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2 Henrique Barroso
Esta obra foi patrocinada por:
Câmara Municipal de Montalegre
URBANOP - Urbanizações e Obras Públicas, Lda.
3Pondras de Pedras Soltas
Henrique Barroso
Pondras de
Pedras Soltas(Poesia)
Posfácio de Américo António Lindeza Diogo
Edição
CALIDUM
BRAGA • 2001
4 Henrique Barroso
Título PONDRAS DE PEDRAS SOLTAS (Poesia)
Autor Henrique Barroso
Edição CALIDUM - Clube de Autores Minhoto/Galaicos 4840-100 Terras de Bouro E-mail: [email protected] Capa/Grafismo Henrique Barroso
Depósito Legal 171447/01
Data de Saída Novembro/2001
Tiragem 1000 exemplares
Execução Gráfica Graficamares, Lda.
7Pondras de Pedras Soltas
AAntónio Gedeão
David Mourão-FerreiraMiguel Torga
Vergílio Ferreira
por terem partilhadoe continuarem a partilhar
comigo(contribuindo decisivamente para o meu autoconhecimento),
entre muitas outras “coisas”,a sua mensagem
humanistaque suaviza a existência.
9Pondras de Pedras Soltas
Gertrud von Utrecht:
Sem uma crença o ser humano é nada.
José Saramago, In Nomine Dei (1993), p. 147
Penso que as palavras só nasceram
para poderem jogar umas com as
outras,
que não sabem mesmo fazer outra coisa, e
que,
ao contrário do que se diz,
não existem palavras vazias.
José Saramago, A Caverna (2000), p. 204
13Pondras de Pedras Soltas
SPHRAGIS
Assinalo
A minha passagem
Pelo mundo
Dando Amizade
Rindo chorando e
“Dizendo asneiras”.
Coimbra, 26 de Maio de 1983
14 Henrique Barroso
A MAGIA DO LIVRO
Não desprezes um livro nunca
Nem o calcando
Nem o rasgando
Nem o queimando!
Se o fazes
Não só queres ficar às escuras
Como também estás a arrastar
Para aí
O resto da Humanidade!
Braga, 30 de Maio de 1985
15Pondras de Pedras Soltas
O MEU MUNDO
Não vendas os meus livros
Nunca!
Guarda-os
Testemunhos vivos
Da minha passagem
Por aqui
E da minha presença!
Braga, 10 de Março de 1987
16 Henrique Barroso
POETA E POESIA
Saber escutar as notas
Da interioridade
É ser Poeta.
Fazer com elas
Uma partitura
É Poesia.
Braga, 28 de Fevereiro de 1997
17Pondras de Pedras Soltas
BURACO NEGRO
Não acredito
No big bang
Assim…
Apesar disso
Quero
Expandir-me…
Braga, 1 de Outubro de 1998
21Pondras de Pedras Soltas
INTERROGAÇÃO ETERNA
A contingência
Limitação
Infinitude
Eis a questão!…
Braga, 3 de Março de 1985
23Pondras de Pedras Soltas
ANTHROPOS
O homem é infinito finito e finito infinito;
É amor suave e cruel ódio,
É vontade ardente e vulgar desleixo,
É opacidade transparente e opaca transparência.
O homem é carne espiritual e carnal espírito;
É génio divino e demoníaco objecto,
É pavão emproado e indefeso avestruz,
É ser indigente e rico animal.
O homem é incapaz de tudo e de nada capaz;
É vivência efémera e imortal glória,
É inteligência profunda e simples gesto,
É audácia afortunada e desditosa fortuna.
O homem é ambição desmedida e fatal morte…
Braga, 12 de Março de 1985
24 Henrique Barroso
EFÉMERO
Como uma flor
No Outono
Assim feneço
Entregando-me
A Deus
E banqueteando
Substancialmente
Os vermes…
Braga, 17 de Março de 1985
25Pondras de Pedras Soltas
MOLÉCULA
Como os elementos atómicos
Assim são os mortais:
Os protões, os quentes
Os neutrões, os mornos
Os electrões, os frios.
No entanto
Só os verdadeiros protões
São capazes de construir
A Humanidade.
Braga, 25 de Março de 1985
27Pondras de Pedras Soltas
PERTURBAÇÃO
Ainda não perdi
A confiança
No Homem.
Porém não é
Com certeza
Por míngua de razões!…
Braga, 13 de Novembro de 1996
28 Henrique Barroso
ENVELHECIMENTO
Todos envelhecemos.
Nuns processa-se
De modo seco…
Noutros arranca-lhes
As entranhas…
Braga, 1 de Junho de 1997
29Pondras de Pedras Soltas
AMARTAGEM
Qual carrinho
De madeira tosca
Construído pelas mãos
Da minha infância
Na Terra…
Eis o Sojourner
Novinho em folha
Entrando
Aos pulos
Em Marte…
Quando lá formos
Assim como alunámos
Amartaremos!…
Braga, 11 de Julho de 1997
30 Henrique Barroso
REVOLUÇÃO
A dor das injustiças
Transmuta-se em raiva.
Depois (é natural!)
Acontece a explosão.
Braga, 22 de Janeiro de 1998
31Pondras de Pedras Soltas
DESINTEGRAÇÃO
Um dia que passa
É nova ameaça.
Será da carcaça?
Será da couraça?
Se tal me ultrapassa
E tudo deslaça
Para quê a taça?!…
Braga, 7 e 8 de Outubro de 1998
32 Henrique Barroso
CINISMO
Chafurda
Nesse atoleiro!
Enludra-te
Mesmo bem!
Vira-te e revira-te
Gostosamente!
Agora…
Olha para ti!…
Braga, 16 de Outubro de 1998
37Pondras de Pedras Soltas
SABER DE EXPERIÊNCIA FEITO
Não adianta
Empurrares mais
A carroça:
O eixo está partido.
Se queres mesmo prosseguir
Tens de o consertar
Primeiro.
Assim mo estão ensinando
Não sem grande dor
O meu corpo e a minha mente.
Braga, 15 de Novembro de 1996
38 Henrique Barroso
O AMIGO
Companheiro de percurso
Amigo sempre presente
Referência como o Norte
Lutas também contra os fortes
Ostentas o mesmo signo:
Sinceridade sem mas.
Braga, 27 de Novembro de 1996
39Pondras de Pedras Soltas
SER INTEIRO II
Ser inteiro
Continua também a ser
No momento de entregar a Alma
Ao Criador
Despedir-se
Dos que ainda ficam
Com um sorriso
Profundamente
Sereno.
