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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Paloma da Silveira Leite POÉTICA DO ENCANTAMENTO A voz da criança em João Guimarães Rosa MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA São Paulo 2019

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … da...em criar e reproduzir às crianças mais velhas, as irmãs Pele e Ciganinha e o primo Zito, a história mágica do ―indo-se embora

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Paloma da Silveira Leite

POÉTICA DO ENCANTAMENTO

A voz da criança em João Guimarães Rosa

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

São Paulo

2019

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Paloma da Silveira Leite

POÉTICA DO ENCANTAMENTO

A voz da criança em João Guimarães Rosa

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, como exigência

para a obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica

Literária, sob a orientação da Professora Doutora Maria

Aparecida Junqueira.

São Paulo

2019

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BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

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Dedico esse trabalho às minhas plebeinhas flores, princesinhas incomuns:

Lorena e Letícia.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento

88887.148312/2017-00.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, que transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero,

por tudo, sempre, nas coisas amanhecentes e anoitecentes.

À tia Lúbia, que vê constelação no meu vagalume.

Ao Wal, pela estima ligeira, pelo apoio e carinho de sempre.

Ao Isnar, anjo da guarda, amigo “lealdoso de responsabilidades”, pela

paciência de ourives, pela dedicação dele só.

À minha orientadora, professora doutora Maria Aparecida Junqueira, vagalume

lanterneiro, com seu psiu de luz – até nas madrugadas, atenção e sabedoria ao longo

de todo o trabalho.

Ao Professor Eloésio, amigo dedicado e presente desde o início dessa jornada,

nas palavras, do pré-projeto à banca, dos cafés aos botecos.

À professora Diana Navas, pela ajuda impecável no projeto, por aceitar fazer

parte da minha banca, pela atenção e pelas sugestões primorosas.

A todos os membros do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e

Crítica Literária, especialmente à Ana Albertina.

Às professoras Vera Bastazin, Beth Brait, Maria Rosa Duarte de Oliveira,

Anitta Malufe e Beth Cardoso, por compartilharem tanto conhecimento e sabedoria.

À Dorota, pela alegria que vale feito rebrilho de ouro.

E a tanta gente importante, que falta nome.

.

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LEITE, Paloma da Silveira. Poética do Encantamento: A voz da criança em João

Guimarães Rosa. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em

Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.

SP, Brasil, 2019, 126p.

RESUMO

Esta dissertação trata do universo mágico da infância em João Guimarães Rosa, mais

especificamente nas narrativas Partida do audaz navegante, publicada em 1962, Fita

verde no cabelo, em 1970, e Campo Geral, em 1964. Entre seus objetivos, destacam-se:

refletir sobre a construção do pensamento mágico-poético no discurso do narrador e das

personagens crianças; apreender a construção e a desconstrução do universo poético-

maravilhoso nessas narrativas rosianas, assim como analisar o vínculo entre a

enunciação do narrador e a das personagens infantis, ressaltando o encantamento e o

desencantamento. Para atingir tais objetivos, orienta-se pela seguinte problematização:

até que ponto narrativas de João Guimarães Rosa operam o encantamento e o

desencantamento de maneira a atribuir sentido ao rito de passagem da vida infantil à

vida adulta? Como as sutilezas que diferem e separam a linguagem da infância da

linguagem da vida adulta implicam ações mágico-poéticas nessa ficção? A

fundamentação teórica baseia-se em concepções sobre o maravilhoso propostas por

Todorov, Mieletinski e Propp; sobre o imaginário, recorre a Baudelaire e Bachelard;

para refletir acerca do literário e da criança, vale-se de Walter Benjamin. A fortuna

crítica sobre o autor é sustentada na voz de Henriqueta Lisboa, Benedito Nunes, Paulo

Rónai. O estudo do corpus evidenciou, entre outras considerações, que Rosa dilui seu

discurso e o seu olhar poético ao do narrador e das personagens, tornando-o quase

indissociável do discurso infantil; que o rito de passagem, vivenciado pelas

personagens, está intimamente relacionado com experiências mágicas, construídas, por

sua vez, em universo poético-maravilhoso.

Palavras-chave: Literatura Brasileira. João Guimarães Rosa. Poética. Infância. Magia.

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LEITE, Paloma da Silveira. Poetics of Enchantment: the child's voice in the narrative of

João Guimarães Rosa. Master‘s Dissertation. Post-Graduate Program of Literature and

Literary Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. SP, Brazil,

2018, 126p.

ABSTRACT

This dissertation deals with the magical universe of childhood in João Guimarães Rosa,

more specifically the short stories Partida do audaz navegante (1962) and Fita verde no

cabelo (1970), and the novella Campo Geral (1964). In a context in which the child

rarely has its own voice, Rosa, specially for having the ―childhood feeling‖, shows us

magical minds, that allow themselves to live in the universe of the imaginary, bordering

the nonsensical. More than that, there are signs and clues about the turning point

attributed to rites of passage, that definitive moment which separates childhood from

adulthood. Theoretical foundation is based on theories of the wonderful of Todorov,

Mieletinski e Propp, theories of the imaginary of Bachelard, Mielietinskyamong others.

We will also consider Walter Benjamin to think about Literature and childhood. The

critical fortune about the author is sustained in the voice of Henriqueta Lisboa, Benedito

Nunes, Paulo Rónai. The study showed, among other considerations, that Rosa, instead

of reproducing a child‘s thoughts keeping a safe distance from infantile imaginary,

dilutes his discourse and his poetic outlook into those of the narrators and characters,

mingling almost inseparably his own discourse into the child‘s, building a magical-

poetical idea in in a poetical-wonderful world.

Keywords: Brazilian Literature. João Guimarães Rosa. Poetics. Childhood. Magic.

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Mestre não é quem sempre ensina, mas

quem de repente aprende.

João Guimarães Rosa

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Sumário

Apresentação ................................................................................................................. 11

Capítulo I - Apontamentos sobre criança na narrativa poética brasileira ............. 15

1.1. A criança e o imaginário ............................................................................... 15

1.2. Poetas e crianças: olhar entrelaçado ............................................................ 26

1.3 A criança na narrativa poética rosiana ........................................................ 31

Capítulo II. O encanto e o desencanto em narrativas rosianas ................................ 37

2.1. A construção da magia .................................................................................. 37

2.1. Encantamento poético: “poder sugeridor” da palavra .............................. 43

2.2. O rito de passagem ......................................................................................... 52

Capítulo III – O universo mágico-poético rosiano .................................................... 57

3.1. Brejeirinha e a “história de tolice” do audaz navegante ............................ 57

3.2. Fita-verde: asas ligeiras e sombra correndo-lhe, em pós ........................... 72

3.3 Miguilim e a saudade do que não vê ............................................................ 80

Considerações finais ................................................................................................... 112

Referências .................................................................................................................. 116

Anexo I ......................................................................................................................... 122

Anexo II ....................................................................................................................... 128

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Apresentação

João Guimarães Rosa, entre os autores brasileiros, é um dos que abrem veredas

para a exploração do imaginário e da poética. Drummond (2006, p. 13) corrobora tal

ideia em seu poema Um chamado João, publicado no jornal Correio da Manhã, no Rio

de Janeiro, em 22 de novembro de 1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa, ao

dizer que João ―era fabulista, fabuloso, fábula‖, era ―sertão místico disparado no exílio

da linguagem comum‖. Drummond (apud ROSA, 2016, p. 9) afirma também que Rosa

narrava coisa inenarrável, contava sem desnudar o que não deve ser desnudado, que seu

discurso germina e floresce, move-se, colore e ilumina, faz mágica sem apetrechos.

Pode-se dizer que seus apetrechos mágicos ou ―suas supostas fórmulas de abracadabra,

sésamo‖ eram as palavras. Ainda, quando perguntavam a Rosa que mistério é esse,

Drummond (apud ROSA, 2016, p.11) diz que ele sorria, ―E propondo desenhos

figurava / menos a resposta que / outra questão ao perguntante?‖. Nota-se, antes de

tudo, que há magia.

Paulo Rónai (apud ROSA, 2016, p.17) também afirma, nessa perspectiva, que

Guimarães Rosa era ―inventor de abismos‖. Localizava-os em ―broncas almas‖

irreparavelmentente ligadas à natureza, almas não corrompidas pelo raciocínio lógico,

mas inteligíveis a impulsos indefinidos, a sonhos, premonições, crendices: ―São almas

ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o

milagre‖. São almas atormentadas pelas paixões, medos e dores, são personagens

consideradas marginais, que não foram perfeitamente absorvidas pelo convívio social

ou em nada tocadas por ele. Entre elas, estão os loucos, os jagunços, os capangas, os

vaqueiros, as prostitutas e, especialmente, as crianças, foco deste estudo.

A poeticidade, em João Guimarães Rosa, parece mais mágica e genuína quando

personagens criança são protagonistas. Sem amarras, elas deixam os sentidos

perceberem o mundo, dão frescor à imaginação e são livres da imitação de modelos e do

senso comum. A infância assume importância fundamental na obra de Rosa,

destacando-se pela singularidade dos temas e das imagens.

No prefácio de Primeiras Estórias, Paulo Rónai (2016, p.19), afirma que ―ao

lado dos doidos, as crianças formam um grupo menor, mas importante‖. Essas

personagens, magicamente criadas e desenvolvidas por Rosa, apresentam características

diversas daquelas que conhecemos por meio de outros poetas. Benedito Nunes (apud

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ROSA, 2016, p. 19) observa que essas crianças fazem parte de uma curiosa estirpe de

personagens preludiada por Miguilim e Dito, de Campo Geral. Afirma que a ela

―pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados

de poderes extraordinários, quando não possuem origem oculta ou vaga identidade‖.

Rónai (2016, p. 20) complementa:

Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se deslumbrem com a

sua cintilação, [essas crianças] embrenham-se com olhos virgens nos

mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. Nos contos inicial

e final realiza-se a gageure de fazer desfilar pela sensibilidade de um menino,

com o pensamentozinho ―ainda na fase hieroglífica‖, os grandes problemas

existenciais do bem e do mal, e, através da sua decifração, é transmitida uma

mensagem de otimismo e de fé.

Henriqueta Lisboa (1991, p. 95, 170), em seu estudo O Motivo Infantil na Obra

de Guimarães Rosa, reflete sobre a natureza infantil, instintiva, emotiva e espontânea

como o gênio de Rosa. Enaltece a ―importância liminar e até fundamental‖ da infância

em sua obra e atribui ―a presença constante e pertinaz da infância‖ não exclusivamente

aos textos que trazem a criança como personagem. Para Lisboa, Guimarães Rosa possui

a ―faculdade de prolongar a infância‖, independentemente da complexidade da trama

narrativa.

Este estudo se preocupa com o universo mágico da infância em narrativas

rosianas, mais especificamente em três narrativas. Partida do audaz navegante, conto de

Primeiras Histórias, lançado em 1962, trata de uma intrigante e sedutora garotinha,

chamada Brejeirinha, e de seu olhar mágico-poético acerca da vida. A pequena poeta,

num dia em que brumava, chuviscava e parecia não acontecer coisa nenhuma, diverte-se

em criar e reproduzir às crianças mais velhas, as irmãs Pele e Ciganinha e o primo Zito,

a história mágica do ―indo-se embora do navio‖ do ―audaz navegante‖.

Fita verde no cabelo foi publicada pela primeira vez no Suplemento Literário de

O Estado de S. Paulo, em 8 de fevereiro de 1964, e depois no póstumo Ave, Palavra, em

1970. Nessa narrativa, Rosa criou o mais livre – e também mais lúdico e triste – dos

intertextos do clássico Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault. Trata da história de

uma menina que, em um caminho repleto de experiências, entre duas aldeias do sertão

onde nada acontece, diverte-se em criar um mundo poético, no qual avelãs não voam,

borboletas são inalcançáveis, e sombras perseguem suas asas ligeiras. Ao deparar-se

com a avó, à beira da morte, a menina é forçada a despedir-se da inocência – e da fita

verde inventada que trazia nos cabelos.

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Campo Geral, publicação de 1964, é um recanto oculto da roça, afeito a um

emaranhado de conceitos, atos, ritos, costumes rudes, sentimentos selvagens. Trata da

reprodução mágica da visão infantil de um certo Miguilim. O protagonista é um menino

de oito anos, sensível e inteligente, empenhado em compreender as pessoas, plantas e

bichos que compõem seu universo, na companhia do irmãozinho Dito, que ―semelhava

sensatez‖ e ―fazia tudo sabido‖. Em Miguilim e também em Dito, a hipocrisia e a

maldade ainda não deitaram raízes. Um ajudava o outro na compreensão acerca das

maldades do mundo.

A partir desse corpus, propõe-se estudar a voz da criança em Rosa. De modo

específico, objetiva-se refletir sobre a construção do pensamento mágico-poético no

discurso do narrador e das personagens crianças; apreender a construção e a

desconstrução do universo poético-maravilhoso nas narrativas rosianas, assim como

analisar o vínculo entre a enunciação do narrador e a das personagens infantis,

ressaltando o encantamento e o desencantamento.

Nesse sentido, problematiza-se: até que ponto narrativas de João Guimarães

Rosa operam o encantamento e o desencantamento de maneira a atribuir sentido ao rito

de passagem da vida infantil à vida adulta? Como as sutilezas que diferem e separam a

linguagem da infância da linguagem da vida adulta implicam ações mágico-poéticas

nessa ficção?

Buscando refletir sobre as fronteiras, os limites entre encantamento e

desencantamento, este trabalho se orienta pelas hipóteses: o narrador rosiano, em vez de

reproduzir a infância, mantendo-se a uma distância segura do imaginário infantil –

aquele que o adulto não alcança –, dilui o seu discurso nos das personagens, tornando-o

quase indissociável do discurso infantil; a perda ou a ruptura do encantamento está

vinculada à perda da infância ou à presença do narrador ou à da personagem adulta; o

encanto e o desencanto se entrecruzam em caminhos mágicos, por meio de construção

poética.

Empreender o viés deste mundo mágico rosiano, tentar abrir-lhe veredas de

leitura e apreender sua poética em sutilezas do universo infantil, são aspectos que nos

atraem para suas narrativas, justificando a nossa pesquisa, e sempre buscando

apre(e)nder a vida com Rosa.

Para concretizar este desejo e este estudo, recorremos a concepções do

maravilhoso e do fantástico, principalmente em obras de Mieletinski, Propp e Todorov.

Calvino e Barthes também subsidiam a análise com suas abordagens sobre leveza, e

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leitura e escritura de fruição e gozo, respectivamente. Baudelaire, em seus ensaios sobre

Edgard Alan Poe, fundamenta a concepção de imaginário. Valemo-nos também das

contribuições de Bachelard acerca do devaneio, do sonho, e das de Walter Benjamin

para refletir sobre o literário e a criança. Também consideramos um recorte da fortuna

crítica sobre a voz da criança na obra de Guimarães Rosa, como os estudos pioneiros de

Henriqueta Lisboa, os de Benedito Nunes e os de Iolanda Cristina dos Santos. Ainda

são de fundamental importância, para este trabalho, os escritos e prefácios do crítico

Paulo Rónai.

A pesquisa se vale dos métodos analítico e comparativo para operar quer a

fortuna crítica acerca do corpus selecionado, quer as concepções teóricas sobre o

maravilhoso, o estranhamento, a magia, na linguagem rosiana.

Esta dissertação divide-se em três capítulos. O primeiro, intitulado

Apontamentos sobre criança na narrativa poética brasileira, procura situar o imaginário

infantil, relacionando-o com o poético, o encantamento, o sonho e a magia. Encarrega-

se de apresentar a criança à luz de alguns poetas brasileiros, evidenciando um olhar

entrelaçado. Enfoca também a criança na narrativa poética rosiana, refletindo sobre a

relação entre infância e poesia, a estranheza da criança diante do universo, o jogo com

as palavras, a alegria de inventar.

O segundo capítulo, denominado O encanto e o desencanto em narrativas

rosianas, trata da construção do pensamento mágico-poético e ritualístico ao refletir

sobre o discurso do narrador e das personagens crianças, inseridas no universo do

maravilhoso.

Discute o encantamento nessas narrativas e a sua relação com os ritos de passagem da

infância à vida adulta, assim como esses ritos estão vinculados às experiências mágicas

e essas com a poesia.

Finalmente, o terceiro capítulo, nomeado O universo mágico-poético rosiano,

analisa as três narrativas selecionadas para estudo: Brejeirinha e sua forma de narrar a

―história de tolice‖ do audaz navegante; Fita-verde, suas asas ligeiras e sua sombra

correndo-lhe em pós até o encontro com a avó; e Miguilim, a saudade do que não vê,

apreendendo a sua visão da beleza naquilo que mais ninguém vê, o medo de crescer e a

sensação de não pertencer ao mundo dos adultos. A análise se atém à forma como os

elementos mágico-poéticos, o encanto e o desencanto, atribuem sentido aos ritos de

passagem vivenciados por essas personagens e como a linguagem da infância vincula-se

à poesia.

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Capítulo I - Apontamentos sobre criança na narrativa poética brasileira

1.1. A criança e o imaginário

Tem horas que, de repente, o mundo vira

pequenininho, mas noutro de-repente ele já

torna a ser demais de grande, outra vez. A

gente deve de esperar o terceiro pensamento.

Guimarães Rosa

Ferreira Gullar (2015, p. 9) diz que ―Poesia não nasce pela vontade da gente,

ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia. (...) Então, de

vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz nascer a poesia.‖

Pensemos na criança, na sua mais tenra existência. Ela apenas dispõe dos

sentidos como instrumento para a percepção do mundo. Um bebê, no útero, além do

calor do ventre, tem como primeira percepção o ritmo: a batida de seu coração e a do de

sua mãe, a pulsação sanguínea. A percepção do ritmo permanece e se intensifica após o

nascimento. A criança se vê diante de um mundo compassado: a respiração, as palmas,

os passos, os segundos, as horas, o dia, a noite, a chuva, o mar, as estações. Observamos

que bebês de menos de um ano reconhecem a música e vibram com ela, dançam sem se

incomodarem com descompassos, hiatos e quebras de estrutura. Esse comportamento,

tão comum nas crianças, apresenta semelhanças com o poético que se desenrola na

imaginação.

Os adultos, principalmente pais e professores, mesmo diante da incompreensão

do pensamento infantil, deveriam ter o cuidado para não depreciar e desperdiçar esses

lampejos de imaginação, considerando-os projeção de uma mente imatura. A

imaginação da criança pode ser assustadora para os adultos, pois não pode ser

considerada pensamento normalizável, controlável nem rentável à sociedade (HELD,

1980, p. 48).

Atitudes de reprimenda por parte de adultos ou de crianças maiores podem

roubar da criança não só a segurança e o conforto de que necessita, ou a predisposição

de ser como o flaneur de Baudelaire, mas também o pasmo essencial diante da eterna

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novidade do mundo, tal qual fazia Alberto Caeiro (PESSOA, 1998, p. 18), com seu

olhar contemplativo para a vida, a poesia e as novas possibilidades. Pele, Ciganinha e

Zito, personagens de Partida do audaz navegante, conto de Primeiras Estórias, de Rosa

(2016). Crianças, provavelmente quase adolescentes, apresentavam atitudes de

reprimenda ao caçoarem das artes de contar e inventar de Brejeirinha, desfazendo-se

dela, não percebiam que o imaginário pode corroer certezas calcadas em critérios

limitadores.

À semelhança dos poetas, crianças são inflamadas por sentimentos intensos, pela

paixão, pelo desejo, pela intensidade e pelo ―quero porque quero‖ e ―quero agora‖. São

como a fadinha Sininho ou Tinker Bell, de Peter Pan (J. M. Barrie, 1860 - 1937). Além

de naturalmente contarem com o condão da magia como os poetas, deixam as emoções

– amor ou ódio, ternura ou maldade – manifestarem-se, o que as fazem parecer confusas

e barrocas. Contestar o ―ataque de lirismo‖ de uma criança talvez seja tão injusto quanto

desconfigurar amor e fogo, de Camões, ou calafrio doce, ou susto sem perigo, de Rosa.

O olhar da criança dirige-se ao aqui e agora e, também, egocentricamente, para dentro

de si. Um olhar que alcança o ―estado de inocência substituindo o estado de graça que

pode ser uma atitude do espírito‖, como afirma Oswald de Andrade (1976) em seu

Manifesto da poesia pau-brasil. Assim, estamos diante de uma mente ainda não limitada

por esquemas fixos e que goza de um universo imaginário e linguístico, encanta-se com

sons, rimas, imagens, sem que Oswald de Andrade precisasse afirmar: veem com olhos

livres.

Aliada à sensibilidade sensorial e à intensidade lírica, a primeira infância conta

com a imitação de modelos ou com o senso comum e com o frescor da imaginação

associativa livre, que Paulo Rónai (apud ROSA, 2016, p.20) atribui à Brejeirinha. Esse

olhar contemplativo em relação à vida não se volta ao passado, mas às angústias acerca

do futuro. Embora disponha das mais vagas noções sobre o que esse futuro pode cobrar

ou do que ele trará, ela possui uma imaginação sem limite. No prefácio de Primeiras

Estórias, Paulo Rónai (apud ROSA, 2016, p. 20), sobre as personagens rosianas, afirma

que são as crianças, com seu ―pensamentozinho ainda na fase hieroglífica‖, que

possuem mola-mestra da arte quando ―tropeçam nos pedregulhos da palavra ou já se

deslumbram com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do

mundo e voltam com excitantes descobertas‖. Talvez sejam elas que, quando

aparentemente nada acontece, conseguem ver o milagre que ninguém está vendo. No

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prefácio de Noites do Sertão, entretanto, Rónai (apud ROSA, 2016, p. 20) revela:

―Esses milagres não são o privilégio das crianças. Adultos que ainda carregam consigo

restos da alma infantil chegam a cruzá-los às vezes, e em circunstâncias das mais

imprevistas‖.

Tal como os artistas, as crianças podem ter maior facilidade para valorizar e

recriar significados para aquilo – objetos, fenômenos, palavras – que um olhar adulto

não consegue mais. E são elas, umas mais, outras menos, pessoinhas de poucas letras e

pouca vivência, que nos atiram perguntas como: ―Por que os imensos aviões não

passeiam com seus filhos?‖, ―Por que não ensinam os helicópteros a tirarem mel do

sol?‖, ―Por que se suicidam as flores quando se sentem amarelas?‖. Não poderiam os

versos – ou perguntas – do Livro das Perguntas, de Pablo Neruda (2008), serem

perguntas – ou versos – proferidos por uma criança em idade pré-escolar?

Gaston Bachelard (1996, p. 2), em Poética do devaneio, demonstra preocupação

com o que acontece com o olhar poético natural da infância na vida adulta:

Tudo seria mais simples, parece, se seguíssemos os bons métodos do

psicólogo, que descreve aquilo que observa, mede níveis, classifica tipos —

que vê nascer a imaginação nas crianças sem nunca, a bem dizer, examinar

como ela morre na generalidade dos homens.

É também Bachelard (1996, p. 10) quem nos lança a interrogação: ―Como pode

um homem, apesar da vida, tornar-se poeta?‖ Bruno Bettelheim (2014, p. 69) também

compartilha dessa interrogação quando afirma que parte das crianças, tal qual os

grandes filósofos, buscam soluções para questões primeiras e últimas: ―Quem sou eu?

Como devo lidar com os problemas da vida? Quem eu devo me tornar?‖. Justamente

porque a vida é frequentemente desconcertante para a criança, ela necessita que lhe seja

dada a oportunidade de entender a si própria neste mundo complexo com o qual tem de

aprender a lidar. Ela busca elementos que a ajudem a dar sentido coerente ao turbilhão

de sentimentos, mudanças, incertezas e descobertas ao longo da infância. Os contos de

fadas, mais do que a vida real e palpável, deixam para a fantasia da criança a decisão de

como aplicar a si aquilo que a história revela sobre a vida e a natureza humana. As

crianças se convencem, se confortam e passam a confiar no que essas histórias

fantasiosas dizem, simplesmente porque são mais convincentes para elas. A visão de

mundo e os princípios subjacentes ao processo de pensamento apresentados pelos

contos de fadas condizem com a visão de mundo da criança. Bettelheim (2014, p. 12)

ainda corrobora as palavras do poeta alemão Schiller que afirma: ―Há um significado

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mais profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que

a vida ensina‖.

As crianças se encantam com os contos de fadas tanto quanto se encantam com a

atitude de liberdade frente ao mundo, criando possibilidades de ser, sem se ater a

explicações científicas e racionais. É natural às crianças tornar a vida rica em fantasias e

desejos, despertando-lhes a curiosidade e estimulando a imaginação. É desse

encantamento que surge o imaginário. Para algo fazer sentido para uma criança, só

precisa ser belo e agradável, personificar seus medos e acalentar suas incertezas. Por

exemplo, como crianças imaginam a noite e o dia? Muitas delas criarão histórias em que

o Sol, muito cansado, se recolheu para dormir em seu quarto estrelado e, ao acordar,

dirigiu-se ao horizonte. Personificam o Sol sem conhecerem a carruagem de Hélio, a

―Aurora dos róseos dedos‖ de Homero. Isso sem nunca terem conhecido a mitologia

grega ou terem tido notícias dos antigos egípcios, que viam o firmamento como uma

figura materna que se debruçava sobre a Terra, envolvendo-a, assim como a eles,

serenamente. Essa é uma forma de a criança prolongar uma visão animista do mundo,

conforme afirma Jacqueline Held (1980, p. 44):

A vida da criança é toda ela dominada pela brincadeira. Assim, a passagem

de uma crença inicial à exploração lúdica dessa crença ocorre muito cedo, e

de maneira imperceptível. [...] Jean Piaget nos adverte: [...] Nos escritos

infantis que colhemos [...] era difícil separar a parte das crenças e da

representação imaginária ou do prazer de inventar.

O encantamento e a magia, para a criança, têm um sentido diverso do que são

para a maioria dos adultos. As crianças, geralmente, se alheiam da sua vida interior, pois

lhes empobrece o espírito. Por isso, é difícil para os adultos – mesmo os filósofos,

psicanalistas ou sociólogos – alcançarem as metamorfoses múltiplas que as crianças

empregam em suas mágicas e estabelecerem as mesmas semelhanças. A não ser que o

adulto abra mão das normas em favor da poética. Wallon (apud HELD, 1980, p. 43)

confirma ao dizer:

O adulto chama de maravilhoso o que ultrapassa as normas aceitas. Ora, no

plano das interpretações e do conhecimento, a criança ainda não possui

normas. O que a sua curiosidade lhe faz encontrar e descobrir em seu

ambiente não pode ser, propriamente falando, nem normal, nem maravilhoso.

Fábio Herrmann (1997) afirma que tudo o que sabemos acerca da criança é

produto do diálogo intencional entre ela e o adulto ou, no máximo, uma lembrança

distorcida sobre o que era a criança que fomos um dia. Ainda que a percepção da

infância seja considerada unicamente a partir da memória de um olhar adulto

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distanciado, devemos nos lembrar de que os fatos recordados se tornam novos e

modificados. Cada momento que voltamos ao passado, deparamo-nos com imagens

diferentes de nós mesmos e do mundo. Assim, o que sabemos do pensamento infantil,

na maioria das vezes, limita-se a uma reprodução do pensamento do adulto. Ou a uma

invocação do adulto de supostas necessidades da criança para satisfazer suas próprias

necessidades, como se a máscara de um ―eu‖ autobiográfico do passado servisse para

reforçar a insatisfação com o presente e esconder de si outros ―eus‖ desconhecidos. O

fato é que crianças, sem a intervenção do adulto, apresentam-se sem máscaras e se

contentam com o presente, uma vez que não possuem passado e tratam o futuro como

uma enorme folha de cartolina pronta para ser desenhada com lápis de cor, até que

venha um adulto que a estimule a desenhar uma casa num gramado, com uma árvore do

lado, nuvens no céu, ou, talvez, uma família feliz. Ainda hoje é comum as crianças

repetirem explicações racionais e científicas nas quais não acreditam e que não

entendem de fato, mas aprenderam a considerar como verdadeiras. É assim que as

crianças passam a desconfiar de suas próprias experiências, de si mesmas e do que a

imaginação pode fazer por elas. E é assim que os adultos se afastam cada vez mais das

necessidades e da essência das crianças, as que conhecem e as que foram um dia.

Benjamin (1985, p. 250) também afirma que o mundo perceptivo das crianças

está marcado pelos traços das gerações anteriores – mesmo no tocante às brincadeiras e

aos brinquedos. É comum que adultos, ainda hoje, invoquem supostas necessidades das

crianças para satisfazerem as suas próprias. Entretanto, em virtude de sua

espontaneidade inerente e de seu poder de criação, as crianças confrontam-se com essa

concepção. Se a criança experimenta a ordem do mundo à semelhança de seus pais e do

que se passa dentro de sua família, da escola, do meio em que vive, cada descoberta que

fuja dessa ordem, cada ―mágica associativa‖ será vista como uma conquista. Longe

dessas intervenções, a criança se permite pensar e se expressar por si só e, por isso,

escapa dos adultos por entre os dedos. Certamente, também escapa à ciência, à filosofia

e à sociologia. Em suas brincadeiras, a criança não se limita a imitar pessoas, a

reproduzir objetos, coisas, elementos da natureza. Não se trata de repetição, mas de

criação de uma nova versão. Benjamin defende que a criança constrói seu universo

particular – tal como os poetas –dando outra significação ao cotidiano, aos objetos, aos

sentimentos. Ela incorpora às suas vivências uma mística que sublima sua sensibilidade

pelo mundo e sua aptidão para descobrir novos caminhos, possibilitando um olhar

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crítico e compreensivo da realidade. Benjamin (1987b, p. 39), em Criança Desordeira,

ressalta uma experiência de infância e elabora uma reflexão na qual joga com o arrumar

e o desarrumar o racional (lógico) e o imaginário (ilógico):

CRIANÇA DESORDEIRA. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e

cada borboleta capturada já é para ela princípio de uma coleção, e tudo que

ela possui, em geral, constitui para ela uma coleção única.(...) Para ela, tudo

se passa como em sonhos: ela não conhece nada de permanente; tudo lhe

acontece, pensa ela, vai-lhe de encontro, atropela-a. Seus anos de nômade são

horas na floresta do sonho. De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la,

fixá-la, desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas e

zoológico, museu criminal e cripta. ‗Arrumar‖ significaria aniquilar uma

construção cheia de castanhas espinhosas que são maçãs medievais, papéis de

estanho que são um tesouro de prata, cubos de madeiras que são ataúdes,

cactos que são totens e tostões de cobre que são escudos. No armário de

roupas da casa da mãe, na biblioteca do pai, ali a criança já a ajuda há muito

tempo, quando no próprio distrito ainda é sempre o anfitrião inconstante,

aguerrido.

Trata-se de uma escrita não apenas baseada em recordações, mas na busca de

reencontrar, colher, capturar e constituir uma concepção de sonho baseado nas

percepções de infância. Uma tentativa da reconstrução daquilo que se conseguiu ver

enquanto adulto e que não conseguia ver quando criança, somente possível a partir do

resgate do olhar da criança, da redescoberta dos sentidos, dos caminhos que fazem com

que rememore a infância perdida. Benjamin nos aponta caminhos para a magia da

infância, como descobrir com ela e por meio dela o mistério que emana do mundo dos

objetos. São mistérios que alimentam a imaginação da criança. Tudo nos leva a crer que

o mistério, a possibilidade do imprevisto, que dá conteúdo e forma aos segredos que

revela. É o fazer de novo que conduz a uma experiência nova e alimenta o imaginário.

Procedimentos afeitos à criança e ao seu universo. Benjamin (1996, p. 253) afirma:

O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade

quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa

sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja essa a raiz mais profunda do

duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o

mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da

brincadeira, não é ―fazer como se‖, mas ―fazer sempre de novo‖, é a

transformação em hábito de uma experiência devastadora. (BENJAMIN,

1996, p. 253)

Tornar a transformação em hábito, se conduz a criança a brincar e representar,

não o faz sem que experimente o estranho aliado a um estado de solidão. É o que nos

ensina a ver Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta, quando reflete sobre o

―entrar em si mesmo‖, relacionando modos de ser da criança e do adulto. Em suas

palavras:

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Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas — eis o que se

deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto

os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e

grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se

entendia de suas ações. Se depois um dia a gente descobre que suas

ocupações são mesquinhas e suas profissões, petrificadas, sem ligação

alguma com a vida, por que não voltar e olhá-los outra vez como uma

criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu próprio mundo, dos

longes de sua própria solidão que é, por si só, trabalho, dignidade e

profissão? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança

pela defensiva e pelo desprezo, uma vez que a não-compreensão significa

solidão, ao passo que defensiva e desprezo equivalem participação nas

próprias coisas cujo afastamento se deseja? (RILKE, 2012, p.56)

Esse estar só e olhar como olha a criança para uma coisa estranha, do

entendimento do poético em Rilke, ressoa em Bachelard (1996, p.94) quando diz:

Essas solidões primeiras, essas solidões de criança, deixam em certas almas

marcas indeléveis. Toda a vida é sensibilizada para o devaneio poético, para

um devaneio que sabe o preço da solidão. A infância conhece a infelicidade

pelos homens. Na solidão a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela se

sente filha do cosmos, quando o mundo humano lhe deixa a paz. E é assim

que nas suas solidões, desde que se torna dona de seus devaneios, a criança

conhece a ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos poetas. Como

não sentir que há comunicação entre a nossa solidão de sonhador e as

solidões da infância?

A ventura de sonhar que Bachelard associa à solidão de sonhador e às solidões

da infância, abrem para experiências poéticas. Não é à toa que, num devaneio tranquilo,

seguimos muitas vezes a inclinação que nos restitui as solidões de infância. E o

devaneio nos faz o primeiro habitante do mundo da solidão. Habitamos melhor o mundo

quando o habitamos como a criança solitária habita os sonhos. Nos devaneios da

criança, as imagens prevalecem e se renovam ao longo dos tempos, de cultura em

cultura, até se perpetuarem no inconsciente particular de cada um, tornando-se um

inconsciente coletivo ao longo do tempo. O devaneio restitui a beleza das imagens

primeiras. Bachelard diz que, se há um domínio em que a distinção se torna difícil, é o

domínio das recordações da infância, o domínio das imagens amadas, guardadas, desde

a infância, na memória. Afirma:

Essas lembranças que vivem pela imagem, na virtude de imagem, tornam-se,

em certas horas de nossa vida, particularmente no tempo da idade

apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio bastante complexo: a

memória sonha, o devaneio lembra. Quando esse devaneio da lembrança se

torna o germe de uma obra poética, o complexo de memória e imaginação se

adensa, há ações múltiplas e recíprocas que enganam a sinceridade do poeta.

Mais exatamente, as lembranças da infância feliz são ditas com uma

sinceridade de poeta (BACHELARD, 1996, p.20).

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Conhecer a ventura do sonhar, ser dona dos devaneios, é condição para a

criança, e depois o adulto, abrir-se ao mundo da imaginação e da memória é uma forma

de a infância ligar o real ao imaginário (BACHELARD, 1996, p. 102). Adentrar neste

mundo imaginário, nesse jardim suspenso e secreto, à semelhança dos jardins e sertões

de Rosa, é ―rememoriginar‖ a infância (rememorar e torná-la original por meio do

imaginário), permeada por fantasias guardadas no inconsciente.

Com Rilke e Bachelard, aproximamo-nos novamente de Benjamin, da sua

concepção de ―fazer sempre de novo‖, próprio do cotidiano infantil e semelhante à visão

de Rosa. A sábia incompreensão da criança é vista como o condão do seu processo de

criação. Para esses autores, pode-se dizer que a identidade do narrador é um aspecto

secundário em relação à visão extasiada de uma criança escondida atrás de uma cortina.

Ela se vê diante de um mundo predominantemente encoberto por objetos

desconhecidos, porém repletos de magia e poesia. Em a Criança Escondida, Benjamin

(1987b, pp. 39-40) esclarece:

CRIANÇA ESCONDIDA. Ela já conhece na casa todos os esconderijos e

retorna para dentro deles como quem volta para uma casa onde se está seguro

de encontrar tudo como antigamente. Bate-lhe o coração, ela segura a

respiração. Aqui ela está encerrada no mundo da matéria. Ele se torna

descomunalmente claro para ela, chega-lhe perto sem fala. Assim somente

alguém que é enforcado toma consciência do que são corda e madeira. A

criança que está atrás da cortina torna-se ela mesma algo ondulante e branco,

um fantasma. A mesa de refeições sob a qual ela se acocorou a faz tornar-se

ídolo de madeira do templo onde as pernas entalhadas são as quatro colunas.

E atrás de uma porta ela própria é porta, está revestida dela como de pesada

máscara e, como mago sacerdote, enfeitiçará todos os que entram sem

pressentir nada. A nenhum preço ela pode ser achada.

É por meio da solidão, de seu esconderijo secreto, longe das reprimendas dos

adultos, que a criança sonhadora devaneia cosmicamente e se une ao mundo, a um real.

