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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Paloma da Silveira Leite
POÉTICA DO ENCANTAMENTO
A voz da criança em João Guimarães Rosa
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
São Paulo
2019
Paloma da Silveira Leite
POÉTICA DO ENCANTAMENTO
A voz da criança em João Guimarães Rosa
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, como exigência
para a obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica
Literária, sob a orientação da Professora Doutora Maria
Aparecida Junqueira.
São Paulo
2019
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Dedico esse trabalho às minhas plebeinhas flores, princesinhas incomuns:
Lorena e Letícia.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento
88887.148312/2017-00.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, que transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero,
por tudo, sempre, nas coisas amanhecentes e anoitecentes.
À tia Lúbia, que vê constelação no meu vagalume.
Ao Wal, pela estima ligeira, pelo apoio e carinho de sempre.
Ao Isnar, anjo da guarda, amigo “lealdoso de responsabilidades”, pela
paciência de ourives, pela dedicação dele só.
À minha orientadora, professora doutora Maria Aparecida Junqueira, vagalume
lanterneiro, com seu psiu de luz – até nas madrugadas, atenção e sabedoria ao longo
de todo o trabalho.
Ao Professor Eloésio, amigo dedicado e presente desde o início dessa jornada,
nas palavras, do pré-projeto à banca, dos cafés aos botecos.
À professora Diana Navas, pela ajuda impecável no projeto, por aceitar fazer
parte da minha banca, pela atenção e pelas sugestões primorosas.
A todos os membros do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e
Crítica Literária, especialmente à Ana Albertina.
Às professoras Vera Bastazin, Beth Brait, Maria Rosa Duarte de Oliveira,
Anitta Malufe e Beth Cardoso, por compartilharem tanto conhecimento e sabedoria.
À Dorota, pela alegria que vale feito rebrilho de ouro.
E a tanta gente importante, que falta nome.
.
LEITE, Paloma da Silveira. Poética do Encantamento: A voz da criança em João
Guimarães Rosa. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em
Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
SP, Brasil, 2019, 126p.
RESUMO
Esta dissertação trata do universo mágico da infância em João Guimarães Rosa, mais
especificamente nas narrativas Partida do audaz navegante, publicada em 1962, Fita
verde no cabelo, em 1970, e Campo Geral, em 1964. Entre seus objetivos, destacam-se:
refletir sobre a construção do pensamento mágico-poético no discurso do narrador e das
personagens crianças; apreender a construção e a desconstrução do universo poético-
maravilhoso nessas narrativas rosianas, assim como analisar o vínculo entre a
enunciação do narrador e a das personagens infantis, ressaltando o encantamento e o
desencantamento. Para atingir tais objetivos, orienta-se pela seguinte problematização:
até que ponto narrativas de João Guimarães Rosa operam o encantamento e o
desencantamento de maneira a atribuir sentido ao rito de passagem da vida infantil à
vida adulta? Como as sutilezas que diferem e separam a linguagem da infância da
linguagem da vida adulta implicam ações mágico-poéticas nessa ficção? A
fundamentação teórica baseia-se em concepções sobre o maravilhoso propostas por
Todorov, Mieletinski e Propp; sobre o imaginário, recorre a Baudelaire e Bachelard;
para refletir acerca do literário e da criança, vale-se de Walter Benjamin. A fortuna
crítica sobre o autor é sustentada na voz de Henriqueta Lisboa, Benedito Nunes, Paulo
Rónai. O estudo do corpus evidenciou, entre outras considerações, que Rosa dilui seu
discurso e o seu olhar poético ao do narrador e das personagens, tornando-o quase
indissociável do discurso infantil; que o rito de passagem, vivenciado pelas
personagens, está intimamente relacionado com experiências mágicas, construídas, por
sua vez, em universo poético-maravilhoso.
Palavras-chave: Literatura Brasileira. João Guimarães Rosa. Poética. Infância. Magia.
LEITE, Paloma da Silveira. Poetics of Enchantment: the child's voice in the narrative of
João Guimarães Rosa. Master‘s Dissertation. Post-Graduate Program of Literature and
Literary Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. SP, Brazil,
2018, 126p.
ABSTRACT
This dissertation deals with the magical universe of childhood in João Guimarães Rosa,
more specifically the short stories Partida do audaz navegante (1962) and Fita verde no
cabelo (1970), and the novella Campo Geral (1964). In a context in which the child
rarely has its own voice, Rosa, specially for having the ―childhood feeling‖, shows us
magical minds, that allow themselves to live in the universe of the imaginary, bordering
the nonsensical. More than that, there are signs and clues about the turning point
attributed to rites of passage, that definitive moment which separates childhood from
adulthood. Theoretical foundation is based on theories of the wonderful of Todorov,
Mieletinski e Propp, theories of the imaginary of Bachelard, Mielietinskyamong others.
We will also consider Walter Benjamin to think about Literature and childhood. The
critical fortune about the author is sustained in the voice of Henriqueta Lisboa, Benedito
Nunes, Paulo Rónai. The study showed, among other considerations, that Rosa, instead
of reproducing a child‘s thoughts keeping a safe distance from infantile imaginary,
dilutes his discourse and his poetic outlook into those of the narrators and characters,
mingling almost inseparably his own discourse into the child‘s, building a magical-
poetical idea in in a poetical-wonderful world.
Keywords: Brazilian Literature. João Guimarães Rosa. Poetics. Childhood. Magic.
Mestre não é quem sempre ensina, mas
quem de repente aprende.
João Guimarães Rosa
Sumário
Apresentação ................................................................................................................. 11
Capítulo I - Apontamentos sobre criança na narrativa poética brasileira ............. 15
1.1. A criança e o imaginário ............................................................................... 15
1.2. Poetas e crianças: olhar entrelaçado ............................................................ 26
1.3 A criança na narrativa poética rosiana ........................................................ 31
Capítulo II. O encanto e o desencanto em narrativas rosianas ................................ 37
2.1. A construção da magia .................................................................................. 37
2.1. Encantamento poético: “poder sugeridor” da palavra .............................. 43
2.2. O rito de passagem ......................................................................................... 52
Capítulo III – O universo mágico-poético rosiano .................................................... 57
3.1. Brejeirinha e a “história de tolice” do audaz navegante ............................ 57
3.2. Fita-verde: asas ligeiras e sombra correndo-lhe, em pós ........................... 72
3.3 Miguilim e a saudade do que não vê ............................................................ 80
Considerações finais ................................................................................................... 112
Referências .................................................................................................................. 116
Anexo I ......................................................................................................................... 122
Anexo II ....................................................................................................................... 128
11
Apresentação
João Guimarães Rosa, entre os autores brasileiros, é um dos que abrem veredas
para a exploração do imaginário e da poética. Drummond (2006, p. 13) corrobora tal
ideia em seu poema Um chamado João, publicado no jornal Correio da Manhã, no Rio
de Janeiro, em 22 de novembro de 1967, três dias após a morte de Guimarães Rosa, ao
dizer que João ―era fabulista, fabuloso, fábula‖, era ―sertão místico disparado no exílio
da linguagem comum‖. Drummond (apud ROSA, 2016, p. 9) afirma também que Rosa
narrava coisa inenarrável, contava sem desnudar o que não deve ser desnudado, que seu
discurso germina e floresce, move-se, colore e ilumina, faz mágica sem apetrechos.
Pode-se dizer que seus apetrechos mágicos ou ―suas supostas fórmulas de abracadabra,
sésamo‖ eram as palavras. Ainda, quando perguntavam a Rosa que mistério é esse,
Drummond (apud ROSA, 2016, p.11) diz que ele sorria, ―E propondo desenhos
figurava / menos a resposta que / outra questão ao perguntante?‖. Nota-se, antes de
tudo, que há magia.
Paulo Rónai (apud ROSA, 2016, p.17) também afirma, nessa perspectiva, que
Guimarães Rosa era ―inventor de abismos‖. Localizava-os em ―broncas almas‖
irreparavelmentente ligadas à natureza, almas não corrompidas pelo raciocínio lógico,
mas inteligíveis a impulsos indefinidos, a sonhos, premonições, crendices: ―São almas
ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o
milagre‖. São almas atormentadas pelas paixões, medos e dores, são personagens
consideradas marginais, que não foram perfeitamente absorvidas pelo convívio social
ou em nada tocadas por ele. Entre elas, estão os loucos, os jagunços, os capangas, os
vaqueiros, as prostitutas e, especialmente, as crianças, foco deste estudo.
A poeticidade, em João Guimarães Rosa, parece mais mágica e genuína quando
personagens criança são protagonistas. Sem amarras, elas deixam os sentidos
perceberem o mundo, dão frescor à imaginação e são livres da imitação de modelos e do
senso comum. A infância assume importância fundamental na obra de Rosa,
destacando-se pela singularidade dos temas e das imagens.
No prefácio de Primeiras Estórias, Paulo Rónai (2016, p.19), afirma que ―ao
lado dos doidos, as crianças formam um grupo menor, mas importante‖. Essas
personagens, magicamente criadas e desenvolvidas por Rosa, apresentam características
diversas daquelas que conhecemos por meio de outros poetas. Benedito Nunes (apud
12
ROSA, 2016, p. 19) observa que essas crianças fazem parte de uma curiosa estirpe de
personagens preludiada por Miguilim e Dito, de Campo Geral. Afirma que a ela
―pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados
de poderes extraordinários, quando não possuem origem oculta ou vaga identidade‖.
Rónai (2016, p. 20) complementa:
Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se deslumbrem com a
sua cintilação, [essas crianças] embrenham-se com olhos virgens nos
mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. Nos contos inicial
e final realiza-se a gageure de fazer desfilar pela sensibilidade de um menino,
com o pensamentozinho ―ainda na fase hieroglífica‖, os grandes problemas
existenciais do bem e do mal, e, através da sua decifração, é transmitida uma
mensagem de otimismo e de fé.
Henriqueta Lisboa (1991, p. 95, 170), em seu estudo O Motivo Infantil na Obra
de Guimarães Rosa, reflete sobre a natureza infantil, instintiva, emotiva e espontânea
como o gênio de Rosa. Enaltece a ―importância liminar e até fundamental‖ da infância
em sua obra e atribui ―a presença constante e pertinaz da infância‖ não exclusivamente
aos textos que trazem a criança como personagem. Para Lisboa, Guimarães Rosa possui
a ―faculdade de prolongar a infância‖, independentemente da complexidade da trama
narrativa.
Este estudo se preocupa com o universo mágico da infância em narrativas
rosianas, mais especificamente em três narrativas. Partida do audaz navegante, conto de
Primeiras Histórias, lançado em 1962, trata de uma intrigante e sedutora garotinha,
chamada Brejeirinha, e de seu olhar mágico-poético acerca da vida. A pequena poeta,
num dia em que brumava, chuviscava e parecia não acontecer coisa nenhuma, diverte-se
em criar e reproduzir às crianças mais velhas, as irmãs Pele e Ciganinha e o primo Zito,
a história mágica do ―indo-se embora do navio‖ do ―audaz navegante‖.
Fita verde no cabelo foi publicada pela primeira vez no Suplemento Literário de
O Estado de S. Paulo, em 8 de fevereiro de 1964, e depois no póstumo Ave, Palavra, em
1970. Nessa narrativa, Rosa criou o mais livre – e também mais lúdico e triste – dos
intertextos do clássico Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault. Trata da história de
uma menina que, em um caminho repleto de experiências, entre duas aldeias do sertão
onde nada acontece, diverte-se em criar um mundo poético, no qual avelãs não voam,
borboletas são inalcançáveis, e sombras perseguem suas asas ligeiras. Ao deparar-se
com a avó, à beira da morte, a menina é forçada a despedir-se da inocência – e da fita
verde inventada que trazia nos cabelos.
13
Campo Geral, publicação de 1964, é um recanto oculto da roça, afeito a um
emaranhado de conceitos, atos, ritos, costumes rudes, sentimentos selvagens. Trata da
reprodução mágica da visão infantil de um certo Miguilim. O protagonista é um menino
de oito anos, sensível e inteligente, empenhado em compreender as pessoas, plantas e
bichos que compõem seu universo, na companhia do irmãozinho Dito, que ―semelhava
sensatez‖ e ―fazia tudo sabido‖. Em Miguilim e também em Dito, a hipocrisia e a
maldade ainda não deitaram raízes. Um ajudava o outro na compreensão acerca das
maldades do mundo.
A partir desse corpus, propõe-se estudar a voz da criança em Rosa. De modo
específico, objetiva-se refletir sobre a construção do pensamento mágico-poético no
discurso do narrador e das personagens crianças; apreender a construção e a
desconstrução do universo poético-maravilhoso nas narrativas rosianas, assim como
analisar o vínculo entre a enunciação do narrador e a das personagens infantis,
ressaltando o encantamento e o desencantamento.
Nesse sentido, problematiza-se: até que ponto narrativas de João Guimarães
Rosa operam o encantamento e o desencantamento de maneira a atribuir sentido ao rito
de passagem da vida infantil à vida adulta? Como as sutilezas que diferem e separam a
linguagem da infância da linguagem da vida adulta implicam ações mágico-poéticas
nessa ficção?
Buscando refletir sobre as fronteiras, os limites entre encantamento e
desencantamento, este trabalho se orienta pelas hipóteses: o narrador rosiano, em vez de
reproduzir a infância, mantendo-se a uma distância segura do imaginário infantil –
aquele que o adulto não alcança –, dilui o seu discurso nos das personagens, tornando-o
quase indissociável do discurso infantil; a perda ou a ruptura do encantamento está
vinculada à perda da infância ou à presença do narrador ou à da personagem adulta; o
encanto e o desencanto se entrecruzam em caminhos mágicos, por meio de construção
poética.
Empreender o viés deste mundo mágico rosiano, tentar abrir-lhe veredas de
leitura e apreender sua poética em sutilezas do universo infantil, são aspectos que nos
atraem para suas narrativas, justificando a nossa pesquisa, e sempre buscando
apre(e)nder a vida com Rosa.
Para concretizar este desejo e este estudo, recorremos a concepções do
maravilhoso e do fantástico, principalmente em obras de Mieletinski, Propp e Todorov.
Calvino e Barthes também subsidiam a análise com suas abordagens sobre leveza, e
14
leitura e escritura de fruição e gozo, respectivamente. Baudelaire, em seus ensaios sobre
Edgard Alan Poe, fundamenta a concepção de imaginário. Valemo-nos também das
contribuições de Bachelard acerca do devaneio, do sonho, e das de Walter Benjamin
para refletir sobre o literário e a criança. Também consideramos um recorte da fortuna
crítica sobre a voz da criança na obra de Guimarães Rosa, como os estudos pioneiros de
Henriqueta Lisboa, os de Benedito Nunes e os de Iolanda Cristina dos Santos. Ainda
são de fundamental importância, para este trabalho, os escritos e prefácios do crítico
Paulo Rónai.
A pesquisa se vale dos métodos analítico e comparativo para operar quer a
fortuna crítica acerca do corpus selecionado, quer as concepções teóricas sobre o
maravilhoso, o estranhamento, a magia, na linguagem rosiana.
Esta dissertação divide-se em três capítulos. O primeiro, intitulado
Apontamentos sobre criança na narrativa poética brasileira, procura situar o imaginário
infantil, relacionando-o com o poético, o encantamento, o sonho e a magia. Encarrega-
se de apresentar a criança à luz de alguns poetas brasileiros, evidenciando um olhar
entrelaçado. Enfoca também a criança na narrativa poética rosiana, refletindo sobre a
relação entre infância e poesia, a estranheza da criança diante do universo, o jogo com
as palavras, a alegria de inventar.
O segundo capítulo, denominado O encanto e o desencanto em narrativas
rosianas, trata da construção do pensamento mágico-poético e ritualístico ao refletir
sobre o discurso do narrador e das personagens crianças, inseridas no universo do
maravilhoso.
Discute o encantamento nessas narrativas e a sua relação com os ritos de passagem da
infância à vida adulta, assim como esses ritos estão vinculados às experiências mágicas
e essas com a poesia.
Finalmente, o terceiro capítulo, nomeado O universo mágico-poético rosiano,
analisa as três narrativas selecionadas para estudo: Brejeirinha e sua forma de narrar a
―história de tolice‖ do audaz navegante; Fita-verde, suas asas ligeiras e sua sombra
correndo-lhe em pós até o encontro com a avó; e Miguilim, a saudade do que não vê,
apreendendo a sua visão da beleza naquilo que mais ninguém vê, o medo de crescer e a
sensação de não pertencer ao mundo dos adultos. A análise se atém à forma como os
elementos mágico-poéticos, o encanto e o desencanto, atribuem sentido aos ritos de
passagem vivenciados por essas personagens e como a linguagem da infância vincula-se
à poesia.
15
Capítulo I - Apontamentos sobre criança na narrativa poética brasileira
1.1. A criança e o imaginário
Tem horas que, de repente, o mundo vira
pequenininho, mas noutro de-repente ele já
torna a ser demais de grande, outra vez. A
gente deve de esperar o terceiro pensamento.
Guimarães Rosa
Ferreira Gullar (2015, p. 9) diz que ―Poesia não nasce pela vontade da gente,
ela nasce do espanto, alguma coisa da vida que eu vejo e que não sabia. (...) Então, de
vez em quando o não explicado se revela, e é isso que faz nascer a poesia.‖
Pensemos na criança, na sua mais tenra existência. Ela apenas dispõe dos
sentidos como instrumento para a percepção do mundo. Um bebê, no útero, além do
calor do ventre, tem como primeira percepção o ritmo: a batida de seu coração e a do de
sua mãe, a pulsação sanguínea. A percepção do ritmo permanece e se intensifica após o
nascimento. A criança se vê diante de um mundo compassado: a respiração, as palmas,
os passos, os segundos, as horas, o dia, a noite, a chuva, o mar, as estações. Observamos
que bebês de menos de um ano reconhecem a música e vibram com ela, dançam sem se
incomodarem com descompassos, hiatos e quebras de estrutura. Esse comportamento,
tão comum nas crianças, apresenta semelhanças com o poético que se desenrola na
imaginação.
Os adultos, principalmente pais e professores, mesmo diante da incompreensão
do pensamento infantil, deveriam ter o cuidado para não depreciar e desperdiçar esses
lampejos de imaginação, considerando-os projeção de uma mente imatura. A
imaginação da criança pode ser assustadora para os adultos, pois não pode ser
considerada pensamento normalizável, controlável nem rentável à sociedade (HELD,
1980, p. 48).
Atitudes de reprimenda por parte de adultos ou de crianças maiores podem
roubar da criança não só a segurança e o conforto de que necessita, ou a predisposição
de ser como o flaneur de Baudelaire, mas também o pasmo essencial diante da eterna
16
novidade do mundo, tal qual fazia Alberto Caeiro (PESSOA, 1998, p. 18), com seu
olhar contemplativo para a vida, a poesia e as novas possibilidades. Pele, Ciganinha e
Zito, personagens de Partida do audaz navegante, conto de Primeiras Estórias, de Rosa
(2016). Crianças, provavelmente quase adolescentes, apresentavam atitudes de
reprimenda ao caçoarem das artes de contar e inventar de Brejeirinha, desfazendo-se
dela, não percebiam que o imaginário pode corroer certezas calcadas em critérios
limitadores.
À semelhança dos poetas, crianças são inflamadas por sentimentos intensos, pela
paixão, pelo desejo, pela intensidade e pelo ―quero porque quero‖ e ―quero agora‖. São
como a fadinha Sininho ou Tinker Bell, de Peter Pan (J. M. Barrie, 1860 - 1937). Além
de naturalmente contarem com o condão da magia como os poetas, deixam as emoções
– amor ou ódio, ternura ou maldade – manifestarem-se, o que as fazem parecer confusas
e barrocas. Contestar o ―ataque de lirismo‖ de uma criança talvez seja tão injusto quanto
desconfigurar amor e fogo, de Camões, ou calafrio doce, ou susto sem perigo, de Rosa.
O olhar da criança dirige-se ao aqui e agora e, também, egocentricamente, para dentro
de si. Um olhar que alcança o ―estado de inocência substituindo o estado de graça que
pode ser uma atitude do espírito‖, como afirma Oswald de Andrade (1976) em seu
Manifesto da poesia pau-brasil. Assim, estamos diante de uma mente ainda não limitada
por esquemas fixos e que goza de um universo imaginário e linguístico, encanta-se com
sons, rimas, imagens, sem que Oswald de Andrade precisasse afirmar: veem com olhos
livres.
Aliada à sensibilidade sensorial e à intensidade lírica, a primeira infância conta
com a imitação de modelos ou com o senso comum e com o frescor da imaginação
associativa livre, que Paulo Rónai (apud ROSA, 2016, p.20) atribui à Brejeirinha. Esse
olhar contemplativo em relação à vida não se volta ao passado, mas às angústias acerca
do futuro. Embora disponha das mais vagas noções sobre o que esse futuro pode cobrar
ou do que ele trará, ela possui uma imaginação sem limite. No prefácio de Primeiras
Estórias, Paulo Rónai (apud ROSA, 2016, p. 20), sobre as personagens rosianas, afirma
que são as crianças, com seu ―pensamentozinho ainda na fase hieroglífica‖, que
possuem mola-mestra da arte quando ―tropeçam nos pedregulhos da palavra ou já se
deslumbram com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do
mundo e voltam com excitantes descobertas‖. Talvez sejam elas que, quando
aparentemente nada acontece, conseguem ver o milagre que ninguém está vendo. No
17
prefácio de Noites do Sertão, entretanto, Rónai (apud ROSA, 2016, p. 20) revela:
―Esses milagres não são o privilégio das crianças. Adultos que ainda carregam consigo
restos da alma infantil chegam a cruzá-los às vezes, e em circunstâncias das mais
imprevistas‖.
Tal como os artistas, as crianças podem ter maior facilidade para valorizar e
recriar significados para aquilo – objetos, fenômenos, palavras – que um olhar adulto
não consegue mais. E são elas, umas mais, outras menos, pessoinhas de poucas letras e
pouca vivência, que nos atiram perguntas como: ―Por que os imensos aviões não
passeiam com seus filhos?‖, ―Por que não ensinam os helicópteros a tirarem mel do
sol?‖, ―Por que se suicidam as flores quando se sentem amarelas?‖. Não poderiam os
versos – ou perguntas – do Livro das Perguntas, de Pablo Neruda (2008), serem
perguntas – ou versos – proferidos por uma criança em idade pré-escolar?
Gaston Bachelard (1996, p. 2), em Poética do devaneio, demonstra preocupação
com o que acontece com o olhar poético natural da infância na vida adulta:
Tudo seria mais simples, parece, se seguíssemos os bons métodos do
psicólogo, que descreve aquilo que observa, mede níveis, classifica tipos —
que vê nascer a imaginação nas crianças sem nunca, a bem dizer, examinar
como ela morre na generalidade dos homens.
É também Bachelard (1996, p. 10) quem nos lança a interrogação: ―Como pode
um homem, apesar da vida, tornar-se poeta?‖ Bruno Bettelheim (2014, p. 69) também
compartilha dessa interrogação quando afirma que parte das crianças, tal qual os
grandes filósofos, buscam soluções para questões primeiras e últimas: ―Quem sou eu?
Como devo lidar com os problemas da vida? Quem eu devo me tornar?‖. Justamente
porque a vida é frequentemente desconcertante para a criança, ela necessita que lhe seja
dada a oportunidade de entender a si própria neste mundo complexo com o qual tem de
aprender a lidar. Ela busca elementos que a ajudem a dar sentido coerente ao turbilhão
de sentimentos, mudanças, incertezas e descobertas ao longo da infância. Os contos de
fadas, mais do que a vida real e palpável, deixam para a fantasia da criança a decisão de
como aplicar a si aquilo que a história revela sobre a vida e a natureza humana. As
crianças se convencem, se confortam e passam a confiar no que essas histórias
fantasiosas dizem, simplesmente porque são mais convincentes para elas. A visão de
mundo e os princípios subjacentes ao processo de pensamento apresentados pelos
contos de fadas condizem com a visão de mundo da criança. Bettelheim (2014, p. 12)
ainda corrobora as palavras do poeta alemão Schiller que afirma: ―Há um significado
18
mais profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que
a vida ensina‖.
As crianças se encantam com os contos de fadas tanto quanto se encantam com a
atitude de liberdade frente ao mundo, criando possibilidades de ser, sem se ater a
explicações científicas e racionais. É natural às crianças tornar a vida rica em fantasias e
desejos, despertando-lhes a curiosidade e estimulando a imaginação. É desse
encantamento que surge o imaginário. Para algo fazer sentido para uma criança, só
precisa ser belo e agradável, personificar seus medos e acalentar suas incertezas. Por
exemplo, como crianças imaginam a noite e o dia? Muitas delas criarão histórias em que
o Sol, muito cansado, se recolheu para dormir em seu quarto estrelado e, ao acordar,
dirigiu-se ao horizonte. Personificam o Sol sem conhecerem a carruagem de Hélio, a
―Aurora dos róseos dedos‖ de Homero. Isso sem nunca terem conhecido a mitologia
grega ou terem tido notícias dos antigos egípcios, que viam o firmamento como uma
figura materna que se debruçava sobre a Terra, envolvendo-a, assim como a eles,
serenamente. Essa é uma forma de a criança prolongar uma visão animista do mundo,
conforme afirma Jacqueline Held (1980, p. 44):
A vida da criança é toda ela dominada pela brincadeira. Assim, a passagem
de uma crença inicial à exploração lúdica dessa crença ocorre muito cedo, e
de maneira imperceptível. [...] Jean Piaget nos adverte: [...] Nos escritos
infantis que colhemos [...] era difícil separar a parte das crenças e da
representação imaginária ou do prazer de inventar.