Braga, 30 de Novembro de 1996
40 Henrique Barroso
LAMPIÃO SOCRÁTICO
Segura-me, por favor, sempre na lanterna!
A sua luz dá para ver o que procuro.
E com aquela vantagem, pra além da externa:
A de não me encandear quando estou no escuro.
Braga, 5 de Fevereiro de 1997
41Pondras de Pedras Soltas
ESSÊNCIA RITMADA
A essência
Com cadência
Não permite
Desistência.
Braga, 16 de Março de 1997
42 Henrique Barroso
A DECISÃO
Pronto. Já chega.
Peguei em mim
Ao colo
Com muita ternura
Mas com muita firmeza
E disse-me:
– É agora. Atira-te!
Braga, 19 de Março de 1998
43Pondras de Pedras Soltas
MEDOS
Todos os medos
E mais alguns
Me visitaram
Me estrebucharam
Me derrubaram.
Mas qual Fénix
Eis-me de novo
Aqui
A fazer-lhes frente.
Braga, 8 de Maio de 2000
47Pondras de Pedras Soltas
REFLEXÃO
Debruçado sobre o parapeito
Da janela do meu quarto
Olhando a Majestade
Do Bom Jesus do Monte
E a Incomparável Grandeza
Do Sameiro
Penso um pouco
Na pequenez do Homem…
Quão bom seria
Atingir
O Inatingível
Pelos escadórios
Da Realidade!…
Braga, 2 de Março de 1985
48 Henrique Barroso
TRAÇO DE UNIÃO
Todos os asteróides
Todos os cometas
Todas as estrelas
Todos os planetas
São as pondras
Do Infinito…
Do Criador
Todas as criaturas
São o traço de união…
Braga, 24 de Março de 1985
49Pondras de Pedras Soltas
VISÃO UBÍQUA
Mas por que razão
Não vejo eu
Um pouco mais
Pra Além
Desta face es-ta-pa-fúr-di-a
Deste planeta Terra?!…
Braga, 31 de Dezembro de 1986
50 Henrique Barroso
DIA DE TODOS-OS-SANTOS
Outubro finou-se.
Hoje já é Novembro…
O mês das Almas…
Também por isso aqui estou:
Vim fazer uma visita aos meus queridos
Mortos…
Conversei com eles
Longamente
E em silêncio…dourado!…
Salto, 1 de Novembro de 1996
53Pondras de Pedras Soltas
CRUZ
Como Sísifo
Subo a Montanha
Derreado pelo peso.
Mas… quase no topo
Irremediavelmente
Volto a cair…
Como Tântalo
Tenho água pelo queixo
E frutos ao meu alcance.
Mas… ao primeiro gesto
Irremediavelmente
Sucumbo de sede e de fome…
Braga, 15 de Março de 1985
54 Henrique Barroso
MORS/AMOR
Orfeu
De cabeça flutuante
Vence a Morte
Clamando
Eu-rí-di-ce!!!!!!!
Eurídice
Evolando-se
Misticamente
Beija
Orfeu!…
Braga, 15 de Março de 1985
55Pondras de Pedras Soltas
SOPRO
Sentado no banco
De Pitonisa
Extasiado
Pego na harpa
Chamando Orfeu…
Orfeu
Embriagado
Divinalmente
Liga-me a chave
D’ignição…
Braga, 16 de Março de 1985
56 Henrique Barroso
MUSAS
Por que não enamorar-me
Delas?!…
Talvez (quem sabe?!…)
Reclinando-me à sombra
De um carvalho ou castanheiro
Junto ao ribeiro da minha infância…
Me possam desvelar
A luz do Tempo perdido!…
Braga, 31 de Dezembro de 1986
57Pondras de Pedras Soltas
SÍSIFO INCANSÁVEL
O Absoluto… persigo-o
A galope
Embora saiba que não existe
(Nunca ninguém o encontrou!…)
Braga, 20 de Fevereiro de 1998
61Pondras de Pedras Soltas
MÃE
Mãe, a Ti ofereço este pedaço de Ti:
Eu, o Teu filho estimado e estimável
Eu, o Teu filho muito querido
Eu, o Teu filho que é uma parcela de Ti.
Tu me deste a vida
Tu me criaste
Tu me educaste
A Ti devo o meu Ser.
Sem Ti não veria esta luz do Sol
Que me alumia e aquece
Nem esta beleza da Natureza
Que me faz sonhar e apetece.
Mãe, acompanha sempre este quinto do Teu Ser!
Coimbra, 13 de Maio de 1982
62 Henrique Barroso
RETROSPECÇÃO
Quando era pequenino
Pensava
No que queria ser
Quando fosse grande!
Agora, grande,
Penso
No que pensei
Quando pensava
No que queria ser
Quando era pequenino…
Braga, 6 de Março de 1985
63Pondras de Pedras Soltas
RAÍZES
A raiz quadrada
Do homem
É a mulher.
A raiz cúbica
Dos pais
São os filhos.
E os avós são
Dos netos
Os números primos…
Braga, 12 de Março de 1985
64 Henrique Barroso
PAI
Como S. José
Conheces a enxó, o serrote,
O martelo, os pregos
E a restante ferramenta
Própria da Tua actividade.
E eu
Como o filho adoptivo do carpinteiro
Conheço-Te a Ti
E saúdo-Te ternamente,
Meu Pai verdadeiro!
Braga, 19 de Março de 1985
65Pondras de Pedras Soltas
PERFEIÇÃO
Uma gaiola.
Um pombo. Uma pomba.
Dois pombos…
Um dentro. Outro fora.
Um trocho. Muitos trochos.
Um ninho…
Uma bicada. Outra bicada.
Muitas bicadas.
Um amor…
Um ovo. Outro ovo.
Dois ovos…
Um choco alternado.
Três semanas apenas e…
Um borracho. Outro borracho.
Dois borrachinhos…
Uma ternura misteriosa!…
Braga, 21 de Março de 1985
66 Henrique Barroso
NATAL
Na província já não neva.
(Que saudade!…)
Fora, gelo geada
Sincelo
Um frio arrepiador…
Dentro, as rachas
No fogão ardente
Aquecem a gente
Na consoada…
Que saudade
Do manto branco
Da minha infância!…
Já nem parece Natal!…
Salto, 31 de Dezembro de 1986
67Pondras de Pedras Soltas
LE BONHEUR MATINAL
Je me lève.
Je prends ma douche.