Sem a presença do adulto, a criança pode abandonar por alguns momentos as

referências sobre si mesma, uma vez que pode imaginar ser quem quiser ser – rei, bedel

ou juiz, super-heróis ou bichos, como na canção de Chico Buarque (1976) – sem limites

para o que ela pode construir ou descontruir em sua imaginação. É Benjamin (1987b,

pp. 39-40) quem continua dizendo:

Quando ela faz caretas dizem-lhe que basta o relógio bater e ela terá de

permanecer assim. O que há de verdadeiro nisso ela sabe no esconderijo.

Quem a descobre pode fazê-la enrijecer como ídolo debaixo de uma mesa,

entretecê-la para sempre como fantasma no pano da cortina, encantá-la pela

vida inteira dentro da pesada porta. Por isso, com um grito alto ela faz partir

o demônio que a transformaria assim, para que ninguém a visse, quando

quem a encontra a pega — aliás, nem espera esse momento, antecipa-o com

um grito de autolibertação. Por isso ela não se cansa do combate com o

demônio. A casa, para isso, é o arsenal das máscaras. Contudo, uma vez por

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ano, em lugares secretos, em suas órbitas oculares vazias, em sua boca rígida,

há presentes. A experiência mágica se torna ciência. A criança, como seu

engenheiro, desenfeitiça a sombria casa paterna à procura de ovos de Páscoa.

Esse mundo mágico aberto à imaginação, também é reflexão de Baudelaire

(2003, p. 10), em seus ensaios sobre Edgard Alan Poe, quando aproxima infância,

imaginário e olhar poético:

Toda essa gente, com vontade e boa fé infatigável, decalca a natureza.

Também são mais espantosos e originais do que os simples imaginativos, que

são completamente privados de espírito filosófico. Eles visam ao espantoso, e

isso se deve a esse espírito primitivo de chercherie, esse espírito inquisitorial,

espírito de juiz de instrução, que tem talvez raízes nas mais remotas

impressões da infância.

Baudelaire (2003, p. 34, 39) apresenta como exemplo de impressões remotas da

infância o trágico conto ―Willian Wilson‖, em que Poe narra, em primeira pessoa, o

encontro e a convivência do menino Willian com o seu ―duplo‖ no colégio de Stoke-

Newton, cenário descrito por ele como um ―palácio de ilusões‖. Sobre a personagem

Willian Wilson, o poeta afirma: ―O cérebro fecundo da infância não exige incidentes do

mundo exterior para ocupar-se e divertir-se‖.

Além do olhar mágico, Baudelaire (2003, p. 34) considera que as impressões da

infância são fonte de autorreflexão e, também, criação de um complexo imaginário:

Todos aqueles que refletiram sobre a própria vida, que frequentemente

lançaram seus olhos para trás a fim de comparar o passado com o presente,

todos aqueles que tomaram hábito de psicologizar facilmente sobre si

mesmos sabem que parte imensa a adolescência tem no gênio definitivo de

um homem. É então que os objetos lançam profundamente suas marcas no

espírito tenro e fácil. É então que as cores são vistosas e os sons falam uma

língua misteriosa. O caráter, o gênio, o estilo de um homem é formado pelas

circunstâncias em aparências vulgares de sua primeira juventude. Se todos os

homens que ocupam os cenários do mundo tivessem anotado suas impressões

da infância, que excelente dicionário psicológico possuiríamos!

Estudar a formação do imaginário e, consequentemente, da poesia na infância é

uma empreitada teórica complexa e desafiadora, tanto para o poeta Baudelaire, quanto

para a psicologia, filosofia, pedagogia, antropologia. Não nos preocupamos em aderir a

um movimento intelectual ou a uma teoria que busca apreender a infância apossando-se

dela, mas em reconhecer a infância e o pensamento poético como uma resistência a

sistemas classificatórios. É nesse sentido que as crianças se assemelham aos poetas.

Orientamo-nos por poetas e teóricos que reconhecem e refletem sobre a aproximação

entre a infância, a poética, o imaginário e a fantasia. Sigmund Freud (2013. p. 269), por

exemplo, em O poeta e o fantasiar, afirma que o poeta faz algo semelhante à criança que

brinca; ele cria um mundo de fantasia, o qual leva a sério. Um mundo nascido do

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desejo, do sonho, criado por grande mobilização afetiva, na medida que se distingue

rigidamente da realidade.

Freud segue seu trabalho desenvolvendo e demonstrando a transformação do

jogo infantil no devanear/ fantasiar do adulto. Segundo o autor, a brincadeira é uma

forma de a criança organizar o mundo, construir sentidos para si. A poesia, como busca

de sentido, aparece como um momento diferente do brincar, possivelmente, quando as

formas de brincar existentes para uma pessoa estão esgotadas, aprisionadas, ressecadas.

A poesia surge, então, – na falta da brincadeira ou complementando a brincadeira –

como possibilidade de reordenar, de recriar o mundo. Estabelecendo essa aproximação,

é que entendemos a poesia na voz da personagem criança como algo libertador e

renovador da ordem, possibilitando um reencontro com algo familiar e, ao mesmo

tempo, com o imaginário. Freud também traça semelhanças do engenho do chiste – uma

libertação da lógica racional e de um pensamento que se pauta pelas categorias

aristotélicas do pensamento formal –, com o brincar infantil, assim como correlaciona o

brincar infantil com o devaneio e a poesia na vida adulta. Afirma que se o adulto oculta

suas fantasias, é porque ―envergonha-se delas por serem infantis e proibidas‖ (FREUD,

2013, p.271).

Podemos supor que os artifícios libertadores ou rebeldes no indivíduo adulto

encontram suas raízes na brincadeira infantil. Freud (2013, p. 271) afirma que as forças

motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de

um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. A recordação da infância é uma

forma de entrar na posse, uma vez mais, da fonte infantil de prazer. O autor considera

ainda que o fantasiar entrelaça passado, presente e futuro, ―pelo fio do desejo que os

une‖. Nesse caso, podemos considerar a dimensão lúdica da poesia, a arte da palavra –

ou mesmo da arte como um todo – como uma forma de prolongar o jogo infantil, o faz

de conta infantil, à semelhança de Brejeirinha quando finge que o riachinho formado

pela chuva é o mar, e o cogumelo é o chapeuzinho do navegante.

Olhado do ponto de vista da infância, o mundo pode ser assimilado sob a

perspectiva de um jogo. Para Huizinga (2000, p. 87), a criança pertence àquele plano

primitivo e originário, da região do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso. Para

compreender a poesia, é preciso ―ser capaz de envergar a alma da criança como se fosse

uma capa mágica, e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto‖.

Isso porque a poesis é uma função lúdica, que se exerce no interior da região lúdica do

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espírito, a mesma à qual pertencem as crianças – além dos selvagens e visionários. Esse

é um mundo no qual as coisas possuem uma fisionomia diferente da que apresentam na

vida comum, e não operam por relações de lógica e de causalidade. A poesia nasce

dessa função lúdica, dessa ausência de lógica e causalidade.

Se, por um lado, Huizinga defende que a seriedade só pode ser concebida em

termos da vida real, por outro, Gianni Gianni Rodari (1982) afirma que esse jogo da

poesia pode assumir o caráter de seriedade quando ajuda a criança a explorar

possibilidades. Em A gramática da fantasia, Rodari (1982, p.32) cita como exemplo as

brincadeiras com as palavras e suas significações na linguagem da criança. Para o autor,

um dos modos de tornar produtivas as palavras e seus sentidos é recriá-las como forma

de explorar as suas possibilidades e seus significados, a dominá-las, pervertê-las,

criando-lhes declinações originais. Essa brincadeira estimula a liberdade da criança

enquanto ser falante com direito à sua prosa pessoa. Nota-se semelhança com o jogo

que faz Guimarães Rosa (2016) quando atribui palavras novas a personagens como

Brejeirinha, de ―A partida do audaz navegante‖. É certo que a brincadeira com as

palavras, mais do que uma característica, é um método de que se vale Guimarães Rosa

em toda sua obra. O prefixo ―des‖, que Rodari (1982, p.32) exemplifica como

desconstruindo um ―canivete‖, transformando-o em ―descanivete‖, faz Miguilim

―deslembrar‖ – como as memórias se desentendem. Encontramos, no universo rosiano,

várias brincadeiras desse tipo, inclusive com o mesmo prefixo: deslua, desmaginar,

desnamorar-se, desnascer, desouvir, dessentir, desviver etc.

Ainda considerando Rodari (1982, p. 35), ―Muitos dos ‗erros‘ das crianças não

são erros: são criações autônomas das quais elas se servem para assimilar uma realidade

desconhecida.‖. Na poesia, podemos considerar que os erros são a parte doce da

conquista. ―Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a

língua.‖ Esse verso de Manoel de Barros (2010, p. 266) trata de um tema caro à poesia:

o período inaugural da vida. Esse dom de acertar, mesmo quando se erra, é que separa a

criança dos adultos, cuja imaginação se encontra tão bem adaptada à realidade. Crianças

não costumam reprimir sua imaginação, ao contrário, acreditam no poder e na verdade

da pena mágica que, tal como Dumbo, as faz capazes de voar.

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1.2. Poetas e crianças: olhar entrelaçado

Guimarães Rosa é um exímio coletor e criador de palavras e imagens,

utilizando-as como recursos poéticos de sua escrita. A infância, para ele, não é a única e

real possibilidade de deslumbramento e poesia. Todavia, narrativas como Campo Geral,

Fita Verde no Cabelo e Partida do audaz navegante, com temática sobre a infância,

abrem caminhos para o transcendente, o irracional, o mágico. Justamente por serem

protagonizadas por crianças, afastam-se da conversa das ―pessoas grandes‖. É

interessante observarmos como as crianças de Rosa não demonstram apreço pelo

pensamento dos adultos, o que aflige tanto em Miguilim a vontade de crescer: ―sempre

as mesmas coisas secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas‖

(ROSA, 2016, p. 44).

Se, por um lado, as crianças de Rosa não apreciavam as conversas dos adultos,

por outro, a infância também não era tão levada em consideração até o início do século

XX. Observa-se, contudo, que apesar de há muitos anos presentes em registros

literários, somente a partir do início do século XX as Ciências Sociais e Humanas

passaram a considerar a criança e a infância como objetos de suas pesquisas e passaram

a entender a criança como sujeito histórico, de direitos e desejos, tendo como eixo de

suas investigações o registro de suas falas e comportamentos como formas de

compreendê-las. É a partir deste período que surge uma nova concepção sobre a

infância, a necessidade de sua proteção e de sua diferenciação em relação ao adulto.

Nesse sentido, a interpretação das representações infantis é objeto de estudo

relativamente novo, constantemente abordado por estudiosos e longe de ser esgotado.

A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações

Unidas, de 20 de novembro de 1959, seguida de leis sobre o trabalho infantil, instrução

obrigatória para todas as crianças e um sistema judicial para criminalidade juvenil

definiram o modo como o universo infantil era diferente do universo dos adultos. A

criança deveria ser tratada de acordo com sua condição. No entanto, o que se sabe sobre

a criança até hoje, ainda que com base psicanalítica, pedagógica ou sociológica, leva-

nos a crer que se trata do produto de um diálogo intencional e condicionado do adulto

em relação a ela. Recorrer à arte, é um dos caminhos para compreendê-la. É na poesia e

na ficção que a fala da criança é ouvida, mesmo quando elaborada por um

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autor/narrador/personagem adulto que recorda sua infância ou assume um olhar

nostálgico, poético e lúdico sobre a vida.

A configuração mágico-poética exige uma análise nem simples, nem óbvia,

tampouco limitada. Os objetos de estudos lidam com mentes encantadas, livres de

esquemas fixos, que se permitem viver no universo do imaginário, feito de associações

imagéticas, muitas vezes na fronteira do nonsense e da linguagem surrealista.

Neste estudo, consideramos o fato de que o discurso atribuído à criança, nas

obras de João Guimarães Rosa escritas entre as décadas de 30 e 70, revela uma

percepção não só mágica acerca do mundo, mas também libertária a manifestações

diversas entre si, em momento em que a concepção e a importância da infância ainda

buscavam consolidação.

A infância, mesmo assim, é assunto recorrente na literatura brasileira. Os poetas

recorrem a ela para explorar os limites da língua, pois as crianças ainda não estão

submetidas aos códigos linguísticos que inserem os adultos em regras e aprisionam sua

imaginação. É o que também afirma Márcia Cristina Silva (2017), em Retratos da

infância na poesia brasileira, ao investigar como a infância foi tratada por poetas

brasileiros em diferentes épocas, partindo de uma seleção histórica e intuitiva. Mais do

que mera recordação poética, a infância é analisada como objeto a ser construído pelo

poeta.

Em sua análise, Silva observa que no Romantismo a criança era comparada a

anjos, tratada de maneira idealizada, idolatrada, cuja força e valor residiam em sua

pureza e inocência. Os versos de Casimiro de Abreu, por exemplo, no poema ―Meus

oito anos‖, remetem a infância a um lugar idílico e sentimental, um paraíso perdido,

somada a ignorância acerca do sofrimento, a proximidade da mãe, da irmã, além do

contato com a natureza – bananeiras, laranjais, mar e céu. Se antes do Romantismo a

criança sequer aparecia nas fotografias, pois era considerada um ser incompleto e

menor, com o Romantismo que exalta o passado, a infância passou a ser lembrada.

Apesar de o poeta, representante da segunda geração do Romantismo brasileiro,

ser autobiográfico e egocêntrico, não se preocupar em dar voz ao outro, nem mesmo aos

outros que existem dentro de cada um de nós, Casimiro de Abreu (apud SILVA, 2017,

p.11) parecia exaltar a espontaneidade e a inocência juvenil em seus poemas, uma vez

que a poesia não era resultado de esforço, mas sim, como o próprio poeta a qualifica:

―um desabrochar de flores‖.

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Mas, mesmo se considerarmos a percepção da infância unicamente a partir da

memória de um olhar adulto distanciado, sabemos que as recordações, sempre que

voltamos ao passado, se deparam com ideias diferentes de nós mesmos e do mundo. Por

isso, questionamos se seria mesmo a infância um período tão florido ou Casimiro de

Abreu gostava de fantasiá-la de felicidade, tal qual outros poetas românticos. Quando

poemas são centrados em canto nostálgico, certamente ocultam uma criança sob tantos

adjetivos – doce, querida, pura, terna – que ela não tem a chance de se mostrar. A voz

saudosa adulta não permite reconhecer a voz da criança dentro do poeta, mas propõe

interpretações. O passado que deixa marcas na pessoa, na história, na cultura, não volta,

mas está sujeito a novas interpretações, especialmente na poesia. A infância ganha

identidade quando é recriada nos poemas e renasce por meio das memórias, da

recordação e da imaginação. Silva (2017, p. 19) afirma:

Seguindo os traços deixados por Chateaubriand no livro de Michel Lacroix O

culto da emoção (2006), é possível inserir os versos de Casimiro de Abreu no

pensamento romântico da época: A imaginação é rica, abundante e

maravilhosa, a vida é seca e desencantada. Com o coração cheio, habitamos

um mundo vazio. Assim o poeta ressignifica o desencantamento com o

mundo adulto no ato da criação. Ao recordar o passado, na verdade, este se

torna mais vivo, pois a reconstituição na poesia porta sempre o desconhecido,

uma vez que a memória também está em movimento. Se a infância se projeta

no passado, é no presente que ela renasce. Logo, não é o passado que salva,

como a princípio nos levam a crer os poemas saudosistas de Casimiro de

Abreu. Apenas o presente pode transportar o poeta no tempo e no espaço e

lhe dar um sentido de existência em meio ao nada.

De um lado, observamos a face da criança distanciada da realidade pelo olhar do

poeta adulto, uma infância inventada com o propósito de servir como refúgio contra

frustrações; de outro, a invenção parece ser o caminho pelo qual o poeta consegue se

desviar de seu exílio pessoal e fazer com que seu eu lírico entre em sintonia com o

universal.

No Parnasianismo, Silva observa que Olavo Bilac não se preocupava em

resgatar a infância perdida, mas se voltava às questões educacionais da época que

enxergavam a criança como ―um ser carente de aprendizados e lições de moral‖, além

de retratá-la por meio de versos edificantes como um ser em devir. A infância, que antes

remetia ao passado, passa a significar a construção do futuro. Silva (2017, p. 42)

observa que:

A voz da criança é novamente abafada pela do poeta, não mais em favor do

passado, mas do futuro. Ao demarcar limites entre o mundo infantil e o

adulto, estabelecendo a existência de um conhecimento progressivo a ser

adquirido com a idade, Olavo Bilac desconstrói a importância que havia dado

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à ―inteligência infantil‖ em favor de outra que a substituirá. A criança se

encontra à espera de ouvir os mais velhos, como no primeiro poema de

Poesias infantis intitulado ―A avó‖.

Os retratos da infância, realizados por Olavo Bilac, aproximam a infância dos

mais velhos, guardada pelo olhar do adulto. O poema O pássaro cativo (BILAC, 1943)

exemplifica tal situação: o poeta ensina à criança o valor da liberdade, mas, ao mesmo

tempo, a intimida com inúmeros conselhos. O próprio título do poema conduz a uma

visão sobre infância.

Os poetas modernistas, entretanto, consideram a infância com mais autonomia.

Abrem espaço para a criação de uma nova infância que se configura na linguagem. Se

primeiramente a criança era tratada com saudosismo, idealização e com inferioridade,

ela passa a ser vista como um ser inquieto, inventivo e transgressor, capaz da criação e

da reinvenção de novos mundos. A memória passa a ser construída com mais liberdade,

a favor da poética e do imaginário. A inconstância e o desprendimento da verdade

passam a figurar no poema de maneira lúdica, pois o poeta vive a infância e a

brincadeira com as palavras, transportando-se no tempo e no espaço.

Silva (2017) afirma que a infância também é retratada pelo viés da melancolia.

Um exemplo é a imagem de infância de Manuel Bandeira, que a autora considera

idealizada nos seus primeiros livros Cinza das horas e Carnaval. Mais tarde, seu poema

O ritmo dissoluto apresenta a imagem do ―menino doente‖, indiciando uma infância

ameaçada.

Cecília Meirelles, que dedicou muitos de seus poemas às crianças, e é

considerada uma das mais importantes contribuições poéticas para a infância brasileira,

já inseria temas como a morte e a solidão no universo infantil, reconhecendo que tais

emoções não fazem parte apenas do adulto, mas do ser humano em geral. No poema

Retrato, segundo Silva (2017. p. 90), a ―infância e a juventude de outrora já não são

mais reconhecíveis no retrato‖. A poeta desfaz o mito da infância feliz e revela um

mundo adulto indiferente e passivo diante do sofrimento infantil. A vitalidade e a

doçura da infância parecem distantes dos ―olhos vazios‖ e do ―lábio amargo‖. Com as

mãos ―sem força‖, ―paradas e frias‖ e o coração ―que nem se mostra‖, a criança não

consegue se agarrar à vida.

Sobre o ponto de vista desses dois últimos poetas acerca da infância, Silva

(2017. p. 92) afirma:

Se, para Manuel Bandeira, a infância é abrigo do desencanto com a vida

adulta, a criança de Cecília Meireles já nasce desencantada. É o não ter que

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lhe dá o primeiro sentido de existência, como também é do estranhamento

diante do mundo que surge a poesia.

Carlos Drummond de Andrade (1982, p. 71), por sua vez, em seu poema

Infância, do livro Alguma poesia, publicado em 1930, conta a história do menino que,

enquanto a mãe cosia, o pai cavalgava no campo e o irmãozinho dormia, consolava sua

própria solidão sentado entre mangueiras, lendo ―comprida história que não acaba mais‖

de Robinson Cruzoé. O poema inicia despretensiosamente, como apenas uma

recordação do cotidiano familiar, a luz branca do meio dia interrompido pelo café preto

feito pela preta velha – uma personagem que nunca havia se esquecido da sua própria

infância e das cantigas de ninar aprendidas na senzala – e o mosquito pousando no

berço onde está o irmão pequeno adormecido. Adulto, o eu-lírico se dá conta de algo

que não compreendia quando criança: sua história, à primeira vista tão monótona, se

assemelhava à solidão do náufrago inglês criado por Daniel Deffoe, mas era mais

bonita. Há mais beleza no seu cotidiano, nas atitudes da mãe cozendo e do pai

campeando ―no mato sem fim‖, um universo em que permaneceu sua infância, do que

no universo da ficção das aventuras de Robinson Cruzoé, herói que simboliza a solidão

e, ao mesmo tempo, é um salvo-conduto para o mundo da imaginação.

As indagações do poema Infância, em que a revisitação ainda se anuncia na

memória lírica de um adulto, acompanham o poeta Drummond (2011, p. 183) que, em

sua crônica intitulada Literatura infantil, insiste em dar à criança e à literatura infantil

patamares de ser e arte, sem preconceitos. Aqui reproduzimos o texto integral:

O gênero literário infantil tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá

música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária

deixa de se constituir em alimento para o espírito da criança ou jovem e se

dirige ao espírito adulto? Qual o bom livro de viagens ou aventuras destinado

a adultos, em linguagem simples e isento de matéria de escândalo, que não

agrade à criança? Observados alguns cuidados de linguagem e decência, a

destinação preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho

ao homem, e reclamando uma literatura também à parte, ou será a literatura

infantil algo de mutilado, de reduzido e desvitalizado, porque coisa primária,

fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância?

Vêm-me à lembrança as misturas de árvores com que se diverte o sadismo

botânico dos japoneses: não são organismos naturais e plenos, são anões

vegetais. A redução do homem, que a literatura infantil implica, dá produtos

semelhantes. Há uma tristeza cômica no espetáculo desses cavalheiros

amáveis e dessas senhoras não menos gentis, que, em visita a amigos, se

detêm a conversar com as crianças de colo, estas inocentes e sérias, dizendo-

lhes toda sorte de frases em linguagem infantil, que vem a ser a mesma

linguagem de gente grande, apenas deformada no final das palavras e

edulcorada na pronúncia... Essas pessoas fazem oralmente, e sem o saber,

literatura infantil

Para o poeta, a criança, a infância, a literatura infantil não são, não estão à parte,

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As crianças não podem ser consideradas ―bonsais‖, mutilações incompletas de adultos

ou versões em miniaturas. Drummond reforça o preconceito em relação a uma literatura

destinada ao público infantil, pois pressupõe a existência de assuntos e temas mais ou

menos relevantes, ou assuntos mais e menos reduzidamente apropriados. É esse o olhar

acerca da infância que buscamos neste estudo. A empatia que Drummond desperta com

seu poema Infância, colocando o eu-lírico da personagem em um lugar no qual a

infância anuncia-se como espaço de isolamento profundo, fora da dimensão tradicional,

permeada de angústia, ainda que mais propensa ao imaginário e à fantasia.

1.3 A criança na narrativa poética rosiana

Henriqueta Lisboa é pioneira em perceber a importância da infância, ―na

qualidade de tema quer como presença ou vivência‖, na obra de Guimarães Rosa,

embora o autor não escrevesse necessariamente para crianças. É graças a ela, que

estudos abordando essa temática têm conquistado cada vez mais espaço e relevância.

Abordagens como a do mito da infância feliz ou do prolongamento da infância; leituras

como a da bastardia em Campo Geral; a abordagem filosófica do peso da existência;

dentre inúmeros outros estudos ligados à linguagem, à língua, ao estilo, evidenciam a

fecundidade crítica do tema.

Em seu estudo O Motivo Infantil na Obra de Guimarães Rosa, Lisboa (1991, p.

171) ressalta a natureza infantil instintiva, emotiva e espontânea do gênio de Rosa, além

de ―uma aura tresloucada de candura‖. Nas palavras da autora, leia-se:

A alegria inexplicável das coisas amanhecentes, a descoberta da natureza, o

despontar do pensamento através de palavras anteriores à lógica, a trepidação

dos diálogos, o fluxo e refluxo dos monólogos, o jogo das metáforas, a

própria filosofia matreira dos primitivos, personagens de sua dileção, os quais

devem o que pensam ao que veem, tocam e degustam, a fontes ocultas no

magma em potencial, o bárbaro e o primevo, tudo isso remonta à infância do

autor, tudo isso demonstra a sua faculdade de prolongar a infância.

A estranheza diante do universo, a intuição amorosa, o gosto pela vida, a

renovação da vida por meio da arte, tão naturalmente transformada em atividade lúdica,

são características que permeiam magicamente as histórias de Rosa e revelam o

sentimento, a presença constante e pertinaz da infância. Segundo Lisboa (1991, p. 171),

são essas características que tornam o autor tão semelhante às crianças e aos primitivos,

seres que se agitam e se movimentam sem motivação exata ou interesse consciente.

Rosa parece se divertir e comover-se com seus mitos tanto quanto uma criança com seus

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brinquedos ou um primitivo com suas superstições como se vivessem em outro plano, o

sobrenatural, lidando com objetos reais.

Paulo Rónai (2016, p. 20), que além de profundo conhecedor da obra de Rosa,

também era seu amigo, reconhece esse sentimento da infância no autor, como descreve

em ―Os prefácios de Tutameia‖:

Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para

seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores

frescas e mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os

bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele

amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angústia existencial.

Essa afirmação pode ser corroborada pela filha de Rosa, Vilma Guimarães Rosa

(apud ROSA, 2016, p. 17), em ―Páginas de saudade‖, prefácio de Estas histórias,

quando recorda o convívio com o seu pai:

Ríamos os dois e juntos comíamos gulodices escondidas na gaveta que ele

abria, sorrateiro. Imitando arte infantil ou parecendo lentamente desvendar

mistérios misturados, complicados sedutores...

Em sua carta-prefácio ao livro Joãozito - A infância de Guimarães Rosa, de

Vicente Guimarães, tio e melhor amigo de Rosa, Vilma Guimarães Rosa (apud

GUIMARÃES, 2006, p. 11) conta sobre as impressões da infância do próprio pai, após

a leitura do livro:

Era criança diferente das outras pela genialidade tão cedo despontada,

desabrochada e florescida. O Miguilim cordisburguense que vivia à espera, à

procura, até antes das lentes que num primeiro dia usou mostrando-lhe a

dimensão maior do espaço e horizonte de buritis, a vastidão dos campos, ―os

grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas

passeando no chão de uma distância‖.

A alegria de criar, de expandir o jogo das palavras e seus significados, o

dinamismo estilístico ―tramalhado‖ ingenuamente e com maestria, indicia um autor que,

quando criança, já apresentava genialidade incomum, porém semelhante à de

Brejeirinha, da narrativa Partida do audaz navegante. Os brinquedos que Joãozito

estimava na infância eram os mesmos brinquedos de Dito e Miguilim: carrinhos de boi

feitos de sabugos de milho, o jogo de malha, o pegar vagalumes, tudo isso foi levado da

infância de Joãozito para o Campo Geral de Guimarães Rosa. Vicente Guimarães (2006,

p. 30), tio de Rosa e seu melhor amigo, corrobora:

O menino Joãozito gostava de colecionar borboletas, tanajuras, besouros.

Passava horas fiscalizando o vaivém das formigas e arquitetura dos

cupinzeiros. Deliciava-se com a sinfonia teimosa das cigarras. Gostava de

prender formiguinhas em ilhas que era pedras postas num tanque raso e

unidas por pauzinhos, pontes para formiguinha passar, gostava de armar

alçapões e apanhar sanhaços, e depois tornar a soltá-los: uma maravilha;

puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro. Seu interesse

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pela história natural vinha do trabalho árduo das lavadeiras. Cada fiozinho

era um rio, Danúbio ou São Francisco, e passavam por cidades imaginárias.

João menino, então, já era notado e destacado por sua inteligência e memória

incomuns. Era calado, gostava de brincar sozinho, sem incomodar ninguém, quase

nunca com outras crianças. A beleza de sua imaginação criava-lhe os ambientes mais

diversos e encantadores. Muito cedo devorava livros, inclusive grandes obras em

francês. O menino João, entretanto, também apresentava características de um jovem

adulto. ―Sequioso de saber, de obter conhecimentos novos e superiores (...) Pequeno

cientista, gosto poliformo ao estudo, recreação também era: tudo feito com alegria de

curiosidade, muita atenção e sensação de distraimento‖ (GUIMARÃES, 2006, p. 44).

Seu pai, Florduardo Pinto Rosa é descrito por Vicente Guimarães (2006, p. 39) como

um homem de bom coração, porém um pouco rude e incompreensivo em relação ao

hábito do menino Joãozito de viver com um livro nas mãos: ―vagabundo assim sendo,

sem procurar o de-que-fazer‖. Dessa incompreensão dos adultos, Rosa certamente

guarda certa mágoa, como já registrou em outros escritos:

Não gosto de falar da minha infância, é um tempo de coisas boas, mas

sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando,

estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um

excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de

soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e

revolucionário permanente, então. Já era míope e nem eu, nem ninguém sabia

disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom

de verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a

segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e

imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como

personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas (ROSA, apud

GUIMARÃES, 2006, p. 39).

Se não gostava de falar de sua infância, está claro que muito nela se inspirou e

muito dela reproduziu. Esse ―excesso de adultos‖ é o que tanto desagradava a Miguilim,

personagem de Campo Geral. Sua Vó Chiquinha, que ele descreve em Vovó Izidra, avó

de Miguilim, é caracterizada com a mesma braveza, os mesmos costumes de presépios.

Outro exemplo que aparece em suas obras é o costume das crianças cordisburguenses

jogarem dente arrancado no telhado, dizendo ―Mourão, mourão, toma esse dente mau,

me dá um dente são‖.

Como adulto, era um profundo conhecedor das mentes infantis e ainda trazia o

olhar do Joãozito consigo: um olhar que, mesmo míope, já imaginava a imensidão das

coisas. Miopia esta que emprestou a Miguilim, presenteando-nos com um dos mais

belos olhares da infância presentes em sua obra. Mais do que isso, um autor que nos

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presenteou com narrativas que podem dar pistas sobre a chave-mestra do encantamento,

aquele momento – que não podemos considerar definitivo – mas tenso, que separa a

infância da vida adulta, trata da perda da inocência, do embate com o desencantamento.

Bachelard (1996, p. 95) condensa essa ideia ao dizer: ―Um excesso de infância,

um germe de poesia‖. Vicente Guimarães (2006, p. 109) deixa bem clara a sua intenção

no livro Joãozito:

Fixar demonstrando quero apenas as influências do menino Joãozito na obra

do imortal escritor João Guimarães Rosa. A infância comanda o adulto. Ele

mesmo, meu sobrinho, disse pela boca do Riobaldo: Eu que o senhor já viu

que tenho retentiva que não falta, recordo tudo de minha meninice.

É poesia na narrativa. A dimensão de sua infância atinge uma imensidão, tal é o

dinamismo que anima os devaneios do poeta quando ele faz viver uma infância, quando

nos sugere reviver a nossa infância, conforme sugere Bachelard (1996, p. 131). O

homem Rosa, sonhando com a infância, regressa à morada dos devaneios, fazendo-se

menino novamente, rememorando, de maneira lúdica e entusiástica, o que antes parecia

recalcado na memória, como se aquilo já tivesse sido real em sua vida.

Curiosamente, o termo criança quase nunca aparece na obra de Guimarães Rosa,

sequer está incorporado em O léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Santa‘Anna Martins

(2001). As crianças são sempre referidas como ―pequenos‖, ―menino‖ ou ―menina‖,

ganhando, às vezes, o status de nome próprio, como o Menino de As margens da alegria

e o Menino de Nenhum, nenhuma, ambos contos de Primeiras Estórias (2016). O termo

infância, por sua vez, aparece no conto ―Nenhum, nenhuma‖: ―Se eu conseguir recordar,

ganharei a calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido.

Infância é coisa, coisa?‖ (ROSA, 2016. p. 84). A afirmação e a pergunta levam à

reflexão sobre um possível tratamento da infância com pluralidade de respostas e novas

perguntas.

Se Riobaldo, protagonista de Grande Sertão: Veredas, acredita que a muita coisa

importante falta nome, talvez Rosa não considerasse tão necessário usar o nome para

evocar crianças e infância poeticamente. Mas é fato que, como afirma Henriqueta

Lisboa (1971, p. 171), ―a natureza infantil, instintiva, emotiva‖, que caracteriza o gênio

de Rosa, está sempre presente em parte significativa de sua obra, e podemos mencionar

algumas das narrativas em que se faz presente.

Em Primeiras Estórias (2016), logo no primeiro conto, As margens da alegria, o

Menino parte com os tios para uma ―viagem inventada no feliz‖, onde se encanta com

um peru que tinha ―qualquer coisa de calor, poder e flor‖ (ROSA, 2016, p. 42). De volta

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para casa, sentindo uma ―saudade abandonada‖, encanta-se com o primeiro vagalume,

―Era, outra vez em quando, a Alegria‖ (ROSA, 2016, p. 45). Um peru e um vagalume,

interessante lembrar, são os animais que também encantaram Miguilim. Nhinhinha, do

conto A menina de lá, menininha de quatro anos, ―perfeita calma, imobilidade e

silêncios‖ (ROSA, 2016, p.57), que, tal como o menino Dito, é de uma maturidade e

uma calma superiores ao que a idade permite. Muitas vezes, essas crianças invertem a

hierarquia, não se submetem aos adultos e assumem o comando da relação. Mas, em

especial, no caso dessas duas, saber demais ou acumular experiências além do

necessário ou permitido às crianças, implica um agravo: o da morte. Em A terceira

margem do rio, o narrador-personagem, já adulto, conta suas lembranças de menino

sobre um pai que, ―sem alegria nem cuidado‖, (ROSA, 1996, p. 67), por um propósito

ou por demência, disse adeus, fora embora de canoa para o meio do rio. Essa história

lograva, pelos meios mais simples e intensos, criar para o leitor a impossível terceira

dimensão da realidade, a terceira margem se fazia acessível, nascia na imaginação.

O conto Pirlimpsiquice, narra a aventura de onze ou doze meninos entregues

aos ensaios rigorosos de uma peça para ser exibida na escola. O momento repleto de

improvisos da apresentação ―milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras

(ROSA, 2016, p. 81), é relembrado com saudade por um narrador-personagem, faz-nos

crer que os relatos apresentam um tênue limite entre o que é real e o que é imaginação.

Em Nenhum, nenhuma, há também o Menino e suas lembranças tramadas de névoas

acerca do tempo em que passou em uma misteriosa casa de fazenda na companhia de

uma Moça, um Moço, um Homem mais velho e Nenha, a velhinha, ―acomodadinha

num cesto, que parecia um berço‖, como uma criança. Profundamente tocado pelas

emoções vivenciadas pelas personagens, quando volta para a casa dos pais – mesmo

sem entender por que saíra – o Menino está transformado em alguém diverso,

dissociado de suas origens, o que causa grande estranhamento.

Em contraponto aos medos e à inocência da infância, encontramos as

personagens sábias, que veem e sabem demais, como Miguilim que, segundo Rónai

(2016, p. 20), nos guia a ―um emaranhado de conceitos, atos e ritos, costumes rudes e

paixões selvagens, que caracterizam Campo Geral. Afirma ainda que, numa reprodução

mágica da visão infantil de Miguilim, episódios insignificantes criam volume, como se

fossem magicamente transformados em poesia. Os acontecimentos trágicos, por sua

vez, se reduzem a meras impressões:

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Sob nossos olhos maravilhados, o menino Miguilim cresce, incorpora as

lições das plantas e dos bichos, absorve a sabedoria do irmão menor, e vem-

se desenvolvendo dia a dia, no meio dos segredos inquietantes do mundo dos

adultos, mas impressionando-se sobretudo com milagres que só para ele

existem: o papagaio pronunciando pela primeira vez o nome do irmão morto

meses após a morte deste, um par de óculos dando à vida nova dimensão e

sentido.

Temos ainda Dito, irmão menor de Miguilim, que ―sabia sério, pensava ligeiro

as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo‖ (ROSA, 2016, p. 31).

Segundo Rónai (2016, p. 20), Brejeirinha aparece em Partida do audaz

navegante como o oposto de Nhinhinha na ―vivacidade da inteligência, mas sua parenta

no frescor da imaginação associativa‖. Trata-se de uma pequena poeta que se diverte em

inventar histórias e em brincar com as palavras, e é acolhida em sua brincadeira, não só

por outras crianças, mas também por sua mãe e pela natureza que a cerca.

Por último, mencionamos Fita-Verde, a meninazinha sem juízo e inocente, mas

que, reconhecendo que a velhice não traz experiência – pois velhos e velhas apenas

―velhavam‖, decide sair atrás de suas ―asas ligeiras‖ e traçar um caminho inesperado em

busca de suas próprias experiências, mesmo aquelas que ainda não está preparada para

vivenciar.