O encantamento e a magia, para a criança, têm um sentido diverso do que são
para a maioria dos adultos. As crianças, geralmente, se alheiam da sua vida interior, pois
lhes empobrece o espírito. Por isso, é difícil para os adultos – mesmo os filósofos,
psicanalistas ou sociólogos – alcançarem as metamorfoses múltiplas que as crianças
empregam em suas mágicas e estabelecerem as mesmas semelhanças. A não ser que o
adulto abra mão das normas em favor da poética. Wallon (apud HELD, 1980, p. 43)
confirma ao dizer:
O adulto chama de maravilhoso o que ultrapassa as normas aceitas. Ora, no
plano das interpretações e do conhecimento, a criança ainda não possui
normas. O que a sua curiosidade lhe faz encontrar e descobrir em seu
ambiente não pode ser, propriamente falando, nem normal, nem maravilhoso.
Fábio Herrmann (1997) afirma que tudo o que sabemos acerca da criança é
produto do diálogo intencional entre ela e o adulto ou, no máximo, uma lembrança
distorcida sobre o que era a criança que fomos um dia. Ainda que a percepção da
infância seja considerada unicamente a partir da memória de um olhar adulto
19
distanciado, devemos nos lembrar de que os fatos recordados se tornam novos e
modificados. Cada momento que voltamos ao passado, deparamo-nos com imagens
diferentes de nós mesmos e do mundo. Assim, o que sabemos do pensamento infantil,
na maioria das vezes, limita-se a uma reprodução do pensamento do adulto. Ou a uma
invocação do adulto de supostas necessidades da criança para satisfazer suas próprias
necessidades, como se a máscara de um ―eu‖ autobiográfico do passado servisse para
reforçar a insatisfação com o presente e esconder de si outros ―eus‖ desconhecidos. O
fato é que crianças, sem a intervenção do adulto, apresentam-se sem máscaras e se
contentam com o presente, uma vez que não possuem passado e tratam o futuro como
uma enorme folha de cartolina pronta para ser desenhada com lápis de cor, até que
venha um adulto que a estimule a desenhar uma casa num gramado, com uma árvore do
lado, nuvens no céu, ou, talvez, uma família feliz. Ainda hoje é comum as crianças
repetirem explicações racionais e científicas nas quais não acreditam e que não
entendem de fato, mas aprenderam a considerar como verdadeiras. É assim que as
crianças passam a desconfiar de suas próprias experiências, de si mesmas e do que a
imaginação pode fazer por elas. E é assim que os adultos se afastam cada vez mais das
necessidades e da essência das crianças, as que conhecem e as que foram um dia.
Benjamin (1985, p. 250) também afirma que o mundo perceptivo das crianças
está marcado pelos traços das gerações anteriores – mesmo no tocante às brincadeiras e
aos brinquedos. É comum que adultos, ainda hoje, invoquem supostas necessidades das
crianças para satisfazerem as suas próprias. Entretanto, em virtude de sua
espontaneidade inerente e de seu poder de criação, as crianças confrontam-se com essa
concepção. Se a criança experimenta a ordem do mundo à semelhança de seus pais e do
que se passa dentro de sua família, da escola, do meio em que vive, cada descoberta que
fuja dessa ordem, cada ―mágica associativa‖ será vista como uma conquista. Longe
dessas intervenções, a criança se permite pensar e se expressar por si só e, por isso,
escapa dos adultos por entre os dedos. Certamente, também escapa à ciência, à filosofia
e à sociologia. Em suas brincadeiras, a criança não se limita a imitar pessoas, a
reproduzir objetos, coisas, elementos da natureza. Não se trata de repetição, mas de
criação de uma nova versão. Benjamin defende que a criança constrói seu universo
particular – tal como os poetas –dando outra significação ao cotidiano, aos objetos, aos
sentimentos. Ela incorpora às suas vivências uma mística que sublima sua sensibilidade
pelo mundo e sua aptidão para descobrir novos caminhos, possibilitando um olhar
20
crítico e compreensivo da realidade. Benjamin (1987b, p. 39), em Criança Desordeira,
ressalta uma experiência de infância e elabora uma reflexão na qual joga com o arrumar
e o desarrumar o racional (lógico) e o imaginário (ilógico):
CRIANÇA DESORDEIRA. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e
cada borboleta capturada já é para ela princípio de uma coleção, e tudo que
ela possui, em geral, constitui para ela uma coleção única.(...) Para ela, tudo
se passa como em sonhos: ela não conhece nada de permanente; tudo lhe
acontece, pensa ela, vai-lhe de encontro, atropela-a. Seus anos de nômade são
horas na floresta do sonho. De lá ela arrasta a presa para casa, para limpá-la,
fixá-la, desenfeitiçá-la. Suas gavetas têm de tornar-se casa de armas e
zoológico, museu criminal e cripta. ‗Arrumar‖ significaria aniquilar uma
construção cheia de castanhas espinhosas que são maçãs medievais, papéis de
estanho que são um tesouro de prata, cubos de madeiras que são ataúdes,
cactos que são totens e tostões de cobre que são escudos. No armário de
roupas da casa da mãe, na biblioteca do pai, ali a criança já a ajuda há muito
tempo, quando no próprio distrito ainda é sempre o anfitrião inconstante,
aguerrido.
Trata-se de uma escrita não apenas baseada em recordações, mas na busca de
reencontrar, colher, capturar e constituir uma concepção de sonho baseado nas
percepções de infância. Uma tentativa da reconstrução daquilo que se conseguiu ver
enquanto adulto e que não conseguia ver quando criança, somente possível a partir do
resgate do olhar da criança, da redescoberta dos sentidos, dos caminhos que fazem com
que rememore a infância perdida. Benjamin nos aponta caminhos para a magia da
infância, como descobrir com ela e por meio dela o mistério que emana do mundo dos
objetos. São mistérios que alimentam a imaginação da criança. Tudo nos leva a crer que
o mistério, a possibilidade do imprevisto, que dá conteúdo e forma aos segredos que
revela. É o fazer de novo que conduz a uma experiência nova e alimenta o imaginário.
Procedimentos afeitos à criança e ao seu universo. Benjamin (1996, p. 253) afirma:
O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade
quando narra sua experiência. A criança recria essa experiência, começa
sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja essa a raiz mais profunda do
duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o
mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da
brincadeira, não é ―fazer como se‖, mas ―fazer sempre de novo‖, é a
transformação em hábito de uma experiência devastadora. (BENJAMIN,
1996, p. 253)
Tornar a transformação em hábito, se conduz a criança a brincar e representar,
não o faz sem que experimente o estranho aliado a um estado de solidão. É o que nos
ensina a ver Rainer Maria Rilke, em Cartas a um jovem poeta, quando reflete sobre o
―entrar em si mesmo‖, relacionando modos de ser da criança e do adulto. Em suas
palavras:
21
Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas — eis o que se
deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto
os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e
grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se
entendia de suas ações. Se depois um dia a gente descobre que suas
ocupações são mesquinhas e suas profissões, petrificadas, sem ligação
alguma com a vida, por que não voltar e olhá-los outra vez como uma
criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu próprio mundo, dos
longes de sua própria solidão que é, por si só, trabalho, dignidade e
profissão? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança
pela defensiva e pelo desprezo, uma vez que a não-compreensão significa
solidão, ao passo que defensiva e desprezo equivalem participação nas
próprias coisas cujo afastamento se deseja? (RILKE, 2012, p.56)
Esse estar só e olhar como olha a criança para uma coisa estranha, do
entendimento do poético em Rilke, ressoa em Bachelard (1996, p.94) quando diz:
Essas solidões primeiras, essas solidões de criança, deixam em certas almas
marcas indeléveis. Toda a vida é sensibilizada para o devaneio poético, para
um devaneio que sabe o preço da solidão. A infância conhece a infelicidade
pelos homens. Na solidão a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela se
sente filha do cosmos, quando o mundo humano lhe deixa a paz. E é assim
que nas suas solidões, desde que se torna dona de seus devaneios, a criança
conhece a ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos poetas. Como
não sentir que há comunicação entre a nossa solidão de sonhador e as
solidões da infância?
A ventura de sonhar que Bachelard associa à solidão de sonhador e às solidões
da infância, abrem para experiências poéticas. Não é à toa que, num devaneio tranquilo,
seguimos muitas vezes a inclinação que nos restitui as solidões de infância. E o
devaneio nos faz o primeiro habitante do mundo da solidão. Habitamos melhor o mundo
quando o habitamos como a criança solitária habita os sonhos. Nos devaneios da
criança, as imagens prevalecem e se renovam ao longo dos tempos, de cultura em
cultura, até se perpetuarem no inconsciente particular de cada um, tornando-se um
inconsciente coletivo ao longo do tempo. O devaneio restitui a beleza das imagens
primeiras. Bachelard diz que, se há um domínio em que a distinção se torna difícil, é o
domínio das recordações da infância, o domínio das imagens amadas, guardadas, desde
a infância, na memória. Afirma:
Essas lembranças que vivem pela imagem, na virtude de imagem, tornam-se,
em certas horas de nossa vida, particularmente no tempo da idade
apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio bastante complexo: a
memória sonha, o devaneio lembra. Quando esse devaneio da lembrança se
torna o germe de uma obra poética, o complexo de memória e imaginação se
adensa, há ações múltiplas e recíprocas que enganam a sinceridade do poeta.
Mais exatamente, as lembranças da infância feliz são ditas com uma
sinceridade de poeta (BACHELARD, 1996, p.20).
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Conhecer a ventura do sonhar, ser dona dos devaneios, é condição para a
criança, e depois o adulto, abrir-se ao mundo da imaginação e da memória é uma forma
de a infância ligar o real ao imaginário (BACHELARD, 1996, p. 102). Adentrar neste
mundo imaginário, nesse jardim suspenso e secreto, à semelhança dos jardins e sertões
de Rosa, é ―rememoriginar‖ a infância (rememorar e torná-la original por meio do
imaginário), permeada por fantasias guardadas no inconsciente.
Com Rilke e Bachelard, aproximamo-nos novamente de Benjamin, da sua
concepção de ―fazer sempre de novo‖, próprio do cotidiano infantil e semelhante à visão
de Rosa. A sábia incompreensão da criança é vista como o condão do seu processo de
criação. Para esses autores, pode-se dizer que a identidade do narrador é um aspecto
secundário em relação à visão extasiada de uma criança escondida atrás de uma cortina.
Ela se vê diante de um mundo predominantemente encoberto por objetos
desconhecidos, porém repletos de magia e poesia. Em a Criança Escondida, Benjamin
(1987b, pp. 39-40) esclarece:
CRIANÇA ESCONDIDA. Ela já conhece na casa todos os esconderijos e
retorna para dentro deles como quem volta para uma casa onde se está seguro
de encontrar tudo como antigamente. Bate-lhe o coração, ela segura a
respiração. Aqui ela está encerrada no mundo da matéria. Ele se torna
descomunalmente claro para ela, chega-lhe perto sem fala. Assim somente
alguém que é enforcado toma consciência do que são corda e madeira. A
criança que está atrás da cortina torna-se ela mesma algo ondulante e branco,
um fantasma. A mesa de refeições sob a qual ela se acocorou a faz tornar-se
ídolo de madeira do templo onde as pernas entalhadas são as quatro colunas.
E atrás de uma porta ela própria é porta, está revestida dela como de pesada
máscara e, como mago sacerdote, enfeitiçará todos os que entram sem
pressentir nada. A nenhum preço ela pode ser achada.
É por meio da solidão, de seu esconderijo secreto, longe das reprimendas dos
adultos, que a criança sonhadora devaneia cosmicamente e se une ao mundo, a um real.
Sem a presença do adulto, a criança pode abandonar por alguns momentos as
referências sobre si mesma, uma vez que pode imaginar ser quem quiser ser – rei, bedel
ou juiz, super-heróis ou bichos, como na canção de Chico Buarque (1976) – sem limites
para o que ela pode construir ou descontruir em sua imaginação. É Benjamin (1987b,
pp. 39-40) quem continua dizendo:
Quando ela faz caretas dizem-lhe que basta o relógio bater e ela terá de
permanecer assim. O que há de verdadeiro nisso ela sabe no esconderijo.
Quem a descobre pode fazê-la enrijecer como ídolo debaixo de uma mesa,
entretecê-la para sempre como fantasma no pano da cortina, encantá-la pela
vida inteira dentro da pesada porta. Por isso, com um grito alto ela faz partir
o demônio que a transformaria assim, para que ninguém a visse, quando
quem a encontra a pega — aliás, nem espera esse momento, antecipa-o com
um grito de autolibertação. Por isso ela não se cansa do combate com o
demônio. A casa, para isso, é o arsenal das máscaras. Contudo, uma vez por
23
ano, em lugares secretos, em suas órbitas oculares vazias, em sua boca rígida,
há presentes. A experiência mágica se torna ciência. A criança, como seu
engenheiro, desenfeitiça a sombria casa paterna à procura de ovos de Páscoa.
Esse mundo mágico aberto à imaginação, também é reflexão de Baudelaire
(2003, p. 10), em seus ensaios sobre Edgard Alan Poe, quando aproxima infância,
imaginário e olhar poético:
Toda essa gente, com vontade e boa fé infatigável, decalca a natureza.
Também são mais espantosos e originais do que os simples imaginativos, que
são completamente privados de espírito filosófico. Eles visam ao espantoso, e
isso se deve a esse espírito primitivo de chercherie, esse espírito inquisitorial,
espírito de juiz de instrução, que tem talvez raízes nas mais remotas
impressões da infância.
Baudelaire (2003, p. 34, 39) apresenta como exemplo de impressões remotas da
infância o trágico conto ―Willian Wilson‖, em que Poe narra, em primeira pessoa, o
encontro e a convivência do menino Willian com o seu ―duplo‖ no colégio de Stoke-
Newton, cenário descrito por ele como um ―palácio de ilusões‖. Sobre a personagem
Willian Wilson, o poeta afirma: ―O cérebro fecundo da infância não exige incidentes do
mundo exterior para ocupar-se e divertir-se‖.
Além do olhar mágico, Baudelaire (2003, p. 34) considera que as impressões da
infância são fonte de autorreflexão e, também, criação de um complexo imaginário:
Todos aqueles que refletiram sobre a própria vida, que frequentemente
lançaram seus olhos para trás a fim de comparar o passado com o presente,
todos aqueles que tomaram hábito de psicologizar facilmente sobre si
mesmos sabem que parte imensa a adolescência tem no gênio definitivo de
um homem. É então que os objetos lançam profundamente suas marcas no
espírito tenro e fácil. É então que as cores são vistosas e os sons falam uma
língua misteriosa. O caráter, o gênio, o estilo de um homem é formado pelas
circunstâncias em aparências vulgares de sua primeira juventude. Se todos os
homens que ocupam os cenários do mundo tivessem anotado suas impressões
da infância, que excelente dicionário psicológico possuiríamos!
Estudar a formação do imaginário e, consequentemente, da poesia na infância é
uma empreitada teórica complexa e desafiadora, tanto para o poeta Baudelaire, quanto
para a psicologia, filosofia, pedagogia, antropologia. Não nos preocupamos em aderir a
um movimento intelectual ou a uma teoria que busca apreender a infância apossando-se
dela, mas em reconhecer a infância e o pensamento poético como uma resistência a
sistemas classificatórios. É nesse sentido que as crianças se assemelham aos poetas.
Orientamo-nos por poetas e teóricos que reconhecem e refletem sobre a aproximação
entre a infância, a poética, o imaginário e a fantasia. Sigmund Freud (2013. p. 269), por
exemplo, em O poeta e o fantasiar, afirma que o poeta faz algo semelhante à criança que
brinca; ele cria um mundo de fantasia, o qual leva a sério. Um mundo nascido do
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desejo, do sonho, criado por grande mobilização afetiva, na medida que se distingue
rigidamente da realidade.
Freud segue seu trabalho desenvolvendo e demonstrando a transformação do
jogo infantil no devanear/ fantasiar do adulto. Segundo o autor, a brincadeira é uma
forma de a criança organizar o mundo, construir sentidos para si. A poesia, como busca
de sentido, aparece como um momento diferente do brincar, possivelmente, quando as
formas de brincar existentes para uma pessoa estão esgotadas, aprisionadas, ressecadas.
A poesia surge, então, – na falta da brincadeira ou complementando a brincadeira –
como possibilidade de reordenar, de recriar o mundo. Estabelecendo essa aproximação,
é que entendemos a poesia na voz da personagem criança como algo libertador e
renovador da ordem, possibilitando um reencontro com algo familiar e, ao mesmo
tempo, com o imaginário. Freud também traça semelhanças do engenho do chiste – uma
libertação da lógica racional e de um pensamento que se pauta pelas categorias
aristotélicas do pensamento formal –, com o brincar infantil, assim como correlaciona o
brincar infantil com o devaneio e a poesia na vida adulta. Afirma que se o adulto oculta
suas fantasias, é porque ―envergonha-se delas por serem infantis e proibidas‖ (FREUD,
2013, p.271).
Podemos supor que os artifícios libertadores ou rebeldes no indivíduo adulto
encontram suas raízes na brincadeira infantil. Freud (2013, p. 271) afirma que as forças
motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de
um desejo, uma correção da realidade insatisfatória. A recordação da infância é uma
forma de entrar na posse, uma vez mais, da fonte infantil de prazer. O autor considera
ainda que o fantasiar entrelaça passado, presente e futuro, ―pelo fio do desejo que os
une‖. Nesse caso, podemos considerar a dimensão lúdica da poesia, a arte da palavra –
ou mesmo da arte como um todo – como uma forma de prolongar o jogo infantil, o faz
de conta infantil, à semelhança de Brejeirinha quando finge que o riachinho formado
pela chuva é o mar, e o cogumelo é o chapeuzinho do navegante.
Olhado do ponto de vista da infância, o mundo pode ser assimilado sob a
perspectiva de um jogo. Para Huizinga (2000, p. 87), a criança pertence àquele plano
primitivo e originário, da região do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso. Para
compreender a poesia, é preciso ―ser capaz de envergar a alma da criança como se fosse
uma capa mágica, e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto‖.
Isso porque a poesis é uma função lúdica, que se exerce no interior da região lúdica do
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espírito, a mesma à qual pertencem as crianças – além dos selvagens e visionários. Esse
é um mundo no qual as coisas possuem uma fisionomia diferente da que apresentam na
vida comum, e não operam por relações de lógica e de causalidade. A poesia nasce
dessa função lúdica, dessa ausência de lógica e causalidade.
Se, por um lado, Huizinga defende que a seriedade só pode ser concebida em
termos da vida real, por outro, Gianni Gianni Rodari (1982) afirma que esse jogo da
poesia pode assumir o caráter de seriedade quando ajuda a criança a explorar
possibilidades. Em A gramática da fantasia, Rodari (1982, p.32) cita como exemplo as
brincadeiras com as palavras e suas significações na linguagem da criança. Para o autor,
um dos modos de tornar produtivas as palavras e seus sentidos é recriá-las como forma
de explorar as suas possibilidades e seus significados, a dominá-las, pervertê-las,
criando-lhes declinações originais. Essa brincadeira estimula a liberdade da criança
enquanto ser falante com direito à sua prosa pessoa. Nota-se semelhança com o jogo
que faz Guimarães Rosa (2016) quando atribui palavras novas a personagens como
Brejeirinha, de ―A partida do audaz navegante‖. É certo que a brincadeira com as
palavras, mais do que uma característica, é um método de que se vale Guimarães Rosa
em toda sua obra. O prefixo ―des‖, que Rodari (1982, p.32) exemplifica como
desconstruindo um ―canivete‖, transformando-o em ―descanivete‖, faz Miguilim
―deslembrar‖ – como as memórias se desentendem. Encontramos, no universo rosiano,
várias brincadeiras desse tipo, inclusive com o mesmo prefixo: deslua, desmaginar,
desnamorar-se, desnascer, desouvir, dessentir, desviver etc.
Ainda considerando Rodari (1982, p. 35), ―Muitos dos ‗erros‘ das crianças não
são erros: são criações autônomas das quais elas se servem para assimilar uma realidade
desconhecida.‖. Na poesia, podemos considerar que os erros são a parte doce da
conquista. ―Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a
língua.‖ Esse verso de Manoel de Barros (2010, p. 266) trata de um tema caro à poesia:
o período inaugural da vida. Esse dom de acertar, mesmo quando se erra, é que separa a
criança dos adultos, cuja imaginação se encontra tão bem adaptada à realidade. Crianças
não costumam reprimir sua imaginação, ao contrário, acreditam no poder e na verdade
da pena mágica que, tal como Dumbo, as faz capazes de voar.
26
1.2. Poetas e crianças: olhar entrelaçado
Guimarães Rosa é um exímio coletor e criador de palavras e imagens,
utilizando-as como recursos poéticos de sua escrita. A infância, para ele, não é a única e
real possibilidade de deslumbramento e poesia. Todavia, narrativas como Campo Geral,
Fita Verde no Cabelo e Partida do audaz navegante, com temática sobre a infância,
abrem caminhos para o transcendente, o irracional, o mágico. Justamente por serem
protagonizadas por crianças, afastam-se da conversa das ―pessoas grandes‖. É
interessante observarmos como as crianças de Rosa não demonstram apreço pelo
pensamento dos adultos, o que aflige tanto em Miguilim a vontade de crescer: ―sempre
as mesmas coisas secas, com aquela necessidade de ser brutas, coisas assustadas‖
(ROSA, 2016, p. 44).
Se, por um lado, as crianças de Rosa não apreciavam as conversas dos adultos,
por outro, a infância também não era tão levada em consideração até o início do século
XX. Observa-se, contudo, que apesar de há muitos anos presentes em registros
literários, somente a partir do início do século XX as Ciências Sociais e Humanas
passaram a considerar a criança e a infância como objetos de suas pesquisas e passaram
a entender a criança como sujeito histórico, de direitos e desejos, tendo como eixo de
suas investigações o registro de suas falas e comportamentos como formas de
compreendê-las. É a partir deste período que surge uma nova concepção sobre a
infância, a necessidade de sua proteção e de sua diferenciação em relação ao adulto.
Nesse sentido, a interpretação das representações infantis é objeto de estudo
relativamente novo, constantemente abordado por estudiosos e longe de ser esgotado.
A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações
Unidas, de 20 de novembro de 1959, seguida de leis sobre o trabalho infantil, instrução
obrigatória para todas as crianças e um sistema judicial para criminalidade juvenil
definiram o modo como o universo infantil era diferente do universo dos adultos. A
criança deveria ser tratada de acordo com sua condição. No entanto, o que se sabe sobre
a criança até hoje, ainda que com base psicanalítica, pedagógica ou sociológica, leva-
nos a crer que se trata do produto de um diálogo intencional e condicionado do adulto
em relação a ela. Recorrer à arte, é um dos caminhos para compreendê-la. É na poesia e
na ficção que a fala da criança é ouvida, mesmo quando elaborada por um
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autor/narrador/personagem adulto que recorda sua infância ou assume um olhar
nostálgico, poético e lúdico sobre a vida.
A configuração mágico-poética exige uma análise nem simples, nem óbvia,
tampouco limitada. Os objetos de estudos lidam com mentes encantadas, livres de
esquemas fixos, que se permitem viver no universo do imaginário, feito de associações
imagéticas, muitas vezes na fronteira do nonsense e da linguagem surrealista.
Neste estudo, consideramos o fato de que o discurso atribuído à criança, nas
obras de João Guimarães Rosa escritas entre as décadas de 30 e 70, revela uma
percepção não só mágica acerca do mundo, mas também libertária a manifestações
diversas entre si, em momento em que a concepção e a importância da infância ainda
buscavam consolidação.
A infância, mesmo assim, é assunto recorrente na literatura brasileira. Os poetas
recorrem a ela para explorar os limites da língua, pois as crianças ainda não estão
submetidas aos códigos linguísticos que inserem os adultos em regras e aprisionam sua
imaginação. É o que também afirma Márcia Cristina Silva (2017), em Retratos da
infância na poesia brasileira, ao investigar como a infância foi tratada por poetas
brasileiros em diferentes épocas, partindo de uma seleção histórica e intuitiva. Mais do
que mera recordação poética, a infância é analisada como objeto a ser construído pelo
poeta.
Em sua análise, Silva observa que no Romantismo a criança era comparada a
anjos, tratada de maneira idealizada, idolatrada, cuja força e valor residiam em sua
pureza e inocência. Os versos de Casimiro de Abreu, por exemplo, no poema ―Meus
oito anos‖, remetem a infância a um lugar idílico e sentimental, um paraíso perdido,
somada a ignorância acerca do sofrimento, a proximidade da mãe, da irmã, além do
contato com a natureza – bananeiras, laranjais, mar e céu. Se antes do Romantismo a
criança sequer aparecia nas fotografias, pois era considerada um ser incompleto e
menor, com o Romantismo que exalta o passado, a infância passou a ser lembrada.
Apesar de o poeta, representante da segunda geração do Romantismo brasileiro,
ser autobiográfico e egocêntrico, não se preocupar em dar voz ao outro, nem mesmo aos
outros que existem dentro de cada um de nós, Casimiro de Abreu (apud SILVA, 2017,
p.11) parecia exaltar a espontaneidade e a inocência juvenil em seus poemas, uma vez
que a poesia não era resultado de esforço, mas sim, como o próprio poeta a qualifica:
―um desabrochar de flores‖.