Et tu m’appelles:
– “Tue cette mouche!…”
Et je vois… … … … …
… … … … … … … …
Que tu accouches!…
Braga, 31 de Dezembro de 1986
68 Henrique Barroso
QUÍMICA
Passa e cumprimenta
Sempre
Sinceramente sorridente.
Fá-lo de alma completamente
Escancarada… que até se vê
Como se o Sol estivesse dentro
A transformação de impulsos cerebrais
Em humano sentimento.
Braga, 28 de Novembro de 1995
69Pondras de Pedras Soltas
COMUNITARISMO
Todos
Naturais e forasteiros
À volta da mesma mesa
De madeira improvisada
E quilometral
De alvo linho de pura teia coberta
E guarnecida com arroz carne e pão
Vivemos e saboreámos
Como na origem dos tempos
O símbolo da comunhão:
Eis o milagre de S. Sebastião.
Braga, 21 de Janeiro de 1998
73Pondras de Pedras Soltas
NÓS
Meu Amor,
Desata-me
E diz-me:
– Até logo!…
Braga, 16 de Março de 1985
74 Henrique Barroso
TU I
Saber que existes
É um prazer.
Saber que existes em mim
É um prazer maior ainda.
Saber que Te amo
É uma felicidade.
Saber que me amas
É uma felicidade maior ainda.
Saber que nos amamos
É a inverbalização deste sentimento.
Braga, 27 de Junho de 1992
75Pondras de Pedras Soltas
MAGIA OCULAR
Se bem me olhares
Imediatamente
Lerás nos meus olhos
Ke Te amo
Eternamente.
Rodando interiormente
Os Teus mesmos olhos
Encontrarás
Ternura
Também
Grandeza de espírito
Esperança humana e
Recepção do Teu ser.
Braga, 30 de Junho de 1992
76 Henrique Barroso
TU II
Amar-Te
Não é pecado.
Amar-Te
Não é perder tempo.
Amar-Te
É estar bem.
Braga, 17 de Agosto de 1992
77Pondras de Pedras Soltas
PRESENÇA
Está a chover.
É como se fosse noite.
A cor de cinza que passa
Através da vidraça
Parece acalmar
A própria desgraça.
Mas tu, ó Musa,
Ausente
E sempre presente
Me cobres de Graça!
Braga, 24 de Janeiro de 1995
78 Henrique Barroso
CUPIDENTIM
I
O deus archeiro
De olhos vendados
Atirou
Certeiro.
E o São Valente
De olhos abertos
Aprovou
Contente.
II
O deus e o Santo
Criam da dor
Não sem encanto
O grande Amor.
Braga, 2 de Fevereiro de 1995
79Pondras de Pedras Soltas
BANQUETE
Tu não sabes…
(Também não estás aqui!)
Mas comes comigo sempre:
Nunca cozinho só para mim.
Hoje vamos comer
Bacalhau assado no forno
Com batatas aos quadradinhos
E bem pintadas de vermelho!…
Sei já que vamos gostar
Apesar da tão curiosa relação
Que os nossos sentidos têm com o peixe…
Ou será que bacalhau não é peixe?!…
Braga, 1 de Dezembro de 1996
80 Henrique Barroso
SEGREDO
– Sei um segredo.
– Contas-mo?
– Mas é segredo!…
– Mas conta-mo!
– Não dizes nada a ninguém?
– Sou um sepulcro.
– Amo-Te.
Braga, 4 de Dezembro de 1996
81Pondras de Pedras Soltas
ANIVERSÁRIO EM ESPIRAL
Seis são já as setas
Que o Cupido arremessou
Seis são já as setas
Que o Valentim consagrou.
Cem serão as setas
Que o Cupido atirará
Cem serão as setas
Que o Valentim sagrará!
Braga, 3 de Fevereiro de 1997
83Pondras de Pedras Soltas
RUHE
Ich habe gern,
Daß Du mich gern hast.
Daß Du mich verstehst.
Daß Du neben mir bist.
So.
Ohne weiteres.
Braga, 3 de Julho de 1997
84 Henrique Barroso
TRANQUILIDADE
Gosto que gostes de mim.
Que me entendas.
Que estejas ao meu lado.
Assim.
Sem mais.
Braga, 3 de Julho de 1997
85Pondras de Pedras Soltas
ANIVERSÁRIO EM SINTONIA
Demos juntos já sete voltas ao Sol
E também o Cupido e o S. Valentim
Que desejam muito seja sempre assim
E nos tornemos do amor o maior escol.
Braga, 8 de Fevereiro de 1998
86 Henrique Barroso
IMPULSO VITAL
Ninguém entenderá
Nem Tu mesma entenderás
Nem eu próprio entenderei
Mas sei
Que a Tua aura
Me acalenta
Me protege
Me sustenta
Me empurra e
Me projecta
Com firmeza e equilíbrio.
Braga, 19 de Março de 1998
87Pondras de Pedras Soltas
ANIVERSÁRIOS
De mãos dadas demos
Outra volta ao Sol
E porque quisemos
De dedos marcados.
Certo que não há
Amor como o nosso
Nem mesmo um abraço
Amplo como o mundo
Por mais que se esforce
Consegue abarcá-lo.
Braga, 7 e 12 de Fevereiro de 1999
88 Henrique Barroso
CADA VEZ MAIOR
Sinto-me amado
E o amor vem
D’alma
E n’alma sinto
A calma
E a calma é o conforto
Em que vivo absorto
Porque quero ir…
Braga, 15 de Novembro de 1999
89Pondras de Pedras Soltas
B.I. Q.B.
Sou o teu amor
Sou o teu amado
Sou o teu amante.
Sou o pai do menino
Que é dentro de ti:
O nosso David.
Sou só o que quer
Viver e morrer
De maneira inteira
Sempre ao pé de ti.
Braga, 24 e 25 de Outubro de 2000
90 Henrique Barroso
NÚMEROS PERFEITOS
Perfaz dez anos
Que estamos juntos
Somos assim ainda
Um par.
Entretanto nasceu-nos
Um filho
Somos assim agora
Um trio.
Que desafio!
As contas de multiplicar e dividir
Vão prosseguir
E os números assim permanecem
Perfeitos.
Braga, 14 e 15 de Fevereiro de 2001
93Pondras de Pedras Soltas
EPITÁFIO
(ao Amigo Padre Jorge)
Padre, morreste e
Continuas vivo.
O tempo arrasta tudo.