O que essas – e tantas outras não mencionadas aqui – crianças de Rosa têm em

comum, além do olhar poético com que são construídas, é o fato de pertencerem ao

isolamento, ao recanto oculto da roça. Elas se localizam em um ambiente sertanejo

criado por Rosa ou em uma aldeia no meio do nada, de modo a permanecerem isentas

da visão convencional dos fenômenos. Por isso, são personagens ligadas à natureza, não

corrompidas pelo raciocínio lógico e científico, mas inteligíveis a impulsos indefinidos,

sonhos, premonições, crendices. As personagens adultas que aparecem nessas histórias

caracterizam-se por serem rudes, simplórias e raramente são vistas pelas crianças com

admiração, exemplos a serem seguidos ou fontes de sabedoria. Ao contrário, as pessoas

grandes, salvo raras exceções, aparecem incomodando, intervindo, estragando os

prazeres dos pequenos (ROSA, apud GUIMARÃES, 2006, p. 39) com aquela

necessidade de ser brutas, coisas assustadas (ROSA, 2016, p. 44), ou ―velhando‖ e

esperando (ROSA, 2009, p.114).

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Capítulo II. O encanto e o desencanto em narrativas rosianas

2.1. A construção da magia

Tem horas em que penso que a gente

carecia, de repente, de acordar de alguma

espécie de encanto.

Guimarães Rosa

Para compreender a poética do encantamento de Guimarães Rosa, os caminhos

que utiliza para a construção do pensamento mágico-poético em suas narrativas,

buscamos refletir sobre o discurso do narrador e das personagens crianças, além de

apreender a construção e o refazimento do universo poético-maravilhoso em suas

narrativas.

Explicitar conceitualmente a magia, contudo, não é o foco deste trabalho,

embora empreendamos uma reflexão para compreender sua manifestação em narrativas

rosianas. Não existe um consenso entre os estudiosos sobre a definição de magia, mas é

perceptível uma descrição acerca do pensamento mágico e ritualístico em contraposição

a outros pensamentos, como o religioso e o científico, que fazem fronteiras com o

primeiro.

Segundo Marcel Mauss (1974), em seu Esboço de uma teoria geral da magia, a

magia pode ser entendida como a primeira forma de pensamento humano. Ele considera

que houve um tempo em que o homem não sabia pensar racional ou cientificamente,

sendo seus pensamentos guiados pela magia. A predominância dos ritos mágicos nos

cultos primitivos e nos folclores pode ser um argumento de peso em favor dessa

hipótese, considerando que esse estado da magia ainda hoje se faz presente em algumas

tribos da Austrália Central, por exemplo, onde certos ritos apresentam caráter

exclusivamente mágico. A magia constitui, assim, simultaneamente, a vida mística e a

vida científica do primitivo. É o primeiro estágio da evolução mental. A religião,

segundo o autor, nasceu dos revezes e dos erros da magia.

O homem que, inicialmente, sem hesitação, tinha objetivado as suas ideias e

a forma de as associar, que imaginava poder criar as coisas da mesma

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maneira que criava os seus pensamentos, que se julgava senhor das forças da

Natureza como o era de seus gestos, acabou por perceber que o mundo lhe

resistia; imediatamente, dotou-o de forças misteriosas, que tinha arrogado

para si próprio; após ter sido um deus, povoou o mundo de deuses (MAUSS,

1974, p. 15).

Muito antes de ser estetizada pela literatura, a ideia do maravilhoso surgiu no

pensamento mágico intrínseco ao imaginário humano, dotado de caráter universal que

se manifesta em todos os grupos sociais. O maravilhoso tem em sua origem esse

pensamento mágico que advém, entre outros, do pensamento religioso e da criação dos

mitos.

A concepção do maravilhoso tornou-se cada vez mais complexa ao longo do

tempo e atingiu maior amplitude na medida em que se abriu e refletiu-se nas mais

variadas formas de representação, artísticas ou não. A ideia do maravilhoso também não

se confina a um momento específico da história. Muito antes de ser um gênero literário,

comparece nos mitos e neles tem o seu berço. Segundo Eliade (1989), em Aspectos do

mito, os mitos são histórias verdadeiras e sagradas sobre o nascimento do cosmos –

cosmos que pode ser um homem, uma ilha, um comportamento ou o universo – graças à

ação de seres sobrenaturais. São narrativas de acontecimentos que tiveram origem no

tempo primordial, original, arquetípico, de onde tudo provém, e narram,

metaforicamente, a passagem do caos para o cosmos, a fim de buscar sentidos para a

existência.

Para considerarmos a concepção de mito de Guimarães Rosa (2017, p.26),

recorremos ao seu Aletria e hermenêutica, o primeiro dos quatro prefácios de Tutameia,

no qual o autor compara a anedota a um fósforo que não apresenta serventia após ser

riscado, a não ser como ―instrumento de análise nos tratos da poesia e da

transcendência‖. É curioso observar que é justamente uma caixa de fósforos a distração

da personagem Brejeirinha, no início do conto Partida do audaz navegante (ROSA,

2016, p. 139), antes de transformar sua narrativa em poesia e magia, porém, sem deixar

de ser índice para essa transformação. Para Rosa (2017, p. 27), o mito estrutura-se como

imagem e como metáfora, cujo mecanismo opera por uma ―formulação sensificadora e

concretizante, de malhas para captar o incognoscível‖. Mais do que isso, ele considera a

poesia e a religião quase como forças equivalentes, ainda que possuam diferentes

valores com os quais se relacionam. Segundo Benedito Nunes (1998, p. 258), é difícil

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separar em Rosa o poético e o religioso do mito, pois se encontram muitas vezes

interligados no conjunto de sua obra:

A ficção como meio de depuração religiosa do homem, graças ao efeito

analógico sobre o leitor da narrativa poeticamente trabalhada, cuja

linguagem, de ressonância contemplativa e de amplitude alegórica, eleva-o a

um plano superior, metafísico, está em harmonia com as marcas distintivas

do pensamento neoplatônico, que sobressaem dos principais textos de Rosa.

Essas marcas, porém, neles aparecem de maneira alusiva, indireta,

subentendida, traduzidas nas situações das falas dos personagens, conforme a

espécie de tradução adotada pelo escritor, mais variada do que referimos no

escólio, além do anagrama, incluiria a mensagem cifrada, oculta.

Joseph Campbel (1990, p. 138), há muito, havia observado a similaridade

interligando narrativas consideradas maravilhosas. Segundo o mitólogo, todas as

histórias de herói têm, em seu plano essencial, uma identificação que estabelece uma

conexão entre elas A façanha convencional do herói começa com a personagem de

quem algo de valioso foi usurpado ou que sente a falta de alguma das experiências

normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa personagem, a

quem chamamos herói, parte então para uma série de aventuras que ultrapassam o usual,

quer para reparar a sua perda, quer para descobrir algum elixir doador da vida,

conquistar riquezas, amor, casamento, quer para se redescobrir. Normalmente, perfaz

um círculo, com a partida e o retorno. Quando uma criança deixa sua infância e se torna

um adulto, ela passa a vivenciar essa imposição de usurpações e experiências, como

deixar a casa dos pais, conquistar independência financeira e emocional, casar-se, ter

filhos. Desse modo, parece que a humanidade vem contando as mesmas histórias sobre

a própria existência e seus conflitos ao mover as peças desses jogos de palavras, com

constantes e variáveis, nos quais as personagens exercem vários papéis e as mesmas

funções.

O maravilhoso, como expressão poética, embrenhou-se na literatura ao se

incorporar às histórias míticas, consideradas as primeiras formas literárias. No sentido

narrativo, literatura e maravilhoso nasceram juntos. Em A poética do mito, Mieletinski

(1987 p. 176) afirma que a literatura nasce da transformação do mito e está

―geneticamente relacionada com a mitologia através do folclore e particularmente a

literatura narrativa (...) se liga à mitologia via conto maravilhoso‖.

Os mitos são narrativas essencialmente religiosas, no sentido de ―re-ligar‖ o

homem a uma outra esfera, a um além anterior a seus antepassados. A experiência com

o sagrado permite ao homem renunciar à noção de tempo profano, cronológico e

irreversível e ingressar no tempo mítico, circular, uma vez que o presente não substitui o

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passado, tampouco o futuro. Mesmo Aristóteles acreditava que o amigo da sabedoria é

também um amigo do mito, o que nos leva a crer que a criação – ou a crença, ou a

reflexão – do mito é uma forma de conhecimento e autoconhecimento.

Mieletinski (1987) afirma que para o homem que habitava os tempos arcaicos,

não havia uma separação nítida em sua consciência entre si mesmo e a natureza. Além

disso, nem sempre, ao longo da história, ocorreu o equilíbrio entre mito e razão. O vigor

e as características humanas eram transferidos a tudo o que estava ao redor do homem.

A humanização do meio natural propiciou o nascimento dos mitos em um momento em

que a consciência humana apenas se delineava, provocando certo sincretismo espaço-

temporal no qual se manifestava um isomorfismo entre as relações espaciais e o

humano. Essa humanização é tão natural que, como defendem as pesquisas de Piaget

entre 1930 e 1940, caracteriza o pensamento infantil. Segundo o psicólogo suíço, as

crianças são animistas. Por isso, na tentativa de compreender o mundo, parece-lhes

razoável que o sol esteja vivo, já que está em plena atividade, fornecendo luz e calor, e

que animais e brinquedos se sintam como elas. É mais segura e mais encantadora, para a

criança, a ideia de que a Terra repousa sustentada por um gigante do que acreditar que a

Terra flutua no espaço, em movimentos de rotação e translação em torno do Sol. Sujeita

aos ensinamentos racionais dos outros, a criança apenas enterra o conhecimento que

aceita como verdadeiro no fundo da alma e lá o esconde, mantendo-o intocado pela

racionalidade. Essa aceitação é o que caracteriza o conceito de ―maravilhoso‖ e o torna

vizinho do pensamento mítico.

O desdobramento do maravilhoso mítico floresce não cronologicamente, mas

estruturalmente nos contos maravilhosos. Podemos considerar o maravilhoso como um

grande gênero narrativo que se estende além dos séculos, precisamente porque envolve

uma diversidade de obras que se agregam originalmente na modalidade do conto

maravilhoso, assinalando depois sua marca em várias outras formas artísticas. É nesse

contexto que o maravilhoso começa a se configurar como gênero, ao fornecer um

modelo estrutural no qual vão se desenvolver as obras literárias. O conto popular, por

exemplo, está ligado ao indivíduo e à realização de seus sonhos, ainda que, para isso,

seja necessário transpor os limites do possível. Se antes os heróis eram divindades

atuando no mundo real, ao longo dos anos, passaram a ser humanos inseridos no

universo maravilhoso (MIELETINSKI, 1987, p. 344). Essa transposição dos limites do

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possível é, nesse sentido, muito semelhante à concepção atual de poesia, que faz com

que busquemos esse universo maravilhoso por meio do imaginário.

Etimologicamente, a concepção de maravilhoso está ligada à percepção

enganosa do olhar, que confere relação estreita com a imagem. Esse papel de

admiração, encanto e sedução, desempenhado por aquilo que se vê, é representado pelas

imagens em todas as suas manifestações, desde as imagens puramente mentais como as

da memória.

O conceito de maravilhoso foi discutido pela primeira vez na Poética de

Aristóteles. O que o pensador grego trabalhou não foi o termo maravilhoso tal qual o

conhecemos hoje, e sim o germe contido na palavra thaumaston, que expressa espanto,

surpresa, admiração. A principal fonte do maravilhoso é o irracional, pois está voltado à

ideia de realização do absurdo e do impossível, de modo a atribuir à trama de uma

história uma conexão com a realidade, tornando-a, assim, verossímil. Embora o

conceito de maravilhoso tenha se modificado e desenvolvido ao longo dos séculos,

expandindo-se de acordo com a própria mentalidade do homem e habitando outras

tantas instâncias da produção artística e intelectual, ainda podemos considerar os

sentidos revelados por Aristóteles sobre a palavra thaumaston. A admiração, a surpresa,

seja boa ou má, é a causadora da descarga emocional, da catarse diante da narrativa.

Para Jacques Le Goff (1983), o maravilhoso é um contrapeso à banalidade e à

regularidade, revelando o oculto que há atrás da realidade quotidiana e nela se realiza,

impondo a força da imaginação que rompe os limites do possível. No período medieval,

a palavra maravilhoso era substituída por mirabilis, cujo sentido se aproximava do

nosso adjetivo, mas também era relativa a milagre. Devemos nos lembrar de que o

período medieval se vincula à mentalidade mística dominante, caracterizada por um

imaginário repleto de temores e obscurecido pelos limites impostos pelo domínio da

Igreja. Nesse caso, o maravilhoso não está ligado a um efeito da apreciação da arte, mas

à contemplação de algo divino e, também, a um homem confinado à fragilidade,

impotência e submissão diante desse poder divino.

Por um longo tempo na história, a humanidade usou projeções emocionais –

como deuses – nascidas de suas esperanças e angústias para explicar a vida, a sociedade

e o universo. Tais explicações propiciavam-lhe sensação de aconchego e segurança a

sua condição humana. Depois, entre os séculos XVII e XVIII, com Bacon, Descartes,

Newton e outros, por interferência do próprio progresso social, científico e tecnológico,

tornou-se necessário à ciência firmar-se contra as velhas gerações de pensamentos

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místico e mítico. Segundo Claude Lévi-Strauss (1978, p. 11), ―pensou-se então que a

ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos,

cheiramos, saboreamos e percebemos‖. O mundo sensorial seria o mundo ilusório, ao

passo que a realidade seria reduzida a propriedades matemáticas que estão em

contradição com os testemunhos dos sentidos e do imaginário. Foi quando projeções

―infantis‖ do homem se dissolveram e explicações mais racionais tomaram o seu lugar.

A racionalidade lhe deu a falsa sensação de estar mais seguro no mundo e em seu

íntimo. Ainda hoje, em períodos de tensão, angústia ou vazio, o homem busca

novamente conforto na noção infantil de que ele e o lugar onde vive são o centro do

universo.

Ambos modos de conhecimento, o simbólico/mitológico/mágico e o

empírico/técnico/racional, coexistem, entreajudam-se, estão em constante interação,

como se necessitassem permanentemente um do outro. Podem, por vezes, se confundir,

mas sempre provisoriamente. Segundo Edgar Morin (1996, p. 144), toda renúncia ao

conhecimento empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte. Toda renúncia

a suas crenças fundamentais desintegraria a sociedade.

No fim do século XX, mais precisamente em 1985, o escritor italiano Italo Calvino

apresentou, na Universidade de Harvard, uma série de conferências na qual ressaltava

seis qualidades ou virtudes que apenas a literatura pode salvar. Hoje essas virtudes

constam no livro Seis propostas para o próximo milênio (1990) e a primeira delas é a

leveza, ideal que ele defende, em oposição ao peso, como um valor. No início de sua

carreira como escritor, Italo Calvino conta que buscava uma identificação entre o que

acontecia no mundo ―ora dramático, ora grotesco‖ e o seu ritmo de escrever, relatando

os fatos da vida. Descobriu que o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo, são

qualidades que compulsoriamente se aderem à escrita daqueles que não encontram

meios de escapar ao olhar inexorável da Medusa‖ (CALVINO, 1990, p.19)

Aliás, é no mito de Perseu, que sustenta o que há de mais leve – as nuvens, o vento

– para derrotar Medusa, que Calvino encontra a alegoria da relação do poeta com o

mundo e uma lição para dar continuidade à escrita. Essa lição é a leveza, manter oculto

o que é pavoroso. Questionamos, pois, se essa leveza está relacionada ao encantamento.

Não se trata da recusa à realidade de peso insustentável, mas de uma visão gentil e

indireta da realidade, que apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência

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escapam à condenação. Acrescenta ainda que é o romance ou a ficção que pertence a

esse universo de transposição do peso ao leve. Calvino (1990, p.19) afirma:

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para

mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se

trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que

preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob

uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.

Uma vez que, para Calvino, a significação do peso é imprescindível para a

verificação da leveza, a leveza está associada à precisão e à determinação, nunca ao que

é vago ou aleatório. Na obra do poeta florentino Guido Cavalcanti (1259-1300), por

exemplo, Calvino ressalta três acepções distintas dessa dimensão literária: um

despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um

tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência; a

narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos

sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração;

uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor emblemático. Na Literatura,

essas acepções apresentam o confronto de duas vocações opostas através dos séculos: a

da leveza e a do peso da linguagem. A leveza tenderia a desprender-se das coisas,

flutuando sobre elas; o peso buscaria dar à linguagem a ―espessura, a concreção das

coisas, dos corpos, das sensações‖ (CALVINO, 1990, p. 39). Calvino retoma ainda a

ideia da ―literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso de

viver‖.

2.1. Encantamento poético: “poder sugeridor” da palavra

É no encantamento das narrativas rosianas que buscamos apreender como a leveza,

proposta por Calvino, constrói os ritos de passagem vivenciados por Brejeirinha, Fita

Verde e Miguilim, tornando-os tão encantadores e leves. Levamos também em

consideração a afirmação de Calvino (1990, p. 19): ―as imagens de leveza que busco

não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...‖

Bachelard (1988, p. 8) pode nos ajudar a compreender a proposta de leveza de

Calvino e as suas implicações de significação relacionadas com realidade e sonho,

quando afirma:

De um modo mais geral, compreende-se também todo o interesse que há,

acreditamos nós, em determinar uma fenomenologia do imaginário onde a

imaginação é colocada no seu lugar, no primeiro lugar, como princípio de

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excitação direta do devir psíquico. Á imaginação tenta um futuro. A princípio

ela é um fator de imprudência que nos afasta das pesadas estabilidades.

Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a

nossa vida dando-nos confiança no universo.

Leveza e devaneios poéticos parecem equivaler a ―hipóteses de vidas que alargam

a nossa vida dando-nos confiança no universo‖. Nem um nem outro dissolvem-se em

sonhos, em contato com a realidade. Antes operam um mundo aberto, uma vida no

possível. Alarga-se, ainda, a compreensão de sonhos à luz de Rosa (2017, p. 184):

―ainda rabiscos de crianças desatordoadas‖, ou seja, crianças em estado poético. O

prefixo ―des‖ nega o adjetivo ―atordoada‖, aquela que perdeu os sentidos. Essas três

concepções: leveza, devaneios poéticos, sonhos, constroem o mundo da imaginação e

redimensionam a vida em possibilidades, em encantamentos poéticos.

Entre os estudiosos, é Tzvetan Todorov (2010) quem desenvolve o conceito de

maravilhoso e o relaciona com o universo poético. Para ele, o maravilhoso é um gênero

literário que se fundamenta em uma concepção que comporta, de um lado, um certo

número de propriedades abstratas, de outro, leis que regem o relacionamento dessas

propriedades. No entanto, segundo ele, a noção de gênero está diretamente relacionada

com a produção da linguagem. O maravilhoso, enquanto gênero, constitui-se

essencialmente como um modo específico de narrar que se instala dentro de uma

estrutura específica e se circunscreve em torno de um tipo de sobrenatural,

determinando uma lógica interna da narrativa totalmente divorciada da lógica que rege a

realidade cotidiana. O maravilhoso cria uma estrutura narrativa peculiar, sedimentada na

magia e em um mundo de ilusões que recorta a realidade, rearticulando-a de maneira

singular. O que diferencia o gênero maravilhoso do fantástico é a ausência do

sentimento estranho, a aceitação, a ausência de limites definidos dentro da narrativa. Os

elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação particular nem nos

personagens, nem no leitor. ―Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados

que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos‖

(TODOROV, 2010, p. 60). Natureza de encantamento.

Vejamos como Todorov (2010, p.67) trata a poesia. Sem intenção de se fazer um

histórico da poesia, ele afirma que a concepção de poesia, tal como a conhecemos hoje,

nem sempre foi predominante:

A controvérsia foi particularmente no propósito das figuras de retórica:

devia-se ou não fazer das figuras um número igual de imagens, passar da

fórmula à representação. Voltaire, por exemplo, dizia que ―para ser boa, uma

metáfora deve ser sempre uma imagem; de tal forma que um pintor possa

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representá-la por meio do pincel‖ (Remarque sul Corneie). (...) Concorda-se

hoje que as imagens poéticas não são descritivas, que devem ser lidas ao puro

nível da cadeia verbal que constituem, em sua literalidade, e não realmente

naquele de sua referência. A imagem poética é uma combinação de palavras,

não de coisas, e é inútil, melhor: prejudicial, traduzir esta combinação em

termos sensoriais.

Podemos, então, considerar o maravilhoso como algo que subverte a ordem

estabelecida, subverte a racionalidade de Aristóteles, atingindo amplo alcance ao

transitar entre o sagrado e o profano, rompendo com limites que delimitam cada uma

dessas instâncias. Não é possível a existência do maravilhoso em um estado puro, que

se abriga dentro de fronteiras permeáveis. Vemos o maravilhoso como uma

compensação à banalidade do cotidiano, o que o torna mágico e sublime. O maravilhoso

se circunscreve no sobrenatural e recorre ao mesmo sobrenatural para se ―explicar‖.

Dessa forma, dentro da trama e da lógica interna da narrativa, tudo parece perfeitamente

natural e possível. O leitor se sente inserido nesse universo e não cabe a ele questioná-

lo.

O maravilhoso é o portal que nos revela o oculto, aquilo que se esconde atrás da

realidade cotidiana e nela se realiza, impondo a força da imaginação e rompendo o

limite do possível. No entanto, há no maravilhoso um caráter ambíguo, que muitas

vezes pode parecer não relacionado com a realidade cotidiana, mas que se revela

diluidamente nela.

Podemos apontar como características próprias da linguagem do maravilhoso a

metáfora, a metamorfose, a magia, o exagero, o que lhe promovem uma estética

peculiar. São essas as características que tornam possível à Brejeirinha transformar um

pequeno riacho e um estrume bovino na epopeia do audaz navegante. Também, Fita-

verde, ao sair atrás das asas ligeiras do seu imaginário, transforma o longo caminho até

a casa de sua avó em um mundo encantado de plebeias e princesas flores. E a Miguilim,

a quem falta visão mas sobram imaginação e sensibilidade, transformar Mutum e

natureza ao seu redor em um lugar bonito, além de romper os limites de distância do

mar, que nunca teve oportunidade de ver, para a proximidade de sua saudade. Tais

recursos construtivos conferem, às narrativas rosianas, liberdade para a criação, para a

imaginação.

Baudelaire (2003), em seus ensaios sobre Edgard Alan Poe, lembra que o autor

americano, conhecido pelo forte apelo ao imaginário em suas obras, dizia que nosso

espírito possui faculdades elementares, cuja finalidade é diferente. Umas se aplicam a

satisfazer racionalidade; outras percebem cores e formas; outras ainda preenchem uma

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finalidade de construção. A lógica, a pintura, a mecânica, são produtos dessas

faculdades. E como temos nervos para sentir bons odores, ver belas cores e apreciar o

contato dos corpos polidos, temos uma faculdade elementar para perceber o belo. Ela

tem seu fim em si mesma e seus próprios meios. A poesia é fruto dessa faculdade.

Baudelaire (2003, p. 106) afirma que, para Poe, a imaginação é a rainha das faculdades,

e que

A imaginação não é a fantasia; ela não é também sensibilidade, embora seja

difícil conceber um homem imaginativo que não fosse sensível. A

imaginação é uma faculdade quase divina que percebe tudo primeiro, fora

dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas das coisas, as

correspondências e analogias. As honras e as funções que ele confere a essa

faculdade lhe dão um tal valor (pelo menos quando se compreendeu bem o

pensamento do autor) que um sábio sem imaginação não surge senão como

um falso sábio, ou pelo menos, um sábio incompleto.

Se para Poe, segundo Baudelaire, a imaginação é ―uma faculdade quase divina

que percebe tudo primeiro‖, para o antropólogo Bronislaw Malinowski (1948), o caráter

anormal, simbólico e imaginário está envolvido na situação que induziu o homem a

utilizar a magia, como o tempo estabelecido, o lugar determinado, as condições

preliminarmente isolantes da magia, os tabus a serem guardados pelo celebrante, a sua

natureza fisiológica e sociológica, Tudo isso coloca o ato mágico no âmbito do

sobrenatural. Segundo Malinowski (1948, p. 26):

Essa semelhança formal provavelmente se configura melhor na afirmação de

que o ritual todo se encontra sob o domínio das emoções do ódio, do medo,

da raiva e da paixão erótica ou do desejo de conseguir um fim prático

determinado.

A magia nasce, tal como a poesia, impulsionada pelas paixões humanas. Mais do

que isso, a magia, à semelhança da poesia, é mediadora entre o homem e as forças

incontroláveis da natureza. A magia negra, na concepção de Malinowski, encontra-se na

frustração do ódio e da raiva, assim como o medo também leva à busca de recursos

mágicos para que desapareça a ameaça que o desperta. Portanto, as paixões humanas

levam as pessoas a recorrerem às atividades mágicas para superarem seus problemas.

Pensando na construção da magia em Guimarães Rosa, deter-nos-emos no

conceito do maravilhoso como efeito de linguagem, vinculado ao fluir poético, que

confere liberdade às narrativas e cria sua própria lógica a serviço e deleite imaginário do

prazer que proporciona, seja oralmente, seja por meio de imagens. A poesia e a magia,

em suas obras, são geradas como gêmeas bivitelinas, com características que se

complementam.

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O maravilhoso produz esse encantamento em suas narrativas justamente pela

espontaneidade inesperada, comum também nas produções populares e poéticas, no

folclore e nas lendas, sendo dotado de força criadora, na medida em que não se impõe

limites para a inventividade. Tudo pode acontecer, perfeitamente integrado ao cotidiano

e sem provocar nenhum estranhamento, porque acompanha a lógica interna das próprias

narrativas. O sentido do maravilhoso cria um universo que se assume como ficção,

como se houvesse – e, talvez haja, um pacto entre obra poética e público. Nesse

universo, tudo é possível e justificado na magia, no imaginário, na leveza, na poesia. E

Rosa deixa manifestar esse universo de possibilidades em suas narrativas.

No prefácio de Jardins e Riachinhos, obra de Guimarães Rosa, Geraldo França

de Lima (1983, p. 6) afirma que a maior paixão de Rosa era a palavra, que ele dizia ser

maior do que o homem. Lima, sobre o amigo, expressa: ―Amava inventá-las, alimentá-

las com um substrato inédito, dando-lhes dimensões tão infinitas quanto o pensamento‖.

Gabriela Reinaldo (2005, p. 23), em Uma cantiga de se fechar os olhos, considera

que, em Rosa, a palavra que manipula magicamente os elementos da natureza é o non-

sense e, como na poesia, vale por si. O som das palavras, as escolhidas ou as criadas por

Rosa, propõe uma outra cadeia significativa, que rompe com o movimento das forças

naturais. Como em ―abracadabra‖ ou um ―abra-te Sésamo‖, ―as ordens da língua fazem

com que a natureza modifique o curso dos seus movimentos, violente suas leis‖. Por

meio da magia, é possível ao homem, incluindo o poeta, impor forças naturais ao

universo.

Uma característica das narrativas de Rosa é o fato de se aproximarem das

narrativas orais. Segundo Benjamin (1992), essas são as melhores narrativas, porque

nos permitem uma troca de experiências. A figura do narrador coloca a narrativa na

esfera do discurso vivo, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma nova beleza. O

extraordinário e o miraculoso são narrados com maior exatidão nas histórias da tradição

oral, sem impor ao leitor um contexto psicológico da ação. A arte de contar histórias

reside em recontá-las, porque, enquanto as ouvimos, tecemos seus fios na nossa

imaginação e esquecemos de nós mesmos ao nos entregarmos a elas. Gimenes (2005, p.

18), em A menina de Lacan: Um conto Rosa, afirma que Rosa eleva o significante à sua

máxima potencialidade expressiva. O aspecto sonoro da oralidade ―oferece recurso para

o visual que as palavras parecem mostrar. E mostram. Mais que simples narrativa

conteudística, o romance faz ver pela própria força das palavras empregadas‖.

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Nota-se que Rosa opera com maestria suas narrativas, deixando ver o seu narrar

articulado e urdido. Há também na voz de suas personagens uma espécie de canto,

encanto – palavra que permite uma ligação entre nome e ser, entre som e sentido.

Palavra evocativa, icônica, que faz com que o que é dito se corporifique em poesia e

magia. Percebemos em sua linguagem o ―abracadabra‖ de que fala Vilma Guimarães

Rosa (1983, p. 85) sobre a linguagem do pai, no livro Relembramentos:

O abracadabra deflagrando o incompreensível, o espantoso das mágicas. E a

invenção sonora, diferenciante, para expressão mais significativa. O vocábulo

novo, para significação mais expressiva, identificando qualidades ou desejos,

sentimentos ou sensações.

Em carta a Paulo Ronái, em 3 de abril de 1967, Rosa deixa clara a sua relação

mágica com as palavras e de como quer que sejam apreendidas:

Você só tem o resíduo lógico, isto é, o que pode ser mais ou menos

explicado, de expressões que usei justamente por transbordarem do sentido

comum, por dizerem mais do que as palavras dizem; pelo poder sugeridor.

Em geral, são expressões catadas vivas, no interior, no mundo mágico dos

vaqueiros. São palavras apenas mágicas. Queira bem a elas, peço-lhe.‖

(ROSA apud ROSA, 1999, p. 385)

Mais do que uma relação com as palavras ―apenas mágicas‖, em entrevista

concedida a Günter Lorenz (1991, p.83), Guimarães Rosa assume uma pretensão de se

aproximar de Deus com sua escrita, como se usasse a palavra como forma de redenção:

Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta

deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que

assim se coloca, o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu

quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da

criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança

simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o

cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e,

quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu

método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do

soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele

devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, se

descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. Disseram-me

que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! a língua dá ao

escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e

de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem. A impiedade e a

desumanidade podem ser reconhecidas na língua. Quem se sente responsável

pela palavra ajuda o homem a vencer o mal. (ROSA apud LORENZ, 1991,

p.83)

Não à toa, a expressão Ave, palavra (ROSA, 1970), estampados na capa de seu

último livro, é uma saudação à palavra. Isso revela que o universo construído pelo autor

em sua obra desperta fascínio em seus leitores por meio da linguagem, tal como um

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jogo, um enigma metafísico. Rosa reconstrói um universo mágico usando uma

linguagem fascinante como apetrecho para o universo material que o cerca, exaltando o

modo lúdico e laborioso de ―contar desmanchando‖, despertando em quem o lê

ressonâncias sutis de esplendorosas narrativas.

Nas correspondências com seus tradutores, Rosa demonstra familiaridade com o

encantamento no texto, pela extração dos significados ocultos das palavras pela via da

oralidade. Rosa advertia: quando o leitor desentende um texto, deve relê-lo em voz alta,

sem se preocupar em correr atrás do enredo, pois cada palavra perdida faz falta e pode

afetar a compreensão do texto. Vicente Guimarães (2006, p. 15), relembra esse conselho

de Rosa no livro Joãozito – A infância de Guimarães Rosa ao dizer: ―É verdade,

Joãozito, uma palavra perdida será um encantamento a menos, dos oferecidos na leitura

dos seus livros.‖

O encantamento, caro a Rosa, é recomendado também à Harriet de Onís, sua

tradutora para a língua inglesa, conforme se nota em carta que lhe escreve em 11 de

fevereiro de 1964:

A meu ver, o texto literário precisa ter gosto, sabor próprio – como na boa

poesia. O leitor deve receber sempre uma pequena sensação de surpresa –

isto é, de vida. Assim, penso que nunca se deverá procurar, para a tradução,

expressões já cunhadas, batidas e cediças, do inglês. Acho, também, que as

palavras devem fornecer mais do que o que significam. As palavras devem

funcionar também por sua forma gráfica, sugestiva, e sua sonoridade,

contribuindo para criar uma espécie de ―música subjacente‖. Daí o recurso às

rimas, às assonâncias, e, principalmente, às aliterações. Formas curtas,

rápidas, enérgicas. Força, principalmente.

Mais tarde, em carta de 24 de março de 1966, escreveu a seu tradutor alemão

Curt Meyer Clason:

Observo, também, que quase sempre as dúvidas decorrem do ―vício

sintático‖, da servidão à sintaxe vulgar e rígida, doença de que sofremos.

Duas coisas convêm ter sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar-

comum deve ter proibida a entrada, estamos descobrindo novos territórios do

sentir, do pensar, e da expressividade; as palavras valem ―sozinhas‖, cada

uma por si, com sua carga própria, independentes, e às combinações delas

permitem-se todas variantes e variedades.

Chamam-nos a atenção esses ―novos territórios do sentir‖, uma vez que o lugar-

comum deve ter entrada proibida. O escritor percorre também as veredas do sertão

mineiro e retoma o regionalismo transfigurando tanto a temática quanto a linguagem,

criando, uma linguagem quer regional quer universal. Ele subverte, ainda, a lógica e o

senso comum dos causos, recriando outra dimensão feérica, na qual o maravilhoso se

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manifesta. O não-senso, afirma Rosa (2016, p. 25), ―reflete por um triz a coerência do

mistério geral, que nos envolve e cria.‖

A obra rosiana apreende a união de duas vertentes da literatura brasileira: o

regionalismo e a reação espiritualista. Ao mesmo tempo em que, segundo Walnice

Galvão (2006, p. 8), se volta para os interiores do país, pondo em cena personagens

plebeias e típicas, a exemplo dos jagunços sertanejos e da linguagem característica

daquelas paragens, também descortina um ―largo sopro metafísico, costeando o

sobrenatural, em demanda da transcendência".

Compreendemos que o encanto de Rosa supera essas vertentes. Especialista na

arte de contar histórias, há o lugar, o entre-lugar, criado pelo poeta, onde encontramos a

reelaboração do espaço sagrado, em meio ao sertão de Miguilim, ao campo de

Brejeirinha, na floresta entre aldeias de Fita Verde, nos quais é possível conectar

realidade e fantasia, memória e imaginação, do físico para o metafísico, numa ―álgebra

mágica‖, como definiu o próprio Rosa. A natureza, elemento quase sempre presente nas

suas narrativas, oferece significantes que organizam de forma inaugural as relações

humanas. É no meio ambiente, próximo à natureza, que o homem aprende com o soprar

dos ventos, com o som das águas – seja barulho de riachinho, da chuva caindo nos

telhados das casas –, com o sol festejado pelo canto dos bem-te-vis e sanhaços de

Miguilim, com o crepitar do fogo em madeira. São sons que geram continuidade,

podendo levar a um estado de relaxamento ou mesmo levar ao êxtase as almas mais

sensíveis, semelhante ao transe, ao sentimento de ter sido tocado pela magia.

Nas narrativas analisadas, seja a aldeia em algum lugar, nem maior nem menor,

de Fita Verde, seja a ambientação onírica do campo onde brumava e chuviscava, de

Brejeirinha, seja num canto oculto de veredas pouco conhecidas, diante do olhar

subjetivo de Miguilim em busca da beleza sertaneja nos morros e nas pedrinhas do

Mutum, existe a criação de um lugar sagrado, um jardim que se agiganta diante da

criança, pois esconde vários segredos, é um convite aos devaneios infantis. Trata-se de

um microcosmo vivo, a memória do mundo e a memória do homem, que abriga, ao lado

das plantas e dos animais, um encanto multissensorial.

Se olharmos o sertão mineiro como ele é, alheio à criação do poeta, encontramos

um lugar onde o folclore rural é prenhe de histórias extraordinárias, onde habitam sacis,

demônios, pessoas de imaginação fértil que, no cotidiano do interior, situam-se em um

entre-lugar entre a crença e a dúvida ou entre o real e o imaginário. Para Guimarães

Rosa, a arte de contar causos, simultaneamente tão mineira e pessoal, resulta do ―seu

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pendor para a experiência singular do arrebatamento, da surpresa reveladora, visão de

algo inominável‖ (ROSENFIELD, 2006, p. 47). Esse arrebatamento é o que sustenta a

encantadora temática da magia ao fazer o caminho do infando ao inefável, do horrível

ao maravilhoso, do encanto ao desencanto e vice-versa.

As ―personagentes‖ de Rosa, como as chama Paulo Rónai (2016, p. 17), no

prefácio de Primeiras estórias, sejam as loucas, sejam as crianças, são ―broncas almas

de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio,

mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices (...)

almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o

milagre‖. Seja qual for a motivação, todas tentam encontrar o sentido da aventura

humana e conduzem seu pensamento seguindo as veredas do irracional e do mágico.

Ainda, segundo Rónai (2016, p. 19), a Rosa, ―suas variantes não interessam como casos

clínicos, (embora frequentemente revele conhecimentos fora do comum, com seus

antecedentes de médico), e sim como campo propício à invasão do irreal, do irracional,

do mágico – numa palavra, da poesia‖.

A aventura humana traçada nas narrativas rosianas evidenciam, nos discursos de

seus ―personagentes‖ ou de seus narradores, a relação mágico-poética acerca da vida e

do viver. São exemplos algumas falas retiradas de Rosiana: uma coletânea de conceitos,

máximas e brocardos de João Guimarães Rosa, organizado por Paulo Rónai (1983, p.

78-80):

A vida não é entendível. (G.S.V,. p. 109)

A vida, a gente nunca tem termo real. (Ibidem, p. 241)

A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso.