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Mas, mesmo se considerarmos a percepção da infância unicamente a partir da
memória de um olhar adulto distanciado, sabemos que as recordações, sempre que
voltamos ao passado, se deparam com ideias diferentes de nós mesmos e do mundo. Por
isso, questionamos se seria mesmo a infância um período tão florido ou Casimiro de
Abreu gostava de fantasiá-la de felicidade, tal qual outros poetas românticos. Quando
poemas são centrados em canto nostálgico, certamente ocultam uma criança sob tantos
adjetivos – doce, querida, pura, terna – que ela não tem a chance de se mostrar. A voz
saudosa adulta não permite reconhecer a voz da criança dentro do poeta, mas propõe
interpretações. O passado que deixa marcas na pessoa, na história, na cultura, não volta,
mas está sujeito a novas interpretações, especialmente na poesia. A infância ganha
identidade quando é recriada nos poemas e renasce por meio das memórias, da
recordação e da imaginação. Silva (2017, p. 19) afirma:
Seguindo os traços deixados por Chateaubriand no livro de Michel Lacroix O
culto da emoção (2006), é possível inserir os versos de Casimiro de Abreu no
pensamento romântico da época: A imaginação é rica, abundante e
maravilhosa, a vida é seca e desencantada. Com o coração cheio, habitamos
um mundo vazio. Assim o poeta ressignifica o desencantamento com o
mundo adulto no ato da criação. Ao recordar o passado, na verdade, este se
torna mais vivo, pois a reconstituição na poesia porta sempre o desconhecido,
uma vez que a memória também está em movimento. Se a infância se projeta
no passado, é no presente que ela renasce. Logo, não é o passado que salva,
como a princípio nos levam a crer os poemas saudosistas de Casimiro de
Abreu. Apenas o presente pode transportar o poeta no tempo e no espaço e
lhe dar um sentido de existência em meio ao nada.
De um lado, observamos a face da criança distanciada da realidade pelo olhar do
poeta adulto, uma infância inventada com o propósito de servir como refúgio contra
frustrações; de outro, a invenção parece ser o caminho pelo qual o poeta consegue se
desviar de seu exílio pessoal e fazer com que seu eu lírico entre em sintonia com o
universal.
No Parnasianismo, Silva observa que Olavo Bilac não se preocupava em
resgatar a infância perdida, mas se voltava às questões educacionais da época que
enxergavam a criança como ―um ser carente de aprendizados e lições de moral‖, além
de retratá-la por meio de versos edificantes como um ser em devir. A infância, que antes
remetia ao passado, passa a significar a construção do futuro. Silva (2017, p. 42)
observa que:
A voz da criança é novamente abafada pela do poeta, não mais em favor do
passado, mas do futuro. Ao demarcar limites entre o mundo infantil e o
adulto, estabelecendo a existência de um conhecimento progressivo a ser
adquirido com a idade, Olavo Bilac desconstrói a importância que havia dado
29
à ―inteligência infantil‖ em favor de outra que a substituirá. A criança se
encontra à espera de ouvir os mais velhos, como no primeiro poema de
Poesias infantis intitulado ―A avó‖.
Os retratos da infância, realizados por Olavo Bilac, aproximam a infância dos
mais velhos, guardada pelo olhar do adulto. O poema O pássaro cativo (BILAC, 1943)
exemplifica tal situação: o poeta ensina à criança o valor da liberdade, mas, ao mesmo
tempo, a intimida com inúmeros conselhos. O próprio título do poema conduz a uma
visão sobre infância.
Os poetas modernistas, entretanto, consideram a infância com mais autonomia.
Abrem espaço para a criação de uma nova infância que se configura na linguagem. Se
primeiramente a criança era tratada com saudosismo, idealização e com inferioridade,
ela passa a ser vista como um ser inquieto, inventivo e transgressor, capaz da criação e
da reinvenção de novos mundos. A memória passa a ser construída com mais liberdade,
a favor da poética e do imaginário. A inconstância e o desprendimento da verdade
passam a figurar no poema de maneira lúdica, pois o poeta vive a infância e a
brincadeira com as palavras, transportando-se no tempo e no espaço.
Silva (2017) afirma que a infância também é retratada pelo viés da melancolia.
Um exemplo é a imagem de infância de Manuel Bandeira, que a autora considera
idealizada nos seus primeiros livros Cinza das horas e Carnaval. Mais tarde, seu poema
O ritmo dissoluto apresenta a imagem do ―menino doente‖, indiciando uma infância
ameaçada.
Cecília Meirelles, que dedicou muitos de seus poemas às crianças, e é
considerada uma das mais importantes contribuições poéticas para a infância brasileira,
já inseria temas como a morte e a solidão no universo infantil, reconhecendo que tais
emoções não fazem parte apenas do adulto, mas do ser humano em geral. No poema
Retrato, segundo Silva (2017. p. 90), a ―infância e a juventude de outrora já não são
mais reconhecíveis no retrato‖. A poeta desfaz o mito da infância feliz e revela um
mundo adulto indiferente e passivo diante do sofrimento infantil. A vitalidade e a
doçura da infância parecem distantes dos ―olhos vazios‖ e do ―lábio amargo‖. Com as
mãos ―sem força‖, ―paradas e frias‖ e o coração ―que nem se mostra‖, a criança não
consegue se agarrar à vida.
Sobre o ponto de vista desses dois últimos poetas acerca da infância, Silva
(2017. p. 92) afirma:
Se, para Manuel Bandeira, a infância é abrigo do desencanto com a vida
adulta, a criança de Cecília Meireles já nasce desencantada. É o não ter que
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lhe dá o primeiro sentido de existência, como também é do estranhamento
diante do mundo que surge a poesia.
Carlos Drummond de Andrade (1982, p. 71), por sua vez, em seu poema
Infância, do livro Alguma poesia, publicado em 1930, conta a história do menino que,
enquanto a mãe cosia, o pai cavalgava no campo e o irmãozinho dormia, consolava sua
própria solidão sentado entre mangueiras, lendo ―comprida história que não acaba mais‖
de Robinson Cruzoé. O poema inicia despretensiosamente, como apenas uma
recordação do cotidiano familiar, a luz branca do meio dia interrompido pelo café preto
feito pela preta velha – uma personagem que nunca havia se esquecido da sua própria
infância e das cantigas de ninar aprendidas na senzala – e o mosquito pousando no
berço onde está o irmão pequeno adormecido. Adulto, o eu-lírico se dá conta de algo
que não compreendia quando criança: sua história, à primeira vista tão monótona, se
assemelhava à solidão do náufrago inglês criado por Daniel Deffoe, mas era mais
bonita. Há mais beleza no seu cotidiano, nas atitudes da mãe cozendo e do pai
campeando ―no mato sem fim‖, um universo em que permaneceu sua infância, do que
no universo da ficção das aventuras de Robinson Cruzoé, herói que simboliza a solidão
e, ao mesmo tempo, é um salvo-conduto para o mundo da imaginação.
As indagações do poema Infância, em que a revisitação ainda se anuncia na
memória lírica de um adulto, acompanham o poeta Drummond (2011, p. 183) que, em
sua crônica intitulada Literatura infantil, insiste em dar à criança e à literatura infantil
patamares de ser e arte, sem preconceitos. Aqui reproduzimos o texto integral:
O gênero literário infantil tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá
música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária
deixa de se constituir em alimento para o espírito da criança ou jovem e se
dirige ao espírito adulto? Qual o bom livro de viagens ou aventuras destinado
a adultos, em linguagem simples e isento de matéria de escândalo, que não
agrade à criança? Observados alguns cuidados de linguagem e decência, a
destinação preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho
ao homem, e reclamando uma literatura também à parte, ou será a literatura
infantil algo de mutilado, de reduzido e desvitalizado, porque coisa primária,
fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância?
Vêm-me à lembrança as misturas de árvores com que se diverte o sadismo
botânico dos japoneses: não são organismos naturais e plenos, são anões
vegetais. A redução do homem, que a literatura infantil implica, dá produtos
semelhantes. Há uma tristeza cômica no espetáculo desses cavalheiros
amáveis e dessas senhoras não menos gentis, que, em visita a amigos, se
detêm a conversar com as crianças de colo, estas inocentes e sérias, dizendo-
lhes toda sorte de frases em linguagem infantil, que vem a ser a mesma
linguagem de gente grande, apenas deformada no final das palavras e
edulcorada na pronúncia... Essas pessoas fazem oralmente, e sem o saber,
literatura infantil
Para o poeta, a criança, a infância, a literatura infantil não são, não estão à parte,
31
As crianças não podem ser consideradas ―bonsais‖, mutilações incompletas de adultos
ou versões em miniaturas. Drummond reforça o preconceito em relação a uma literatura
destinada ao público infantil, pois pressupõe a existência de assuntos e temas mais ou
menos relevantes, ou assuntos mais e menos reduzidamente apropriados. É esse o olhar
acerca da infância que buscamos neste estudo. A empatia que Drummond desperta com
seu poema Infância, colocando o eu-lírico da personagem em um lugar no qual a
infância anuncia-se como espaço de isolamento profundo, fora da dimensão tradicional,
permeada de angústia, ainda que mais propensa ao imaginário e à fantasia.
1.3 A criança na narrativa poética rosiana
Henriqueta Lisboa é pioneira em perceber a importância da infância, ―na
qualidade de tema quer como presença ou vivência‖, na obra de Guimarães Rosa,
embora o autor não escrevesse necessariamente para crianças. É graças a ela, que
estudos abordando essa temática têm conquistado cada vez mais espaço e relevância.
Abordagens como a do mito da infância feliz ou do prolongamento da infância; leituras
como a da bastardia em Campo Geral; a abordagem filosófica do peso da existência;
dentre inúmeros outros estudos ligados à linguagem, à língua, ao estilo, evidenciam a
fecundidade crítica do tema.
Em seu estudo O Motivo Infantil na Obra de Guimarães Rosa, Lisboa (1991, p.
171) ressalta a natureza infantil instintiva, emotiva e espontânea do gênio de Rosa, além
de ―uma aura tresloucada de candura‖. Nas palavras da autora, leia-se:
A alegria inexplicável das coisas amanhecentes, a descoberta da natureza, o
despontar do pensamento através de palavras anteriores à lógica, a trepidação
dos diálogos, o fluxo e refluxo dos monólogos, o jogo das metáforas, a
própria filosofia matreira dos primitivos, personagens de sua dileção, os quais
devem o que pensam ao que veem, tocam e degustam, a fontes ocultas no
magma em potencial, o bárbaro e o primevo, tudo isso remonta à infância do
autor, tudo isso demonstra a sua faculdade de prolongar a infância.
A estranheza diante do universo, a intuição amorosa, o gosto pela vida, a
renovação da vida por meio da arte, tão naturalmente transformada em atividade lúdica,
são características que permeiam magicamente as histórias de Rosa e revelam o
sentimento, a presença constante e pertinaz da infância. Segundo Lisboa (1991, p. 171),
são essas características que tornam o autor tão semelhante às crianças e aos primitivos,
seres que se agitam e se movimentam sem motivação exata ou interesse consciente.
Rosa parece se divertir e comover-se com seus mitos tanto quanto uma criança com seus
32
brinquedos ou um primitivo com suas superstições como se vivessem em outro plano, o
sobrenatural, lidando com objetos reais.
Paulo Rónai (2016, p. 20), que além de profundo conhecedor da obra de Rosa,
também era seu amigo, reconhece esse sentimento da infância no autor, como descreve
em ―Os prefácios de Tutameia‖:
Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para
seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores
frescas e mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os
bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele
amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angústia existencial.
Essa afirmação pode ser corroborada pela filha de Rosa, Vilma Guimarães Rosa
(apud ROSA, 2016, p. 17), em ―Páginas de saudade‖, prefácio de Estas histórias,
quando recorda o convívio com o seu pai:
Ríamos os dois e juntos comíamos gulodices escondidas na gaveta que ele
abria, sorrateiro. Imitando arte infantil ou parecendo lentamente desvendar
mistérios misturados, complicados sedutores...
Em sua carta-prefácio ao livro Joãozito - A infância de Guimarães Rosa, de
Vicente Guimarães, tio e melhor amigo de Rosa, Vilma Guimarães Rosa (apud
GUIMARÃES, 2006, p. 11) conta sobre as impressões da infância do próprio pai, após
a leitura do livro:
Era criança diferente das outras pela genialidade tão cedo despontada,
desabrochada e florescida. O Miguilim cordisburguense que vivia à espera, à
procura, até antes das lentes que num primeiro dia usou mostrando-lhe a
dimensão maior do espaço e horizonte de buritis, a vastidão dos campos, ―os
grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas
passeando no chão de uma distância‖.
A alegria de criar, de expandir o jogo das palavras e seus significados, o
dinamismo estilístico ―tramalhado‖ ingenuamente e com maestria, indicia um autor que,
quando criança, já apresentava genialidade incomum, porém semelhante à de
Brejeirinha, da narrativa Partida do audaz navegante. Os brinquedos que Joãozito
estimava na infância eram os mesmos brinquedos de Dito e Miguilim: carrinhos de boi
feitos de sabugos de milho, o jogo de malha, o pegar vagalumes, tudo isso foi levado da
infância de Joãozito para o Campo Geral de Guimarães Rosa. Vicente Guimarães (2006,
p. 30), tio de Rosa e seu melhor amigo, corrobora:
O menino Joãozito gostava de colecionar borboletas, tanajuras, besouros.
Passava horas fiscalizando o vaivém das formigas e arquitetura dos
cupinzeiros. Deliciava-se com a sinfonia teimosa das cigarras. Gostava de
prender formiguinhas em ilhas que era pedras postas num tanque raso e
unidas por pauzinhos, pontes para formiguinha passar, gostava de armar
alçapões e apanhar sanhaços, e depois tornar a soltá-los: uma maravilha;
puxar sabugos de espigas de milho, feito boizinhos de carro. Seu interesse
33
pela história natural vinha do trabalho árduo das lavadeiras. Cada fiozinho
era um rio, Danúbio ou São Francisco, e passavam por cidades imaginárias.
João menino, então, já era notado e destacado por sua inteligência e memória
incomuns. Era calado, gostava de brincar sozinho, sem incomodar ninguém, quase
nunca com outras crianças. A beleza de sua imaginação criava-lhe os ambientes mais
diversos e encantadores. Muito cedo devorava livros, inclusive grandes obras em
francês. O menino João, entretanto, também apresentava características de um jovem
adulto. ―Sequioso de saber, de obter conhecimentos novos e superiores (...) Pequeno
cientista, gosto poliformo ao estudo, recreação também era: tudo feito com alegria de
curiosidade, muita atenção e sensação de distraimento‖ (GUIMARÃES, 2006, p. 44).
Seu pai, Florduardo Pinto Rosa é descrito por Vicente Guimarães (2006, p. 39) como
um homem de bom coração, porém um pouco rude e incompreensivo em relação ao
hábito do menino Joãozito de viver com um livro nas mãos: ―vagabundo assim sendo,
sem procurar o de-que-fazer‖. Dessa incompreensão dos adultos, Rosa certamente
guarda certa mágoa, como já registrou em outros escritos:
Não gosto de falar da minha infância, é um tempo de coisas boas, mas
sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando,
estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um
excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de
soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e
revolucionário permanente, então. Já era míope e nem eu, nem ninguém sabia
disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas tempo bom
de verdade só começou com a conquista de algum isolamento, com a
segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e
imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como
personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas (ROSA, apud
GUIMARÃES, 2006, p. 39).
Se não gostava de falar de sua infância, está claro que muito nela se inspirou e
muito dela reproduziu. Esse ―excesso de adultos‖ é o que tanto desagradava a Miguilim,
personagem de Campo Geral. Sua Vó Chiquinha, que ele descreve em Vovó Izidra, avó
de Miguilim, é caracterizada com a mesma braveza, os mesmos costumes de presépios.
Outro exemplo que aparece em suas obras é o costume das crianças cordisburguenses
jogarem dente arrancado no telhado, dizendo ―Mourão, mourão, toma esse dente mau,
me dá um dente são‖.
Como adulto, era um profundo conhecedor das mentes infantis e ainda trazia o
olhar do Joãozito consigo: um olhar que, mesmo míope, já imaginava a imensidão das
coisas. Miopia esta que emprestou a Miguilim, presenteando-nos com um dos mais
belos olhares da infância presentes em sua obra. Mais do que isso, um autor que nos
34
presenteou com narrativas que podem dar pistas sobre a chave-mestra do encantamento,
aquele momento – que não podemos considerar definitivo – mas tenso, que separa a
infância da vida adulta, trata da perda da inocência, do embate com o desencantamento.
Bachelard (1996, p. 95) condensa essa ideia ao dizer: ―Um excesso de infância,
um germe de poesia‖. Vicente Guimarães (2006, p. 109) deixa bem clara a sua intenção
no livro Joãozito:
Fixar demonstrando quero apenas as influências do menino Joãozito na obra
do imortal escritor João Guimarães Rosa. A infância comanda o adulto. Ele
mesmo, meu sobrinho, disse pela boca do Riobaldo: Eu que o senhor já viu
que tenho retentiva que não falta, recordo tudo de minha meninice.
É poesia na narrativa. A dimensão de sua infância atinge uma imensidão, tal é o
dinamismo que anima os devaneios do poeta quando ele faz viver uma infância, quando
nos sugere reviver a nossa infância, conforme sugere Bachelard (1996, p. 131). O
homem Rosa, sonhando com a infância, regressa à morada dos devaneios, fazendo-se
menino novamente, rememorando, de maneira lúdica e entusiástica, o que antes parecia
recalcado na memória, como se aquilo já tivesse sido real em sua vida.
Curiosamente, o termo criança quase nunca aparece na obra de Guimarães Rosa,
sequer está incorporado em O léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Santa‘Anna Martins
(2001). As crianças são sempre referidas como ―pequenos‖, ―menino‖ ou ―menina‖,
ganhando, às vezes, o status de nome próprio, como o Menino de As margens da alegria
e o Menino de Nenhum, nenhuma, ambos contos de Primeiras Estórias (2016). O termo
infância, por sua vez, aparece no conto ―Nenhum, nenhuma‖: ―Se eu conseguir recordar,
ganharei a calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido.
Infância é coisa, coisa?‖ (ROSA, 2016. p. 84). A afirmação e a pergunta levam à
reflexão sobre um possível tratamento da infância com pluralidade de respostas e novas
perguntas.
Se Riobaldo, protagonista de Grande Sertão: Veredas, acredita que a muita coisa
importante falta nome, talvez Rosa não considerasse tão necessário usar o nome para
evocar crianças e infância poeticamente. Mas é fato que, como afirma Henriqueta
Lisboa (1971, p. 171), ―a natureza infantil, instintiva, emotiva‖, que caracteriza o gênio
de Rosa, está sempre presente em parte significativa de sua obra, e podemos mencionar
algumas das narrativas em que se faz presente.
Em Primeiras Estórias (2016), logo no primeiro conto, As margens da alegria, o
Menino parte com os tios para uma ―viagem inventada no feliz‖, onde se encanta com
um peru que tinha ―qualquer coisa de calor, poder e flor‖ (ROSA, 2016, p. 42). De volta
35
para casa, sentindo uma ―saudade abandonada‖, encanta-se com o primeiro vagalume,
―Era, outra vez em quando, a Alegria‖ (ROSA, 2016, p. 45). Um peru e um vagalume,
interessante lembrar, são os animais que também encantaram Miguilim. Nhinhinha, do
conto A menina de lá, menininha de quatro anos, ―perfeita calma, imobilidade e
silêncios‖ (ROSA, 2016, p.57), que, tal como o menino Dito, é de uma maturidade e
uma calma superiores ao que a idade permite. Muitas vezes, essas crianças invertem a
hierarquia, não se submetem aos adultos e assumem o comando da relação. Mas, em
especial, no caso dessas duas, saber demais ou acumular experiências além do
necessário ou permitido às crianças, implica um agravo: o da morte. Em A terceira
margem do rio, o narrador-personagem, já adulto, conta suas lembranças de menino
sobre um pai que, ―sem alegria nem cuidado‖, (ROSA, 1996, p. 67), por um propósito
ou por demência, disse adeus, fora embora de canoa para o meio do rio. Essa história
lograva, pelos meios mais simples e intensos, criar para o leitor a impossível terceira
dimensão da realidade, a terceira margem se fazia acessível, nascia na imaginação.
O conto Pirlimpsiquice, narra a aventura de onze ou doze meninos entregues
aos ensaios rigorosos de uma peça para ser exibida na escola. O momento repleto de
improvisos da apresentação ―milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras
(ROSA, 2016, p. 81), é relembrado com saudade por um narrador-personagem, faz-nos
crer que os relatos apresentam um tênue limite entre o que é real e o que é imaginação.
Em Nenhum, nenhuma, há também o Menino e suas lembranças tramadas de névoas
acerca do tempo em que passou em uma misteriosa casa de fazenda na companhia de
uma Moça, um Moço, um Homem mais velho e Nenha, a velhinha, ―acomodadinha
num cesto, que parecia um berço‖, como uma criança. Profundamente tocado pelas
emoções vivenciadas pelas personagens, quando volta para a casa dos pais – mesmo
sem entender por que saíra – o Menino está transformado em alguém diverso,
dissociado de suas origens, o que causa grande estranhamento.
Em contraponto aos medos e à inocência da infância, encontramos as
personagens sábias, que veem e sabem demais, como Miguilim que, segundo Rónai
(2016, p. 20), nos guia a ―um emaranhado de conceitos, atos e ritos, costumes rudes e
paixões selvagens, que caracterizam Campo Geral. Afirma ainda que, numa reprodução
mágica da visão infantil de Miguilim, episódios insignificantes criam volume, como se
fossem magicamente transformados em poesia. Os acontecimentos trágicos, por sua
vez, se reduzem a meras impressões:
36
Sob nossos olhos maravilhados, o menino Miguilim cresce, incorpora as
lições das plantas e dos bichos, absorve a sabedoria do irmão menor, e vem-
se desenvolvendo dia a dia, no meio dos segredos inquietantes do mundo dos
adultos, mas impressionando-se sobretudo com milagres que só para ele
existem: o papagaio pronunciando pela primeira vez o nome do irmão morto
meses após a morte deste, um par de óculos dando à vida nova dimensão e
sentido.
Temos ainda Dito, irmão menor de Miguilim, que ―sabia sério, pensava ligeiro
as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo‖ (ROSA, 2016, p. 31).
Segundo Rónai (2016, p. 20), Brejeirinha aparece em Partida do audaz
navegante como o oposto de Nhinhinha na ―vivacidade da inteligência, mas sua parenta
no frescor da imaginação associativa‖. Trata-se de uma pequena poeta que se diverte em
inventar histórias e em brincar com as palavras, e é acolhida em sua brincadeira, não só
por outras crianças, mas também por sua mãe e pela natureza que a cerca.
Por último, mencionamos Fita-Verde, a meninazinha sem juízo e inocente, mas
que, reconhecendo que a velhice não traz experiência – pois velhos e velhas apenas
―velhavam‖, decide sair atrás de suas ―asas ligeiras‖ e traçar um caminho inesperado em
busca de suas próprias experiências, mesmo aquelas que ainda não está preparada para
vivenciar.
O que essas – e tantas outras não mencionadas aqui – crianças de Rosa têm em
comum, além do olhar poético com que são construídas, é o fato de pertencerem ao
isolamento, ao recanto oculto da roça. Elas se localizam em um ambiente sertanejo
criado por Rosa ou em uma aldeia no meio do nada, de modo a permanecerem isentas
da visão convencional dos fenômenos. Por isso, são personagens ligadas à natureza, não
corrompidas pelo raciocínio lógico e científico, mas inteligíveis a impulsos indefinidos,
sonhos, premonições, crendices. As personagens adultas que aparecem nessas histórias
caracterizam-se por serem rudes, simplórias e raramente são vistas pelas crianças com
admiração, exemplos a serem seguidos ou fontes de sabedoria. Ao contrário, as pessoas
grandes, salvo raras exceções, aparecem incomodando, intervindo, estragando os
prazeres dos pequenos (ROSA, apud GUIMARÃES, 2006, p. 39) com aquela
necessidade de ser brutas, coisas assustadas (ROSA, 2016, p. 44), ou ―velhando‖ e
esperando (ROSA, 2009, p.114).
37
Capítulo II. O encanto e o desencanto em narrativas rosianas
2.1. A construção da magia
Tem horas em que penso que a gente
carecia, de repente, de acordar de alguma
espécie de encanto.
Guimarães Rosa
Para compreender a poética do encantamento de Guimarães Rosa, os caminhos
que utiliza para a construção do pensamento mágico-poético em suas narrativas,
buscamos refletir sobre o discurso do narrador e das personagens crianças, além de
apreender a construção e o refazimento do universo poético-maravilhoso em suas
narrativas.
Explicitar conceitualmente a magia, contudo, não é o foco deste trabalho,
embora empreendamos uma reflexão para compreender sua manifestação em narrativas
rosianas. Não existe um consenso entre os estudiosos sobre a definição de magia, mas é
perceptível uma descrição acerca do pensamento mágico e ritualístico em contraposição
a outros pensamentos, como o religioso e o científico, que fazem fronteiras com o
primeiro.
Segundo Marcel Mauss (1974), em seu Esboço de uma teoria geral da magia, a
magia pode ser entendida como a primeira forma de pensamento humano. Ele considera
que houve um tempo em que o homem não sabia pensar racional ou cientificamente,
sendo seus pensamentos guiados pela magia. A predominância dos ritos mágicos nos
cultos primitivos e nos folclores pode ser um argumento de peso em favor dessa
hipótese, considerando que esse estado da magia ainda hoje se faz presente em algumas
tribos da Austrália Central, por exemplo, onde certos ritos apresentam caráter
exclusivamente mágico. A magia constitui, assim, simultaneamente, a vida mística e a
vida científica do primitivo. É o primeiro estágio da evolução mental. A religião,
segundo o autor, nasceu dos revezes e dos erros da magia.
