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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social Marina Andrade Câmara IMAGENS DO TEMPO: a inoperância como resistência na arte contemporânea Belo Horizonte 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

Marina Andrade Câmara

IMAGENS DO TEMPO: a inoperância como resistência na arte contemporânea

Belo Horizonte

2012

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Marina Andrade Câmara

IMAGENS DO TEMPO: a inoperância como resistência na arte contemporânea

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social “Interações Midiáticas” – Linha de pesquisa “Linguagem e mediação sociotécnica” – da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito para obtenção do título de Mestre em Comunicação Social. Orientador: Eduardo Antonio de Jesus

Belo Horizonte 2012

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Câmara, Marina Andrade

C172i Imagens do tempo: a inoperância como resistência na arte contemporânea /

Marina Andrade Câmara. Belo Horizonte, 2012.

116f.: il.

Orientador: Eduardo Antonio de Jesus

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.

1. Tempo (Filosofia). 2. Arte moderna – Séc. XX. I. Jesus, Eduardo Antonio

de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-

Graduação em Comunicação Social. III. Título.

CDU: 115

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Marina Andrade Câmara

Caixa baixa Centralizado IMAGENS DO TEMPO:

a inoperância como resistência na arte contemporânea 3 cm 2 cm

Recuado a 7 cm

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social “Interações Midiáticas” Linha de pesquisa “Linguagem e mediação sociotécnica” da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito para obtenção do título de Mestre em Counicação Social.

__________________________________

Eduardo de Jesus (Orientador) – PUC Minas

____________________________________ Julio Pinto – PUC Minas

____________________________________ César Guimarães – UFMG

Belo Horizonte, 31 de agosto de 2012.

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Ao João, com infinito amor.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho é dedicado ao João, com quem descobrir o amor e a vida é pra mim a maior dádiva do mundo. Agradeço a ele – ainda que todo agradecimento do mundo pela sua contribuição neste trabalho sejam insuficientes – por alimentar, incondicionalmente, todos os meus sonhos. Agradeço imensamente ao vovô Gão – em memória – e à vovó Guida, de quem a generosidade tornou possível que eu cursasse este mestrado. À Manse e ao Túlio, formas de vida de tanta ternura e amor. Agradeço pela dedicação e por tantos preciosos ensinamentos, especialmente pela inspiração artística da minha amada mãe. Ao Zino, à Jaque, ao Rafa e ao Fred que me apoiaram e me deram afeto sem medida. É na determinação de vocês que me inspiro. Ao meu irmão Felipe, pelo seu amor e doçura imensuráveis. À Rafa, pela preciosa presença em nossa família. Aos meus sogros Mirian e Adriano, pela imensa força que me dão e transmitem a todos. Aos queridos cunhados Guinho e Ju, Pel e Roberta, que compartilham com tanta alegria e entusiasmo cada conquista minha. À todas as minhas tias e aos meus tios, pelo apoio e carinho. Às minhas primas e primos pela tão grande alegria. Aos verdadeiros amigos – especialmente ao Dani Toledo – e às novas amizades com que fui presenteada ao longo do destes últimos dois anos. Aos professores do mestrado e, especialmente ao Julio Pinto por ter, não só aceito meu pedido de transferência, mas por acolher a mim e aos meus vários devaneios, tendo, por fim, declarado “que bom que aceitamos sua transferência”. Como foi importante pra mim ouvir isso! Ao Eduardo de Jesus, meu orientador, pelas importantes indicações; e ao César Guimarães, pela enorme contribuição. Obrigada por participarem desta minha busca.

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A ingaia ciência

A madureza, essa terrível prenda que alguém nos dá, raptando-nos, com ela, todo sabor gratuito de oferenda sob a glacialidade de uma estela,

a madureza vê, posto que a venda interrompa a surpresa da janela, o círculo vazio, onde se estenda, e que o mundo converte numa cela.

A madureza sabe o preço exato dos amores, dos ócios, dos quebrantos, e nada pode contra sua ciência

e nem contra si mesma. O agudo olfato, o agudo olhar, a mão, livre de encantos, se destroem no sonho da existência.

(Claro Enigma, Carlos Drummond de Andrade, 2008)

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RESUMO

A presente dissertação corresponde a um exercício de identificação, por meio da

arte contemporânea, de modos de resistência à preponderante representação

temporal que temos hoje: uma sequência linear causal e homogênea chamada

história, promovida pela anulação da dádiva. Se a arte é capaz de resistir ao hiato

formado entre a nossa experiência e as representações do tempo que excluem seu

caráter múltiplo, no qual a repartição “passado, presente e futuro” inexiste, essa

resistência se dá pelo exercício, por meio de propostas estéticas, de uma

inoperância sem fins de poder. A partir dos problemas estéticos de natureza política

trazidos pelas obras aqui analisadas, recuperamos operadores encontrados por

meio de incursões teórico-especulativas no âmbito da filosofia sobre a questão do

tempo, de cujas perspectivas fazemos uso no intuito de expandir o horizonte das

análises empreendidas. Em um movimento anacrônico, verificamos as implicações

que conceitos desenvolvidos, por exemplo, contemporaneamente à criação da

cosmogonia judaico-cristã, produzem, todavia, ainda hoje. As obras analisadas são:

Song for Lupita (Mañana), The Loop e The last Clown, de Francis Alÿs; Confronto e

O Século, de Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado; Cosmococa, de Hélio Oiticica

e Neville D‟Almeida e Air-Cushioned Raid, de Anri Sala.

Palavras-chave: Experiência do tempo. Representação do tempo. Arte Contemporânea. Inoperância. Loop.

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ABSTRACT

This work is a proposal to identify, using contemporary art, ways of resistance

against the dominant temporal representation we have today: a linear sequence,

causal and homogeneous called history, which is promoted by the annulment of the

boon. If art is able to resist the gap formed between our experience and

representations of time which excludes its multiple character, in which the division

“past, present and future” does not exist, this resistance is consummated on the

exercise, by aesthetic proposals, of an ineffectiveness powerless finality. From the

aesthetic problems of a political nature brought by the works reviewed here, we

recovered operators found through theoretical-speculative incursions in the

philosophy sphere about the time issue whose prospects we use in order to expand

the horizon of the analyzes undertaken. In an anachronistic movement, we verify the

implications that concepts developed, for example, contemporaneously to the

creation of the Judeo-Christian cosmogony, produce, however, even today. The

works analyzed are: Song for Lupita (Mañana), The Loop and The Last Clown, by

Francis Alÿs; O Confronto and O Século, by Cinthia Marcelle and Tiago Mata

Machado; Cosmococa, by Hélio Oiticica and Neville D'Almeida, and Air-Cushioned

Raid by Anri Sala.

Keywords: Time Experience. Representation of time. Contemporary Art.

Ineffectiveness. Loop.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Francis Alÿs – Estudos de Song for Lupita, 1, 2 e 3 .................................. 30

Figura 2 - Francis Alÿs - The Loop, 1997 ................................................................. 36

Figura 3 - Francis Alÿs – frames de The Last Clown ................................................ 42

Figura 4 - Objetos de cena de O Século .................................................................. 51

Figura 5 - Frames espelhados de O Século .............................................................. 52

Figura 6 - Confronto .................................................................................................. 66

Figura 7 - Cosmococa - Program in Progress, CC1 Trashiscapes ............................ 84

Figura 8 - Cosmococa - Program in Progress, CC2 Onobject ................................... 88

Figura 9 - Cosmococa - Program in Progress, CC5 Hendrix-War ............................. 90

Figura 10 - Tlatelolco Clash, 2011 ............................................................................. 99

Figura 11 - Air-Cushioned Ride ............................................................................... 106

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LISTA DE ABREVIATURAS

I.e. – Isto é

TBA – Time Based Art

CC – Cosmococa

ACR – Air-Cushioned Ride

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 21 2 FAZENDO SEM FAZER ........................................................................................ 28 2.1 A inoperância cínica.......................................................................................... 32 2.2 Movimento circular ........................................................................................... 35 2.3 O que mantém o loop ........................................................................................ 39 2.4 The Last Clown e a inoperância da inoperância autêntica ............................ 41 2.4.1 In-economia .................................................................................................... 43 2.5 A relação entre espaço fechado e extracampo em TBA ................................ 44 3 INSTRUMENTOS DE INOPERÂNCIAS E RESISTÊNCIA .................................... 50 3.1 O Século ............................................................................................................. 50 3.2 Indiscernibilidade da tripartição temporal ...................................................... 55 3.2.1 A potente fraqueza dinâmica ......................................................................... 57 3.3 A representação da [i]mensurabilidade do tempo ......................................... 60 3.4 Resistência ........................................................................................................ 62 3.5 O blackout político de Confronto ..................................................................... 64 3.6 O desejo estéril .................................................................................................. 69 3.7 A História como res gestae .............................................................................. 80 3.8 Cosmococa – programa in progress ............................................................... 82 3.8.1 klēsis, Beruf .................................................................................................... 85 3.9 Graça, a dádiva soberana ................................................................................. 94 4 A PRESENÇA DA AUSÊNCIA .............................................................................. 97 4.1 A ausência imprescindível ............................................................................. 102 4.2 Música e tempo ............................................................................................... 104 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 111 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 113

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1 INTRODUÇÃO

Experimentamos o tempo, mas não temos a sua representação. Giorgio

Agamben (2000) 1 , apropriando-se desta ideia do linguista Gustave Guillaume,

apresenta construções de ordem espacial criadas para que fosse possível imaginar

formas para o tempo. A representação que rege hoje, com exclusividade, é uma

figura retilínea, uma sequência numérico-progressiva que simula uma evolução e um

desenvolvimento.

Existe uma incongruência – sobre a qual, aqui, dedicamo-nos – entre a

experiência que temos e a construção espacial adotada para a representação

temporal. Enquanto nossa experiência do tempo é absolutamente heterogênea, na

qual misturam-se as supostas repartições entre passado, presente e futuro,

coexistindo e tornando-se indistintas, as subdivisões criadas pela preponderante

representação temporal insistem em alocar, separada e sequencialmente, os

acontecimentos conforme os conceitos de antes, agora e depois. A organização que

determina esta regente representação subjaz as nossas vidas e nossa vivência do

mundo, que, por sua vez, tornou-se, conforme veremos, uma sequência de fazeres

inférteis, cíclicos ou, conforme profere o artista belga Francis Alÿs, fazeres que não

fazem.

Recorremos a conceitos do âmbito da filosofia a partir da solicitação dos

problemas estéticos das seguintes obras: Song for Lupita (Mañana) e The Last

Clown, de Francis Alÿs; Confronto e O Século, de Cinthia Marcelle e Tiago Mata

Machado; Cosmococa, de Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida, e Air-Cushioned Ride,

de Anri Sala. Verificamos que estas obras evocam a sensação do tempo de um

modo que resiste à ideia de linearidade, ao apontar, ora para a sua

heterogeneidade, ora para a sua problemática representação e suas graves

consequências.

Esta práxis indiferenciada (COCCIA, 2008) diz sobre uma profusão de fazeres

não consequentes de um desejo. Estes fazeres mecânicos, para os quais estas

obras nos chamam a atenção, há muito vem sendo usados como instrumento de

dissimulação e exercício do poder, simultaneamente. Os estudos filológicos de

Giorgio Agamben demonstram de que modo conceitos como a glória, o hōs me –

1 Tivemos acesso à edição italiana, cuja tradução do título seria: O tempo que resta. Um comentário à Carta aos Romanos.

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“como não” –, a graça e, por fim, a katargéō operam como legisladores da

genealogia teológica da economia e do governo, suspendendo, por sua vez, a lei,

i.e., a tornando inoperante com fins de um projeto de poder. São dispositivos que

caracterizam uma oportuna suspensão da vigência da lei para, justamente por meio

desta neutralização, ter ainda mais poder do que a própria lei, inclusive o poder de

suspendê-la e substituí-la.

Os operadores – que, como veremos, mais que operar, inoperam – glória,

graça e “como não” são emblemáticos no modo de instituir a lei em uma aparente

suspensão de seu uso. Tais conceitos, quando colocados em prática, articulam-se

diretamente à heterogeneidade do tempo messiânico como um profícuo modo que o

judaísmo teria encontrado para aproximar a experiência religiosa da experiência

humana do tempo.

A graça (charis) garante a manutenção do círculo ritualístico da dívida pela fé

(pistis – fides). A fé salva e torna não-devedores aqueles que depositam sua con-

fiança no messias, permitindo o prosseguimento do ciclo ritualístico da dívida em si.

Conforme nos indica Giorgio Agamben (2000), no intuito de restituir à fé a noção de

prestação gratuita e fazer com que ela pudesse cumprir sua função de salvação,

São Paulo vinculou ao sentido da fé, a graça, ou seja, a gratuidade. Assim,

aparentemente, não estaria endividado quem depositasse sua fé, sua con-fiança em

outrem. Vale notar que, assim, a dívida é colocada como algo expressamente

inerente à todos, enquanto a graça seria apenas uma forma falaz de,

aparentemente, arrefecê-la. A graça é, portanto, o operador que torna

enganosamente inoperante o débito no círculo ritualístico da dívida. Assim, qualquer

pretensão de contraprestação é excedida pela graça, já que ela é o que excede, a

exceção, não tem preço. A graça coloca-se assim no papel da lei, ou de uma

suspensão desta, em um movimento que é típico da soberania.

Vejamos o similar movimento realizado por outro [in]operador, a glória. Na

teologia, o eterno movimento circular representa a perfeição e a aproximação do

divino na forma da absoluta imobilidade. Este movimento “imóvel”, idêntico e

imutável obnubilaria o ócio que instaurar-se-ia após o Juízo Final, não fosse pela

oportuna substituição do exercício de governo – que, naquele contexto, não mais

seria necessário – pela glória que, assim, ocupa o lugar daquilo que é inerente à

natureza humana, o ócio. Este, por sua vez, não deve jamais ser verificado pois ele

indica a não necessidade do governo como exercício do poder. O ócio é a

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inoperância autêntica, é o vazio que deve ser substituído pela glória para manter o

funcionamento da máquina de poder. A glória é, portanto, um dos operadores que

fazem com que o poder não desapareça, mas prevaleça na forma do seu não

exercício. Sabemos, porém, que independentemente de ser ou não obnubilado por

este ou aquele [in]operador, o poder prescinde de sua aplicação. Seu exercício é

realizado a partir, simplesmente, de sua existência.

A teoria derridiana (DERRIDA, 1996) sobre o círculo ritualístico da dívida diz

sobre as trocas que configuram o círculo econômico. Estas trocas, não obstante

sejam um movimento repetitivo de endividamento e pagamento que, por sua vez,

endivida ad infinitum, nos fazem acreditar que, ao fazê-las, deslocamo-nos,

evoluímos em direção a alguma melhoria, a algum aprimoramento. Logo, o círculo

ritualístico da dívida traveste-se na forma de uma linha, ou melhor, de uma seta que

aponta para o futuro. Um modo exemplar para compreendermos este movimento

são as mensurações temporais na forma dos dias e meses, que se repetem,

conforme se dava na Grécia, enquanto os anos, por sua vez, avançam em uma

sequência numérico-progressiva, segundo o nascimento de Cristo, o messias.

Esta dissimulação do deslocamento se dá a partir do uso de uma série de

suspensores conceituais que operam por meio da neutralização de significados, em

vista de um projeto de exercício de poder. É uma espécie de inoperância cínica da

qual valem-se os discursos dominantes, justamente para permanecerem dominantes

sem, contudo, transparecê-lo, para que não seja flagrante o mecanismo que tentam

obnubilar.

Partimos, em contraponto, do pressuposto apresentado por Agamben (2008),

em momento distinto, segundo o qual a tarefa da verdadeira revolução é, antes de

“mudar o mundo”, “mudar o tempo”, e, além disso, da afirmação deleuziana de que

“criar é resistir”. Verificaremos, pois, como foram usados os conceitos que articulam

a inoperância para compreender de que modos a arte produz outras formas de lidar

com o tempo, identificando a quais estratégias de poder ela resiste e, finalmente,

como ela, de fato, inopera. Tendo em vista que a inoperância é tratada enquanto

estratégia de poder, podemos ler, nas disposições artísticas, suas formas de se

contrapor a estas estratégias.

Algumas obras, como as que aqui trazemos, conseguem exercer,

esteticamente, um modo de resistência a partir da instituição de irrupções nos

círculos ritualísticos de que fala Derrida. Se neles ocorrem as trocas que

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propulsionam a economia, também as equiparações entre significante e significado

constituem, por sua vez, trocas e simulam, no ritual circular, a ideia de um

deslocamento.

O artista Francis Alÿs, em suas obras em loop, traz ações aparentemente

banais do cotidiano, precisando, na sua repetição, a práxis indiferenciada de que

nos fala Emanuele Coccia e, ao mesmo tempo, emperrando o seu prosseguimento.

Ou seja, Alÿs, ao dar a ver que a profusão de fazeres – em que se transformou a

natureza humana – não opera um deslocamento, como querem os [in]operadores à

serviço de projetos de poder, impede que tal profusão prossiga, transformando-a,

pelo loop, em um momento infinito de pura repetição.

Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, em O Século, 2011, realizam um

interessante movimento de espelhamento temporal, explorando questões

relacionadas a conceitos como acúmulo e dispêndio. Editado com um uma cisão que

divide o vídeo em duas partes com durações iguais, se tem um blackout que marca

tal cisão e a partir do qual o mesmo registro mostrado até então é repetido em flip2.

A obra demonstra que o único deslocamento que a práxis indiferenciada poderá

promover é o seu movimento cíclico, ou seja, sua repetição, tal qual uma

incapacidade de prosseguir que é inerente ao seu funcionamento.

Em Confronto, 2005, Cinthia Marcelle interrompe dois fluxos: o da vida e o do

espectador, em uma legítima ação política de pura inoperância que se transforma

em pura potência, um autêntico vir-a-ser.

A Cosmococa – CC –, 1973, com seu aspecto lúdico, firma a profusão de

fazeres inférteis, substituindo a lógica linear por momentos de “desperdício” de

tempo. É verificada por Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida a necessidade da

restituição do ócio, que, segundo Coccia, fora extirpado dos homens paralelamente

à transformação do tempo em história. Os “quasi-cinema” a que assistimos nas CCs

são narrativas fragmentadas que se opõem diretamente à linearidade das narrativas

cinematográficas clássicas, às histórias.

Finalmente, Anri Sala, em sua obra Air-Cushioned Ride, 2006, faz com que a

pura potência opere por aquilo que o artista atribui à música, que seria, segundo ele,

capaz de resistir a significados. Entendemos que se trata da música conforme

utilizada em seus trabalhos e que a resistência infligida opera em relação à

2 Este efeito, em edição de vídeos, equivale ao espelhamento de um ou mais frames do vídeo, no sentido oposto, horizontal ou verticalmente.

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exclusividade de um único significado dado. A música que Sala escuta neste vídeo é

barroca, polifônica, remetendo à multiplicidade, que, por sua vez, se torna ainda

mais rizomática quando sofre a interferência de outras músicas e sons que se

emaranham no tempo e no espaço, à medida em que o artista se desloca. Anri Sala,

ao lançar-se no devir das ondas sonoras que se interpelam e se sobrepõem, indica

que é no tempo da experiência que se encontra a multiplicidade. O movimento

circular que o artista realiza por meio do seu veículo não alimenta nenhum motor de

trocas – apesar de os veículos servirem para alimentá-la. Pelo contrário, é feito para

corroborar o devir-ondas sonoras, em toda sua imprevisibilidade, constituindo-se

como um movimento conduzido pela multiplicidade.

O conceito que será nosso fio condutor, capaz de curto-circuitar o movimento

loopado do círculo econômico travestido de linha, é a inoperância (AGAMBEN,

2007). Se esta inoperância funciona, por um lado, como exercício de poder, por

outro, ao ser exercida no contexto da arte, ela é a resistência ao poder em si. Não

uma resistência que se vale da linearidade do tempo enquanto suporte para sua

manifestação, mas que emperra esta sequência de fazeres ou dá a ver sua

sequencialidade justamente para indicar onde resistir.

A necessidade de resistir por meio desta autêntica inoperância parte da

insatisfação com as implicações que as representações distantes da nossa

heterogênea experiência temporal exercem sobre nossas vidas.

Ao ser adotada como representação de um elemento como o tempo, que é

imensurável, múltiplo, heterogêneo e invisível, a sequência linear nos distancia da

nossa própria natureza humana: o ócio, condição na qual coexistimos com o tempo,

ao invés de exercer infinitas tentativas de dominá-lo, fazê-lo passar ou acumulá-lo.

Precisamos, portanto, que a inoperância será aqui afrontada sob duas

distintas conotações paradoxais. De um lado, temos a inoperância enquanto

estratégia de poder, de seu exercício e da dissimulação e suspensão soberana da

lei. Esta é a inoperância cínica que captura a multiplicidade de tempos, convertendo-

a em dívida e soma. Ela está, como dissemos, no âmbito da soberania e da

repetição que obnubila a práxis indiferenciada (justamente para mantê-la) e faz

perpetuar seu mecanicismo e sua infertilidade.

Do outro lado, está a inoperância exercida pelas obras de arte, gerada pela

não equiparação de significados, exacerbando a potência do devir que privilegia a

experiência da multiplicidade de tempos como dispêndio, como tempo jogado fora. A

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este movimento que não tenta falsear o caráter destrutivo do tempo e mostra a

práxis diferenciada, chamaremos de inoperância autêntica.

No segundo capítulo serão apresentadas, a partir da perspectiva de Boris

Gorys, as características da Time Based Art, e as implicações trazidas pela

repetição em loop das obras que deste gênero fazem parte. Trazendo a obra Song

for Lupita (Mañana) do artista Francis Alÿs, veremos porque esta repetição pode ser

chamada de “pura” e de que modo ela, assim como a dádiva, são capazes de

resistir, irrompendo o “círculo ritualístico da dívida”.

Veremos, pela perspectiva de Giorgio Agamben, como o [in]operador glória

funciona ao colocar em uma pseudo suspensão, o ócio. Na análise da obra Song for

Lupita será possível identificar que o deslocamento, o avanço na linha temporal é

uma mera ilusão, e que o único deslocamento que empreendemos com nossa práxis

indiferenciada é a retroalimentação do círculo ritualístico da dívida. Em uma relação

entre a obra The Loop, do mesmo artista, e uma rápida incursão pelo conto Bartleby,

o escrivão, de Herman Melville, poderemos identificar a presença da ausência que

resiste a questões de ordem temporal.

A resistência infligida pela obra – também de Francis Alÿs – The Last Clown,

por sua vez, passa pela repetição da própria inoperância. Repetindo o ato de

irromper um círculo representado pelo acaso, o artista insere o inesperado na ordem

do aguardado, em uma dupla evidenciação que resiste às características estéreis da

práxis indiferenciada.

Finalmente, sob a perspectiva de Gilles Deleuze sobre o enquadramento e o

extracampo, poderemos compreender como as obras em Time Based Art, dando a

ver o invisível do tempo, problematizam a sua linearização.

No terceiro capítulo, analisaremos, inicialmente, a obra O Século, de Cinthia

Marcelle e Tiago Mata Machado. Na análise, identificaremos as reverberações do

modo como a obra foi editada: em um flip que replica, na segunda metade do vídeo,

a primeira. Assim como as obras de Francis Alÿs e o conto Bartleby, tanto o trabalho

O Século, quanto Confronto – segunda obra da artista que analisaremos –, dizem

sobre a práxis estéril em que transformou-se a natureza humana. Associaremos às

estratégias estéticas de resistência autêntica encontradas nas obras de Cinthia

Marcelle, ainda sob a perspectiva de Giorgio Agamben, estratégias de inoperância

que são colocadas em vigência sob estratégias de dominação, poder e governo. A

elas serão associadas, ainda, a discussão de Jacques Derrida acerca do resto e

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aprofundamentos sobre a noção de resistência, a partir de uma entrevista a

Deleuze. Poderemos ver, por meio do blackout com o qual a artista finaliza seu

vídeo Confronto, o teor político da obra, e como esta política consegue resistir a

linearidades discursivas presentes na História dos Feitos Ilustres, fruto da

temporalização do tempo.

Evocamos também a obra Cosmococa, de Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida,

um segundo retorno à questão do ócio como característica que teve que se extirpar

do homem para que fosse possível transformar o tempo em história, segundo

noções de Emanuele Coccia. E recorremos mais uma vez à filosofia de Agamben

para verificar qual o percurso cumprido para que o ócio fosse elidido de nossa

natureza, e como a graça simula algo que pode não tornar-nos devedores e, assim,

permanecer no ciclo do endividamento que alimenta a linearização do tempo.

Finalmente no quarto capítulo poderemos analisar a obra Air-Cushioned Ride,

do artista albanês Anri Sala. Veremos como a estratégia de inoperância de Sala,

nesta obra, é aplicada sob diversas entradas: ao afirmar que a música resiste a

significados, Sala utiliza-a como puro som, esquivando-se do pressuposto existente

acerca da linguagem como narrativa. O uso que Sala faz do áudio, nesta obra, é

pré-histórico, pois é uma utilização que explora a não equiparação que o áudio é

capaz de realizar, não chegando a ser capturado pelo círculo ritualístico das trocas e

ficando à margem da história linear causal.

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2 FAZENDO SEM FAZER

Em um ensaio publicado em 2010 e intitulado Camaradas do tempo, o crítico

de arte e pesquisador alemão Boris Groys levanta o problema da nossa relação com

o tempo. A partir da crítica da presença formulada por Jacques Derrida, Groys,

questiona-se “como é que o presente manifesta-se em nossa experiência cotidiana

[...]?” (GROYS, 2010, p.120). Parafraseando Ernst Jünger, Groys diz que a

modernidade teria livrado-se da pesada bagagem do passado para, tendo então

tornado-se leve, conseguir passar pela estreita passagem do presente que, por sua

vez, ainda segundo o autor, era visto, durante o período da modernidade, como algo

que deveria ser superado em nome do futuro, não atrasando sua chegada.