(―Aletria e hermenêutica‖, T., p. 4)

A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida. (―Rebimba, o bom‖,

ibidem, p. 139)

Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo. (―Se eu seria

personagem‖, ibidem, p. 139)

(...)

...viver é obrigação sempre imediata. (―Lá, nas campinas‖, ibidem, p. 84)

Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente,

ausente‖ (―Tutaméia‖, p. 123).

Quem quer viver, faz mágica. ( ―Uai, eu?‖, T., p. 177)

Assim, Rosa nos ensina que, para refletirmos sobre a poética do encantamento,

devemos considerar a vida como ―não entendível‖, tanto quanto o mar e o rochedo são

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para a ostra. Por essa razão, a vida é passível de ser explicada no viés do mito, do

sonho, do imaginário, além de esses serem caminhos para se ―furtar no peso da vida‖,

alcançando a proposta de leveza de Calvino. Se ―no princípio, era o verbo‖, as ―palavras

apenas mágicas‖ de Rosa regem o universo criado por ele com força metafísica, no

tempo e no espaço de suas narrativas. Rosa nos sugere que a vida – incluímos aqui sua

obra – seja lida no ―supra-senso‖. Acreditamos que esse caminho seja ―o quem das

coisas‖ (ROSA, 2016, p. 117), da natureza das coisas: humana ou divina, transitória ou

perene.

2.2. O rito de passagem

Um de nossos questionamentos, neste estudo, refere-se ao encantamento e ao

desencantamento como forma de atribuir sentido ao rito de passagem da vida infantil à

vida adulta. Mas o que são ritos de passagem? Mais especificamente, quais são os ritos

vividos por Brejeirinha – e também Pele, Ciganinha e Zito –, por Fita Verde e por

Miguilim, como eles são representados nas narrativas rosianas e de que forma estão

relacionados com a magia?

Em Um esboço sobre a teoria geral da magia, Marcel Mauss (2000, p. 15)

afirma que não podemos chamar de mágico um fenômeno apenas por ter sido

considerado por meio de uma interpretação subjetiva. Devemos considerar mágico

aquilo que é considerado mágico para ―toda sociedade, e não apenas uma fração‖. Além

disso, para ser considerado magia, deve envolver agentes, atos e representações. Os atos

ritualísticos são repetidos por tradição. Tal repetição é necessária para que sejam

considerados atos mágicos, assim como a crença de toda comunidade na eficácia dos

ritos. Mauss separa o rito mágico do rito religioso, pois apresentam agentes diferentes e

são realizados em lugares diferentes. A melhor forma de distinguir magia e religião é

levar em consideração dois polos: o malefício e o sacrifício. A magia somente é

entendida como religião para as necessidades elementares da vida. Além disso, em se

tratando do rito mágico, há uma característica irregular, anormal e mais importante, Ou

seja, para que ele se realize, há uma necessidade e não uma obrigação moral. Outra

importante distinção apontada pelo autor é a previsibilidade e o caráter oficial da prática

religiosa, que, necessariamente, faz parte de um culto. Há um aspecto obrigatório,

mesmo sendo voluntário: o rito tem um caráter de imposição, isto é, impõe-se algo para

se obter determinado fim. A prática da magia e da religião só apresentam sentido

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enquanto relacionados com a vida social. Ambas ocorrem por meio de rituais e a

importância e o sentido do rito estão em âmbito social. Magia e religião são, portanto,

fatos sociais que acontecem intermitentemente no âmbito do sagrado.

Devemos, no entanto, considerar que, em se tratando de crianças, elas são

tocadas pela magia, mas ainda pouco influenciadas por fatos sociais, o que nos afasta da

ideia de Mauss. Sabemos também que as crianças ―personagentes‖ de Guimarães Rosa

não necessariamente se submetem à obrigatoriedade de um rito social ou mesmo à

imposição do pensamento de um adulto. As personagens em questão são crianças sábias

e inventivas, que buscam formas de desafiar as leis da razão e, por isso, mostram certa

autonomia e individualidade na significação mágica que atribuem aos ritos. Miguilim,

por exemplo, é o que mais sofre com as imposições e leis do mundo dos adultos e,

também, o que menos aceita a ideia de crescer. Também é preciso considerar que cada

uma destas personagens, Brejeirinha, Fita Verde e Miguilim, vivencia uma experiência

diversa e, dessa forma, o rito de passagem de cada uma e as significações atribuídas a

ele são diferentes. No entanto, o caráter mágico e poético presente nas significações

atribuídas ao rito de passagem são um ponto comum.

O rito, segundo Mauss (2000), acontece dentro de um espaço determinado, no

tempo e na história. Um dos objetivos do autor não é explicar a história da qual faz parte

a magia ou a história da magia propriamente dita, mas compreender a magia segundo o

viés do estudo do rito, como um fato social dentro da história.

Em O narrador, Benjamin (1985, p.198-199) discute experiência (Erfahrung)

como fonte da grande tradição narrativa. A experiência está relacionada com

movimento e mudança, isto é, assim como o rito de passagem, é preciso que exista o

deslocamento no tempo e no espaço. Na introdução de From ritual to theatre e no

ensaio ―Dewey, Dilthey e drama‖, o antropólogo britânico Victor Turner debate a

etimologia da palavra ―experiência‖, que deriva do termo indo-europeu *per-, ―tentar,

aventurar, arriscar‖. O termo grego, diz Turner (2005, p. 35), evoca a ideia de

―passagem‖ ou rito de passagem. Tanto no grego quanto no latim, o termo experiência

refere-se a ―perigo, pirata, e ex-per-imento‖. Podemos considerar, então, as experiências

individuais de Brejeirinha, Fita Verde e Miguilim como ritos de passagem para os quais

as próprias personagens, no universo da narrativa, atribuirão significados individuais e

não sociais, que são alheios ao contexto rosiano.

Mesmo que o rito mágico não seja cumprido por alguém que possua poderes

mágicos, como fadas e bruxas, é preciso que ele seja realizado por alguém, em

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particular, que se enquadra nos padrões do mágico, ou que possua as características que

possibilitam a realização do ato mágico. Ainda considerando os estudos de Mauss, não é

qualquer indivíduo que pode praticar atos mágicos, pois eles implicam certas exigências

como a alteração do estado físico e mental de quem o realiza e, também, uma

preparação prévia. A magia, segundo dados apontados por Mauss, não é para quem

escolhe ser mágico, mas para alguém que já nasceu com as predisposições para sê-lo –

diferentemente de um sacerdote, que escolhe ser sacerdote, cuja escolha é legitimada

por uma instituição.

Após delinear as características do mágico, Mauss procura equacionar as

características do ato por ele praticado, ou seja, as particularidades da magia,

destacando a dimensão do oculto, do escondido, como aspecto fundamental da magia. A

magia está associada ao extraordinário da vida, à aceitação e à crença de que o

transcendental é possível. A magia existe porque existe a crença. Sem a crença, quebra-

se o encantamento e a magia deixa de existir. Se seguirmos o raciocínio de Mauss,

podemos considerar que crianças e poetas, esses seres movidos pelo desejo e pelo

imaginário, são aptos à magia e ao ato mágico. É esse o pensamento que consideramos

na tentativa de apreender o encanto e o desencanto que atribui sentido aos ritos de

passagem da vida infantil à vida adulta, vividos pelas personagens rosianas.

No mundo real, o rito de passagem se insere em todas as sociedades, mas é

vivenciado diferentemente. No entanto, há alguns elementos comuns, entre os ritos. Um

dos principais ritos é o de passagem da infância para a vida adulta.

Na sociedade ocidental, existem cerimônias que cumprem funções rituais, mas

não necessariamente marcam de forma definitiva a passagem da infância para a vida

adulta: desenvolvimento físico e psíquico, escolaridade, iniciações amorosas e sexuais,

casamento, responsabilidades produtivas, compreensões sobre determinados fatos da

vida. Tudo isso pode ser mais ou menos ritualizado nos contextos familiares e sociais,

somados a outras características de status, obrigações e direitos, que definem a categoria

de pessoas que constitui a força maior da reprodução da vida social. O fato é que não

existe uma referência clara a respeito do marco temporal de passagem. A indefinição

prolonga-se, a dependência desdobra-se por tempo bastante elástico e subjetivo.

Em nossa sociedade, construímos um padrão de sociabilidade que,

recentemente, inclui uma fase intermediária chamada adolescência. Essa etapa da vida

não corresponde, necessariamente, a uma fase biológica definida. Trata-se de uma fase

psicológica, cuja finalidade é adiar a transformação da criança em adulto. Essa

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transformação pode ser mais ou menos ritualizada nos contextos familiares, escolares,

sociais e civis. São criados marcos, como a menarca das meninas, o Bar Mitzvah, o

baile de debutante, o primeiro amor, o primeiro beijo, a iniciação sexual, a formatura, o

primeiro emprego, a independência financeira, o direito de votar e dirigir, a saída da

casa dos pais etc.

O fato é que não existe em nossa sociedade uma referência clara ou um

consenso a respeito do marco temporal de passagem da infância para a idade adulta,

nem critérios nítidos para promovê-la, porque a chegada da adolescência é vivida de

maneira diferenciada e individual pelas crianças de classes e contextos sociais distintos.

O processo educativo das crianças é, portanto, um treinamento constante e contínuo de

aprendizagem das tarefas e do modo de ser masculino ou feminino. Juntamente à

assimilação gradativa de valores e referências culturais mais gerais, as crianças são

treinadas pelo método da imitação. As crianças brincam de representar as histórias

míticas, em que imitam e também recriam os adultos, os velhos, os animais e os

espíritos, em seus comportamentos, ações e posturas corporais, e fazem isso brincando.

Os velhos são aqueles que viveram mais e, por isso, sabem mais e devem transmitir suas

experiências – condição fundamental nas sociedades baseadas na tradição oral. As

crianças são seres em formação, devem aprender as coisas da vida e preparar-se para os

papéis sociais que assumirão no futuro.

Os rituais de iniciação, relativos à mudança de estado da infância para a

maturidade, praticamente, encerram o processo de educação básica. No entanto, o

adulto não pode ser considerado pronto e acabado nesse momento, seu processo de

socialização é contínuo até a morte. É preciso saber viver e morrer, saber envelhecer e

assumir papéis e funções diferenciadas ao longo da vida. Porém, o momento de

passagem para o estado maduro é decisivo, dado o sentido social que é atribuído a essa

categoria de pessoas. Cabe ao adulto ser independente, capaz de desempenhar todas as

tarefas e resolver todos os problemas que se lhe apresentem em situações esperadas ou

inesperadas, evidenciando-se relações de dependência e complementaridade entre

homens e mulheres.

Nas sociedades indígenas, em contrapartida, a adolescência não é uma fase

social nem psicológica, uma vez que ela não é necessária. O corpo dos jovens está apto

à procriação e, em seu processo educativo, já treinaram a aquisição das habilidades

práticas pertinentes ao seu gênero sexual. Portanto, cabe à sociedade promover sua

transformação em adulto, e essa passagem é realizada por meio de rituais de iniciação

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considerados importantes no ciclo cerimonial (de nascimento, crescimento, casamento,

reprodução, envelhecimento e morte). A formação do homem adulto e sua incorporação

ao universo masculino, por exemplo, exige diversos testes – muitas vezes, rígidos e

violentos – de virilidade, força física, domínio das emoções, especialmente em relação à

coragem. Há também constante aprimoramento das habilidades básicas que o trabalho

requer, assim como a assimilação das regras e valores culturais.

Se levarmos em conta o pensamento da criança acerca dos ritos de passagem,

ritualizar é como re-atualizar. A experiência à qual ela atribui a magia permite-lhe

abandonar a noção do tempo profano, cronológico e irreversível. No tempo mítico, o

presente não substitui o passado, nem prenuncia o futuro. E, se não há ontem nem

amanhã, o momento é de eternidade, de continuidade. O contato com o agora elimina a

hierarquia das horas.

Com Victor Turner (2005), aprendemos que, em momentos extraordinários, de

exceção e suspensão de regras, o cosmos se renova e as tradições se revitalizam. Porém,

há os ritos que celebram o terror diante do desencanto. Sob o signo do horror, a exceção

é regra, as palavras e as coisas perdem sentido. Os sentidos são amortecidos. Nesse

caso, temos personagens crianças buscando reconstituir os sentidos do mundo e, diante

do esfacelamento de uma tradição narrativa, recompor a experiência. Talvez seja essa a

diferença entre a antropologia de Turner e o pensamento benjaminiano. Em ambos, o

olhar se dirige aos momentos de interrupção, de desencanto. Mas, em Turner, a ruptura

se transforma em transição, reconstituindo e revitalizando o todo – tal como acontece

num rito de passagem.

O rito de passagem, vivenciado pelas ―personagentes‖ de Rosa que são almas

ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o

milagre, está intimamente relacionado com as experiências mágicas que, por sua vez,

estão intimamente relacionadas com a poesia. Isto é, com o método rosiano de contar

estórias. Rosa faz mágica com a estrutura do conto, com a linguagem, com as palavras.

Podemos considerar que é esse deslocamento no tempo e no espaço narrativo, essa

vivência na criação poética que caracteriza o rito de passagem das personagens rosianas.

Brejeirinha, juntamente com Pele, Ciganinha e Zito, Miguilim, juntamente com Dito, e

Fita Verde vivem contos de fadas às avessas, buscam o sentido da aventura humana,

orientando seu pensamento para o irracional e para a magia, sem se submeterem a uma

motivação social.

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Capítulo III – O universo mágico-poético rosiano

3.1. Brejeirinha e a “história de tolice” do audaz navegante

O objetivo neste tópico é apresentar algumas reflexões sobre o conto Partida do

audaz navegante, presente em Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa, propondo

uma leitura apoiada nas concepções de magia e de infância. Neste conto em especial,

Guimarães apresenta o pensamento poético das crianças com todo o seu vigor, fazendo-

nos questionar os limites do que é visto e do que é apenas entrevisto, tudo aquilo que

pode ser captado pelo olhar da criança. Chama-nos especial atenção nesta narrativa a

presença intrigante e sedutora do pensamento mágico-poético da protagonista, uma

garotinha chamada Brejeirinha, de quem pouco sabemos além de se tratar de uma

pequena poeta que se diverte em criar histórias e resoluções fictícias para situações

reais. Como afirma o narrador, ―Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades:

delas apropriava-se e refletia-as em si – a coisa das coisas e a pessoa das pessoas‖

(ROSA, 2016, p. 140).

Trata-se da história de um dia na roça, em que a pequena Brejeirinha conta a

suas irmãs Pele e Ciganinha e a seu primo Zito, as aventuras do ―indo-se embora do

navio‖ do ―audaz navegante‖ para longe no mar, ―navegante que o nunca-mais, de

todos‖. Sua narrativa dentro da narrativa assume um discurso mágico e insólito, à

semelhança do discurso dos poetas. Em sua ingenuidade e astúcia, a pequena consegue

resgatar nas demais crianças, talvez quase adolescentes, o olhar mágico e inocente para

a vida que, possivelmente, elas já não alcançavam mais ou estavam prestes a perder. No

entanto, um leitor de prazer, possivelmente alcançaria o que chamamos aqui de

narrativa primária, isto é, uma narrativa que trata do cotidiano, neste caso, das crianças

no campo.

Piglia (2004), em Formas Breves, considera que existem sempre duas histórias

na estrutura narrativa do conto, ou seja, dois sistemas diferentes de causalidade, duas

lógicas diferentes e antagônicas, que são demonstradas diferentemente em cada história

e, em sua intersecção, está o fundamento da construção narrativa do conto. Há sempre

um enigma, uma história contada de modo enigmático, sendo essa história secreta a

chave da forma do conto e suas variantes. Portanto, segundo Piglia (2004, p.112), o

conto é construído para revelar artificialmente algo que estava oculto:

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Há um mecanismo mínimo que se esconde na textura da história e é sua

margem e centro invisível. Trata-se de um procedimento de articulação, um

levíssimo engaste que dá fecho à dupla realidade. A verdade de uma história

depende sempre de um argumento simétrico que se conta em segredo.

Concluir um relato é descobrir o ponto de interseção que permite entrar na

outra trama.

A primeira narrativa desse conto rosiano trata do seguinte enredo: em um dia

chuvoso, quatro crianças estão na cozinha de uma casa de campo. Pele, nome que talvez

seja uma referência ao conto francês Pele de Asno, a irmã mais velha, ajuda a mãe nos

afazeres da cozinha, Ciganinha finge ler um livro para dissimular seu aborrecimento

com Zito, seu primo, com quem estava brigada. Zito também evita conversar com ela,

pensa em ir embora ―teatral‖, de um jeito dramático, mas, na verdade, já está cansado da

briga. Brejeirinha, a mais nova e arteira, observa tudo, inquieta, e começa a chamar a

atenção de todos, com perguntas e uma história sem muito fundamento sobre um tal

audaz navegante, que poderia ser seu primo Zito. Suas irmãs, a princípio, criticam a

história ―boba‖, mas Zito gosta. Pele rezou para a chuva passar enquanto batia os ovos

e, de fato, o tempo melhorou. As crianças, então, tiveram permissão para brincar perto

do riachinho e saíram. No caminho, Zito e Ciganinha fazem as pazes e conversam de

maneira amistosa, sugerindo um namoro entre eles. Brejeirinha sai correndo, cai e se

suja. Quando percebe que a irmã Pele ainda se lembra da história do audaz navegante,

resolve retomá-la. Como é criança, não sabe utilizar muito bem a pronúncia ou o

significado das palavras, e não se preocupa com a lógica do enredo. No entanto, a

história ganha o interesse das demais crianças. Como Brejeirinha perde o fio da história,

Pele caçoa da irmãzinha e aponta um estrume seco de vaca dizendo ser este o ―aldaz

navegante‖. As crianças resolvem enfeitá-lo com flores, e Brejeirinha resolve terminar a

história. Quando começa a chover e o ―bovino‖ é cercado de água, as crianças deduzem

que o ―audaz navegante partirá‖ e resolvem enfeitá-lo com chiclete, grampo de cabelo e

moeda, como uma maneira de mandar ―recados‖ para ele. Brejeirinha inventa um outro

final, em que o audaz navegante não parte sozinho, mas com sua amada. A chuva

aumentava e Brejeirinha, assustada, tranquiliza-se quando vê a mãe, que a pega no colo

com carinho. Juntos observam o ―audaz navegante‖ sendo levado pela chuva. Depois,

voltam todos para casa.

Contado dessa maneira, limitando-se ao enredo, o conto perde o encantamento.

A linguagem, a oralidade e a magia não podem aqui ser reproduzidas. Um leitor de

prazer, segundo Barthes (2015, p.18), realizaria uma leitura apegada às articulações da

anedota, ignorando os jogos de linguagem, suspense pela avidez do conhecimento, do

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enigma e do segredo, e, certamente, consideraria a pequena extensão do conto. Para ele,

tratar-se-ia de uma história adorável sobre o dia a dia no campo, um dia comum, em que

crianças, aborrecidas com as chuvas inconstantes, brincam e conversam para passar o

tempo. Já o leitor de fruição consideraria a escritura como um bem precioso, passado de

um indivíduo (autor, no caso, Guimarães Rosa) a outro (o leitor), sendo este instigado a

adicionar novos e ilimitados sentidos a cada nova leitura que realiza de uma mesma

obra. Isso porque está diante de uma personagem que exige essa fruição. Por escritura,

Barthes (2015, p. 11) entende: ―a ciência das fruições da linguagem‖, isto é, aquilo que

surge da inscrição do texto no leitor e do leitor no texto. Brejeirinha dedica um olhar de

alegria para todas as coisas e transforma, por meio de seu olhar poético,

questionamentos do plano da realidade imediata em incríveis mediações poéticas. Tanto

que, todo o tempo, sua narrativa poética disputa lugar com a narrativa contada pelo

narrador da história em que está inserida.

Não é nosso objetivo revelar e esgotar as possibilidades de leitura do conto

Partida do audaz navegante, considerando a sua riqueza poética. Mas podemos prever

alguns caminhos possíveis, como, por exemplo, um leitor de fruição alcançaria as novas

camadas do texto, tropeçaria no primeiro estranhamento.

Em Partida do audaz navegante, até o que parece ausência torna-se uma

possibilidade de existência. É uma narrativa de imagens claras, da paisagem diluída às

claridades do dia, aos movimentos das crianças. A ―poetista‖ desta prosa-poética sugere

uma história mágica, leva os próprios personagens a um outro lugar, propondo

hipóteses, fazendo indagações insólitas como: ―Zito, tubarão é desvairado, ou é

explícito ou demagogo?‖ (ROSA, 2016, p. 140). As suas palavras são anteriores à

lógica e esse é um dos fios condutores da magia presente nesse conto. O leitor de

fruição proposto por Barthes é aquele que procura apreender, revelar e desconstruir a

ambientação criada no texto. No caso de Guimarães Rosa, somos apresentados, desde o

início, a uma ambientação onírica, semelhante à introdução de um conto de fadas:

Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer

coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de

alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim.

(...)

Meia manhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase

presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas" (ROSA,

2016. p.139).

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A magia da arte de contar já é característica em Rosa também quando se vale de

neologismos, como ―brumava‖, de adjetivações inesperadas, como ―fogo familiar‖, e

sutilezas que nos dão pistas de que o que parece não é: ―parecia não acontecer coisa

nenhuma‖. Logo no primeiro parágrafo, o leitor de fruição percebe e se lança à

oportunidade de uma leitura que o fará levantar a cabeça várias vezes e, ao mesmo

tempo absorve-o. Segundo Barthes (2015, p.18) o que é digno de apreciação, num

relato, não é diretamente o conteúdo, o enredo, nem mesmo sua estrutura:

(...) mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto,

ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o

texto da fruição imprime à própria linguagem, e não à simples temporalidade

de sua leitura.

Esta aparente falta de perspectiva, este ―parecia não acontecer coisa alguma‖

com que o dia e a narrativa se iniciam, colore as oportunidades que a menina terá para

reconstruir ou recriar uma manhã sem sol. É a partir dessa atmosfera brumosa que a

pequena poeta Brejeirinha terá oportunidades de acionar e vivenciar a riqueza e a

potência do seu ser poético. A imaginação de Brejeirinha liberta-se, invade o dia e

ilumina a manhã chuvosa. Vivendo genuinamente a poesia, ela restaura na manhã de

tédio uma luz de sol que vai transformar a manhã de todas as crianças do local.

Em seguida, são apresentadas as personagens, cujas descrições estão longe de

serem fechadas e limitadas ao texto. O leitor de fruição reconhece-lhes a vida e o corpo,

sem, contudo, conhecê-los de fato. Primeiramente, somos apresentados à Mamãe, a

bela, a melhor. Pés tão pequenos que ela podia usar as chinelas da filha mais velha,

Pele. Os cabelos de um ―louro silencioso‖, outro adjetivo misterioso. Percebemos nessa

personagem descrições tão poéticas que se assemelham às de uma fada: ―vogais de

doçuras‖, considerando que vogais são mais fluidas e melodiosas do que consoantes;

―bátegas de bênçãos‖, como um poder atribuído a seres divinos. Suas meninas-dos-

olhos podem brincar de bonecas. As bonecas são Pele, Ciganinha e Brejeirinha, que

―brotavam num galho‖. Há também o primo, Zito, esse é de fora. É com ―orgulhos e

olhares‖ que a mãe cuida das crianças. De Brejeirinha mais do que das outras, porque

―às vezes, formava muitas artes‖.

Brejeirinha é apresentada ao leitor aos poucos, em camadas que não dão a

esperança de chegarem ao fim, como crianças diante de uma misteriosa caixinha de

surpresas. O narrador diz: ―A gente via Brejeirinha‖ (ROSA, 2016, p. 139) como quem

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participa da cena, tamanha a subjetividade de sua descrição. Ela, no momento, está

sentada em um caixote de batatas, ―cruzadinha, traçada as pernocas‖. Por um ―azougue

de quieta‖, percebemos uma personalidade paradoxal. Mesmo ocupada com a caixa de

fósforo, é uma garotinha inquieta, de cabelos louro-cobre e, no meio deles, são

reveladas coisinhas diminutas, como um perfilzinho agudo, pestanas ―tiltil‖, um

―narizinho que-carícia‖ e ―não de siso débil, seus segredos são sem acabar‖. As

descrições das ações incansáveis de Brejeirinha também são incompreensíveis, porém

imagináveis: ―andorinhava, espiava agora – o xixixi e o empapar-se da paisagem‖ e

gosta, ―poetista‖ que é, de lampejar longo clarão no escuro de nossa ignorância.

A descrição de Brejeirinha cessa nas linhas de um texto, repleta de diminutivos,

como ―perfilzinho‖, ―narizinho‖, a ação de ―andorinhar‖, onomatopeias como ―xixixi‖,

criação de imagens, como pestanas ―til-til‖, que se assemelham a dois tils. Mas não

cessa na amplitude de sua escritura/narrativa possível. Composta de sonoridades e

neologismos, o leitor a constrói como pode, levanta a cabeça do texto, procura

associações possíveis em seu imaginário e em arquivos da memória. Mais do que uma

personagem, Breijeirinha pode ser considerada uma leitora de fruição, embora mal saiba

ler o catecismo, nem os romances pequenos ou grandes. Talvez, um dos ritos de

passagem vivenciados por Brejeirinha seja exatamente este: o letramento. Não puro e

simplesmente o be-a-bá, mas a compreensão, os processos de significação e significado

do mundo, a linguagem, a interpretação, a criação. Processos que ela realiza com alegria

e destreza, uma vez que ninguém melhor do que uma poeta para ―lampejar longo clarão

no escuro de nossa ignorância‖. Seu nome sugere alguém que no brejo vive, de lama se

suja. No entanto, também sugere que se trata de criança marota, divertida, brincalhona,

traquina, astuciosa. É assim que a trataremos a partir de agora: alguém que não é apenas

uma personagem, mas um agente de criação, inclusive do conto.

Tomemos emprestadas as considerações de Iolanda Cristina dos Santos (2007. p.

137) sobre Brejeirinha que, segundo ela é uma criadora de imagens, enxerga grande e

belo, e consegue criar um novo mundo para si e para Pele, Ciganinha e Zito, ao

mergulhar no mundo do devaneio poético:

Seu olhar vai além da neblina da manhã, porque dentro dela residem outras

personagens, outras estórias. O mundo atual, aparentemente descolorido, é

revivido nas cores poéticas com que ela pinta a paisagem. Ela não busca o ―o

quem‖ das coisas, como o faz o Velho da novela ―Cara-de-bronze‖;

tampouco, ao contrário de Miguilim, em Campo geral, ela não quer entender.

Ela deseja criar, reinventar, colorir o lugar e a estória.

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Brejeirinha, além de criar, reinventar e colorir, talvez queira, sim, entender

problemas fundamentais do ser humano, como a vida, o destino, o amor. Justamente por

ser criança e poeta, esse não entendimento acerca da vida permite-lhe a criação de um

mar que nunca viu, terras distantes que nunca pisou, um romance grande que nunca leu,

experiências que jamais vivenciou.

Além de Brejeirinha, temos as demais personagens descritas de modo que

escapa das mãos do leitor. A irmã mais velha, Pele, a que ―beliscava em doce‖, ―sorria

sempre na voz‖, sugere-nos uma personalidade dúbia. Ela já auxilia a mãe nas tarefas da

cozinha. É quem bate os ovos, quem reza a Santo Antônio para chamar o sol.

Constantemente, ainda que com doçura, questiona e corrige Brejeirinha, ajeita-lhe a

roupa, assumindo um papel maternal, de quem é doce e, ao mesmo tempo, quer impor

certa ordem.

Ciganinha, outra irmã de Brejeirinha, ―a menina linda no mundo‖, retrato miúdo

de sua mãe, é quem, ardilosa, ―lê‖ um livro sem virar a página. O grande rito de

passagem vivenciado por ela, claramente, é a descoberta do amor. Seu nome sugere

boemia, misticismo e astúcia, alguém sem raízes, sempre pronto para partir. Também

pode ser uma referência à personagem Ciganinha do conto homônimo de Visconde de

Taunay (2005, p. 53), moça descrita como independente, audaz, inquieta, de gênio

violento e bastante sedutora.

Zito, o primo das meninas, o ―de fora‖, o ―meiozinho homem‖, ―leal de

responsabilidade‖, o que deseja partir, ―ir-se embora teatral‖, é quem inspira a história

do audaz navegante. Seu nome remete a Joãozito, como João Guimarães Rosa era

chamado quando era menino. Percebemos que se trata de um personagem duplo que, ao

mesmo tempo em que vivencia ritos de amadurecimento e responsabilidade, também

descobre o amor pela prima Ciganinha e o desejo de aventurar-se em ―descobrir outros

lugares valetudinário‖.

O leitor de fruição busca amparar essa explosão semântico-poética e apreender

esses personagens que se apresentam com tantas fissuras, tão próximos à forma como

compreendemos o conto maravilhoso. Na leitura de fruição, não existe por trás do texto

ninguém ativo, como é o escritor Guimarães Rosa, por exemplo, e, diante dele, ninguém

passivo, como não é permitido ao leitor de Rosa ser. Barthes (2004), antes de ―O prazer

do texto‖, já havia proclamado a ―morte do autor‖ e a ideia de um olhar voltado ao

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―leitor crítico‖ e à sua experiência, cada vez mais atuante ali, onde o escritor tenha se

descuidado ou se deixado abandonar.

Sabemos que Brejeirinha ―vivia em álgebra‖ e tem ―infimículas inquietações‖.

Ela quer ―saber o amor‖ e é sensível à iminente ―briguinha grande e feia‖ entre seu

primo Zito e sua irmã Ciganinha, por motivos ―de não ousar dizer, coisa de ciumoso, ele

abrira-se à espécie de ciúme sem motivo de quê ou quem.‖ É sensível também ao

sentimento que nasce ali, o qual ela quer entender, e o qual, talvez, nem Zito e

Ciganinha, ―quase assustados‖, entendem.

Brejeirinha, em uma pirueta, afirma, categórica, que sabe por que o ovo se

parece com um espeto, mas não vai contar a ninguém. Esse é um dos segredos de

Brejeirinha e, também, o enigma do conto, que será reiterado nas linhas finais. Ovo e

espeto são dois elementos polares em vários sentidos e essa aproximação é antiga para

referir-se ironicamente a duas coisas que em nada se assemelham.

Em sua correspondência a Meyer-Clason, seu tradutor alemão, Rosa (2003, p.

316) explica a que veio a expressão utilizada por Brejeirinha:

Há, em português, a expressão: ―Tão parecidos como um ovo e um espeto‖,

para dizer que duas coisas, ou duas pessoas, são muito diferentes uma da

outra. Aqui, Brejeirinha descobre uma profunda verdade metafísica,

desmoralizadora da nossa concepção idiota da ―realidade estática‖: as coisas

aparentemente mais diferentes, são em verdade, às vezes, as mais próximas

uma da outra. Veja, a propósito, o próprio título, e o próprio tema da estória.

Em se tratando de Brejeirinha, sendo ela personagem de Rosa, tudo nos leva a

crer que o ovo e o espeto escondem segredos nesta narrativa. Adélia Bezerra de

Meneses (2015, p. 77) é quem nos auxilia a estabelecer relações nesse encontro de

contrários: o espeto, retilíneo e agudo, é a figuração do elemento penetrante, enquanto o

ovo, sem arestas, figura receptividade incondicional; espeto é inorgânico, o ovo,

orgânico; espeto é pontudo, o ovo, ovalado, espeto é seta, o ovo, esfera. Há também

uma relação entre o masculino e o feminino, o óvulo e o espermatozoide, remetendo,

inevitavelmente, a uma simbologia cada vez mais sexualizada do par primordial de

opostos. A aproximação de ambos, seria, então, a fecundação, uma nova vida, uma nova

possibilidade de criação.

Rosa lança-nos pistas sobre essa misteriosa analogia ao longo de todo o conto.

Os ovos, por exemplo, aparecem logo no primeiro parágrafo, quando Mamãe manda a

personagem Maria Eva – dois nomes bíblicos, sendo o primeiro referente à soberania,

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pureza e virgindade e, o segundo, à vida – estrelar os ovos. Um leitor de fruição está

ciente que deve estar atento a cada detalhe nesta história repleta de segredos, assumindo

uma atitude parecida com a de Brejeirinha:

Brejeirinha é assim, não de siso débil: seus segredos são sem acabar. Tem,

porém, infimículas inquietações: - ‗ Eu hoje estou com a cabeça muito

quente...‘ – isto, por não querer estudar. Então, ajunta: - ‗ Eu vou saber

geografia.‘ Ou: - ‗ Eu queria saber o amor...‘ Pele foi quem deu risada.

Ciganinha e Zito erguem os olhos, só quase assustados. Quase, quase, se

entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que se crê com a razão,

muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não

aguentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda, se

envoava (ROSA,2016, p.140).

Percebemos o lirismo com que é tecida a troca, ou melhor, o desencontro de

olhares de Zito e Ciganinha, sedutores, inocentes e oscilantes, ―num não encontrar-se‖.

Mesmo olhando disfarçada e rapidamente, ―à socapa‖, Ciganinha se torna mais linda

aos olhos de Zito, ela ―se envoava‖, isto é, crescia em beleza a ponto de levantar voo

como um anjo. Outro ponto que chama a atenção neste conto é o desapego à lógica e à

razão por parte da protagonista, ao mesmo tempo em que sugere astúcia, imaginação e

sensibilidade quando expõe seus questionamentos.

Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes? – Brejeirinha

especulava. – ― É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...‖ Pele lambava-

lhe um tico de desdém (...)‘ ― (ROSA, 2016, p.140).

Brejeirinha, querendo ―saber o amor‖, busca as explicações possíveis a partir dos

elementos de que dispõe: a imaginação, as palavras, a sensibilidade, a magia, a poesia.

Pele, a irmã mais velha, a desdenha, ainda que com doçura, sempre sorrindo na voz.

Mas Brejeirinha está vivenciando tão intensamente as revelações do seu ser poético que

não se preocupa em criar embates com a irmã. Ela não precisa se explicar; e quando se

justifica, ainda assim é por uma fala totalmente desautomatizada, repleta de metáforas e

de lirismo. Ela ―queria avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão‖,

porque, logo percebemos, ela vê além. Ela ―gostava, poetista, de importar desses sérios

nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossa ignorância‖ (ROSA, 2016,

p.140). É Brejeirinha, nesse dia chuvoso, quem traz a luz, isto é, novas possibilidades às

outras crianças, tão resistentes.

Percebendo o enamoramento e a possibilidade de separação entre Zito e

Ciganinha, Brejeirinha faz a sua escritura/narrativa: aquela que, para o leitor de prazer

seria apenas uma história contada por uma criança, repleta de limitações vocabulares,

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lógicas e semânticas; para o leitor de fruição, poderia representar a redenção da

possibilidade de criação, a metalinguagem:

Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e

refleti-as em si ―a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. ― ‗Zito, você

podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-

onge no mar, navegante que o nuncamais, de todos?‘ Zito sorri, feito um ar

forte. Ciganinha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada‖

(ROSA, 2016, p.140).

As duas estórias, a de Brejeirinha e seus irmãos naquela manhã de chuva, e a do

audaz navegante, encaixada neste momento à primeira pela protagonista, estão

estreitamente vinculadas e se complementam, mas ainda assim conseguimos delimitá-

las e perceber o que é próprio de cada uma, o que é necessidade de cada enredo. É nesse

momento que Pele recebe a terrina da mãe para bater os ovos, elemento misterioso tão

semelhante a um espeto que, já sabemos, deve nos chamar a atenção. E Brejeirinha,

empolgada, não detem em si o ―jacto de contar‖, como algo involuntário e natural, e

continua a história do ―Aldaz Navegante‖, que foi ―descobrir os outros lugares

veletudinário‖. É a primeira vez que aparece no texto a grafia da palavra ―aldaz‖ em vez

de ―audaz‖ na fala de Brejeirinha. Imaginamos uma garotinha empolgada, pronunciando

o som do ―l‖ com entusiasmo e exagero, como para atribuir pompa e importância ao

personagem inventado. A grafia, ou pronúncia, equivocada da palavra ―audaz‖,

escolhida pela personagem, simboliza sua soberania sobre o que está por vir, que escapa

das mãos do autor original e passa a pertencer a ela, que tece uma nova

escritura/narrativa. Certamente, ela desconhece o significado de palavras como

―veletudinário‖, que sugere alguém de constituição física débil, doentia, sempre sujeito

a enfermidades. Nada parecido com um navegante audaz que, à princípio, parte sozinho,

com muita saudade, mas sem lágrimas, pois ―precisava respectivo de ir‖. Os que não

partiram ―batiam‖ lenços brancos e, quando não tinha mais navio para ver, só um resto

de mar, ficaram tristes:

Então e então, outro disse: ─―Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca

vai voltar...‖ Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: ─―Ele deve

de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...‖ Então, todos

choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar... (ROSA,

2016, p. 141)

As irmãs de Brejeirinha recebem a história com certo desdém e zanga.