O homem que, inicialmente, sem hesitação, tinha objetivado as suas ideias e
a forma de as associar, que imaginava poder criar as coisas da mesma
38
maneira que criava os seus pensamentos, que se julgava senhor das forças da
Natureza como o era de seus gestos, acabou por perceber que o mundo lhe
resistia; imediatamente, dotou-o de forças misteriosas, que tinha arrogado
para si próprio; após ter sido um deus, povoou o mundo de deuses (MAUSS,
1974, p. 15).
Muito antes de ser estetizada pela literatura, a ideia do maravilhoso surgiu no
pensamento mágico intrínseco ao imaginário humano, dotado de caráter universal que
se manifesta em todos os grupos sociais. O maravilhoso tem em sua origem esse
pensamento mágico que advém, entre outros, do pensamento religioso e da criação dos
mitos.
A concepção do maravilhoso tornou-se cada vez mais complexa ao longo do
tempo e atingiu maior amplitude na medida em que se abriu e refletiu-se nas mais
variadas formas de representação, artísticas ou não. A ideia do maravilhoso também não
se confina a um momento específico da história. Muito antes de ser um gênero literário,
comparece nos mitos e neles tem o seu berço. Segundo Eliade (1989), em Aspectos do
mito, os mitos são histórias verdadeiras e sagradas sobre o nascimento do cosmos –
cosmos que pode ser um homem, uma ilha, um comportamento ou o universo – graças à
ação de seres sobrenaturais. São narrativas de acontecimentos que tiveram origem no
tempo primordial, original, arquetípico, de onde tudo provém, e narram,
metaforicamente, a passagem do caos para o cosmos, a fim de buscar sentidos para a
existência.
Para considerarmos a concepção de mito de Guimarães Rosa (2017, p.26),
recorremos ao seu Aletria e hermenêutica, o primeiro dos quatro prefácios de Tutameia,
no qual o autor compara a anedota a um fósforo que não apresenta serventia após ser
riscado, a não ser como ―instrumento de análise nos tratos da poesia e da
transcendência‖. É curioso observar que é justamente uma caixa de fósforos a distração
da personagem Brejeirinha, no início do conto Partida do audaz navegante (ROSA,
2016, p. 139), antes de transformar sua narrativa em poesia e magia, porém, sem deixar
de ser índice para essa transformação. Para Rosa (2017, p. 27), o mito estrutura-se como
imagem e como metáfora, cujo mecanismo opera por uma ―formulação sensificadora e
concretizante, de malhas para captar o incognoscível‖. Mais do que isso, ele considera a
poesia e a religião quase como forças equivalentes, ainda que possuam diferentes
valores com os quais se relacionam. Segundo Benedito Nunes (1998, p. 258), é difícil
39
separar em Rosa o poético e o religioso do mito, pois se encontram muitas vezes
interligados no conjunto de sua obra:
A ficção como meio de depuração religiosa do homem, graças ao efeito
analógico sobre o leitor da narrativa poeticamente trabalhada, cuja
linguagem, de ressonância contemplativa e de amplitude alegórica, eleva-o a
um plano superior, metafísico, está em harmonia com as marcas distintivas
do pensamento neoplatônico, que sobressaem dos principais textos de Rosa.
Essas marcas, porém, neles aparecem de maneira alusiva, indireta,
subentendida, traduzidas nas situações das falas dos personagens, conforme a
espécie de tradução adotada pelo escritor, mais variada do que referimos no
escólio, além do anagrama, incluiria a mensagem cifrada, oculta.
Joseph Campbel (1990, p. 138), há muito, havia observado a similaridade
interligando narrativas consideradas maravilhosas. Segundo o mitólogo, todas as
histórias de herói têm, em seu plano essencial, uma identificação que estabelece uma
conexão entre elas A façanha convencional do herói começa com a personagem de
quem algo de valioso foi usurpado ou que sente a falta de alguma das experiências
normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa personagem, a
quem chamamos herói, parte então para uma série de aventuras que ultrapassam o usual,
quer para reparar a sua perda, quer para descobrir algum elixir doador da vida,
conquistar riquezas, amor, casamento, quer para se redescobrir. Normalmente, perfaz
um círculo, com a partida e o retorno. Quando uma criança deixa sua infância e se torna
um adulto, ela passa a vivenciar essa imposição de usurpações e experiências, como
deixar a casa dos pais, conquistar independência financeira e emocional, casar-se, ter
filhos. Desse modo, parece que a humanidade vem contando as mesmas histórias sobre
a própria existência e seus conflitos ao mover as peças desses jogos de palavras, com
constantes e variáveis, nos quais as personagens exercem vários papéis e as mesmas
funções.
O maravilhoso, como expressão poética, embrenhou-se na literatura ao se
incorporar às histórias míticas, consideradas as primeiras formas literárias. No sentido
narrativo, literatura e maravilhoso nasceram juntos. Em A poética do mito, Mieletinski
(1987 p. 176) afirma que a literatura nasce da transformação do mito e está
―geneticamente relacionada com a mitologia através do folclore e particularmente a
literatura narrativa (...) se liga à mitologia via conto maravilhoso‖.
Os mitos são narrativas essencialmente religiosas, no sentido de ―re-ligar‖ o
homem a uma outra esfera, a um além anterior a seus antepassados. A experiência com
o sagrado permite ao homem renunciar à noção de tempo profano, cronológico e
irreversível e ingressar no tempo mítico, circular, uma vez que o presente não substitui o
40
passado, tampouco o futuro. Mesmo Aristóteles acreditava que o amigo da sabedoria é
também um amigo do mito, o que nos leva a crer que a criação – ou a crença, ou a
reflexão – do mito é uma forma de conhecimento e autoconhecimento.
Mieletinski (1987) afirma que para o homem que habitava os tempos arcaicos,
não havia uma separação nítida em sua consciência entre si mesmo e a natureza. Além
disso, nem sempre, ao longo da história, ocorreu o equilíbrio entre mito e razão. O vigor
e as características humanas eram transferidos a tudo o que estava ao redor do homem.
A humanização do meio natural propiciou o nascimento dos mitos em um momento em
que a consciência humana apenas se delineava, provocando certo sincretismo espaço-
temporal no qual se manifestava um isomorfismo entre as relações espaciais e o
humano. Essa humanização é tão natural que, como defendem as pesquisas de Piaget
entre 1930 e 1940, caracteriza o pensamento infantil. Segundo o psicólogo suíço, as
crianças são animistas. Por isso, na tentativa de compreender o mundo, parece-lhes
razoável que o sol esteja vivo, já que está em plena atividade, fornecendo luz e calor, e
que animais e brinquedos se sintam como elas. É mais segura e mais encantadora, para a
criança, a ideia de que a Terra repousa sustentada por um gigante do que acreditar que a
Terra flutua no espaço, em movimentos de rotação e translação em torno do Sol. Sujeita
aos ensinamentos racionais dos outros, a criança apenas enterra o conhecimento que
aceita como verdadeiro no fundo da alma e lá o esconde, mantendo-o intocado pela
racionalidade. Essa aceitação é o que caracteriza o conceito de ―maravilhoso‖ e o torna
vizinho do pensamento mítico.
O desdobramento do maravilhoso mítico floresce não cronologicamente, mas
estruturalmente nos contos maravilhosos. Podemos considerar o maravilhoso como um
grande gênero narrativo que se estende além dos séculos, precisamente porque envolve
uma diversidade de obras que se agregam originalmente na modalidade do conto
maravilhoso, assinalando depois sua marca em várias outras formas artísticas. É nesse
contexto que o maravilhoso começa a se configurar como gênero, ao fornecer um
modelo estrutural no qual vão se desenvolver as obras literárias. O conto popular, por
exemplo, está ligado ao indivíduo e à realização de seus sonhos, ainda que, para isso,
seja necessário transpor os limites do possível. Se antes os heróis eram divindades
atuando no mundo real, ao longo dos anos, passaram a ser humanos inseridos no
universo maravilhoso (MIELETINSKI, 1987, p. 344). Essa transposição dos limites do
41
possível é, nesse sentido, muito semelhante à concepção atual de poesia, que faz com
que busquemos esse universo maravilhoso por meio do imaginário.
Etimologicamente, a concepção de maravilhoso está ligada à percepção
enganosa do olhar, que confere relação estreita com a imagem. Esse papel de
admiração, encanto e sedução, desempenhado por aquilo que se vê, é representado pelas
imagens em todas as suas manifestações, desde as imagens puramente mentais como as
da memória.
O conceito de maravilhoso foi discutido pela primeira vez na Poética de
Aristóteles. O que o pensador grego trabalhou não foi o termo maravilhoso tal qual o
conhecemos hoje, e sim o germe contido na palavra thaumaston, que expressa espanto,
surpresa, admiração. A principal fonte do maravilhoso é o irracional, pois está voltado à
ideia de realização do absurdo e do impossível, de modo a atribuir à trama de uma
história uma conexão com a realidade, tornando-a, assim, verossímil. Embora o
conceito de maravilhoso tenha se modificado e desenvolvido ao longo dos séculos,
expandindo-se de acordo com a própria mentalidade do homem e habitando outras
tantas instâncias da produção artística e intelectual, ainda podemos considerar os
sentidos revelados por Aristóteles sobre a palavra thaumaston. A admiração, a surpresa,
seja boa ou má, é a causadora da descarga emocional, da catarse diante da narrativa.
Para Jacques Le Goff (1983), o maravilhoso é um contrapeso à banalidade e à
regularidade, revelando o oculto que há atrás da realidade quotidiana e nela se realiza,
impondo a força da imaginação que rompe os limites do possível. No período medieval,
a palavra maravilhoso era substituída por mirabilis, cujo sentido se aproximava do
nosso adjetivo, mas também era relativa a milagre. Devemos nos lembrar de que o
período medieval se vincula à mentalidade mística dominante, caracterizada por um
imaginário repleto de temores e obscurecido pelos limites impostos pelo domínio da
Igreja. Nesse caso, o maravilhoso não está ligado a um efeito da apreciação da arte, mas
à contemplação de algo divino e, também, a um homem confinado à fragilidade,
impotência e submissão diante desse poder divino.
Por um longo tempo na história, a humanidade usou projeções emocionais –
como deuses – nascidas de suas esperanças e angústias para explicar a vida, a sociedade
e o universo. Tais explicações propiciavam-lhe sensação de aconchego e segurança a
sua condição humana. Depois, entre os séculos XVII e XVIII, com Bacon, Descartes,
Newton e outros, por interferência do próprio progresso social, científico e tecnológico,
tornou-se necessário à ciência firmar-se contra as velhas gerações de pensamentos
42
místico e mítico. Segundo Claude Lévi-Strauss (1978, p. 11), ―pensou-se então que a
ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos,
cheiramos, saboreamos e percebemos‖. O mundo sensorial seria o mundo ilusório, ao
passo que a realidade seria reduzida a propriedades matemáticas que estão em
contradição com os testemunhos dos sentidos e do imaginário. Foi quando projeções
―infantis‖ do homem se dissolveram e explicações mais racionais tomaram o seu lugar.
A racionalidade lhe deu a falsa sensação de estar mais seguro no mundo e em seu
íntimo. Ainda hoje, em períodos de tensão, angústia ou vazio, o homem busca
novamente conforto na noção infantil de que ele e o lugar onde vive são o centro do
universo.
Ambos modos de conhecimento, o simbólico/mitológico/mágico e o
empírico/técnico/racional, coexistem, entreajudam-se, estão em constante interação,
como se necessitassem permanentemente um do outro. Podem, por vezes, se confundir,
mas sempre provisoriamente. Segundo Edgar Morin (1996, p. 144), toda renúncia ao
conhecimento empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte. Toda renúncia
a suas crenças fundamentais desintegraria a sociedade.
No fim do século XX, mais precisamente em 1985, o escritor italiano Italo Calvino
apresentou, na Universidade de Harvard, uma série de conferências na qual ressaltava
seis qualidades ou virtudes que apenas a literatura pode salvar. Hoje essas virtudes
constam no livro Seis propostas para o próximo milênio (1990) e a primeira delas é a
leveza, ideal que ele defende, em oposição ao peso, como um valor. No início de sua
carreira como escritor, Italo Calvino conta que buscava uma identificação entre o que
acontecia no mundo ―ora dramático, ora grotesco‖ e o seu ritmo de escrever, relatando
os fatos da vida. Descobriu que o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo, são
qualidades que compulsoriamente se aderem à escrita daqueles que não encontram
meios de escapar ao olhar inexorável da Medusa‖ (CALVINO, 1990, p.19)
Aliás, é no mito de Perseu, que sustenta o que há de mais leve – as nuvens, o vento
– para derrotar Medusa, que Calvino encontra a alegoria da relação do poeta com o
mundo e uma lição para dar continuidade à escrita. Essa lição é a leveza, manter oculto
o que é pavoroso. Questionamos, pois, se essa leveza está relacionada ao encantamento.
Não se trata da recusa à realidade de peso insustentável, mas de uma visão gentil e
indireta da realidade, que apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência
43
escapam à condenação. Acrescenta ainda que é o romance ou a ficção que pertence a
esse universo de transposição do peso ao leve. Calvino (1990, p.19) afirma:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para
mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se
trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que
preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob
uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.
Uma vez que, para Calvino, a significação do peso é imprescindível para a
verificação da leveza, a leveza está associada à precisão e à determinação, nunca ao que
é vago ou aleatório. Na obra do poeta florentino Guido Cavalcanti (1259-1300), por
exemplo, Calvino ressalta três acepções distintas dessa dimensão literária: um
despojamento da linguagem por meio do qual os significados são canalizados por um
tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência; a
narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos
sutis e imperceptíveis, ou qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração;
uma imagem figurativa da leveza que assuma um valor emblemático. Na Literatura,
essas acepções apresentam o confronto de duas vocações opostas através dos séculos: a
da leveza e a do peso da linguagem. A leveza tenderia a desprender-se das coisas,
flutuando sobre elas; o peso buscaria dar à linguagem a ―espessura, a concreção das
coisas, dos corpos, das sensações‖ (CALVINO, 1990, p. 39). Calvino retoma ainda a
ideia da ―literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso de
viver‖.
2.1. Encantamento poético: “poder sugeridor” da palavra
É no encantamento das narrativas rosianas que buscamos apreender como a leveza,
proposta por Calvino, constrói os ritos de passagem vivenciados por Brejeirinha, Fita
Verde e Miguilim, tornando-os tão encantadores e leves. Levamos também em
consideração a afirmação de Calvino (1990, p. 19): ―as imagens de leveza que busco
não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...‖
Bachelard (1988, p. 8) pode nos ajudar a compreender a proposta de leveza de
Calvino e as suas implicações de significação relacionadas com realidade e sonho,
quando afirma:
De um modo mais geral, compreende-se também todo o interesse que há,
acreditamos nós, em determinar uma fenomenologia do imaginário onde a
imaginação é colocada no seu lugar, no primeiro lugar, como princípio de
44
excitação direta do devir psíquico. Á imaginação tenta um futuro. A princípio
ela é um fator de imprudência que nos afasta das pesadas estabilidades.
Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a
nossa vida dando-nos confiança no universo.
Leveza e devaneios poéticos parecem equivaler a ―hipóteses de vidas que alargam
a nossa vida dando-nos confiança no universo‖. Nem um nem outro dissolvem-se em
sonhos, em contato com a realidade. Antes operam um mundo aberto, uma vida no
possível. Alarga-se, ainda, a compreensão de sonhos à luz de Rosa (2017, p. 184):
―ainda rabiscos de crianças desatordoadas‖, ou seja, crianças em estado poético. O
prefixo ―des‖ nega o adjetivo ―atordoada‖, aquela que perdeu os sentidos. Essas três
concepções: leveza, devaneios poéticos, sonhos, constroem o mundo da imaginação e
redimensionam a vida em possibilidades, em encantamentos poéticos.
Entre os estudiosos, é Tzvetan Todorov (2010) quem desenvolve o conceito de
maravilhoso e o relaciona com o universo poético. Para ele, o maravilhoso é um gênero
literário que se fundamenta em uma concepção que comporta, de um lado, um certo
número de propriedades abstratas, de outro, leis que regem o relacionamento dessas
propriedades. No entanto, segundo ele, a noção de gênero está diretamente relacionada
com a produção da linguagem. O maravilhoso, enquanto gênero, constitui-se
essencialmente como um modo específico de narrar que se instala dentro de uma
estrutura específica e se circunscreve em torno de um tipo de sobrenatural,
determinando uma lógica interna da narrativa totalmente divorciada da lógica que rege a
realidade cotidiana. O maravilhoso cria uma estrutura narrativa peculiar, sedimentada na
magia e em um mundo de ilusões que recorta a realidade, rearticulando-a de maneira
singular. O que diferencia o gênero maravilhoso do fantástico é a ausência do
sentimento estranho, a aceitação, a ausência de limites definidos dentro da narrativa. Os
elementos sobrenaturais não provocam nenhuma reação particular nem nos
personagens, nem no leitor. ―Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados
que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos‖
(TODOROV, 2010, p. 60). Natureza de encantamento.
Vejamos como Todorov (2010, p.67) trata a poesia. Sem intenção de se fazer um
histórico da poesia, ele afirma que a concepção de poesia, tal como a conhecemos hoje,
nem sempre foi predominante:
A controvérsia foi particularmente no propósito das figuras de retórica:
devia-se ou não fazer das figuras um número igual de imagens, passar da
fórmula à representação. Voltaire, por exemplo, dizia que ―para ser boa, uma
metáfora deve ser sempre uma imagem; de tal forma que um pintor possa
45
representá-la por meio do pincel‖ (Remarque sul Corneie). (...) Concorda-se
hoje que as imagens poéticas não são descritivas, que devem ser lidas ao puro
nível da cadeia verbal que constituem, em sua literalidade, e não realmente
naquele de sua referência. A imagem poética é uma combinação de palavras,
não de coisas, e é inútil, melhor: prejudicial, traduzir esta combinação em
termos sensoriais.
Podemos, então, considerar o maravilhoso como algo que subverte a ordem
estabelecida, subverte a racionalidade de Aristóteles, atingindo amplo alcance ao
transitar entre o sagrado e o profano, rompendo com limites que delimitam cada uma
dessas instâncias. Não é possível a existência do maravilhoso em um estado puro, que
se abriga dentro de fronteiras permeáveis. Vemos o maravilhoso como uma
compensação à banalidade do cotidiano, o que o torna mágico e sublime. O maravilhoso
se circunscreve no sobrenatural e recorre ao mesmo sobrenatural para se ―explicar‖.
Dessa forma, dentro da trama e da lógica interna da narrativa, tudo parece perfeitamente
natural e possível. O leitor se sente inserido nesse universo e não cabe a ele questioná-
lo.
O maravilhoso é o portal que nos revela o oculto, aquilo que se esconde atrás da
realidade cotidiana e nela se realiza, impondo a força da imaginação e rompendo o
limite do possível. No entanto, há no maravilhoso um caráter ambíguo, que muitas
vezes pode parecer não relacionado com a realidade cotidiana, mas que se revela
diluidamente nela.
Podemos apontar como características próprias da linguagem do maravilhoso a
metáfora, a metamorfose, a magia, o exagero, o que lhe promovem uma estética
peculiar. São essas as características que tornam possível à Brejeirinha transformar um
pequeno riacho e um estrume bovino na epopeia do audaz navegante. Também, Fita-
verde, ao sair atrás das asas ligeiras do seu imaginário, transforma o longo caminho até
a casa de sua avó em um mundo encantado de plebeias e princesas flores. E a Miguilim,
a quem falta visão mas sobram imaginação e sensibilidade, transformar Mutum e
natureza ao seu redor em um lugar bonito, além de romper os limites de distância do
mar, que nunca teve oportunidade de ver, para a proximidade de sua saudade. Tais
recursos construtivos conferem, às narrativas rosianas, liberdade para a criação, para a
imaginação.
Baudelaire (2003), em seus ensaios sobre Edgard Alan Poe, lembra que o autor
americano, conhecido pelo forte apelo ao imaginário em suas obras, dizia que nosso
espírito possui faculdades elementares, cuja finalidade é diferente. Umas se aplicam a
satisfazer racionalidade; outras percebem cores e formas; outras ainda preenchem uma
46
finalidade de construção. A lógica, a pintura, a mecânica, são produtos dessas
faculdades. E como temos nervos para sentir bons odores, ver belas cores e apreciar o
contato dos corpos polidos, temos uma faculdade elementar para perceber o belo. Ela
tem seu fim em si mesma e seus próprios meios. A poesia é fruto dessa faculdade.
Baudelaire (2003, p. 106) afirma que, para Poe, a imaginação é a rainha das faculdades,
e que
A imaginação não é a fantasia; ela não é também sensibilidade, embora seja
difícil conceber um homem imaginativo que não fosse sensível. A
imaginação é uma faculdade quase divina que percebe tudo primeiro, fora
dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas das coisas, as
correspondências e analogias. As honras e as funções que ele confere a essa
faculdade lhe dão um tal valor (pelo menos quando se compreendeu bem o
pensamento do autor) que um sábio sem imaginação não surge senão como
um falso sábio, ou pelo menos, um sábio incompleto.
Se para Poe, segundo Baudelaire, a imaginação é ―uma faculdade quase divina
que percebe tudo primeiro‖, para o antropólogo Bronislaw Malinowski (1948), o caráter
anormal, simbólico e imaginário está envolvido na situação que induziu o homem a
utilizar a magia, como o tempo estabelecido, o lugar determinado, as condições
preliminarmente isolantes da magia, os tabus a serem guardados pelo celebrante, a sua
natureza fisiológica e sociológica, Tudo isso coloca o ato mágico no âmbito do
sobrenatural. Segundo Malinowski (1948, p. 26):
Essa semelhança formal provavelmente se configura melhor na afirmação de
que o ritual todo se encontra sob o domínio das emoções do ódio, do medo,
da raiva e da paixão erótica ou do desejo de conseguir um fim prático
determinado.
A magia nasce, tal como a poesia, impulsionada pelas paixões humanas. Mais do
que isso, a magia, à semelhança da poesia, é mediadora entre o homem e as forças
incontroláveis da natureza. A magia negra, na concepção de Malinowski, encontra-se na
frustração do ódio e da raiva, assim como o medo também leva à busca de recursos
mágicos para que desapareça a ameaça que o desperta. Portanto, as paixões humanas
levam as pessoas a recorrerem às atividades mágicas para superarem seus problemas.
Pensando na construção da magia em Guimarães Rosa, deter-nos-emos no
conceito do maravilhoso como efeito de linguagem, vinculado ao fluir poético, que
confere liberdade às narrativas e cria sua própria lógica a serviço e deleite imaginário do
prazer que proporciona, seja oralmente, seja por meio de imagens. A poesia e a magia,
em suas obras, são geradas como gêmeas bivitelinas, com características que se
complementam.
47
O maravilhoso produz esse encantamento em suas narrativas justamente pela
espontaneidade inesperada, comum também nas produções populares e poéticas, no
folclore e nas lendas, sendo dotado de força criadora, na medida em que não se impõe
limites para a inventividade. Tudo pode acontecer, perfeitamente integrado ao cotidiano
e sem provocar nenhum estranhamento, porque acompanha a lógica interna das próprias
narrativas. O sentido do maravilhoso cria um universo que se assume como ficção,
como se houvesse – e, talvez haja, um pacto entre obra poética e público. Nesse
universo, tudo é possível e justificado na magia, no imaginário, na leveza, na poesia. E
Rosa deixa manifestar esse universo de possibilidades em suas narrativas.
No prefácio de Jardins e Riachinhos, obra de Guimarães Rosa, Geraldo França
de Lima (1983, p. 6) afirma que a maior paixão de Rosa era a palavra, que ele dizia ser
maior do que o homem. Lima, sobre o amigo, expressa: ―Amava inventá-las, alimentá-
las com um substrato inédito, dando-lhes dimensões tão infinitas quanto o pensamento‖.
Gabriela Reinaldo (2005, p. 23), em Uma cantiga de se fechar os olhos, considera
que, em Rosa, a palavra que manipula magicamente os elementos da natureza é o non-
sense e, como na poesia, vale por si. O som das palavras, as escolhidas ou as criadas por
Rosa, propõe uma outra cadeia significativa, que rompe com o movimento das forças
naturais. Como em ―abracadabra‖ ou um ―abra-te Sésamo‖, ―as ordens da língua fazem
com que a natureza modifique o curso dos seus movimentos, violente suas leis‖. Por
meio da magia, é possível ao homem, incluindo o poeta, impor forças naturais ao
universo.
Uma característica das narrativas de Rosa é o fato de se aproximarem das
narrativas orais. Segundo Benjamin (1992), essas são as melhores narrativas, porque
nos permitem uma troca de experiências. A figura do narrador coloca a narrativa na
esfera do discurso vivo, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma nova beleza. O
extraordinário e o miraculoso são narrados com maior exatidão nas histórias da tradição
oral, sem impor ao leitor um contexto psicológico da ação. A arte de contar histórias
reside em recontá-las, porque, enquanto as ouvimos, tecemos seus fios na nossa
imaginação e esquecemos de nós mesmos ao nos entregarmos a elas. Gimenes (2005, p.
18), em A menina de Lacan: Um conto Rosa, afirma que Rosa eleva o significante à sua
máxima potencialidade expressiva. O aspecto sonoro da oralidade ―oferece recurso para
o visual que as palavras parecem mostrar. E mostram. Mais que simples narrativa
conteudística, o romance faz ver pela própria força das palavras empregadas‖.
48
Nota-se que Rosa opera com maestria suas narrativas, deixando ver o seu narrar
articulado e urdido. Há também na voz de suas personagens uma espécie de canto,
encanto – palavra que permite uma ligação entre nome e ser, entre som e sentido.