Um dos slogans da era soviética era “Tempo, para frente! Ilf e Petrov, dois romancistas soviéticos dos anos 1920, apropriadamente parodiaram esse sentimento moderno com o slogan “Camaradas, durmam mais depressa!” De fato, naqueles tempos, seria preferível passar o presente dormindo – cair no sono pesado e acordar nos momentos finais do progresso, depois da chegada do futuro irradiante. (GROYS, 2010, p. 120)

A contemporaneidade, por sua vez, não passaria, segundo Groys, de uma

reconsideração dos projetos modernos. Ele afirma que hoje vivemos num tempo de

indecisão, de adiamento. Não concordarmos com esta perspectiva. Acreditamos que

o tempo, ainda hoje, é, conforme afirma Derrida, o tempo das trocas que

caracterizam o ciclo ritualístico da dívida. A dinâmica temporal contemporânea é, a

nosso ver, uma exacerbação das dinâmicas das trocas econômicas que tiveram um

primeiro momento de maior exacerbação com a Revolução Industrial e não cessam

de se intensificar, exponencialmente, em nossos dias.

Não pretendemos, entretanto, delongarmo-nos, agora, neste ponto e, sim,

concentrarmo-nos na contribuição que Groys traz, ao apresentar, sob a perspectiva

da chamada Time Based Art – TBA –, um modo específico da produção deste

gênero artístico contemporâneo de se relacionar com o tempo. Para ele, as obras

em TBA tematizam o tempo não produtivo, a “perda da perspectiva histórica infinita

[geradora do] fenômeno da improdutividade, tempo perdido” (GROYS, 2010, p. 122).

As produções elaboradas em TBA são, em grande parte, vídeos editados em loop

que tematizam o “tempo não produtivo, desperdiçado, não histórico, excedente [...]”

(GROYS, 2010, p.122) por meio da narrativa – muitas vezes não linear ou

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fragmentada – de atividades que transcorrem no tempo, sem, contudo, levar à

criação de nenhum produto definido. Precisemos, porém, que o excedente temporal

gerado pelas obras em TBA deve-se às atividades narradas, mas sobretudo ao seu

modo de edição, ou seja, o loop, a repetição circular.

Groys usa como exemplo, em seu ensaio, a obra Song for Lupita (Mañana),

1998, de Francis Alÿs. Nesta animação, uma mulher derrama água de um copo para

o outro várias vezes, sem variação, em loop. “Fazendo sem fazer”, precisou Alÿs3.

Nesta atividade aparentemente banal estão imbricadas questões de natureza

ontológica. Este fazer sem fazer, do qual fala o próprio artista, é, segundo o filósofo

Emanuele Coccia, sinônimo daquilo em que se transformou nosso ser no mundo, a

nossa atual condição: o fazer define o ritmo do próprio ser. A partir da cosmogonia

judaico-cristã, o homem, destituído do ócio que caracterizava a vida pré-histórica, ou

seja, a vida do tempo não temporalizado do paraíso, passa a viver para a fadiga e o

trabalho. Como punição pela desobediência de um comando divino – o de não

comer um dos frutos do jardim –, toda a espécie humana passará a viver na sombra

de seu desejo, fazendo aquilo que não deseja; viverá em uma repetição da práxis

indiferenciada, em busca de uma suposta salvação para a qual aponta a seta do

tempo histórico.

É este, ainda hoje, o fazer em que se resume nossas vidas. Ainda que não

alimentemos este fazer em vistas de uma salvação messiânica ou pós Apocalipse, o

fazemos, de todo modo, em busca de uma melhoria, um desenvolvimento, de um

acúmulo que se mostra alcançável somente por meio deste encadeamento de

fazeres, ou seja, da práxis indiferenciada – exercida por Lupita. O trabalho é a práxis

indiferenciada, e a aposentadoria, a previdência, o messianismo, o paraíso

contemporâneo, quando seremos agraciados com o ócio.

3 “[...] doing withou doing”. Francis Alÿs. A story of Deception: room guide, Song for Lupita.

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Figura 1 - Francis Alÿs – Estudos de Song for Lupita, 1, 2 e 3

Legenda: Estudos para Song for Lupita, 1998 (montagem nossa).

Fonte: ACTIVIDAD CULTURAL DEL BANCO DE LA REPÚBLICA (2007).

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A ação infinitamente desenvolvida pela mulher na animação não gera,

efetivamente, nenhum produto, não tem uma finalidade. Se, para manter a roda do

sistema girando, devemos permanecer no repetitivo moto práxis, que, contudo,

somente simula um deslocamento e, na realidade, desloca, em loop, somente o

circulo ritualístico do endividamento, o movimento desenvolvido por Lupita estaria

em perfeita sintonia com nosso ritmo de vida – uma profusão de fazeres, de práxis

indiferenciadas –, não fosse por uma crucial diferença.

De um lado, temos a simulação do desenvolvimento, em que o círculo

ritualístico da dívida parece neutralizar e obnubilar o retorno do idêntico,

equiparando objetos e valores nas trocas, preenchendo os significantes com um

significado – aquele do acúmulo que leva ao progresso e elide o caráter destrutivo

do tempo. No pólo oposto, temos o loop em TBA, que exerce uma inoperância que

não simula a geração de melhorias – deslocamento –, mas simplesmente irrompe o

círculo econômico: não diz que produz algo a partir do ciclo de fazeres e não vincula

causa e efeito – não equipara o ato de despejar água a um significado. A única coisa

que despejar água de um copo ao outro causa é a não progressão. Esta é a

autêntica inoperância. A atividade de Lupita denuncia que o nosso fazer não leva a

lugar algum. É uma operação que, paradoxalmente, não age. Como disse Alÿs, é um

fazer sem fazer. Esta denúncia “silenciosa” é o que torna a ação de Lupita – ainda

que seja uma repetição do mesmo ato – diferente do fazer estéril, que não fecunda

seu desejo em nada. Se me permitem o anacronismo, estéril como foi a obediência

de Adão até antes do evento da expulsão do paraíso: uma obediência que fazia

viger somente as leis que representam a manutenção da obediência: causa e efeito

em loop. Como se distanciar-se do seu instinto, de seu desejo – de comer o fruto –

pudesse levar a uma elevação do ser humano e não à elevação do poder que se

perpetua, dizendo que nos eleva. O fazer de Lupita, por sua vez, sem simular

qualquer melhoria, repete um ato aparentemente vazio, explicitando-o para

demonstrar como ele não leva a nada.

Daremos agora, um passo atrás, a fim de verificar as implicações da noção do

retorno.

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2.1 A inoperância cínica

O linguista Gustave Guillaume desenvolveu teorias utilizadas por Agamben

em mais de um livro4, dentre as quais ressaltamos o aforismo: “[...] a mente humana

tem a experiência do tempo, mas não a sua representação e deve por isso recorrer,

para representá-lo, a construções de ordem espacial” (AGAMBEN, 2000, p.66,

tradução nossa)5. As imagens às quais recorremos, seja o círculo – na Grécia Antiga

–, seja a seta, a partir do Cristianismo, são estas construções de ordem espacial às

quais devemos recorrer a fim de imaginar o tempo, mas também, em alguns casos,

afim de dominá-lo.

A ideia de retorno é inerente ao ciclo econômico e vincula-se diretamente ao

círculo como construção espacial que representa o tempo, conforme nos traz

Derrida (1996) em uma citação de Heidegger sobre Hegel e Aristóteles, segundo a

qual a circularidade do tempo estaria, por fim, acenada desde o período helenístico:

“Aristóteles, fiel à tradição, coloca em relação chronos e sphaira, Hegel sublinha a

“circularidade” (Kreislauf) do tempo [...]” (DERRIDA, 1996, p. 10, tradução nossa)6.

Agamben relaciona a concepção da antiguidade greco-romana do tempo –

fundamentalmente circular e contínua – ao vínculo entre circularidade e eternidade,

ou seja, àquilo que permanece idêntico, imutável (AGAMBEN, 2008, p. 112). Tal

repetição do movimento circular e seu eterno retorno seriam, de tal sorte, “a

expressão mais imediata e mais perfeita (e, logo, mais próxima do divino) daquilo

que, no ponto mais alto da hierarquia, é absoluta imobilidade” (AGAMBEN, 2008, p.

112). Esta repetição do movimento circular, além de configurar o ponto mais alto da

divindade, é o que caracteriza as trocas da economia e o nosso fazer – nossa práxis

indiferenciada –que as impulsiona.

Esta noção da repetição como retorno do idêntico subjazido pela expressão

da perfeição está indicada nas pesquisas do filósofo italiano, definidas como uma

genealogia teológica da economia e do governo cujos paradigmas estariam em

todas as esferas da vida social (AGAMBEN, 2007). A questão coloca-se a partir do

4 A máxima compare em Il tempo che resta, com indicação à Gustave Guillaume, e em Infância e História, já sem a referência ao linguista francês. Seu livro ao qual Agamben se refere é Temps et verbe, que reúne dois estudos publicados em 1929 e 1945.

5 [...] la mente umana ha l‟esperienza del tempo, ma non la sua rappresentazione e deve perciò ricorrere, per rappresentarlo, a costruzioni di ordine spaziale.

6 Aristotele, fedele alla tradizione, pone in rapporto chronos e sphaira, Hegel sottolinea la „circolarità‟ (Kreislauf) del tempo [...].

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contraste entre a ociosidade divina – que se instaura após o Juízo Final, tendo os

eleitos sido beatificados – e a perene atividade que devem realizar os diabos com a

punição dos condenados: a eterna repetição de um trabalho, novamente, a práxis

indiferenciada, o fazer como ritmo de vida. Ao Deus, aos anjos e aos beatos eleitos

é permitida a ociosidade, contanto que ela seja respaldada e devidamente ocultada

pela glória, de modo que esta última não permita que seja visível o ócio. Fica aqui

nítida a discrepância entre a inoperância que dissimula e a inoperância que

denuncia. A glória é o [in]operador que, pela sua luz ofuscante (AGAMBEN, 2007),

não permite que a verdadeira inoperância, que é o ócio, seja vista. Já a inoperância

autêntica realizada pelo movimento de Lupita, que também é a repetição do

movimento circular e seu eterno retorno, não pretende ser “a expressão mais

imediata e mais perfeita (e, logo, mais próxima do divino) daquilo que, no ponto mais

alto da hierarquia, é absoluta imobilidade”, mas sim inoperar de fato, elidindo a

necessidade de simular qualquer pseudo elevação a partir de sua práxis

indiferenciada.

A interrupção da atividade divina – que configura o ócio – e a não operação

tanto dos beatos eleitos quanto dos anjos indicam um Reino sem qualquer governo,

o que é, para os teólogos, inconcebível. Para evitar a crise teológica, ou seja, o

desaparecimento da necessidade da aplicação do poder divino, é instituída a

separação entre o poder e seu exercício, de forma que o primeiro não

desaparecesse, mas simplesmente não fosse exercido, “assumindo assim a forma

imóvel e resplandecente da glória [...]” (AGAMBEN, 2007, p. 41). Aqui está a

inoperância cínica, a inoperância como projeto de poder. O poder não existe sem

sua forma de exercício – pelo contrário, exerce-se ao existir. Esta inoperância na

forma de glória permite que o ócio não seja admissível senão ao “mais alto ponto da

hierarquia divina”. Aos homens, restatia o fazer.

Os anjos, figuras que representam os instrumentos do governo divino no

mundo, celebram então a glória de Deus e os beatos entoam o eterno canto de

louvor a este. A Glória seria, assim, o modo pelo qual o poder consegue sobreviver e

se perpetuar após o fim do governo, ou seja, quando não há mais necessidade de

aplicar-se um poder. Ela é aquilo que ocupa o lugar do ócio e dissimula sua

existência que, por sua vez, não deve ser assumida.

Na tradição hebraica, o shabat, o sábado expressava o cessar da atividade

divina no sétimo dia, indicando, assim, o movimento circular que retorna ao mesmo

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ponto, a imobilidade divina, ou seja, a eternidade: um fim sem fim, um fazer sem

fazer.

O mistério inenarrável, que a glória, com a sua luz ofuscante, tem de esconder, é o da divina inoperatividade, aquilo que Deus fazia antes de criar o mundo e depois de o governo providencial do mundo ter chegado a cumprir-se. (AGAMBEN, 2007, p. 43)

Se a máquina do poder é a máquina para produzir governos, a Glória seria a

garantia do funcionamento dessa máquina, configurando-se como uma substituição

ao ócio, preenchendo esta vacuidade do último e alimentando a máquina cujo

funcionamento depende tanto deste vazio “ao ponto de ter de o capturar e manter a

qualquer custo no seu centro em forma de glória” (AGAMBEN, 2007, p. 44), ou seja,

ao ponto de ter que manter a permanência imutável do retorno circular.

O movimento circular loopado que figura em Song for Lupita não é

despretensioso. Ele é um gesto que aparentemente não leva a um fim, ou, pelo

menos, não ao fim conforme esperado pela lógica do fazer que determina o ritmo do

ser, que, por sua vez, provoca um aparentemente deslocamento temporal e uma

melhoria. A repetição em Alÿs exacerba a inoperância como algo inerente à vida,

como o direito ao ócio de que fomos destituídos pelo poder, uma vez que somente o

divino pode ser glorioso – e ocioso –, enquanto a própria glória desarticula a

inatividade, substituindo-a e transfigurando-se, por fim, em uma espécie de

atividade, em uma operação que obnubila o ócio, sendo que na verdade ela é o

louvor que se deve entoar aos céus após a eleição que se dá no Juízo Final e

consequente ausência da necessidade do exercício de governo.

Eis o sentido da imobilidade como parte do projeto de poder ao qual a

inoperância autêntica exercitada pela obra de Alÿs se opõe: o eterno retorno está

mais próximo do divino pois o movimento circular que retorna à casa, ao oikos, ao

ponto de partida, funciona como um movimento anulado cuja anulação não se pode

dar a ver. Ao passo que a autêntica inoperância realizada por Alÿs, por meio dos

movimentos de Lupita, é algo que se dá a ver, que se mostra enquanto tal.

Se a circularidade define a economia pelo movimento dar-receber-[endividar-

se]-dar-receber ad infinitum, a graça, conforme veremos, garante a manutenção de

tal círculo como uma salvação metafísica, suspensa, enquanto a glória encarrega-se

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de ocupar o lugar do ócio, que não deve jamais ser verificado, haja visto que, como

dissemos, ele indica que a aplicação de um poder, i.e., de governo é desnecessária.

2.2 Movimento circular

A repetição em Song For Lupita (Mañana) é realizada a partir de três

elementos da obra: pela atividade transcorrida durante a animação – o movimento

de versar água de um copo para o outro –, pelo loop da edição do vídeo e pelo

áudio. A música para Lupita, título da obra, traz, em sua letra, a repetição da palavra

"Mañana, mañana" – "amanhã, amanhã". A eterna postergação que a música entoa

indica não menos que a impossibilidade de alcançar o deslocamento almejado ou

simulado pelo movimento circular. Esta postergação do fim sem fim, esta mesma

denúncia de que nosso fazer – que fundamenta nosso ser – não nos fará chegar a

lugar algum é recorrente nas obras do artista que configuram modos de resistência à

questão do desenvolvimento.

Em um trabalho intitulado The Loop, 1997, Alÿs, criticando

contemporaneamente as dificuldades enfrentadas pelos cidadãos mexicanos ao

tentar entrar nos EUA e os excessos de viagens típicas do circuito internacional da

arte na década de 1990, usa a taxa de comissão por ele recebida por participar de

uma exposição, para viajar de Tijuana para as seguintes cidades: Cidade do México,

Cidade do Panamá, Santiago, Auckland, Sydney, Singapura, Bangkok, Yangon,

Hong Kong, Shanghai, Seoul, Anchorage, Vancouver, Los Angeles e finalmente San

Diego, sem, contudo, atravessar a fronteira México-EUA. Um loop físico, em escala

global, realizável somente por uma ínfima parte da população mundial, que

contorna, ao mesmo tempo em que expõe, os inúmeros problemas daquela

fronteira. Durante o percurso, o artista enviou cartões postais que foram exibidos

como representações da obra The loop.

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Figura 2 - Francis Alÿs - The Loop, 1997

Fonte: ARTESUR (2012)

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Neste caso, diferentemente de em Song for Lupita, Alÿs não se vale da

repetição do idêntico que, não cessando de repetir o mesmo gesto, o esvazia,

tornando-o pura materialidade onde podemos inferir, criando significados múltiplos,

pois ali a inoperância se mostra enquanto tal.

Em The loop, o artista não retorna exatamente ao mesmo ponto, mas sim a

um lugar espacialmente localizado acima do ponto de partida. É o retorno em si que

traz a diferença. Não mais a repetição como retorno do idêntico que se abre à

potência de significações a partir do esvaziamento gerado pela própria repetição que

esvazia o significado antes dado. Em The Loop, o que temos é o retorno do não

idêntico, na qual a abertura à potência já está implícita. Alÿs não retorna

precisamente ao ponto de partida, seu retorno traz consigo uma diferença, um

deslocamento.

Nesta obra, como é possível ver no cartão postal, Alÿs estava bem próximo

dos Estados Unidos, na cidade de Tijuana, situada precisamente na fronteira entre

Estados Unidos e México. No entanto, em um gesto político, Alÿs evidencia as

questões imbricadas na fronteira, ao não cruzá-la, percorrendo distâncias imensas

que a circulam. Ele resiste a fazer o que seria o esperado, o linear.

Este gesto nos remete precisamente à ausência de gesto retratada em uma

outra obra, emblemática sobre a questão da inoperância, sobre a qual faremos

apenas uma brevíssima menção. Trata-se do conto Bartleby, o escrivão, uma obra

do século XIX, de Herman Melville. Neste conto, o escrivão, recém admitido no

escritório de um ex-consultor de Justiça, uma espécie de tabelionato, tem a função

de copiar documentos legais. O primeiro contato e assunção de Bartleby pelo

advogado de escrituras são por ele descritos: “Em reposta ao meu anúncio, um

jovem surgiu uma manhã à porta do escritório [...]. Posso ver sua imagem agora:

palidamente delicado, lamentavelmente respeitável, irremediavelmente

desamparado! Era Bartleby” (MELVILLE, 2007, p. 26). O advogado de escrituras,

chefe de Bartleby, descreve também, em seguida, seu ritmo de trabalho:

A princípio, Bartleby escrevia numa quantidade espantosa. Como se estivesse faminto de coisas para copiar, ele parecia deleitar-se com os meus documentos. Não havia pausa para digestão. Trabalhava dia e noite, à luz do sol e à luz de vela. Eu deveria ficar encantado com a sua diligência, se ele se mostrasse um pouco jovial. Mas Bartleby escrevia em silêncio, apaticamente, mecanicamente. (MELVILLE, 2007, p. 26)

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Não somente o ritmo, como também o próprio trabalho desenvolvido por

Bartleby remetem à práxis indiferenciada. Ele apenas copia, replica.

Com o passar do tempo, porém, o escrivão passa a recusar-se a executar

qualquer tarefa que não condissesse com a função para a qual ele havia se

destinado inicialmente. Tal recusa, que afeta não somente seu chefe, como seus

companheiros de trabalho, é feita de um modo passivo. Ele passa a responder às

solicitações de modo imparcial, com um: “Eu preferia não fazê-lo” (MELVILLE, 2007,

p. 35). E, do mesmo modo como procedia em sua práxis indiferenciada, ele

prossegue nas objeções, que passam a recusas não só a solicitações, mas também

a mover-se – já que Bartleby não saia nunca do escritório – e, por fim, a alimentar-

se, levando a seu triste fim, à sua absoluta ausência de vida.

Talvez possamos inferir que a inoperância executada na obra The Loop

assemelha-se à inoperância cínica, utilizada nas estratégias de exercício de poder,

no sentido de que ela não é uma simples falta operativa. Existe todo um percurso

realizado, todo um deslocamento cumprido. Com a crucial diferença que Alÿs não

está obnubilando nenhum discurso de poder, mas sim evidenciando o problema da

fronteira entre México e EUA. A fronteira, caracterizada pelo controle e claramente

compreendida pelo artista como a manifestação de um poder – o dos EUA em

selecionar quais cidadãos mexicanos estão ou não aptos a entrar em seu território –,

é desconsiderada por Alÿs, não cruzada, elidindo, por fim, o controle em si. A ação

do artista corrobora a inoperância plena de Bartleby, em seu autêntico teor de

recusa, de negação. Um literalmente imóvel, apático, o outro em um amplo

deslocamento, mas ambos, em sua inoperância, evidenciando críticos problemas da

profusão de fazeres, sinônimo da nossa natureza humana.

Não abandonando ainda nossa curtíssima incursão a Bartleby, mas

retornando à Song for Lupita, verificamos uma convergência em direção à afirmação

de Groys sobre a TBA: a “atividade documentada [...] é em si repetitiva – mesmo

antes de ter sido documentada por, digamos, um vídeo em loop” (GROYS, 2010, p.

122-123). O autor acredita que o caráter supostamente mecânico, repetitivo e sem

propósito da atividade ali representada obscurece a diferença entre ser humano vivo

e sua imagem midiática, em outras palavras, entre organismo vivo e mecanismo

morto. Efetivamente, a repetição do fazer, na vida, gera um único deslocamento, que

é o movimento de propulsão do funcionamento do sistema, enquanto o loop das

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obras de Alÿs, como o gesto de recusa de Bartleby, denunciam esta mecanicidade

da repetição.

Bem, parece-nos, no entanto, que o obscurecimento ao qual se refere Groys

funciona somente se o encararmos como o facho de trevas do qual fala Agamben,

ou seja, somente se encararmos este obscurecimento como “o escuro [...] que [nos]

concerne e não cessa de interpelar[nos]” (AGAMBEN, 2009, p. 64). O que queremos

dizer através das palavras de Agamben é que, se os gestos documentados nas

obras de Alÿs e não executados por Bartleby obscurecem a relação entre homem e

mecanicidade, é para trazê-los aos nossos olhos. A mecanização do fazer de

Bartleby e em Song for Lupita é dada a ver pela repetição do gesto até seu

esvaziamento, enquanto os problemas da fronteira entre México e EUA são dados a

ver quando esta não é cruzada, em um “presente-ausente”, naquilo que se mostra

pela sua ausência e não pela sua presença, e que pode, em função disto, por fim,

ser dádiva.

2.3 O que mantém o loop

Percebemos uma estreita ligação entre a “narrativa loopada” que as obras em

TBA proferem e a teoria do ciclo ritualístico da dívida de Derrida. A construção de

ordem espacial utilizada desde o período helenístico para a representação temporal,

qual seja, o círculo, reapresenta-se, ad infinitum, em um gesto que nos parece mais

do que os simples acontecimentos que o próprio Alÿs declara serem recorrentes em

seus trabalhos: “[...] pequenos eventos do cotidiano” (ALŸS, 2007, tradução nossa)7.

A obra que Groys escolhe para, como ele mesmo diz, exemplificar sua discussão,

poderia ter sido The Last Clown – outra obra de Alÿs editada em loop – ou ainda

Paradox of Praxis 1 (Sometimes Making Something Leads to Nothing) – vídeo em

que o artista empurra um cubo de gelo pelas ruas da Cidade do México. Nestas

duas obras, Groys também encontraria atividades que transcorrem “no tempo, mas

que não [levam] à criação de nenhum produto definido” (GROYS, 2010, p.122).

Curiosamente, porém, a obra escolhida por Groys, Song for Lupita, traz, na

ação documentada, a mesma imagem da qual o filósofo francês do século XIX,

Joseph Jacotot, se apropria como metáfora em “O mestre ignorante” [Le Mâitre

7 [...] minor events of every day‟s life.

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ignorant, 1987]. Nessa obra, é proposta uma reflexão sobre o processo pedagógico,

no qual o papel do professor é associado ao ato de suprimir a distância entre a sua

sabedoria e a ignorância do inábil, o aluno. É, no entanto, assertivamente verificado

que, para diminuir tal lacuna, o professor deve seguir renovando-a sempre através

de uma sucessão de “versamentos de conhecimento”. Enquanto a pedagogia

apresentar-se como esse travasamento de sabedoria da mente do professor ou da

página do livro para a mente do aluno, ela estará sempre baseada no princípio da

desigualdade.

A imagem recorrente da água sendo despejada de um copo para o outro

indica, em ambos os casos, uma manutenção cíclica de práxis indiferenciadas. Ela

diz sobre o caráter de permanência do princípio de desigualdade presente no

sistema a que se refere – educacional, no caso de Jacotot, mas, a nosso ver,

prevalecente no sistema social como um todo. O desenho representado pelo

versamento de água de um copo ao outro indica a prevalência do princípio de

desigualdade, que é justamente uma equiparação de significados, cíclica.

A noção da permanência, conforme veremos oportunamente, é uma espécie

de imperativo que nos acompanha desde a tradução da klēsis – vocação – como

beruf – profissão. A ação mantida pela repetição do movimento da figura feminina de

Song for Lupita foca – e não obscurece – a permanência da pura práxis enfatizada

por Groys entre organismo vivo e mecanismo morto, que, por sua vez, mantém a si

e ao princípio de desigualdade, assegurando que o círculo ritualístico da dívida

continue a retroalimentar-se.