Ciganinha, especialmente, parece muito tocada pela partida do ―aldaz navegante‖. Mas

a pequena poeta, senhora de sua história, agente de criação, reconhece o seu potencial

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mágico e não precisa da aprovação de ninguém. Sabe também que a magia do contar

precisa acontecer. É uma pulsão poética mais forte do que ela:

─―Você é uma analfabetinha ―aldaz‖. ─―Falsa a beatinha é tu!‖ ─ Brejeirinha

se malcriou. ─―Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?‖

─ e Ciganinha se feria em zanga. ─ ―Porque depois pode ficar bonito, ué!‖

(...) Disse ainda, reflexiva: ─―Antes falar bobagens, que calar besteiras...‖

(ROSA, 2016, p. 141).

Ao inventar sua história, Brejeirinha pode, transgressoramente, deixá-la ―bonita‖

à sua maneira e alterar, quando quiser, o percurso adotado no início. A força de sua

fantasia atua sobre a sensibilidade dos ouvintes, especialmente Ciganinha e Zito, que se

projetam na separação do audaz navegante e sua amada. E não seria essa a dimensão

transformadora da arte, o de provocar prazer e encantamento? Os acontecimentos

cotidianos presentes na narrativa também contribuem para que a transformação

aconteça. Pele havia rezado dez responsos a Santo Antônio enquanto batia os ovos e, de

fato, ―estourou manso o milagre‖. O tempo melhorou, como se aquele movimento de

Pele com os ovos fosse um ritual de magia para chamar o sol. Remete à lembrança de

um antigo costume no campo, especialmente entre crianças. Para a chuva ir embora,

costuma-se colocar um ovo no telhado e rezar as seguintes orações, dez vezes: ―Santa

Clara clareou, Santo Antônio iluminou, vai chuva, vem sol vai chuva, vem sol, vai

chuva, vem sol".

Simpatias de colocar ovos no telhado para Santa Clara fazer parar de chover

foram baseadas na lenda de que, quando a mãe desta santa estava grávida, ela dizia que

a criança se chamaria Clara, pois iluminaria o mundo. Acredita-se que a profecia se

cumpriu. Durante a sua infância, Clara aprendeu a cozinhar e seus confeitos preferidos

eram doces feitos de clara de ovos. Na juventude, ela conheceu São Francisco de Assis

e fundou a ordem de freiras chamada Clarissas. Alguns desses confeitos feitos com ovos

alimentavam as freiras, mas a maioria deles era vendida na aldeia para ajudar

financeiramente os pobres. Porém, naquela região, uma praga exterminou as galinhas e,

consequentemente, os ovos. Santa Clara rezou para que Deus enviasse uma solução e,

no mesmo instante, bateu na porta do convento uma caravana de carroças, cheias de

galinhas e pessoas, vindas da Espanha, pedindo abrigo, pois fugiam de uma inundação

em sua aldeia. Em troca de hospedagem, ofereciam galinhas e ovos. Santa Clara aceitou

a proposta e aquelas pessoas simples encheram sua cozinha de ovos. Então, ela rezou

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para que cessassem as chuvas. Milagrosamente, Santa Clara fechou os olhos e viu a

chuva cessando naquela aldeia e a água sendo sugada pelo Sol quente.

Um leitor de fruição é atento ao fato de que ―Ciganinha e Zito se suspiravam‖,

não cada um sozinho, mas um ao outro. Suspiros, além de serem um reflexo vital, são

doces feitos de claras de ovos batidos, curiosamente o que Pele preparava antes do

―milagre‖ acontecer. Um leitor de fruição também está atento ao fato de que o tempo se

abre e a ―manhã se faz de flores‖ não por acaso, não como uma mera chuva de março

que simplesmente cessa dando lugar ao sol, mas como uma forma de se iluminarem as

possibilidades do imaginário no porvir. A natureza, que jamais pode ser desprezada nas

narrativas de Guimarães Rosa, convida as crianças à busca de uma nova perspectiva

para a história que Brejeirinha começou a criar. Uma rede de pluralidades é tecida pelo

narrador da história, seja ele Guimarães Rosa ou a personagem Brejeirinha, que realiza

sua escritura, ganha vida aos olhos do leitor, desde que ele seja aquele tipo de leitor que

mantém o prazer e a fruição ao seu alcance. O narrador, assume o discurso da

personagem, assume a linguagem, o tom lúdico e emotivo e mesmo suas excitações,

hesitações e pausas. Com a melhora do tempo, pediram permissão para ir espiar o

riachinho cheio. Mamãe, que ―desferia chufas meigas‖ com uma ―voz de vogais

doçuras‖, deixava, desde que alguém fosse junto. Zito, um ―meiozinho-homem, leal de

responsabilidades‖, é quem as acompanharia. As crianças partem com a alegria de quem

parte para uma aventura, Brejeirinha, principalmente, ―menina só ave‖, sente-se livre e

feliz como um passarinho. Com a benção da mãe ―profetisa‖, somente se pode prever

um caminho encantado para as crianças que partem.

Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. ─―Vão

com Deus!‖ ─ Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e

choviam era bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.

(...)

No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha colavam-se, muito às tortas, nos

comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua

experiência de felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental.

(ROSA, 2016, p. 142)

No caminho, percebemos que Zito e Ciganinha não estão mais brigados e

caminham, de braços dados, sob o mesmo guarda-chuva. Barthes (2015) sugere que,

quanto mais o texto ―economiza‖, mais o leitor despende energia em sua leitura de

fruição, mais vezes a cabeça ele levanta. Quanto mais vazios no texto, mais o leitor deve

preenchê-los com sua escritura, sua imaginação. Nos ―comovidos não-falares‖ entre os

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dois, que representam o amor nesse conto, há mais carga semântico-poético do que em

todo o restante do parágrafo.

Brejeirinha escorrega na lama e se suja, deduzindo que agora pode ―não ter

cuidado‖. Sabemos que os estrumes de vaca por ali são chamados por ela de ―bovino‖.

Chegando aonde o riachinho faz foz, Brejeirinha observa os barulhos e bolhas que ali se

fazem e crava varetas de bambu para medir o crescimento da água. Essas varetas de

bambu cravadas por Brejeirinha – travessuras de Rosa – talvez sejam uma pista, o

espeto que ela julga tão semelhante ao ovo. E seu ―jacto de contar‖ não cessa:

Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. ─ ―Você

já viu jacaré lá?‖ ─ caçoava Pele. ─ ―Não. Mas você também nunca viu o

jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não

estar...‖ Mas, Brejeirinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu

par de olhos passarinhos. (ROSA, 2016, p. 143)

Brejeirinha, sem tomar conhecimento, parafraseia Shakespeare: ―Há mais entre o

céu e a terra do que supõe nossa filosofia‖. Essa fala da personagem aparece como um

dos trechos mais encantadores desta narrativa, pela ausência de limites criativos da

personagem-poeta e também como sensação de comunhão das dicotomias entre estar e

não estar, ser e não ser. No fragmento em questão, percebe-se a inversão de raciocínio:

o que a menina vê é o que o leitor pode ver a partir do que o narrador propõe. O par de

―olhos passarinhos‖ de Brejeirinha consegue ver além. Brejeirinha cria novas

possibilidades de visão, expandindo o campo de visão tanto dos leitores quanto das

personagens Pele, Ciganinha e Zito.

Segundo Iolanda Cristina dos Santos (2007, pp. 134-135):

Na voz e pelo olhar de Brejeirinha é-nos possível flexibilizar, mais uma vez,

as certezas calcadas em critérios que geralmente são limitadores. Ora, quando

a menina aponta para algo que pode existir, ainda que não esteja em algum

lugar, somos convidados a rever as possíveis lacunas e ausências, e

imaginarmos que, até onde nada parece acontecer, alguma coisa está

acontecendo. É uma fala que relativiza as noções de tempo e espaço e de

presença/ausência.

Trata-se de um olhar que primeiro dessacraliza a nossa certeza, e que, segundo,

questiona o olhar ou o foco do olhar dos outros, propondo o preenchimento de um

enunciado silencioso que, não obstante seu silêncio e sua ausência, está lá. ―O jacaré-

não-estar-lá‖ é um enunciado que nos ensina a rever os espaços silenciosos dos

acontecimentos e da própria narrativa.

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Ciganinha e Zito estão sentados em uma pedra que só dá para dois e, nesse

microcosmo criado pelo casalzinho, ―podiam horas infinitas; apenas conversando como

gente trivial‖. Enquanto Pele colhe flores e a cachorrinha Nurka se diverte correndo,

Brejeirinha observa a confirmação do amor, que ela já classificou como ―original‖ e

―singular‖. Certamente, ela desconhece o real significado dessas palavras, mas, para ela,

poeta e senhora de sua história, são prenhes de sentido e modificáveis a seu bel-prazer.

Então, ela retoma a história do ―aldaz navegante‖ que partira, mas não gostava de mar,

porque amava uma moça, de quem se lembra sempre. Ciganinha e Zito riem, sorriem

juntos, enquanto Pele se surpreende porque o assunto, ainda não se encerrou.

Percebemos que as demais crianças, a essa altura, já demonstram interesse e

encantamento por essa história, tão cheia de mistérios e magia, inventada por

Brejeirinha.

De um audaz navegante que parte, enfrentando a chuva em um navio

espedaçado, deixando a amada, ―cada um em uma ponta da saudade‖, sem salvação,

Brejeirinha começa a perder o fio da história. As outras crianças querem se apropriar da

história, pedem a continuação, não se contentam apenas com a narrativa de Brejeirinha.

É preciso mais, é preciso que a história ganhe ―corpo‖, ainda que seja um corpo

apontado por Pele, a partir de um esterco ressequido, de onde ―brotou‖ um cogumelo: o

audaz navegante surge, com um chapeuzinho branco e ―petulante‖ no que haveria de

mais desprezível no cenário. Pele deixa as flores que colhia – josé-moleques,

douradinhos e margaridinhas – caírem sobre o que seria a obra-prima criada por

Brejeirinha. Zito e Ciganinha batem palmas, como um ritual de transformação. Criação

que aponta para a própria materialidade da criação da escritura/narrativa. Brejeirinha, a

grande criadora do ―aldaz navegante‖ o ―crivava‖ com mais coisas: folhas de bambu,

raminhos, gravetos, coisas que se ―espetam‖, confirmando a representação do ―espeto‖

no conto, indagando se não haveria nenhuma flor azul.

É nesse ponto da narrativa que começa a trovejar, o anúncio de uma chuva

iminente e, mais uma vez, percebemos a natureza como elemento de transformação, tão

presente em Guimarães Rosa. A magia é reforçada pela presença da água e sua força

transformadora, além das folhas, raminhos, gravetos. Tudo o que poderia servir de

―condão‖ para a transformação daquela matéria, o ―bovino‖, em algo vivo, o audaz

navegante. Brejeirinha teme o trovão e, como um navio sem rota, sua história passa a

oscilar, enveredando por um universo de possibilidades. Ela já não sabe onde sua

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escritura/narrativa vai parar. Ansiosa, pergunta se seu ―aldaz‖ navegante vai para o mar:

―Um ventinho faz nela bilobilo acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos, os

cabelos. A chuva, longe, adiada‖ (ROSA, 2016, p. 145). Eis um acontecimento mágico:

o vento lhe responde ―sim‖, carinhosamente, como um arauto da arte. Brejeirinha tem o

aval de sua infância, da natureza, de sua poesia e de seu imaginário para prosseguir em

sua escritura/narrativa.

Ela volta os olhos novamente ao seu objeto de leitura: Ciganinha e Zito,

segredando-se não mais cada um em uma ponta da saudade, mas, cada um em uma

ponta da realidade, perguntam-se quando se veriam de novo. Ciganinha pergunta se Zito

seria capaz de fazer como o Audaz Navegante, ir descobrir novos lugares:

Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a

mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava neles,

confusa ─ assim rosa-amor-espinhos-saudade. (ROSA, 2016, p. 145).

Nesse trecho há uma declaração de amor entre Zito e Ciganinha, que só

podemos supor pelo ―coisas grandes em palavras pequenas‖ e pela busca de referências

e aproximações possíveis na sequência semântica: ―rosa-amor-espinho-saudade‖.

Talvez o espinho, elemento próximo, mas, de certa forma, antagônico à rosa, marque

novamente a presença do enigmático ―espeto‖, como uma forma de ligar-se à dor da

saudade e ao amor. Por erotismo, Roland Barthes (2015, pp.15-16) entende uma

revelação progressiva. O amor inocente entre as personagens não é revelado

objetivamente, mas por meio de sutilezas que alcançam uma gradação e se transformam,

mais tarde, na escritura/narrativa contada por Brejeirinha, que não mais se contenta em

apenas observar o enamoramento entre a irmã e o primo, que pode trazer-lhes alegria,

beleza, sofrimento e saudade. Há mais a ser observado e criado.

Quando a água ameaça a levar o ―aldaz navegante‖, Brejeirinha resolve

aumentar-lhe os adornos com a ajuda de Zito e Ciganinha. É Ciganinha, ―cismosa‖,

quem propõe mandar um recado a ele. Zito põe uma moeda, Ciganinha, um grampo,

Pele, um chiclete, Brejeirinha, um cuspinho, pois é ―seu estilo‖. Diante da pergunta

vinda do narrador ou das crianças, se há tempo para recontar a verdadeira história,

Brejeirinha decide:

Agora, eu sei. o Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou

com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar

foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando

cada vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...

(ROSA, 2016, p.146)

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Brejeirinha decide um novo rumo para sua história, assim como decide

revitalizar a sintaxe, alterar a concordância verbal, propor novas palavras, adjetivações e

significações, como nas palavras ―estricto‖ e ―estático‖ e no sentido se ir ―sem

sozinhos‖. O vagalume, que tanto aparece em outras narrativas de Rosa, encantando

Miguilim e também o Menino de Às margens da alegria, em Sagarana, como um

―lanterneiro, que riscou um psiu de luz‖ (ROSA, 2001, p.) é evocado também por

Brejeirinha. ―Virou vagalume‖ aparece como mais um elemento mágico de

transformação, cujo lume sugere fugacidade, intermitência e poesia, iluminando o

destino do navegante e sua amada.

A chuva se intensifica e Brejeirinha está apavorada, com medo do trovão

―invencível‖, e quase cai ―no abismo do trovão‖, mas Nurka late em seu socorro e as

crianças vêm para ampará-la. Eis que Mamãe surge tal qual ―fada inesperada‖, ―a

contraflor‖, e a pega no colo, aparando-lhe a cabecinha ―como um esquilo pega uma

noz‖. Ela se sente amparada no colo de sua mãe, protegida em sua infância e em sua

poesia. Encantada, vê sua história acontecendo, o ―Aldaz Navegante‖ feito de estrume,

cogumelos, flores, gravetos e cuspe é levado pela água. O narrador, cujo discurso já se

assemelhava ao da menina desde o início, pela primeira vez, assume a grafia proposta

por Brejeirinha, referindo-se ao navegante como ―aldaz‖:

O Aldaz! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o

levavam, ao Aldaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas

folhagens, suas flores e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha,

uma gotinha, que perluz ─ no pináculo de uma trampa seca de vaca (ROSA,

2016, p. 146).

Brejeirinha, comovida, reconhece sua capacidade de saber mais do que já sabia:

―que o homem se parece, mesmo, é com um espeto!‖ (ROSA, 2016, p. 146). Isto é, ela,

uma personagem da ficção, é uma leitora capaz de uma leitura de fruição, capaz de ver

além, de tecer semelhanças, construir um espaço de interlocução, um corpo de leitura e

fruição, onde aparentemente não é possível. Ela é capaz de compor figurativamente um

mundo semântico e de fazer mágica com palavras, transformar um dia em que nada

parece acontecer em um dia mágico, transformar um pedaço de estrume em um navio

onde o ―Aldaz Navegante‖ e sua amada partem juntos e viram ―vagalumes‖.

Aqui, em Rosa, a voz, a fala, o discurso de Brejeirinha, revelam as crenças e as

perspectivas do próprio autor no que diz respeito a sua liberdade criadora, dentro da

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qual são possíveis as criações de novas palavras, a revitalização da sintaxe, os encaixes

narrativos, as novas propostas e procedimentos literários.

Brejeirinha é ―inventadeira‖, como seu próprio autor, e tão dona de sua história

quanto ele. Ela inventa uma estória de amor que, por sua vez, traduz a estória de amor

de Zito e Ciganinha contada inicialmente pelo narrador, e é capaz de transformar sua

fábula na própria vida e a infância em poesia e a poesia em infância.

No final do conto, ―de novo, a chuva dá. De modo que se abriram, asados, os

guarda-chuvas.‖ Esses ―asados‖ guarda-chuvas que se abem à presença da chuva, talvez

sejam mais um indício dessa magia transformadora que todas as personagens – e

também o leitor – vivenciaram.

3.2. Fita-verde: asas ligeiras e sombra correndo-lhe, em pós

Fita verde no cabelo: nova velha história1 é uma pequena narrativa em que Rosa

(2009) reinventa e, ousamos dizer, redimensiona a história de Chapeuzinho Vermelho,

conto tradicional do coletivo europeu recuperado por Charles Perrault (1628-1703)

durante o século XVIII.

Enquanto a famigerada versão mais antiga, atribuída a Perrault, apresenta um

enredo simples e linear como uma fábula e um final trágico com ensinamentos baseados

nos perigos que a inexperiência e a desobediência podem trazer às jovens, a de Rosa

encanta pela poesia, pela intensidade lírica e, ao mesmo tempo, dramática com que é

narrada a história de uma meninazinha que, sem juízo suficiente, saiu de uma aldeia

ordinária, com uma fita verde ―inventada‖ no cabelo para ir visitar a avó ―que a amava‖,

em uma outra e quase igualzinha aldeia.

A protagonista de Fita verde no cabelo se mostra, ao contrário da indefesa

Chapeuzinho, dona de seu livre-arbítrio, e ela mesma escolhe criar e vivenciar um

caminho maravilhoso com várias referências de conto de fadas, até que se depara,

assustada, com a face da morte de sua avó.

1 Texto originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 8 de fevereiro de

1964. Foi depois republicado na obra póstuma ―Ave, Palavra‖.

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A forma como a protagonista Fita-Verde vive a experiência da infância e

também o rito de passagem da perda da inocência, também é muito diverso da

experiência de Chapeuzinho no conto tradicional. Fita-Verde traz à presença central da

infância – ou o fim dela – a quebra da lógica racional, o tema da travessia ligada a uma

busca pessoal, a emergência do lúdico e do pensamento mágico. Todos eles, elementos

muito caros à ficção de Guimarães Rosa, sob a força potencializadora de uma

linguagem, ao mesmo tempo, intuitiva, lógica, densa e poética. No entanto, Guimarães

Rosa apresenta a morte, realidade que traduz o ―pesadume, a inércia, a opacidade do

mundo‖, tão poeticamente que o peso é retirado da estrutura da narrativa e da

linguagem.

A nossa intenção, neste estudo, é refletir sobre a trajetória de Fita-Verde, suas

expectativas em relação às experiências que está disposta a vivenciar e o mundo de

fantasias que cria para si mesma até vê-lo desfolhar-se diante da perplexidade e da

violenta situação de abandono e desencanto pela qual é tomada ao final da narrativa.

O conto apresenta, logo no título, elementos literalmente mais leves em oposição

ao tradicional Chapeuzinho Vermelho, a começar pelas cores icônicas mencionadas que,

inclusive, caracterizam as protagonistas. De um lado, o vermelho de Chapeuzinho,

associado a sexo e sangue, remete a sensações de energia, violência, agressividade,

raiva, situações de guerra, revolução, crueldade e imoralidade e, também, está

relacionado com a paixão e o desejo. Uma cor visualmente dominante e mais pesada

do que a verde. Diz Bachelard (1996, p. 35), em A poética do devaneio: ―Se na

pintura o verde faz ‗cantar‘ o vermelho, na poesia uma palavra feminina pode

conferir certa graça ao ente masculino‖. A cor verde da fita, por sua vez, que é

associada à natureza, remete à esperança, à fertilidade, ao crescimento, à sorte, à

cura e, também, à inexperiência, à imaturidade. Justamente a inexperiência e a

imaturidade que, segundo Benjamin (1987), levam ao desejo da experiência.

Pensemos no capuz vermelho da personagem de Perrault, vestimenta tão

imponente e sedutora a ponto de a menina que o usava passar a ser conhecida como

Chapeuzinho Vermelho por onde quer que fosse. Não sabemos o material com que

fora confeccionado, mas, se comparado a uma fita, é claro que a segunda é muito

mais leve e vaporosa. Torna-se ainda mais volátil quando sabemos que a fita foi

―inventada‖ pela mente de uma meninazinha sem juízo, e não confeccionada por

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uma avó ou uma mãe experiente, em uma tentativa de transmitir à jovem algo de

seu, além de experiências e ensinamentos.

O fato de se tratar de uma ―nova velha história‖ remete à atemporalidade seja

do conto, seja da busca ou da expropriação da experiência. Experiência esta à qual a

personagem é lançada ou deseja vivenciar, ou experiência do leitor diante de

narrativa tão encantadora e dramática.

Ao iniciarmos a leitura do conto, somos imediatamente transportados a um

espaço-tempo diferenciados da arte e da vida, tão característico nas histórias de Rosa e,

também, nos contos de fadas.

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e

velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e

meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos

uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma

fita verde inventada no cabelo (ROSA, 2009, p.114).

Se o adereço utilizado por Fita-Verde é impalpável, o cronotopo também não

nos permite estabelecer limites. Temos uma variação da paradigmática expressão Era

uma vez, que abre o universo dos contos de fadas, opera uma outra lógica com suas

substâncias fantásticas ou mágicas, com seus encantos e ensinamentos. No entanto, a

―aldeia em algum lugar, nem maior nem menor‖ não se assemelha tanto ao lugar

mágico do ―era uma vez‖, mas sim a um espaço-tempo indeterminado, misterioso. A

sensação é a de estarmos diante de um lugar neutro, vazio, sem referências.

Nesse lugar, no entanto, quase não há movimento além do esperado. A velhice

não traz experiência nem surpresas, pois os velhos e velhas apenas inevitável e

obrigatoriamente ―velhavam‖. Não há nada a ser transmitido aos jovens, nem em tom de

conselho, nem em tom de ameaça. Conforme ressalta Benjamim (1987, p. 114), ―as

ações da experiência estão em baixa‖ no mundo moderno, especialmente após a

experiência traumática da primeira guerra mundial. Embora em contexto tão diverso do

apontado pelo filósofo alemão, nessa nova velha história de Rosa, a experiência também

não é valorizada, sobretudo a que seria transmitida pelos contos de fadas, que se

mostram fora de lugar ou como lugar vazio.

Nesse lugar neutro, entretanto, a meninazinha protagonista se diferencia dos

demais moradores da aldeia em dois aspectos. Primeiro, todos têm juízo

suficientemente, menos Fita-Verde – por enquanto. Podemos traduzir essa falta de juízo

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como uma natureza infantil, instintiva, emotiva, sem motivação exata, sem interesse

consciente e com radiante espontaneidade. Segundo, a menina saiu de lá, sem esperar ou

―velhar‖, com a fita inventada no cabelo, ansiosa por conhecer o princípio e o fim das

coisas.

Na estória tradicional de Chapeuzinho Vermelho, a mãe da menina faz diversas

advertências de que não se deve confiar em estranhos, cujo perigo é representado

simbolicamente na figura do lobo mau, o qual ocupa o imaginário paradoxal acionado

pelo despertar da sensualidade e do desejo feminino. Não sabemos a idade da menina,

mas, em se tratando desse comportamento da mãe, tudo leva a crer que não se trata de

uma menina tão pequena a ponto de sair sozinha, nem tão madura a ponto de precisar

receber tantos conselhos. O início da clássica narrativa sugere um final trágico, em que

avó e netinha são devoradas pelo lobo. No texto poético de Guimarães Rosa, só

sabemos que a protagonista, uma projeção imaginária da longínqua Chapeuzinho, vai a

uma outra quase igualzinha aldeia, com cesto e pote, visitar a avó. Nenhum perigo é

sugerido, nenhum conselho lhe é dado, nada parece acontecer nos recantos além da

convencional, monótona e previsível aldeia que já conhecemos, e nada a espera na outra

quase igualzinha aldeia onde mora sua avó.

No caminho, a menina busca se reinventar no mundo encantado de Chapeuzinho

Vermelho, reencenando seus ritos e fantasias, porém, em um mundo mais encantado

que o sugerido por Perrault: ―Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma

vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar

framboesas‖ (ROSA, 2009, p. 115).

Da aldeia de origem, a personagem leva consigo um pote de doce em calda, um

conteúdo de peso, tão comum de ser presenteado e apreciado em Minas Gerais, terra de

Rosa. Leva também um cesto, que imaginamos ser feito de palha, vazio e leve, para

buscar framboesas, fruta tipicamente europeia, tão improvável em terras mineiras. Mas

Fita-Verde, que já sabemos ser sem juízo, está iniciando um caminho em que ―tudo era

uma vez‖. Essas framboesas, doces ou azedinhas, raras e especiais, são experiências que

intencionalmente ela busca. Caso contrário, não levaria consigo um cesto vazio.

Sabemos que se trata de um ―tudo era uma vez‖, e não ―uma experiência manipulada e

guiada como em um labirinto para ratos‖ (AGAMBEN, 2005, p. 24).

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Nada aterroriza Fita-Verde no caminho, pois ela só vê ―os lenhadores, que por lá

lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham

exterminado o lobo‖ (ROSA, 2009, p. 115). Lobo ou Medusa, já sabemos que, nessa

trajetória da qual Fita-Verde tomou as rédeas, o que há de pavoroso, isto é, o

―pesadume, a inércia, a opacidade do mundo‖, foi exterminado. Resta a Fita-Verde

anunciar a si mesma (pois lobo não há) o próprio percurso: ―Então, ela, mesma, era

quem se dizia: – Vou à avó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a

mamãe me mandou‖ (ROSA, 2009, p.115).

É neste momento que o caminho maravilhoso se instaura na busca de uma

possível e, quiçá, redentora fantasia. Fita-Verde segue pelo avesso das coisas, num

mundo que, mesmo no reino da imaginação, traz o sinal da inexistência e da

predominância do imaginário: ―A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele

moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são‖ (ROSA,

2009, p.115).

Ao escolher o caminho ―louco e longo‖, e não o ―encurtoso‖, com possíveis

referências a Dom Quixote, ou ao coelho apressado de Alice antes de entrar no País das

Maravilhas, Fita-Verde escolhe a leveza do mundo, que passa a ser representada na

poesia de Rosa por elementos imagéticos que sugerem exatamente isso: como Perseu, a

protagonista se sustenta sobre nuvens e vento, e dirige o olhar para aquilo que só pode

ser revelado por uma visão indireta. Fita-Verde escolhe a incerteza, por meio da qual ela

quer conquistar a autoridade sobre sua experiência e sobre si mesma. Lembrando os

Ensaios de Montaigne, ―a experiência é incompatível com a certeza, e uma experiência

que se torna calculável e certa perde imediatamente a sua autoridade‖ (AGAMBEN,

2005, p.26).

O ―era uma vez‖ alcança seu ápice nas palavras com que Rosa (2009, p. 115)

descreve a epifania de Fita-Verde.

Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em

pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas

borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu

lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por

elas passa. Vinha sobejadamente.

Elementos comuns da natureza, em sua caminhada, ganham, aos olhos de uma

menina, que opera por semelhanças, dimensões poéticas, mágicas e imagéticas nunca

antes previstas ―sobejadamente‖, isto é, excedendo limites. As borboletas sugerem

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metamorfose, transformação, amadurecimento e, também, leveza. As flores, que

ganham adjetivos pouco comuns a elas, como plebeinhas, princesinhas e incomuns,

sugerem pureza, leveza, simplicidade e magia. Magia que, de tanto ―a gente‖ passar por

ela, não consegue mais apreciar. Essas flores são ignoradas, à semelhança de linguagem

automatizada. Mas Fita-Verde ―vinha sobejadamente‖. Segundo Agamben (2005, p.22),

Todo evento, por mais comum e insignificante, tornava-se a partícula de

impureza em torno da qual a experiência se adensava, como uma pérola, a

própria autoridade. Porque a experiência tem o seu necessário correlato não

no conhecimento, mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto, e hoje

ninguém mais parece dispor de autoridade suficiente para garantir uma

experiência, se dela dispõe, nem ao mesmo o aflora a ideia de fundamentar

em uma experiência a própria autoridade.

Entre asas ligeiras, avelãs que não voam, borboletas, flores que são plebeinhas

ou princesinhas, Fita-Verde se divertia. O ―era uma vez‖ alcança seu ápice neste

momento em que tantas imagens figurativas da leveza assumem valor emblemático. No

comum das coisas, no estrito limite natural de cada coisa, ela introduz a graça, o

encantamento. Fita-Verde vinha ―sobejadamente‖, excedia os limites do necessário, pois

não há limites para o faz de conta: no qual os limites se dissipam. Retomamos aqui a

concepção de Calvino (1990, p. 19) de que ―muito dificilmente um romancista poderá

representar sua ideia da leveza ilustrando-a com exemplos tirados da vida

contemporânea, sem condená-la a ser o objeto inalcançável de uma busca sem fim‖, a

exemplo do que acontece no romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera

(1979), de maneira luminosa e direta.

No entanto, a expropriação da fantasia no âmbito da experiência lança, em Fita-

Verde, uma sombra que ―vinha-lhe correndo em pós‖. O que seria essa sombra? Em se

tratando de Rosa, não podemos considerar a sombra o mero efeito de um obstáculo

bloqueando a luz. Em sua glosa ―II. Cavalcanti e Sade‖, Agamben (2005, p. 34) afirma

que ―esta sombra é o desejo, ou seja, a ideia de uma inapropriabilidade e

inexauribilidade da experiência‖. Fantasia e desejo são estreitamente conexos, uma vez

que a primeira é uma satisfação imaginária do segundo. Com Fita-Verde não seria

diferente e, certamente, sua fantasia é motivada pelo desejo.

À medida que a personagem se aproxima do seu destino, a casa da avó, uma

falta radical fica cada vez mais evidente, uma difundida marca de ausência de algo, um

sinal negativo, a presença do ―não‖, mesmo quando Fita-Verde encena-se no reino do

faz-de-conta. As avelãs não voam, as borboletas não são alcançadas, nunca há buquê,

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nem botão. As flores, plebeinhas ou princesinhas, não são notadas. É como se algo

estivesse paulatinamente chegando ao fim, sem que os desejos da protagonista fossem

satisfeitos de fato. Sabemos também que ela demorou para dar com a avó em casa, pois

permaneceu o quanto pode em seu universo maravilhoso, usufruindo de suas novas

experiências, numa tentativa de prolongar o máximo possível sua infância e suas

transformações por meio da poesia. Afinal, além de Fita-Verde estar inserida na

dimensão do tempo do imaginário, ―nada pode dar ideia da dimensão da mudança

ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela reproduz no estatuto

da imaginação‖ (AGAMBEN, 2005, p. 33).

A porta da casa da avó, na qual se entra antes de abrir, subvertendo-se a lógica,

sugere – com a bênção de Deus – a entrada para um outro universo, aparentemente

místico, muito diverso daquele a que as asas ligeiras de Fita-Verde a levaram: ―Vai, a

avó, difícil, disse: — Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe‖

(ROSA, 2009, p. 115).

Ao contrário das ―bátegas de benção‖ da ―profetisa‖ mãe de Brejeirinha, que

sugeriam um caminho de alegrias, a benção da avó de Fita-Verde, ―rebuçada‖ na cama,

a dificuldade com que a avó pronuncia as palavras – um ―falar agagado, fraco e rouco‖

–, o ferrolho de pau da porta, a arca, o tempo escasso, todos os elementos presentes

passam a sugerir opressão, o peso da vida e da matéria. O que Fita-Verde sente é

espanto, pois está diante de algo inevitável e imprevisível. Também sente tristeza, ao se

dar conta de que perdera no caminho sua grande fita verde no cabelo atada. Voltamos o

olhar à fita verde, que, como sabemos, fora por ela inventada, como um amuleto

mágico, um adereço para satisfazer sua vaidade e feminilidade, assim como foram

inventados os elementos que compuseram o universo do ―tudo era uma vez‖, o da

inocência, o da infância. Tudo isso fora perdido junto com a fita, o que justifica sua

tristeza.

Na compilação de Perrault, Chapeuzinho Vermelho e a sua avó são brutalmente

devoradas pelo lobo. Contudo, esse final, ao mesmo tempo em que apresenta cenas de

violência, é interpretado como a culminância do simbolismo de uma história de

sedução, em que a inocente Chapeuzinho fica curiosa e se impressiona com os atributos

físicos – braços grandes, pernas grandes, orelhas grandes, olhos, boca... – de um lobo

astuto e sedutor. Enquanto o conhecido diálogo entre Chapeuzinho e o lobo assume tom

patético ou mesmo cômico, as indagações de Fita-Verde à avó denotam um tom

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melancólico. Além disso, há uma gradação do sofrimento derradeiro da avó diante da

morte. Ela ―murmura‖, ―suspira‖, ―geme‖:

— Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!

— É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…‖ — a avó

murmurou.

— Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!

— É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta… — a avó

suspirou. — Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto

encovado, pálido? — É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha

netinha…‖ — a avó ainda gemeu. (ROSA, 2009, p. 116).

Há, contudo, um saber nas respostas da avó que levam Fita-Verde não só à

percepção do acontecimento que assiste, mas também a um gesto diferente: se antes

perguntava, agora ―Gritou: ‗Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!...‘‖. O saber humano,

como afirma Agamben (2005, p. 27): é um ―aprender somente através de e após um

sofrimento, o que exclui toda possibilidade de prever, ou seja, de conhecer coisa

alguma‖ (AGAMBEN, 2005, p.27). O limite, todavia, que separa as esferas do saber

humano e do saber divino é justamente a morte, o fim último da experiência. Marco

final da experiência da avó, mas inicial para Fita-Verde: um novo espaço-tempo para

experimentar a vida, cujo pilar assenta-se em: ―Saiu, atrás de suas asas ligeiras‖.

Com a morte da avó, Fita-Verde se vê diante do desconhecido, campo aberto

para o experimentar. O narrador confirma:

Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.

Gritou: — Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo

frio, triste e tão repentino corpo. (ROSA, 2009, p. 116).

No final do conto, a estrutura da frase – Fita-Verde mais se assustou, como se

fosse ter juízo pela primeira vez –acentua o ato de assustar-se e negativiza, pelo

imperfeito do subjuntivo, o ter juízo pela primeira vez. Indica, porém, possibilidades

para a personagem. O narrador expande a narrativa, o imaginário: Fita-Verde ―Gritou:

— Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!… / Mas a avó não estava mais lá, sendo que

demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo‖. Um vão: entre um

lobo e uma avó, uma meninazinha sem fita verde no cabelo.

Embora unido ao universo do conto de fadas, o conto de Rosa acaba por recusar

a dimensão providencial daquele. Não há, acalanto, não há o felizes para sempre, ou

mesmo a moral, ou o ensinamento, a ser copiado, reproduzido. A leveza, à concepção

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de Calvino, se materializa como travessia poética na forma como Rosa escreve e no

projeto de busca da personagem: há um vazio a ser preenchido, pois ―a avó não estava

mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo‖.

Vazio, entretanto, como espaço aberto para experiências, afinal, muito antes, Fita-

Verde, ―ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o

outro, encurtoso‖.

É no louco e longo caminho que Fita-Verde encontra ―sobejadamente‖ a vida,

longe do encurtoso mundo das regras. Na bagagem traz a imaginação, a liberdade, a

poesia, o encantamento, o desencanto, ―e o cesto vazio, que para buscar framboesas‖ –

salvo-condutos para a vida adulta. Narrador e personagem sabem que ―a experiência é

incompatível com a certeza‖, disse também Agamben.

Além disso, notamos neste conto a presença das três acepções distintas que a

leveza literária pode assumir, conforme elencadas por Calvino (1990): tecido verbal

quase imponderável; a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no

qual interferem elementos sutis e imperceptíveis; imagem figurativa da leveza com

valor emblemático.

Consideramos ainda que a poesia de Rosa não só compreende o mundo sob outra

perspectiva e usa a literatura como uma reação ao peso de viver, mas também, à

maneira de Perseu e suas sandálias aladas, atribui à personagem Fita-Verde a qualidade

de asas ligeiras e a capacidade de dar às costas à sombra que lhe vinha correndo em

pós. Há também em Rosa uma outra significação para a morte que pode tecer

semelhanças com a nova ótica, lógica e meio de conhecimento e controle com a qual

Calvino busca as imagens de leveza. Essas imagens de leveza não devem, em contato

com a realidade, dissolver-se em sonho.