Mas tu ficas
E não apenas na memória…
Coimbra, 2 de Fevereiro de 1983
94 Henrique Barroso
UNIDADE
(a Miguel Torga)
Tinha de ser.
Entregou
(Na sua expressão)
A Alma
Ao Criador.
Agora
Também lá
É
Resplendor.
Braga, 27 de Janeiro de 1995
95Pondras de Pedras Soltas
SIMPÁTICO SORRISO
(ao Miguel Damásio)
Partiste, Michel,
Tão velozmente
Neste tempo
Tão chuvoso
Tão húmido e
Tão frio…
Deixaste-nos
Na tua primavera
Neste inverno
Tão tristemente
SOS…
E alagados em retidas
Lágrimas…
Braga, 22 de Dezembro de 1997
96 Henrique Barroso
APARIÇÃO1
(a Vergílio Ferreira)
Existir e resistir
Mesmo que submersamente
Pensando-o até ao fim
E escrevendo para sempre.
Braga, 7 de Junho de 1998
1 Poema premiado (2.º prémio), em Julho de 2000, no Concurso Nacional de Poesia Agostinho Gomes, uma iniciativa da Biblioteca Municipal de Oliveira de Azeméis/Esplanada do Livro, da Junta de Freguesia de Cucujães e do Departamento Cultural do Núcleo de Atletismo de Cucujães.
97Pondras de Pedras Soltas
H2O
(a António Gedeão)
Fá-lo
Um branco
Um preto
Um vermelho
Um amarelo:
Todos
Sem excepção
Choramos.
Alquímico?
Do nosso corpo
Dois terços
Não são
Afinal
Água?!…
Braga, 7 de Junho de 1998
98 Henrique Barroso
DEDICAÇÃO MODELAR
(a Madre Teresa de Calcutá)
As suas rugas
Eram regos
P’ronde corria
O altruísmo
Mui ternurento
Com humanismo
Sem desalento.
Braga, 8 de Outubro de 1998
99Pondras de Pedras Soltas
UMA VIA SACRA
(à Madrinha Vitória)
Vi-te ser mãe do último filho.
Vi-te ser mãe dolorosa
na morte precoce de uma filha
e precoce e brutal de um filho
que assim te foram arrancados
sem que nada tivesses feito
e sem que nada pudesses fazer…
Vi-te também filha dolorosa
na despedida natural da mãe…
Vi-te ainda desgostosa
por razões filiais
a chorar
triste e sempre esperançosa…
Vi-te feliz com o companheiro
que mimaste por inteiro.
100 Henrique Barroso
Vi-te feliz e contente
a falar com toda a gente.
Vi-te verdadeiramente generosa
nos sorrisos
nas palavras
nos portinhos e sortido
sobretudo na alegria
e a pular
e a dançar…
E é esta a imagem que quero guardar.
Braga, 21/ 22 de Abril de 2000
103Pondras de Pedras Soltas
CONTRATO-PROMESSA COMPRA E VENDA
Quase sempre de cabelo loiro
– Agressivamente pintado –
Baixa e robusta
De seios enormemente
Redondos
Gorda na cintura
De perna ao léu
Cigarro no canto da
Boca
Emitindo pseudo-sorrisos…
Ei-la que alicia
Babando-se já como boi ao arado
O guloso glutão
Que deixa o camião
Na berma da estrada.
Braga, 22 de Novembro de 1995
104 Henrique Barroso
DESCARGA
A arte de provocar
É o tubo de escape
Dos gases cerebrais.
Braga, 6 de Março de 1996
105Pondras de Pedras Soltas
EGO PICADO
O céu tremeu
A raiva cresceu
E tudo isto
Em nome do EU.
Braga, 13 de Maio de 1996
106 Henrique Barroso
CRUZAMENTO
– Paixão?!…
– Paixão rima com caixão.
– Que semelhança, então?!
– A horizontalidade.
Braga, 17 de Junho de 1996
107Pondras de Pedras Soltas
PONTA
Esta é uma ponta
Sem ponta afiada,
Esta é uma ponta
Que não me diz nada.
Eu quero uma ponta
Com ponta afiada,
Não quero uma ponta
Que não me diz nada.
Braga, 8 de Março de 1997
108 Henrique Barroso
INCAPACIDADE
Esta incapacidade que se tem
De não ter capacidade
É uma incapacidade
Que nos incapacita.
Braga, 11 de Março de 1997
109Pondras de Pedras Soltas
AS QUATRO ESTAÇÕES
O Verão acordou
Este ano
Numa manhã de Inverno…
E ambos à Primavera
Nada disseram!…
(O Outono dormia
Ainda
O sono dos justos).
Braga, 29 de Março de 1997
110 Henrique Barroso
MULHER-A-DIAS
Ai Filó, rica Filó,
Só te interessas pelo dinheiro
E não me limpas o pó!…
Braga, 8 de Agosto de 1997
111Pondras de Pedras Soltas
LOCAL DE TRABALHO
Como se de autómatos se tratasse
Agimos
Como se de potências rivais se tratasse
Comportamo-nos
Como se de seres heterogalácticos se tratasse
Comunicamos
Como se de ser assim mesmo tivesse
Vamo-nos suportando
Aqui onde trabalhamos.
Braga, 25 de Novembro de 1997
112 Henrique Barroso
SENSO COMUM
Há coisas que são
Do senso comum:
Não se precisa
Nem de saber técnico
Nem de saber científico
Nenhum!
Braga, 29 de Outubro de 1999
113Pondras de Pedras Soltas
JACTÂNCIA
Ai de mim
Se só me completasse
Assim!
Seria tal
Como um completamento
Pontual.
Braga, 21 de Fevereiro de 2001
117Pondras de Pedras Soltas
ADIÇÃO VS SUBTRACÇÃO
Árvore + árvores,
A árvore + as árvores,
Uma árvore + umas árvores,
Outra árvore + outras árvores,
Certas árvores + várias árvores,
Quantas árvores + tantas árvores,
Muitas árvores + todas as árvores,
Árvores e arvoredos verdes =
Respiração natural.
Poucas árvores - nenhuma árvore,
Nenhumas árvores - nenhuns arvoredos verdes =
Respiração nuclear.
Braga, 21 de Março de 1985
118 Henrique Barroso
FLORESTA
Anda por aí um polvo
Mui nobre e bem cabeçudo
De tentáculos taludos
Que escorregam finamente
E com íman nas ventosas
Por cimento só gulosas...
Mas a bolsa do ferrado
Já não turva todo o lado!