Palavra evocativa, icônica, que faz com que o que é dito se corporifique em poesia e
magia. Percebemos em sua linguagem o ―abracadabra‖ de que fala Vilma Guimarães
Rosa (1983, p. 85) sobre a linguagem do pai, no livro Relembramentos:
O abracadabra deflagrando o incompreensível, o espantoso das mágicas. E a
invenção sonora, diferenciante, para expressão mais significativa. O vocábulo
novo, para significação mais expressiva, identificando qualidades ou desejos,
sentimentos ou sensações.
Em carta a Paulo Ronái, em 3 de abril de 1967, Rosa deixa clara a sua relação
mágica com as palavras e de como quer que sejam apreendidas:
Você só tem o resíduo lógico, isto é, o que pode ser mais ou menos
explicado, de expressões que usei justamente por transbordarem do sentido
comum, por dizerem mais do que as palavras dizem; pelo poder sugeridor.
Em geral, são expressões catadas vivas, no interior, no mundo mágico dos
vaqueiros. São palavras apenas mágicas. Queira bem a elas, peço-lhe.‖
(ROSA apud ROSA, 1999, p. 385)
Mais do que uma relação com as palavras ―apenas mágicas‖, em entrevista
concedida a Günter Lorenz (1991, p.83), Guimarães Rosa assume uma pretensão de se
aproximar de Deus com sua escrita, como se usasse a palavra como forma de redenção:
Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta
deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que
assim se coloca, o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu
quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da
criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança
simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o
cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e,
quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu
método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do
soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele
devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, se
descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação. Disseram-me
que isto era blasfemo, mas eu sustento o contrário. Sim! a língua dá ao
escritor a possibilidade de servir a Deus corrigindo-o, de servir ao homem e
de vencer o diabo, inimigo de Deus e do homem. A impiedade e a
desumanidade podem ser reconhecidas na língua. Quem se sente responsável
pela palavra ajuda o homem a vencer o mal. (ROSA apud LORENZ, 1991,
p.83)
Não à toa, a expressão Ave, palavra (ROSA, 1970), estampados na capa de seu
último livro, é uma saudação à palavra. Isso revela que o universo construído pelo autor
em sua obra desperta fascínio em seus leitores por meio da linguagem, tal como um
49
jogo, um enigma metafísico. Rosa reconstrói um universo mágico usando uma
linguagem fascinante como apetrecho para o universo material que o cerca, exaltando o
modo lúdico e laborioso de ―contar desmanchando‖, despertando em quem o lê
ressonâncias sutis de esplendorosas narrativas.
Nas correspondências com seus tradutores, Rosa demonstra familiaridade com o
encantamento no texto, pela extração dos significados ocultos das palavras pela via da
oralidade. Rosa advertia: quando o leitor desentende um texto, deve relê-lo em voz alta,
sem se preocupar em correr atrás do enredo, pois cada palavra perdida faz falta e pode
afetar a compreensão do texto. Vicente Guimarães (2006, p. 15), relembra esse conselho
de Rosa no livro Joãozito – A infância de Guimarães Rosa ao dizer: ―É verdade,
Joãozito, uma palavra perdida será um encantamento a menos, dos oferecidos na leitura
dos seus livros.‖
O encantamento, caro a Rosa, é recomendado também à Harriet de Onís, sua
tradutora para a língua inglesa, conforme se nota em carta que lhe escreve em 11 de
fevereiro de 1964:
A meu ver, o texto literário precisa ter gosto, sabor próprio – como na boa
poesia. O leitor deve receber sempre uma pequena sensação de surpresa –
isto é, de vida. Assim, penso que nunca se deverá procurar, para a tradução,
expressões já cunhadas, batidas e cediças, do inglês. Acho, também, que as
palavras devem fornecer mais do que o que significam. As palavras devem
funcionar também por sua forma gráfica, sugestiva, e sua sonoridade,
contribuindo para criar uma espécie de ―música subjacente‖. Daí o recurso às
rimas, às assonâncias, e, principalmente, às aliterações. Formas curtas,
rápidas, enérgicas. Força, principalmente.
Mais tarde, em carta de 24 de março de 1966, escreveu a seu tradutor alemão
Curt Meyer Clason:
Observo, também, que quase sempre as dúvidas decorrem do ―vício
sintático‖, da servidão à sintaxe vulgar e rígida, doença de que sofremos.
Duas coisas convêm ter sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar-
comum deve ter proibida a entrada, estamos descobrindo novos territórios do
sentir, do pensar, e da expressividade; as palavras valem ―sozinhas‖, cada
uma por si, com sua carga própria, independentes, e às combinações delas
permitem-se todas variantes e variedades.
Chamam-nos a atenção esses ―novos territórios do sentir‖, uma vez que o lugar-
comum deve ter entrada proibida. O escritor percorre também as veredas do sertão
mineiro e retoma o regionalismo transfigurando tanto a temática quanto a linguagem,
criando, uma linguagem quer regional quer universal. Ele subverte, ainda, a lógica e o
senso comum dos causos, recriando outra dimensão feérica, na qual o maravilhoso se
50
manifesta. O não-senso, afirma Rosa (2016, p. 25), ―reflete por um triz a coerência do
mistério geral, que nos envolve e cria.‖
A obra rosiana apreende a união de duas vertentes da literatura brasileira: o
regionalismo e a reação espiritualista. Ao mesmo tempo em que, segundo Walnice
Galvão (2006, p. 8), se volta para os interiores do país, pondo em cena personagens
plebeias e típicas, a exemplo dos jagunços sertanejos e da linguagem característica
daquelas paragens, também descortina um ―largo sopro metafísico, costeando o
sobrenatural, em demanda da transcendência".
Compreendemos que o encanto de Rosa supera essas vertentes. Especialista na
arte de contar histórias, há o lugar, o entre-lugar, criado pelo poeta, onde encontramos a
reelaboração do espaço sagrado, em meio ao sertão de Miguilim, ao campo de
Brejeirinha, na floresta entre aldeias de Fita Verde, nos quais é possível conectar
realidade e fantasia, memória e imaginação, do físico para o metafísico, numa ―álgebra
mágica‖, como definiu o próprio Rosa. A natureza, elemento quase sempre presente nas
suas narrativas, oferece significantes que organizam de forma inaugural as relações
humanas. É no meio ambiente, próximo à natureza, que o homem aprende com o soprar
dos ventos, com o som das águas – seja barulho de riachinho, da chuva caindo nos
telhados das casas –, com o sol festejado pelo canto dos bem-te-vis e sanhaços de
Miguilim, com o crepitar do fogo em madeira. São sons que geram continuidade,
podendo levar a um estado de relaxamento ou mesmo levar ao êxtase as almas mais
sensíveis, semelhante ao transe, ao sentimento de ter sido tocado pela magia.
Nas narrativas analisadas, seja a aldeia em algum lugar, nem maior nem menor,
de Fita Verde, seja a ambientação onírica do campo onde brumava e chuviscava, de
Brejeirinha, seja num canto oculto de veredas pouco conhecidas, diante do olhar
subjetivo de Miguilim em busca da beleza sertaneja nos morros e nas pedrinhas do
Mutum, existe a criação de um lugar sagrado, um jardim que se agiganta diante da
criança, pois esconde vários segredos, é um convite aos devaneios infantis. Trata-se de
um microcosmo vivo, a memória do mundo e a memória do homem, que abriga, ao lado
das plantas e dos animais, um encanto multissensorial.
Se olharmos o sertão mineiro como ele é, alheio à criação do poeta, encontramos
um lugar onde o folclore rural é prenhe de histórias extraordinárias, onde habitam sacis,
demônios, pessoas de imaginação fértil que, no cotidiano do interior, situam-se em um
entre-lugar entre a crença e a dúvida ou entre o real e o imaginário. Para Guimarães
Rosa, a arte de contar causos, simultaneamente tão mineira e pessoal, resulta do ―seu
51
pendor para a experiência singular do arrebatamento, da surpresa reveladora, visão de
algo inominável‖ (ROSENFIELD, 2006, p. 47). Esse arrebatamento é o que sustenta a
encantadora temática da magia ao fazer o caminho do infando ao inefável, do horrível
ao maravilhoso, do encanto ao desencanto e vice-versa.
As ―personagentes‖ de Rosa, como as chama Paulo Rónai (2016, p. 17), no
prefácio de Primeiras estórias, sejam as loucas, sejam as crianças, são ―broncas almas
de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio,
mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices (...)
almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o
milagre‖. Seja qual for a motivação, todas tentam encontrar o sentido da aventura
humana e conduzem seu pensamento seguindo as veredas do irracional e do mágico.
Ainda, segundo Rónai (2016, p. 19), a Rosa, ―suas variantes não interessam como casos
clínicos, (embora frequentemente revele conhecimentos fora do comum, com seus
antecedentes de médico), e sim como campo propício à invasão do irreal, do irracional,
do mágico – numa palavra, da poesia‖.
A aventura humana traçada nas narrativas rosianas evidenciam, nos discursos de
seus ―personagentes‖ ou de seus narradores, a relação mágico-poética acerca da vida e
do viver. São exemplos algumas falas retiradas de Rosiana: uma coletânea de conceitos,
máximas e brocardos de João Guimarães Rosa, organizado por Paulo Rónai (1983, p.
78-80):
A vida não é entendível. (G.S.V,. p. 109)
A vida, a gente nunca tem termo real. (Ibidem, p. 241)
A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso.
(―Aletria e hermenêutica‖, T., p. 4)
A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida. (―Rebimba, o bom‖,
ibidem, p. 139)
Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo. (―Se eu seria
personagem‖, ibidem, p. 139)
(...)
...viver é obrigação sempre imediata. (―Lá, nas campinas‖, ibidem, p. 84)
Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente,
ausente‖ (―Tutaméia‖, p. 123).
Quem quer viver, faz mágica. ( ―Uai, eu?‖, T., p. 177)
Assim, Rosa nos ensina que, para refletirmos sobre a poética do encantamento,
devemos considerar a vida como ―não entendível‖, tanto quanto o mar e o rochedo são
52
para a ostra. Por essa razão, a vida é passível de ser explicada no viés do mito, do
sonho, do imaginário, além de esses serem caminhos para se ―furtar no peso da vida‖,
alcançando a proposta de leveza de Calvino. Se ―no princípio, era o verbo‖, as ―palavras
apenas mágicas‖ de Rosa regem o universo criado por ele com força metafísica, no
tempo e no espaço de suas narrativas. Rosa nos sugere que a vida – incluímos aqui sua
obra – seja lida no ―supra-senso‖. Acreditamos que esse caminho seja ―o quem das
coisas‖ (ROSA, 2016, p. 117), da natureza das coisas: humana ou divina, transitória ou
perene.
2.2. O rito de passagem
Um de nossos questionamentos, neste estudo, refere-se ao encantamento e ao
desencantamento como forma de atribuir sentido ao rito de passagem da vida infantil à
vida adulta. Mas o que são ritos de passagem? Mais especificamente, quais são os ritos
vividos por Brejeirinha – e também Pele, Ciganinha e Zito –, por Fita Verde e por
Miguilim, como eles são representados nas narrativas rosianas e de que forma estão
relacionados com a magia?
Em Um esboço sobre a teoria geral da magia, Marcel Mauss (2000, p. 15)
afirma que não podemos chamar de mágico um fenômeno apenas por ter sido
considerado por meio de uma interpretação subjetiva. Devemos considerar mágico
aquilo que é considerado mágico para ―toda sociedade, e não apenas uma fração‖. Além
disso, para ser considerado magia, deve envolver agentes, atos e representações. Os atos
ritualísticos são repetidos por tradição. Tal repetição é necessária para que sejam
considerados atos mágicos, assim como a crença de toda comunidade na eficácia dos
ritos. Mauss separa o rito mágico do rito religioso, pois apresentam agentes diferentes e
são realizados em lugares diferentes. A melhor forma de distinguir magia e religião é
levar em consideração dois polos: o malefício e o sacrifício. A magia somente é
entendida como religião para as necessidades elementares da vida. Além disso, em se
tratando do rito mágico, há uma característica irregular, anormal e mais importante, Ou
seja, para que ele se realize, há uma necessidade e não uma obrigação moral. Outra
importante distinção apontada pelo autor é a previsibilidade e o caráter oficial da prática
religiosa, que, necessariamente, faz parte de um culto. Há um aspecto obrigatório,
mesmo sendo voluntário: o rito tem um caráter de imposição, isto é, impõe-se algo para
se obter determinado fim. A prática da magia e da religião só apresentam sentido
53
enquanto relacionados com a vida social. Ambas ocorrem por meio de rituais e a
importância e o sentido do rito estão em âmbito social. Magia e religião são, portanto,
fatos sociais que acontecem intermitentemente no âmbito do sagrado.
Devemos, no entanto, considerar que, em se tratando de crianças, elas são
tocadas pela magia, mas ainda pouco influenciadas por fatos sociais, o que nos afasta da
ideia de Mauss. Sabemos também que as crianças ―personagentes‖ de Guimarães Rosa
não necessariamente se submetem à obrigatoriedade de um rito social ou mesmo à
imposição do pensamento de um adulto. As personagens em questão são crianças sábias
e inventivas, que buscam formas de desafiar as leis da razão e, por isso, mostram certa
autonomia e individualidade na significação mágica que atribuem aos ritos. Miguilim,
por exemplo, é o que mais sofre com as imposições e leis do mundo dos adultos e,
também, o que menos aceita a ideia de crescer. Também é preciso considerar que cada
uma destas personagens, Brejeirinha, Fita Verde e Miguilim, vivencia uma experiência
diversa e, dessa forma, o rito de passagem de cada uma e as significações atribuídas a
ele são diferentes. No entanto, o caráter mágico e poético presente nas significações
atribuídas ao rito de passagem são um ponto comum.
O rito, segundo Mauss (2000), acontece dentro de um espaço determinado, no
tempo e na história. Um dos objetivos do autor não é explicar a história da qual faz parte
a magia ou a história da magia propriamente dita, mas compreender a magia segundo o
viés do estudo do rito, como um fato social dentro da história.
Em O narrador, Benjamin (1985, p.198-199) discute experiência (Erfahrung)
como fonte da grande tradição narrativa. A experiência está relacionada com
movimento e mudança, isto é, assim como o rito de passagem, é preciso que exista o
deslocamento no tempo e no espaço. Na introdução de From ritual to theatre e no
ensaio ―Dewey, Dilthey e drama‖, o antropólogo britânico Victor Turner debate a
etimologia da palavra ―experiência‖, que deriva do termo indo-europeu *per-, ―tentar,
aventurar, arriscar‖. O termo grego, diz Turner (2005, p. 35), evoca a ideia de
―passagem‖ ou rito de passagem. Tanto no grego quanto no latim, o termo experiência
refere-se a ―perigo, pirata, e ex-per-imento‖. Podemos considerar, então, as experiências
individuais de Brejeirinha, Fita Verde e Miguilim como ritos de passagem para os quais
as próprias personagens, no universo da narrativa, atribuirão significados individuais e
não sociais, que são alheios ao contexto rosiano.
Mesmo que o rito mágico não seja cumprido por alguém que possua poderes
mágicos, como fadas e bruxas, é preciso que ele seja realizado por alguém, em
54
particular, que se enquadra nos padrões do mágico, ou que possua as características que
possibilitam a realização do ato mágico. Ainda considerando os estudos de Mauss, não é
qualquer indivíduo que pode praticar atos mágicos, pois eles implicam certas exigências
como a alteração do estado físico e mental de quem o realiza e, também, uma
preparação prévia. A magia, segundo dados apontados por Mauss, não é para quem
escolhe ser mágico, mas para alguém que já nasceu com as predisposições para sê-lo –
diferentemente de um sacerdote, que escolhe ser sacerdote, cuja escolha é legitimada
por uma instituição.
Após delinear as características do mágico, Mauss procura equacionar as
características do ato por ele praticado, ou seja, as particularidades da magia,
destacando a dimensão do oculto, do escondido, como aspecto fundamental da magia. A
magia está associada ao extraordinário da vida, à aceitação e à crença de que o
transcendental é possível. A magia existe porque existe a crença. Sem a crença, quebra-
se o encantamento e a magia deixa de existir. Se seguirmos o raciocínio de Mauss,
podemos considerar que crianças e poetas, esses seres movidos pelo desejo e pelo
imaginário, são aptos à magia e ao ato mágico. É esse o pensamento que consideramos
na tentativa de apreender o encanto e o desencanto que atribui sentido aos ritos de
passagem da vida infantil à vida adulta, vividos pelas personagens rosianas.
No mundo real, o rito de passagem se insere em todas as sociedades, mas é
vivenciado diferentemente. No entanto, há alguns elementos comuns, entre os ritos. Um
dos principais ritos é o de passagem da infância para a vida adulta.
Na sociedade ocidental, existem cerimônias que cumprem funções rituais, mas
não necessariamente marcam de forma definitiva a passagem da infância para a vida
adulta: desenvolvimento físico e psíquico, escolaridade, iniciações amorosas e sexuais,
casamento, responsabilidades produtivas, compreensões sobre determinados fatos da
vida. Tudo isso pode ser mais ou menos ritualizado nos contextos familiares e sociais,
somados a outras características de status, obrigações e direitos, que definem a categoria
de pessoas que constitui a força maior da reprodução da vida social. O fato é que não
existe uma referência clara a respeito do marco temporal de passagem. A indefinição
prolonga-se, a dependência desdobra-se por tempo bastante elástico e subjetivo.
Em nossa sociedade, construímos um padrão de sociabilidade que,
recentemente, inclui uma fase intermediária chamada adolescência. Essa etapa da vida
não corresponde, necessariamente, a uma fase biológica definida. Trata-se de uma fase
psicológica, cuja finalidade é adiar a transformação da criança em adulto. Essa
55
transformação pode ser mais ou menos ritualizada nos contextos familiares, escolares,
sociais e civis. São criados marcos, como a menarca das meninas, o Bar Mitzvah, o
baile de debutante, o primeiro amor, o primeiro beijo, a iniciação sexual, a formatura, o
primeiro emprego, a independência financeira, o direito de votar e dirigir, a saída da
casa dos pais etc.
O fato é que não existe em nossa sociedade uma referência clara ou um
consenso a respeito do marco temporal de passagem da infância para a idade adulta,
nem critérios nítidos para promovê-la, porque a chegada da adolescência é vivida de
maneira diferenciada e individual pelas crianças de classes e contextos sociais distintos.
O processo educativo das crianças é, portanto, um treinamento constante e contínuo de
aprendizagem das tarefas e do modo de ser masculino ou feminino. Juntamente à
assimilação gradativa de valores e referências culturais mais gerais, as crianças são
treinadas pelo método da imitação. As crianças brincam de representar as histórias
míticas, em que imitam e também recriam os adultos, os velhos, os animais e os
espíritos, em seus comportamentos, ações e posturas corporais, e fazem isso brincando.
Os velhos são aqueles que viveram mais e, por isso, sabem mais e devem transmitir suas
experiências – condição fundamental nas sociedades baseadas na tradição oral. As
crianças são seres em formação, devem aprender as coisas da vida e preparar-se para os
papéis sociais que assumirão no futuro.
Os rituais de iniciação, relativos à mudança de estado da infância para a
maturidade, praticamente, encerram o processo de educação básica. No entanto, o
adulto não pode ser considerado pronto e acabado nesse momento, seu processo de
socialização é contínuo até a morte. É preciso saber viver e morrer, saber envelhecer e
assumir papéis e funções diferenciadas ao longo da vida. Porém, o momento de
passagem para o estado maduro é decisivo, dado o sentido social que é atribuído a essa
categoria de pessoas. Cabe ao adulto ser independente, capaz de desempenhar todas as
tarefas e resolver todos os problemas que se lhe apresentem em situações esperadas ou
inesperadas, evidenciando-se relações de dependência e complementaridade entre
homens e mulheres.
Nas sociedades indígenas, em contrapartida, a adolescência não é uma fase
social nem psicológica, uma vez que ela não é necessária. O corpo dos jovens está apto
à procriação e, em seu processo educativo, já treinaram a aquisição das habilidades
práticas pertinentes ao seu gênero sexual. Portanto, cabe à sociedade promover sua
transformação em adulto, e essa passagem é realizada por meio de rituais de iniciação
56
considerados importantes no ciclo cerimonial (de nascimento, crescimento, casamento,
reprodução, envelhecimento e morte). A formação do homem adulto e sua incorporação
ao universo masculino, por exemplo, exige diversos testes – muitas vezes, rígidos e
violentos – de virilidade, força física, domínio das emoções, especialmente em relação à
coragem. Há também constante aprimoramento das habilidades básicas que o trabalho
requer, assim como a assimilação das regras e valores culturais.
Se levarmos em conta o pensamento da criança acerca dos ritos de passagem,
ritualizar é como re-atualizar. A experiência à qual ela atribui a magia permite-lhe
abandonar a noção do tempo profano, cronológico e irreversível. No tempo mítico, o
presente não substitui o passado, nem prenuncia o futuro. E, se não há ontem nem
amanhã, o momento é de eternidade, de continuidade. O contato com o agora elimina a
hierarquia das horas.
Com Victor Turner (2005), aprendemos que, em momentos extraordinários, de
exceção e suspensão de regras, o cosmos se renova e as tradições se revitalizam. Porém,
há os ritos que celebram o terror diante do desencanto. Sob o signo do horror, a exceção
é regra, as palavras e as coisas perdem sentido. Os sentidos são amortecidos. Nesse
caso, temos personagens crianças buscando reconstituir os sentidos do mundo e, diante
do esfacelamento de uma tradição narrativa, recompor a experiência. Talvez seja essa a
diferença entre a antropologia de Turner e o pensamento benjaminiano. Em ambos, o
olhar se dirige aos momentos de interrupção, de desencanto. Mas, em Turner, a ruptura
se transforma em transição, reconstituindo e revitalizando o todo – tal como acontece
num rito de passagem.
O rito de passagem, vivenciado pelas ―personagentes‖ de Rosa que são almas
ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o
milagre, está intimamente relacionado com as experiências mágicas que, por sua vez,
estão intimamente relacionadas com a poesia. Isto é, com o método rosiano de contar
estórias. Rosa faz mágica com a estrutura do conto, com a linguagem, com as palavras.
Podemos considerar que é esse deslocamento no tempo e no espaço narrativo, essa
vivência na criação poética que caracteriza o rito de passagem das personagens rosianas.
Brejeirinha, juntamente com Pele, Ciganinha e Zito, Miguilim, juntamente com Dito, e
Fita Verde vivem contos de fadas às avessas, buscam o sentido da aventura humana,
orientando seu pensamento para o irracional e para a magia, sem se submeterem a uma
motivação social.
57
Capítulo III – O universo mágico-poético rosiano
3.1. Brejeirinha e a “história de tolice” do audaz navegante
O objetivo neste tópico é apresentar algumas reflexões sobre o conto Partida do
audaz navegante, presente em Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa, propondo
uma leitura apoiada nas concepções de magia e de infância. Neste conto em especial,
Guimarães apresenta o pensamento poético das crianças com todo o seu vigor, fazendo-
nos questionar os limites do que é visto e do que é apenas entrevisto, tudo aquilo que
pode ser captado pelo olhar da criança. Chama-nos especial atenção nesta narrativa a
presença intrigante e sedutora do pensamento mágico-poético da protagonista, uma
garotinha chamada Brejeirinha, de quem pouco sabemos além de se tratar de uma
pequena poeta que se diverte em criar histórias e resoluções fictícias para situações
reais. Como afirma o narrador, ―Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades:
delas apropriava-se e refletia-as em si – a coisa das coisas e a pessoa das pessoas‖
(ROSA, 2016, p. 140).
Trata-se da história de um dia na roça, em que a pequena Brejeirinha conta a
suas irmãs Pele e Ciganinha e a seu primo Zito, as aventuras do ―indo-se embora do
navio‖ do ―audaz navegante‖ para longe no mar, ―navegante que o nunca-mais, de
todos‖. Sua narrativa dentro da narrativa assume um discurso mágico e insólito, à
semelhança do discurso dos poetas. Em sua ingenuidade e astúcia, a pequena consegue
resgatar nas demais crianças, talvez quase adolescentes, o olhar mágico e inocente para
a vida que, possivelmente, elas já não alcançavam mais ou estavam prestes a perder. No
entanto, um leitor de prazer, possivelmente alcançaria o que chamamos aqui de
narrativa primária, isto é, uma narrativa que trata do cotidiano, neste caso, das crianças
no campo.
Piglia (2004), em Formas Breves, considera que existem sempre duas histórias
na estrutura narrativa do conto, ou seja, dois sistemas diferentes de causalidade, duas
lógicas diferentes e antagônicas, que são demonstradas diferentemente em cada história
e, em sua intersecção, está o fundamento da construção narrativa do conto. Há sempre
um enigma, uma história contada de modo enigmático, sendo essa história secreta a
chave da forma do conto e suas variantes. Portanto, segundo Piglia (2004, p.112), o
conto é construído para revelar artificialmente algo que estava oculto:
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Há um mecanismo mínimo que se esconde na textura da história e é sua
margem e centro invisível. Trata-se de um procedimento de articulação, um
levíssimo engaste que dá fecho à dupla realidade. A verdade de uma história
depende sempre de um argumento simétrico que se conta em segredo.
Concluir um relato é descobrir o ponto de interseção que permite entrar na
outra trama.