3.3 Miguilim e a saudade do que não vê

Campo Geral, publicado em 1956, é uma narrativa pertencente a Manuelzão e

Miguilim: Corpo de Baile (2016), obra que Guimarães Rosa classifica como um

romance. Trata-se, aliás, de sua história predileta: ―Nela acho tudo o que já escrevi até

agora e talvez mesmo tudo o que venha a escrever na minha vida. Nesta história está o

germe, a semente de tudo‖. Rosa muitas vezes declarou e confirmou essa predileção a

Vicente Guimarães, conforme é relatado em Joãozito (2006, p. 113):

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É difícil dizer qual o livro (da gente) preferido. A gente sempre gosta de mais

de um livro futuro, que pensa ainda escrever. De qualquer modo, entretanto,

posso dizer sinceramente que, de tudo que escrevi, gosto mais é da estória de

Miguilim (o título é ―Campo Geral‖), do livro Corpo de Baile. Por quê?

Porque ela é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez

que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas, o porquê, a gente

não sabe, são mistérios do mundo afetivo (ROSA apud GUIMARÃES, 2006,

p. 168.)

Apesar de ser uma história contada em terceira pessoa, apresenta o foco

narrativo de ―um certo Miguilim‖, nome pelo qual atualmente a narrativa é mais

conhecida. Miguilim é um menino de oito anos, de sensibilidade excepcional e

imaginação ingênua. O nome Miguilim é uma variação infantilizada de Miguel, nome

bíblico de arcanjo. ―Miguim‖, de origem indígena, remete ao fato de ser um menino

mini, pequeno, frágil, miúdo, mirim. Esse menino e sua família vivem no Mutum,

lugarejo situado em um ―recanto oculto da roça, com seu emaranhado de conceitos, atos

e ritos, costumes rudes e paixões selvagens‖ (RÓNAI apud ROSA, 2016, p. 20). Rónai

(2002, p. 23) descreve a personagem à mercê das travessias de sua infância repleta de

fragmentos, sombras, luzes e cores, em ―Notas para facilitar a leitura de Campo Geral,

de J. Guimarães Rosa‖:

Criança de forte curiosidade e sensibilidade aguda, Miguilim, em busca de

respostas às muitas perguntas que lhe fervilham no íntimo, pouca orientação

recebe de seu ambiente primário e tosco. É ele mesmo que tem de interpretar

o mundo com o auxílio da própria inteligência intuitiva, partindo das noções

fragmentárias que lhe inculcou o meio, e de formular o sentido de suas

experiências para si mesmo na linguagem concreta e colorida que lhe foi

naturalmente transmitida (RÓNAI, 2002, p. 23).

O narrador de Campo Geral tem seu ponto de vista adjunto ao olhar do menino,

baseando-se no eu pessoal e no eu da experiência; um ligado à infância

(espontaneidade), o outro, à fase adulta (maturidade). Estilisticamente, a indistinção

entre adulto e criança cria no leitor o ―sentimento de infância‖ ao qual se refere Lisboa

(1991, p. 172). Sentimento que é forte principalmente no protagonista Miguilim, pois

reside na busca existencial do menino em oposição à sua vontade de permanecer

criança: ―ser menino, a gente não valia para querer mandar cousa nenhuma‖ (ROSA,

2016, p. 50)

A relação de Miguilim com a vida, o cenário onde vive, o espaço tão longínquo,

o tempo, os sentimentos e os seus ritos de passagem estão, sobretudo, ligados à palavra.

É como se o universo percebido pelos olhos e pela sensibilidade de Miguilim fosse

revelado a um expectador privilegiado. A forma como isso acontece, como o narrador

elabora as histórias, colocando a criança como difusora de seus próprios sentimentos

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antagônicos em um contexto em que criança não tem voz, é a força motriz dessa obra.

Para Rosa, lembremos, palavras são ―apenas mágicas‖ (ROSA apud LORENZ, 1991,

p.83).

Henriqueta Lisboa, ao mencionar o ―sentimento de infância‖ em Rosa, vê o

escritor como poeta que brinca com as palavras, diverte-se com seus mitos – tanto

quanto o menino com seus brinquedos – e promove a renovação da vida por meio da

arte, como uma atividade lúdica. O ―eu profundo‖ de Rosa, de ―natureza infantil,

instintiva, emotiva‖, com ―radiante espontaneidade‖ criou ―Miguilim‖, obra de gênero

indefinível em que, segundo Lisboa (1991, p. 176):

Persiste e sobrevive a infância pela intensidade com que se projetam os

estados de alma do autor, pela animação de suas imagens, sutilezas de

sugestões, justeza de expressão.

Assim, por fenômeno de empatia, conduzidos a um mundo interior que já nos

pertence, temos a sensação de infância dentro de uma absoluta lírica.

Embora nada possa ser afirmado concretamente, muito se falou, por meio da

crítica, que Miguilim sugere e infância de João Guimarães Rosa como uma espécie de

autobiografia, ―biografia da infância‖, como sugere Lisboa (1991, p. 174), ―evocações

colhidas para efeito de conjunto e tessitura da fábula‖ apresentam uma boa dose de

transferência e vestígios da infância do autor.

Essa visão é confirmada na leitura de Joãozito – A infância de João Guimarães

Rosa, em que Vicente Guimarães reúne cartas e lembranças acerca da vida e da obra do

sobrinho, com quem fora criado junto. Ele afirma que muitas cenas da meninice de

ambos são descritas em Campo Geral. Das felizes lembranças, enumera o hábito de

gritar os nomes das pessoas linguarudas para que todos os milhos de pipoca

estourassem, o jogo de malhas, o pegar vagalume, a crença de que menino virava

menina e menina virava menino se atravessasse por baixo do arco-íris. Também a ideia

de transformar sabugos de milho em brinquedos, como em bois e carrinhos de boi, que,

aos olhos das crianças do Mutum, eram os brinquedos mais bonitos de todos. Rosa

também levou para Miguilim o sentimento de ser incompreendido pelo pai, a braveza da

avó e a sua miopia, que, assim como o protagonista, Rosa só descobriu mais tarde.

(GUIMARÃES, 2006, p. 144, 115).

Desde o início da narrativa, percebe-se que o protagonista Miguilim tem uma

visão de mundo especial, que se caracteriza não só por sua miopia, mas também por sua

capacidade de revelar horizontes de pureza, genuínos, selvagens, anteriores à lógica e,

por isso, capaz de atingir à plenitude e de enxergar aquilo que os adultos, com suas

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visões embaçadas pela sisudez, pela opressão, pela dureza da vida e pela descrença, não

conseguem mais ver. A miopia de Miguilim representa, portanto, uma duplicidade –

elemento tão comum na obra de Guimarães Rosa. Constantemente, ele busca

compreender o mundo que é oculto pela dificuldade do protagonista em enxergar, ou é

revelado progressivamente por meio de sua imaginação, adquirindo nuances de poesia.

De acordo com Lisboa (1991, p. 177): ―Não importa o que o menino viu ou deixou de

ver, mas o que ele pressentiu, imaginou, idealizou e aureolou, pelo condão de sua

própria sensibilidade.‖

O narrador de Campo Geral conduz seu discurso nos pensamentos e na voz do

menino Miguilim, caracterizando uma onisciência seletiva, repleta de inocência,

angústias e sentimentos de infância, além de empatia pela matéria narrada e adesão ao

discurso das personagens. Ocorre aqui a diluição da voz do narrador e a da personagem,

formando uma linguagem amalgamada de ambos, um discurso dialógico e polifônico da

enunciação, que nem sempre se dá pelo discurso direto ou indireto. A aproximação é

tanta que a fala do narrador e fala do personagem se confundem, assim como já

descreveu Rónai ―(2001, p. 18): ―uma passa a palavra ao outro, sem que notemos

qualquer mudança de plano‖. É esse o jogo que caracteriza a obra Corpo de Baile e,

consequentemente, Miguilim.

Um dos recursos estilísticos que contribuem para essa aproximação e para essa

mistura narrador-personagem é a constante ausência de artigos antes dos nomes dos

membros da família, como em: ―Mas tio Terêz, de bom coração, ensinou-o a armar

arapuca para pegar passarinho‖ (ROSA, 2016, p. 27). Lisboa (1991, p. 176) ressalta

também a arte minuciosa de Rosa que, além de batizar o herói com um nome no

diminutivo, à feição de tantas rimas para acarinhá-lo, há uma porção considerável de

meiguices, como ―pertim, sozim, lugarzinho, menorzin, passarim‖. Essa é uma forma

de o leitor vivenciar o olhar de Miguilim de um jeito mais próximo da realidade dele,

menino míope e poeta do sertão.

Por meio de um narrador onisciente, que reproduz de maneira mágica o olhar do

míope e maravilhado Miguilim, conhecemos um labirinto de conceitos acerca do

universo adulto e das lições da natureza. Conhecemos também a sua relação com as

demais personagens, em um mundo onde coexistem personagens infantis, como seus

irmãos Dito, Drelinha, Chica, Tomezinho, seu amigo Grivo, os maldosos meninos

Liovaldo e Patori, os sonhadores, como sua mãe, seu tio Terêz, seo Aristeu, as

personagens marginais, como Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, e personagens

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endurecidos e disciplinadores como seu pai e sua avó Izidra – quando esses faltam, os

dias e as noites no Mutum são mais bonitos e até o café é menos amargoso e

―desgostável‖ – e várias das que vivem e passam pelo Mutum, cujas múltiplas vozes e

olhares interferem no imaginário de Miguilim.

O nosso objetivo neste estudo é, por meio do olhar mágico e infantil do

protagonista Miguilim, penetrar no universo de sua infância e apreender não só suas

percepções, sensações, pensamentos, medos, angústias, visão de mundo, mas também as

formas como incorpora os segredos do mundo dos adultos, as lições da natureza e dos

bichos, a sabedoria de Dito, e os milagres que, só para ele e seus olhos míopes e poetas,

ganham novas dimensões e sentidos mágicos. Não há a pretensão de analisar todas as

passagens da narrativa. Por isso, consideraremos em Miguilim alguns pontos em

comum com as narrativas analisados anteriormente, Partida do audaz navegante e Fita

verde no cabelo. Como pontos de semelhanças, destacamos: o cronotopo, sempre um

recanto oculto e remoto na roça, próximo à natureza, em um tempo não definido;

personagens que se movimentam e vivenciam ritos de passagem e adquirem

experiências, ainda que imaginárias; o ato de contar/criar histórias como forma de se

prolongar a infância ou transformar uma realidade; os elementos mágicos ligados à

natureza, como chuva, sol, vento, os animais, o mar, cores, luzes e sombras; os

elementos que se opõem à infância, como a morte, os adultos, as responsabilidades, a

maldade.

Considerando que a infância representada por Miguilim, e também por seu

irmãozinho Dito, submete-se a momentos simbólicos, que aqui denominamos ritos de

passagem, analisamos também o movimento de passagem de Miguilim para o mundo

adulto, a modernidade, de modo sucessivo, por meio de diferentes formas de

manifestação.

Alguns desses ritos de passagem, como o rito crismal, com o intuito de o salvar

do pecado e da morte espiritual, são realizados logo no início da narrativa. Na

companhia de seu tio Terêz, sabemos que Miguilim faz uma viagem para ser crismado

por um bispo que passava no Sucurijú, região relativamente distante de Mutum. Trata-

se de um rito de caráter sacro, de legitimação, de agregação. Embora tenha sido

realizado sem a presença de seus pais, visa à unidade de um indivíduo com sua família,

sua sociedade, com a Igreja, como corpo de Cristo.

No caminho, Miguilim se recorda de ―sumidas coisas‖. Entre as difusas

lembranças do menino, aparecem frutas que experimentava, viagem em arro de boi, um

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peru que o deixara muito encantado, pois era ―coisa mais vistosa do mundo‖, um

menino que lhe fazia caretas antes de agredi-lo com uma pedra. Sabemos, também, que

houve um outro rito que antecedeu o rito oficial, o batismo de sangue, de que

participaram Miguilim, seu pai, sua mãe, sua avó Izidra, a falecida vó Benvinda e um

tatu agonizante:

– ―Traz o trém...‖ Traziam o tatú, que guinchava, e com a faca matavam o

tatú, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia. –

―Foi de verdade, Mamãe?‖ – ele indagara, muito tempo depois a mãe

confirmava: dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e que o

banho no sangue vivo do tatú fora para ele poder vingar. (ROSA, 2016, p. 28)

Esse rito é concebido por sua família como um feitiço de cura, sendo o sangue

do tatu o elemento que pode salvar Miguilim da morte. O rito profano, de cura, pode

também ser entendido como um rito de agregação, o que justifica a afinidade do menino

com a natureza em todas as suas manifestações. Os dias de tempestades aterrorizantes,

os dias de sol e de brincadeira, as belas noites de lua e vagalumes marcam as alegrias e

as angústias de Miguilim ao longo da narrativa. Também são marcantes as relações do

menino com os animais, seja de medo, como macacos, corujas, seja encantamento,

como peru, vagalumes, pássaros e joaninha, seja piedade ou afeto, como a cadelinha

Pingo-de-Ouro. O fato de Miguilim ter sido banhado no sangue do tatu pode ser visto

como um marco que estabelece certa unidade com os seres do sertão. Chama-nos a

atenção a presença do pai e da mãe de Miguilim neste primeiro rito familiar, pois

sabemos que, mais tarde, haverá várias discórdias entre eles, especialmente em razão do

pai sentir ciúme de uma provável relação imprópria entre a mãe e o tio Terêz.

Na viagem que fez sozinho com seu tio Terêz, Miguilim ―padeceu tanta

saudade‖ enquanto esteve fora, de tudo e de todos. Descobriu que umedecendo as

narinas com cuspe, conseguia aliviar a aflição. Gostava também de molhar o lenço

quando davam com algum riacho nos secos caminhos das chapadas, como se o cuspe e

a água de riacho representassem a transformação, a continuidade ou a confirmação do

rito crismal.

Enquanto voltava para casa, Miguilim sofria de ansiedade e alegria por conta do

pensamento de que tinha um presente para sua mãe, com quem encerrava uma relação

edipiana. O presente era a notícia de que o Mutum era um lugar bonito. Sabia disso,

porque um moço desconhecido havia comentado, de um jeito de longe, de leve, sem

interesse, mas que lhe passou muita certeza. Até então, Miguilim não tinha muita noção

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do que era bonito ou feio. A mãe, que se doía de tristeza de ter de viver ali,

especialmente pelos demorados meses chuvosos, não deu valor ao presente.

A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada.

Era um presente; e a ideia de poder trazê-lo desse jeito de cor, como uma

salvação, deixava-o febril até nas pernas. Tão grave, grande, que nem o quis

dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim

que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe,

estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou

triste e apontou o morro; dizia: –‗Estou sempre pensando que lá por detrás

dele acontecem coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei

de poder ver...‘ Era a primeira vez que a mãe falava com ele um assunto todo

sério. (ROSA, 2016, p. 26)

Miguilim, claramente, apresenta uma situação muito diversa da de Brejeirinha,

em Partida do Audaz Navegante. Ao contrário da menina, ele não se sente acolhido

entre adultos, embora algumas vezes houvesse quem apreciasse suas histórias. Essa

sensação de não pertencimento se explica pela forma ―cartesiana‖ com que os

moradores do Mutum e a família de Miguilim viam a infância e as crianças do sertão.

Nhô Bernardo Caz, ou Berno, pai de Miguilim, tem a típica visão utilitária, racional,

prática e lógica da sociedade patriarcal, de quem precisa trabalhar sistematicamente na

roça para garantir o sustento da família. Para ele, não só Miguilim, mas todas as

crianças deixam de ser tratadas como crianças assim que demonstram certa habilidade

física para o trabalho, passando sem mediação a enfrentar os problemas e adversidades

do mundo adulto. Várias vezes sabemos por algum dos personagens, seja avó Izidra ou

alguém de fora, que Miguilim é magrinho, franzino, é dotado de uma estatura delicada

para a dureza do trabalho braçal. Uma outra condição, revelada somente ao final da

narrativa é que, por ser míope, Miguilim vive tropeçando, se assustando e se

confundindo com o que mal consegue ver. Mas o pai, em sua posição de autoridade,

procura ativar nos filhos a lógica do corpo como instrumento para o serviço na fazenda

e cobra sempre uma postura adulta de Miguilim, tanto nos afazeres da roça quanto em

relação ao medo de cobra e outros bichos que mal se conseguia distinguir no mato.

Ao contrário das expectativas de seu pai, Miguilim gostava de brincar de pensar,

inventar histórias. Além disso, ―não tinha vontade de crescer, de ser pessoa grande, a

conversa das pessoas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela

necessidade de ser brutas, coisas assustadas‖ (ROSA, 2016, p. 44). Sensível aos

acontecimentos que o cercam, embora sem compreendê-los com tanta sabedoria quanto

o irmão Dito, questionava sempre a crueldade do mundo e ―inventava outra espécie de

nojo das pessoas grandes‖ (ROSA, 2016, p. 60). Miguilim também não é imune ao

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sofrimento dos animais com quem convive no Mutum e se identifica com eles, sente

pena dos tatus caçados e se encanta ao observar aves e insetos: – ―por que era que um

bicho ou uma pessoa não pagavam sempre amor-com-amor, de amizade de outro?‖

(ROSA, 2016, p. 89).

O domínio paterno de seu pai, Berno representa, para Miguilim, a personificação

de tudo o que ele abomina e precisa enfrentar. Não que o pai não quisesse bem a

família, mas a dureza de sua vida sertaneja, que se resumia à luta para sustentar a

família a duras penas e à desconfiança da fidelidade da esposa, cravara-lhe raízes

profundas e fizeram dele um homem endurecido. Nesta passagem, vemos um exemplo

da visão do pai de Miguilim, quando um bezerro da fazenda morre:

Como o pai ficava furioso: até quase chorava de raiva! Exclamava que ele era

pobre, em ponto de virar miserável, pedidor de esmola, a casa não era dele, as

terras ali não eram dele, o trabalho era demais, e só tinha prejuízo sempre,

acabava não podendo nem tirar para sustento de comida da família. Não tinha

posse nem para retelhar a casa velha, estragada por mão desses todos ventos e

chuvas, nem recurso para mandar fazer uma boa cerca de réguas, era só cerca

de achas e paus pontudos, perigosa para a criação. […] Dava vergonha no

coração da gente, o que o pai assim falava. Que de pobres iam morrer de

fome — não podia vender as filhas e os filhos… Pudesse crescer um pouco

mais, ele Miguilim queria ajudar, trabalhar também. (ROSA, 2016, p. 57)

Há um momento bastante tocante na história, em que o pai de Miguilim deixa

que Pingo-de-Ouro seja levada por tropeiros que estão de passagem na fazenda. A

cadelinha, ―pertencida de ninguém‖, mas tão estimada por Miguilim, estava já velhinha,

ficando quase cega e, por isso, na visão do pai, não tem mais serventia na roça.

Miguilim, sem ainda estar ciente sobre sua ―vista curta‖, também se sentia assim, a par

do mundo dos adultos e, talvez por isso, cria uma relação de afeto e identificação com a

cadelinha, sentia que ela o compreendia. Os sentimentos das crianças eram ignorados

pela maioria dos adultos. Os sentimentos de Miguilim, o mais sensível de todos, mais

ainda.

Logo então, passaram pelo Mutum uns tropeiros, dias que demoraram,

porque os burros quase todos deles estavam mancados. Quando tomaram a

seguir, o pai de Miguilim deu para eles a cachorra, que puxaram amarrada

numa corda, o cachorrinho foi choramingando dentro dum balaio. Iam para

onde iam. Miguilim chorou de bruços, cumpriu tristeza, soluçou muitas

vezes. Alguém disse que aconteciam casos, de cachorros dados, que levados

para longes léguas, e que voltavam sempre em casa. Então ele tomou

esperança: a Pingo-de-Ouro ia voltar. Esperou, esperou, sensato. Até de

noite, pensava fosse ela, quando um cão repuxava latidos. Quem ia abrir a

porta para ela entrar? Devia de estar cansada, com sede, com fome. — ―Essa

não sabe retomar, ela já estava quase cega…‖ Então, se ela já estava quase

cega, por que o pai a tinha dado para estranhos? Não iam judiar da Pingo-de-

Ouro? (ROSA, 2016, p. 30-31)

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Por muito tempo, Miguilim padeceu sofrimento por ter sido obrigado a se

separar da cadelinha, ―esperou, esperou sensato‖, até se dar conta de que ela não

retornaria. Um dia ouviu a história do Menino Triste, cujo protagonista, batizado com

sua própria dor, achara no mato uma cuca. Cuca é uma personagem conhecida por ser o

―bicho papão‖ feminino. É representada como uma bruxa com feições de jacaré, que

afasta as crianças de seus pais e as engole, privando-as da segurança de se viver em

família, do amor dos pais e da luz. É a personificação de uma das principais angústias

da infância, mas Miguilim não sabe o que é uma cuca e se identifica com o menino

triste porque, assim como ele, perdeu seu animal de estimação. Esse pode ser

considerado mais um rito de passagem vivenciado por Miguilim, um rito de separação.

Na realidade, o início de uma série de ritos de separação, pois antecede uma série de

acontecimentos que preparam o menino para uma mudança mais significativa e

definitiva.

A visão de Nhanina, a bela e sonhadora mãe de Miguilim, aproxima-se do modo

como a infância é defendida por Benjamin (1985, p. 239), que aponta caminhos para a

magia da infância e de como descobrir, com ela e por meio dela, o mistério que emana

do mundo. Nhanina sonha sair do Mutum, queria ver além daqueles morros que

cercavam o lugar – aproximando-se do desejo de Miguilim de ver mais coisas, aquelas

―que o olho não dava‖. Esse desejo de ver além do que os olhos não dão conta é muito

semelhante ao condão da poesia. Mãe e filho tinham uma visão marcada pelo lirismo,

uma sensibilidade para a beleza e uma facilidade para criar imagens poéticas.

Um exemplo é a passagem em que a mãe aprecia as histórias inventadas por

Miguilim, diz que ele e Dito são muito ladinos e, para consolar o ciúme do caçula

Tomezinho, diz que ele é ―um fiozinho caído do cabelo de Deus‖. Miguilim, ―que bem

ouviu, raciocinou apreciando aquilo, por demais‖, comentou com o Dito que a mãe, às

vezes, era a pessoa mais ladina de todas‖ (ROSA, 2016, p. 84). Aos olhos de Miguilim,

sua mãe era a personificação da beleza e do amor. Percebemos o olhar poético de

Nhanina também na passagem em que partilha do encanto das crianças, especialmente

de Miguilim, pelos vagalumes e pelo mar:

A noite, de si, recebia mais, formava escurão feio. Daí, dos demais, deu tudo

vagalume. – "Olha quanto mija-fogo se desajuntando no ar, bruxolim deles

parece festa!" Inçame. Miguilim se deslumbrava. – "Chica, vai chamar Mãe,

ela ver quanta beleza..." [...] O vagalume. Mãe gostava, falava, afagando os

cabelos de Miguilim: - "O lumeio deles é um acenado de amor..." (...) Um

vagalume se apaga, descendo ao fundo do mar. – "Mãe, o que é que é o mar,

Mãe?" Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um

mundo d´água sem fim, Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. –

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"Pois, Mãe, então mar é o que a gente tem saudade?" (ROSA, 2016, p.74)

Miguilim, menino poeta, perfilhava a beleza das palavras da mãe. Assim como

os vaga-lumes e o mar estão presentes no relato de Brejeirinha, no momento em que o

navio do audaz navegante vira vagalumes, aqui o inseto encantador também é um

elemento mágico de transformação. O lume sugere efemeridade, intermitência,

fugacidade. A mesma luz que aparece depois nos olhos do gato Sossões roncando de

alegria: ―os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz dentro de outra, dentro

doutra, dentro outra, até não ter fim.‖ (ROSA, 2001, p. 52). A luz é um dos elementos

ao qual é atribuída a magia e simboliza os momentos de alegria para Miguilim. O mar

simboliza o longe, o mistério, a saudade, tudo aquilo que olhos poetas buscam diante do

cotidiano. Elementos, inclusive, que encantavam a outros personagens: ―Drelinha

espiava em sonho, da janela. Maria Pretinha e Rosa tinham vindo também.‖ A

capacidade de sonhar talvez seja a maior contribuição de experiência de linguagem de

Miguilim.

À noite, enquanto Miguilim ―esperdiçava‖ as coisas do dia, Dito guarda debaixo

da cama a garrafa repleta de vagalumes, talvez numa tentativa de guardar a beleza da

noite e extinguir a efemeridade do momento. É possível que essa passagem sugira um

marco, uma vez que, a partir dessa noite, ocorre uma sucessão de eventos trágicos na

vida do menino Miguilim, envolvendo desentendimentos em família, separações,

doenças e mortes.

Vivendo em um mundo à parte, para tentar compreender e apreender as relações

e os acontecimentos do mundo dos adultos, com sua visão míope e inocente, Miguilim

detém algumas estratégias. Muitas vezes, recorre à imaginação e à potência das coisas,

sempre com uma percepção sensível e poética do sertão. Outras vezes, quando necessita

ser tocado pelo mundo real, recorre à sabedoria de Dito, seu irmão, que é mais novo do

que ele. É, então, pelo olhar sábio de Dito que, muitas vezes, tanto Miguilim quanto os

leitores entram em contato com o mundo prático, mundo de gente grande. Talvez, em

razão da miopia de Miguilim e da dificuldade em ser aceito pelo pai, a infância seja

percebida, a princípio, de maneira díspar pelos dois irmãos. Enquanto a visão objetiva e

―adulta‖ de Campo Geral é apresentada por meio de Dito, Miguilim é quem traz o olhar

subjetivo, em busca da beleza do Sertão. Mesmo sendo mais novo do que Miguilim,

Dito era mais amadurecido e sensato no sentido de conseguir compreender as relações

complicadas da família. Dito apresenta uma astúcia e uma sabedoria que não eram

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próprias à sua idade, semelhante à de Nhinhinha, do conto ―A menina de lá‖. Com essa

personagem, ele compartilha do mesmo destino, como se a sabedoria, que deveria ser

conquistada com a experiência, tivesse vindo antes da hora e, por isso, a morte

prematura dessas personagens também.

Para Miguilim, seu irmão Dito, mais novo do que ele, ―era a pessoa melhor‖ que

―descarece‖ de olhar a tristeza (ROSA, 2016, p. 61). Miguilim e Dito, opostos e

complementares, são grãos de poesia tão distintos que, juntos, fazem a magia. Miguilim,

o aprendiz, é quem precisa aprender para saber, enquanto o pequeno Dito, os olhos de

Miguilim, o sábio, sabe de modo imediato, sem saber como:

O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma

certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia,

espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele

pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela

força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade. De

onde o Dito tirava aquilo? Dava até raiva, aquele juízo sisudo, o poder do

Dito, de saber e entender, sem as necessidades‖ (ROSA, 2016, p. 80).

Ao contrário de Miguilim, que gostava de ficar sozinho para pensar, Dito

―carecia de ir ouvir as conversas todas das pessoas grandes‖ e transmitia ao irmão o que

apre(e)ndia em suas observações do mundo adulto. Era o primeiro a perceber os

conflitos dos pais e o caso amoroso entre Maria Pretinha e o vaqueiro Jé. Miguilim

pensava que seria capaz de brincar com Dito a vida inteira, pois o considerava a melhor

pessoa, ―de repente, sempre sem desassossego‖ (ROSA, 2016, p. 55). É como se Dito

não tivesse a alma infantil, ―parecia uma pessoinha velha, muito velha em nova‖.

Mesmo sem a experiência de toda uma vida, Dito parece ter uma certa iluminação

espiritual, uma sabedoria precoce que o permitia se relacionar com as pessoas grandes

quase ―de igual para igual‖, causando imensa admiração em Miguilim:

Mas por que era que o Dito semelhava essa sensatez – ninguém não botava o

Dito de castigo, o Dito fazia tudo sabido, e falava com as pessoas grandes

sempre justo, com uma firmeza, o Dito em culpa aí mesmo e que ninguém

não pegava. (ROSA, 2016, p. 56)

A sabedoria de Dito era tamanha que ele usava de subterfúgios para tomar suas

próprias decisões e evitar as consequências. Era somente Dito quem conseguia conter as

maldades de Patori, menino maldoso que sempre debochava de Miguilim, aprontava

maldades semelhantes às do Saci. Patori não tinha pena dos animais, fazia pouco caso

dos meninos menores, Dito e Tomezinho, e tinha um ―olho ruim‖ que acreditavam ser

capaz de dar dor-de-cabeça nas pessoas. Era também Patori quem ensinava coisas ainda

impróprias para a idade de Miguilim, como lições sobre sexo: ―Sabe como é que

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menino nasce? Miguilim avermelhava. Tinha nojo daquelas conversas do Patori, coisas

porcas, desgovernadas‖ (ROSA, 2016, p. 45). Mas, quando Patori passava dos limites,

Dito inventava que o vaqueiro Saluz estava caçando ele para bater por conta do furto de

um laço e, assim, a paz se reestabelecia para Miguilim, pois Patori corria de medo para

perto do pai.

Um outro exemplo da esperteza de Dito é a passagem da árvore pé-de-flor. Seo

Deográcias, respeitado por ser curandeiro e entendedor de remédios, contara uma lenda

segundo a qual, se uma certa árvore de pé-de-flor plantada no quintal ultrapassasse a

altura da casa, alguém que ali morasse ficaria doente. Miguilim, então, que acreditava

profundamente nas superstições do sertão, fica angustiado e pede para que seu pai corte

a árvore, mas ele nega, não dando ouvidos ao menino ou à superstição. Dito, mais para

tranquilizar Miguilim do que por acreditar na lenda, mente ao vaqueiro Salúz que o pai

havia mandado cortar a árvore, e é prontamente atendido. Dito sabia qual seria a

primeira reação do pai assim que ele voltasse para casa, mas, esperto como era, já sabia

como se salvar da surra:

– "Menino, eu te amostro! Que foi que mentiu, que eu tinha mandado sentar

facão na árvore-de-flor?!" –"Ah, Pai, ressonhei que o que se disse, se a árvore

danasse de crescer, mais o senhor é que é o dono da casa, agora o senhor

pode bater em mim, mas eu por nada não queria que o senhor adoecesse,

gosto do senhor, demais..." E o pai abraçou o Dito, dizia que ele era menino

corajoso e com muito sentimento, nunca que mentia. Mesmo Miguilim não

entendia o sopro daquilo; pois até ele, que sabia de tudo, dum jeito não estava

acreditando mais no que fora: mas achando que o que o Dito falou com o pai

era que era a primeira verdade (ROSA, 2016, p. 58).

O ―sopro daquilo‖ que Dito acabara de fazer e que Miguilim não havia

entendido era o fato de modificar o passado por meio das palavras. É por meio desse

―sopro‖ mágico que Miguilim toma conhecimento da força transformadora de se contar

uma história. Desmanchando a realidade e a certeza de que o pai brigaria com os filhos,

a história de Dito, ―ressonhada‖ ou inventada, ganhara outra dimensão. Miguilim

percebe que a história inventada pode tornar-se concreta no mundo, como uma primeira

verdade. Tanto que, mesmo ciente de todo o ocorrido, fica em dúvida do que seria

realidade e do que seria invenção.

Dito usa constantemente de sua sabedoria até para ludibriar Miguilim e evitar-

lhe a tristeza. Quando Miguilim chorava de saudade da cadelinha Pingo-de-Ouro, Dito

sentia vontade de chorar também e inventa que devia ser pecado chorar de saudade de

cachorro. Em um dia em que o pai de Miguilim ainda estava implicando com o filho,

enciumado por conta da viagem com seu tio Terêz e pela relação de carinhos excessivos

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de Miguilim com a mãe, houve uma grande briga entre o casal. Berno ―xingava de

ofensa‖ Nhanina, a ponto de Dito confessar estar com medo de o pai agredi-la. Foi Dito

quem segredou o drama familiar ao irmão: ―– Eu acho, Pai não quer que Mãe converse

mais nunca com o tio Terêz... Mãe está soluçando em pranto, demais da conta‖ (ROSA,

2016, p. 32). As palavras encobertas pelas reticências de Dito dão ensejo a uma

profundidade escancarada de um possível adultério e despertam a curiosidade até sobre

a verdadeira paternidade de Miguilim, tão amigo de seu tio Terêz e tão parecido

somente com sua mãe. Há sempre um paradoxo entre encobrir e revelar o segredo de

Terêz e Nhanina e o que de fato era entendido por Miguilim e Dito: ―Miguilim entendeu

tudo tão depressa, que custou para entender‖.

Miguilim, com sua visão limítrofe, com a ingenuidade e pureza que lhe são

particulares, procura, dentro de suas limitações, compreender a relação amaldiçoada

entre sua mãe e seu tio. O seu querer bem a sua mãe dificultava associá-la a algo

pecaminoso, errado ou mau. Tanto que o desafeto de Miguilim por seu pai e por sua avó

Izidra era justificado: o primeiro era violento com Nhanina por ciúmes, e a segunda

desdenhava de sua moral. A Dito, pelo contrário, não escapavam certos sinais da

conduta da mãe. Percebendo a reação de Miguilim diante da briga, Dito tenta levar seu

irmão para longe dali, inventando o pretexto de irem ao rego ver os patinhos nadando.

Mas Miguilim, disposto a proteger sua mãe da ira de seu pai, num rompante, corre até

ela e a abraça. Diante da sua ousadia de interferir no conflito, ele é espancado pelo pai.

Ninguém o defende, nem mesmo sua mãe. ―Nem Vovó Izidra. E tanto, até o pai parecia

ter medo de Vovó Izidra‖ (ROSA, 2016, p. 32).

Na verdade, de todos os membros da família, o único que estava protegido da

dureza do pai era a avó Izidra, matriarca da família, mulher muito brava, muito cristã,

de grande senso de justiça e que, curiosamente, enxergava no escuro. Berno era

autoritário com cada um dos filhos – mais com Miguilim –, sentia ciúmes do irmão

Terêz e se desentendia constantemente com Nhanina, mãe de Miguilim, por quem vivia

uma paixão apoiada na incerteza da fidelidade. Miguilim já sabia que quando os adultos

não estavam se falando entre si, acabavam implicando mais com as crianças, como se

fosse preciso preencher aquele silêncio, alegando algum malfeito deles. Há vários

episódios ao longo da narrativa em que Miguilim e o pai se estranham, especialmente

nos momentos de instabilidade entre o casal, justamente porque Miguilim não suporta a

crueldade dele.

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Derradeiro, o Pai judiava mesmo com todo o mundo. Ralhava com Mãe,

coisas de vexame: ―Nhanina quer é empobrecer ligeiro o final da gente: com

tanto açúcar que gasta, só fazendo porcarias de dôces e comida de luxo!‖ O

dôce fazia era porque os meninos e ele Miguilim gostavam. Então, mesmo,

Vovó Izidra um dia tinha resmungado, Miguilim bem que ouviu: ―Esse Bero

tem ôsso no coração...‖ Miguilim mal queria pensar. Não tinha certeza se

estava com raiva do Pai para toda a vida (ROSA, 2016, p.102)

No dia da primeira briga, os irmãos pareciam já habituados a cenas de violência

e não deixaram os brinquedos ou ocupações para verem o que estava acontecendo.

Exceto Dito, leal, espiava de longe, para evitar que Miguilim sentisse vergonha de estar

de castigo no tamborete. Miguilim não se queixava, uma vez que o pior havia passado e

ele podia ―brincar de pensar, ali, no quieto‖, entendendo as coisas que faziam parte se

seu pequeno mundo. Ouvia o ―chorinho sem verdade da mãe‖, que em momento algum

viera vê-lo, comportamento que muito magoava Miguilim. Algumas lembranças e

constatações do menino misturam-se na voz do narrador, como o cachorro Gigão, que

salvara a vida de todos de uma urutu e, por isso, tinha livre acesso dentro de casa, as

formiguinhas na horta, caramujinhos, e a lembrança de seus passeios descalços o

remetia a outras lembranças, como ao bicho-de-pé, às broncas de Vovó Izidra, ao sapato

que usara quando se crismava, à figura do Bispo, tão grande que metia medo, vestido de

roxo, em vez de passar serenidade e penitência. Lembrava-se também das ameaças do

pai, de um dia colocá-lo em um castigo pior, no meio do mato, o que lhe remetia à

lembrança da história de João e Maria, de quem morria de pena e tinha vontade de

tornar a chorar. Miguilim se identifica e encontra os reflexos de seus sofrimentos nas

personagens pobres, pela situação de desamparo em que vive, tanto pela pobreza quanto

pelas dificuldades de ser acolhido como criança. Assim como acontece nos contos de

fadas, Miguilim perde a conecção com o tempo em que está ali e o que acontece ao seu

redor.

Dito, sabendo que não poderia conversar com o irmão de castigo, vinha de

longe, olhando para o outro lado e falando baixinho, trazendo notícias sobre tudo o que

os olhos de Miguilim não alcançam: a jeriza do pai, a chuva iminente que ameaça vir

brava, porque o pássaro tesoureiro estava dando rasante no curral. Ao perceber que está

seguro para continuar a conversa, comenta que é melhor não contar sobre a briga com

tio Terêz. E também sobre o que havia dito Mãitina, empregada da casa: para ela, tudo o

que haveria de acontecer, toda desgraça, era feitiço. Mãitina era negra fugida de

cativeiro, tão velha que não se sabia a idade, adepta da cachaça e dos rituais pagãos

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africanos. Quando rezava, era de um jeito ―porqueado‖: ―Véva Maria zela de graça,

pega ne Zezú põe no saco de mombassa...‖ (ROSA, 2016, p. 40).