A nosso ver, a obra tematiza o tempo excedente, conforme aponta Groys,

exacerbando, sobretudo, a natureza humana fundada em um fazer, sem fundamento

no ser, não somente por demonstrar atividades que transcorrem no tempo, mas que

não levam à criação de um produto definido, mas, especialmente, por manifestar a

práxis involuntária em que se transforma nossa natureza. Groys diz que “a

repetitividade inerente à arte contemporânea com base no tempo [é mostrada por

uma] atividade [que] é em si repetitiva [...]” (GOYS, 2010, p. 122-123), mas se o

objeto de Alÿs são eventos cotidianos, as atividades não podem ser senão

repetitivas. E assim, como demonstra o artista também na obra The Last Clown, não

há mais necessidade de travestir a sucessão dos eventos cotidianos em uma

narrativa linear que culmine em um the end. O ritmo das narrativas lineares não

alimenta outro movimento senão o loop.

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2.4 The Last Clown e a inoperância da inoperância autêntica

The Last Clown, 1995-2000, outra animação em loop de Alÿs, é feita a partir

de pequenos quadros que o artista pintou durante cerca de cinco anos. Inicialmente,

as pinturas funcionavam como história em quadrinhos. Colocadas em uma

determinada sequência, elas contavam a anedota de um palhaço que, passeando

distraído e cabisbaixo por um parque de Nova York, sofre uma queda após ser

interpelado por um cãozinho que cruza seu caminho no sentido oposto e, em

seguida, levanta-se e continua seu percurso pela calçada em curva do parque.

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Figura 3 - Francis Alÿs – frames de The Last Clown

Fonte: ALŸS, 2008

Apesar do título, na imagem não vemos qualquer sugestão de que o homem

seja um palhaço. O título, assim como a inserção do áudio de gargalhadas de plateia

no momento do evento da queda, remetem à estreita ligação entre o universo da

arte contemporânea e o mundo do entretenimento. Mas a gargalhada gravada

remete, esta sim, a uma antecipação daquele que deve ser o nosso comportamento

ao assistir a trabalhos audiovisuais nos quais existe a inserção deste tipo de áudio.

Em um depoimento do artista, gravado pela Tate, ele usa três palavras para

indicar o evento que originou a queda: encounter, accident e meeting, cujas livres

traduções poderiam ser: encontro, acidente e evento. O único acontecimento que se

difere do caráter de eternidade conferido ao caminhar em círculo do palhaço pela

edição em loop é – ou deveria ser – um significante aberto, uma irrupção em um

círculo vicioso. Tendo em mente que o círculo em que caminha o palhaço reflete

esta concepção do nosso fazer mecanicista, a queda é um inesperado, um evento

que foge à linearidade. O encontro é, porém, reapresentado diversas vezes, fazendo

com que se perca o seu caráter de algo da ordem do inesperado. Ao ser

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reapresentado em loop, ele passa a ser o acidente previsto. Este paradoxo em que o

evento se transforma, a partir do loop, nos remete à também paradoxal condição da

inoperância em si, conforme as duas conotações sob as quais estamos trabalhando:

inoperância cínica, a serviço do exercício do poder, e inoperância autêntica.

Os eventos, quando remetem à ordem do inesperado, são aquilo que

possibilita os encontros reais. Eles estão para além da temporalidade do tempo, da

sequência do previsto. Entendendo a teoria do círculo ritualístico de Derrida de

modo amplo, i.e., que remete não somente às trocas inerentes à economia, mas ao

moto do sistema como um todo, revocamos um aprofundamento deste conceito

derridiano a fim de compreendermos as dimensões de uma irrupção em tal círculo, e

prosseguir, posteriormente, à leitura de The Last Clown.

2.4.1 In-economia

Ao conceito de economia são essenciais as noções de circulação, troca,

retroalimentação e retorno que se articulam de maneira fundamental à questão da

dádiva. A economia compreende tanto os valores da lei em geral (nomos), quanto da

lei de distribuição (nemein) e da lei como repartição (moira) – a parte doada ou

consignada, a participação. Mas estaremos atentos, sobretudo, aos valores que a lei

comporta em relação à casa (oikos enquanto administração – aplicada de forma

direta – da propriedade e da família).

A teoria derridiana acerca da relação entre a economia e a dádiva ancora-se

na figura do círculo. Esta relação é caracterizada pela co-dependência e co-

anulação, na medida em que a dádiva teria, como condição para sua existência, a

in-economia, ou seja, ela seria aquilo que irrompe o círculo, aquilo que não dá lugar

à troca e que desvia o retorno em uma direção outra, que não retroalimenta o

círculo. Um dom, uma dádiva, para que de fato o seja, não pode ser contra-doado,

pago ou retribuído.

A partir desta condição de existência da dádiva, Derrida a vincula ao

impossível de modo tão estreito a ponto de confundi-los. Esse entrelaçamento

explicita-se naquilo que o autor chama de paradoxo do dom. Sua condição de

existência é a mesma que determina sua anulação: a ideia de que alguém deve doar

algo a outrem para que se configure uma dádiva paradoxalmente aniquila a própria

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dádiva, que deve ser pura entrega, sem realizar-se, nem mesmo em pensamento,

que se tenha havido alguma entrega.

“O devir-sujeito, toma então consciência de si mesmo, entrando como sujeito

no reino do calculável” (DERRIDA, 1996, p. 26, tradução nossa)8. A questão da

dádiva deveria colocar-se, portanto, anteriormente a qualquer relação entre sujeitos,

pois, caso o doador se reconheça ou seja reconhecido como alguém que fará uma

doação, ele, já por antecipação – temporalizando o tempo –, direciona a si uma

imagem de bondade e generosidade, aprovando-se em um movimento de gratidão

narcisista: “[...] onde existem sujeito e objeto, o dom seria excluído” (DERRIDA,

1996, p. 26, tradução nossa)9. De qualquer forma, para que exista dádiva, um sujeito

não pode jamais doar um objeto a outro sujeito: tais entidades – objeto doado e

sujeito – impediriam a dádiva de anular a velocidade do movimento circular,

firmando-o. A inoperância que a dádiva inflige no moto circular é a resistência em si.

Contudo, pensando o tropeço do palhaço na cauda do cão como uma

irrupção da linearidade sequencial da eterna caminhada no parque – da ordem do

acidente, do inesperado –, deparamo-nos com uma nova inserção do mesmo

acidente quando o vídeo de Alÿs se repete, em loop. Ou seja, este evento está no

limiar entre aquilo que deveria nos surpreender, desarticulando um ciclo, e o

apoderamento da irrupção pela circularidade da práxis indiferenciada,

transformando-a em algo da ordem do previsível. Em outras palavras, o tropeço

pode ser compreendido como uma inoperância autêntica, que vem emperrar a

rotação de um sistema alimentado por um fazer mecanicista e, por ele próprio estar

inserido no ritmo mecânico loopado, configura também uma inoperância da

inoperância autêntica.

2.5 A relação entre espaço fechado e extracampo em TBA

As obras em TBA articulam uma ruptura em relação às obras mais

comumente encontradas no panorama audiovisual. Se observarmos tanto Song for

Lupita quanto The Last Clown, verificaremos que a matéria prima com a qual elas

trabalham é uma relação específica entre o tempo e a construção espacial na forma

da imagem. Na medida em que o tempo é a matéria constitutiva das obras, a

8 Il devenire-soggetto tiene allora conto di se stesso, entra come soggetto nel regno del calcolabile.

9 [...] dove ci sono soggetto e oggetto, il dono sarebbe escluso.

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questão que elas enfrentam é relativa à possibilidade de dar uma forma ao tempo,

i.e., de conceder ao último contornos espaciais. É justamente a construção de ordem

espacial que precisamos para imaginar o tempo, à qual nos referimos ainda na

introdução deste trabalho, a partir da máxima do linguista Gustave Guillaume:

experimentamos o tempo, mas não temos a sua representação. Não de maneira

fortuita, para tomar criticamente a questão do espaço, da representação, as obras

fazem ver o invisível do tempo.

Analisando a questão do enquadramento em obras audiovisuais, Gilles

Deleuze circunscreve a noção de quadro em confluência com a noção de sistema

fechado. “Chamamos enquadramento a determinação de um sistema fechado,

relativamente fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem”

(DELEUZE, 1985, p. 22). O quadro seria, segundo o autor, inseparável de duas

tendências, quais sejam, a perturbação da saturação ou, por outro lado, a redução

do quadro a um conjunto vazio, à tela branca ou negra, ou seja, à rarefação. Cada

conjunto de elementos dentro de um quadro compõe uma espécie de subquadro, e é

através da reunião ou separação destas partes que o sistema fechado se compõe.

Para cada sistema fechado haveria o extracampo.

Contudo, ao pensarmos no que estaria para além dos enquadramentos das

obras em TBA – tendo em mente especialmente The Last Clown –, estabelece-se

uma ruptura com a noção espacial, e, por conseguinte, a temporalidade, na obra, é

curto-circuitada. Se a imagem enquadrada é um recorte espacial que dá a ver a si e,

sequencialmente, àquilo que está para além do campo enquadrado, à medida em

que a narrativa se desenvolve em uma duração de tempo, o retorno ao ponto

anterior, o loop, emperra a linearidade da narrativa e, logo, aquilo que é dado a ver é

o curto-circuito temporal em si. O quadro, nas obras em TBA, opera como um

sistema mais fechado, que tende a isolar-se do extracampo, conforme a segunda

concepção do enquadramento trazida por Deleuze:

[...] ora o quadro opera um recorte móvel, segundo o qual todo o conjunto se prolonga num conjunto homogêneo mais vasto com o qual ele se comunica, ora com um quadro pictural que isola um sistema e neutraliza seu contexto (DELEUZE, 1985, p. 27)

Ainda que o sistema, quanto mais fechado, mais pareça suprimir o

extracampo, ele acaba por lhe atribuir uma importância decisiva, já que todo sistema

fechado é comunicante e não está nunca completamente isolado (DELEUZE, 1985).

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Esta profusão de extracampos que se sucedem à medida em que novos conjuntos

são enquadrados é o que Deleuze chamou de todo ou Aberto, que, por sua vez,

permite que cada um desses conjuntos possa comunicar-se com o outro através de

um fio – imagem que Deleuze usa para dizer da comunicação entre o

enquadramento e seus quadros, assim como entre eles e o extracampo.

Ainda segundo o filósofo, o extracampo possui um aspecto relativo, “através

do qual um sistema fechado remete no espaço a um conjunto que não se vê e que

pode, por sua vez, ser visto” (DELEUZE, 1985, p.29), gerando infinitos novos

conjuntos de quadros, além de possuir, por outro lado, um aspecto absoluto. As

obras em TBA, curto-circuitando a noção do espaço homogêneo, que é exibido

sequencialmente, dão a ver, como dissemos, o invisível do tempo. Esta

característica exprime-se de modo exemplar em The Last Clown. O extracampo não

é nunca dado a ver, ainda que a animação remeta a um movimento de caminhada

do palhaço. Ele caminha, mas o enquadramento permanece fixo e o extracampo não

é nunca alcançado. Esta obra estabelece uma relação mais direta com o aspecto

absoluto do extracampo, por meio do qual o sistema fechado se abre para a duração

de algo que não pertence à ordem do visível, que acreditamos ser o tempo.

Num caso, o extracampo designa o que existe alhures, ao lado ou em volta; noutro caso, atesta uma presença mais inquietante, da qual nem se pode mais dizer que existe, mas que antes “inexiste” ou “subexiste”, um Alhures mais radical, fora do espaço e do tempo homogêneos (DELEUZE, 1985, p. 30)

Assim como afirma Deleuze, os dois aspectos do extracampo coexistem, mas

sobrepõem-se. No segundo caso, o “fio” pelo qual o quadro se comunica com o

extracampo é mais tênue; este último exerce também tenuemente o acréscimo de

espaço ao espaço, assim como acontece nas obras em TBA. Nelas, o extracampo

realiza sua função de “introduzir o transespacial” como denomina Deleuze. “[...]

quanto mais a imagem é espacialmente fechada, reduzida até a duas dimensões,

mais ela está apta a se abrir para uma quarta dimensão, que é o tempo” (DELEUZE,

1985, p. 30), nos levando a pensar que o que é acrescido por esta tênue

comunicação entre extracampo e quadro é uma dimensão temporal heterogênea,

uma duração, em detrimento do acréscimo de espaço ao espaço – primeira função

do extracampo.

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Nas produções características da TBA, em conformidade com o exemplo

dado por Deleuze sobre a obra de Hitchcock, são exacerbadas as características do

sistema fechado, de modo que o extracampo seja uma abertura deste sistema para

pensar e imaginar-se imagens – ou imagens mentais, como quer Deleuze. No

extracampo de The Last Clown – se ali o podemos nominar –, são aprisionados “na

imagem o máximo de componentes” (DELEUZE, 1985, p. 30), assim como o fora

também encontra-se aprisionado para além do quadro. Se Deleuze nos diz que

existe uma situação em que o personagem esperado ainda não está visível, o porvir

de The Last Clown nunca vem. Ele se encontra, não momentaneamente numa zona

de vazio – como diz Deleuze – mas permanentemente nela, em uma relação não

atualizável com outros conjuntos, mas somente virtual com o todo.

Francis Alÿs denuncia, em suas obras, por meio da representação de

pequenos gestos, assim como faz Bartleby em sua refutação, de que modo, em sua

pequeneza e aparente banalidade, estão concentrados os nossos esforços em

manter-nos em um movimento que paradoxalmente, não nos faz deslocar. Assim

como no caso do palhaço de The Last Clown, que caminha sob o mesmo

enquadramento, sem nos dar a ver o que viria, o porvir – pois nada vem, não há

extracampo senão virtual, da ordem da imaginação –, nossos fazeres não fazem.

Contudo, se nossa práxis faz deslocar, em um movimento centrífugo, somente o

sistema de aparente acúmulo, temos, por outro lado, a repetição dos pequenos

gestos das obras de Alÿs, assim como os de Bartleby, que não pretendem simular

um deslocamento, uma melhoria ou um avanço. Elas não avançam, simplesmente

inoperam resistindo à inoperância que traveste o círculo ritualístico da dívida com a

forma de uma seta.

Observamos, até então, sob a ótica das características da TBA, como, nas

obras de Francis Alÿs aqui trazidas, está imbricada a questão da profusão de

fazeres inférteis – aqui chamada de práxis indiferenciada – em que se transformou a

natureza humana, segundo Emauele Coccia, a partir da criação da cosmogonia

judaico-cristã. Desde o momento em que o homem deve obedecer a uma lei que o

impede de fecundar seu desejo em ações, ele passa a realizá-las mecanicamente,

como obediência ao exercício de poder.

Tendo em mente o paradoxo da inoperância, na dicotomia entre a inoperância

a serviço de projetos de poder e aquela autêntica, pudemos verificar como esta

última é aplicada nas obras do artista belga de modo contumaz, isto é, fazendo

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irromper o ciclo de trocas que é o motor do suposto desenvolvimento. Enquanto o

dispositivo glória, por sua vez, opera em um sentido precisamente oposto, qual seja,

aquele de equiparar-se ao ócio para, justamente neste movimento, fazer perene o

exercício do governo, ainda que ele não se justifique.

A queda, refinado problema estético elaborado em The Last Clown, foi aqui

relacionada a uma dupla inoperância: aquela da surpresa como dádiva, ou seja, o

inesperado que não conforma o ciclo das trocas, das equiparações, e, em seguida, a

um segundo emperramento em tal moto a partir da inserção do inesperado em um

círculo, aquele do loop.

A partir da conceituação do círculo ritualístico da dívida de Jacques Derrida,

foi possível compreender o seu funcionamento: uma retroalimentação das trocas

que nada mais são do que movimentos de práxis indiferenciadas. Vimos como o

movimento loopado, tanto de Alÿs em The Loop, quanto de Bartleby, o escrivão,

conforma recusas que evidenciam um problema – são ausências que configuram

presenças.

O círculo ritualístico da dívida, ou, simplificando, o ciclo econômico,

obnubilado por dispositivos de inoperância, quando está a serviço de uma estratégia

de neutralização, mascara projetos de exercício de poder ou de governo, justamente

para fazer as suas vezes. A profícua contrapartida exercida pelas obras que aqui

trazemos é o desmascaramento da dissimulação dos [in]operadores, firmando o

movimento cíclico. Se, como dissemos, a TBA tem como característica não simular

melhorias a partir das repetições, ela o faz exacerbando o caráter puro desta

repetição, irrompendo o círculo de trocas equiparadoras, em perfeita confluência

com o mecanismo de funcionamento da dádiva, conforme aprofundaremos,

oportunamente.

Toda a discussão até então empreendida é perpassada, conforme dissemos,

pela ideia de que somente a partir de uma mudança na concepção do tempo – ou

pelo menos de como sua representação tenta moldar nossa experiência, fazendo

com que esta se distancie de sua heterogeneidade – é possível revolucionar.

As obra em TBA configuram um modo de dar a ver o invisível do tempo,

indicando o hiato existente entre nossa experiência múltipla e a regente

representação que, em sua linearidade, tenta obnubilar o fato de que o motor que

nos propulsiona não nos levará a nenhum acréscimo ou melhoria. Segundo a teoria

deleuziana do extracampo, inferimos que a TBA consegue irromper o ciclo das

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significações ao não acrescentar espaço ao espaço, como opera, por sua vez, o

extracampo em obras clássicas do audiovisual. Se o fora fica aprisionado para além

do quadro, ele existe somente a partir da nossa invenção ou inexiste. Esta operação

dá a ver, portanto, o tempo em sua invisibilidade, destituindo a primazia do caráter

espacial das imagens.

A partir deste ponto, poderemos identificar, ainda, em outras obras, formas de

resistência que mostram o funcionamento de dispositivos usados em projetos de

poder, para elidi-los, inoperando de modo autêntico. Verificaremos problemas

estéticos trazidos por obras dos artistas Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado,

Hélio Oiticica e Neville D‟Almeida. Veremos como, no intuito de trazer à tona novas

formas de vida, estas obras problematizam as implicações do tempo linear. Para

tanto, prosseguiremos ainda com outros exemplos de [in]operadores que são

identificados nas leituras das obras que seguem.

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3 INSTRUMENTOS DE INOPERÂNCIAS E RESISTÊNCIA

Inoperatividade não significa, de facto, simplesmente inércia, não-fazer.

Trata-se, antes, de uma operação que consiste em tornar inoperativas, em

desactivar ou des-oeuvrer todas as obras humanas e divinas. (AGAMBEN, 2007, p.47)

3.1 O Século

O Século, 2011, vídeo em loop dos artistas Cinthia Marcelle e Tiago Mata

Machado, foi realizado em um plano único, registrado por uma câmera fixa que

enquadra longitudinalmente uma fração de rua na qual se vê, a princípio, somente

uma tampa de esgoto e um bueiro. Percorrendo a profundidade do quadro, tem-se o

passeio ligado à rua, sobre o qual ergue-se um muro cuja parte mais alta não chega

a ser enquadrada, e sobre a qual perpassa uma cerca de arame farpado em espiral

– ouriço – que é dada a ver a partir de sua sombra projetada no passeio. Não

fossem a luz solar e o tratamento cromático conferido às imagens, que já configuram

traços recorrente da artista, na cena inicial prevaleceria o tom acinzentado do

asfalto.

O vídeo é dividido em duas partes. Na sua primeira metade, vemos objetos

oriundos do mundo industrial serem arremessados da direita para a esquerda do

quadro. No âmbito do extracampo, estão tanto a proveniência dos arremessos

quanto aquilo que rebate os objetos na extremidade oposta do quadro, fazendo com

que, por um brevíssimo instante, eles saiam e retornem ao campo. Este movimento

que acontece virtualmente, no extracampo, remete à estrutura da edição do vídeo,

ou seja, ao flip.

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Figura 4 - Objetos de cena de O Século

Fonte: Cortesia de Katásia Filmes + 88 (2011)

Os objetos lançados são capacetes de proteção para trabalhos em

construção civil, lâmpadas fluorescentes, caixotes, cadeiras, pneus, tijolos, pedaços

de uniformes, tonéis, cabos de vassoura, botas plásticas, fitas K7 e outros artigos

que remetem ao universo do trabalho. Após serem lançados todos esses itens, há

uma pequena pausa e a inserção de um blackout que realiza a divisão e a transição

para a segunda metade de O século, na qual transcorrem precisamente os

lançamentos dos mesmos objetos, agora no sentido oposto: da esquerda para a

direita, através do flip da imagem anterior, ou seja, do espelhamento do plano

apresentado na primeira metade do vídeo.

A ação de rebater, fora do quadro, os objetos lançados é referida no flip da

edição, que nos traz, por sua vez, ao pensamento de Deleuze: “O extracampo

remete ao que, embora perfeitamente presente, não se ouve nem se vê” (DELEUZE,

1985, p. 27). Em O Século, o extracampo faz alusão, pelo modo como a edição é

feita, àquilo que é dado a ver pelo enquadramento, sem, no entanto, ser seu

prolongamento sequencial. Ou seja, o extracampo remete a algo que foi incluído no

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vídeo, todavia sem acrescentar espaço ao espaço. Apesar de apresentar um

sistema mais fechado, o enquadramento em O Século, assim como em The Last

Clown, ao comunicar-se tenuemente com o extracampo, faz com que aquilo que

está para além do quadro insira-se nele estética e conceitualmente, após sua

edição.

Figura 5 - Frames espelhados de O Século

Fonte: MARCELLE (2011). Legenda: Estas imagens são uma ilustração para demonstrar o funcionamento da operação realizada entre as duas partes da duração do vídeo.

Obras como esta mostram-nos a problemática relação entre a nossa

experiência do tempo e a sua representação, que, apesar de fortemente ancorada

na imagem linear da seta, se baseia no círculo econômico.

Em O século, são colocados em cena exclusivamente objetos

industrializados. O cenário poderia ter sido extraído da modernidade: o asfalto das

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vias, as redes de esgoto e a delimitação de espaços por muros, não fosse o uso da

cerca ouriço como um elemento do tecido urbano e não como componente de

barricadas de guerra. A possibilidade de deslocar contextualmente a imagem é

permitida pelo enquadramento: “o quadro assegura uma desterritorialização da

imagem” (DELEUZE, 1985, p. 26). Existe uma clara referência à industrialização e à

circulação que ocorre na economia, indicando uma certa atemporalidade.

Novamente, ao desterritorializar a imagem, não acrescentando espaço ao espaço,

aquilo que é dado a ver é o invisível do tempo.

Se o flip realizado a partir da metade da obra dissesse sobre um

espelhamento do século XX no século XIX, talvez pensássemos que o título da obra

poderia ser colocado no plural, como, no entanto, não acontece. Esta perspectiva

nos remete ao pensamento de Boris Groys: “o nosso é um tempo no qual

reconsideramos –, não abandonamos, não rejeitamos, mas analisamos e

reconsideramos – os projetos modernos” (GROYS, 2010, p.121). Na obra, temos um

só século, que é replicado pelo flip, assim como são rebatidos os objetos

arremessados.

Na primeira metade do vídeo, vemos os objetos serem atirados da direita do

quadro para a sua esquerda, remetendo, se pensarmos na proposição sequencial e

linear, à arremessos para trás, como se os objetos tivessem sido usados e

descartados após seu uso, já que o tempo é representado linearmente, sendo o

passado, e os objetos, um lixo morto, um resto impotente. Aquilo que temos em

decorrência do flip é a repetição que, no entanto, fará com que nos deparemos com

os mesmos objetos usados antes, mas agora diante de nós.

O arremesso, novamente recorrendo à lógica sequencial, é realizado sem

mais seguir o raciocínio do descarte para fora do caminho. Ou melhor, os dejetos,

após terem realizado o percurso do seu uso no mundo industrial e do trabalho,

circulam, e vêm encontrar seu local de despejo diante de nós. Os objetos, antes

propulsores das trocas, agora tornam-se impotentes.

A obra O século parece referir-se à condição de existência do círculo

econômico, qual seja: a temporalização do tempo nas formas da projeção, isto é, da

preparação para o lançamento de algo, de acordo com a raiz latina da expressão

projicere, que, em italiano, por exemplo, é progettare. Ao sentido de gettare (jogar,

lançar), inferimos, também a noção do dispêndio (BATAILLE, 1975), que é, por sua

vez, arruinada pela temporalidade contida em pro (a diante): não se pode calcular ou

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prever o dispêndio pois este deixa de ser dispendioso. Associamos, também, à ideia

do lançamento, da pró-getação, a noção da pre-visão, do vislumbramento do por-vir,

em uma temporalização que tenta antecipar o futuro, antever o acontecimento, o

destino ou pouso de algo que ainda está por ser lançado. Esta temporalização do

tempo, por fim, nos diz sobre a memória endividadora da retribuição obrigatória

intrínseca ao ciclo econômico.

O texto disponibilizado pelos próprios artistas: “um mundo inteiro vindo à tona

em um jorro que se converte, imediatamente, em uma espécie de ruína”

(MARCELLE, 2011) confirma a alusão que fazemos ao dispêndio, enquanto

assistimos à obra. O dispêndio urbano contrapõe-se absolutamente àquele da

natureza. Enquanto na natureza o excedente é o fundamento da vida, na civilização,

a vida baseia-se no acúmulo que, no entanto, não consegue sustentar-se, acabando

por produzir um excedente que , diferentemente daquele da natureza, não é

reaproveitável. Este acúmulo da civilização, originalmente fruto do ciclo econômico,

torna-se, em O Século, a pura destruição que acaba por irromper o círculo. Os

dejetos, produtos do acúmulo de uma economia da paridade, perdem a sua

pertinência – sua paridade, já que passam a não servir pra nada – e devem ser

jogados fora, tornando-se impotentes. O acúmulo dos dejetos culmina na

impossibilidade de o círculo econômico prosseguir retroalimentando-se e faz com

que o sistema torne-se inoperante. É o retorno ao caos e à destruição que o

acúmulo tenta evitar.