A primeira narrativa desse conto rosiano trata do seguinte enredo: em um dia
chuvoso, quatro crianças estão na cozinha de uma casa de campo. Pele, nome que talvez
seja uma referência ao conto francês Pele de Asno, a irmã mais velha, ajuda a mãe nos
afazeres da cozinha, Ciganinha finge ler um livro para dissimular seu aborrecimento
com Zito, seu primo, com quem estava brigada. Zito também evita conversar com ela,
pensa em ir embora ―teatral‖, de um jeito dramático, mas, na verdade, já está cansado da
briga. Brejeirinha, a mais nova e arteira, observa tudo, inquieta, e começa a chamar a
atenção de todos, com perguntas e uma história sem muito fundamento sobre um tal
audaz navegante, que poderia ser seu primo Zito. Suas irmãs, a princípio, criticam a
história ―boba‖, mas Zito gosta. Pele rezou para a chuva passar enquanto batia os ovos
e, de fato, o tempo melhorou. As crianças, então, tiveram permissão para brincar perto
do riachinho e saíram. No caminho, Zito e Ciganinha fazem as pazes e conversam de
maneira amistosa, sugerindo um namoro entre eles. Brejeirinha sai correndo, cai e se
suja. Quando percebe que a irmã Pele ainda se lembra da história do audaz navegante,
resolve retomá-la. Como é criança, não sabe utilizar muito bem a pronúncia ou o
significado das palavras, e não se preocupa com a lógica do enredo. No entanto, a
história ganha o interesse das demais crianças. Como Brejeirinha perde o fio da história,
Pele caçoa da irmãzinha e aponta um estrume seco de vaca dizendo ser este o ―aldaz
navegante‖. As crianças resolvem enfeitá-lo com flores, e Brejeirinha resolve terminar a
história. Quando começa a chover e o ―bovino‖ é cercado de água, as crianças deduzem
que o ―audaz navegante partirá‖ e resolvem enfeitá-lo com chiclete, grampo de cabelo e
moeda, como uma maneira de mandar ―recados‖ para ele. Brejeirinha inventa um outro
final, em que o audaz navegante não parte sozinho, mas com sua amada. A chuva
aumentava e Brejeirinha, assustada, tranquiliza-se quando vê a mãe, que a pega no colo
com carinho. Juntos observam o ―audaz navegante‖ sendo levado pela chuva. Depois,
voltam todos para casa.
Contado dessa maneira, limitando-se ao enredo, o conto perde o encantamento.
A linguagem, a oralidade e a magia não podem aqui ser reproduzidas. Um leitor de
prazer, segundo Barthes (2015, p.18), realizaria uma leitura apegada às articulações da
anedota, ignorando os jogos de linguagem, suspense pela avidez do conhecimento, do
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enigma e do segredo, e, certamente, consideraria a pequena extensão do conto. Para ele,
tratar-se-ia de uma história adorável sobre o dia a dia no campo, um dia comum, em que
crianças, aborrecidas com as chuvas inconstantes, brincam e conversam para passar o
tempo. Já o leitor de fruição consideraria a escritura como um bem precioso, passado de
um indivíduo (autor, no caso, Guimarães Rosa) a outro (o leitor), sendo este instigado a
adicionar novos e ilimitados sentidos a cada nova leitura que realiza de uma mesma
obra. Isso porque está diante de uma personagem que exige essa fruição. Por escritura,
Barthes (2015, p. 11) entende: ―a ciência das fruições da linguagem‖, isto é, aquilo que
surge da inscrição do texto no leitor e do leitor no texto. Brejeirinha dedica um olhar de
alegria para todas as coisas e transforma, por meio de seu olhar poético,
questionamentos do plano da realidade imediata em incríveis mediações poéticas. Tanto
que, todo o tempo, sua narrativa poética disputa lugar com a narrativa contada pelo
narrador da história em que está inserida.
Não é nosso objetivo revelar e esgotar as possibilidades de leitura do conto
Partida do audaz navegante, considerando a sua riqueza poética. Mas podemos prever
alguns caminhos possíveis, como, por exemplo, um leitor de fruição alcançaria as novas
camadas do texto, tropeçaria no primeiro estranhamento.
Em Partida do audaz navegante, até o que parece ausência torna-se uma
possibilidade de existência. É uma narrativa de imagens claras, da paisagem diluída às
claridades do dia, aos movimentos das crianças. A ―poetista‖ desta prosa-poética sugere
uma história mágica, leva os próprios personagens a um outro lugar, propondo
hipóteses, fazendo indagações insólitas como: ―Zito, tubarão é desvairado, ou é
explícito ou demagogo?‖ (ROSA, 2016, p. 140). As suas palavras são anteriores à
lógica e esse é um dos fios condutores da magia presente nesse conto. O leitor de
fruição proposto por Barthes é aquele que procura apreender, revelar e desconstruir a
ambientação criada no texto. No caso de Guimarães Rosa, somos apresentados, desde o
início, a uma ambientação onírica, semelhante à introdução de um conto de fadas:
Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer
coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de
alpendre, atrás da pequena casa. No campo, é bom; é assim.
(...)
Meia manhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase
presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas" (ROSA,
2016. p.139).
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A magia da arte de contar já é característica em Rosa também quando se vale de
neologismos, como ―brumava‖, de adjetivações inesperadas, como ―fogo familiar‖, e
sutilezas que nos dão pistas de que o que parece não é: ―parecia não acontecer coisa
nenhuma‖. Logo no primeiro parágrafo, o leitor de fruição percebe e se lança à
oportunidade de uma leitura que o fará levantar a cabeça várias vezes e, ao mesmo
tempo absorve-o. Segundo Barthes (2015, p.18) o que é digno de apreciação, num
relato, não é diretamente o conteúdo, o enredo, nem mesmo sua estrutura:
(...) mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro, salto,
ergo a cabeça, torno a mergulhar. Nada a ver com a profunda rasgadura que o
texto da fruição imprime à própria linguagem, e não à simples temporalidade
de sua leitura.
Esta aparente falta de perspectiva, este ―parecia não acontecer coisa alguma‖
com que o dia e a narrativa se iniciam, colore as oportunidades que a menina terá para
reconstruir ou recriar uma manhã sem sol. É a partir dessa atmosfera brumosa que a
pequena poeta Brejeirinha terá oportunidades de acionar e vivenciar a riqueza e a
potência do seu ser poético. A imaginação de Brejeirinha liberta-se, invade o dia e
ilumina a manhã chuvosa. Vivendo genuinamente a poesia, ela restaura na manhã de
tédio uma luz de sol que vai transformar a manhã de todas as crianças do local.
Em seguida, são apresentadas as personagens, cujas descrições estão longe de
serem fechadas e limitadas ao texto. O leitor de fruição reconhece-lhes a vida e o corpo,
sem, contudo, conhecê-los de fato. Primeiramente, somos apresentados à Mamãe, a
bela, a melhor. Pés tão pequenos que ela podia usar as chinelas da filha mais velha,
Pele. Os cabelos de um ―louro silencioso‖, outro adjetivo misterioso. Percebemos nessa
personagem descrições tão poéticas que se assemelham às de uma fada: ―vogais de
doçuras‖, considerando que vogais são mais fluidas e melodiosas do que consoantes;
―bátegas de bênçãos‖, como um poder atribuído a seres divinos. Suas meninas-dos-
olhos podem brincar de bonecas. As bonecas são Pele, Ciganinha e Brejeirinha, que
―brotavam num galho‖. Há também o primo, Zito, esse é de fora. É com ―orgulhos e
olhares‖ que a mãe cuida das crianças. De Brejeirinha mais do que das outras, porque
―às vezes, formava muitas artes‖.
Brejeirinha é apresentada ao leitor aos poucos, em camadas que não dão a
esperança de chegarem ao fim, como crianças diante de uma misteriosa caixinha de
surpresas. O narrador diz: ―A gente via Brejeirinha‖ (ROSA, 2016, p. 139) como quem
61
participa da cena, tamanha a subjetividade de sua descrição. Ela, no momento, está
sentada em um caixote de batatas, ―cruzadinha, traçada as pernocas‖. Por um ―azougue
de quieta‖, percebemos uma personalidade paradoxal. Mesmo ocupada com a caixa de
fósforo, é uma garotinha inquieta, de cabelos louro-cobre e, no meio deles, são
reveladas coisinhas diminutas, como um perfilzinho agudo, pestanas ―tiltil‖, um
―narizinho que-carícia‖ e ―não de siso débil, seus segredos são sem acabar‖. As
descrições das ações incansáveis de Brejeirinha também são incompreensíveis, porém
imagináveis: ―andorinhava, espiava agora – o xixixi e o empapar-se da paisagem‖ e
gosta, ―poetista‖ que é, de lampejar longo clarão no escuro de nossa ignorância.
A descrição de Brejeirinha cessa nas linhas de um texto, repleta de diminutivos,
como ―perfilzinho‖, ―narizinho‖, a ação de ―andorinhar‖, onomatopeias como ―xixixi‖,
criação de imagens, como pestanas ―til-til‖, que se assemelham a dois tils. Mas não
cessa na amplitude de sua escritura/narrativa possível. Composta de sonoridades e
neologismos, o leitor a constrói como pode, levanta a cabeça do texto, procura
associações possíveis em seu imaginário e em arquivos da memória. Mais do que uma
personagem, Breijeirinha pode ser considerada uma leitora de fruição, embora mal saiba
ler o catecismo, nem os romances pequenos ou grandes. Talvez, um dos ritos de
passagem vivenciados por Brejeirinha seja exatamente este: o letramento. Não puro e
simplesmente o be-a-bá, mas a compreensão, os processos de significação e significado
do mundo, a linguagem, a interpretação, a criação. Processos que ela realiza com alegria
e destreza, uma vez que ninguém melhor do que uma poeta para ―lampejar longo clarão
no escuro de nossa ignorância‖. Seu nome sugere alguém que no brejo vive, de lama se
suja. No entanto, também sugere que se trata de criança marota, divertida, brincalhona,
traquina, astuciosa. É assim que a trataremos a partir de agora: alguém que não é apenas
uma personagem, mas um agente de criação, inclusive do conto.
Tomemos emprestadas as considerações de Iolanda Cristina dos Santos (2007. p.
137) sobre Brejeirinha que, segundo ela é uma criadora de imagens, enxerga grande e
belo, e consegue criar um novo mundo para si e para Pele, Ciganinha e Zito, ao
mergulhar no mundo do devaneio poético:
Seu olhar vai além da neblina da manhã, porque dentro dela residem outras
personagens, outras estórias. O mundo atual, aparentemente descolorido, é
revivido nas cores poéticas com que ela pinta a paisagem. Ela não busca o ―o
quem‖ das coisas, como o faz o Velho da novela ―Cara-de-bronze‖;
tampouco, ao contrário de Miguilim, em Campo geral, ela não quer entender.
Ela deseja criar, reinventar, colorir o lugar e a estória.
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Brejeirinha, além de criar, reinventar e colorir, talvez queira, sim, entender
problemas fundamentais do ser humano, como a vida, o destino, o amor. Justamente por
ser criança e poeta, esse não entendimento acerca da vida permite-lhe a criação de um
mar que nunca viu, terras distantes que nunca pisou, um romance grande que nunca leu,
experiências que jamais vivenciou.
Além de Brejeirinha, temos as demais personagens descritas de modo que
escapa das mãos do leitor. A irmã mais velha, Pele, a que ―beliscava em doce‖, ―sorria
sempre na voz‖, sugere-nos uma personalidade dúbia. Ela já auxilia a mãe nas tarefas da
cozinha. É quem bate os ovos, quem reza a Santo Antônio para chamar o sol.
Constantemente, ainda que com doçura, questiona e corrige Brejeirinha, ajeita-lhe a
roupa, assumindo um papel maternal, de quem é doce e, ao mesmo tempo, quer impor
certa ordem.
Ciganinha, outra irmã de Brejeirinha, ―a menina linda no mundo‖, retrato miúdo
de sua mãe, é quem, ardilosa, ―lê‖ um livro sem virar a página. O grande rito de
passagem vivenciado por ela, claramente, é a descoberta do amor. Seu nome sugere
boemia, misticismo e astúcia, alguém sem raízes, sempre pronto para partir. Também
pode ser uma referência à personagem Ciganinha do conto homônimo de Visconde de
Taunay (2005, p. 53), moça descrita como independente, audaz, inquieta, de gênio
violento e bastante sedutora.
Zito, o primo das meninas, o ―de fora‖, o ―meiozinho homem‖, ―leal de
responsabilidade‖, o que deseja partir, ―ir-se embora teatral‖, é quem inspira a história
do audaz navegante. Seu nome remete a Joãozito, como João Guimarães Rosa era
chamado quando era menino. Percebemos que se trata de um personagem duplo que, ao
mesmo tempo em que vivencia ritos de amadurecimento e responsabilidade, também
descobre o amor pela prima Ciganinha e o desejo de aventurar-se em ―descobrir outros
lugares valetudinário‖.
O leitor de fruição busca amparar essa explosão semântico-poética e apreender
esses personagens que se apresentam com tantas fissuras, tão próximos à forma como
compreendemos o conto maravilhoso. Na leitura de fruição, não existe por trás do texto
ninguém ativo, como é o escritor Guimarães Rosa, por exemplo, e, diante dele, ninguém
passivo, como não é permitido ao leitor de Rosa ser. Barthes (2004), antes de ―O prazer
do texto‖, já havia proclamado a ―morte do autor‖ e a ideia de um olhar voltado ao
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―leitor crítico‖ e à sua experiência, cada vez mais atuante ali, onde o escritor tenha se
descuidado ou se deixado abandonar.
Sabemos que Brejeirinha ―vivia em álgebra‖ e tem ―infimículas inquietações‖.
Ela quer ―saber o amor‖ e é sensível à iminente ―briguinha grande e feia‖ entre seu
primo Zito e sua irmã Ciganinha, por motivos ―de não ousar dizer, coisa de ciumoso, ele
abrira-se à espécie de ciúme sem motivo de quê ou quem.‖ É sensível também ao
sentimento que nasce ali, o qual ela quer entender, e o qual, talvez, nem Zito e
Ciganinha, ―quase assustados‖, entendem.
Brejeirinha, em uma pirueta, afirma, categórica, que sabe por que o ovo se
parece com um espeto, mas não vai contar a ninguém. Esse é um dos segredos de
Brejeirinha e, também, o enigma do conto, que será reiterado nas linhas finais. Ovo e
espeto são dois elementos polares em vários sentidos e essa aproximação é antiga para
referir-se ironicamente a duas coisas que em nada se assemelham.
Em sua correspondência a Meyer-Clason, seu tradutor alemão, Rosa (2003, p.
316) explica a que veio a expressão utilizada por Brejeirinha:
Há, em português, a expressão: ―Tão parecidos como um ovo e um espeto‖,
para dizer que duas coisas, ou duas pessoas, são muito diferentes uma da
outra. Aqui, Brejeirinha descobre uma profunda verdade metafísica,
desmoralizadora da nossa concepção idiota da ―realidade estática‖: as coisas
aparentemente mais diferentes, são em verdade, às vezes, as mais próximas
uma da outra. Veja, a propósito, o próprio título, e o próprio tema da estória.
Em se tratando de Brejeirinha, sendo ela personagem de Rosa, tudo nos leva a
crer que o ovo e o espeto escondem segredos nesta narrativa. Adélia Bezerra de
Meneses (2015, p. 77) é quem nos auxilia a estabelecer relações nesse encontro de
contrários: o espeto, retilíneo e agudo, é a figuração do elemento penetrante, enquanto o
ovo, sem arestas, figura receptividade incondicional; espeto é inorgânico, o ovo,
orgânico; espeto é pontudo, o ovo, ovalado, espeto é seta, o ovo, esfera. Há também
uma relação entre o masculino e o feminino, o óvulo e o espermatozoide, remetendo,
inevitavelmente, a uma simbologia cada vez mais sexualizada do par primordial de
opostos. A aproximação de ambos, seria, então, a fecundação, uma nova vida, uma nova
possibilidade de criação.
Rosa lança-nos pistas sobre essa misteriosa analogia ao longo de todo o conto.
Os ovos, por exemplo, aparecem logo no primeiro parágrafo, quando Mamãe manda a
personagem Maria Eva – dois nomes bíblicos, sendo o primeiro referente à soberania,
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pureza e virgindade e, o segundo, à vida – estrelar os ovos. Um leitor de fruição está
ciente que deve estar atento a cada detalhe nesta história repleta de segredos, assumindo
uma atitude parecida com a de Brejeirinha:
Brejeirinha é assim, não de siso débil: seus segredos são sem acabar. Tem,
porém, infimículas inquietações: - ‗ Eu hoje estou com a cabeça muito
quente...‘ – isto, por não querer estudar. Então, ajunta: - ‗ Eu vou saber
geografia.‘ Ou: - ‗ Eu queria saber o amor...‘ Pele foi quem deu risada.
Ciganinha e Zito erguem os olhos, só quase assustados. Quase, quase, se
entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que se crê com a razão,
muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não
aguentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda, se
envoava (ROSA,2016, p.140).
Percebemos o lirismo com que é tecida a troca, ou melhor, o desencontro de
olhares de Zito e Ciganinha, sedutores, inocentes e oscilantes, ―num não encontrar-se‖.
Mesmo olhando disfarçada e rapidamente, ―à socapa‖, Ciganinha se torna mais linda
aos olhos de Zito, ela ―se envoava‖, isto é, crescia em beleza a ponto de levantar voo
como um anjo. Outro ponto que chama a atenção neste conto é o desapego à lógica e à
razão por parte da protagonista, ao mesmo tempo em que sugere astúcia, imaginação e
sensibilidade quando expõe seus questionamentos.
Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes? – Brejeirinha
especulava. – ― É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...‖ Pele lambava-
lhe um tico de desdém (...)‘ ― (ROSA, 2016, p.140).
Brejeirinha, querendo ―saber o amor‖, busca as explicações possíveis a partir dos
elementos de que dispõe: a imaginação, as palavras, a sensibilidade, a magia, a poesia.
Pele, a irmã mais velha, a desdenha, ainda que com doçura, sempre sorrindo na voz.
Mas Brejeirinha está vivenciando tão intensamente as revelações do seu ser poético que
não se preocupa em criar embates com a irmã. Ela não precisa se explicar; e quando se
justifica, ainda assim é por uma fala totalmente desautomatizada, repleta de metáforas e
de lirismo. Ela ―queria avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão‖,
porque, logo percebemos, ela vê além. Ela ―gostava, poetista, de importar desses sérios
nomes, que lampejam longo clarão no escuro de nossa ignorância‖ (ROSA, 2016,
p.140). É Brejeirinha, nesse dia chuvoso, quem traz a luz, isto é, novas possibilidades às
outras crianças, tão resistentes.
Percebendo o enamoramento e a possibilidade de separação entre Zito e
Ciganinha, Brejeirinha faz a sua escritura/narrativa: aquela que, para o leitor de prazer
seria apenas uma história contada por uma criança, repleta de limitações vocabulares,
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lógicas e semânticas; para o leitor de fruição, poderia representar a redenção da
possibilidade de criação, a metalinguagem:
Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas apropriava-se e
refleti-as em si ―a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. ― ‗Zito, você
podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-
onge no mar, navegante que o nuncamais, de todos?‘ Zito sorri, feito um ar
forte. Ciganinha estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada‖
(ROSA, 2016, p.140).
As duas estórias, a de Brejeirinha e seus irmãos naquela manhã de chuva, e a do
audaz navegante, encaixada neste momento à primeira pela protagonista, estão
estreitamente vinculadas e se complementam, mas ainda assim conseguimos delimitá-
las e perceber o que é próprio de cada uma, o que é necessidade de cada enredo. É nesse
momento que Pele recebe a terrina da mãe para bater os ovos, elemento misterioso tão
semelhante a um espeto que, já sabemos, deve nos chamar a atenção. E Brejeirinha,
empolgada, não detem em si o ―jacto de contar‖, como algo involuntário e natural, e
continua a história do ―Aldaz Navegante‖, que foi ―descobrir os outros lugares
veletudinário‖. É a primeira vez que aparece no texto a grafia da palavra ―aldaz‖ em vez
de ―audaz‖ na fala de Brejeirinha. Imaginamos uma garotinha empolgada, pronunciando
o som do ―l‖ com entusiasmo e exagero, como para atribuir pompa e importância ao
personagem inventado. A grafia, ou pronúncia, equivocada da palavra ―audaz‖,
escolhida pela personagem, simboliza sua soberania sobre o que está por vir, que escapa
das mãos do autor original e passa a pertencer a ela, que tece uma nova
escritura/narrativa. Certamente, ela desconhece o significado de palavras como
―veletudinário‖, que sugere alguém de constituição física débil, doentia, sempre sujeito
a enfermidades. Nada parecido com um navegante audaz que, à princípio, parte sozinho,
com muita saudade, mas sem lágrimas, pois ―precisava respectivo de ir‖. Os que não
partiram ―batiam‖ lenços brancos e, quando não tinha mais navio para ver, só um resto
de mar, ficaram tristes:
Então e então, outro disse: ─―Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca
vai voltar...‖ Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: ─―Ele deve
de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber...‖ Então, todos
choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar... (ROSA,
2016, p. 141)
As irmãs de Brejeirinha recebem a história com certo desdém e zanga.
Ciganinha, especialmente, parece muito tocada pela partida do ―aldaz navegante‖. Mas
a pequena poeta, senhora de sua história, agente de criação, reconhece o seu potencial
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mágico e não precisa da aprovação de ninguém. Sabe também que a magia do contar
precisa acontecer. É uma pulsão poética mais forte do que ela:
─―Você é uma analfabetinha ―aldaz‖. ─―Falsa a beatinha é tu!‖ ─ Brejeirinha
se malcriou. ─―Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?‖
─ e Ciganinha se feria em zanga. ─ ―Porque depois pode ficar bonito, ué!‖
(...) Disse ainda, reflexiva: ─―Antes falar bobagens, que calar besteiras...‖
(ROSA, 2016, p. 141).
Ao inventar sua história, Brejeirinha pode, transgressoramente, deixá-la ―bonita‖
à sua maneira e alterar, quando quiser, o percurso adotado no início. A força de sua
fantasia atua sobre a sensibilidade dos ouvintes, especialmente Ciganinha e Zito, que se
projetam na separação do audaz navegante e sua amada. E não seria essa a dimensão
transformadora da arte, o de provocar prazer e encantamento? Os acontecimentos
cotidianos presentes na narrativa também contribuem para que a transformação
aconteça. Pele havia rezado dez responsos a Santo Antônio enquanto batia os ovos e, de
fato, ―estourou manso o milagre‖. O tempo melhorou, como se aquele movimento de
Pele com os ovos fosse um ritual de magia para chamar o sol. Remete à lembrança de
um antigo costume no campo, especialmente entre crianças. Para a chuva ir embora,
costuma-se colocar um ovo no telhado e rezar as seguintes orações, dez vezes: ―Santa
Clara clareou, Santo Antônio iluminou, vai chuva, vem sol vai chuva, vem sol, vai
chuva, vem sol".
Simpatias de colocar ovos no telhado para Santa Clara fazer parar de chover
foram baseadas na lenda de que, quando a mãe desta santa estava grávida, ela dizia que
a criança se chamaria Clara, pois iluminaria o mundo. Acredita-se que a profecia se
cumpriu. Durante a sua infância, Clara aprendeu a cozinhar e seus confeitos preferidos
eram doces feitos de clara de ovos. Na juventude, ela conheceu São Francisco de Assis
e fundou a ordem de freiras chamada Clarissas. Alguns desses confeitos feitos com ovos
alimentavam as freiras, mas a maioria deles era vendida na aldeia para ajudar
financeiramente os pobres. Porém, naquela região, uma praga exterminou as galinhas e,
consequentemente, os ovos. Santa Clara rezou para que Deus enviasse uma solução e,
no mesmo instante, bateu na porta do convento uma caravana de carroças, cheias de
galinhas e pessoas, vindas da Espanha, pedindo abrigo, pois fugiam de uma inundação
em sua aldeia. Em troca de hospedagem, ofereciam galinhas e ovos. Santa Clara aceitou
a proposta e aquelas pessoas simples encheram sua cozinha de ovos. Então, ela rezou
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para que cessassem as chuvas. Milagrosamente, Santa Clara fechou os olhos e viu a
chuva cessando naquela aldeia e a água sendo sugada pelo Sol quente.
Um leitor de fruição é atento ao fato de que ―Ciganinha e Zito se suspiravam‖,
não cada um sozinho, mas um ao outro. Suspiros, além de serem um reflexo vital, são
doces feitos de claras de ovos batidos, curiosamente o que Pele preparava antes do
―milagre‖ acontecer. Um leitor de fruição também está atento ao fato de que o tempo se
abre e a ―manhã se faz de flores‖ não por acaso, não como uma mera chuva de março
que simplesmente cessa dando lugar ao sol, mas como uma forma de se iluminarem as
possibilidades do imaginário no porvir. A natureza, que jamais pode ser desprezada nas
narrativas de Guimarães Rosa, convida as crianças à busca de uma nova perspectiva
para a história que Brejeirinha começou a criar. Uma rede de pluralidades é tecida pelo
narrador da história, seja ele Guimarães Rosa ou a personagem Brejeirinha, que realiza
sua escritura, ganha vida aos olhos do leitor, desde que ele seja aquele tipo de leitor que
mantém o prazer e a fruição ao seu alcance. O narrador, assume o discurso da
personagem, assume a linguagem, o tom lúdico e emotivo e mesmo suas excitações,
hesitações e pausas. Com a melhora do tempo, pediram permissão para ir espiar o
riachinho cheio. Mamãe, que ―desferia chufas meigas‖ com uma ―voz de vogais
doçuras‖, deixava, desde que alguém fosse junto. Zito, um ―meiozinho-homem, leal de
responsabilidades‖, é quem as acompanharia. As crianças partem com a alegria de quem
parte para uma aventura, Brejeirinha, principalmente, ―menina só ave‖, sente-se livre e
feliz como um passarinho. Com a benção da mãe ―profetisa‖, somente se pode prever
um caminho encantado para as crianças que partem.
Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. ─―Vão
com Deus!‖ ─ Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e
choviam era bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.
(...)
No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha colavam-se, muito às tortas, nos
comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua
experiência de felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental.