Quando chega tio Terêz em casa, com um coelho morto ensanguentado,

Miguilim não aceita a licença do tio de sair do castigo. Não tem mais certeza se os

chefes da família, seu pai e a avó Izidra, ainda determinam que ele ―pode mandar

palavra alguma em casa‖ e permanece onde está, o que demonstra um núcleo familiar

instável e incoerente aos olhos de uma criança. Afinal, intuitivamente, Miguilim, desde

cedo, atribui valor à palavra. Avó Izidra dá licença para que Miguilim saia do castigo,

porque não quer que ele ouça a conversa que terá com tio Terêz, mas Miguilim escutava

perto da porta a avó expulsando o tio de casa, acusando-o de ―Caim que matou Abel‖,

em uma referência à primeira história de homicídio da humanidade, narrada em

Gênesis, primeiro livro da Bíblia, tanto a hebraica quanto a cristã. Miguilim sente muito

medo dos ―desatinos das pessoas grandes‖ e da possibilidade de alguém sair morto

dessa história, mas não concorda com sua avó, pois considerava Tio Terêz seu amigo,

mais parecido com Abel do que com Caim.

Sejam as feitiçarias de Mãitina ou as referências bíblicas da avó Izidra,

Miguilim, tocado pela magia e imaginação, atribui significados mágicos a tudo o que

acontece. Teme o temporal que ameaça cair como uma maldição, a correria de todos

para recolherem as peças do varal – roupinhas pobres de quem Miguilim sentia pena,

como se fossem crianças na chuva. O vento arrancando pedaço de árvores, estrondos de

trovão, a escuridão, tudo isso confere legitimidade ao suposto feitiço ou castigo divino

que assola a família, como se a noite escura de tempestade fosse engolir a tudo e a

todos. Dito, aparentemente, não sente tanto medo, mas é solidário a Miguilim:

Trovejou enorme, uma porção de vezes, a gente tapava os ouvidos, fechava

os olhos. Aí o Dito se abraçou com Miguilim. O Dito não tremia, malmente

estava mais sério. - "Por causa de Mamãe, Papai e tio Terêz, Papai-do-Céu

está com raiva de nós de surpresa..." - ele foi falou.

– Miguilim, você tem medo de morrer?

– Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente

todos morresse juntos...

– Eu tenho. Não queria ir para o Céu menino pequeno.

Faziam uma pausa, só do tamanho dum respirar. (ROSA, 2016, p. 38)

Diante da tempestade, todos são chamados para rezar, ato do qual a avó Izidra

faz questão e cuida com esmero, seriedade, velas bentas, porque, segundo ela, ―o

demônio estava despassando nossa casa, os homens já sabiam o sangue um do outro‖ e

somente a inocência das crianças poderia livrar a todos dos castigos. As palavras da avó

Izidra são dirigidas à Nhanina: ―... Só pôr sua casa porta a fora‖ ... – A nossa casa? E

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que o demônio diligenciava de entrar em mulher, virava cadela de satanás...‖ (ROSA,

2016, p. 41) Miguilim não entendia o ódio da avó contra sua mãe, que era tão bonita, e

só pensava em poder abraçá-la e beijá-la.

As lembranças e pensamentos de Miguilim, misturados à fala do narrador, vão

longe, dos enfeites do oratório feitos de ovos de nhambu, os saquinhos com os

umbiguinhos de crianças que, se o rato os roesse, o menino crescia para ser só ladrão,

até o questionamento de sua fé e a lembrança do dia em que ―tinha puxado o paletó de

deus‖, ao engasgar-se com um ossinho de galinha. É quando, por meio do amálgama de

vozes de Miguilim e do narrador, conhecemos um pouco da história da Mãitina e suas

crenças pagãs, que encantavam, ao mesmo tempo que metiam medo nas crianças.

Miguilim entendia que, no ―atrapalho da linguagem dela‖, o que ela dizia eram cantigas

de ninar e querer bem, mas tão condenadas pela avó, que a acusava de rogar demônios.

Conhecemos também um pouco da história da falecida avó Benvinda, mãe de Nhanina e

irmã da avó Izidra, que, quando moça, havia sido ―mulher-à-tôa‖. Um comportamento

que a avó Izidra condenava e atribuía também à sobrinha Nhanina.

É nesse momento que Miguilim e Dito questionam seus afetos, as consequências

de querer bem ou mal às pessoas de sua família, ou se deveriam gostar de Mãitina, uma

vez que ela iria para o inferno. É quando também, no escuro do quarto, do qual

Miguilim sente medo, sem se olharem, eles revelam a angústia do desamparo que

sentem e a promessa de nunca se separarem:

– "Dito, eu fiz promessa, para Pai e Tio Terêz voltarem quando passar a

chuva, e não brigarem, nunca mais..." "– Pai volta. Tio Terêz volta não." " –

Como é que você sabe, Dito?" "– Sei não. Eu sei. Miguilim, você gosta do

Tio Terêz, mas eu não gosto. É pecado?" "- É, mas eu não sei. Eu também

não gosto de Vovó Izidra.

(...)

Dito, se de repente um dia todos ficassem com raiva de nós – Pai, Mãe, Vovó

Izidra – eles podiam mandar a gente embora, no escuro, debaixo da chuva, a

gente pequenos, sem saber aonde ir?‖. ―– Dorme, Miguilim. Se você ficar

imaginando assim, você sonha de pesadelo...‖. ―– Dito, vamos ficar nós dois,

sempre um junto com o outro, mesmo quando a gente crescer, toda a vida?‖.

―– Pois vamos.‖ (2016, p. 42, 43)

As conversas noturnas entre Miguilim e Dito sempre trazem alguma mensagem

de sabedoria por parte de Dito, ou alguma descoberta por parte de Miguilim. É como se

a ausência de luz trouxesse a clarividência a ambos sobre os problemas fundamentais da

vida. Um exemplo dessas conversas é a passagem a seguir, logo após uma sequência de

injustiças aos olhos de Miguilim, sinais do tempo-do-ruim: o cachorro Julim ser morto

por um tamanduá, um marimbondo picar Tomezinho – isso era comum, sempre abelha

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ou vespa aferroava algum, ou alguém se machucava – e o touro Rio-Negro estranhar

Miguilim, que havia tentado fazer um carinho, e um mal-entendido entre Dito e

Miguilim, que se estapearam. Miguilim se sentiu tão triste por isso que colocou a si

mesmo no tamborete de castigo, mas Dito logo o perdoa e os irmãos passam o dia

refletindo sobre as maldades das pessoas e dos animais. As respostas para as questões

de Miguilim sobre a vida chegam sempre no escuro da noite, por meio das palavras de

Dito:

Mas, de noite, no canto da cama, o Dito formava a resposta: - "O ruim tem

raiva do bom e do ruim. O bom tem pena do ruim e do bom... Assim está

certo." "- E os outros, Dito, a gente mesmo?" O Dito não sabia. – "Só se

quem é bronco carece de ter raiva de quem não é bronco; eles acham que é

moleza, não gostam... Eles têm medo que aquilo pegue e amoleça neles

mesmos – com bondades..." " – E a gente, Dito? A gente?" "- A gente cresce,

uai. O mole judiado vai ficando forte, mas muito mais forte! Trastempo, o

bruto vai ficando mole, mole..." Miguilim tinha trazido a mula de cristal, que

acertava no machucado mão, debaixo das cobertas. "- Dito, você gosta de Pai,

de verdade?" "- Eu gosto de todos. Por isso é que eu quero não morrer e

crescer, tomar conta do Mutum, criar um gadão enorme" (ROSA, 2016, p.

89).

O sentimento de bastardia de Miguilim o assola durante quase todo o seu

percurso e, por isso, é comum Miguilim questionar seus afetos durante a narrativa. A

verdade é que Miguilim é, sim, querido e acolhido por seus irmãos, sua mãe, seu tio

Terêz, Mãitina e Rosa, sua avó Izidra, que sempre lhe beijava a testa, orava por sua

saúde, insistia para que ele se alimentasse e o abençoava quando achava que ele estava

dormindo. Mais tarde, ele descobre que é amado mesmo por seu pai, ainda que este seja

tão bronco em se tratando de demonstrar afeto, mesmo pela esposa. Enquanto Miguilim

ouve e tenta formar posições ante o comportamento hostil dos adultos, Dito, apesar de

mais novo, parece conhecer intuitivamente e aceitar as forças sociais e humanas, sem se

deixa abalar pela insegurança que provocam. Ao contrário, parece sentir-se pronto para

assumir o lugar do pai. Sonha ser vaqueiro e seguir o destino que sua família espera,

integrado ao Mutum. Até os últimos momentos de sua vida, ele revela o sonho de ser

fazendeiro a Miguilim, embora, ou ouvir o mugir do gado, admita: ―Mas depois tudo

quanto há cansa, no fim tudo cansa...‖ (ROSA, 2016, p. 95)

Paulo César Carneiro Lopes (2000, p. 197) traz a importância de Dito para o

aprendizado da personagem Miguilim, em sua trajetória de reconhecimento do outro e

de si mesmo, considerando-o revelação, iluminação, representante da palavra silenciada

da cultura popular, que é capaz de elaborar a sabedoria a partir de seu mundo. Dito é

uma criança com voz num contexto onde as crianças não a possuem. É quem oferece a

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Miguilim, sempre de forma sábia e amorosa, as condições para transitar livremente no

mundo dos adultos. As respostas de Dito sobre o sentido da vida não aparecem como

respostas prontas, acabadas, mas são resultados que se constroem a partir da relação dos

dois irmãos, dos diálogos constantes entre os dois. A visão de mundo de Miguilim é

tecida e modificada à medida que ele age e pensa o seu agir, e este seu pensar é

construído a partir do diálogo com Dito, o que ele pensa sobre o mundo, sobre Deus,

sobre religião, sobre as relações entre as pessoas, sobre a vida.

Assim como Dito, Miguilim também teme a morte, desde o início da narrativa.

Após o dia da chuva e da partida de seu tio Terêz, Miguilim sente dores e pensa que vai

morrer. Pensa em rezar por sua saúde, mas, pelo diálogo com sua avó Izidra,

percebemos como ele vive angustiado e como se sente desamparado em suas

inquietações:

Nem não estava com receio do trovão de chuva, a reza era só para ele

conseguir de não morrer, e sarar. Mas fingia, por versúcia - não queria

conversar a verdade com as pessoas. Falasse, os outros podiam responder que

era mesmo; falasse, os outros então aí era que acreditavam a mortezinha dele

certa, acostumada. – "Vovó Izidra, agora a gente vai rezar de oratório, de

acender velas?!" – ele mais quase suplicava. – "Não, menino..." – que não,

Vovó Izidra respondia – "Me deixe!" – respondia que aquela chuva não

regulava de se acender vela, não estava em quantidades. Ser menino, a gente

não valia para querer mandar coisa nenhuma. Mas, então, ele mesmo,

Miguilim, era quem tinha de encalcar de rezar, sozinho por si, sem os outros,

sem demão de ajuda. (ROSA, 2016, p. 50).

Mesmo rezando, Miguilim não conseguia afastar a ideia de que era ―héctico‖,

palavra que desconhece, e sente-se desenganado. Em face de uma situação de aflição,

mesmo que criada por ele, ele prefere se refugiar nas estórias, como se nelas

conseguisse um abrigo, ou mesmo

Então, ia morrer; carecia de pensar feito já fosse pessoa grande? Suspendeu

as mãozinhas, tapando os olhos. Em mal que, a gente carecia de querer

pensar somente nas coisas que devia de fazer, mas o governo da cabeça era

erroso – vinha era toda ideia ruim das coisas que estão por poder suceder!

Antes as estórias! (...) Miguilim tinha pegado um pensamento quase que com

sua mão (ROSA, 2016, p. 54).

Depois de ouvir a história de seu Sonde sobre um boticário que fez pacto com o

diabo, Miguilim decide fazer um pacto com Deus de que, caso não morresse dentro de

dez dias, não morreria mais. Assim, inclusive, ele teria tempo para iniciar uma novena.

Nesse meio tempo, os dias que seriam supostamente os últimos de sua vida, ele somente

pensava em brincar com Dito a vida inteira, a melhor pessoa, sempre sem desassossego

e que o ajudava sempre. É a Dito que Miguilim confia seus medos, suas angústias de

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menino. Dito, por meio de suas palavras, sempre deixa perpassar uma luz no escuro da

noite, antes de dormirem.

― "Dito, você já teve alguma vez vontade de conversar com o anjo-da-

guarda?" ― "Não pode, Miguilim. Se puder, vai p'ra o inferno..." ― "Dito,

eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de

donde, me afrontando..." ― "Deve de não, Miguilim, descarece. Fica todo

olhando para a tristeza não, você parece Mãe." ― "Dito, você ainda é

companheiro meu? De primeiro você gostava de conversar comigo" ― "Que

eu que eu gosto, Miguilim. Demais. Mas eu quero não conversar essas

conversas assim." ― "Você quer me ver eu crescer, Dito? Eu viver, toda a

vida, ficar grande?" —, "Demais. A gente brincar muito, tempos e tempos, de

em diante crescer, trabalhar, todos, comprar uma fazenda muito grande,

estivada de gados e cavalos, pra nós dois!" A alegria do Dito em outras

ocasiões valia, valia, feito rebrilho de ouro (ROSA, 2016, p. 61).

Ao mesmo tempo em que Miguilim demonstra muita fé cristã, admirada

especialmente pela avó Izidra, ele é supersticioso e muito ligado aos sinais da natureza,

dos ventos, das chuvas, e mesmo a presença da árvore pé-de-flor, que interpreta como

um mau agouro, como prenúncios de sua morte. O mesmo acontece em relação aos sons

dos animais: o pio da coruja, o guincho do tatu, o grunhir do porco – associado às más

previsões, segundo a tradição popular e amaldiçoado na tradição judaica –, o mugir das

vacas, o pio das rolinhas, tudo isso o menino interpretava como sua despedida. Esse

sincretismo pode ser percebido em sua construção imaginária, tanto sendo criança como

sendo fruto do universo sertanejo.

Logo que Miguilim se vê fora de perigo, após ―puxar o paletó de Deus‖, seu pai

fica aparentemente satisfeito em poder cumprir seu papel de pai: moralizá-lo, educá-lo

por meio da imposição do trabalho. Miguilim passa a ser incumbido de levar comida

para ele na roça e se alegra com isso, pois é uma forma de se sentir aceito, uma vez que

as implicâncias do pai diminuem. Ainda assim, o mato é um caminho que muito lhe

assusta. A passagem pelo mato significa, no percurso de formação da criança-aprendiz,

enfrentar as mais íntimas angústias no plano existencial. Perder-se na floresta é uma

experiência comum em contos de fadas, como Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho

e João e Maria. Mas, em vez de confrontos com lobos e bruxas, Miguilim é

atormentado por sua própria consciência, deparando-se com seu primeiro conflito ético.

Na volta da primeira vez em que foi exercer o serviço, encontra seu tio Terêz em um

dos caminhos da mata e este lhe pede que entregue um bilhete a sua mãe. Percebendo,

dentro de suas limitações infantis, que o bilhete é sinal de uma relação adúltera,

Miguilim vive momentos de impasse. Por um lado, seu tio sempre lhe foi afetuoso e

―amigo‖ e, por isso, o menino se sente obrigado a aceitar seu pedido, por outro, entende,

mesmo sem formular claramente o adultério, que a relação entre o tio e mãe desrespeita

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o pai: ―Mas, não poderia entregar o bilhete à Mãe, nem passar palavra a ela, aquilo não

podia, em pecado, era judiação com o Pai, nem não estava correto. Alguém podia matar

alguém, sair briga medonha.‖ (2016, p. 69).

Sendo um dilema de tão difícil solução para uma criança, Miguilim tenta

consultar seus ―oráculos‖, que são as pessoas em cujas palavras confia. Com Dito,

Miguilim se sente mais à vontade para perguntar sobre ele mesmo do que sobre o real

problema. Pela primeira vez, guardava dele o segredo sobre o que realmente o

preocupava: ―– Dito, mesmo você acha, eu sou bobo de verdade?‖ ―– É não Miguilim,

de jeito nenhum. Isso mesmo que não é. Você tem juízo por outros lados...‖ (ROSA,

2016, p. 71) Pelas palavras de Dito, sabemos que o ―juízo‖ de Miguilim é avesso ao que

se espera dele, mas o fato de não ser ―bobo‖ já o satisfaz. À empregada Rosa, a

abordagem de Miguilim é diferente. Ele busca parâmetros para sua conduta: ―Rosa,

quando é que a gente sabe que uma coisa que uma coisa que vai não fazer é malfeito?‖ –

―É quando o diabo está por perto. Quando o diabo está perto, a gente sente cheiro de

outras flores‖. (ROSA, 2016, p. 71) Dessa forma, Rosa alimenta o lado sensorial e

supersticioso de Miguilim. Por fim, pergunta a Mãe sobre o sentido de ―malfeito‖ e

recebe uma diáfana resposta, que muito diz sobre a personalidade de Nhanina: ― – Ah,

meu filhinho, tudo o que a gente acha muito bom mesmo fazer, se gosta demais, então

já pode saber que é malfeito.‖ (ROSA, 2016, p.71). Vaqueiro Saluz, ―valente e

geralista‖ responde que mal feito é ―quando os olhos da gente estão querendo olhar para

dentro, só, quando a gente não tem dispor para encarar os outros, quando se tem medo

das sabedorias‖. (ROSA, 2016, p.72).

As perguntas de Miguilim ficam cada vez mais persuasivas e as respostas cada

vez mais intricadas, provocando ainda mais curiosidade em Miguilim, até que Dito

invoca e avisa Miguilim que tanta pergunta pode gerar desconfiança. Segundo Lisboa,

(1991, p. 175) o bilhete é como um dilema moral confiado unicamente a Miguilim:

―Nenhuma resposta o ajudaria no difícil transe de resolver se entregava ou não o bilhete

cuja gravidade não podia aquilatar, mas já vislumbrava. Nenhuma resposta o ajudaria

senão a da própria consciência de sensitivo, por isso mesmo precoce.‖

Em uma tentativa de esquecer o bilhete, Miguilim vai jogar malha – um jogo de

pontaria que consiste em derrubar todos com uma ferradura – e percebe mais evidente o

―desfoque‖ causado pela miopia. No entanto, ele está tão perturbado com seu dilema

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moral que desconfia que sua dificuldade em enxergar era como um castigo por ter

aceitado entregar o bilhete.

Mas Miguilim não enxergava bem o toco, de certo porque estava com o

bilhete no bolso, constante em que Tio Terêz não queria pensar. Essa hora,

Pai tinha voltado da roça, estava lá dentro, cansado, deitado na rede macia de

buriti, perto de Mãe, como cochilava. Miguilim forcejava, não queria, mas a

ideia da gente não tinha fecho. Aquilo, aquilo. Pensamentos todos desciam

por ali a baixo. (ROSA, 2016, p. 72)

A miopia de Miguilim, mais do que uma dificuldade oftalmológica, aparece de

forma a atribuir um valor simbólico ao confronto que Miguilim enfrenta desde sempre

com o mundo ―turvo‖ dos adultos, a incerteza sobre o bem e o mal. Miguilim vive em

uma luta constante em enxergar e tentar resgatar o aparência perceptiva que detona a

beleza das coisas. Superstições a preceitos religiosos misturam-se em sua mente infantil

quando o medo é gerado pela dúvida sobre o que é certo ou errado. À noite, o medo de

Miguilim cresce associado aos sons da natureza, que sente mais intensamente sua

fraqueza e sua angústia diante do surgimento da sombra. O pavor que toma conta dele

diz menos respeito às assombrações do que à entrega do bilhete. Miguilim vive em

constante negociação com o seu microcosmo e cria para ele uma lógica interna, como se

fosse sempre castigado ou poupado por tudo de errado que fizesse.

Rezava, rezava com força: pegava um temor, até queria que brilhos doessem,

até queria que a cama pulasse. Conseguia era outro medo, diferente. O Dito já

tinha adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O outro herdava os

medos, e as coragens. Do mato do Mutum. Mas não era toda vez: tinha dia de

se ter medo, ocasião, assim como tinha dia de mão de tristeza, dia de sair

tudo errado mesmo, - que esses e aqueles a gente tinha de atravessar, varar da

outra banda. Cuidava de outros medos. Das almas. Do lobishomem revirando

a noite, correndo sete portelos, as sete partidas. Do Lobo-Afonso, pior de

tudo. Mal, um ente, Seo Dos-Matos Chimbamba, ele Miguilim algum dia

tinha conhecido, desqual, relembrava metades dessa pessoa? ROSA, 2016,

p.76)

A resolução do dilema partiu de Miguilim, que ―tinha de ser lealdoso, obedecer

com ele mesmo‖ e veio no momento em que ele se adentrou no mato, ―um mato

calado‖, onde ―Deus vigiava tudo, com traição maior, Deus vaquejava os pequenos e os

grandes‖ (ROSA, 2016, p. 77). Após tamanho sofrimento, do qual saiu transformado,

Miguilim assume ao tio, entre lágrimas, que não havia entregado o bilhete, cumprindo o

que era para ele um rito associado a uma imposição moral. Tio Terêz o consola, diz que

ele tem juízo, que fez bem em não ter dito nada e se despede, isentando Miguilim de

qualquer culpa ou tristeza. Miguilim se alegrou por uns instantes, como se ―um

passarinho cantasse, dlim e dlom‖. Mas outro desespero acomete Miguilim minutos

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depois, quando, ao se perder no meio do mato, alguns macacos que ele não conseguiu

distinguir o assustam. Em casa, Miguilim fica satisfeito por seu pai contar a todos e

brincar com o acontecido, pois, se está caçoando, não está aborrecido com ele. Das duas

histórias, a conhecida por todos, dos macacos, e a que se mantém em segredo, do

bilhete, Miguilim se vangloria por ser vencedor da segunda, apesar de seu pai e seus

irmãos se alegrarem com o susto da primeira. Lamenta apenas não poder contar ao Dito

sobre o seu aprendizado um segredo que, para ele, tinha ―valor de ouro‖.

Há muitas passagens na narrativa que deixam claro o fato de Miguilim remeter o

ouro somente às suas ―coisas‖ preferidas. Primeiro, à cadelinha Pingo-de-Ouro, que

muita alegria trazia ao menino e a quem Miguilim deu esse nome, provavelmente, por

ser pintadinha de amarelo. A segunda, era à alegria de Dito, que ―valia, valia, feito

rebrilho de ouro‖ (ROSA, 2016, p. 61). Mesmo morando em Minas Gerais, estado

conhecido pela extração do ouro na época do Brasil Colônia, tudo leva a crer que

Miguilim, tão pobre, não é familiarizado com o valioso metal, mas, intuitivamente, com

o que simboliza: a perfeição, a preciosidade, a iluminação, a luz do sol, a sabedoria, a

nobreza, a realeza, a masculinidade e a imortalidade. Foi esse o presente que Jesus,

recebeu, ao nascer do Rei mago Melquior, como reconhecimento de que aquela criança,

mesmo em sua pequenez e fragilidade, era o verdadeiro Rei.

A maior dor de Miguilim, até então, havia sido se separar da cadelinha Pingo-de-

Ouro. Aparentemente, essa separação fora apenas uma preparação para uma perda

maior. Um dia, Dito contou que quando ia espiar duas corujas em um buraco, elas

rodavam e diziam: ―Dito! Dito!‖ Isso assustou muito Miguilim que, como sabemos,

interpretava certos sinais da natureza como um mau agouro. Mais tarde, Dito corta o pé

em um caco de vidro, como se a má profecia se cumprisse. Ele, que era os olhos e o

mentor de Miguilim, passa a ficar na rede e, mais tarde, sua saúde piora ainda mais.

Assim, os papéis se invertem: Miguilim passa a trazer para Dito notícias sobre tudo o

que acontece na fazenda, sobre o que os animais faziam e onde estavam, sobre os

camaradas das roças vizinhas. Mesmo ardendo em febre e sentindo dores na cama, Dito

continua atento ao mundo adulto, com o qual é tão familiarizado, e ao fato de que sua

avó Izidra está sempre xingando sua mãe quando ninguém está olhando. ―Miguilim não

sabia, Miguilim quase nunca sabia as coisas das pessoas grandes.‖ (ROSA, 2016, p. 94)

Estava chegando a época de Natal, e a avó Izidra começava a montar o presépio.

Como Dito não podia acompanhar, Miguilim também não ia e começa a lhe contar

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histórias, das quais faziam parte os bichinhos do presépio da casa. O presépio montado

pela avó Izidra também contava uma história: primeiro eram colocados os animais,

Maria e José, e somente no dia do Natal, o menino Jesus era colocado na manjedoura e,

depois, os Três Reis, cada dia mais próximos da Lapinha. Mas os outros meninos

preferiram ouvir Miguilim a ver o presépio sendo montado. Dito, mesmo enfermo,

pedia que ele contasse mais, um sinal de que o mundo visto pela perspectiva de

Miguilim o encantava, assim como Miguilim aprendia com perspectiva de Dito. O que

Miguilim consegue é revestir o mundo criado por ele com uma linguagem tão poética

que sua palavra, segundo Huizinga (2000, p. 22), delimita um ―círculo mágico‖, espaço

dentro do espaço, suprimindo temporariamente o tempo e a vida quotidiana.

Mas então Miguilim fez de conta que estava contando ao Dito uma estória —

do Leão, do Tatu e da Foca. Aí Tomezinho, a Chica e aquele menino o

Bustica também vinham escutar, se esqueciam do presépio. E o Dito mesmo

gostava, pedia: — ―Conta mais, conta mais…‖ Miguilim contava, sem

carecer de esforço, estórias compridas, que ninguém nunca tinha sabido, não

esbarrava de contar, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o

entendimento maior. Se lembrava de seo Aristeu. Fazer estórias, tudo com

um viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, sabia: Deus mesmo era

quem estava mandando! — ―Dito, um dia eu vou tirar a estória mais linda,

mais minha de todas: que é a com a Cuca Pingo-de-Ouro!…‖ O Dito tinha

alegrias nos olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir

a vida inteira. (ROSA, 2016, p. 93).

A essa altura, Miguilim já conhece o valor das palavras, ―apenas mágicas‖,

como se Deus as enviasse. Essa é uma lição que havia aprendido com o próprio Dito, o

―sopro‖ daquilo no episódio da árvore de pé-de-flor. Essa também era uma lição

aprendida com seo Aristeu, que parecia ele mesmo ―desinventado de uma estória‖. Era

artista, cantador, violeiro, apicultor, adivinho, curandeiro e, também, contador de

―estórias‖. Miguilim sempre o considerou uma pessoa inspiradora, detentora do

domínio sobre as palavras. Se, segundo Soares (2002, p. 85), há um nivelamento da

linguagem do narrador de Campo Geral com o ―estágio da infância‖, pode-se dizer que,

no discurso de seo Aristeu, acontece uma duplicação desse mecanismo. De certa forma,

Aristeu é uma personagem que adequa seu discurso à compreensão de Miguilim, usando

palavras no diminutivo como ―abelhinha‖, ―poldrinho‖, ―pombinha‖, concluindo um

grupo semântico relacionado com a natureza, o que promove a identificação de

Miguilim, o encanto de sua Mãe, que o considerava ―um homem bonito e alto‖ e, ao

mesmo tempo, o desprezo de seu pai por seus conhecimentos da natureza e

sensibilidade artística.

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Grivo, amigo de Miguilim, também fora uma de suas inspirações, porque

contava histórias compridas, diferente de todas, de uma forma tão encantadora ―que a

gente ficava logo gostando daquele menino das palavras sozinhas‖ (ROSA, 2016, p.

82). Desde sua primeira aparição em Campo Geral, Grivo é caracterizado por seu

manejo com as palavras, o que é confirmado mais tarde, no conto Cara-de-Bronze, em

que reaparece como adulto, vaqueiro em busca do ―quem das coisas‖, isto é, da rima, do

acorde, das ―palavras-cantigas‖.

Miguilim reconhece com alegria seu dom e descobre que contar histórias poderia

não mudar o rumo das coisas, mas serviria para um entendimento maior, para uma nova

verdade, como no episódio da árvore de pé-de-flor. Uma história poderia ser contada e

recontada sempre que se precisasse, ―tudo com um viver limpo, novo, de consolo‖.

Miguilim pretende compor uma história, que seria a mais linda de todas, pois seria a

história de superação do episódio da perda de Pingo-de-Ouro e uma forma de eternizar –

e reaver – sua cachorrinha do coração, mas, diante da dor pela perda iminente de Dito,

não consegue.

Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho.

Quase que ele não podia mais falar. – ―Miguilim, e você não contou a estória

da Cuca Pingo-de-Ouro…‖ ―— Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso!

Eu gosto demais dela, estes dias todos …‖ Como é que podia inventar a

estória? Miguilim soluçava. — ―Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha

mesmo, ela há de me reconhecer…‖ ―— No Céu, Dito? No Céu?!‖ — e

Miguilim desengolia da garganta um desespero. (ROSA, 2016, p. 96)

A confirmação da pureza da infância e da amizade dos dois meninos está nas

últimas palavras de Dito, seu último momento de sabedoria e a último aprendizado que

quer transmitir a Miguilim antes de sua morte, ou ―encantamento‖, em uma tentativa de

consolá-lo.

―Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a

gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que

acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais

alegre, por dentro!…‖ E o Dito quis rir para Miguilim. (ROSA, 2016, p. 96)

No episódio do falecimento de Dito, que se inicia às vésperas de Natal, quando a

família se ocupa com a montagem do presépio, vemos acontecer o avesso do que ocorre

na narrativa bíblica, em Lucas, capítulo 2: as pessoas humildes visitam o Mutum, não

para louvar o Menino Jesus que nasceu, não por uma boa nova trazida pelos anjos, mas

para orar pela vida do menino Dito, menino sábio, bondoso e adorado por todos.

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Veio seo Deográcias, avelhado e magro, dizia que o Patori não era ruim

assim como todos pensavam, dizia que Deus para punir o mundo estava

querendo acabar com todos os meninos. Veio seo Aristeu, dessa vez não

brincava nem ria, abraçou muito Miguilim e falou, apontando para o Dito: -

―Eu acho que ele é melhor do que nós... Nem as abelhinhas hoje não espanam

asas, tarefazinha... Mas tristeza verdadeira, também nem não é prata, é ouro,

Miguilim... Se se faz...‖ Veio seo Brízido Boi, que era padrinho do

Tomezinho: um homem enorme, com as botas sujas de barro seco, ele

chorava junto, aos arrancos, dizia que não podia ver ninguém sofrer. (ROSA,

2016, p. 97)

Rosa já esclareceu em cartas aos tradutores a diferença entre ―seu‖ e ―seo‖,

sendo o segundo uma forma de tratamento que indica certa ―fidalguia‖. Sendo seo

Deográcias, seo Aristeu e seo Brízido Boi pessoas de mais instrução que as demais

personagens, há quem os compare com os Três Reis Magos. Esse é mais um dos

indícios de que a fé cristã e o pensamento mítico, mágico e sobrenatural coexistem ao

longo de toda a narrativa. Miguilim, menino de grande fé cristã, mesmo com a família

reunida em torno do oratório em uma casa enfeitada com presépio, em um momento de

desespero, pede para Mãitina fazer um feitiço para Dito não morrer, mas já era tarde

demais, a doença venceu: ―Mas aí, no voo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo

em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava.‖ (ROSA, 2016, p.

96)

Nos dias que se seguiram após a morte de Dito, Miguilim fica inconsolável, não

consegue imaginar como será a travessia de sua infância sem os olhos, a sabedoria do

irmãozinho e melhor amigo. Desse modo, percebemos mais um rito de passagem, em

que Miguilim não se reconhece mais, tamanha era a transformação pela qual era

consumido:

Todos os dias que depois vieram eram tempo de doer. Miguilim tinha sido

arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar. Quando

chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia

que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais

novas e as muito antigas. Mas, no mais das horas, ele estava cansado.

Cansado e como que assustado. Sufocado. Ele não era ele mesmo. Diante

dele, as pessoas, as coisas, perdiam o peso do ser. (ROSA, 2016, p. 99).

O sentimento de ―despertencimento‖ de Miguilim, de ter sido ―arrancado‖, pode

não ter se iniciado na morte de Dito, mas foi confirmado nesse episódio. A infância de

Miguilim, traduzida por sua percepção poética e pela capacidade de inventar histórias,

não resiste à tamanha dor, à qual se entregava com ―lágrimas quentes, maiores do que

os olhos‖. Ele tenta se lembrar das palavras exatas da mãe abraçada ao corpo de Dito,

tentava repeti-las, imitando a voz da mãe, numa tentativa de decorá-las para manter viva

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a memória de Dito, ―se não, alguma coisa de muito grave e necessária para sempre se

perdia‖ (ROSA, 2016, p. 100). Quando Miguilim perguntavam aos irmãos ou a avó o

que pensavam do Dito, mesmo estando tristes, ―só respondiam com lisice de assuntos,

bobagens que o coração não consabe.‖ Incapaz de criar uma estória de consolo para a

morte do irmão e atribuir sentido a um fato tão trágico e repentino, ele busca, então,

consolo com Rosa e Mãitina. É comum, nas narrativas de Guimaraes Rosa, as

personagens marginais ganharem voz, visto que a visão primitiva do mundo delas

aproxima-se da visão infantil de Miguilim. Somente Rosa e Mãitina pareciam capazes

de lembrar de Dito como o menino especial que era e de entender o sentimento de

Miguilim, ―no meio do sentir, mas um sentimento sabido e um compreendido

adivinhado‖. (ROSA, 2016, p. 100)

Mãitina, uma mulher muito ―imaginada, muito de constâncias‖ era

especialmente quem Miguilim procurava quando queria falar de Dito, pois ela lhe trazia

uma forma de consolo quando ensinava que o menino ―vinha em sonhos, acenava para a

gente, aceitava louvor‖. Em uma tentativa de superar a morte do irmãozinho, Miguilim

e Mãitina fazem um tipo de ritual, um enterro dos pertences e das roupinhas de Dito, em

uma forma alegórica de conservar o menino perto deles e tentar criar, assim, uma

extensão entre a vida e a morte.

O que eles dois fizeram, foi ela quem primeiro pensou. Escondido, —

escolheram um recanto, — debaixo do jenipapeiro, ali abriram um buraco,

cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito furtaram, para enterrar,

com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus guardados, trouxe

uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas, pedrinhas

amarradas com embira fina; […] Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos.

Tudo se enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com a terra,

depois foram buscar as pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão,

apertadas, remarcando o lugar; ficou semelhando um ladrilhado redondo. Era

mesma coisa se o Dito estivesse depositado ali, e não no cemiteriozinho

longe, no Terentém. Só os dois conheciam o que era aquilo. Quando chovia,

eles vinham olhar; se a chuva era triste, entristeciam. (ROSA, 2016, p. 100)

A personagem Rosa, obedecendo a um pedido de Dito, pelejava desde antes de

sua morte para ensinar o papagaio Papaco-o-Paco a chamar alto o nome dele, sem

sucesso. Até que, um dia, de repente, sem ninguém mandar ou ensinar, o papagaio

gritou ―Dito, Expedito! Dito, Expedito!‖. Para Miguilim, foi como um milagre, uma

grande satisfação e mais uma forma de eternizar a memória de Dito, de reinventá-lo na

voz do papagaio, uma vez que Miguilim, atordoado sobre seus sentimentos, já não

conseguia mais inventar histórias:

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Exaltado com essa satisfação: ele tinha levado tempo tão durado, sozinho em

sua cabeça, para se acostumar de aprender a produzir aquilo. Miguilim não

soube o rumo nenhum do que estava sentindo. Todos ralhavam com Papaco-

o-Paco, para ele tornar a esquecer depressa do que tanto estava gritando. E

outras coisas desentendidas, que o Papaco-o-Paco sempre experimentava

baixo para si, aquele grol, Miguilim agora às vezes duvidava que vontade

fossem de um querer dizer (ROSA, 2016, p. 101).

Exceto por Rosa e Mãitina, a morte de Dito marca a morte da conexão de

Miguilim com o mundo adulto e a vontade de contar histórias. Por mais que sempre

atribuísse significados poéticos às coisas, Miguilim perde sua fala, a voz que quase não

tinha entre os adultos, a vontade de conversar com os irmãos e mesmo com sua mãe. Os

diálogos com o pai, que já eram difíceis com a ajuda de Dito, tornam-se impraticáveis.