A inoperância autêntica, em O Século, perpassa mais de um âmbito.

Conceitualmente, temos a irrupção do próprio círculo econômico – representado

pela escolha dos objetos. O movimento do círculo estagna-se, fazendo com que ele

deixe de girar, quando, em um determinado momento, os objetos transformam-se

em dejetos que não mais podem fazer parte do circulo ritualístico da dívida,

retroalimentando-o. O próprio ciclo opta por abandoná-los. Por outro lado, a própria

edição em loop remete a uma inoperância que é de ordem estética, sobre a qual

discutimos acerca da produção de Alÿs, em um loop que gera um excedente de

tempo, distante da projeção e antecipações temporais. A projeção em O Século foca

o mecanicismo e a temporalização da práxis indiferenciada, replicada ao longo do

tempo como se este fosse uma pura repetição do idêntico. Ao repetir a própria

imagem, a obra dá a ver a inoperância que decorre da transformação do jorro em

ruína, ou seja, mostra-nos que os dejetos gerados pelo acúmulo serão encontrados,

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sequencialmente, diante de nós, fazendo com que não mais possamos prosseguir

em tal moto, emperrando, finalmente, nossa práxis indiferenciada, fazendo com que

o tempo, em sua forma de paridade acumulativa, ali, inopere. Isto é: concede-se

potência àqueles objetos "mortos". Faz-se com que eles possam vir a ser

novamente. Transforma-se as ruínas em um porvir distante da sua função cuja

destituição os levou a ser descarte. Torna-se indiscernível jogar fora e receber, lixo e

presente, velho e novo, precisamente como são indiscerníveis as repartições

temporais em nossa experiência. Este problema estético apresentado em O Século,

que torna o descarte um vir-a-ser, uma potência de formas de vida, realiza um

enviesamento temporal que aproxima a obra da heterogeneidade da nossa

experiência de tempo. Aproxima arte e vida.

Faz-se necessário, ainda, um adensamento sobre a questão da inoperância.

Para tanto, permitiremo-nos contextualizar, a partir de verificações realizadas por

Giorgio Agamben, os pormenores da elisão, nas representações temporais, da

heterogeneidade.

3.2 Indiscernibilidade da tripartição temporal

Agamben identifica rastros do messianismo nas Cartas de São Paulo aos

Romanos. A partir das traduções que se sucederam paralelamente à história das

Igrejas cristãs, o messianismo, assim como o próprio termo “messias”, teria sido

eliminado do texto paulino. Para Agamben, tratar-se-ia de uma consciente estratégia

de neutralização da heterogeneidade do tempo que estaria implicada no

messianismo:

[...] uma aporia que concerne à própria estrutura do tempo messiânico, à particular conjugação de memória e esperança, passado e presente, plenitude e falta, origem e fim que este implica. (AGAMBEN, 2000, p. 9, tradução nossa)

10

A questão que se coloca é a proposital e patente elisão, por parte do

cristianismo, da heterogeneidade do tempo de suas representações como um

projeto de poder. Através da delimitação das repartições passado – estanque, não

mais acessível, assim como é o lixo na primeira metade da obra O Século, que, no

10

[...] un‟aporia che concerne la struttura stessa del tempo messianico, la particolare coniugazione di memoria e speranza, passato e presente, pieneza e mancanza, origine e fine che esso implica.

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entanto, na segunda metade, retorna –, presente e futuro, o tempo passa a ser

compreendido como algo homogêneo. A temporalização do tempo procede

contemporaneamente à sua organização que é, por fim, esta estratégia de poder

contida na elisão da heterogeneidade do tempo.

Observa-se, porém, que, por outro lado, o uso que São Paulo faz das

características da heterogeneidade é um mecanismo para aproximar a experiência

da religião da experiência humana do tempo, heterogênea por excelência.

A heterogeneidade identificada na relação messiânica com o tempo é

articulada a partir da relação entre conceitos de inoperância. Um deles diz respeito à

desarticulação e ao aprisionamento da noção de vocação. Trata-se do “como não” –

o hōs mē – que, segundo Agamben, funciona como um tensor especial vinculado à

noção de klēsis, a vocação messiânica, para tomar posse sobre esta e permitir ao

homem apenas um momentâneo uso. Observemos como este dispositivo de

inoperância age na desarticulação temporal: destituindo a perenidade da vocação de

quem a teria, para, ao tomá-la, permitir que a pessoa faça dela uso, sem possuí-la.

A aproximação entre o “como não” e a vocação permite que se distinga o

direto de uso do direito de posse, fazendo com que a vocação passe a sugerir

exclusivamente o direito de uso, ainda que fosse entendida como algo inerente ao

homem: dizemos ter e não usar uma vocação. Seria a suposta neutralização da

ideia de posse – que é inerente – e uma consequente conversão desta ao uso, que

é temporário, logo, não perene, não ubíquo.

O termo “como não” – hōs mē – coloca em relação um conceito consigo

mesmo, em uma condição que não o cancela, não o apaga, mas simplesmente o faz

passar, preparando seu fim na forma da sua neutralização ou da sua temporária e

oportuna suspensão. É um mecanismo que torna inoperante aquilo de que se

aproxima. É por funcionar como este tipo de tensor especial que, na Carta, este

termo, ao aproximar-se da noção de vocação messiânica, a torna indiscernível

quanto à imanência ou transcendência, indistinguindo, por fim, o presente do futuro:

a pura heterogeneidade do tempo. A vocação é entendida como algo com o que já

nascemos, algo de nosso, algo sobre o que temos posse. A aproximação do tensor

hōs mē faz com que este operador permita que façamos uso desta vocação quando

convir.

O hōs mē funciona, portanto, como um operador que desarticula significados

e contextos e está em jogo, por exemplo, na concepção franciscana do voto de

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pobreza, na qual estava implícita uma novitas vitae, sobre a qual o direito civil

resultava inaplicável, i.e., sua aplicação era desarticulada, já que a forma vivendi

franciscana passa a estar integralmente fora da esfera do direito. Aquilo que indica a

relação dessa forma de vida dos franciscanos com os bens mundanos é o usus

pauper, diferenciando-se, novamente, neste momento, uso e direito: “[...] podemos

de fato usar algo mesmo sem haver direito sobre ela ou sobre seu uso, assim como

o escravo usa a coisa do patrão sem ser dela nem dono nem usufrutuário”

(LAMBERTINI apud AGAMBEN, 2000. p. 32, tradução nossa)11.

Aquilo que prevalece tanto no “como não” quanto nos demais [in]operadores

que vimos até então – a glória, a graça – é a ideia de soberania na forma de uma

oportuna suspensão que está por trás dessa neutralização do sentido. No caso do

“como não”, é a elisão da posse que permite, todavia, contemporaneamente, seu

uso: “[...] se tratava, tanto para Olivi quanto para Angelo Clareno, de criar um espaço

que fugisse das garras do poder e das suas leis, não entrando em conflito com ele,

mas simplesmente o rendendo inoperante” (AGAMBEN, 2000, p. 32, tradução

nossa)12.

Para operar esta oportuna desarticulação de sentidos, vale frisar que é na

aproximação da nossa heterogênea experiência do tempo que se aplica a estratégia:

elidindo a repartição presente e futuro, imanência – como uso – e transcendência –

como posse.

Após termos realizado esta incursão sobre o funcionamento do operador

“como não” em sua aproximação da heterogeneidade do tempo, permitiremo-nos

adentrar ainda mais afundo e acerca do conceito da inoperância, antes de iniciarmos

a leitura de Confronto, 2005.

3.2.1 A potente fraqueza dinâmica

O poder, como temos visto até então, no presente trabalho, se vale de uma

estratégia para se converter sempre em um mecanismo soberano que não anula o

11

[...] possiamo infatti usare qualcosa anche senza aver un diritto su di essa o sul suo uso, così come lo schiavo usa la cosa del padrone senza esserne né padrone né usufruttuario.

12 [...] si trattava, tanto per Oliviche per Angelo Clareno, di creare uno spazio che sfuggisse alla presa del potere e delle sue leggi, non entrando in conflito con esse, ma semplicemente rendendole inoperanti.

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seu correspondente negativo, mas o suspende, o coloca em uma posição outra de

forma que sua ação seja desarticulada, sem configurar uma apraxia, e garantindo,

de tal sorte, a manutenção da primazia do fazer. Em outras palavras, o poder exerce

a faculdade de inoperar, que funciona como uma eficaz estratégia de desarticulação.

Esta articulação está presente nas Cartas também por meio da oposição entre a

potência – dýnamis – e o ato – energéia. Opondo esses conceitos, aquilo que seria

potencialidade ou possibilidade passa a operar como ação, não enquanto força, mas

na forma da fraqueza – asthéneia –, da des-ativação: conversão da potência em

práxis que anularia a própria práxis.

Katargéō é um composto derivado do adjetivo argós, cujo significado é

inoperante, não-em-obra, suspenso da eficácia (AGAMBEN, 2000). Esta é a chave

para a desarticulação da lei de forma soberana. “Para Paulo, a potência messiânica

não se exaure no seu ergon [trabalho, função], mas permanece nele potente na

forma da fraqueza. A dýnamis messiânica é [...] constitutivamente „fraca‟”

(AGAMBEN, 2000, p. 93, tradução nossa).13

O próprio nome do apóstolo fora modificado de Saulos – um nome régio, de

homens que superavam em grandeza e beleza qualquer outro israelita – para

Paulus – em latim, pequeno, de pouca importância. Ele mesmo se identificava como

“o menor dos apóstolos” e a reinvindicação cristã da humildade era aplicada fazendo

com que diminutivos fossem adotados como nomes próprios no intuito de satisfazer

a esta exigência de pertencer ao grupo dos escolhidos para a salvação: “Deus

escolheu... as coisas fracas do mundo para confundir as fortes... as coisas que não

são para tornar inoperantes aquelas que são” (I COR. I, 27 apud AGAMBEN, 2000,

p.18, tradução nossa)14.

O termo katargéō funciona como um “tensionamento distensor” (AGAMBEN,

2000) e é aplicado por São Paulo não à destruição do ser, mas ao progresso em

direção a um estado melhor, como se a simples permanência pudesse trazer uma

transformação, uma passagem, uma melhoria. E, como vimos, é precisamente neste

moto que se circunscreve nossa relação com o tempo, cuja articulação entre a

repetição dos dias e meses e a progressão dos anos é exemplar. Não obstante as

trocas que não cessamos de realizar – a circulação monetária e de produtos, por

13

Per Paolo, la potenza messianica non si esaurisce nel suo ergon, ma resta in esso potente nella forma dela “debolezza”. La dýnamis messianica è, [...] costitutivamente “debole”.

14 Dio ha scelto ... le cose deboli del mondo per confondere le forti ... le cose che non sono per rendere inoperose quelle che sono.

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exemplo –, configurem um loop, i.e., retroalimentam entre si infinitamente, no

modelo “pagamento, dívida, pagamento...”, elas não deixam de simular um

deslocamento na linha progressiva, não deixam de se travestir em seta, conforme

nos indica a fundamental análise de Giovanni Crisostomo, sobre a qual acreditamos

que todo o conceito da inoperância pode-se resumir:

Afim que, ouvindo esta palavra, não se acredite que se trate de uma destruição total, mas, de alguma maneira, de um acréscimo e de um dom verso o melhor [...] O tornar inoperante [katárgēsis] é um cumprimento [plērōsis] e uma adição em direção ao melhor [...]. (CRISOSTOMO apud AGAMBEN, 2000, p. 94, tradução nossa)

15

Temos aqui a operação, por excelência, da captura pelo poder: no sentido da

inoperância da potência, da inatividade, implicam-se melhoria e progresso

dissimulados na forma do dom, ou seja, em graça. O acréscimo e a dádiva que se

obtém ao ouvir a palavra, ou sendo fiel de acordo com Crisóstomo é uma espécie de

recompensa por ter-se permanecido inoperante.

A tradução luterana do termo katargeín para o alemão foi, precisamente,

aufhebung, i.e., revogar, fazer que deixe de viger. A desarticulação, vá dizer, a

inoperância, está diretamente ligada à questão de tempo. O tempo messiânico,

heterogêneo, é resguardado pelos suspensores da lei, quais sejam: a glória, a

graça, o “como não” e a katargéō – que, por sua vez, como legisladores, operam na

forma, se me permitem o paradoxo, da inoperância. Este arsenal de mecanismos,

tão ambíguos quanto potentes, garantem a heterogeneidade do tempo, devidamente

contida por esses in-operadores. Ou seja, aquilo que este arsenal faz é permitir que

o tempo possa ser declarado heterogêneo com o fim de aproximar a experiência

religiosa da nossa experiência do tempo, i.e., como uma estratégia de poder, na qual

deve-se pensar o acúmulo e a soma como se fosse dádiva, o que não quer dizer

que eles sejam. É um movimento de puro cinismo.

Conforme vimos, ainda que se trate de uma heterogeneidade devidamente

anteparada por toda essa série de suspensores, a eliminação, a partir do

cristianismo, do termo “messias” nas traduções das Cartas de São Paulo teve como

intuito a neutralização da já citada aporia que concerne à própria estrutura do tempo

messiânico. De fato, a conjugação de memória e esperança, passado e presente,

15

Affinché, udendo questa parola, non si creda che si tratti di una distruzione totale, ma in qualche modo di un acrescimento e di un dono verso il meglio [...] Il rendere inoperante [katárgēsis] è un compimento [plērōsis] e un‟aggiunta verso il meglio.

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plenitude e falta, origem e fim foi abolida a partir da instituição da representação

cristã do tempo – predominantemente linear, potencializando um terreno que Paulo

havia deixado fértil –, adotando-se a seta como a justa construção espacial para a

representação do tempo. Nela, os acontecimentos são irrepetíveis e irreversíveis,

distanciando-se de forma contumaz da nossa experiência. Em ambos os casos a

inoperância exerce-se como um projeto de poder.

3.3 A representação da [i]mensurabilidade do tempo

Nossa experiência do tempo é a experiência plenamente heterogênea, na

qual coexiste de uma imensa multiplicidade de acontecimentos reais e imaginários,

ou seja, nossa experiência é da ordem dos acontecimentos – dos feitos – e do

onírico, do imaginário. No entanto, aquilo que representa a nossa relação com o

tempo, a partir da conversão do múltiplo em soma e da dádiva em acúmulo, passa a

ser a simplória imagem de uma seta. O cinismo em relação à dádiva é justamente o

que vai convertendo, aos poucos, a representação do tempo – e,

consequentemente, nossa vivência dele – em algo que remete ao progresso.

Uma das mais profícuas imagens da multiplicidade, qual seja, o rizoma

(DELEUZE, GUATTARI, 1995), talvez seja a construção de ordem espacial que

melhor representa a profusão de tempos de toda ordem que compõem a nossa

experiência. Contudo, a representação que temos do tempo reflete características

opostas: sucessões numéricas que o subdividem em frações que fazem, por sua

vez, com que a regente representação do tempo resuma-se, por fim, a modos de

sua mensuração. Vivemos sob uma representação diretamente associada à noção

cronológica, trazida pelo termo grego chrónos, “que indica uma duração objetiva,

uma quantidade mensurável e contínua de tempo” (AGAMBEN, 2008, p. 89). No

entanto, voltando-nos para conceitos elaborados por Jacques Derrida, é possível

verificar que tais tentativas de mensuração do tempo são vãs, pois o tempo é, por

fim, imensurável. Após termos verificado sua teoria sobre o círculo ritualístico da

dívida e a condição de existência da dádiva, vejamos como Derrida elabora a

questão da imensurabilidade do tempo.

Seu livro Donner le temps inicia-se com a análise de um trecho de uma

suposta carta escrita por Madame de Maintenon à Madame Brinon. Madame de

Maintenon, cujo nome é, na verdade, Françoise d'Aubigné, foi fundadora da Maison

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Royale de Saint-Louis, um internato para moças, localizado em Saint-Cyr, atual

comuna de Saint-Cyr-l'École, na França. Interessante notar que seu nome, Madame

de Maintenon, remete ao tema da temporalidade através da alusão a Maintenant

que, em francês, significa “agora”. Ela teria casado-se secretamente com o então

Rei da França, Luís XIV, após este ter tornado-se viúvo. Sua interlocutora, Madame

de Brinon, era uma religiosa que havia sido pelo Rei nomeada superiora da Escola,

mas que dela fora afastada em 1692, após uma reforma por maior severidade na

clausura, imposta pela Igreja Católica. Madame de Maintenon teria, então, assumido

a posição de Madame de Brinon a partir desse período.

No referido excerto, Madame de Maintenon diz à sua interlocutora que o Rei

toma todo o seu tempo e que ela doa o resto a Saint-Cyr, a quem gostaria de doá-lo

todo. Observa-se que, tendo o Rei tomado todo o seu tempo, o resto – que ela

gostaria de doar a Saint-Cyr –, não resta e, logo, nada seria. Entretanto, notamos

que apesar de ter todo o seu tempo tomado pelo Rei, ela consegue doar dele ainda

algum resto e, assim, o tempo se apresenta como algo paradoxal: não obstante

tenha sido totalmente tomado, resta dele, ainda, algo tal que é inclusive por ela

doado. Percebemos que, ao tempo, é aplicada uma mensuração com a qual

estamos há muito familiarizados, mas que, conforme exemplificado, tal mensuração

é inexata e se invalida naquilo que se apresenta como um contrassenso. Ao

diligenciarmos mensurar o tempo, ele se pulveriza, invalidando a possível

totalização: do todo [tomado] excede-se um resto [doado]. Há sempre um resto, algo

sobra, a conta não fecha. Na soma ou no acúmulo progressivos, algo fica de fora da

equação e a transformação em linha reta, na qual todo o tempo é acumulado em

uma só direção é, desde sempre, impossível.

Os dejetos da obra O Século evidenciam o excedente na civilização: restos da

produção humana. Ainda que as trocas do círculo ritualístico da dívida sejam

baseadas na equiparação não existe um domínio acerca da paridade. E o tempo é

emblemático para verificarmos a imprecisão acerca das várias tentativas de captura

dos fluxos, tanto temporais, quanto econômicos.

Não obstante a mensuração do tempo também seja impossível, é justamente

a partir dela que procedem-se os modos de representação temporal. A

incongruência verificada, logo, não resume-se à relação entre o tempo que

experimentamos e a sua representação, mas é também inerente à representação

mensuradora em si. Buscamos, portanto, outros modos de ver o mundo, outras

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possibilidades, questões estéticas que resistam à primazia desta incongruente

representação temporal que tanto influencia nossa vivência do tempo, fazendo-nos

distanciar e obnubilar até mesmo a experiência que temos dele.

A obra O Século realiza precisamente a mesma operação realizada por hōs

mē [“como não”] e katargéō, que são tensores especiais justamente pelo seu poder

de dissimulação. Os dejetos em O Século retornam, a partir do flip, à sua condição

de potência. Este retorno à vida ocorre precisamente pela mesma estratégia de

elisão que é feita por hōs mē e katargéō. Os dejetos em O Século não pertencem ao

seu passado estanque. Eles voltam, sob uma nova significação, qual seja a de

emperrar o caminhar para frente do suposto desenvolvimento a que eles, ora,

serviram. Esta mesma indistinção é aplicada pelo hōs mē quando ele obnubila, na

vocação, posse – imanente –, uso – transcendente –, presente e passado, por fim. E

katargéō indica que é conveniente a permanência do moto práxis, loopado, pois nele

estaria implícita a melhoria, o desenvolvimento.

3.4 Resistência

Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. (WITTGENSTEIN apud DANTO, 2006)

Como vimos, existem modos de exercício de poder que são imperceptíveis

pois estão devidamente resguardados, dissimulados e, algumas vezes, substituídos

por uma série de dispositivos de inoperância.

A inoperância autêntica é o modo de resistência, digamos, à altura dos

dispositivos de inoperância dos projetos de poder. Esta resistência é elaborada pela

arte, como temos visto até então, a partir de implicações na questão do tempo, sob

variadas estratégias de natureza estética. A resistência é o modo profícuo de

combate às estratégias de poder.

Michel Foucault havia situado as sociedades disciplinares entre os séculos

VIII e XIX. No entanto, encontramos no texto “Post-scriptum sobre as sociedades de

controle”, de Gilles Deleuze, algo como uma atualização do conceito foucaultiano e

uma clara advertência em relação àquela que, segundo Deleuze, é nossa atual

condição: a sociedade de controle. “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas

armas” (DELEUZE, 1972-1990, p. 219), dizia Deleuze. No mesmo texto, encontra-se

outra passagem sobre a atual condição humana cuja relação com a teoria derridiana

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sobre o ciclo ritualístico da dívida é evidente: “O homem não é mais o homem

confinado, mas o homem endividado” (DELEUZE, 1972-1990, p. 3). Aquilo que nos

domina e nos confina não é um poder declarado e explícito, mas sim as próprias

trocas que não cessamos de realizar e, especialmente, a crença em um suposto

desenvolvimento ao qual elas nos levariam. Este perene moto, que é o círculo

ritualístico da dívida, como já dissemos, define o ritmo do ser, a nossa condição

humana.

Acreditamos que resistência aos regimes de dominação deva, portanto, incutir

aprofundamentos sobre a concepção e experiência temporais, tendo em vista,

sobretudo, a tensão dívida-dádiva.

Na entrevista “O Abecedário de Gilles Deleuze”, a jornalista Claire Parnet

escolhe um tema para cada letra do alfabeto, sugerindo que o filósofo discorra sobre

cada um dos tópicos propostos. Para a letra “R” é sugerido resistência – “e não

religião”, como pontua Parnet. Ao iniciar sua concatenação, Deleuze questiona o

que é resistir, e a sua própria e imediata resposta é: criar é resistir. Esta fundamental

declaração do filósofo remete, precisamente, à citação de Wittgenstein com a qual

iniciamos esta sessão: “Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida”. É

através da arte que a possibilidade de ver o mundo de outro modo se aproxima da

vida. É a criação que consegue desvincular as relações de paridade.

Em seguida, o filósofo aprofunda sobre o fato de a resistência evidenciar-se

nas artes, além da criação como resistência, e diz, por fim, que a motivação da arte

e do pensamento estaria numa certa “vergonha de ser homem” (DELEUZE, 1988-

1989):

Acho que, na base da arte, há essa ideia ou esse sentimento vivo, uma certa vergonha de ser homem que faz com que a arte consista em liberar a vida que o homem aprisionou. O homem não para de aprisionar a vida, de matar a vida. A vergonha de ser um homem. O artista é quem libera uma vida potente, uma vida mais que pessoal. Não é a vida dele. (DELEUZE, 1988-1989)

A resistência que a arte se propõe a realizar parte, portanto, segundo

Deleuze, do questionamento sobre a ontologia ou, conforme Emanuele Coccia,

sobre reflexões acerca da natureza humana distanciada de seu lado natural,

tornando-se inatural. Parnet, então, solicita um aprofundamento sobre a vergonha a

que se refere Deleuze:

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Quer dizer que essa vergonha de ser um homem... A arte liberta a vida dessa prisão, dessa prisão de vergonha. É muito diferente da sublimação. A arte não é... É realmente uma resistência? (DELEUZE, 1988-1989)

Ao que Deleuze responde:

É uma liberação da vida, uma libertação da vida. [...] São potências de vida fantásticas. [...] Só a sua existência já é uma resistência. [...] Liberar a vida das prisões que o homem... Isso é resistir. [...] Vemos isso claramente no que fazem os artistas. Quer dizer, não há arte que não seja uma liberação de uma força de vida. (DELEUZE, 1988-1989)

E, finalmente, perante a indagação de Parnet: “Mas quando você cria, quando

você é um artista, você sente esses perigos o tempo todo à sua volta? Há perigos

por toda parte?”, temos a afirmação categórica acerca da realidade do controle nas

sociedades. Responde Deleuze: “Claro que sim” (DELEUZE, 1988-1989).

A questão ontológica levantada por Deleuze por meio do posicionamento da

vergonha em ser homem não pode deixar de ser aprofundada, pois acreditamos

estar neste âmbito, uma série de implicações sobre o tempo histórico. Como

dissemos, está precisamente na historicização – ou temporalização – do tempo o

distanciamento da sua representação em relação à nossa experiência, que, por sua

vez, permite que todas as estratégias de poder capturem nossa práxis,

transformando-a em uma mecanicidade a serviço do progresso, que é o

desenvolvimento somente do poder.

Compreenderemos, a partir do vídeo Confronto [Série Unus Mundus], 2005,

da artista Cinthia Marcelle, a relação entre o homem que se distancia da sua

natureza, a mensuração do tempo e sua transformação em história, adentrando

finalmente em um ponto sobre o qual perpassamos até então, o fazer que define o

ritmo do próprio ser.

3.5 O blackout político de Confronto

O vídeo Confronto da artista mostra, por um mesmo enquadramento, em um

único ângulo, sem cortes ou movimentos de câmera, uma cena de malabaristas que

performizam, com tochas acesas, ao longo da faixa de pedestres, diante de carros

que aguardam que o semáforo fique verde. Eles repetem a performance algumas

vezes durante o período em que o semáforo está fechado para os carros, saindo da

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faixa de pedestres toda vez que este fica verde, dando passagem aos veículos, e,

estranhamente, não pedem dinheiro aos motoristas ao final de cada performance,

como ocorre com frequência nestas situações.

