas pessoas vivas e esperançosas, ao mesmo tempo em que cultuam seu passado, sua história.

O passar de boca em boca, de mão em mão práticas, valores, crenças, ontologias,

tempoespaços e cosmologias vividas constituem uma pessoa. A produção do

cotidiano dentro do qual uma pessoa existe produz ela mesma, na medida em que

fornece vestimenta, comida, economias e ecologias, gestos, ritmos, habitats e

noções de espaço e tempo particulares, significativos. Mas é importante que estes

modos não sejam simplesmente diferentes. Eles incluem a afirmação da vida ao

invés do lucro, o comunalismo ao invés do individualismo, o “estar” ao invés do

empreender, seres em relação em vez de seres em constantes divisões dicotômicas,

em fragmentos ordenados hierárquica e violentamente. Estes modos de ser, valorar

e acreditar têm persistido na oposição à colonialidade. (LUGONES, 2014, p. 949).

Foi assim com todos os povos que passaram por um processo diaspórico ou por deslocamentos

forçados: africanos, judeus, palestinos e outros tantos refugiados que cruzam o mundo atualmente.

E como vemos, as histórias destas mulheres se cruzam com aquelas da família Vicêncio. O

barro, para elas, faz parte de uma memória que constrói suas identidades. [...] A arte se

torna, portanto, uma marca definitiva na formação de Ponciá. Toda sua trajetória passa pelo

barro. Mesmo quando ela não está mais em contato com a argila, sente o coçar das mãos, a

falta evidente do artesanato que ela dominava com maestria. (ARRUDA, 2007, p. 81-82)

Feiras e mostras dessas artes, culinárias e saberes têm acontecido em várias cidades como

Rio de Janeiro8, São Paulo9 e Florianópolis10 proporcionando não só cultura e conhecimento, mas

também a ocupação de espaços por esses novos cidadãos brasileiros.

7 Entrevista disponível em

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5253&secao=431 (Acessado em

14 de fevereiro de 2017) 8 https://nacoesunidas.org/feira-organizada-por-agencia-da-onu-promove-culinaria-arte-e-artesanato-de-refugiados-no-

rio/ (Acessado em 14 de fevereiro de 2017) 9 http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/11/1829396-imigrantes-trazem-novidades-gastronomicas-e-culturais-a-

sao-paulo-veja-guia.shtml (Acessado em 14 de fevereiro de 2017)

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No entanto, infelizmente essas demonstrações também reforçam pensamentos nacionalistas

e xenófobos de que essas pessoas querem impor sua cultura, em vez de celebrarem a diversidade e o

enriquecimento cultural desses povos. Em tempos que em alguns países adotam políticas restritivas

e extremistas contra os imigrantes e refugiados, endossados por um grande número de pessoas que

apoiam esse verdadeiro banimento de pessoas em situação de risco e extrema miséria, é preciso ir

para além do processo de consternação e pena.

É de fundamental importância, olhar a história hegemônica das desigualdades, para

percebemos certo apagamento das vozes das mulheres/refugiados negras nessa história e novas

possibilidades de enfrentamento e ações políticas. Por descentrar uma visão que é ‘branco

centrada’, mas tida como universal. Portanto, faz-se necessário colocar em cheque essas

representações concebidas a partir de um local de privilégio e, desse modo, buscar a emancipação

fora dos moldes pré-estabelecidos.

REFERÊNCIAS

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negro. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007. Dissertação de Mestrado

apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras/ Estudos Literários da Faculdade de Letras

da Universidade Federal de Minas Gerais.

BHABHA, H. K. Interrogando a identidade. p.70-104. In: O local da cultura. Belo Horizonte:

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KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Berlim: Unrast, 2008.

10 http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2016/07/florianopolis-recebera-1-feira-gastronomica-dos-

imigrantes.html (Acessado em 14 de fevereiro de 2017)

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PONCIÁ, THE ONE THAT COMES FROM THE SEA, AS A METAPHOR FOR

REFUGEES IN BRAZIL

Abstract: Brazil, 2016. Every day, trains, boats, ships and planes bring people who, in search of

survival, come to our country. The number of requests for refuge increased by more than 2,000%

from 966 in 2010 to 28,670 in 2015 (CONARE, 2016). Of this total, 28% are women who come

with family or alone. Women who have lost or left everything, forced to a crossing that, most of the

time, has no return and that will live with the stranger and be treated as strangers. This work draws

a parallel between the situation of refugees in Brazil, especially those from the countries of the

Caribbean Sea or Africa, because they carry within them the marks of the period of slavery, which

are also so deeply rooted in our society, and the protagonist of Ponciá Vicencio, written by

Conceição Evaristo and published in 2003. Ponciá is the metaphor of this immigrant, because,

despite not carrying out the process of immigration, but the rural exodus, we can compare it to the

diaspora carried out by the thousands of women who seek our country due to misogyny, social

invisibilization, to the texture of new identities, to the nostalgia of the old home (or would it be

banzo?), To the prejudice that affects both the immigrants and the personage of Conceição Evaristo.

Based on the studies of Bhabha, Hall, Lugones, Mignolo, Spivak, among others, will be traced not

only the processes of degeneration of the character and immigrants, but also those of struggle and

resistance in this new life on Brazilian soil.

Keywords: Refugees, Gender, Woman, Race.