É como se Miguilim se perdesse de si mesmo e de sua infância, tanto por desconsolo,

como por insistência de seu pai, que acha que o menino se utiliza da tristeza como

desculpa para não ajudar na fazenda, por se sentir superior, por orgulho. Até que

acontece o salto determinante de Miguilim para o mundo adulto, quando ele vai

―cumprir calado o desgosto‖, nem triste nem alegre, de ir trabalhar com o pai na

fazenda.

Esta é uma passagem em que se vê a discrepância entre a rudeza do pai e a

sensibilidade do filho – ao mesmo tempo em que aparece uma dica da miopia de

Miguilim, não anunciada até o final da estória. Miguilim é atento a detalhes, insetos,

pedrinhas no chão do Mutum, miudezas vistas de perto, mas, seus olhos falham quando

se vê diante de um território adulto desconhecido. Quando é tomado pela tristeza, pelo

sentimento de injustiça e pela incoerência da maldade, ele passa a não distinguir formas

e temer as sombras, a ponto de tropeçar, errar alvo em brincadeira de malha e sentir

medo da mata escura.

Vinha com uma coisa fechada na mão. — ―Que é isso, menino, que você está

escondendo?‖ ―— É a joaninha, Pai.‖ ―— Que joaninha?‖ Era o besourinho

bonito, pingadinho de vermelho. ―— Já se viu?! Tu há de ficar toda-a-vida

bobo, ô panasco?!‖ — o Pai arreliou. E no mais ralhava sempre, porque

Miguilim não enxergava onde pisasse, vivia escorregando e tropeçando,

esbarrando, quase caindo nos buracos: — ―Pitosga…‖ (ROSA, 2016, p. 103)

Da mesma forma como Miguilim é muito atento às palavras, a leitura que ele faz

do mundo é, quase sempre, intercedida pelas cores e pela luz. Miguilim se sente

amedrontado pelo negro, pelo escuro, pela sombra, seja associado ao quarto da avó

Izidra, à sombra do mato ou ao touro Rio-Negro, que lhe machucara a mão uma vez.

Mas, sem dúvida, aos olhos de Miguilim, uma das mais importantes marcas visuais é a

cor vermelha. Está presente no sangue dos animais, inclusive o do tatu sacrificado para

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que Miguilim sobrevivesse e no coelho morto trazido por seu tio Terêz no dia da grande

briga. Já vimos em Fita Verde no cabelo que o vermelho aparece como oposição ao

verde, simbolizando desejo, sexo e paixão, mas também violência, agressividade, raiva,

revolução, crueldade e imoralidade. Erich Nogueira (2004, p 10), defende que o sentido

da cor, em ―Campo Geral‖, pode variar da cruel alegria dos vaqueiros que matam o tatu

à alegria de Miguilim diante das lembranças ―fugidas‖ e ―afastadas‖ das frutinhas

vermelhas espalhadas pelo chão em uma fazenda que visitou quando ainda era pequeno.

Das pintinhas vermelhas, as lembranças lhe vêm como um sonho:

Depois, na alegria num jardim, deixavam-no engatinhar no chão, meio àquele

fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo

era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas – cheiro

pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha. Doía. (ROSA, 2016,

p.28)

É essa alegria, esse ―cheiro de alegriazinha‖, que Miguilim vai perseguir na

narrativa. O movimento que se estabelece é, portanto, de reversibilidades: as frutinhas

têm o ―cheiro de alegria‖, a alegria tem o ―cheiro das frutinhas‖. Talvez, as experiências

representadas pelas framboesas, em Fita-Verde. Os sentidos com os quais Miguilim

apreende o mundo não se obrigam a fazer sentido. Certamente, as pintinhas vermelhas

que Miguilim encontrou na joaninha remetem-no a essa alegria ―fugida‖. O vermelho

aparece como um sentimento ―salpicado‖, respingado em pintinhas, como a luz dos

vagalumes, uma ―alegriazinha‖ suave, insaturada, em um vermelho que não chega à

densidade do sangue de um ato de crueldade.

A rudeza de Berno somada à inconformidade de ver o menino se relacionando

com o mundo de forma tão sensível e sensória afastam ainda mais pai e filho. A

melancolia e o silêncio de Miguilim são confundidos com sentimento de superioridade:

―O que ele quer é sempre ser mais do que é, é um menino que despreza os outros e se dá

muitos penachos.‖ (ROSA, 2016, p.102). O sentimento de rejeição de Miguilim torna-se

ainda maior quando o pai confessa que ―menino bom era Dito que Deus tinha levado

para si, era muito melhor tivesse levado Miguilim.‖ (ROSA, 2016. p. 105).

O conflito entre pai e filho chega ao limite quando Liovaldo, irmão mais velho

de quem ninguém mais se lembrava as feições, vem visitar o Mutum. Liovaldo é muito

parecido com Patori nas maldades, ou até pior. Miguilim não fez questão de ser amigo

do irmão, mas quando este humilhou o menino Grivo, de quem Miguilim gosta tanto,

não conteve o ódio e o sentimento de injustiça e partiu para cima de Liovaldo. O

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episódio resulta no pai quase matando Miguilim de pancadas, nu no alpendre, a ponto

de sua mãe, suas irmãs, Tomezinho, Rosa e avó Izidra, pela primeira vez, implorarem

chorando para que Berno parasse. Miguilim, ferido nos brios, não chorava. Aguentava a

surra pensando em uma vingança edipiana de que, quando crescesse, mataria o pai. No

meio da contrariedade, pensando em como o mataria, Miguilim começa a rir e seu riso

assusta o pai. Este é mais um rito de passagem e a prova do crescimento de Miguilim:

ele não tem mais medo de ninguém. Sente até um desprezo por todos, mesmo por sua

mãe, que nunca se posicionava em sua defesa.

Para evitar novos episódios de violência, Nhanina manda que Miguilim fique

uns dias morando com o vaqueiro Saluz. Sair de casa, desabitar a casa da infância, a

mesma casa que o acolhe e ama, aprisiona e maltrata, é mais um sinal de que Miguilim

se despede da infância. Ao mesmo tempo que queria ir, Miguilim temia que o vaqueiro

Saluz o tratasse com o mesmo desrespeito e desdém que via Berno tratando o filho. Mas

não é o que acontece, pois Miguilim torna-se seu pupilo nas primeiras funções do ofício

de vaqueiro e passa a ter mais percepção da luz do sol iluminando as flores formando

um ―amarelo de alumiado‖, talvez semelhante aos vagalumes que tanto o encantaram na

mencionada noite de alegrias, e tão diferente daquele mato escuro ―tudo tão sozinho,

tão escuro, o ar ali era mais escuro‖ do qual estava acostumado no Mutum. Ao contrário

do que acontece quando viaja com seu tio Terêz para ser crismado, Miguilim

―desprezou qualquer saudade‖ de qualquer pessoa de sua casa, exceto Mãitina e Rosa.

No último encontro entre pai e filho, diante do desprezo e da insubordinação de

Miguilim, Berno, em vez de agredir o filho, se desfaz de um dos símbolos de sua

infância: os passarinhos. Ao soltar os tico-ticos de Miguilim e destruir as gaiolas, o pai

talvez tenha libertado o filho e aniquilado sua prisão em relação à família: Miguilim não

mais sentia ódio ou medo pelo pai, nem um amor idealizado pela mãe. Miguilim não

fica atrás na réplica e ele mesmo resolve destruir todos os seus brinquedos: rodinha

d‘água, alçapões, sementes, insetos mortos, couro de cobra. Lisboa (1991, p. 175)

descreve essa passagem como o momento definitivo de sua maturidade:

Ao drama de ordem pessoal e à tragédia inelutável, segue-se o conflito com a

força maior, representada pelo domínio paterno contra o qual se insurge o

menino, ferido nos brios. A represália do pai é tremenda. Mas o menino que

tinha mesmo ―coisa de fogo‖, e estava nas ―tempestades‖, não fica a trás na

réplica. Pisa, quebra arrebenta e arrasta ele próprio os seus últimos

brinquedos em devastação total. Crescia de repente, era homem.

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Mas ainda lhe falta o rito final de separação. Miguilim amadurece a ideia de ir-

se embora e dedica-se à dureza do trabalho braçal como forma de realizar essa travessia,

a ponto de medir forças consigo mesmo. Fortemente atacado pela doença, Miguilim fica

de cama e não consegue mais distinguir o dia da noite, tomado pela cegueira e pela

escuridão que tanto o amedrontava. Não por mera eventualidade, Miguilim tem a

―barriguinha toda sarapintada de vermelhos‖. Dessa vez, o significado do vermelho na

forma de pintinhas que Miguilim associava à alegria atravessa-lhe o corpo,

transformando os sentidos da cor tanto em relação à vida quanto à morte. Miguilim vê o

pai chorar perto de sua cama, vê a disposição do pai em buscar o que fosse preciso para

que Miguilim melhorasse e sorri diante da certeza de ser amado por ele. Este é o

momento em que Miguilim supera seu Édipo: não deseja mais matar o pai. Pouco

depois, tem-se a notícia da tragédia: seu pai matara Luisaltino, personagem que pode

tanto ser amante de Nhanina quanto mediador do romance entre ela e seu tio Terêz. Em

seguida, ele se enforca de remorso. Somamos três mortes neste episódio, sendo a

terceira a infância de Miguilim. Ao contrário do que acontece com Édipo na tragédia,

Miguilim não é mais tomado pela cegueira e volta a distinguir dias e noites.

À medida que se recupera da doença, ressurge em Miguilim a vontade de ―de

poder tirar estórias compridas, bonitas, de sua cabeça, outra vez. Não queria nada.‖

(ROSA, 2016, p. 119). Logo recebe uma visita crucial de seo Aristeu, curandeiro à força

de alegria. Ele chegou transmutando tristeza em mel por meio do favo que trazia e por

meio de palavras que inspiram Miguilim mais uma vez:

―Miguilim, você carece de ficar alegre. Tristeza é agouría…‖

— Foi o Dito quem ensinou isso ao senhor, seo Aristeu?

— Foi o sol, mais as abelhinhas, mais minha riqueza enorme que ainda não

tenho, Miguilim. (ROSA, 2016, p. 117)

Miguilim, lembrando-se do conselho de Dito na hora de sua morte, e também de

sua alegria, que rebrilhava feito ouro, internaliza o seu aprendizado, reacendendo, então,

a sua visão poética do mundo. Para Lisboa (1991, p. 176), Miguilim adquire nesse

momento ―seus pequenos conceitos de conformismo – a que nem os poetas escapam‖:

Se o Dito em casa ainda estivesse, o que era que o Dito achava? O Dito dizia

que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro,

mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia?

Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais

com coisa nenhuma. (ROSA, 2016, p. 119)

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Veio a notícia da volta de seu tio Terêz ao Mutum, que também era a razão da

partida de sua avó Izidra. Miguilim se vê diante de uma nova organização familiar, sem

a presença daqueles que o oprimiam: o pai e a avó. Diante da indagação de Nhanina, se

o menino gostaria que ela se casasse com o seu tio Têrez, Miguilim mostra-se

indiferente, não se importa com a nova organização que se inicia e acha aquilo tudo uma

bobagem. Ele já está ciente de suas escolhas, apto a deixar a casa da família e a traçar

seu destino individual.

Segundo Resende (1988, p. 30), ao longo de sua trajetória, Miguilim descobre,

com alegria e tristeza, a vida, até chegar a uma relativa maturidade, quando está pronta a

passar a outro estágio do aprendizado.

Nesse ponto, final da narrativa, é capaz de ver o mundo com mais equilíbrio,

porque, tendo saído daquele estado caótico, nebuloso, do início, já é capaz de

formular alguns conceitos, principalmente aprendidos com Dito, o seu irmão.

Seguirá viagem, adiantando na experiência da vida e na vivência de reveses e

de alegrias, e ampliando a sua percepção da realidade. [...]

Assim, uma nova possibilidade de ver o mundo surge para Miguilim na forma de

Doutor José Lourenço, um médico que está por ali de passagem. Percebendo que o

menino tinha ―vista curta‖, pois apertava os olhos para poder enxergar, empresta os

óculos a Miguilim. Quando Miguilim coloca os óculos do doutor, este objeto tem

também um valor simbólico e mágico, pois é como a abertura de um portal para o

conhecimento. Ao mesmo tempo em que Miguilim se rompe com o ―medievalismo‖ da

infância do Sertão, onde a escuridão e a ignorância fazem as leis, ele parte para uma

concepção mais moderna do ―sentimento de infância‖. Ao colocar os óculos, finalmente

ele pode dar a si mesmo o presente que tanto gostaria de ter dado à mãe quando voltou

da viagem para o Sucurijú com seu tio Terêz: enxerga por si que o Mutum é um lugar

bonito e que o mundo pode vir a se tornar um lugar mais inteligível e menos confuso. A

luz de um novo tempo se abriu diante do menino, como mágica:

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo

novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os

grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas

passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta

coisa, tudo… (ROSA, 2016, p. 120)

A recuperação de seu olhar lírico e a entrada para a vida adulta, uma vez que,

agora sim, Miguilim poderia iluminar e desembaçar sua visão do mundo de gente

grande, são marcadas pela oportunidade de ir viver na cidade, aprender ofício, ver por si

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o que o olhar dele (até então) não dava – fosse pela carência biológica da miopia, pela

carência intelectual, pelas sombras e pela escuridão que tanto temia, pelo sentimento de

despertencimento, pelo olhar infantil ou até mesmo pela impossibilidade de perpassar os

morros do Mutum.

Miguilim, ao longo de sua infância, jamais se acostumou com o ―embaçamento‖

do mundo dos adultos ou com o desajustamento do mundo, justamente por ser como o

―menino poeta‖ de Lisboa (1991). Ele sempre manteve o encantamento e o

estranhamento, sempre esteve disposto a aprender meios de desdobrá-los em detalhes,

em poesia e, como lhe ensinou Dito, em alegria.

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Considerações finais

Nada em rigor tem começo e coisa

alguma tem fim, já que tudo se passa em

ponto numa bola; e o espaço é o avesso de

um silêncio onde o mundo dá mais voltas.

Guimarães Rosa

Iniciamos nossos estudos com o objetivo de refletir acerca das seguintes

questões: até que ponto as narrativas de João Guimarães Rosa com personagens crianças

operam o encantamento e o desencantamento de maneira a atribuir sentido ao rito de

passagem da vida infantil à vida adulta? Como as sutilezas que diferem e separam a

linguagem da infância da linguagem da vida adulta implicam ações mágico-poéticas

nessa ficção?

A primeira questão visa a refletir sobre os artifícios de encantamento

empregados por Rosa. Esses artifícios, mais do que características das narrativas

rosianas, funcionam como método de construção poética.

Por meio de suas obras em que crianças são personagens, percebemos que Rosa,

em vez de reproduzir a infância mantendo-se a uma distância segura do imaginário

infantil – a distância do adulto –, dilui seu discurso e seu olhar poético no discurso do

narrador e no discurso das personagens, tornando-os indissociáveis. Nesse viés, o autor

permite a criação de prismas de pensamento mágico-poético, como se a criação literária

assumisse a continuação ou a substituição das brincadeiras infantis. Um olhar atento às

sutilezas poéticas de Rosa, descobre, portanto, que o maravilhoso é dificilmente

demarcado. Verificamos em nossas análises que o maravilhoso se abriga dentro de

fronteiras permeáveis, especialmente em se tratando das narrativas rosianas.

Ao iniciar a análise de Partida do audaz navegante (2016), partimos do princípio

que o encantamento era ascendente e transcendente, pois a narrativa se dava em um

contexto em que uma menina faz renascer o ―sentimento de infância‖ das demais

personagens, tornando-se soberana em seu ato de narrar e encantar. Além de

ressignificar o amor e a vida, Brejeirinha é acolhida em sua infância pelas demais

personagens e pela natureza, que brumava, chuviscava e se iluminava, submissa à sua

narrativa, além de lhe acarinhar: ―Um ventinho faz nela bilo-bilo acarinha-lhe o rosto,

os lábios, sim, e os ouvidos, os cabelos.‖ (ROSA, 2016, p. 145) Ela é acolhida, acima de

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tudo, em sua capacidade criativa, em sua poesia. Ao final, o navio do audaz navegante

se transforma em vagalume e os guarda-chuvas se transformam em asas, a escritura

transcende.

Em Fita verde no cabelo, pressuporíamos que o movimento do encantamento

seria oposto, descendente, uma vez que a protagonista sai atrás de suas asas ligeiras

criando um caminho de experiências repletas de magia, até dar-se com a morte de sua

avó. Esse encontro seria, além de um rito de separação, o momento de desencanto. No

entanto, esse pensamento seria equivocado em se tratando de Rosa. Atribuir o

desencanto à personagem adulta ou à morte seria um engano, a nosso ver. A

personagem adulta, no caso, é a avó, que a amava. O desencanto não aconteceria na

presença do adulto, mas na sua ausência. Isso contradiz o pensamento que, na presença

da personagem adulta, acontece a perda ou a ruptura do encantamento. Além disso,

Rosa, três dias antes do seu encantamento, em seu discurso de posse na Academia

Brasileira de Letras ressignificou a morte, retirando dela o desencanto. ―As pessoas não

morrem, ficam encantadas… a gente morre é para provar que viveu,‖ (ABL)‖.

16.11.1967.

Em Miguilim, prevíamos a oscilação do encantamento, mas o olhar do menino é

muito mais um prisma mágico e poético do que uma visão limítrofe acerca do mundo.

Rosa faz do míope aquele que enxerga além, que, de minúcia em minúcia, de vagalumes

a joaninha, é capaz de ultrapassar a visão fechada. Trilhar os caminhos de Rosa é como

assumir o olhar de Miguilim. Paulo Rónai explica que o maior triunfo de Rosa está no

fato de fazer o leitor sentir o frescor das ―descobertas‖ e dos ―espantos‖ do menino

quando é introduzido no universo dos adultos (RÓNAI, 2002, P.23). Miguilim

familiarizava-se com o universo adulto por meio de um dos condões de seu

encantamento: o menino Dito. Na ausência deste, a maturidade – e os óculos –

trouxeram-lhe a claridade, o olhar mais longe, o verde dos buritis, o morro coberto de

algodão, a possibilidade de ver o mar, além de novas possibilidades em uma nova vida,

sem que ele se despedisse do condão poético. Podemos concluir que a presença da

personagem adulta, no caso de Miguilim, na figura de seu pai, principalmente, não

representa uma quebra ou ruptura ao encantamento, mas o estímulo para que a criança

recorra a esse encantamento. Encantamento este que é obtido por meio da palavra.

Para Rosa, (GUIMARÃES ROSA apud ROSA, 1999, p. 385), lembremos

sempre, as palavras transbordam do sentido comum, por dizerem mais do que dizem,

são ―apenas mágicas‖. Seguindo seu próprio conselho aos tradutores, ele as trata bem.

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Mais do que isso, atribui-lhes importância semelhante à palavra de Deus em Gênesis, na

criação do universo.

Em um dos prefácios de Tutameia, Rosa (2017, p. 92) desdenha o Hipotrélico,

um sujeito avesso à poesia, ―antipodático, sengraçante imprízido, falto de respeito com

a opinião alheia‖. Uma vez que ele não permite a invenção de palavra e da palavra, esse

sujeito começa por se negar a própria existência. Afinal, Rosa (apud LORENZ, 1991,

p.83) considera a criação de palavras como a metafísica de sua linguagem (o poeta no

papel de amo da criação). Além de assumir que meditar sobre a palavra é uma forma de

se descobrir a si mesmo e ser um caminho de redenção, de se aproximar de Deus.

Muitas vezes, o hábito de criar palavras invade o criador com ―imperiais manias‖,

especialmente no sertão, onde as pessoas, curiosamente, parecem se ocupar em

acrescentar mais beleza, riqueza e expressividade na língua.

Pode-se lá, porém permitir que a palavra nasça do amor da gente, assim, de

broto e jorro: aí a fonte, o miquirilho, o olho-d‘água; ou como uma borboleta

sai do bolso da paisagem? (ROSA, 2017, P. 93)

É Spina (2002, p. 34) quem explica o que de fato Rosa faz com as palavras:

moduladas na boca dos mágicos, segundo regras especiais, elas tornam-se verdadeiros

corpos tangíveis, realidades objetivas, animadas de vida e de virtudes criadoras. Mais do

que isso, Rosa faz-se, nas palavras de Drummond (apud ROSA,2016, p. 13),

―embaixador do reino que há por trás dos reinos, dos poderes, das supostas fórmulas de

abracadabra, sésamo‖.

Rosa é um poeta capaz de convencer que todos os nossos devaneios de criança

merecem ser rememorados. Bachelard (1996, p. 112) afirma a necessidade de embelezar

para restituir: uma vez que estamos longe de uma memória exata, que poderia ser

emoldurada e guardada, valemo-nos da imagem do poeta, que é capaz de devolver o

esplendor, ―uma auréola‖ às nossas lembranças, como se fosse possível lhe recuperar as

cores por meio da infância.

A infância vê o Mundo ilustrado, o Mundo com suas cores primeiras, suas

cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar nossas

lembranças de infância é o mundo da primeira vez. Todos os verões da nossa

infância testemunham o "eterno verão". As estações da lembrança são eternas

porque fiéis às cores da primeira vez. O ciclo das estações exatas é ciclo

maior dos universos imaginados. Assinala a vida dos nossos universos

ilustrados. Nos devaneios, revemos o nosso universo ilustrado com suas cores

de infância.

A influência mágica que Guimarães Rosa pede emprestada ao linguajar infantil

para realizar seus processos de inovação mais aventureiros, o ―sentimento de infância‖,

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produz o germe de sua poesia. Pelo pensamento poético, é possível obter intensos

momentos de regresso ao tempo acolhedor da infância e a superação de uma existência

restrita ao aqui e agora. São os poetas que nos auxiliam no reencontro com a infância

viva, permanente, mas que é a própria poesia que irá nos renovar: somos feitos para

respirar livremente. [...] E é nisso que a poesia – ápice de toda alegria estética – é

benéfica (BACHELARD, p. 25).

Para Barthes (1979), a literatura, incluindo-se aí obviamente a poesia, deve ser

para a criança uma brincadeira, um jogo; mas brincadeira no sentido de encenação:

Nela [na literatura] viso, portanto, essencialmente o texto, isto é, o tecido dos

significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da

língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida,

desviada: não pela mensagem de que ela é o teatro (p. 16-17).

Finalizar um estudo sobre a obra de Guimarães Rosa requer a abertura para

novos questionamentos. Não é nosso objetivo responder definitivamente a todas as

questões, muito menos de esgotar as possibilidades de leitura da infância nas narrativas

rosianas, mas, pelo contrário, é instigar outras tantas e dar margem a novas veredas.

Observamos que, aliás, a palavra ―criança‖ e ―infância‖ raramente aparecem nos

textos de Rosa. Todavia, a presença de Miguilim, Dito, Brejeirinha, Fita-Verde e,

também, Grivo, Nhinhinha, e tantos outros meninos e meninas inomináveis assumem,

como já defendeu Lisboa (1991), importância limiar e fundamental na obra de Rosa. Em

vez de simplesmente utilizar a linguagem, a literatura a transcende, fazendo com que o

poeta tome emprestado da criança a sua capacidade de criar seu próprio mundo,

reorganizando-o sob uma nova perspectiva.

Nosso desejo é que o fim deste estudo seja o prenúncio de muitos recomeços.

Queremos saber mais de João e sua magia poética. Além de descobrir se...

Tinha parte com… (sei lá

o nome) ou ele mesmo era

a parte de gente

servindo de ponte

entre o sub e o sobre

que se arcabuzeiam

de antes do princípio,

que se entrelaçam

para melhor guerra,

para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João

e se João existiu

de se pegar. (Drummond apud ROSA, 2016, p.16)

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Anexo I

Partida do audaz navegante

Guimarães Rosa

Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa

nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da

pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva

estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a

melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro

silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e

Brejeirinha ─ elas brotavam num galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo. Meia-

manhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos, alojados,

na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se enxergam o barranco, o

galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um pedaço de um morro ─ e o

longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o

menino. Da Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às vezes, formava

muitas artes.

Nesta hora, não. Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no

caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçada as pernocas, ocupava-se com a caixa de

fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e,

no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não-comprida, o perfilzinho agudo, um

narizinho que-carícia. Aos tantos, não parava, andorinhava, espiava agora ─ o xixixi e o

empapar-se da paisagem ─ as pestanas til-til. Porém, disse-se-dizia ela, pouco se vê,

pelos entrefios: ─―Tanto chove que me gela!‖ Aí, esticou-se para cima, dando com os

pés em diversos objetos. ─―Ui, ui-te‖ ─ rolara nos cachos de bananas, seu umbigo

sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. ─―E o cajueiro ainda faz flores...‖ ─

acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo assim, com essas

aguaceirices, de durante dias, a chuvinha no bruar e a pálida manhã do céu. Mamãe

dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava ajudar, diligentil. Ciganinha lia

um livro; para ler Ciganinha e Zito nem muito um do outro se aproximava, antes

paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a

morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo da

Mamãe. Zito perpensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele abrira-se à

espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por pirueta. ─ ―Eu

sei porque é que o ovo se parece com um espeto!‖ ─; ela vivia em álgebra. Mas não ia

contar a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar.

Tem porém infimículas inquietações: ─―Eu hoje estou com a cabeça muito quente ─

isto, por não querer estudar. Então, ajunta: ─―Eu vou saber geografia.‖ Ou: ─―Eu queria

saber o amor...‖ Pele foi quem deu risada. Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase

assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que

se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto

de não aguentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda, se envoava.

ela não precisava virar página.

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─―Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?‖ ─ Brejeirinha

especulava.

─―É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...‖ Pele lambava-lhe um tico de

desdém; mas Pele não perdia de boazinha e beliscava em doce, sorria sempre na voz.

Brejeirinha rebica, picuíca: ─―Engraçada!... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa

de fósforos...‖ Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor de

expressão, deduzidos de babinhas. ─―Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou

demagogo?‖ Porque gostava, poetisa, de importar desses sérios nomes, que lampejam

longo clarão no escuro de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de repente,

controversioso-culposo, sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele

estalava numa raiva. Mas Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas

apropriava-se e refletia-as em si ─ a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. ─‖Zito,

você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-onge

no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?‖ Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha

estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a terrina,

para ela bater os ovos.

Mas Brejeirinha punha a mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não

detendo em si o jacto de contar: ─―O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros

lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares

eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos

irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: ─―Vocês vão se

esquecer muito de mim?‖ O navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou

batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi

saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava as costas para a gente,

para trás. A gente também inclusive batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais

navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: ─―Ele vai

descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...‖ Então e então, outro disse:

─―Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...‖ Então, mais, outro

pensou, pensou, esférico, e disse: ─―Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós,

dentro dele, sem saber...‖ Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para

casa, para jantar...‖

Pele levantou a colher: ─―Você é uma analfabetinha ―aldaz‖. ─―Falsa a beatinha

é tu!‖ ─ Brejeirinha se malcriou. ─―Por que você inventa essa história de de tolice,

boba, boba?‖ ─ e Ciganinha se feria em zanga. ─‖Porque depois pode ficar bonito, ué!‖

Nurka latira. Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em

cafeteiras, e outras. Disse ainda, reflexiva: ─―Antes falar bobagens, que calar

besteiras...‖ Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de

conduta. Só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando.

A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo

Antônio, tãoquanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou.

Só era março ─ compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam.

Soltavam-se as galinhas do galinheiro, e o peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava

a azul?

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Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio. ─―Ah, e você vai

conosco ou sem-nosco?‖ ─ Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de

alheada, desferia chufas meigas: ─―Que nossa vergonha!...‖ ─ e a dela era uma voz de

vogais doçuras. A manhã se faz de flores. Então, pediu-se licença de ir espiar o

riachinho cheio. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra-a-saia. De

impulso, se alegraram. Só que alguém teria de junto ir, para não se esquecerem de não

chegar perto das águas perigosas. O rio, ali, é assaz. Se o Zito não seria, próprio, essa

pessoa de acompanhar, um meiozinho-homem, leal de responsabilidades? Cessou-se a

cerração do ar. Mas tinham de vestir outras roupas quentes. ─‖Oh, as grogolas!‖

Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. ─―Vão com

Deus!‖ ─ Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e choviam era

bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.

A ir lá, o caminho primeiro subia, subvexo, a ladeirinha do combro, colinola.

Tão mesmo assim, os dois guarda-chuvas. Num ─ avante ─ Brejeirinha e Pele. Debaixo

do outro, Zito e Ciganinha. Só os restos da chuva, chuvinha se segredando. Nurka

corria, negramente, e enfim voltava, cachorra destapada ditosa. Se a gente se virava,

via-se a casa, branquinha com a lista verde-azul, a mais pequenina e linda, de todas,

todas. Zito dando o braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam. Pele

se crescia, elegante. E ágil ia a Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero. Ela andava

pés-para-dentro, feito um periquitinho, impávido.

No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha colavam-se, muito às tortas, nos

comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua experiência de

felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental. Descia-se agora a outra ladeira,

pegando cuidado, pelo enlameável e escorregoso, poças, mas também para não pisar no

que Brejeirinha chamava de ―o bovino‖ ─ altas rodelas de esterco cogumeleiro. Ali,

com efeito, andavam bois: ―o boi, beiçudo‖; aí, Brejeirinha levou tombo. Ela disse que

Mamãe tinha dito que eles precisavam de ter: coragem com juízo. Mas, isso, era

mentirinhas. E, o que pois: ─―Agora, já me sujei, então agora posso não ter cuidado...‖

Correu, com Nurka, pela encosta inferior, no verdinho pasto. Pele ainda ralhou: ─―Você

vai buscar um audaz navegante?‖ Mas, mais. Entanto, à úmida, à luz, o plano capim ─ e

floriu-se: estendem-se, entremunhadas, as margaridinhas, todas se rodeiam de

pálpebras.

O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos

bons bambus, e às pedreiras de beira-rio, ouvindo o ronco, o bufo d‘água. Porque, o rio,

grossoso, se descomporta, e o riachinho porém também, seu estuário já feio cheio,

refuso, represado, encapelado ─ pororoqueja. ─―Bochechudo!‖ ─ grita-lhe Brejeirinha.

Sumiu-se a última areiínha dele, sob baile de um atoalhado de espumas, no belo

despropositar-se, o bulir de bolhas. Brejeirinha já olhou tudo de cor. Cravou varetas de

bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o

fervor daquilo impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostando de mar: ─―O mar

não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...‖ Lamentava-se de não ter trazido pão

para os peixes. ─―Peixe, assim, a esta hora?‖ ─ Pele duvidava. Divagava Brejeirinha:

─―A cachoeirinha é uma parede de água...‖ Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era

a Ilhazinha dos Jacarés. ─―Você já viu jacaré lá?‖ ─ caçoava Pele. ─―Não. Mas você

também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar

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ou não estar...‖ Mas, Brejerinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu par de

olhos passarinhos. Demorava-se, aliás, o subir e alargar-se da água, com os mil-e-um

movimentos supérfluos.

A gente se sentava, perto, não no chão nem em tronco caído, por causa do

chovido do molhado. Ciganinha e Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam

horas infinitas; apenas, conversando ainda feito gente trivial. Pele saíra a colher um

feixe de flores. Mais não chuviscava. Brejeirinha já pulando de novo. Disse: que o dia

estava muito recitado. Voltava-se para a contramargem, das mais verdes, e jogava

pedras, o longe possível, para Nurka correndo ir buscar. Depois, se acocora, de entreter-

se, parece que já está até calçada com um sapatinho só. Mas, sem se desgachar, logo

gira nos pezinhos, quer Ciganinha e Zito para ouvirem. Olha-os.

─―O Aldaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir?

Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele

dentro, escrutínio. O Aldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor,

preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...‖

Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos. ─―Nossa! O assunto ainda não parou?‖

─ era Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um ―ah!‖

e quis que continuou: ─―...Envém a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. O

mar se encheu, o esquema, amestrador... O Aldaz Navegante não tinha caminho para

correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio parambolava... Ele, com o medo,

intacto, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava,

circunspectos. Ele só a prevaricar... O amor é singular...‖

─ ―E daí?‖

─―A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois

estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O Aldaz Navegante, o perigo

era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...‖

─ ―Sim. E agora? E daí?‖ ─ Pele intimava-a.

─ ―Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz

do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol... Pronto. E...‖

─ ―Nã-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu!

E ─ olha o seu ―aldaz Navegante‖, ali. É aquele...‖

Olhou-se. Era: aquele ─ a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-

ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins ─ chato, deixado.

Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o

chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água,

enchente, já o atingiam, quase.

Brejeirinha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou, caindo no

chão umas flores. ─ ―Ah! Pois é, é mesmo!‖ ─ e Brejeirinha saltava e agia, rápida no

valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas ─ josés-moleques,

douradinhas e margaridinhas ─ e veio espetá-las no concrôo do objeto. ─ ―Hoje não tem

nenhuma flor azul?‖ ─ ainda indagou. A risada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram

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palmas. ─―Pronto. É o Aldaz Navegante...‖ ─ e Brejeirinha crivava-o de mais coisas ─

folhas de bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o ―bovino‖, se transformava.

Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes. Brejeirinha teme

demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele. Pele, a meiga. Que:

─―Então? A estória não vai mais? Mixou?‖

─―Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça,

recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor,

desasssustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços...

Então, pronto. O mar foi que se aparvalhou-se. Arres! O Aldaz navegante, pronto.

Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi ─‖Fim‖!‖

De fato, a água já se acerca do ―Aldaz Navegante‖, seu primeiro chofre

golpeava-o. ─―Ele vai para o mar?‖ ─ perguntava, ansiosa, Brejeirinha. Ficara muito de

pé. Um ventinho faz nela bilo-bilo ─ acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos,

os cabelos. A chuva, longe, adiada.

Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade.

─―Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste

tempo...‖ E: ─―Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes?‖ E: ─―Se

Deus quiser, eu venho...‖ E: ─―Zito, você era capaz de fazer como o Audaz Navegante?

Ir descobrir os outros lugares? E: ─―Ele foi, porque os outros lugares ainda são mais

bonitos, quem sabe?...‖ Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras

pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava

neles, confusa ─ assim rosa-amor-espinhos-saudade.

Mas, o ―Aldaz Navegante‖, agora a água se apressa, no vir e ir, seu espumitar

chega-lhe já re-em-redor, começando a ensopação. Ei-lo circunavegável, conquanto em

firme terrestreidade: o chão ainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha aumenta-

lhe os adornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro, colorido,

estrambótico, folhas, flores. ─―Ele vai descobrir os outros lugares...‖ ―─Não,

Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!‖ ―─Uê? O quê?‖ Então, Ciganinha, cismosa,

propõe: ─―Vamos mandar, por ele, um recado?‖ Enviar, por ora, uma coisa, para o mar.

Isso, todos querem. Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle.

Brejeirinha ─ um cuspinho; é o ―seu estilo‖. E a estória? Haverá, ainda, tempo para

recontar a verdadeira estória? Pois:

─―Agora, eu sei. o Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou

com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo

com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito,

mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...‖

Pronto. O trovão, terrível, este em céus e terra, invencível. Carregou. Brejeirinha

e o trovão se engasgam. Ela iria cair num abismo ―intacto‖ ─ o vão do trovão? Nurka

latiu, em seu socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a amparar. Antes,

porém, outra fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor.

―─Mamãe!‖

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Deitou-se-lhe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como um esquilo

pega uma noz. Brejeirinha ri sem til. E, Pele:

─―Olha! Agora! Lá se vai o ―Aldaz Navegante‖!‖

―─Ei!‖

―─Ah!‖

O Aldaz! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o levavam,

ao Aldaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas folhagens, suas flores

e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha, uma gotinha, que perluz ─ no

pináculo de uma trampa seca de vaca.

Brejeirinha se comove também. No descomover-se, porém, é que diz:

―─Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo, é com um

espeto!‖

De novo, a chuva dá.

De modo que se abriram, asados, os guarda-chuvas.

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Anexo II

Fita verde no cabelo

(Nova velha história)

João Guimarães Rosa

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas

que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e

cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por

enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.

Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e

quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O

pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.

Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá

lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham

exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: — Vou à vovó, com cesto e

pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou. A aldeia e a casa

esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a

gente não vê que não são.

E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o

outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe

correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar

essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu

lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.

Vinha sobejadamente.

Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela,

toque, toque, bateu: — ―Quem é?‖

— ―Sou eu…‖ — e Fita-Verde descansou a voz. — ―Sou sua linda netinha, com

cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.‖

Vai, a avó, difícil, disse: — ―Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus

te abençoe.‖

Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.

A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco,

assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: — ―Depõe o pote e o cesto na arca, e

vem para perto de mim, enquanto é tempo.‖

Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em

caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de

almoço. Ela perguntou:

— ―Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!‖

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— ―É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…‖ — a avó

murmurou. — ―Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!‖

— ―É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…‖ — a avó

suspirou.

— ―Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,

pálido?‖

— ―É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha…‖ — a avó

ainda gemeu. Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.

Gritou: — ―Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…‖

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio,

triste e tão repentino corpo.

[Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 8 de fevereiro de 1964]