Braga, 14 de Outubro de 2001
121Pondras de Pedras Soltas
SOUFFRANCE
Pauvre émigré!
Il faut partir
Pour obtenir
Son salaire
Solitaire
Sans salir
L’humanité.
Pauvre garçon
Qui se couche tard
Et se lève de bonne heure
Pour donner à son patron
Le bonheur!
Coimbra, 22 de Março de 1982
122 Henrique Barroso
ABALO PROFUNDO
A morte sufoca-me
Ao ver partir os Amigos…
E não é por acreditar nos castigos
Do Além
(Que não existem)
Mas por sentir que a minha vida
Começa a desmoronar-se aqui
Qual velha casa granítica
Sujeita à erosão
Pedra após pedra
Se desgasta para sempre!…
Coimbra, 1 de Fevereiro de 1983
123Pondras de Pedras Soltas
DESESPERO
Não sei se continuar a viver
Se parar com a vida…
É que a sociedade me arranca
O fígado sem cessar…
Fazendo da minha
Uma dor mais profunda ainda
Que a de Prometeu agrilhoado…
E nem sequer fui eu
Quem o fogo deu
Aos homens!…
Braga, 1 de Dezembro de 1983
124 Henrique Barroso
DOR CONSTANTE
Hoje está um dia cheio de sol e de luz
E o meu coração
Cheio de mágoa e de escuridão…
Porquê?
Só sei que vivo numa sombra
Semelhante à noite sem luar e sem estrelas…
Sou um nada que é qualquer coisa!…
Não sou o que sou
Mas gostava de ser aquilo que sou
Porque sou
E porque só assim a Vida me riria!…
Braga, 2 de Dezembro de 1983
125Pondras de Pedras Soltas
MORS MEI
Aquele dia
Cinzento e frio
Sentiu
Morrer-me.
Solidário
Em vão
Tentou
Aquecer-me.
Inerme
Cada vez mais gélido e frio
Ali ficou
Hirto
Aquele corpo
Naquele dia
Frio…
Braga, 25 de Maio de 1993
126 Henrique Barroso
TEMPUS FUGIT I
Esta sensação e realidade de vida
Provisória
Nesta fase do meu percurso
Acrescida da fuga galopante
Do tempo
Está a sepultar-me
Paulatinamente
Todos os dias.
Às vezes até julgo estar
Do outro lado…
Por favor, Tempo,
Pára!!!!!!!!!!!!!
Preciso de respirar.
Braga, 5 de Julho de 1995
127Pondras de Pedras Soltas
DIREITO
Estar triste…
É um direito que se tem.
Negar-se-lho
É ficar-se ainda mais triste.
Braga, 8 de Fevereiro de 1996
128 Henrique Barroso
TEMPUS FUGIT II
Está-me a fugir o tecto…
E uma casa sem tecto
Já não é uma casa…
Apenas paredes
Fragilizadas
Cada vez mais
Pelas intempéries
E que aos poucos
Se vão transformando
Num amontoado
Caótico…
Até se unirem
De novo
Ao Princípio.
Braga, 13 de Março de 1996
129Pondras de Pedras Soltas
DESORIENTAÇÃO
Já não sei rir.
Já não sei sentir.
Já não sei ser.
Então que fazer?!…
Braga, 5 de Março de 1997
130 Henrique Barroso
ESSÊNCIA DE CRISTAL
Como o copo de cristal
Que me escorregou da mão
E se estatelou no chão
Desfazendo-se em pedaços,
Assim a minha essência
Me escorregou do meu ser
E se estatelou no ter
Desfazendo-se em pedaços.
Braga, 15 de Março de 1997
131Pondras de Pedras Soltas
FORÇAS DA NATUREZA
Com um esforço titânico
(De que até eu próprio me admiro)
Reconstruo
Todos os dias
A minha casa.
Porém na manhã seguinte
(Não consigo saber porquê)
Vejo que os ventos deixaram
De novo
O seu rude rasto.
Braga, 5 de Julho de 1998
133Pondras de Pedras Soltas
PONTE DE PESADELO
(às vítimas da ponte de Entre-os-Rios)
Também a alma minha
Caiu com o pilar
E a corrente do rio
Arrastou-a prò mar.
Ao que a encontrar
Pede-se o favor
Pra acalmar o horror
De a repor no lugar.
Se não, atirem flores
Muitas… pra se evolar!
Braga, 11 de Março de 2001
137Pondras de Pedras Soltas
SER COMPLETO
Estou a ficar
Muito paulatinamente
Inteiro.
Porém também quero
Muito veementemente
Ser completo.
Só então poderei
Definitiva e eternamente
Fazer parte da Unidade…
Braga, 24 de Outubro de 1996
138 Henrique Barroso
VENTO SUÃO
Nunca pensei
Que o deserto fosse tão grande…
E que rendesse mesmo tanto!…
A sua travessia
Tem por isso sido
Mesmo terrivelmente terrível…
Só para os falcões
É que deve ter sido
Mesmo reconfortantemente reconfortante!…
Será que aquilo
Além
São mesmo palmeiras?
Não me digas que o oásis
Está a querer reaproximar-se
Mesmo de mim?!…
Braga, 28 de Novembro de 1996
141Pondras de Pedras Soltas
EPIGRAMA1
(aos Timorenses)
Pra sentir isto, quase vislumbrei Cerbère:
De boas intenções está esta Terra cheia!
Olhe-se só prà intervenção europeia
Em defesa da causa do povo maubere!…
Braga, 9 de Fevereiro de 1997
1 Este poema foi publicado, pela 1.ª vez, no Diário do Minho (pág. 3 da edição n.º 24388), de 16 de Maio de 1997, aquando (e a propósito) da notícia sobre a sessão solene de homenagem ao timorense José Ra mos Horta (Prémio Nobel da Paz) realizada, no dia anterior, na Reitoria da Universidade do Minho.
142 Henrique Barroso
CONSTATAÇÃO
Quando os neurónios
Na minha cabeça
Voltarem aos seus lugares
Voltará
Também ao seu
O meu coração.
Braga, 16 de Março de 1997
143Pondras de Pedras Soltas
NIRVANA
Só é tudo
Quem é nada.
Só é tudo
Quem não tem nada.
Só é tudo
Quem não quer nada.
Queria ser nada.
Queria não ter nada.
Queria não querer nada.
Braga, 20 de Março de 1997
144 Henrique Barroso
CHUVA COM SOL
Vindo
Lentamente
Pela chuva
Apanhando Sol
Cheguei
Enxuto.