Existe, contudo, uma espécie de progressão por trás da narrativa. Na primeira

performance, os malabaristas são dois, na segunda, quatro, na terceira, seis, na

quarta, oito. Na quarta repetição da performance mostrada pelo vídeo, porém,

quando o período do sinal vermelho se encerra, os performers, no entanto, não dão

passagem aos carros, permanecendo na execução do malabarismo com tochas,

ainda que o sinal tenha aberto para os veículos.

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Figura 6 - Confronto

Fonte: MARCELLE (2005).

O contexto por si só é cíclico. O ritmo dos carros que não cessa de repetir o

mesmo movimento é refeito pelos malabaristas, tanto pelo girar de suas tochas

quanto pela sua entrada e saída da faixa de pedestres, em sincronia com o ritmo

determinado pelo semáforo. A interrupção instituída pelos performers inflige

diretamente no fluxo do temporal que é repetido diária e geograficamente pelos

motoristas que percorrem as mesmas ruas, todos os dias, para deslocarem-se do

casa ao trabalho e vice-versa.

A ação lúdica de brincar com fogo impõe-se, configurando um contraponto ao

prosseguimento do percurso dos automóveis, ao movimento inerente à sua função.

Os motoristas, irritados, buzinam e tentam avançar sobre os performers que, por sua

vez, permanecem obstinados, em pé diante dos carros. A ação política do vídeo é

oferecida pela artista quando, no ápice das buzinas que, apressados e afoitos para

prosseguirem em seus ritmos os motoristas não cessam de disparar, é inserido, na

imagem, o blackout. No retorno à pura materialidade da cor preta apresentada junto

ao áudio que, diferentemente da imagem cortada, permanece, é dado ao espectador

da obra, a possibilidade de invenção.

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Relembrando a questão do enquadramento trazida anteriormente, a partir das

noções de Deleuze, o quadro em Confronto seria inseparável da tendência ao vazio,

à rarefação. Isto faz com que o vídeo exerça uma abertura à experiência, à não

mensuração do tempo que o permite, por sua vez, atualizar-se em cada nova leitura

desta lacuna, ou seja, permite-o transitar no tempo. Dizendo de outra forma: a

representação abdica de re-apresentar, de trazer o que foi de modo totalizante, não

circunscrevendo o acontecido em um lugar estanque no passado – assim como os

dejetos, em O Século, não permanecem como algo que foi. Ao deixar à imaginação

do telespectador a conclusão dos fatos, o blackout torna-se dádiva, jogando fora,

infinitamente, o significado, o sentido último por detrás das imagens. Desta forma,

impossibilita o tempo de, a partir de uma repetição enquanto mensuração, equiparar

uma imagem a um fato passado e seguir em linha reta, uma vez que "o que foi" pode

vir a ser novamente, de acordo com as leituras exequíveis do espectador.

O confronto que já nos é apresentado a partir do título da obra fala de uma

resistência que irrompe num cenário cotidiano, cujo volume de veículos nos induz a

contextualizá-lo em uma hora “de rush”. Seu alvo é, antes dos carros e de seus

motoristas, o fluxo temporal, o ritmo desenfreado do trabalho, de um prosseguir cujo

blackout que se instaura em determinado ponto da obra impede-nos de conferir as

consequências previstas, criando-as nós mesmos. O áudio das buzinas e motores

prossegue sobre o blackout, mas não podemos ver até onde vai o ímpeto de

continuação do fluxo, de fazer prevalecer a práxis como sinônimo da vida.

Agamben, em seu texto “O cinema de Guy Debord”, identifica o corte e a

repetição como os transcendentes da montagem em trabalhos audiovisuais. A

repetição não é identificada como o retorno do idêntico, mas como a possibilidade

da multiplicidade temporal, pela existência, por exemplo, do passado a partir da

memória. Ao fazer vir à luz estes transcendentais, Debord, segundo Agamben,

coloca a montagem em primeiro plano e restitui, assim, à imagem, ou seja, ao

significante, a sua possibilidade e a sua abertura em perfeita contraposição ao modo

como os fatos são apresentados pelo discurso midiático, que, ainda segundo

Agamben, tornam “o cidadão indignado mas impotente” (AGAMBEN, 1995, p.4) – ou

seja, impedindo-os de fazer qualquer coisa, já que nos informa que aquilo passou.

Esta situação do espectador é dada pelo fato de o tempo midiático, ainda que

heterogêneo, exercer o poder de relatar os fatos acontecidos, i.e., os feitos. O fato

de os acontecimentos apresentados serem organizados sequencialmente destitui ao

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espectador a possibilidade de acessá-los, já que eles passaram, aconteceram, e

estão, a partir deste modo como a mídia os apresenta, devidamente alocados no

compartimento “passado”, visto que aquilo passou, não retornará.

Se as pessoas ignoram a performance dos malabaristas e retornam às suas

vidas temos a conversão da potência em pura práxis. É dada a ver a natureza

histórica, pois andar na rua é só um meio para se chegar em casa, ir ao trabalho,

ganhar dinheiro e manter o moto do sistema. O fechamento imagético que o

blackout do vídeo nos proporciona é a abertura do significante. Enquanto o

“conteúdo” da obra remete à inoperância autêntica por meio da interrupção do tempo

histórico, mensurado, ao parar o fluxo dos carros, a sua forma chama atenção por

uma interrupção em seu próprio dispositivo, que é o ato de mediar, de trazer um fato

– o que foi, o feito – ao espectador. E, em correlação aos performances que

interrompem o trânsito, o vídeo corta a própria transmissão, tornando-a potência. A

experiência do motorista do carro, que tem sua continuidade obliterada, é correlativa

à experiência do espectador, que tem a continuidade da representação expungida. E

nesse sentido – não só numa postura política específica, ativista –, mas também

como estratégia representativa, o vídeo é uma verdadeira experiência posicionando-

se frente à preponderante representação que nós temos do tempo: ele joga fora o

resultado da ação, torna-a potência de vir a ser o que o espectador quiser inferir nas

telas negras do blackout. Isto é a dádiva na obra de arte. O blackout não tem

explicação, não se sabe o que ele significa, e justamente por isso ele continuará

significando, poderemos continuar inferindo sobre o que ele quer dizer. Ele joga fora,

destrói o significado.

Retomando novamente as considerações de Deleuze acerca do extracampo,

veremos que o blackout de Confronto é o tênue fio que liga o sistema fechado do

enquadramento ao que está, só potencialmente, para além do quadro, não

espacialmente – acrescentando espaço ao espaço –, mas, sequencialmente, no

tempo. O blackout realiza um movimento que faz comunicar o conjunto de

elementos enquadrados a nós, espectadores do vídeo, mais do que com o fora, que

só existe a partir de nossas formas de ver o mundo.

Ficam claros, em Confronto, tanto a relação entre a cultura da práxis como

sinônimo de um fazer que nos impele a alimentar o processo de desenvolvimento do

progresso, quanto a subjacência do ciclo por uma progressão, que é, porém,

desmascarada pela irrupção do círculo, realizada pela persistência dos malabaristas.

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Eles, em um fazer – até literalmente – cíclico, emperram o fazer circular da vida, no

qual tempo é igual a história.

Eis a resistência que Confronto inflige na linearidade do tempo histórico. Sua

estratégia, se verificarmos o gesto dos malabaristas, assemelha-se ao sutil modo de

exacerbar a práxis indiferenciada, executado por Lupita. Ambos os gestos repetitivos

geram um excedente de tempo, um excesso, um resto. Ainda que o tempo do

semáforo tenha se excedido, delonga-se a duração da permanência estática dos

carros. Firmando-os e resistindo ao frenesi em que se transforma a vivência do

tempo na civilização. Se Lupita repete à exaustão o versamento da água de um

copo ao outro, esvaziando o gesto de significados, este esvaziamento é imposto de

modo mais radical em Confronto: na forma do blackout, no retorno à pura

materialidade. Também em relação ao fazer representado como sinônimo daquilo

em que se transformou a natureza humana, as duas obras convergem. No caso de

Confronto, tanto o fazer dos malabaristas quanto o dos motoristas.

Se o tempo tomou a forma que hoje conhecemos, transformando-se em

história, foi, conforme indica Coccia, a partir da caracterização do homem, ou seja, a

partir da constituição de uma ontologia, cujas características formantes nos serão

caras na análise de alguns aspectos trazidos pelas obras aqui tratadas.

3.6 O desejo estéril

Emanuele Coccia, em um gesto anacrônico, recorre à cosmogonia judaico-

cristã para verificar, através das bases formantes da ontologia, como se originou o

tempo histórico. Vale lembrar que falar desta cosmogonia é falar de uma das

maiores narrativas mestras de toda a história.

Segundo Coccia, foi o ato de desobediência de Adão que determinou, não

menos que a natureza humana: a sujeição ao pecado e a necessidade da morte – já

que a vida no Jardim de Éden era, até então, eterna, assim como a relação entre

eles – homem e terra – era caracterizada pelo prazer. Esta relação harmônica entre

homem e terra identificava o ser no mundo como um perene regozijo –

fundamentado no ócio –, em contraposição à noção de propriedade que será

estabelecida a partir do evento de Adão.

A desobediência é a relação entre um comando – o dizer de Deus – e uma

ação. A partir do momento em que o fazer de Adão deixa de corresponder ao dizer

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divino, o homem nasce para o trabalho, a fadiga e o sofrimento, e o seu ser no

mundo torna-se sinônimo de práxis.

O início do pensamento ocidental acerca da cultura do fazer teria sido o conto

adamístico do pecado original. A práxis, que tornou-se sinônimo da natureza

humana, teve origem como um castigo pela desobediência de Adão. Não podemos

deixar de identificar que este pensamento de Coccia corrobora a leitura que

Agamben faz de Paulo por meio da emblemática citação de Crisóstomo, à qual

recorremos repetidas vezes ao longo do nosso trabalho.

Afim que, ouvindo esta palavra, não se acredite que se trata de uma destruição total, mas, de alguma maneira, de um acréscimo e de um dom verso o melhor [...] O tornar inoperante [katárgēsis] é um cumprimento [plērōsis] e uma adição em direção ao melhor [...]. (CRISOSTOMO apud AGAMBEN, 2000, p. 94, tradução nossa)

16

A potência é obnubilada e transformada em uma práxis vazia, segundo este

pensamento, através de uma suspensão de ações – na forma da inoperância – que,

entretanto, não configura a apraxia, mas sim um acréscimo e uma transformação em

algo melhor. De acordo com o pensamento de Coccia acerca do gesto adamístico,

há também uma inoperância, mas que é autêntica: a desobediência na forma da não

execução – da desobediência – do comando proibitivo que é a ação como

consequência do seu desejo, aquele de comer o fruto. Este gesto leva, contudo,

igualmente à práxis vazia como resultado da temporalização do tempo que teria sido

uma decorrência da desobediência. A expulsão do paraíso teria, assim, dado ao

tempo a forma progressiva.

Graças ao gesto adamístico, o tempo tomou a forma que hoje conhecemos,

i.e., transformando a nossa natureza humana em uma natureza histórica, já que,

antes, a vida no Jardim era uma vida sem tempo, eterna. Mas, além de determinar a

nossa experiência do tempo, a nossa história e a nossa natureza, a desobediência

de adão marcou “[...] a impossibilidade de uma experiência humana não marcada

pelo poder” (COCCIA, 2008, p.23, tradução nossa)17 e pelo arbítrio. Coccia nos

16

Affinché, udendo questa parola, non si creda che si tratti di una distruzione totale, ma in qualche modo di un acrescimento e di un dono verso il meglio [...] Il rendere inoperante [katárgēsis] è un compimento [plērōsis] e un‟aggiunta verso il meglio.

17 [...] l‟impossibilità di un‟sperienza politica non marcata dal potere.

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mostra como a instituição de um governo divino sobre o mundo não se dá, conforme

afirma Agamben, a partir da Trindade18, mas em um momento bem anterior:

Por sua causa Deus não poderá mais governar as coisas por elas mesmas, interiormente, através da própria natureza delas. Deverá intervir diretamente em uma gestão pessoal do universo. [...] é por causa desse gesto que o Deus criador deverá duplicar-se em um Deus soberano e governador. O verdadeiro núcleo esotérico da teoria do governo divino não é a doutrina trinitária, nem a teoria da criação divina do mundo, mas o mito, nunca interrogado enquanto tal, de uma desobediência inicial através da qual uma parte das criaturas teriam se rebelado contra o seu criador. (COCCIA, 2008. p. 23, tradução nossa)

19

Atentemos para a distinção feita por Coccia entre uma espécie de “governo

natural” e governo soberano, arbitrário. No primeiro estaria implícita a noção de um

governo inerente à dinâmica da vida [de glória] existente no Jardim, enquanto o

segundo, o governo soberano, teria a transcendência como característica.

O primeiro evento de discórdia na história da humanidade traz consigo a

primeira necessidade de um juízo e de um processo. Logo, seriam contemporâneos

à desobediência, o direito, enquanto técnica de resolução de conflitos, e as

necessidades de poder e da instituição.

A gestão governativa do mundo – chamada providência – nasce a partir do

momento em que Adão não cumpre um comando: aquele de não consumir um dos

frutos do Jardim, tendo como consequência a perda do nosso lugar próprio, o

paraíso, e de toda possível felicidade – cujo ócio é inerente –, a qual, a partir de

então, continuará a nos escapar a cada instante, que será, por sua vez, preenchido

pelo remorso desse não cumprimento do comando e pela glória. O castigo-práxis

acompanhará, então, o nosso ser no mundo.

A resistência de Adão implica um ato moral com dimensão antropológica e

consequências ontológicas: uma ação que modificou o ser não só do seu agente,

mas da inteira espécie à qual este pertence. O traço fundador da natureza humana,

cujo ócio é o traço duplamente original – tanto como origem, quanto como destaque

– passa a ser a desobediência, e essa constitui, por sua vez, não “[...] um evento

18

AGAMBEN, 2009. 19

Per causa sua Dio non potrà più governare ele cose da se stesse, interiormente, attraverso la loro stessa natura. Dovrà intervenire direttamente in una gestione personale dell‟universo. [...] è a causa di questo gesto che il Dio creatore dovrà duplicarsi in un Dio sovrano e governatore. Il vero nucleo esotérico dela teoria del governo divino non è la dottrina trinitaira, né la teoria dela creazione divina del mondo, quanto il mito, mai interrogato in quanto tale, di una disobbedienza iniziale attraverso cui una parte del creato si sarebbe ribellata contro il suo creatore.

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passado, mas a forma na qual se constitui toda possível experiência de si e do

mundo” (COCCIA, 2008, p.27, tradução nossa)20. A natureza humana deixa de ser o

ócio e passa a ser a práxis, e, ulteriormente, como bem observou Oswald de

Andrade, em uma bela pseudo-etimologia, o neg-ócio, a negação do ócio.

(ANDRADE, 1990).

Viver passa a ser sinônimo de experimentar uma irrevogável desobediência

de si: “[...] o homem se transformou em algo similar a uma sombra. Não se podem

enumerar as numerosas coisas impossíveis que ele quer enquanto ele não obedece

a si mesmo, isto é, à sua alma” (AGOSTINHO apud COCCIA, 2008, p. 27) 21 .

Enquanto Deus, conforme vimos, aparta ser e práxis na oikonomia do mundo – a

qual, por sua vez, traz paradoxalmente, a indistinção entre público e privado –, é

através do contrário, i.e., da coincidência entre ser e ação como marca fundamental

do homem como aquilo que ele faz – a sua práxis –, que o tempo se livra do eterno

retorno a si e tem-se, então, a história: onde o fazer define o ritmo do próprio ser.

O “fazer [que] define o ritmo do próprio ser” é, ainda hoje, e de modo sempre

mais exacerbado, a nossa condição. A nossa práxis nos define. Somos aquilo que

produzimos e sermos melhores significa produzirmos mais em menos tempo, ou

ainda, preenchermos a forma do tempo com mais fazeres.

É precisamente com esse ritmo que a narrativa de Confronto dialoga em um

movimento díspar: se, a partir do momento em que os malabaristas interrompem o

fluxo cíclico do trânsito, há uma análoga interrupção do fluxo histórico, ou melhor, da

linearidade de que se disfarça o círculo, o não prosseguimento da obediência de

Adão às leis divinas que regiam o Paraíso determina a inauguração do tempo

histórico.

O verbo desobedecer, transitivo indireto, implica, no entanto, em um prévio

comando, uma lei precedente, que foi imposta apesar do contexto – o paraíso – não

apresentar qualquer necessidade para a sua existência. O governo divino instituía-

se em uma situação que dispensaria a legislação. Contudo, aquilo a que Adão

desobedeceu foi precisamente uma lei. Se Deus deu aos homens o paraíso e a vida

eterna, ele, contemporaneamente, lhes impôs uma limitação o que faz com que,

diga-se de passagem, tal oferenda não possa configurar-se de fato como um dom.

20

[...] un evento passato ma la forma in cui si costituisce ogni possibile esperienza di sé e del mondo. 21

[...] l‟uomo è divenuto simile a un‟ombra. Non si possono enumerar ele numerose cose impossibili che egli vuole mentre egli non obedisce a se stesso, cioè al suo animo.

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O espaço antropológico e ontológico que é inaugurado com o ato de Adão

fundamenta-se na lei. A própria Bíblia, como confirma o seu nome em hebraico, cuja

primeiras traduções em grego eram nomos – lei – ou didaskalia – ensino –, nasce

como “o livro das leis dos judeus” e foi redigida quando a palavra lei ainda não

existia em grego, quando os povos eram comandados por máximas. A bíblia

introduz no mundo a vida na lei, que tem sua origem não em Atenas ou em Roma,

mas em Jerusalém. E o evento nela trazido sobre o pecado de Adão é um aggadah,

ou seja, um conto alegórico contido em uma das duas categorias fundamentais das

quais os legisladores dispunham, juntamente a uma vasta antologia de nomoi – leis

–, para fazer atuar a justiça (COCCIA, 2008). Sobre o conto fundamenta-se e

delimita-se não menos que a ontologia, o ser humano.

Se graças a Adão a experiência da lei coincidiu imediatamente com a experiência da desobediência, é só na lei e na vida que ela torna possível a possibilidade da existência de uma vontade capaz de distinguir-se do fazer, e uma ação que não siga o desejo. É só graças à lei que o homem teve a experiência de ter uma vontade separável do ritmo dos próprios gestos. (COCCIA, 2008, p. 32, tradução nossa)

22

Na vida na lei, a vontade difere-se do fazer e a ação desvincula-se da sua

condição de consequência do desejo, inaugurando na subjetividade ocidental uma

práxis involuntária, não gerada pelo desejo e, por conseguinte, um desejo estéril,

incapaz de produzir práxis. Havíamos verificado a esterilidade do desejo já na

passagem sobre a carta de Madame de Maintenon: o desejo associado ao tempo

necessário para doar algo que apresenta sem apresentar-se; o tempo em si.

O espaço metafísico, onde teve lugar o evento do “pecado original”, é um

espaço pré-político, ao mesmo tempo em que ele configura-se como o paradigma de

todas as associações políticas. De forma análoga, ali davam-se relações pré-

familiares, ao mesmo tempo em que a união entre Adão e Eva conforma a primeira

família da humanidade. Ou seja, trata-se da origem de todas as sociedades e de

toda família humana, ainda que esteja fora de ambas (COCCIA, 2008).

Para Aristóteles “[...] uma cidade pode ser considerada uma pluralidade de

famílias, de terras e de propriedades autônomas finalizadas ao bom viver [...]”

22

Se grazie ad Adamo l‟esperienza dela legge ha coinciso immediatamente con l‟esperienza dela disobbedienza, è solo nella legger e nella vita che essa rende possibile che potrà esistere una volontà capace di distinguersi dal fare, ed un‟azione che non segua il desiderio. È solo grazie ala legge che l‟uomo ha fatto esperienza di avere una volontà separabile dal ritmo dei propri gesti.

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(ARISTÓTELES apud COCCIA, 2008, p.33, tradução nossa) 23 . No entanto, a

administração – oikonomia – caracteriza-se pela monarquia, enquanto a política tem,

ou deveria ter, o caráter de uma ordem múltipla – ek pollon archonton24. Ou seja,

configuram-se duas formas de uso do poder, em que, na primeira, o pai pode vigiar

tudo pessoalmente, ao passo que, no governo civil, “[...] o chefe não vê quase nada

senão através dos olhos dos outros” (ROUSSEAU apud COCCIA, 2008, p. 33,

tradução nossa)25. De acordo com Coccia, a distância entre família e cidade é, para

Rousseau, a mesma que existe entre o poder “estabelecido pela natureza” e aquele

“puramente arbitrário”. Esta relação, curiosamente, vale-se da noção da presença

que remete tanto à espacialidade – presença física – quanto à temporalidade – a

aplicação do poder ao longo do tempo. Na oikonomia o poder é aplicado

pessoalmente e a vigilância é realizada através dos próprios olhos, enquanto a

arbitrariedade seria aquilo que determina o governo civil sempre mediado por

terceiros – sem a presença física, mas temporalmente presente –, em contraposição

à aplicação do poder “i-mediato” (BOLTER; GRUSIN, 2000) como ocorre na casa ou

no governo divino da natureza.

O messianismo – ou, segundo Coccia, a sua forma mais difusa, o cristianismo

– nega o conceito grego de experiência política, ou seja, revoga a distinção entre

família e cidade por meio da figura de Deus, cuja administração da casa, por ele

mesmo criada, e do mundo coincidem perfeitamente. Deus seria, de tal forma, capaz

de gerir, sem mediação, ambas instâncias: família ou natureza; sociedade ou

mundo.

A este imediato – sem mediações – como instrumento de poder que permite o

governo em sua forma mais íntima ainda que via terceiros, contrapomos um

autêntico imediato: o blackout de Confronto que não media o fato ocorrido, não

apresenta um feito, mas sim uma abertura à nossa leitura na forma da pura

potência.

De tal sorte, o mundo em si coincidiria perfeitamente com a lei e vice-versa,

conforme a extraordinária pesquisa de Coccia nos indica:

23

[...] una città può essere considerata come una pluralità di familie, di terre e di proprietà autonome finalizzate al buon vivere [...].

24 εκ πολλών αρχοντων: por muitos príncipes.

25 [...] il capo non vede quasi nulla se non attraverso gli occhi altrui.

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Dado que o pai é fisicamente mais forte que seus filhos, pelo menos por todo o tempo em que eles precisam de ajuda, o poder paterno justamente parece ser estabelecido pela natureza. Na grande família da qual todos os membros são ao contrário naturalmente iguais, a autoridade política puramente arbitrária, quanto à sua instituição, não pode ser fundada senão sobre convenções, nem o magistrado pode comandar aos outros senão em virtude das leis. (IVI apud COCCIA, 2008, p. 34, tradução nossa)

26

Colocar o mito da criação no livro Gênesis, início do corpus juris – o livro das

leis dos judeus –, faz com que a formação do mundo proceda sincronicamente à

formação da lei que o governa. E, logo, negar a doutrina da criação seria eliminar a

lei, o governo providencial.

A existência da necessidade de um governo e de uma cura – de um cuidado –

está condicionada a uma criação.

Não somente onde há paternidade há autoridade, mas a cada vez que existe uma relação de autoridade deve haver e ser instaurada uma relação de paternidade. [...] A criação é fruto de uma dedução jurídica e não cosmológica. (COCCIA, 2008, p.35. tradução nossa)

27

Fica declarado, através da indistinção entre o paradigma da criação e a

fundação política, que não pode existir direito sem criação e que esta não pode

acontecer distante de um ato de poder e normatização sobre as coisas.

O gesto de Adão é um gesto político porque diz respeito e define toda a

natureza humana, mas é capaz de sê-lo justamente pela indistinguibilidade pré-

estabelecida entre poder e natureza, soberania e geração. O governo divino é

aplicado igualmente e de forma i-mediata, tanto na administração da casa por ele

criada quanto no governo do mundo. A desobediência de Adão assinala a ruptura da

indistinção rousseauniana entre as instâncias do poder “estabelecido pela natureza”

e “puramente arbitrário”. A não resistência de Adão à sua vontade, ou, em outras

palavras, a fertilização do seu desejo em sua ação, indica, por outro lado, a

resistência, o desacordo, a rejeição ao primeiro e mais banal comando que, se

tivesse sido obedecido, teria cessado de ser lei para ser um “[...] mero

prosseguimento do ato de criação. Só onde existe desobediência a ordem da

26

Dato che il padre è fisicamente più forte dei suoi figli, per almeno tutto il tempo in cui è loro necessario un aiuto, il potere paterno a ragione sembra essere stabilito dalla natura. Nella grande famiglia di cui tutti i membri sono invece naturalmente eguali, l‟autorità politica puramente arbitraria, quanto alla sua istituzione, non può essere fondata che su delle convenzioni, né il magistrato comandare agli altri che in virtù delle leggi.

27 Non solo lá dove c‟è paternità c‟è autorità, ma ogni volta che c‟è una relazione di autorità deve esserci ed essere instaurato un rapporto di paternità. [...] La creazione è frutto di una deduzione giuridica e non cosmologica.

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soberania não é mais reconduzível à ordem natural [...]” (COCCIA, 2008, tradução

nossa)28. Graças à resistência de Adão à lei e à não resistência ao seu desejo, o

poder desvinculou-se da natureza, passando a não mais representar, pelo menos

para os homens, algo de natural.

O que Adão inventou, ao desobedecer, foi um modo de vida no qual a lei não

mais dissimulava-se na forma de natureza – inerente à vida. Efetivamente, este

modo de vida inventado – esta resistência – não poderia opor-se a outra coisa senão

à lei, já que ela baseia-se justamente no distanciamento do lado natural do homem –

de seu desejo e de seu ócio – de si mesmo, criando, por fim uma inatureza humana.