(ROSA, 2016, p. 142)
No caminho, percebemos que Zito e Ciganinha não estão mais brigados e
caminham, de braços dados, sob o mesmo guarda-chuva. Barthes (2015) sugere que,
quanto mais o texto ―economiza‖, mais o leitor despende energia em sua leitura de
fruição, mais vezes a cabeça ele levanta. Quanto mais vazios no texto, mais o leitor deve
preenchê-los com sua escritura, sua imaginação. Nos ―comovidos não-falares‖ entre os
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dois, que representam o amor nesse conto, há mais carga semântico-poético do que em
todo o restante do parágrafo.
Brejeirinha escorrega na lama e se suja, deduzindo que agora pode ―não ter
cuidado‖. Sabemos que os estrumes de vaca por ali são chamados por ela de ―bovino‖.
Chegando aonde o riachinho faz foz, Brejeirinha observa os barulhos e bolhas que ali se
fazem e crava varetas de bambu para medir o crescimento da água. Essas varetas de
bambu cravadas por Brejeirinha – travessuras de Rosa – talvez sejam uma pista, o
espeto que ela julga tão semelhante ao ovo. E seu ―jacto de contar‖ não cessa:
Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés. ─ ―Você
já viu jacaré lá?‖ ─ caçoava Pele. ─ ―Não. Mas você também nunca viu o
jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não
estar...‖ Mas, Brejeirinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu
par de olhos passarinhos. (ROSA, 2016, p. 143)
Brejeirinha, sem tomar conhecimento, parafraseia Shakespeare: ―Há mais entre o
céu e a terra do que supõe nossa filosofia‖. Essa fala da personagem aparece como um
dos trechos mais encantadores desta narrativa, pela ausência de limites criativos da
personagem-poeta e também como sensação de comunhão das dicotomias entre estar e
não estar, ser e não ser. No fragmento em questão, percebe-se a inversão de raciocínio:
o que a menina vê é o que o leitor pode ver a partir do que o narrador propõe. O par de
―olhos passarinhos‖ de Brejeirinha consegue ver além. Brejeirinha cria novas
possibilidades de visão, expandindo o campo de visão tanto dos leitores quanto das
personagens Pele, Ciganinha e Zito.
Segundo Iolanda Cristina dos Santos (2007, pp. 134-135):
Na voz e pelo olhar de Brejeirinha é-nos possível flexibilizar, mais uma vez,
as certezas calcadas em critérios que geralmente são limitadores. Ora, quando
a menina aponta para algo que pode existir, ainda que não esteja em algum
lugar, somos convidados a rever as possíveis lacunas e ausências, e
imaginarmos que, até onde nada parece acontecer, alguma coisa está
acontecendo. É uma fala que relativiza as noções de tempo e espaço e de
presença/ausência.
Trata-se de um olhar que primeiro dessacraliza a nossa certeza, e que, segundo,
questiona o olhar ou o foco do olhar dos outros, propondo o preenchimento de um
enunciado silencioso que, não obstante seu silêncio e sua ausência, está lá. ―O jacaré-
não-estar-lá‖ é um enunciado que nos ensina a rever os espaços silenciosos dos
acontecimentos e da própria narrativa.
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Ciganinha e Zito estão sentados em uma pedra que só dá para dois e, nesse
microcosmo criado pelo casalzinho, ―podiam horas infinitas; apenas conversando como
gente trivial‖. Enquanto Pele colhe flores e a cachorrinha Nurka se diverte correndo,
Brejeirinha observa a confirmação do amor, que ela já classificou como ―original‖ e
―singular‖. Certamente, ela desconhece o real significado dessas palavras, mas, para ela,
poeta e senhora de sua história, são prenhes de sentido e modificáveis a seu bel-prazer.
Então, ela retoma a história do ―aldaz navegante‖ que partira, mas não gostava de mar,
porque amava uma moça, de quem se lembra sempre. Ciganinha e Zito riem, sorriem
juntos, enquanto Pele se surpreende porque o assunto, ainda não se encerrou.
Percebemos que as demais crianças, a essa altura, já demonstram interesse e
encantamento por essa história, tão cheia de mistérios e magia, inventada por
Brejeirinha.
De um audaz navegante que parte, enfrentando a chuva em um navio
espedaçado, deixando a amada, ―cada um em uma ponta da saudade‖, sem salvação,
Brejeirinha começa a perder o fio da história. As outras crianças querem se apropriar da
história, pedem a continuação, não se contentam apenas com a narrativa de Brejeirinha.
É preciso mais, é preciso que a história ganhe ―corpo‖, ainda que seja um corpo
apontado por Pele, a partir de um esterco ressequido, de onde ―brotou‖ um cogumelo: o
audaz navegante surge, com um chapeuzinho branco e ―petulante‖ no que haveria de
mais desprezível no cenário. Pele deixa as flores que colhia – josé-moleques,
douradinhos e margaridinhas – caírem sobre o que seria a obra-prima criada por
Brejeirinha. Zito e Ciganinha batem palmas, como um ritual de transformação. Criação
que aponta para a própria materialidade da criação da escritura/narrativa. Brejeirinha, a
grande criadora do ―aldaz navegante‖ o ―crivava‖ com mais coisas: folhas de bambu,
raminhos, gravetos, coisas que se ―espetam‖, confirmando a representação do ―espeto‖
no conto, indagando se não haveria nenhuma flor azul.
É nesse ponto da narrativa que começa a trovejar, o anúncio de uma chuva
iminente e, mais uma vez, percebemos a natureza como elemento de transformação, tão
presente em Guimarães Rosa. A magia é reforçada pela presença da água e sua força
transformadora, além das folhas, raminhos, gravetos. Tudo o que poderia servir de
―condão‖ para a transformação daquela matéria, o ―bovino‖, em algo vivo, o audaz
navegante. Brejeirinha teme o trovão e, como um navio sem rota, sua história passa a
oscilar, enveredando por um universo de possibilidades. Ela já não sabe onde sua
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escritura/narrativa vai parar. Ansiosa, pergunta se seu ―aldaz‖ navegante vai para o mar:
―Um ventinho faz nela bilobilo acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos, os
cabelos. A chuva, longe, adiada‖ (ROSA, 2016, p. 145). Eis um acontecimento mágico:
o vento lhe responde ―sim‖, carinhosamente, como um arauto da arte. Brejeirinha tem o
aval de sua infância, da natureza, de sua poesia e de seu imaginário para prosseguir em
sua escritura/narrativa.
Ela volta os olhos novamente ao seu objeto de leitura: Ciganinha e Zito,
segredando-se não mais cada um em uma ponta da saudade, mas, cada um em uma
ponta da realidade, perguntam-se quando se veriam de novo. Ciganinha pergunta se Zito
seria capaz de fazer como o Audaz Navegante, ir descobrir novos lugares:
Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras pequenas, ti a
mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava neles,
confusa ─ assim rosa-amor-espinhos-saudade. (ROSA, 2016, p. 145).
Nesse trecho há uma declaração de amor entre Zito e Ciganinha, que só
podemos supor pelo ―coisas grandes em palavras pequenas‖ e pela busca de referências
e aproximações possíveis na sequência semântica: ―rosa-amor-espinho-saudade‖.
Talvez o espinho, elemento próximo, mas, de certa forma, antagônico à rosa, marque
novamente a presença do enigmático ―espeto‖, como uma forma de ligar-se à dor da
saudade e ao amor. Por erotismo, Roland Barthes (2015, pp.15-16) entende uma
revelação progressiva. O amor inocente entre as personagens não é revelado
objetivamente, mas por meio de sutilezas que alcançam uma gradação e se transformam,
mais tarde, na escritura/narrativa contada por Brejeirinha, que não mais se contenta em
apenas observar o enamoramento entre a irmã e o primo, que pode trazer-lhes alegria,
beleza, sofrimento e saudade. Há mais a ser observado e criado.
Quando a água ameaça a levar o ―aldaz navegante‖, Brejeirinha resolve
aumentar-lhe os adornos com a ajuda de Zito e Ciganinha. É Ciganinha, ―cismosa‖,
quem propõe mandar um recado a ele. Zito põe uma moeda, Ciganinha, um grampo,
Pele, um chiclete, Brejeirinha, um cuspinho, pois é ―seu estilo‖. Diante da pergunta
vinda do narrador ou das crianças, se há tempo para recontar a verdadeira história,
Brejeirinha decide:
Agora, eu sei. o Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou
com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar
foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando
cada vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...
(ROSA, 2016, p.146)
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Brejeirinha decide um novo rumo para sua história, assim como decide
revitalizar a sintaxe, alterar a concordância verbal, propor novas palavras, adjetivações e
significações, como nas palavras ―estricto‖ e ―estático‖ e no sentido se ir ―sem
sozinhos‖. O vagalume, que tanto aparece em outras narrativas de Rosa, encantando
Miguilim e também o Menino de Às margens da alegria, em Sagarana, como um
―lanterneiro, que riscou um psiu de luz‖ (ROSA, 2001, p.) é evocado também por
Brejeirinha. ―Virou vagalume‖ aparece como mais um elemento mágico de
transformação, cujo lume sugere fugacidade, intermitência e poesia, iluminando o
destino do navegante e sua amada.
A chuva se intensifica e Brejeirinha está apavorada, com medo do trovão
―invencível‖, e quase cai ―no abismo do trovão‖, mas Nurka late em seu socorro e as
crianças vêm para ampará-la. Eis que Mamãe surge tal qual ―fada inesperada‖, ―a
contraflor‖, e a pega no colo, aparando-lhe a cabecinha ―como um esquilo pega uma
noz‖. Ela se sente amparada no colo de sua mãe, protegida em sua infância e em sua
poesia. Encantada, vê sua história acontecendo, o ―Aldaz Navegante‖ feito de estrume,
cogumelos, flores, gravetos e cuspe é levado pela água. O narrador, cujo discurso já se
assemelhava ao da menina desde o início, pela primeira vez, assume a grafia proposta
por Brejeirinha, referindo-se ao navegante como ―aldaz‖:
O Aldaz! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o
levavam, ao Aldaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas
folhagens, suas flores e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha,
uma gotinha, que perluz ─ no pináculo de uma trampa seca de vaca (ROSA,
2016, p. 146).
Brejeirinha, comovida, reconhece sua capacidade de saber mais do que já sabia:
―que o homem se parece, mesmo, é com um espeto!‖ (ROSA, 2016, p. 146). Isto é, ela,
uma personagem da ficção, é uma leitora capaz de uma leitura de fruição, capaz de ver
além, de tecer semelhanças, construir um espaço de interlocução, um corpo de leitura e
fruição, onde aparentemente não é possível. Ela é capaz de compor figurativamente um
mundo semântico e de fazer mágica com palavras, transformar um dia em que nada
parece acontecer em um dia mágico, transformar um pedaço de estrume em um navio
onde o ―Aldaz Navegante‖ e sua amada partem juntos e viram ―vagalumes‖.
Aqui, em Rosa, a voz, a fala, o discurso de Brejeirinha, revelam as crenças e as
perspectivas do próprio autor no que diz respeito a sua liberdade criadora, dentro da
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qual são possíveis as criações de novas palavras, a revitalização da sintaxe, os encaixes
narrativos, as novas propostas e procedimentos literários.
Brejeirinha é ―inventadeira‖, como seu próprio autor, e tão dona de sua história
quanto ele. Ela inventa uma estória de amor que, por sua vez, traduz a estória de amor
de Zito e Ciganinha contada inicialmente pelo narrador, e é capaz de transformar sua
fábula na própria vida e a infância em poesia e a poesia em infância.
No final do conto, ―de novo, a chuva dá. De modo que se abriram, asados, os
guarda-chuvas.‖ Esses ―asados‖ guarda-chuvas que se abem à presença da chuva, talvez
sejam mais um indício dessa magia transformadora que todas as personagens – e
também o leitor – vivenciaram.
3.2. Fita-verde: asas ligeiras e sombra correndo-lhe, em pós
Fita verde no cabelo: nova velha história1 é uma pequena narrativa em que Rosa
(2009) reinventa e, ousamos dizer, redimensiona a história de Chapeuzinho Vermelho,
conto tradicional do coletivo europeu recuperado por Charles Perrault (1628-1703)
durante o século XVIII.
Enquanto a famigerada versão mais antiga, atribuída a Perrault, apresenta um
enredo simples e linear como uma fábula e um final trágico com ensinamentos baseados
nos perigos que a inexperiência e a desobediência podem trazer às jovens, a de Rosa
encanta pela poesia, pela intensidade lírica e, ao mesmo tempo, dramática com que é
narrada a história de uma meninazinha que, sem juízo suficiente, saiu de uma aldeia
ordinária, com uma fita verde ―inventada‖ no cabelo para ir visitar a avó ―que a amava‖,
em uma outra e quase igualzinha aldeia.
A protagonista de Fita verde no cabelo se mostra, ao contrário da indefesa
Chapeuzinho, dona de seu livre-arbítrio, e ela mesma escolhe criar e vivenciar um
caminho maravilhoso com várias referências de conto de fadas, até que se depara,
assustada, com a face da morte de sua avó.
1 Texto originalmente publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 8 de fevereiro de
1964. Foi depois republicado na obra póstuma ―Ave, Palavra‖.
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A forma como a protagonista Fita-Verde vive a experiência da infância e
também o rito de passagem da perda da inocência, também é muito diverso da
experiência de Chapeuzinho no conto tradicional. Fita-Verde traz à presença central da
infância – ou o fim dela – a quebra da lógica racional, o tema da travessia ligada a uma
busca pessoal, a emergência do lúdico e do pensamento mágico. Todos eles, elementos
muito caros à ficção de Guimarães Rosa, sob a força potencializadora de uma
linguagem, ao mesmo tempo, intuitiva, lógica, densa e poética. No entanto, Guimarães
Rosa apresenta a morte, realidade que traduz o ―pesadume, a inércia, a opacidade do
mundo‖, tão poeticamente que o peso é retirado da estrutura da narrativa e da
linguagem.
A nossa intenção, neste estudo, é refletir sobre a trajetória de Fita-Verde, suas
expectativas em relação às experiências que está disposta a vivenciar e o mundo de
fantasias que cria para si mesma até vê-lo desfolhar-se diante da perplexidade e da
violenta situação de abandono e desencanto pela qual é tomada ao final da narrativa.
O conto apresenta, logo no título, elementos literalmente mais leves em oposição
ao tradicional Chapeuzinho Vermelho, a começar pelas cores icônicas mencionadas que,
inclusive, caracterizam as protagonistas. De um lado, o vermelho de Chapeuzinho,
associado a sexo e sangue, remete a sensações de energia, violência, agressividade,
raiva, situações de guerra, revolução, crueldade e imoralidade e, também, está
relacionado com a paixão e o desejo. Uma cor visualmente dominante e mais pesada
do que a verde. Diz Bachelard (1996, p. 35), em A poética do devaneio: ―Se na
pintura o verde faz ‗cantar‘ o vermelho, na poesia uma palavra feminina pode
conferir certa graça ao ente masculino‖. A cor verde da fita, por sua vez, que é
associada à natureza, remete à esperança, à fertilidade, ao crescimento, à sorte, à
cura e, também, à inexperiência, à imaturidade. Justamente a inexperiência e a
imaturidade que, segundo Benjamin (1987), levam ao desejo da experiência.
Pensemos no capuz vermelho da personagem de Perrault, vestimenta tão
imponente e sedutora a ponto de a menina que o usava passar a ser conhecida como
Chapeuzinho Vermelho por onde quer que fosse. Não sabemos o material com que
fora confeccionado, mas, se comparado a uma fita, é claro que a segunda é muito
mais leve e vaporosa. Torna-se ainda mais volátil quando sabemos que a fita foi
―inventada‖ pela mente de uma meninazinha sem juízo, e não confeccionada por
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uma avó ou uma mãe experiente, em uma tentativa de transmitir à jovem algo de
seu, além de experiências e ensinamentos.
O fato de se tratar de uma ―nova velha história‖ remete à atemporalidade seja
do conto, seja da busca ou da expropriação da experiência. Experiência esta à qual a
personagem é lançada ou deseja vivenciar, ou experiência do leitor diante de
narrativa tão encantadora e dramática.
Ao iniciarmos a leitura do conto, somos imediatamente transportados a um
espaço-tempo diferenciados da arte e da vida, tão característico nas histórias de Rosa e,
também, nos contos de fadas.
Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e
velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e
meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos
uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma
fita verde inventada no cabelo (ROSA, 2009, p.114).
Se o adereço utilizado por Fita-Verde é impalpável, o cronotopo também não
nos permite estabelecer limites. Temos uma variação da paradigmática expressão Era
uma vez, que abre o universo dos contos de fadas, opera uma outra lógica com suas
substâncias fantásticas ou mágicas, com seus encantos e ensinamentos. No entanto, a
―aldeia em algum lugar, nem maior nem menor‖ não se assemelha tanto ao lugar
mágico do ―era uma vez‖, mas sim a um espaço-tempo indeterminado, misterioso. A
sensação é a de estarmos diante de um lugar neutro, vazio, sem referências.
Nesse lugar, no entanto, quase não há movimento além do esperado. A velhice
não traz experiência nem surpresas, pois os velhos e velhas apenas inevitável e
obrigatoriamente ―velhavam‖. Não há nada a ser transmitido aos jovens, nem em tom de
conselho, nem em tom de ameaça. Conforme ressalta Benjamim (1987, p. 114), ―as
ações da experiência estão em baixa‖ no mundo moderno, especialmente após a
experiência traumática da primeira guerra mundial. Embora em contexto tão diverso do
apontado pelo filósofo alemão, nessa nova velha história de Rosa, a experiência também
não é valorizada, sobretudo a que seria transmitida pelos contos de fadas, que se
mostram fora de lugar ou como lugar vazio.
Nesse lugar neutro, entretanto, a meninazinha protagonista se diferencia dos
demais moradores da aldeia em dois aspectos. Primeiro, todos têm juízo
suficientemente, menos Fita-Verde – por enquanto. Podemos traduzir essa falta de juízo
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como uma natureza infantil, instintiva, emotiva, sem motivação exata, sem interesse
consciente e com radiante espontaneidade. Segundo, a menina saiu de lá, sem esperar ou
―velhar‖, com a fita inventada no cabelo, ansiosa por conhecer o princípio e o fim das
coisas.
Na estória tradicional de Chapeuzinho Vermelho, a mãe da menina faz diversas
advertências de que não se deve confiar em estranhos, cujo perigo é representado
simbolicamente na figura do lobo mau, o qual ocupa o imaginário paradoxal acionado
pelo despertar da sensualidade e do desejo feminino. Não sabemos a idade da menina,
mas, em se tratando desse comportamento da mãe, tudo leva a crer que não se trata de
uma menina tão pequena a ponto de sair sozinha, nem tão madura a ponto de precisar
receber tantos conselhos. O início da clássica narrativa sugere um final trágico, em que
avó e netinha são devoradas pelo lobo. No texto poético de Guimarães Rosa, só
sabemos que a protagonista, uma projeção imaginária da longínqua Chapeuzinho, vai a
uma outra quase igualzinha aldeia, com cesto e pote, visitar a avó. Nenhum perigo é
sugerido, nenhum conselho lhe é dado, nada parece acontecer nos recantos além da
convencional, monótona e previsível aldeia que já conhecemos, e nada a espera na outra
quase igualzinha aldeia onde mora sua avó.
No caminho, a menina busca se reinventar no mundo encantado de Chapeuzinho
Vermelho, reencenando seus ritos e fantasias, porém, em um mundo mais encantado
que o sugerido por Perrault: ―Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma
vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar
framboesas‖ (ROSA, 2009, p. 115).
Da aldeia de origem, a personagem leva consigo um pote de doce em calda, um
conteúdo de peso, tão comum de ser presenteado e apreciado em Minas Gerais, terra de
Rosa. Leva também um cesto, que imaginamos ser feito de palha, vazio e leve, para
buscar framboesas, fruta tipicamente europeia, tão improvável em terras mineiras. Mas
Fita-Verde, que já sabemos ser sem juízo, está iniciando um caminho em que ―tudo era
uma vez‖. Essas framboesas, doces ou azedinhas, raras e especiais, são experiências que
intencionalmente ela busca. Caso contrário, não levaria consigo um cesto vazio.
Sabemos que se trata de um ―tudo era uma vez‖, e não ―uma experiência manipulada e
guiada como em um labirinto para ratos‖ (AGAMBEN, 2005, p. 24).
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Nada aterroriza Fita-Verde no caminho, pois ela só vê ―os lenhadores, que por lá
lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham
exterminado o lobo‖ (ROSA, 2009, p. 115). Lobo ou Medusa, já sabemos que, nessa
trajetória da qual Fita-Verde tomou as rédeas, o que há de pavoroso, isto é, o
―pesadume, a inércia, a opacidade do mundo‖, foi exterminado. Resta a Fita-Verde
anunciar a si mesma (pois lobo não há) o próprio percurso: ―Então, ela, mesma, era
quem se dizia: – Vou à avó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a
mamãe me mandou‖ (ROSA, 2009, p.115).
É neste momento que o caminho maravilhoso se instaura na busca de uma
possível e, quiçá, redentora fantasia. Fita-Verde segue pelo avesso das coisas, num
mundo que, mesmo no reino da imaginação, traz o sinal da inexistência e da
predominância do imaginário: ―A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele
moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são‖ (ROSA,
2009, p.115).
Ao escolher o caminho ―louco e longo‖, e não o ―encurtoso‖, com possíveis
referências a Dom Quixote, ou ao coelho apressado de Alice antes de entrar no País das
Maravilhas, Fita-Verde escolhe a leveza do mundo, que passa a ser representada na
poesia de Rosa por elementos imagéticos que sugerem exatamente isso: como Perseu, a
protagonista se sustenta sobre nuvens e vento, e dirige o olhar para aquilo que só pode
ser revelado por uma visão indireta. Fita-Verde escolhe a incerteza, por meio da qual ela
quer conquistar a autoridade sobre sua experiência e sobre si mesma. Lembrando os
Ensaios de Montaigne, ―a experiência é incompatível com a certeza, e uma experiência
que se torna calculável e certa perde imediatamente a sua autoridade‖ (AGAMBEN,
2005, p.26).
O ―era uma vez‖ alcança seu ápice nas palavras com que Rosa (2009, p. 115)
descreve a epifania de Fita-Verde.
Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe correndo, em
pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas
borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu
lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por
elas passa. Vinha sobejadamente.
Elementos comuns da natureza, em sua caminhada, ganham, aos olhos de uma
menina, que opera por semelhanças, dimensões poéticas, mágicas e imagéticas nunca
antes previstas ―sobejadamente‖, isto é, excedendo limites. As borboletas sugerem
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metamorfose, transformação, amadurecimento e, também, leveza. As flores, que
ganham adjetivos pouco comuns a elas, como plebeinhas, princesinhas e incomuns,
sugerem pureza, leveza, simplicidade e magia. Magia que, de tanto ―a gente‖ passar por
ela, não consegue mais apreciar. Essas flores são ignoradas, à semelhança de linguagem
automatizada. Mas Fita-Verde ―vinha sobejadamente‖. Segundo Agamben (2005, p.22),
Todo evento, por mais comum e insignificante, tornava-se a partícula de
impureza em torno da qual a experiência se adensava, como uma pérola, a
própria autoridade. Porque a experiência tem o seu necessário correlato não
no conhecimento, mas na autoridade, ou seja, na palavra e no conto, e hoje
ninguém mais parece dispor de autoridade suficiente para garantir uma
experiência, se dela dispõe, nem ao mesmo o aflora a ideia de fundamentar
em uma experiência a própria autoridade.
Entre asas ligeiras, avelãs que não voam, borboletas, flores que são plebeinhas
ou princesinhas, Fita-Verde se divertia. O ―era uma vez‖ alcança seu ápice neste
momento em que tantas imagens figurativas da leveza assumem valor emblemático. No
comum das coisas, no estrito limite natural de cada coisa, ela introduz a graça, o
encantamento. Fita-Verde vinha ―sobejadamente‖, excedia os limites do necessário, pois
não há limites para o faz de conta: no qual os limites se dissipam. Retomamos aqui a
concepção de Calvino (1990, p. 19) de que ―muito dificilmente um romancista poderá
representar sua ideia da leveza ilustrando-a com exemplos tirados da vida
contemporânea, sem condená-la a ser o objeto inalcançável de uma busca sem fim‖, a
exemplo do que acontece no romance A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera
(1979), de maneira luminosa e direta.
No entanto, a expropriação da fantasia no âmbito da experiência lança, em Fita-
Verde, uma sombra que ―vinha-lhe correndo em pós‖. O que seria essa sombra? Em se
tratando de Rosa, não podemos considerar a sombra o mero efeito de um obstáculo
bloqueando a luz. Em sua glosa ―II. Cavalcanti e Sade‖, Agamben (2005, p. 34) afirma
que ―esta sombra é o desejo, ou seja, a ideia de uma inapropriabilidade e
inexauribilidade da experiência‖. Fantasia e desejo são estreitamente conexos, uma vez
que a primeira é uma satisfação imaginária do segundo. Com Fita-Verde não seria
diferente e, certamente, sua fantasia é motivada pelo desejo.
À medida que a personagem se aproxima do seu destino, a casa da avó, uma
falta radical fica cada vez mais evidente, uma difundida marca de ausência de algo, um
sinal negativo, a presença do ―não‖, mesmo quando Fita-Verde encena-se no reino do
faz-de-conta. As avelãs não voam, as borboletas não são alcançadas, nunca há buquê,
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nem botão. As flores, plebeinhas ou princesinhas, não são notadas. É como se algo
estivesse paulatinamente chegando ao fim, sem que os desejos da protagonista fossem
satisfeitos de fato. Sabemos também que ela demorou para dar com a avó em casa, pois
permaneceu o quanto pode em seu universo maravilhoso, usufruindo de suas novas
experiências, numa tentativa de prolongar o máximo possível sua infância e suas
transformações por meio da poesia. Afinal, além de Fita-Verde estar inserida na
dimensão do tempo do imaginário, ―nada pode dar ideia da dimensão da mudança
ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela reproduz no estatuto
da imaginação‖ (AGAMBEN, 2005, p. 33).