Braga, 25 de Março de 1997
145Pondras de Pedras Soltas
NAVEGANDO
Ah! Quem me dera
Ser
Nada
No meio de tudo!
Braga, 27 de Março de 1997
146 Henrique Barroso
DESVALORIZAR
Estou a aprender
A conjugar
O(s) verbo(s) (des)valorizar.
As formas simples
Do indicativo já estão.
Faltam as do conjuntivo
E as ditas nominais
Também simples.
As formas compostas e perifrásticas
E respectiva recombinação
Fazem também parte da conjugação.
Só depois de as conhecer a todas
De cor e salteado
É que poderei ser
(Tenho a certeza)
148 Henrique Barroso
GESTÃO IMPOSSÍVEL
Tem sido difícil
Gerir
Esta cabeça. Mas
Apesar de titânica
Esta luta
Vou conseguir.
Braga, 24 de Maio de 1997
149Pondras de Pedras Soltas
BARRELA
O egoísmo
Tem o mundo
Envenenado.
Desta servidão
Exige-se
Já
A libertação!
Braga, 21 de Novembro de 1997
150 Henrique Barroso
ALQUIMIA DO AMOR
Abre-me esse coração
E a tua vida
Fluirá
Como o ribeiro
Incipiente e cantante
Despoluído e arejado
Ainda
Lá no alto da montanha!
Braga, 2 de Fevereiro de 1998
151Pondras de Pedras Soltas
ANSIEDADE
Entende
Que todos somos diferentes
Ou para o bem e/ ou para o mal!
Percebe
De uma vez por todas
Isso!
Só assim alcançarás
O que nos move e projecta:
A serenidade.
Braga, 12 de Outubro de 1998
156 Henrique Barroso
L’INDICIBLE
Achando-me eu na margem esquerda
Do rio da minha aldeia
E percorrendo em pensamento
O seu leito
Da nascente à foz
Vi
Reflectida nas suas águas
A minha outra imagem!…
Imaginei
O sepulcro do meu corpo e
O paraíso da minha alma…
Contemplei
Distorcido pelo correr das águas
O momento jamais visto
Da dramática despedida
Das minhas duas metades!…
Braga, 12 de Março de 1985
159Pondras de Pedras Soltas
JARDIM IBÉRICO
(aos meus Pais)
Quis o destino que, um dia,
num jardim peninsular,
um cravo espanhol e um rosa portuguesa
se encontrassem,
se conhecessem,
se enamorassem,
se amassem e
se unissem.
Da união dos respectivos androceu e gineceu
um fruto tão precioso nasceu
que até os habitantes do Olimpo,
que se alimentam de néctar e ambrósia,
o chegaram a invejar.
Foi um fruto plural:
dois cravos mais uma rosa e mais dois cravos.
Que incomparável simetria!
Até parece projecto divino!…
160 Henrique Barroso
Porque tinha de ser, estas duas flores desafiaram a Fortuna,
e venceram. No entanto, a educação dos seus rebentos
conheceu muitas dificuldades, sobretudo materiais: neste
jardim, não cheirava a dinheiro e a solidariedade era uma
palavra que não fazia parte do léxico das flores das classes
mais abastadas.
Hoje – devido à inexorabilidade do tempo –, já no seu Ou-
tono, e porque nunca treparam ou sequer fizeram sombra
às suas vizinhas, podem
contemplar – de ca beça erguida –, com satisfação e prazer
– espelhados, como bem se pode ver, no brilhozinho dos
olhos –, o labor incansável das suas cinco criaturas.
Braga, 13 de Março de 1985
161Pondras de Pedras Soltas
INCESTO LEXICAL
Um dia travou-se uma tal querela entre a mãe Palavra e o filho Pa lavrão que o/a resultado/resolução dessa contenda foi tão inespe rado/a que acabou por fa zer História. Ouçamos algumas (as princi pais) passagens dessa disputa:
A Palavra para o Palavrão:
– Afasta-te de mim, porque putrefazes os meus tão sensí-
veis morfemas!
E o Palavrão, ofendidíssimo, arremeteu:
– Olhem só para esta tipa, esta descarada, dizer
que eu cor rompo as suas fibrazinhas morfemáticas!…
Ora, digam lá, senhores usuários de nós ambos, se aquela
fu lana tem alguma razão para estar pr’ali a blasfemar desta
maneira?
Parece que já se esqueceu de que eu – à
semelhança, aliás, da deusa Atena – sou um dos seus
derivados, possuindo a mais do que ela apenas o sufixo -ão
(por isso, sou macho!…). Mas penso que isto nada tem de
mal.
162 Henrique Barroso
E a Palavra:
– De facto, não é isso que me põe em putrefacção.
É, sim, essa tua carga pejorativa, que encerras de tal manei-
ra dentro de ti, que faz arrepiar até os ouvidos menos pios!
E o Palavrão:
– Minha querida mamã, essa conotação existe de facto,
mas não sou eu o culpado. São, sim, os utentes menos poli-
dos que, anarquicamente, assim me des prezam…
Então, a Palavra, mais reconciliada, pediu
desculpa ao seu querido filho e, beijando-o incestuosa-
mente, deu à luz mais um derivado de uma sen sibilidade
autofalante que até os deuses, no leito nupcial, o articulam
deglutidamente: a(s) Palavrinha(s)!…
Braga, 13 de Março de 1985
163Pondras de Pedras Soltas
CROMOGÉNESE
Um gene apaixonou-se
Por um cromossoma
À primeira vista.
Com o decorrer da relação
Já amigos
De verdade
Sempre que chispavam
Um no outro
Diziam-se:
– «Ai este teu gene!…»
– «Ai este teu cromossoma!…»
E olhando-se bem fundo
Nos olhos
Sorriam… marotos!…
Braga, 21 de Maio de 1998
165Pondras de Pedras Soltas
Posfácio
ALGUMAS ESPÉCIES DE MÚSICA
Como em Alice in Wonderland, onde a partir de certa altura se
pode ouvir Blue Moon mas sem a certeza auditiva rejeitada pelo
seu ardiloso desequilíbrio, Pondras de Pedras Soltas, a começar pelo
título, toca em coisas que não são de todo unas com o seu nome.