A projeção daquilo que a lei permite que seja feito configura um

enquadramento de características que compõem, a partir desta permissão-seleção,

narrativas mestras, que, no caso da historicização do tempo, terá a forma sequencial

de acontecimentos que se sucedem, encadeados conforme um antes e um depois:

causas e efeitos, comandos e cumprimentos.

A práxis obliterada do desejo, isto é, uma práxis vinculada a um exterior, ao

poder, não permite que haja exterior para nós, ou seja, que não haja práxis fora do

poder, uma vez que ela conecta-se intimamente a ele. Pensamos o contexto de

Confronto como uma práxis alienada – os motoristas dos carros, o trabalho podem

converter-se, a partir do blackout, em potência, potentia novamente. Por outro lado,

a História é a história dos grande acontecimentos, dos feitos ilustres, ou seja, ela

não nos leva em consideração, independe de nós, conforme dissemos. Abrir o

tempo, interromper o fluxo histórico, retilíneo, destruir a presença, é, sobretudo, a

oportunidade de podermos ler como bem queremos, de podermos imaginar e criar

outros modos de vida, i.e., de podermos ser agentes da história, de poder escrevê-la

também – no lugar de uma história em que o sujeito real é o Estado, o poder. A

heterogeneidade é uma história múltipla, dos pequenos fatos.

Sabe-se, entretanto, que não todas as manifestações artísticas propõem-se

ou são capazes de elaborar pensamentos com densidade que possa configurar

resistências reais à dominação, ao controle, como nos alerta Stéphane Huchet:

Hoje, muitos artistas usam o termo “político”, muito abrangente, para abrigar a questão da relação da arte com a sociedade, do impacto de suas realizações, reciclando a velha questão da relação entre arte e vida, tão

28

[...] mera prosecuzione dell‟atto di creazione. Solo dove existe disobbedienza l‟ordine dela sovranità non è più riconducibile all‟ordine naturale [...].

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forte no início do século XX. Muitas vezes, o uso desse termo serve inclusive à não-problematização de seus limiares e de seus caminhos de aproximação. (HUCHET, 2010, p. 1099-1100)

As manifestações artísticas que se colocam frente aos discursos dominantes

e questionam seus limiares, restituindo a participação de todos na escrita da história,

são configurações políticas que conformam contrapontos às narrativas que Arthur

Danto chama de narrativas mestras da história [da arte]. A nosso ver, elas seriam

políticas por aproximarem-se da nossa heterogênea experiência do tempo, refutando

o ponto de vista histórico, a história contada, única, a História dos Feitos Ilustres.

Elas tratam precisamente dos grandes feitos, passado do verbo fazer. Este mesmo

mecanismo é aplicado ainda hoje pelo discurso midiático que, mesmo em seu

aspecto múltiplo, tanto nos suportes quanto nas temporalidades, exerce o poder de

contar aquilo que foi, desprovendo o feito de suas possibilidades de vir-a-ser. Por

isso, apesar de sua aparente multiplicidade – como vimos na teologia –, o tempo

acaba por ser traduzido como uma seta, uma vez que o passado passou, que os

acontecimentos são re-apresentados sem sua potência, de forma totalizante, nos

fazendo imaginar que continuamos a andar para frente.

As obras que aqui analisamos configuram resistências à exclusividade dos

discursos dominantes. Todas elas opõem-se à história em sua unicidade discursiva,

cada uma a partir de uma problematização estética.

Para Danto, a partir de um determinado momento por ele denominado “fim da

arte”, a “arte contemporânea não mais permite ser representada por narrativas

mestras de modo algum” (DANTO, 2006, p.XVI). A morte, ou o fim a que ele se

refere, claramente, não é da arte em si, mas de uma narrativa legitimadora da arte:

“Uma história havia acabado” (DANTO, 2006, p.5) e seria, ao contrário, “o primeiro

dia do resto de sua vida” (DANTO, 2006, p.6). A narrativa mestra ou dominante diz

sobre uma especialização de técnicas que, ao desenvolverem-se, acumulam-se,

sobrepõem-se e sucedem-se em direção a um aperfeiçoamento. Danto indica que a

teoria defendida pioneiramente por Giorgio Vasari – para quem a arte seria a

conquista progressiva da aparência visual – e, posteriormente, por Clement

Greenberg não dá conta das manifestações artísticas que não se comportem como

sucessoras da manifestação técnica e cronologicamente anterior. O acúmulo de

técnicas e progressivas conquistas que esta narrativa seguia é a mesma da qual

Crisóstomo fala: “um cumprimento [plērōsis] e uma adição em direção ao melhor

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[...]". Greenberg defenderia a arte como história sancionada, i.e., algo que deve levar

em consideração os avanços, entendendo-se como uma linha progressiva. Para ele,

as manifestações que vieram “após o fim da arte” estariam para

[...] além do limite da história, aconteceu mas não foi parte significativa do progresso [demonstrando] até que ponto a identidade da arte estava internamente ligada à participação de uma narrativa oficial. (DANTO, 2006, p. 11)

A história vincula-se de modo tão estreito à arte, até o ponto da última ser

apreciada sob a perspectiva de uma narrativa, conforme antecipado por Greenberg:

“uma história progressiva linear [...] juntamente com o aprendizado das sequências

históricas” (DANTO, 2006, p. 19).

Deste modo, a partir da década de sessenta, ter-se-ia instaurado, segundo

Danto, uma historicidade do presente marcada pela inaplicabilidade de qualquer

narrativa mestra na qual estariam, finalmente, incluídas as obras antes localizadas

temporalmente para além do limite da história – algo, por excelência, político.

Quando a arte não mais diz o que foi o mundo – mas diz sobre si –, ela se

abre historicamente, pois se torna dádiva, não possuindo atributo ou equiparação na

forma do mundo exterior. Ela não mais diz sobre algo, mas diz algo. “E em razão da

situação presente ser essencialmente desestruturada, a ela não pode mais se

adequar uma narrativa mestra” (DANTO, 2006, p. 127). Acreditamos, porém, que

essa desestrutura surge por ser inerente à vida, assim como nossa experiência do

tempo é, por natureza, múltipla. Aquilo que Danto chamou de arte após o fim da arte

é, em si, uma forma de resistência.

No posfácio à edição brasileira do livro de Danto, Virginia Aita acrescenta:

Esse outro nível de consciência filosófica da arte torna possível a coexistência pacífica de diversas narrativas num cenário pluralista marcado por seu caráter disjuntivo [e] assinala a resistência da arte pós-histórica [...]. (DANTO, 2006, p. 277)

A narrativa oficial ou mestra, discurso dominante ou história dos res gestae,

corresponde a conformações comprazentes da representação sequencial e linear do

tempo. Se a arte contemporânea admite a coexistência de múltiplas narrativas, ela

está mais próxima da nossa experiência.

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Atemo-nos às questões estéticas privilegiadas por obras que revocam

aspectos da conformação espacial da representação do tempo direta e

pungentemente, como é o caso do Programa Cosmococa – CC –, obra de Hélio

Oiticica e Neville D‟ Almeida, elaborada entre os anos de 1973 e 1974.

Cinco Cosmococas foram recentemente reunidas e montadas em um espaço

único, no Centro de Arte Inhotim. Em uma espécie de pavilhão, estão hoje

disponíveis para visitação Trashiscapes, Onobject, Maileryn, Nocagions e Hendrix-

War, nomes dados, respectivamente, às CCs, de 1 a 5, às quais dedicamos uma

sessão do nosso trabalho.

Cada uma das CCs é um “bloco-experimento” ou “bloco de experiências”. São

“ambientes sensoriais com projeção de slides, trilhas sonoras e diversos elementos

táteis” 29 . Cada CC faz parte daquilo que Oiticica chamou de “quasi-cinemas”:

instalações ambientais cujas projeções de imagens posicionam-se em um estado de

formação, na iminência do cinema, em devir, in process, como diz o título. Elas

colocam-se no limiar entre a as narrativas cinematográficas a nova configuração

espacial oferecida pelas as obras de arte que trabalham o audiovisual.

Se, no cinema, o espectador é imerso em um contexto que o isola do mundo

no intuito de conduzir sua experiência em direção à narrativa sequencial oferecida, a

imagem em movimento inserida no circuito da arte, como a TBA, por outro lado,

oferece uma nova temporalidade que é inerente à obra em si, por meio, muitas

vezes, de narrativas fragmentadas, mas também por meio de relações espaciais

mais livres entre o espectador e a fruição – que diferencia-se da imersão. Ao ser

apresentada em um galeria de arte, a duração que o ato de assistir terá é

determinada pelo espectador e não pela obra. A ele também é oferecida maior

abertura espacial no sentido de, algumas vezes, não serem dispostas cadeiras

enfileiradas e direcionadas à tela. A relação que o espectador – ou participante, no

caso da CC – tem com a obra é, em si, mais fragmentada. Ele pode assistir a uma

parte da obra, sair da sala e voltar em outro momento, ou mesmo não voltar,

optando por absorver apenas parte da narrativa.

É sobre esta liberdade que o “quasi” diz. Os autores das CCs frisavam o fato

dos blocos serem um programa e não um projeto, proposições experimentáveis que

não remetem à temporalização do tempo, refutando a ideia da projeção temporal,

29

INHOTIM, Cosmococas 1-5, 2009.

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inerente, como vimos à própria etimologia da palavra: projeção temporal que

antecipa o futuro, i.e., informando que o tempo é uma seta. “Projeto associa-se a

visões utópicas de construção de um futuro. Programas não idealizam ações e obras

para o futuro, mas anunciam a experimentação” (CARNEIRO, 2007). Ou seja, era

uma preocupação dos autores que a obra não constituísse uma narrativa histórica,

mas que elidisse, esteticamente, em contrapartida, a formação de narrativas ou

discursos dominantes. Em outras palavras, que não fizesse parte da constituição da

história dos res gestae, sobre a qual falaremos em uma breve passagem que nos

permitirá compreender melhor as implicações da ações e desarticulações

empreendidas pelos autores da Cosmococa, antes de prosseguir em sua leitura.

3.7 A História como res gestae

As Histórias desejam combater o caráter destrutivo do tempo. Retornamos

[incessantemente] à Crisóstomo: “Afim que, ouvindo esta palavra, não se acredite

que se trate de uma destruição total, mas, de alguma maneira, de um acréscimo e

de um dom verso o melhor". Isto é, estamos melhorando; ao passo que podemos ver

o que foi feito, somos testemunhas do que foi e poderemos comparar para seguir

melhorando, acumulando história e tempo.

“Assim como a palavra que indica o ato de conhecer (eidénai), também a

palavra história deriva da raiz id-, que significa ver. Histór é, na origem, a

testemunha ocular, aquele que viu” (AGAMBEN, 2008, p. 114). Restringe-se, assim,

a história à condição da presença, do olhar, da visibilidade e do testemunho. A

supremacia grega do olhar determina a “presença do olhar” como condição para o

ser autêntico, excluindo assim a experiência da história como “[...] aquilo que já está

sempre lá sem jamais estar sob os olhos como tal” (AGAMBEN, 2008, p. 114). Mas

a necessidade da presença é imposta pelas Histórias que insistem em construir-se a

partir dos grandes feitos – res restae –, implicando, de tal forma, a vã tentativa de

combater o caráter destrutivo do tempo e corroborando a inútil obsessão do homem

em dominar, quantificar, ganhar, possuir e fazer passar o tempo. Tem-se a

conversão da multiplicidade em acúmulo, da dádiva em soma, herança e dívida, em

contraponto à destruição, nossa irrevogável e verdadeira condição. Por isso a

necessidade de uma experiência autêntica do tempo, imediata – sem mediações –,

múltipla, ociosa, dispendiosa.

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Como afirma Agamben, as transformações culturais estão atreladas às

transformações sobre a representação temporal. O tempo, no cristianismo –

diferentemente da noção circular helenística –, como sabemos, é representado por

uma linha reta cuja origem, duração e fim desenvolvem-se a partir da Gênese e em

direção ao Apocalípse. “A história [...] se tornou uma série de fatos que progrediam,

de um início bem definido para um objetivo estabelecido. Nascia a história da

salvação, a ideia do tempo linear” (DISCOVERY, 1994). O tempo cristão possui um

único sentido que é aquele que remanesce até a chegada escatológica da redenção

final.

A partir do cristianismo, o movimento circular dos astros deixa de constituir o

mecanismo de mensuração do tempo e este passa a ser um fenômeno

essencialmente humano e interior, como sugeriu Santo Agostinho: “[...] É em ti, meu

espírito, que eu mensuro o tempo” (AGOSTINHO apud AGAMBEN, 2008, p.114).

Enquanto a compreensão do tempo como sucessão contínua de instantes

conforme um antes e um depois for aquela que determina a representação do

tempo, existirá sempre uma incongruência, um hiato entre essa representação e

nossa experiência. E, segundo Agamben, não será possível construirmo-nos como

seres autênticos, já que nossa história será a historia rerum gestarum, ou seja, a

„história dos feitos ilustres, das grandes empresas‟, segundo, obviamente, a ótica de

quem a escreve, e, na qual, por fim, o “sujeito real da história é o Estado”

(AGAMBEN, 2009, p. 120). É a esta noção que se distancia a concepção do

programa CC, que propõe, por sua vez, outras relações com o tempo, que não seja

o encadeamento sequencial de ações, conforme veremos.

A idade moderna absorve a concepção grega do tempo como sucessão

contínua de instantes pontuais e, por quanto tenha dissociado-se da noção de fim,

própria à concepção eclesiástica, mantém a ideia de “qualquer sentido que não seja

o de um processo estruturado conforme o antes e o depois” (AGAMBEN, 2008, p.

117). Se na antiguidade e no cristianismo esta sequência causal tratava-se de uma

noção incerta, calcada em vista de um fim do tempo – o Apocalipse –, na

modernidade, o antes e o depois passam a ser o sentido em si e por si, que é,

então, apresentado como aquilo que é verdadeiramente histórico. O “processo” – a

velha sucessão de instantes – passa a ser a concepção de história na modernidade

e, associado à noção de “desenvolvimento”, integra as categorias-guia do

conhecimento (AGAMBEN, 2008).

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O grande impedimento que a ideia do tempo como sucessão contínua de

instantes pontuais impõe à formulação de uma história autêntica é que, assim, a

verdade caberá sempre ao processo como um todo, i.e., à história contada, no

singular, como se a profusão de acontecimentos que transcorrem no tempo

pudessem ser resumidos a uma única narrativa.

A partir da contextualização da regente representação temporal, que baseia-

se na exclusão de quaisquer acontecimentos que não ocupem devidamente seu

local na organização cronológica passado, presente e futuro, temos os precedentes

necessários para uma aproximação da obra cuja apresentação foi brevemente feita

nesta sessão.

3.8 Cosmococa – programa in progress

Como vimos, a temporalização do tempo é elidida pelos artistas em CC já a

partir da formulação do título que privilegia o caráter experimental dos programas em

detrimento do planejamento futuro dos projetos.

Analisando o termo cosmos, Beatriz Carneiro, sob o título de Coca cósmica,

pondera, em seu artigo, o percurso de traduções seguido pelo termo:

A palavra cosmos era um termo específico da prática jurídica da Grécia antiga com o sentido da reta ordem da Cidade Estado. Com o filósofo Anaximandro de Mileto (609/610 a.C. - c. 547 a.C.) a noção de cosmos se projetou na natureza e adquiriu o significado mais próximo do que conhecemos hoje. (JAEGER apud CARNEIRO, 2007)

No entanto, kosmos, a partir de sua tradução para o latim, tornou-se Universo,

cuja raíz grega é, segundo estudos filológicos de Agamben, καθολικής (católica).

Efetivamente, o significado atribuído hoje a cosmos remete à ordem, enquanto o

“Programa Cosmococa: programa anti-cosmos, invenção de cosmos outros,

combate [a] ordem do mundo ao captar forças que atualizam o porvir” (CARNEIRO,

2007). Lembramos, ainda, que o termo cosmos segue em oposição ao termo caos e

identificamos, por outro lado, que a resistência em CC propõe-se a partir da

reconfiguração da relação com o tempo, que se dá, finalmente, não mais através da

representação organizada cronologicamente.

Os espectadores, ou participantes, como prefere Beatriz Carneiro, são

convidados a fazer parte das obras, experimentando a multisensorialidade para além

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da experiência multimídia, ou seja, da experiência mediada. Na CC, o

multissensorial é o contato com o próprio corpo, imediato.

Antes de entrar nos blocos, os participantes são convidados a retirar os

sapatos. As CCs são apresentadas por fichas técnicas que contêm indicações sobre

a trilha sonora e sugestões de ações a serem desenvolvidas durante a fruição. As

imagens projetadas são slides, fotografias de desenhos feitos por carreiras de

cocaína em capas de discos ou livros. Os artistas, que foram usuários sem culpa da

cocaína, faziam dela também uso estético, remetendo ao ócio, à nossa original

condição da qual Coccia indica que fomos extirpados quando o tempo temporalizou-

se.

A cocaína era também a promotora de mundos simultâneos, da extensão dos corpos ao mundo e das coexistências. Ao seu uso, Oiticica atribuía uma saída da vida do trabalho e da competição porque os modos de vida não precisam ser superados, eles coexistem. A prima, como Oiticica chamava a coca, era a alienação nas imagens das infinitas experiências simultâneas. (CERA, 2012)

Na entrada da CC1, Trashiscapes, são disponibilizadas lixas de unha. Os

participantes são convidados a experimentar a obra, transcorrendo o tempo

acomodados em colchões e almofadas, assistindo aos slides projetados em duas

paredes. As projeções deslizam contemporaneamente ao som de forró, baião, Jimi

Hendrix e outros sons, o que, por si só, configuram uma relação múltipla com o

tempo e o contexto original das músicas, uma anacronia. As imagens são de

instrumentos para o uso da cocaína e desenhos feitos pelas carreiras. As ações que

os participantes realizam remetem “à postura preguiçosa de pouco se lixando”

(CARNEIRO, 2007).

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Figura 7 - Cosmococa - Program in Progress, CC1 Trashiscapes

Fonte: OITICICA; D’ALMEIDA, 2012

O ócio sugerido aos participantes é o contraponto à representação sequencial

e linear do tempo à qual somos submetidos no nosso dia a dia.

Então veio uma outra mudança fundamental ligada ao pensamento religioso: o que se tornou conhecido como Norma de São Benedito no cristianismo ocidental iria mudar profundamente a rotina diária. O ócio é inimigo da alma [Idleness is an enemy of the soul]. Saint Benedict.

(DISCOVERY, 1994)

Como vimos, a partir de Coccia, existe um círculo vicioso entre a negação do

instinto natural da natureza humana – a nossa inatureza –, que se reflete

precisamente no fazer vazio, que, por sua vez, temporaliza o tempo, perpetuando o

fazer como proceder desvinculado do desejo e configurando uma práxis

indiferenciada. Esta dinâmica foi tratada por Derrida com relação às trocas do círculo

econômico que endividam e propulsionam o prosseguimento delas mesmas, sem

fim. A restituição da ociosidade operada pela CC é a inoperância autêntica por

excelência. Ela nos dá o direito de não fazer, nos devolve à condição de seres em

contraposição à noção de profissionais, que tende a substituir-nos.

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A partir de estudos filológicos de Agamben e Emanuele Coccia, é possível

compreendermos o quanto o distanciamento do ócio é fundamental para a

transformação do tempo em história.

3.8.1 klēsis, Beruf

Como já dissemos, o sentido da humanidade resume-se, hoje, em progredir e

desenvolver em direção a um fim que não é outro senão o do desenvolvimento do

próprio progresso que permanece, por sua vez, em uma infinita retroalimentação. As

causas para que fosse atingido o extremo verificado podem ser conferidas, em

alguma instância, a desdobramentos do uso do termo klēsis, cuja tradução seria

vocação ou chamado.

A utilização que nos interessa deste termo é indicada por Agamben em um

trecho da Carta de São Paulo aos Romanos: “O termo klētós, do verbo kaléō,

chamar, significa „chamado‟ (vocatus, traduz Jerônimo)” (AGAMBEN, 2000, p. 25,

tradução nossa)30. O trecho no qual compare, no entanto, a menção a este termo é:

Quanto ao resto, [...] cada um como Deus chamou, assim caminhe. Assim disponho em todas as comunidades [ekklēsíais, ainda uma palavra da família de kaléō]. Alguém foi chamado de circunciso? Que não se extraia o prepúcio. Alguém foi chamado de com prepúcio? Que não se faça circuncidar! A circuncisão é nada e o prepúcio é nada ... Cada um permaneça na chamada na qual fora chamado. Foi chamado de escravo? Não se preocupe. Mas mesmo que possa transformar-se em livre, ao contrário faça uso. Quem foi chamado de escravo no senhor, é um liberto do senhor. Da mesma forma, que foi chamado de livre, é escravo do messias. (COR. 7, 17-22 apud AGAMBEN, 2000, p. 25, tradução nossa)

31

É patente a conotação de permanência no sentido atribuído à vocação. Esta

permanência é o circulo vicioso do qual falamos. Uma inércia – ou inoperância,

como a entendemos – na qual está indicado que permanecer faz progredir. Não nos

preocupemos, permaneçamos e tudo andará bem. Esta é a inoperância cínica à qual

30

Il termine klêtós, dal verbo kalétô, chiamare, significa “chiamato” (vocatus, traduce Girolamo). 31

Per il resto, [...] ciascuno come Dio ha chiamato, così cammini. Così dispongo in tutte lecomunità [ekklēsíais, ancora una parola dela famiglia di kaléō]. Uno è stato chiamato circoncisio? Che non si tiri il prepuzio. Uno è stato chiamato col prepuzio? Che non si faccia circoncidere! La circoncisione è nulla e il prepuzio è nulla ... Ciascuno rimanga nella chiamata in cui fu chiamato. Sei stato chiamato schiavo? Non preoccupartene. Ma se anche puoi diventare libero, piuttosto fa uso. Chi è stato chiamato schiavo nel signore, è un liberto del signore. Allo stesso modo, chi è stato chiamato libero, è schiavo del messia.

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a apraxia autêntica do gesto de lixar as unhas sugerido na CC1 se opõe, resistindo.

Como veremos, esta resistência perpassa o conceito também das demais CCs.

Mas o que será, a nós, caro é a condição de “absoluta indiscernibilidade” da

vocação messiânica enquanto movimento de “[...] imanência e transcendência, entre

este mundo e aquele futuro” (AGAMBEN, 2000, p. 30, tradução nossa)32. A klēsis

funciona, portanto, como um operador anacrônico.

A questão levantada pelas CCs, para a qual buscamos uma reposta por meio

de incursões filosóficas, é como tornou-se possível a necessidade de se criar

espaços restritos ao não fazer. Imaginamos que o legado que permanece a partir do

modo como o termo klēsis foi traduzido e, posteriormente, utilizado, seja uma fonte

de compreensão para este questionamento. “É através da versão luterana que um

termo que significava originalmente somente a vocação que Deus ou o messias

endereçam a um homem, adquire, de fato, o significado moderno de „profissão‟ [...]”

(AGAMBEN, 2000, p. 26, tradução nossa)33. Aquilo que existiria de mais intrínseco a

nós tem impresso em seu significado, a partir da tradução luterana, o significante

que contém em si os conceitos de processo e desenvolvimento. Agamben indica

ainda como este operador anacrônico desarticula seus significados: Beruf34 é a

união de vocação e profissão mundana:

Enquanto descreve esta imóvel dialética, este movimento surplace, a klēsis pode confundir-se com a condição factível e com o estado e significar tanto “vocação” quanto Beruf. (AGAMBEN, 2000, p. 28, tradução nossa)

35

Se a tradução luterana foi aquela que prevaleceu e se o texto original de São

Paulo nos indica uma nítida acepção acerca da imobilidade e da permanência sobre

a relação do sujeito com sua vocação, o que temos, hoje, é uma leitura da

fundamental necessidade de mantermo-nos estáticos (ou no movimento circular que

retorna ao mesmo ponto) na profissão, que, estando intimamente vinculada às

noções de processo e desenvolvimento, implica em sermos constantes em tal moto,

ainda que ele não leve a nenhum fim que não a perpetuação de si mesmo.

32

[...] immanenza e trascendenza, tra questo mondo e quello futuro. 33

È attraverso la versione luterana di un temine che significava in origine soltanto la vocazione che Dio o il messia rivolgono a un uomo, acquista, infatti, il significato moderno di “professione” [...].

34 Em alemão, profissão.

35 In quanto descrive ques‟ immobile dialetica, questo movimento sur place, la klēsis può confondersi con la condizione fattizia e con lo stato e significare tanto “vocazione” che Beruf.

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A tradução da palavra vocação, cujos sinônimos conferidos pelo dicionário

são predestinação, tendência, talento, aptidão36, culminou em uma equiparação ao

significante profissão. Em contraposição ao sentido de permanência que nos é

indicado acerca desta vocação-profissão, o chamado que os participantes recebem

de Oiticica e D‟Almeida é um convite ao puro ócio. Um convite a opormo-nos à

secular cultura judaico-cristã que nos diz que nascemos para o trabalho, o

progresso, o acúmulo e o desenvolvimento.

Este convite à resistência é realizado em todas as cinco CCs. Na CC2,

Onobject, no lugar de colchões, temos uma grossa espuma cobrindo todo o chão, e

no lugar das almofadas, sólidos como cones, cubos e cilindros feitos, também eles,

de espuma. Ao invés de lixar as unhas, a sugestão é dançar, pular e jogar os sólidos

de espuma para cima. Enfim, brincar e se desestabilizar num chão que nos

desequilibra. Aquilo que nos vem em mente quando pensamos na imersão, não só

na CC2, mas também em outros blocos-experiências, é uma mudança radical sobre

a experiência do tempo. Sabemos que nos blocos das CCs estamos desvinculados

da noção do fazer cíclico que simula acúmulo. A noção que rege as CCs é, ao

contrário, a perda de tempo, seu desperdício. A brincadeira coloca-se precisamente

à contrapêlo em relação à ideia de uma práxis que leva à formação de um produto.

São desarticulações com os significados que os produtos têm – suas funções –,

aberturas que partem da transformação de produtos em objetos, que por sua vez

remetem ao título da CC2. Objetos em sua materialidade pura, a partir da qual

criamos.

36

Médio Dicionário Aurélio, p. 1760.

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Figura 8 - Cosmococa - Program in Progress, CC2 Onobject

Fonte: D’ALMEIDA ; OITICICA 2012

Citando o romance de Carlo Collodi, Pinóquio, Agamben faz a seguinte

inferência:

Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma mudança e aceleração do tempo: „Em meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num lampejo‟. [...] o jogo, [...] mesmo que não saibamos ainda como e por que, altera [o calendário] e o destrói. (AGAMBEN, 2008, p.82-84)

O jogo, como entendemos as brincadeiras praticadas pelos participantes das

CCs, no entanto, não somente corrompe a noção da passagem sequencial do

tempo, como também profana a esfera de onde, originalmente, ele provém.

Pois, se é verdadeiro que o jogo provém da esfera do sagrado, também é verdade que ele a transforma radicalmente, ou melhor, inverte-a a tal ponto que pode ser definido sem exagero como „sagrado às avessas‟. (AGAMBEN, 2008, p.84)

Pensando sobre o fato de os brinquedos serem atualizações de algo que, no

passado, pertenceu à esfera do sagrado ou à esfera prático-econômica do mundo

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do trabalho, por assim dizer, ou que, por fim, originou-se, além de uma destas

esferas, da miniaturização e desvio de tais objetos à esfera do uso, as formas

geométricas da CC2 colocam, por sua vez, em xeque o racionalismo,

transformando, para tanto, em brinquedo aquilo que poderia ser visto como símbolo

da razão ali representada pelos sólidos de espuma. Formas que teriam em si toda

uma carga histórica, ao serem manuseadas pelos gestos das brincadeiras, retornam

à sua condição de sólido como pura forma. A essência do brinquedo é

eminentemente histórica.

Aquilo que o brinquedo conserva do seu modelo sagrado ou econômico, aquilo que deste sobrevive após o desmembramento ou miniaturização, nada mais é que a temporalidade humana que aí estava contida, na sua pura essência histórica. (AGAMBEN, 2008, p.87)

Logo, aquilo que os participantes fazem ao imergir-se na CC2 é transcorrer o

tempo de um modo que desintegra a sequência linear do calendário – aqui

entendido como o tempo representado pela sua mensuração –; é tornar lúdica a

relação com a razão – através do jogo com seus símbolos –, fazendo passatempo

do acúmulo espacial da história que nos objetos sedimenta-se. “O brinquedo é uma

materialização da historicidade contida nos objetos [...]. Aquilo com que brincam as

crianças é a história” (AGAMBEN, 2008, p. 87-88). Tendo em mente que a nossa

relação com o tempo é uma relação “profissional”, por assim dizer, em que tentamos

acumulá-lo, equiparando, a todo instante, significantes a significados e fazendo uso

de objetos de um modo predefinido que oriente o seu manuseio a um melhor

aproveitamento do próprio tempo, a destituição destes significados por meio da

brincadeira estabelece uma nova linguagem, um novo modo de ver o mundo, uma

outra relação com o tempo. Brincar é brincar com o tempo, transformá-lo em algo

lúdico em contraposição à sua forma de progressão numérica.

Também na CC3, Maileryn, assim como em todos os blocos das CCs, o

aspecto lúdico prevalece. O chão é formado por pequenas dunas de areia, cobertas

por uma lona de plástico rígido, sobre as quais “os participantes são convidados a

deitar e rolar [...]” (CARNEIRO, 2007), em um recorrente convite ao ócio. E os

objetos com os quais brincam são balões amarelos e alaranjados que flutuam pelo

bloco.

O puro ócio volta a ser diretamente remetido pelas redes distribuídas na CC5,

Hendrix-War. Elas são, por excelência, o lugar para se jogar tempo fora, a autêntica

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inoperância que se dá a ver, pois não se deseja crescer, melhorar, mas ficar deitado.

As redes são criações indígenas – sociedades sem escrita e sem "história", pelo

menos na nossa concepção. Os índios vivem no tempo mítico, e não no tempo da

história sancionada, dos grandes feitos.

As redes da CC5 são, por sua vez, colocadas ao lado de projeções de

imagens ao som de músicas pop, o que configura, como dissemos anteriormente,

um anacronismo – o primitivo ao lado da tecnologia –, ou seja, uma pura montagem

de tempos, na qual se vive uma verdadeira multiplicidade.

Figura 9 - Cosmococa - Program in Progress, CC5 Hendrix-War

FONTE: D’ALMEIDA; OITICICA 2011.

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Nas redes, ao deitar, as pessoas solevam-se em um movimento que remete à

leveza, não mais tendo que sustentar nem mesmo o peso do próprio corpo,

liberando-se também de pesos que ficarão, momentaneamente, para além do

casulo, no qual cada participante se isola da temporalidade do mundo do trabalho. A

trilha sonora é de Hendrix, que em 1970, declarou “quando as coisas ficarem

pesadas demais, me chame de Hélio” (CARNEIRO, 2007).

Uma analogia entre o conceito de heteropia de Michel Foucault e as CCs é

realizada por Beatriz Carneiro. O conceito é trazido por Foucault em seu texto

“Outros espaços”, que, embora escrito em 1967, foi publicado somente em 1984.

Antes, no entanto, a ideia de heterotopia é mencionada pelo autor no prefácio de

seu livro “As palavras e as coisas” (2007). Neste prefácio, Foucault parece vincular

diretamente o conceito de heterotopia à etimologia da palavra utopia no que

concerne a sua referência espacial, fazendo-nos notar que seu pensamento estaria

atrelado principalmente à noção de espaço, embora algumas vezes seja possível

inferir que sua ideia sobre o tempo tinha um caráter mais ligado à liberdade e ao

porvir do que aquela sobre o espaço:

[...] entre o olhar já codificado e o conhecimento reflexivo, há uma região mediana que libera a ordem no seu ser mesmo: é aí que ela aparece, segundo as culturas e segundo as épocas, contínua e graduada ou fracionada e descontínua, ligada ao espaço ou constituída a cada instante pelo impulso do tempo. (FOUCAULT, 2007, p. XVII)

Foucault indica, em “Outros Espaços”, as chamadas heterotopias de desvio:

“aquela na qual se localizam os indivíduos cujo comportamento desvia em relação à

média ou à norma exigida” (FOUCAULT, 2009, p. 416). Embora os exemplos dados

como heterotopias de desvio sejam as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas e

as prisões, talvez seja possível imaginar as CCs sob as mesmas características, a

partir de sua condição desviante, não só da regra lazer, mas sobretudo da regra

trabalho: “em nossa sociedade em que o lazer é a regra, a ociosidade constitui uma

espécie de desvio” (FOUCAULT, 2009, p. 416).

A aproximação realizada pela autora torna-se, para nós, ainda mais

interessante quando as CCs são relacionadas, especificamente, com a noção de

heterocronia, quarto princípio heterotópico circunscrito por Foucault, sob dois

âmbitos. Enquanto há heterotopias do tempo “que se acumula infinitamente”, como

as bibliotecas e os acervos permanentes de museus, há, em contraposição, “as

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heterotopias que estão ligadas, pelo contrário, ao tempo no que ele tem de mais fútil,

de passageiro, de mais precário, e isso sob a forma da festa” (FOUCAULT, 2009, p.

419) ou, como vimos, da brincadeira, enquanto “rupturas na vida ordinária, desvãos”

(CARNEIRO, 2007).

As heterotopias estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo, ou seja, elas se dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronias; a heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional [...]. (FOUCAULT, 2009, p. 418)

Tal ruptura é impulsionada pelo aspecto lúdico que, como já vimos, a partir da

CC2, por exemplo, subverte nossa usual relação com o tempo e impõe-se como

resistência à representação e mensuração do tempo, pois delas nos livra, fazendo-

nos experimentar o tempo sem mediadores. Ainda segundo Carneiro, esta nova

relação com o tempo sugere “situações de prática de liberdade, campo aberto para

experiências reais em que os corpos experimentam o que podem” (CARNEIRO,

2007). Esta liberdade perpassa a obra desde a sugestão “quasi-cinema” e nos

convida a experimentá-la, infligindo uma mudança nos próprios ritmos dos

movimentos corporais, uma desaceleração considerável, não somente física, mas

em que também o pensamento altera seu ritmo. Finalmente parece que livramo-nos

das representações do tempo que nos dizem o que fazer com ele, dentro de um

período, para simplesmente experimentá-lo, heterogêneo e múltiplo como ele é,

desperdiçando-o, perdendo-o, fazendo-o passar e não acumulando-o, preenchendo-

o, como se ele fosse uma forma capaz de conter ou comportar algo dentro de si.

Se, no início deste trabalho, tivemos a oportunidade de circunscrever o

problema da imensurabilidade do tempo, a partir das análise empreendidas por

Derrida sobre a carta de Madame de Maitenon, no momento seguinte desta análise,

o autor verifica precisamente a noção do preenchimento do tempo, contra a qual as

ações da CC se opõem. Na análise derridiana da carta, Madame de Maitenon diz

que o Rei toma todo o seu tempo. Segundo Derrida, tal noção remete, por

metonímia, ao significado da palavra tempo como aquilo de que ele – o tempo – se

preenche, tornando sua forma mais determinante que o tempo em si, ou seja,

fazendo-nos compreendê-lo, por fim, como uma forma que, ao exacerbar o aspecto

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espacial deste tempo-forma, o permitiria comportar algo “dentro” de si, isto é, possuir

algo37.

O descompasso sugerido pelas ações da CC em relação à nossa usual

relação com o tempo – o ritmo do trabalho, do fazer – é propiciado, sim, pelo

aspecto lúdico da obra, por aproximar o participante de narrativas não lineares,

inerentes às experiências lúdicas em si, mas também pelas sequências de slides

serem não narrativas: os “quasi-cinema”. A resistência à não linearidade discursiva à

qual alude o advérbio quase não seria, para Oiticica, gerada a partir de uma criação,

conforme vimos em Deleuze, mas a partir de uma invenção:

Criar, segundo Oiticica, obedece a um impulso naturalista de realizar formas originárias, que prescinde da experiência. Por outro lado, inventar decorre da experimentação e de estudo, não surge espontaneamente, mas resulta de necessidades sentidas, de exigências postas pelo percurso e vivência do inventor ou de seu grupo social. (CARNEIRO, 2007)

Adotar o termo invenção é uma forma de reforçar o devir-obra, ou seja, é um

modo de remeter sempre mais ao processo e não a instituições de situações e

narrativas. Privilegiar o termo invenção, em detrimento da criação que inaugura, é

transformá-lo em um instrumento de resistência infligida pelas CCs devido à sua

decorrência das experiências – em estreita conformidade com a noção que nos

serve como guia para a problematização da questão do tempo. Além disso, o ato de

criação, efetivamente, foi apoderado pelo discurso dominante judaico-cristão e

associado ao poder de impor leis que determinam, também, de modo arbitrário, por

sua vez, uma sequência de ações a serem executadas linearmente.

Estas sequências lineares das quais compõem-se as narrativas mestras

configuram uma delimitação progressiva na forma início, meio e fim, mas significam,

sobretudo, a anulação da dádiva, configurando o fim da potência de vir a ser. Elas

temporalizam a práxis, situando-a num passado e linearizando o tempo, pois se o

fato aconteceu, há um discurso de poder que pode dizer como ele aconteceu,

proibindo-o de vir a ser novamente, não remetendo ao porvir, à potência. Oiticica e

D‟Almeida embaralham a tripartição passado, presente e futuro, fazendo-a inexistir.

Ao negarem a noção de projeto que pré-figura um futuro, eles emperram a

37

Essa conotação do tempo como algo objetivo que envolve as coisas que estão dentro dele como em um invólucro tem a filosofia grega como ponto de partida, em que a Física era o referencial para o tratamento das questões. (AGAMBEN, 2008).

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temporalização do tempo, fazendo-nos experimentá-lo, na CC, de um modo outro,

em contato direto com nossa sensorialidade, com nossa experiência.

3.9 Graça, a dádiva soberana

Derrida observa a dupla condição da palavra gift enquanto presente que

endivida o presenteado, envenenando-o. O termo, em inglês, significa presente, e,

em alemão, tem significado oposto, qual seja, veneno. Logo, para que exista dádiva,

é necessário que o donatário não retribua, não amortize, não reembolse, não se livre

do débito, não entre em um contrato e jamais contraia uma dívida. Se a dádiva se

apresenta como tal, se o presente lhe é presente como um presente, tal

reconhecimento o anula por restituir ao lugar da própria coisa um equivalente

simbólico, na forma cíclica da equiparação.

Logo, não somente a percepção da dádiva, mas até mesmo a percepção da

sua intenção, o sentido intencional da dádiva, antes mesmo de transformar-se em

gratidão, é capaz de anulá-la. E o doador, como vimos, ao tomar consciência de que

doa, começa, desde o momento inicial em que há a intenção de doar, a felicitar-se, a

repagar-se de um reconhecimento simbólico, capaz, também este, de anular a

dádiva antes mesmo de ela acontecer, pois, através da memória, ele lembra que

presenteou e envenenou ao mesmo tempo. Verificamos que tais mecanismos de

impossibilidade da dádiva ocorrem através dos deslocamentos temporais:

A temporalização do tempo (memória, presente, antecipação; retenção, proteção, eminência do futuro; êxtase, etc.) dá início sempre ao processo de uma destruição da dádiva: na conservação, na restituição, na reprodução, na previsão ou na apreensão antecipadora que toma ou compreende por antecipação. (DERRIDA, 1996, p. 16, tradução nossa)

38

Assim como o tempo, a dádiva não pode ser mensurada, pertencer ou conter,

pois extingue-se no trânsito temporal. A própria aparência, o simples fenômeno da

dádiva, também a anularia enquanto tal, transformando a aparição em fantasma e a

operação em simulacro, nos levando, por fim, a não existência da dádiva, já que, ao

se apresentar, não mais se apresenta.

38

La temporalizzazione del tempo (memoria, presente, anticipazione; ritenzione, protezione, imminenza del futuro; estasi, ecc.) avvia sempre il processo di una distruzione del dono: nella conservazione, nella restituzione, nella riproduzione, nella previsione o nell‟apprensione antecipatrice, che prende o compeende in antecipo.

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A impossibilidade da dádiva atrela-se tanto às antecipações de auto-

felicitação do doador quanto ao endividamento que se instaura no donatário, na

lembrança de que algo foi recebido, obrigando-o a repagar – desde a forma do

agradecimento “obrigado” –, configurando um processo cíclico que não oferece

espaço à dádiva.

Eis a temporalização à qual não somente a obra CC, mas também a obra O

Século, se contrapõem. O projeto vislumbra futuros, antevê situações. O programa

de Oiticica e D‟Almeida desenvolve-se em um âmbito outro, para além das

antecipações e previsões, que estariam, por sua vez, ligadas às narrativas mestras

sobre as quais nos diz Danto. Se, de acordo com Beatriz Carneiro, a narração no

cinema e a busca naturalista da reprodução de eventos com veracidade incomodava

ambos artistas, eles privilegiavam a não narração, conforme escreveu o próprio

Oiticica sobre o filme Mangue-Bangue, de Neville D‟Almenida:

MANGUE-BANGUE não é documento naturalista vida-como-ela-é ou busca do poeta artista nos puteiros da vida: é sim a perfeita medida de frestas-fragmentos filmes-som de elementos concretos [...] NÃO NARRAÇÃO montagem corte de planos takes deslocados fim do conceito de cinema verité já que o CINEMA É VERDADE e não representação da verdade [...] o q é a verdade, anyway? (MANGUE-BANGUE, Programa Hélio Oiticica, organizado por Lisette Lagnado, Tombo nº. 0477/73 apud CARNEIRO, 2007)

A sequencialidade da narrativa cinematográfica na qual a representação do

tempo é configurada pela imagem-movimento “que reproduziria a passagem

sucessiva dos momentos ao mostrar um „antes e depois‟ de uma linha evolutiva na

qual se desenrolava uma ação” (CARNEIRO, 2007) não interessava aos artistas que

optaram, então, por realizar uma experiência de não-discurso. A projeção dos slides

nas CCs está fora da lógica da projeção quadro a quadro cinematográfica e

repercute a arbitrariedade da construção perceptiva do tempo em uma desordem

inerente à coexistência daquilo que seria um antes e um depois: a coexistência de

tempos.

Verificamos, pois, ainda outros mecanismos de inoperância como projeto de

poder, tal qual o “como não” e seu funcionamento que atua precisamente na

concepção temporal, elidindo a cisão entre presente e futuro, uso e posse,

imanência e transcendência. Tendo em mente a obra O Século, pudemos

compreender a relação entre a temporalização do tempo e a condição de existência

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da dádiva. Se, na obra, o processo de projeção verifica-se precisamente tanto no

gesto representado pelo lançamento de objetos quanto em sua edição em flip, pode-

se observar uma perfeita confluência ao conceito derridiano da impossibilidade de

existência da dádiva neste contexto de previsão, antecipação, vislumbramento.

Pudemos, por fim, assinalar tanto na obra Confronto quanto na CC modos distintos

de se precisar a natureza humana como sinônimo de fazer infértil, segundo

conceitos de Coccia. Ambas resistem à profusão de práxis indiferenciadas, em

radicalidades distintas. No vídeo de Cinthia, o fazer mecanicista dos motoristas é

firmado por um fazer loopado dos malabaristas, ambos interrompidos pela própria

artista em uma ausência de imagens que restitui ao espectador a escritura da

história. Similarmente, podemos pensar que as ações lúdicas propostas em CC

fazem com que o participante tome para si o modo de experimentar não só a obra,

como também o tempo. Pensando principalmente nas duas últimas obras trazidas, é

possível identificar que a resistência ao fazer do mundo do trabalho remete ao ócio:

de modo menos enfático em Confronto, a partir de desperdício do tempo em jogos

com tochas e de modo bem mais enfático na CC pelas redes, lixas de unha,

colchões e travesseiros que implicam uma relação com o tempo oposta àquela

sugerida pela sua representação linear. De um modo geral, percebe-se, como já

mencionamos, que todas as obras operam a contrapêlo em relação aos discursos

dominantes, em que reside, inicialmente, sua resistência.

Verificaremos, a seguir, as estratégias de resistência infligidas pelo artista

albanês Anri Sala, em sua obra Air-Cushioned Ride.

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97

4 A PRESENÇA DA AUSÊNCIA

Somente porque existe uma infância do homem, somente porque a linguagem não se identifica com o humano e há uma diferença entre língua e discurso, entre semiótico e semântico, somente por isto existe história, somente por isto o homem é um ser histórico. Pois a pura língua é, em si, anistórica, é, considerada absolutamente, natureza, e não tem necessidade alguma de uma história. (AGAMBEN, 2005)

Anri Sala é um jovem artista contemporâneo cujo trabalho tem o vídeo como

principal suporte, combinando, em suas obras, imagem, som e arquitetura. Sala

nasceu em 1974 em Tirana, Albânia, e hoje vive e trabalha entre Paris e Berlim.

Estudou na National Academy of Arts, em Tirana, na Ecole Nationale Supérieure des

Arts Décogratifs, em Paris e na Le Fresnoy, Studio National des Arts Contemporains,

em Tourcoing, no norte da França. Expôs seus trabalhos em instituições como a

Tate Gallery, em Londres, em 2004, no ARC – Musée d‟art moderne de la Ville de

Paris, no mesmo ano, na Ikon Gallery, na Inglaterra, em 2002 em muitas outras.

Recebeu inúmeros prêmios, dentre os quais o Young Artist Prize, em Veneza, e o

Prix Gilles Dusein, em Paris39.

O artista, que encerrou, no dia 6 de agosto de 2012, sua mostra individual no

Centre Pompidou, representará a França na 55a Bienal de Veneza, em 2013. Apesar

do trabalho de Sala ser tão intimamente associado à imagem em movimento, um

dos elementos primordiais das suas obras é o som – temática da referida mostra no

centro de arte francês.

Nos debruçamos aqui sobre um vídeo de sua autoria, editado e exibido em

loop e intitulado Air-Cushioned Ride, 2006. Sala o realizou numa área de descanso

para motoristas à margem de uma estrada pela qual ele cruzava o estado do

Arizona, EUA. No vídeo, ouve-se o rádio de seu veículo, que transmite uma música

barroca sobreposta por outras transmissões. A frequência de seu rádio sofre

constantemente a interferência dos rádios dos outros caminhões que estão ora

estacionados, estacionando ou partindo. Seu veículo, que no início do vídeo está por

um brevíssimo momento parado, dá partida e prossegue movendo-se em torno do

agrupamento de caminhões estacionados, enquanto a música barroca de seu rádio

é incessantemente interceptada e sobreposta por música country, narrações de

39

Informações livremente traduzidas do site da galeria do artista, Marian Goodman. Disponível em: <http://www.mariangoodman.com/artists/anri-sala/>.

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radialistas e outros ruídos de estações de rádio que sobrepõem-se àquela

sintonizada em seu veículo.

Alguns lugares não guardam edifícios ou datas a serem lembrados, mas produzem sua própria trilha sonora. Com essas palavras, retiradas de suas anotações, Anri Sala descreve a ambientação de Air-Cushioned Ride (2006). [...] Sala investiga a ideia de um lugar intermediário, que nunca é o ponto de partida ou de chegada, mas que desenvolve suas potenciais qualidades a partir do tempo.

40

Não vê-se outra coisa senão enormes caminhões estacionados ou em

indistintos movimentos de chegada ou partida, e algumas pequenas construções

industriais no entorno. Air-Cushioned Ride, que é o que está escrito na imensa

carroceria de um dos caminhões estacionados, poderia ser livremente traduzido por

algo que remete à “passeio almofadado”. O vídeo é ambientado em um contexto que

foi classificado como “lugar intermediário”, justamente por tratar-se de um território

de transição, um espaço em que os motoristas interrompem seu fluxo, por um

momento, antes de prosseguirem suas jornadas.

O artista, em seu veículo ainda parado, ao perceber as interferências sonoras

sofridas pelo rádio, põe-se a registrar, enquanto dirige em círculo, o inerte

movimento da área: o movimento de chegada ou partida de caminhões que

estacionam ou já estão estacionados em um quadro que tem, em primeiro plano,

este aglomerado de caminhões parados paralelamente ou em seus momentos de

transição entre a inércia e o fluxo. Em um plano posterior, tem-se a estrada, na qual

cruzam, velozes, os veículos, e, ao fundo, a longínqua linha do horizonte de uma

vasta planície. E os enquadramentos são registrados pelo artista que, pondo-se em

movimento, nos dá a ver o repouso daqueles cuja natureza é o movimento.

Esta obra, em sua montagem no Inhotim, onde ficou exposta até agosto de

2011, era projetada, com dimensões pequenas, em uma parede branca. A projeção

possuía cerca de 1,5 metros de largura por um metro de altura e não havia qualquer

moldura, ou seja, era uma projeção sangrada na parede, que conferia um caráter

despretensioso à montagem da obra.

O determinante em ACR ser poderia definido como uma não arquitetura em

um posicionamento outro em relação àquele adotado em importantes vídeos do

artista, como Tlatelolco Clash, 2011. Nesta obra, o artista seleciona um monumento

40

Trecho do texto de parede da obra enquanto esteve exposta, até 2011, no Centro Inhotim.

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emblemático que faz a música tocar, ecoando-a, de modo que a arquitetura

determine o áudio. Em Tlatelolco Clash, o contexto é a famosa Praça das Três

Culturas [Plaza of the Three Cultures], localizada em Tlatelolco, na Cidade do

México. O nome da praça refere-se a três períodos da História mexicana que são,

por sua vez, referidos pelas épocas de construção dos edifícios que compõem a

praça: pré-colombiano, colonial hispânico e o independente “nação mestizo”. A

praça localiza-se próxima à moderna construção do Ministério de Relações

Exteriores. Neste local, em 1968, 300 estudantes foram baleados pelo exército e a

polícia mexicana (CENTRE POMPIDOU, 2012). No vídeo de Sala, um homem

empurra um instrumento que toca a música “Should I Stay or Should I go” do grupo

The Clash, enquanto aproxima-se da praça. A música é ecoada para todo o entorno,

pelas pareces de um dos edifícios.

Figura 10 - Tlatelolco Clash, 2011

Fonte: SALA, Anri 2012

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Sem entrarmos nas tantas questões políticas imbricadas na obra Tlatelolco

Clash e atendo-nos ao problema estético em que a arquitetura toca o áudio do

vídeo, é possível inferir que esta operação, no caso de ACR, se dá a partir da

ausência. A arquitetura que cria a trilha sonora em ARC é invisível. Esta obra de

Sala dá a ver o invisível do tempo, pelo áudio. Anri Sala contrapõe a solidez das

arquiteturas – que, em vídeos como Tlatelolco Clash, replicam o áudio, fazendo-o

ecoar – à invisibilidade das ondas sonoras, que em ACR são elas mesmas as

estruturas que mostram-se, em uma presença que não se vê, ao interferir no som de

seu rádio.