Fá-lo porém sem cabala nem endrómina, estratagema ou anzol. A
música é inequívoca e de há muito mandada, quadrada – «Também
a alma minha / Caiu com o pilar / E a corrente do rio / Arrastou-a prò
mar.» (p. 133). A incongruência afi-gura-se que resulta de convicções
simples. O autor não é o peixe fino que no ditado apes soado
morre pela boca na virtuosa companhia de Oscar Wilde. O mundo
e as coisas não são factos de proximidade, sem abuso de alguma
moral poética, e a palavra ‘poesia’ designa uma plenitude, de serviço
justamente a apontar uma moral em falta.
166 Henrique Barroso
Por um lado, há a natureza, e logo não há pedras que não sejam
ponte ou astros que não sejam pondras; pode eduzir-se na reali dade
o Criador das criaturas, e não tanto porque sejam a sua lín gua, mas
porque a Metáfora Grande existe por um hífen: «Todos os asteróides
/ Todos os cometas / Todas as estrelas / Todos os planetas / São as
pondras / Do Infinito… // Do Criador / Todas as criaturas / São o traço
de união…» (p. 48).
Por outro lado, há o contraste humano, notavelmente excep tuado
da Criação, o qual exige o poeta, por isso que não consente o hífen.
O poeta, que almost cut his hair, como David Crosby ameaçara fazer
em situação de ofensa do estado à solidariedade humana, observa
o cinismo, a incoerência, o inconsequente, o lugar como espaço de
factos de imediação: «Como se de autómatos se tratasse / Agimos //
Como se de potências rivais se tratasse / Comportamo-nos // Como
se de seres heterogalácticos se tratasse / Comunicamos // Como se
de ser assim mesmo tivesse / Vamo-nos suportando // Aqui onde
trabalhamos.» (p. 111); «Anda por aí um polvo / Mui nobre e bem
cabeçudo / De tentáculos taludos / Que escorregam finamente / E
com íman nas ventosas / Por cimento só gulosas... // Mas a bolsa do
ferrado / Já não turva todo o lado!» (p. 118); «Pra sentir isto, quase
vislumbrei Cerbère: / De boas intenções está esta Terra cheia! /
Olhe-se só prà intervenção europeia / Em de fesa da causa do povo
maubere!…» (p. 141). O mundo, enfim, pede barrela: «O egoísmo
/ Tem o mundo / Envenenado. // Desta servidão / Exige-se / Já / A
libertação!» (p. 149).
E o autor? Esse tem fases e as fases fazem figuras. Cedo a do poeta,
que não gostaria de ficar por «completamento pontual» (p. 113), e
167Pondras de Pedras Soltas
outras logo, e quase sempre com predilecção óbvia pela adição, pela
multiplicação, pela progressão geométrica, que não raro transmuda
os simples factos algébricos. Trata-se da procria ção inerente à beleza
inerente, que sucede quando o poe-ta é – ou seja, quando lança mão
da harpa, a seu ver «como Orfeu», e entra em estado de continuidade
e transcendência, ao caso por um ane xim automobilístico: «Orfeu /
Embriagado / Divinalmente / Liga-me a chave / D’ignição…» (p. 55).
Começa no acasalamento, no cat looking for his kitty, no H2omem,
ou no namoro cromossomá tico, nalguma funny valentine que faz
sorrir com o coração, e pros segue. Na frase dos poemas tem corres-
pondência na forma exple tiva frequente.
Os exemplos seriam muitos, de ciência exacta (e aqui menos
exacta) que tende à perfeição intrínseca dos números e da língua
considerada pelas raízes. Raiz é, de resto, o termo assíduo, escru-
puloso e cumpridor, da genética à morfologia, da morfologia à
ál gebra. Entre «Números Perfeitos» (p. 90), «Perfeição» (p. 65) (que
trata de começar num pombo e numa pomba), «Cromogénese» (p.
163) e «Raízes» (p. 63), escolho este, que faz vibrar a álgebra: «A raiz
quadrada / Do homem / É a mulher. // A raiz cúbica / Dos pais / São
os filhos. // E os avós são / Dos netos / Os números primos…».
A mesma insistência na raiz pode remontar às origens divi-sa das
no «ritual», e ao símbolo discernido na realidade, mas infeliz-
-mente em jeito de completamento pontual. Surge, não obstante,
um contraste bem marcado com os «autómatos» referidos: «To-
dos / Naturais e forasteiros / À volta da mesma mesa / De madeira
improvisada / E quilometral / De alvo linho de pura teia coberta / E
guarnecida com arroz carne e pão / Vivemos e saboreámos / Como
na origem dos tempos / O símbolo da comunhão: / Eis o milagre de
168 Henrique Barroso
S. Sebastião.» (p. 69). A poesia ajuda-se, parece asse verar esta, com o
senso comum: «Há coisas que são / Do senso comum: / Não se precisa
/ Nem de saber técnico / Nem de saber científico / Nenhum!» (p. 112).
Para quê o poeta? Donde surge a sua cara sem fronteiras que
estranhamente procura a remissão poética na ciência e no senso co-
mum? A crer, na transformação acontecida e desoriginante do eu (ou
poeticamente da «jactância») em pluralidade desestimada de factos
de proximidade, que vão cumprindo a sua Noche de Ronda, posto
no poeta prospere como perdida, e logo idealizada, uma «essência
de cristal» (p. 130): «Como o copo de cristal / Que me escorregou da
mão / E se estatelou no chão / Desfazendo-se em pedaços, // Assim
a minha essência / Me escorregou do meu ser / E se estatelou no ter
/ Desfazendo-se em pedaços.»
A avidez de posse, estigmatizada a servir de escarmento moral,
não oculta que a demanda de uma coisa chamada poesia, confun-
dível embora com um «lampião socrático» (p. 40), arranca do «eixo
partido» (p. 37) ou de um estado de Prometeu agónico, de Tântalo
ou de Sísifo. O poeta cria-se daí, com os meios que tem e ainda, dir-
-se-ia, com os que não tem. Por vezes perspectiva a hi pótese taoísta
– «Só é tudo/ Quem é nada.» (p. 143) –, por vezes cede à cisão (ou
acede à visão), ainda que não dos números imper feitos mas das suas
«metades»: «Achando-me eu na margem es querda / Do rio da minha
aldeia / E percorrendo em pensamento / O seu leito / Da nascente
à foz / Vi / Reflectida nas suas águas / A minha outra imagem!…//
Imaginei / O sepulcro do meu corpo e / O paraíso da minha alma /
Contemplei / Distorcido pelo cor rer das águas / O momento jamais
visto / Da dramática despe dida / Das minhas duas metades!…»
(p. 156). O que há de menos grato na pluralidade esparsa cuida-se
169Pondras de Pedras Soltas
poeticamente acessível pela reflexão: «O Reverso ri-me.» (p. 155).