As obras de Sala têm uma relação estreita com a música, que funciona,

segundo ele, como um motor para cada um de seus filmes, uma espécie de script

que anima o espaço. Para ele, seus próprios vídeos são como instrumentos

musicais (CENTRE POMPIDOU, 2012). Os filmes do artista desencadeiam-se de

relações surgidas a partir de imagens, sons, lugares e personagens sem, contudo,

contar histórias tal como são concebidas, elidindo a noção de discurso concatenado

conforme uma sequência linear. Fica patente aqui que, a partir destes problemas

estéticos, Sala contrapõe-se à noção de História tal como é concebida, em sua

composição a partir dos discursos dominantes, conforme vimos sob a perspectiva de

Arthur Danto acerca das narrativas mestras.

Em um excerto do catálogo da referida exposição, encontramos o título: “A

música como um substituto da linguagem” (CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução

nossa)41. O artista inventa mundos ou modos de ver o mundo a partir da “pré-

linguagem” música, em sua obra. Mais uma vez, nos vem em mente a citação de

Wittgenstein: Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. E, no caso do

artista albanês, as formas de vida são imaginadas pela linguagem som. De acordo

com o uso que Sala faz do som em suas obras, este seria a música em sua pura

materialidade, em seu estado aberto, pré-narrativo, antes da edição torná-lo música.

Sala imagina formas de vida libertando-as de significações dadas.

Interessa-me aquilo que é dito pelos significados das palavras mas não necessariamente pela linguagem. Eu tendo a substituir a linguagem como uma forma privilegiada de narração [...] Me intriga também a música como método de narrativa. O seu modo de abordar significados é diferente

41

Music as a substitute for language

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101

daquele da linguagem. Música pode resistir a significados” (CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa)

42

As incursões realizadas pelo artista sobre a música são um profícuo modo de

resistência poética em relação à narratividade, ao encadeamento sequencial antes,

agora, depois, causal. O que de mais inoperante pode haver do que se opor à

narrativa, pela música, que, por sua vez, também é comunicação? Esta é a poética

da sua resistência. E talvez aqui possamos indicar uma diferença entre conceitos

que até então usamos como sinônimos: resistência e inoperância. A inoperância é

uma das formas de resistência que, contudo, se opõe a algo sem valer-se de ações

propriamente negativistas. Este é o caso da utilização do som em ACR, que resiste

a significados simplesmente tocando, e não, por exemplo, ausentando-se e

instituindo o silêncio. Se os discursos [dominantes] informam, indicando um

significado preciso para cada significante, a música, conforme manejada por Sala,

seria a pura liberdade de imaginação e invenção, onde temos, assim como no

blackout de Confronto, a entrega ao espectador da faculdade de escrever aquela

história.

Conforme o supracitado excerto de Agamben, o homem torna-se um ser

histórico a partir da diferença entre semiótico e semântico, ou seja, ele torna-se

histórico ao equiparar e instituir significados. Isto nos faz pensar na investigação de

Sala sobre a música como uma busca pelo tempo não histórico. Ele trabalha,

conforme diz, com a palavra – que para Agamben é anistórica, anacrônica –, e não

com a linguagem.

Esta investigação do artista acerca do elemento musical nos faz pensar que

aquilo que ele busca, que é da ordem do pré-político, do visceral, seria o modo de

comunicação mais distante da inferência de significados, da equiparadora relação

significante – significado, que, como sabemos, é o motor das trocas do círculo

ritualístico da dívida. Sala busca a resistência pela não operação de dizer, tocando.

Ao verificar na música de seus vídeos a inoperância de significados, ele elide

qualquer narração e qualquer discurso que sejam dados.

A ausência de significados é a dádiva, a não equiparação, a irrupção do

círculo das trocas. Por isso ela é a liberdade na forma da in-operância: não opera,

42

I am interested in what is told by means of images but not necessarily through language. I tend to replace language as a favoured form of narration. […] I am also intrigued by music as a narrative method. Its manner of approaching meaning is different from that of language. Music can resist meaning.

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não significa e, justamente por isso, se abre a significações possíveis. Somente a

partir da ausência existe espaço para alguma presença, para a invenção.

4.1 A ausência imprescindível

A música, no modo como Sala a utiliza, configura uma forma de dádiva

justamente por não determinar significados. Se, na canção Mañana para Lupita,

infere-se a postergação para onde a seta da história aponta – o futuro, o amanhã –,

desmascarando aquilo que nos diz Crisostomo sobre a inoperância que leva a uma

melhoria, a um progresso, em ACR o som elide inferências e se abre a invenções.

Se o esquecimento é uma forma, digamos, de sobrevivência da dádiva, ele

deve operar não um esquecimento por remoção, já que esta anularia o dom por

permitir que ele seja reconhecido simbolicamente, equiparando-o. Ele significou – a

dádiva foi anulada – e depois foi destituído de seu significado, pela remoção. Para

Derrida o verdadeiro esquecimento que permite a existência da dádiva é o

esquecimento absoluto, capaz de apagar, inclusive, os rastros da remoção: o

esquecimento da dádiva. De acordo com esta radical condição imposta por Derrida,

a música deveria configurar uma relação que dispensaria a remoção, ela não

deveria chegar nem mesmo a indicar significações. Entretanto, justamente por nos

parecer excessivamente radical pensar a música a partir do esquema do

esquecimento absoluto derridiano, lembramos que, nas situações de imersão, não

lembramos, não "vemos", não temos consciência. Ou seja, é um momento sem

dialética, ou de uma dialética irresoluta, como no paradoxo, precisamente como o

êxtase acefálico sobre o qual nos ateremos em seguida. Contudo, na música, há

significações subjacentes, ainda que elas não predominem.

Derrida condiciona reciprocamente a existência do esquecimento à existência

da dádiva não enquanto causa, mas enquanto premissa, como o contexto

necessário que define uma situação. E aqui encontra-se um dos pontos de nosso

maior interesse dentre as contribuições trazidas por Derrida: esta indistinção entre

esquecimento e dádiva, cujas existências são reciprocamente condicionadas, nos

leva à estrada, ao Weg ou Bewegen43 (caminho, caminhar, traçar a rota) que não

43

A tradução do termo alemão Weg seria “maneira” enquanto o termo Bewegen é um verbo que poderia ser traduzido como passar, movimentar, mudar. A união destes, por sua vez, Wegbewegen quer dizer afastar.

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conduz a lugar algum, o que, não de modo fortuito, define o percurso realizado por

Anri Sala em ACR.

Derrida individua aquilo que liga o problema do tempo ao problema da dádiva,

e ambos a um singular pensamento sobre o esquecimento que, por sua vez,

acrescentemos, é essencial ao pensamento da história que constitui-se a partir dos

memoráveis feitos, elidindo todo o resto, esquecido. O esquecimento seria aquilo

que escapa à equiparação de significados e, logo, não pode ser incluído no discurso

dominante, na história causal. Dizer que algo é significa pré-fixar uma equivalência

simbólica através da linguagem. A música opera em um sentido anterior, da ordem

do sensível, do atemporal, daquilo que é sentido naquele momento.

A experiência como precedente para a invenção sobre a qual nos dizem

Oiticica e D‟Almeida, é a mesma experiência que está implícita na utilização da

música na obra ACR de Anri Sala. Lembramos que a invenção para Oiticica e

D‟Almeida é um surgimento decorrente de “necessidades sentidas, de exigências

postas pelo percurso e vivência” (CARNEIRO, 2007), precisamente como é o

surgimento de significados vários nas possíveis leituras da música em ACR.

Para compreendermos os desdobramentos infligidos pela temporalização –

em contraposição à noção de ausência –, faz-se importante trazer para a discussão

de ACR a noção de êxtase, recorrendo ao conceito de comunidade em Georges

Bataille e ao paradoxo da soberania. Questionando o pensamento de uma

experiência comunitária, Bataille recusa “toda comunidade positiva fundada sobre a

realização ou sobre a participação de um pressuposto comum” (AGAMBEN, 2005, p.

91). Bataille desarticula, para que haja comunidade, a possibilidade de comunhão

fusional. A experiência da impossibilidade seria, portanto, o único, paradoxal e

possível modo de existência da comunidade (AGAMBEN, 2005).

A manifestação desta experiência coletiva – que, para existir, deve, logo, não

ser coletiva, na forma como se entende o conceito de comunidade [com-um], como

um – implica a privação da cabeça, ou seja, a acefalidade que, por sua vez, elide

tanto a racionalidade quanto a existência de um capo44, sendo tão fundamental, por

outro lado, quanto a exclusão de si mesmo, isto é, dos próprios membros da

comunidade, estando presentes somente através da sua própria decapitação, ou

seja, da elisão de suas racionalidades e liderança, i.e., da ausência.

44

Referimo-nos a ambas significações da palavra italiana capo: tanto “cabeça” quanto “chefe”.

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A ausência do significado da música nos remete à experiência que é, em

Bataille, o êxtase ou o paradoxo do ekstasis: “absoluto estar-fora-de-si do sujeito,

[...] aquele que faz a experiência não está mais no instante em que a experimenta,

deve faltar a si no momento mesmo em que deveria estar presente para fazer a

experiência” (AGAMBEN, 2005, p. 92).

O ex-tasis que Agamben vê em Bataille, ou seja, não o estar – presença –,

mas o ex-tar – o não-estar –, é a não coincidência do ser com a sua presença. É a

ausência com que se faz presente, a falta que mostra sua existência, como um

rastro, uma pegada imaginária, assim como é a música nas obras de Sala. Por um

lado, a falta de significado dado que permite a invenção, e, por outro, o áudio tocado

pela ausência de estrutura arquitetônica sólida, pela presença da invisibilidade das

ondas sonoras que se interferem mutuamente.

O papel que o som exerce em ACR equivale a não apresentar-se no processo

de temporalização do tempo, que, por sua vez, é compreendido por meio das trocas,

na forma: dou algo ou deposito fé (presente); vislumbro receber em troca (futuro);

cobro aquilo que dei (passado); recebo, logo devo retribuir etc. A música é a dádiva:

não capturável, pois a sua presença – i.e., seu equivalente simbólico, seu significado

– não está declarada e equiparada. O uso que Sala faz da música em seus vídeos

constitui a mais pura inoperância, a ausência plena de operações.

4.2 Música e tempo

A música forma-se a partir dos intervalos temporais dos movimentos de onda,

i.e., de acordo com o número de vibrações – frequência – que a onda realiza em um

período de tempo. A música é formada a partir das amplitudes e frequências das

ondas em intervalos temporais. A própria amplitude da onda remete à sua duração,

mais que ao espaço que sua longitude pode ocupar. O cerne da música é produto da

conjunção onda-tempo. Ela é a função do tempo e da frequência e amplitude das

ondas em cada intervalo de tempo. A matéria música, logo, é o tempo: a frequência

da repetição de um movimento de onda.

O pesquisador da Universidade de Colúmbia, Johnatan Kramer, estuda o

papel do tempo na música. Em uma entrevista dada para o Discovery Channel,

Kramer diz:

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Tempo é movimento e tempo é mudança. Música é movimento e música é mudança [...]. As variações no tempo são o que adicionam um elemento essencial humano na execução da música. A música precisa de um pulso, de uma batida humana e não de um metrônomo. (DISCOVERY, 1994)

Eis a ordem do pré-político à qual nos parece remeter a investigação da

música na obra de Sala. Ela é um modo de comunicação em que o tempo é um

ritmo, uma frequência, mas na qual ele não chega a ser mensurado ou equiparado.

Ele simplesmente se repete. Esta repetição nos traz, por sua vez, as reflexões de

Deleuze acerca daquilo que ele chamou de terceira repetição: “A arte não imita, [...]

ela repete, e repete todas as repetições, a partir de uma potência interior (a imitação

é uma cópia, mas a arte é simulacro, ela subverte as cópias em simulacros)”

(DELEUZE, 2006, p. 403). A repetição das frequências pelas ondas sonoras que

formam a música é, por sua vez repetida, e remete a um batimento cardíaco, com

variações rítmicas temporais.

A música nas obras de Sala expressa a emoção, sem, contudo, induzir uma

definição de sentido. A curadora Christine Macel escreveu sobre o fato do trabalho

de Sala afastar-se da noção de narração, “deixando um espaço vazio no qual os

espectadores podem, então, projetarem suas próprias histórias” (CENTRE

POMPIDOU, 2012, tradução nossa)45.

A potência de ACR, antes de ser pensada como força, parece remeter, em

um primeiro momento, à sua raiz etimológica, potentia passiva, paixão, passividade,

inoperância, por fim. Contudo, assim como a história filológica da palavra potência,

em um segundo momento, a passividade ou a renúncia em significar da obra de

Sala remete a uma imensa força de resistência, à potentia activa. A música permite

a Sala resistir à narração, indo além, dizendo mais do que seria possível dizer

simplesmente com palavras.

Assim como Oiticica e D‟Almeida elidem a sequência cinematográfica em

seus “quasi-cinemas”, propondo uma forma mais próxima da nossa própria

experiência do tempo, desordenada, em que estamos em contato com nosso corpo,

Sala desarticula os discursos, propondo a não narração por meio música – também

esta desvinculada de sua relação com a imagem. “Sala rejeita a causalidade

acústica do cinema em que se pode identificar com precisão a origem e a causa do

45

[...] leaving an empty space on which viewers can then project their own stories.

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som [...]”(CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa)46, elidindo, em suas obras, a

relação existente no audiovisual clássico, ou seja, no cinema tradicional narrativo

que representa, como dissemos, sequências causais.

Figura 11 - Air-Cushioned Ride

Fonte: INHOTIM (2011)

46

Sala rejects the acoustic causality of the cinema in which one can accurately identify the origin and cause of the sound.

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Se, nas obras de Francis Alÿs e Cinthia Marcelle, aqui discutidas, o

extracampo não se dá a ver, a não ser pela tênue comunicação que, como vimos,

pode dar-se, em alguns casos, somente a partir da restituição ao espectador da

possibilidade de invenção da continuação espacial, em Air-Cushioned Ride o

extracampo está plenamente dado pelo movimento circular da câmera que filma

todo o entorno, repetidas vezes, sem construir, contudo, nenhuma narrativa. Se o

espaço, ali, parece ser infinitamente acrescentado ao espaço – função, segundo

Deleuze, do extracampo –, a cada deslocamento de câmera, ainda assim, parece

que o que vemos é sempre o mesmo lugar de transição. Aquilo que é acrescentado

a cada grau de deslocamento em círculo da câmera de Sala é o tempo – na forma

do áudio – e não a imagem – na forma de construções espaciais. Os movimentos

dos caminhões não definem nem mesmo partidas ou chegadas, remetendo a

movimentos “puros”, sem significado – ainda que saibamos que os caminhões têm,

por excelência, uma precisa determinação geográfica por atingir.

Já neste ponto é possível verificar algumas considerações paradoxais na obra

de Sala. Os veículos, símbolos da locomoção e transporte, são filmados em seu

momento de pausa, em seu momento de inatividade. Quem se move é o próprio

artista, em um movimento repetitivo que enquadra uma conformação inerte dos

veículos. O movimento que a câmera oferece à imagem é um movimento cíclico e

loopado.

Os caminhões, meios para propulsionar o andamento do sistema, agora

inoperantes, são flagrados em movimentos indistintos de chegada e partida, não

aludindo ao seu original movimento de levar e trazer que é o motor das trocas

econômicas – o círculo ritualístico da dívida. Sala filma o repouso do veículos de

troca. Esta é a imagem que vemos em seu vídeo. Mas vemos, sobretudo, a imagem

invisível do som.

“Como sempre fez [...], Anri Sala tende a escolher os locais e a arquitetura

para seus filmes não apenas como uma moldura para a ação, mas também como

geradores de som” (CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa) 47 . Embora o

citado excerto não refira-se à obra em questão, é precisamente deste modo que

desenvolve-se o áudio de ACR: de forma inerente ao vídeo, e, ainda mais, de modo

47

As he has always done [...], Anri Sala tends to choose the locations and architecture for his films not simply as a frame for the action but also as sound generators.

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inerente ao espaço e sobretudo ao tempo, já que é no tempo que viajam as ondas

sonoras. A música é diretamente executada pelo tempo em seu vídeo. Se quisermos

afirmar que a música neste vídeo é tocada pelo espaço, deveremos lembrar, além

do fato de que as ondas sonoras viajam no tempo, também que as interferências

sonoras são verificadas pelo ato do deslocamento, tanto do movimento de Sala

quanto do movimento das ondas.

A crítica de arte Jessica Morgan observa, no referido catálogo, que Sala faz

uso de diferentes músicas ou trilhas sonoras para criar múltiplas temporalidades ou

considerações abstratas. E é precisamente isto que ACR dá a ver: as invisíveis e

múltiplas temporalidades, todas conjugadas simultaneamente, para além de

qualquer tentativa de divisão ou tripartição.

Se quiséssemos pensar em uma imagem que se formasse a partir das ondas

sonoras das rádios que se intercruzam à medida que Sala se movimenta em seu

veículo, poderíamos pensar em uma construção espacial formando-se a partir de

linhas que se embaraçam. Um novelo emaranhado que se desfia e se emaranha em

um movimento fragmentado, descontínuo e desordenado.

Esta possível representação, como tentativa de imaginar o modo como o

tempo se move e move o áudio em ACR, nos leva a pensar sobre quão vãs são as

ordenações, mensurações e repartições temporais que nos cercam por todos os

lados.

Pode-se dizer que Anri Sala cada vez mais tenta liberar o som, não apenas do papel subordinado que ele tende a desempenhar em relação ao filme, mas também de suas próprias origens, tratando os aspectos constitutivos do som ou da música como componentes abstratos que contém histórias e referências, qualidades formais e evocações de humor ou sentimento. (CENTRE POMPIDOU, 2012, tradução nossa)

48

Se é verdade que Anri Sala considera que o som combina-se com a

arquitetura para criar, definir e articular o espaço, devemos pensar que o som em

ACR combina-se com a não arquitetura, como dissemos. A resistência branda ou

melhor dizendo, poética, pela abertura à significados que gera a música em ACR,

nos remete a uma capacidade de desvio intrínseca ao tempo: aquela de elidir as

dialéticas e as equiparações.

48

It can be said that Anri Sala increasingly attempts to liberate sound, not just from its subordinate role that it tends to play in relation to film, but also from its own origins, treating the constituent aspects of sound or music as abstract components containing stories and references, formal qualities and evocations of mood or feeling.

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[...] O tempo se anuncia já como aquilo que contorna esta distinção entre tomar e doar, logo entre receber e doar, talvez entre a receptividade e a atividade, isto é entre o ser-afetado e o atingir (affecter) [...]. (DERRIDA, 1996, p.4, tradução nossa)

49

Tal observação, feita de forma quase en passant e precedida, no período, por

um talvez acerca das indistinções, nos remete a uma capacidade de desvio

intrínseca ao tempo e à música na obra de Sala, que, não remetendo a um só

significado, também elide as dialéticas próprias da equiparação.

A música em ACR tem, portanto, a capacidade de desviar – de inoperar –,

intrínseca também ao tempo nas várias instâncias sob as quais o queiramos

analisar. Ao serem remetidos à sua invisibilidade – ainda que não se possa ser cego

em relação a ele, nada pode existir fora do tempo –, somos levados a pensar sobre

a onipresença deste tempo impossível.

Esta música-tempo de ACR, como aqui a compreendemos, ou seja, como

uma presença que indica a ausência, realiza uma operação em conformidade com a

aquela desenvolvida pelas imagens que a obra nos dá a ver: a presença da

invisibilidade do tempo, que, ainda que não se mostre, perpassa todos os quadros

do vídeo. Entendemos que a fixidez dos significados aos quais a música em ACR

resiste está elidida também pela opção de Sala em utilizar-se, nesta obra, de

arquiteturas invisíveis que possam tocar o áudio: as ondas que estão no ar.

Esta operação está em confluência com aquela realizada por Francis Alÿs, em

The loop e por Bartleby, o escrivão. Alÿs e Bartleby realizam uma refutação que

evidencia algo de problemático – no caso de Alÿs, as questões de poder da fronteira

México-EUA e, no caso de Bartleby, o fazer infértil em que se transformou a

natureza humana –, ou seja, ambos recusam-se a fazer algo. É esta mesma

ausência que está em jogo no som de ACR, mas, nos parece, em um estágio mais

próximo da pura materialidade, mais próximo do esquecimento absoluto formulado

por Derrida. Uma ausência – de significado – que faz presente a invisibilidade,

heterogeneidade e multiplicidade do tempo.

Em correlação às músicas usadas na CC, temos também uma convergência

entre o som de ACR, no que diz respeito a uma multiplicidade que traz a

heterogeneidade de tempos. Em ambos os casos, músicas distintas são transmitidas

49

[...] Il tempo si annuncia già come ciò che elude questa distinzione tra prendere e donare, quindi anche tra ricevere e donare, forse tra la recettività e l‟attività, cioè, tra l‟essere-affetti e il colpire (affecter) [...].

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na mesma obra, indicando a profusão temporal de sua origem: no caso da CC, por

meio da mistura de músicas regionais com internacionais e de vários gêneros; no

caso de ACR, por meio da sobreposição e interpelação das músicas e ruídos.

A música em ACR é aqui compreendida como sinônimo de dádiva, por ambas

não permitirem equiparações. E o dom capaz de satisfazer a todas as exigências da

sua existência está, necessariamente, fora do círculo econômico que organiza o

tempo, ou seja, na fragmentação musical operada em ACR.

O caráter múltiplo do tempo é explicitado em ACR tanto pelo modo como a

sua invisibilidade é dada a ver, pelo som, em uma configuração emaranhada, quanto

pelos próprios movimentos e não movimentos dos caminhões e do veículo do artista.

Sala indica dezenas de temporalidades interpolando-se simultaneamente em um

espaço cuja função original é o repouso, aproximando-se, pela imagem e som de

sua obra, da nossa heterogênea experiência do tempo.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O loop, característico das edições das obras em TBA é a pura repetição.

Dizemos pura pois esta repetição traz um retorno à materialidade do gesto de repetir

desvinculado de indicações de significados. A autenticidade – ou pureza – destas

repetições configuram resistências precisamente às significações e, ao fazê-lo,

conseguem irromper a equiparação que é o motor das trocas que, por sua vez, são

impelidas pela práxis involuntária, não calcada no desejo, mas fruto de um exercício

de poder.

Esta práxis, como vimos, é aquilo que transforma o tempo em história,

linearizando-o. Se o caráter circular do tempo característico do período helenístico

fora retomado pelo cristianismo, indicando que o retorno ao idêntico é aquilo que

mais se aproxima da perfeição e do divino, esta retomada foi anteparada pelo

inoperador glória, que, com sua luz ofuscante, oblitera aquilo que deve ser

absolutamente elidido para manter o funcionamento da práxis mecânica e cíclica: o

ócio.

O ócio é precisamente o elemento mais inerente à natureza e, ao ter sido

extirpado do homem para que fosse constituída a natureza humana: aquilo que

passa a ser nossa maior característica é fazer, o ritmo da vida do ser.

Todas as obras que aqui foram tratadas dão a ver esta práxis como sinônimo

da natureza humana, e é a isto que resistem.

Se a música para Lupita, Mañana, indica a perene postergação enquanto

Lupita prossegue no moto da práxis indiferenciada, é para indicar que dissimulações

como a obnubilação do ócio pela glória é um exercício de poder para manter-nos

perenemente afastados da nossa real natureza humana, da qual o ócio não pode ser

elidido. Mañana, em loop, quer dizer: o deslocamento chegará amanhã, e amanhã,

será adiado para amanhã, ad infinitum. Esta obra nos desmente Crisóstomo,

indicando que permanecer imóveis, ainda que em uma práxis frenética, não leva a

nenhuma melhoria ou progresso.

Verificamos a paradoxal dialética da inoperância. De um lado está a sua

atuação como obliteração do poder. A glória que obnubila o ócio, a graça que simula

um não endividamento nas trocas circulares, o “como não” que indica que a

heterogeneidade do tempo deve ser oportunamente indicada e, por fim, a tradução

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grega da inoperância, a katargéō. Todos, sem exceção, atuam para um único fim:

manter-nos na práxis indiferenciada e na falsa imagem do tempo linear.

Refletir sobre a experiência do tempo e sobre as determinações que essa

inflige nas transformações culturais é fundamental para a realização de uma

concepção outra de história. Por isso Agamben diz que a tarefa da verdadeira

revolução do mundo é, antes de “mudar o mundo”, “mudar o tempo”, ocupação na

qual a concepção revolucionária da história teria falhado por não ter elaborado uma

concepção correspondente do tempo, tendo simplesmente se valido da

representação vulgar deste como um continuum pontual e homogêneo. E é

justamente do cumprimento desta tarefa que se aproximam as obras aqui discutidas.

Elas, em um verdadeiro ato político, não só refutam representações arbitrárias, mas

inventam – ou nos fazem inventar – imagens para o tempo que sejam muito

próximas do nosso sensível.

As obras aqui analisadas desconstroem a história tal como a conhecemos:

causal, conforme um antes e um depois. Ao repetirem em loop seus próprios

movimentos ou, no caso da CC, ao exibir seu “quasi-cinema”, elas emperram o

prosseguimento do tempo histórico. Eles o fazem tanto a partir da desconstrução de

suas narrativas quanto a partir do modo como são feitas as edições dos vídeos. Em

uma bela contraposição da questão do espaço com a questão do tempo, a própria

ausência do fora, por exemplo, é uma ausência que evidencia algo que, como

dissemos, é a invisibilidade e a heterogeneidade do tempo.

Sem exceção, as obras que foram aqui trabalhadas resistem ao fazer estéril

como sinônimo de vida e, consequentemente, à linearização do tempo.

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