Percebe-se que o eu disperso em proximidades que se reluta a
considerar não-afins não deve ser restos, mas antes qualquer coisa
como «testemunhos vivos» (p. 15). A melodia mais pela proximidade
que pela afinidade – esse so what – é uma hipótese quase inverosí-
mil. A poesia de Henrique Barroso procura apagar a diferença entre
o que resta de ser e os fragmentos tão verdadeiros como étimos de
um alfabeto cristalizado em poesia, ou seja, nos autênticos diagra-
mas com que decerto o leitor se surpreendeu. Um pombo e uma
pomba, bicada a bicada, geram muitos tro chos, e isso é beleza; a
«Incomparável Grandeza / do Sameiro» (p. 47) há-de volver-se em
stairway to heaven.
Referências e alusões:
Alice in Wonderland – Bill Evans Trio, Sunday at the Village Van-
guard.
Pela boca morre o peixe (e também Oscar Wilde) – Fernando Pes soa,
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação.
Factos de proximidade – Paul de Man, Allegories of Reading.
Almost Cut my hair – Crosby, Stills, Nash & Young, Déjà Vu.
Cat looking for his kitty – Lovin’ Spoonful, Summer in the City.
H2omem – Clã, Lustro.
My Funny Valentine – Chet Baker, Chet Baker Plays and Sings the
Great Ballads.
170 Henrique Barroso
Minha Cara sem fronteiras – António Variações, Dar & Receber.
Noche de Ronda – Charlie Haden, Nocturne.
So What – Miles Davis, A Kind of Blue.
Stairway to Heaven – Led Zeppelin, Remasters.
S. Salvador (Viseu)/ Braga, Setembro/
Outubro 2001
Américo António Lindeza Diogo
171Pondras de Pedras Soltas
Índice
PÓRTICO
Sphragis ........................................................................... 13
A magia do livro ............................................................ 14
O meu mundo ............................................................... 15
Poeta e Poesia................................................................ 16
Buraco negro ................................................................. 17
SER HUMANO
Interrogação eterna .................................................... 21
Essência ........................................................................... 22
Anthropos ....................................................................... 23
Efémero............................................................................ 24
Molécula .......................................................................... 25
Feto ................................................................................... 26
Perturbação .................................................................... 27
Envelhecimento ............................................................ 28
Amartagem .................................................................... 29
Revolução ....................................................................... 30
Desintegração ............................................................... 31
Cinismo ............................................................................ 32
172 Henrique Barroso
RUMO(S)
Percurso ........................................................................... 35
Ser inteiro I ...................................................................... 36
Saber de experiência feito ........................................ 37
O Amigo........................................................................... 38
Ser inteiro II .................................................................... 39
Lampião socrático ........................................................ 40
Essência ritmada ........................................................... 41
A decisão ......................................................................... 42
Medos ............................................................................... 43
IGNOTO DEO
Reflexão ........................................................................... 47
Traço de união ............................................................... 48
Visão ubíqua .................................................................. 49
Dia de Todos-os-Santos.............................................. 50
dEUSES
Cruz ................................................................................... 53
Mors/Amor ..................................................................... 54
Sopro ................................................................................ 55
Musas ................................................................................ 56
Sísifo incansável ............................................................ 57
TERNURA
Mãe .................................................................................... 61
Retrospecção ................................................................. 62
Raízes ................................................................................ 63
Pai ...................................................................................... 64
Perfeição .......................................................................... 65
Natal .................................................................................. 66
173Pondras de Pedras Soltas
Le bonheur matinal ..................................................... 67
Química............................................................................ 68
Comunitarismo ............................................................. 69
EROS
Nós ..................................................................................... 73
TU I ..................................................................................... 74
Magia ocular .................................................................. 75
TU II ................................................................................... 76
Presença .......................................................................... 77
Cupidentim .................................................................... 78
Banquete ......................................................................... 79
Segredo ........................................................................... 80
Aniversário em espiral ................................................ 81
Solicitude ........................................................................ 82
Ruhe .................................................................................. 83
Tranquilidade ................................................................. 84
Aniversário em sintonia ............................................. 85
Impulso vital .................................................................. 86
Aniversários .................................................................... 87
Cada vez maior .............................................................. 88
B.I. q.b. ............................................................................. 89
Números perfeitos ....................................................... 90
SAUDADE
Epitáfio ............................................................................. 93
Unidade ........................................................................... 94
Simpático sorriso .......................................................... 95
Aparição .......................................................................... 96
H2O..................................................................................... 97
174 Henrique Barroso
Dedicação modelar ..................................................... 98
Uma via sacra ................................................................. 99
BAGATELAS
Contrato-promessa compra e venda ..................103
Descarga ........................................................................104
Ego picado ....................................................................105
Cruzamento ..................................................................106
Ponta ...............................................................................107
Incapacidade ...............................................................108
As quatro estações .....................................................109
Mulher-a-dias ..............................................................110
Local de trabalho ........................................................111
Senso comum ..............................................................112
Jactância ........................................................................113
VERDE
Adição vs subtracção ................................................117
Floresta ..........................................................................118
ECLIPSE(S)
Souffrance .....................................................................121
Abalo profundo ..........................................................122
Desespero .....................................................................123
Dor constante ..............................................................124
Mors mei ........................................................................125
Tempus fugit I ..............................................................126
Direito .............................................................................127
Tempus fugit II .............................................................128
Desorientação .............................................................129
Essência de cristal ......................................................130
175Pondras de Pedras Soltas
Forças da Natureza ....................................................131
Pó .....................................................................................132
Ponte de pesadelo .....................................................133
AURORA(S)
Ser completo................................................................137
Vento Suão ...................................................................138
LIBERTAÇÃO
Epigrama .......................................................................141
Constatação .................................................................142
Nirvana ...........................................................................143
Chuva com sol .............................................................144
Navegando ...................................................................145
Desvalorizar ..................................................................146
Gestão impossível ......................................................148
Barrela ............................................................................149
Alquimia do amor ......................................................150
Ansiedade .....................................................................151
EPÍLOGO
Espelho ..........................................................................155
L’indicible ......................................................................156
DELÍRIO POÉTICO-NARRATIVO
Jardim ibérico ..............................................................159
Incesto lexical ..............................................................161
Cromogénese ..............................................................163
Posfácio ................................................................................165
Índice ...................................................................... 171
177Pondras de Pedras Soltas
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