A porta da casa da avó, na qual se entra antes de abrir, subvertendo-se a lógica,
sugere – com a bênção de Deus – a entrada para um outro universo, aparentemente
místico, muito diverso daquele a que as asas ligeiras de Fita-Verde a levaram: ―Vai, a
avó, difícil, disse: — Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe‖
(ROSA, 2009, p. 115).
Ao contrário das ―bátegas de benção‖ da ―profetisa‖ mãe de Brejeirinha, que
sugeriam um caminho de alegrias, a benção da avó de Fita-Verde, ―rebuçada‖ na cama,
a dificuldade com que a avó pronuncia as palavras – um ―falar agagado, fraco e rouco‖
–, o ferrolho de pau da porta, a arca, o tempo escasso, todos os elementos presentes
passam a sugerir opressão, o peso da vida e da matéria. O que Fita-Verde sente é
espanto, pois está diante de algo inevitável e imprevisível. Também sente tristeza, ao se
dar conta de que perdera no caminho sua grande fita verde no cabelo atada. Voltamos o
olhar à fita verde, que, como sabemos, fora por ela inventada, como um amuleto
mágico, um adereço para satisfazer sua vaidade e feminilidade, assim como foram
inventados os elementos que compuseram o universo do ―tudo era uma vez‖, o da
inocência, o da infância. Tudo isso fora perdido junto com a fita, o que justifica sua
tristeza.
Na compilação de Perrault, Chapeuzinho Vermelho e a sua avó são brutalmente
devoradas pelo lobo. Contudo, esse final, ao mesmo tempo em que apresenta cenas de
violência, é interpretado como a culminância do simbolismo de uma história de
sedução, em que a inocente Chapeuzinho fica curiosa e se impressiona com os atributos
físicos – braços grandes, pernas grandes, orelhas grandes, olhos, boca... – de um lobo
astuto e sedutor. Enquanto o conhecido diálogo entre Chapeuzinho e o lobo assume tom
patético ou mesmo cômico, as indagações de Fita-Verde à avó denotam um tom
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melancólico. Além disso, há uma gradação do sofrimento derradeiro da avó diante da
morte. Ela ―murmura‖, ―suspira‖, ―geme‖:
— Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!
— É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…‖ — a avó
murmurou.
— Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
— É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta… — a avó
suspirou. — Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto
encovado, pálido? — É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha
netinha…‖ — a avó ainda gemeu. (ROSA, 2009, p. 116).
Há, contudo, um saber nas respostas da avó que levam Fita-Verde não só à
percepção do acontecimento que assiste, mas também a um gesto diferente: se antes
perguntava, agora ―Gritou: ‗Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!...‘‖. O saber humano,
como afirma Agamben (2005, p. 27): é um ―aprender somente através de e após um
sofrimento, o que exclui toda possibilidade de prever, ou seja, de conhecer coisa
alguma‖ (AGAMBEN, 2005, p.27). O limite, todavia, que separa as esferas do saber
humano e do saber divino é justamente a morte, o fim último da experiência. Marco
final da experiência da avó, mas inicial para Fita-Verde: um novo espaço-tempo para
experimentar a vida, cujo pilar assenta-se em: ―Saiu, atrás de suas asas ligeiras‖.
Com a morte da avó, Fita-Verde se vê diante do desconhecido, campo aberto
para o experimentar. O narrador confirma:
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou: — Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo
frio, triste e tão repentino corpo. (ROSA, 2009, p. 116).
No final do conto, a estrutura da frase – Fita-Verde mais se assustou, como se
fosse ter juízo pela primeira vez –acentua o ato de assustar-se e negativiza, pelo
imperfeito do subjuntivo, o ter juízo pela primeira vez. Indica, porém, possibilidades
para a personagem. O narrador expande a narrativa, o imaginário: Fita-Verde ―Gritou:
— Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!… / Mas a avó não estava mais lá, sendo que
demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo‖. Um vão: entre um
lobo e uma avó, uma meninazinha sem fita verde no cabelo.
Embora unido ao universo do conto de fadas, o conto de Rosa acaba por recusar
a dimensão providencial daquele. Não há, acalanto, não há o felizes para sempre, ou
mesmo a moral, ou o ensinamento, a ser copiado, reproduzido. A leveza, à concepção
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de Calvino, se materializa como travessia poética na forma como Rosa escreve e no
projeto de busca da personagem: há um vazio a ser preenchido, pois ―a avó não estava
mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo‖.
Vazio, entretanto, como espaço aberto para experiências, afinal, muito antes, Fita-
Verde, ―ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o
outro, encurtoso‖.
É no louco e longo caminho que Fita-Verde encontra ―sobejadamente‖ a vida,
longe do encurtoso mundo das regras. Na bagagem traz a imaginação, a liberdade, a
poesia, o encantamento, o desencanto, ―e o cesto vazio, que para buscar framboesas‖ –
salvo-condutos para a vida adulta. Narrador e personagem sabem que ―a experiência é
incompatível com a certeza‖, disse também Agamben.
Além disso, notamos neste conto a presença das três acepções distintas que a
leveza literária pode assumir, conforme elencadas por Calvino (1990): tecido verbal
quase imponderável; a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no
qual interferem elementos sutis e imperceptíveis; imagem figurativa da leveza com
valor emblemático.
Consideramos ainda que a poesia de Rosa não só compreende o mundo sob outra
perspectiva e usa a literatura como uma reação ao peso de viver, mas também, à
maneira de Perseu e suas sandálias aladas, atribui à personagem Fita-Verde a qualidade
de asas ligeiras e a capacidade de dar às costas à sombra que lhe vinha correndo em
pós. Há também em Rosa uma outra significação para a morte que pode tecer
semelhanças com a nova ótica, lógica e meio de conhecimento e controle com a qual
Calvino busca as imagens de leveza. Essas imagens de leveza não devem, em contato
com a realidade, dissolver-se em sonho.
3.3 Miguilim e a saudade do que não vê
Campo Geral, publicado em 1956, é uma narrativa pertencente a Manuelzão e
Miguilim: Corpo de Baile (2016), obra que Guimarães Rosa classifica como um
romance. Trata-se, aliás, de sua história predileta: ―Nela acho tudo o que já escrevi até
agora e talvez mesmo tudo o que venha a escrever na minha vida. Nesta história está o
germe, a semente de tudo‖. Rosa muitas vezes declarou e confirmou essa predileção a
Vicente Guimarães, conforme é relatado em Joãozito (2006, p. 113):
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É difícil dizer qual o livro (da gente) preferido. A gente sempre gosta de mais
de um livro futuro, que pensa ainda escrever. De qualquer modo, entretanto,
posso dizer sinceramente que, de tudo que escrevi, gosto mais é da estória de
Miguilim (o título é ―Campo Geral‖), do livro Corpo de Baile. Por quê?
Porque ela é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez
que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas, o porquê, a gente
não sabe, são mistérios do mundo afetivo (ROSA apud GUIMARÃES, 2006,
p. 168.)
Apesar de ser uma história contada em terceira pessoa, apresenta o foco
narrativo de ―um certo Miguilim‖, nome pelo qual atualmente a narrativa é mais
conhecida. Miguilim é um menino de oito anos, de sensibilidade excepcional e
imaginação ingênua. O nome Miguilim é uma variação infantilizada de Miguel, nome
bíblico de arcanjo. ―Miguim‖, de origem indígena, remete ao fato de ser um menino
mini, pequeno, frágil, miúdo, mirim. Esse menino e sua família vivem no Mutum,
lugarejo situado em um ―recanto oculto da roça, com seu emaranhado de conceitos, atos
e ritos, costumes rudes e paixões selvagens‖ (RÓNAI apud ROSA, 2016, p. 20). Rónai
(2002, p. 23) descreve a personagem à mercê das travessias de sua infância repleta de
fragmentos, sombras, luzes e cores, em ―Notas para facilitar a leitura de Campo Geral,
de J. Guimarães Rosa‖:
Criança de forte curiosidade e sensibilidade aguda, Miguilim, em busca de
respostas às muitas perguntas que lhe fervilham no íntimo, pouca orientação
recebe de seu ambiente primário e tosco. É ele mesmo que tem de interpretar
o mundo com o auxílio da própria inteligência intuitiva, partindo das noções
fragmentárias que lhe inculcou o meio, e de formular o sentido de suas
experiências para si mesmo na linguagem concreta e colorida que lhe foi
naturalmente transmitida (RÓNAI, 2002, p. 23).
O narrador de Campo Geral tem seu ponto de vista adjunto ao olhar do menino,
baseando-se no eu pessoal e no eu da experiência; um ligado à infância
(espontaneidade), o outro, à fase adulta (maturidade). Estilisticamente, a indistinção
entre adulto e criança cria no leitor o ―sentimento de infância‖ ao qual se refere Lisboa
(1991, p. 172). Sentimento que é forte principalmente no protagonista Miguilim, pois
reside na busca existencial do menino em oposição à sua vontade de permanecer
criança: ―ser menino, a gente não valia para querer mandar cousa nenhuma‖ (ROSA,
2016, p. 50)
A relação de Miguilim com a vida, o cenário onde vive, o espaço tão longínquo,
o tempo, os sentimentos e os seus ritos de passagem estão, sobretudo, ligados à palavra.
É como se o universo percebido pelos olhos e pela sensibilidade de Miguilim fosse
revelado a um expectador privilegiado. A forma como isso acontece, como o narrador
elabora as histórias, colocando a criança como difusora de seus próprios sentimentos
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antagônicos em um contexto em que criança não tem voz, é a força motriz dessa obra.
Para Rosa, lembremos, palavras são ―apenas mágicas‖ (ROSA apud LORENZ, 1991,
p.83).
Henriqueta Lisboa, ao mencionar o ―sentimento de infância‖ em Rosa, vê o
escritor como poeta que brinca com as palavras, diverte-se com seus mitos – tanto
quanto o menino com seus brinquedos – e promove a renovação da vida por meio da
arte, como uma atividade lúdica. O ―eu profundo‖ de Rosa, de ―natureza infantil,
instintiva, emotiva‖, com ―radiante espontaneidade‖ criou ―Miguilim‖, obra de gênero
indefinível em que, segundo Lisboa (1991, p. 176):
Persiste e sobrevive a infância pela intensidade com que se projetam os
estados de alma do autor, pela animação de suas imagens, sutilezas de
sugestões, justeza de expressão.
Assim, por fenômeno de empatia, conduzidos a um mundo interior que já nos
pertence, temos a sensação de infância dentro de uma absoluta lírica.
Embora nada possa ser afirmado concretamente, muito se falou, por meio da
crítica, que Miguilim sugere e infância de João Guimarães Rosa como uma espécie de
autobiografia, ―biografia da infância‖, como sugere Lisboa (1991, p. 174), ―evocações
colhidas para efeito de conjunto e tessitura da fábula‖ apresentam uma boa dose de
transferência e vestígios da infância do autor.
Essa visão é confirmada na leitura de Joãozito – A infância de João Guimarães
Rosa, em que Vicente Guimarães reúne cartas e lembranças acerca da vida e da obra do
sobrinho, com quem fora criado junto. Ele afirma que muitas cenas da meninice de
ambos são descritas em Campo Geral. Das felizes lembranças, enumera o hábito de
gritar os nomes das pessoas linguarudas para que todos os milhos de pipoca
estourassem, o jogo de malhas, o pegar vagalume, a crença de que menino virava
menina e menina virava menino se atravessasse por baixo do arco-íris. Também a ideia
de transformar sabugos de milho em brinquedos, como em bois e carrinhos de boi, que,
aos olhos das crianças do Mutum, eram os brinquedos mais bonitos de todos. Rosa
também levou para Miguilim o sentimento de ser incompreendido pelo pai, a braveza da
avó e a sua miopia, que, assim como o protagonista, Rosa só descobriu mais tarde.
(GUIMARÃES, 2006, p. 144, 115).
Desde o início da narrativa, percebe-se que o protagonista Miguilim tem uma
visão de mundo especial, que se caracteriza não só por sua miopia, mas também por sua
capacidade de revelar horizontes de pureza, genuínos, selvagens, anteriores à lógica e,
por isso, capaz de atingir à plenitude e de enxergar aquilo que os adultos, com suas
83
visões embaçadas pela sisudez, pela opressão, pela dureza da vida e pela descrença, não
conseguem mais ver. A miopia de Miguilim representa, portanto, uma duplicidade –
elemento tão comum na obra de Guimarães Rosa. Constantemente, ele busca
compreender o mundo que é oculto pela dificuldade do protagonista em enxergar, ou é
revelado progressivamente por meio de sua imaginação, adquirindo nuances de poesia.
De acordo com Lisboa (1991, p. 177): ―Não importa o que o menino viu ou deixou de
ver, mas o que ele pressentiu, imaginou, idealizou e aureolou, pelo condão de sua
própria sensibilidade.‖
O narrador de Campo Geral conduz seu discurso nos pensamentos e na voz do
menino Miguilim, caracterizando uma onisciência seletiva, repleta de inocência,
angústias e sentimentos de infância, além de empatia pela matéria narrada e adesão ao
discurso das personagens. Ocorre aqui a diluição da voz do narrador e a da personagem,
formando uma linguagem amalgamada de ambos, um discurso dialógico e polifônico da
enunciação, que nem sempre se dá pelo discurso direto ou indireto. A aproximação é
tanta que a fala do narrador e fala do personagem se confundem, assim como já
descreveu Rónai ―(2001, p. 18): ―uma passa a palavra ao outro, sem que notemos
qualquer mudança de plano‖. É esse o jogo que caracteriza a obra Corpo de Baile e,
consequentemente, Miguilim.
Um dos recursos estilísticos que contribuem para essa aproximação e para essa
mistura narrador-personagem é a constante ausência de artigos antes dos nomes dos
membros da família, como em: ―Mas tio Terêz, de bom coração, ensinou-o a armar
arapuca para pegar passarinho‖ (ROSA, 2016, p. 27). Lisboa (1991, p. 176) ressalta
também a arte minuciosa de Rosa que, além de batizar o herói com um nome no
diminutivo, à feição de tantas rimas para acarinhá-lo, há uma porção considerável de
meiguices, como ―pertim, sozim, lugarzinho, menorzin, passarim‖. Essa é uma forma
de o leitor vivenciar o olhar de Miguilim de um jeito mais próximo da realidade dele,
menino míope e poeta do sertão.
Por meio de um narrador onisciente, que reproduz de maneira mágica o olhar do
míope e maravilhado Miguilim, conhecemos um labirinto de conceitos acerca do
universo adulto e das lições da natureza. Conhecemos também a sua relação com as
demais personagens, em um mundo onde coexistem personagens infantis, como seus
irmãos Dito, Drelinha, Chica, Tomezinho, seu amigo Grivo, os maldosos meninos
Liovaldo e Patori, os sonhadores, como sua mãe, seu tio Terêz, seo Aristeu, as
personagens marginais, como Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, e personagens
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endurecidos e disciplinadores como seu pai e sua avó Izidra – quando esses faltam, os
dias e as noites no Mutum são mais bonitos e até o café é menos amargoso e
―desgostável‖ – e várias das que vivem e passam pelo Mutum, cujas múltiplas vozes e
olhares interferem no imaginário de Miguilim.
O nosso objetivo neste estudo é, por meio do olhar mágico e infantil do
protagonista Miguilim, penetrar no universo de sua infância e apreender não só suas
percepções, sensações, pensamentos, medos, angústias, visão de mundo, mas também as
formas como incorpora os segredos do mundo dos adultos, as lições da natureza e dos
bichos, a sabedoria de Dito, e os milagres que, só para ele e seus olhos míopes e poetas,
ganham novas dimensões e sentidos mágicos. Não há a pretensão de analisar todas as
passagens da narrativa. Por isso, consideraremos em Miguilim alguns pontos em
comum com as narrativas analisados anteriormente, Partida do audaz navegante e Fita
verde no cabelo. Como pontos de semelhanças, destacamos: o cronotopo, sempre um
recanto oculto e remoto na roça, próximo à natureza, em um tempo não definido;
personagens que se movimentam e vivenciam ritos de passagem e adquirem
experiências, ainda que imaginárias; o ato de contar/criar histórias como forma de se
prolongar a infância ou transformar uma realidade; os elementos mágicos ligados à
natureza, como chuva, sol, vento, os animais, o mar, cores, luzes e sombras; os
elementos que se opõem à infância, como a morte, os adultos, as responsabilidades, a
maldade.
Considerando que a infância representada por Miguilim, e também por seu
irmãozinho Dito, submete-se a momentos simbólicos, que aqui denominamos ritos de
passagem, analisamos também o movimento de passagem de Miguilim para o mundo
adulto, a modernidade, de modo sucessivo, por meio de diferentes formas de
manifestação.
Alguns desses ritos de passagem, como o rito crismal, com o intuito de o salvar
do pecado e da morte espiritual, são realizados logo no início da narrativa. Na
companhia de seu tio Terêz, sabemos que Miguilim faz uma viagem para ser crismado
por um bispo que passava no Sucurijú, região relativamente distante de Mutum. Trata-
se de um rito de caráter sacro, de legitimação, de agregação. Embora tenha sido
realizado sem a presença de seus pais, visa à unidade de um indivíduo com sua família,
sua sociedade, com a Igreja, como corpo de Cristo.
No caminho, Miguilim se recorda de ―sumidas coisas‖. Entre as difusas
lembranças do menino, aparecem frutas que experimentava, viagem em arro de boi, um
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peru que o deixara muito encantado, pois era ―coisa mais vistosa do mundo‖, um
menino que lhe fazia caretas antes de agredi-lo com uma pedra. Sabemos, também, que
houve um outro rito que antecedeu o rito oficial, o batismo de sangue, de que
participaram Miguilim, seu pai, sua mãe, sua avó Izidra, a falecida vó Benvinda e um
tatu agonizante:
– ―Traz o trém...‖ Traziam o tatú, que guinchava, e com a faca matavam o
tatú, para o sangue escorrer por cima do corpo dele para dentro da bacia. –
―Foi de verdade, Mamãe?‖ – ele indagara, muito tempo depois a mãe
confirmava: dizia que ele tinha estado muito fraco, saído de doença, e que o
banho no sangue vivo do tatú fora para ele poder vingar. (ROSA, 2016, p. 28)
Esse rito é concebido por sua família como um feitiço de cura, sendo o sangue
do tatu o elemento que pode salvar Miguilim da morte. O rito profano, de cura, pode
também ser entendido como um rito de agregação, o que justifica a afinidade do menino
com a natureza em todas as suas manifestações. Os dias de tempestades aterrorizantes,
os dias de sol e de brincadeira, as belas noites de lua e vagalumes marcam as alegrias e
as angústias de Miguilim ao longo da narrativa. Também são marcantes as relações do
menino com os animais, seja de medo, como macacos, corujas, seja encantamento,
como peru, vagalumes, pássaros e joaninha, seja piedade ou afeto, como a cadelinha
Pingo-de-Ouro. O fato de Miguilim ter sido banhado no sangue do tatu pode ser visto
como um marco que estabelece certa unidade com os seres do sertão. Chama-nos a
atenção a presença do pai e da mãe de Miguilim neste primeiro rito familiar, pois
sabemos que, mais tarde, haverá várias discórdias entre eles, especialmente em razão do
pai sentir ciúme de uma provável relação imprópria entre a mãe e o tio Terêz.
Na viagem que fez sozinho com seu tio Terêz, Miguilim ―padeceu tanta
saudade‖ enquanto esteve fora, de tudo e de todos. Descobriu que umedecendo as
narinas com cuspe, conseguia aliviar a aflição. Gostava também de molhar o lenço
quando davam com algum riacho nos secos caminhos das chapadas, como se o cuspe e
a água de riacho representassem a transformação, a continuidade ou a confirmação do
rito crismal.
Enquanto voltava para casa, Miguilim sofria de ansiedade e alegria por conta do
pensamento de que tinha um presente para sua mãe, com quem encerrava uma relação
edipiana. O presente era a notícia de que o Mutum era um lugar bonito. Sabia disso,
porque um moço desconhecido havia comentado, de um jeito de longe, de leve, sem
interesse, mas que lhe passou muita certeza. Até então, Miguilim não tinha muita noção
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do que era bonito ou feio. A mãe, que se doía de tristeza de ter de viver ali,
especialmente pelos demorados meses chuvosos, não deu valor ao presente.
A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada.
Era um presente; e a ideia de poder trazê-lo desse jeito de cor, como uma
salvação, deixava-o febril até nas pernas. Tão grave, grande, que nem o quis
dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e, assim
que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe,
estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou
triste e apontou o morro; dizia: –‗Estou sempre pensando que lá por detrás
dele acontecem coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei
de poder ver...‘ Era a primeira vez que a mãe falava com ele um assunto todo
sério. (ROSA, 2016, p. 26)
Miguilim, claramente, apresenta uma situação muito diversa da de Brejeirinha,
em Partida do Audaz Navegante. Ao contrário da menina, ele não se sente acolhido
entre adultos, embora algumas vezes houvesse quem apreciasse suas histórias. Essa
sensação de não pertencimento se explica pela forma ―cartesiana‖ com que os
moradores do Mutum e a família de Miguilim viam a infância e as crianças do sertão.
Nhô Bernardo Caz, ou Berno, pai de Miguilim, tem a típica visão utilitária, racional,
prática e lógica da sociedade patriarcal, de quem precisa trabalhar sistematicamente na
roça para garantir o sustento da família. Para ele, não só Miguilim, mas todas as
crianças deixam de ser tratadas como crianças assim que demonstram certa habilidade
física para o trabalho, passando sem mediação a enfrentar os problemas e adversidades
do mundo adulto. Várias vezes sabemos por algum dos personagens, seja avó Izidra ou
alguém de fora, que Miguilim é magrinho, franzino, é dotado de uma estatura delicada
para a dureza do trabalho braçal. Uma outra condição, revelada somente ao final da
narrativa é que, por ser míope, Miguilim vive tropeçando, se assustando e se
confundindo com o que mal consegue ver. Mas o pai, em sua posição de autoridade,
procura ativar nos filhos a lógica do corpo como instrumento para o serviço na fazenda
e cobra sempre uma postura adulta de Miguilim, tanto nos afazeres da roça quanto em
relação ao medo de cobra e outros bichos que mal se conseguia distinguir no mato.
Ao contrário das expectativas de seu pai, Miguilim gostava de brincar de pensar,
inventar histórias. Além disso, ―não tinha vontade de crescer, de ser pessoa grande, a
conversa das pessoas grandes era sempre as mesmas coisas secas, com aquela
necessidade de ser brutas, coisas assustadas‖ (ROSA, 2016, p. 44). Sensível aos
acontecimentos que o cercam, embora sem compreendê-los com tanta sabedoria quanto
o irmão Dito, questionava sempre a crueldade do mundo e ―inventava outra espécie de
nojo das pessoas grandes‖ (ROSA, 2016, p. 60). Miguilim também não é imune ao
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sofrimento dos animais com quem convive no Mutum e se identifica com eles, sente
pena dos tatus caçados e se encanta ao observar aves e insetos: – ―por que era que um
bicho ou uma pessoa não pagavam sempre amor-com-amor, de amizade de outro?‖
(ROSA, 2016, p. 89).
O domínio paterno de seu pai, Berno representa, para Miguilim, a personificação
de tudo o que ele abomina e precisa enfrentar. Não que o pai não quisesse bem a
família, mas a dureza de sua vida sertaneja, que se resumia à luta para sustentar a
família a duras penas e à desconfiança da fidelidade da esposa, cravara-lhe raízes
profundas e fizeram dele um homem endurecido. Nesta passagem, vemos um exemplo
da visão do pai de Miguilim, quando um bezerro da fazenda morre:
Como o pai ficava furioso: até quase chorava de raiva! Exclamava que ele era
pobre, em ponto de virar miserável, pedidor de esmola, a casa não era dele, as
terras ali não eram dele, o trabalho era demais, e só tinha prejuízo sempre,
acabava não podendo nem tirar para sustento de comida da família. Não tinha
posse nem para retelhar a casa velha, estragada por mão desses todos ventos e
chuvas, nem recurso para mandar fazer uma boa cerca de réguas, era só cerca
de achas e paus pontudos, perigosa para a criação. […] Dava vergonha no
coração da gente, o que o pai assim falava. Que de pobres iam morrer de
fome — não podia vender as filhas e os filhos… Pudesse crescer um pouco
mais, ele Miguilim queria ajudar, trabalhar também. (ROSA, 2016, p. 57)
Há um momento bastante tocante na história, em que o pai de Miguilim deixa
que Pingo-de-Ouro seja levada por tropeiros que estão de passagem na fazenda. A
cadelinha, ―pertencida de ninguém‖, mas tão estimada por Miguilim, estava já velhinha,
ficando quase cega e, por isso, na visão do pai, não tem mais serventia na roça.
Miguilim, sem ainda estar ciente sobre sua ―vista curta‖, também se sentia assim, a par
do mundo dos adultos e, talvez por isso, cria uma relação de afeto e identificação com a
cadelinha, sentia que ela o compreendia. Os sentimentos das crianças eram ignorados
pela maioria dos adultos. Os sentimentos de Miguilim, o mais sensível de todos, mais
ainda.
Logo então, passaram pelo Mutum uns tropeiros, dias que demoraram,
porque os burros quase todos deles estavam mancados. Quando tomaram a
seguir, o pai de Miguilim deu para eles a cachorra, que puxaram amarrada
numa corda, o cachorrinho foi choramingando dentro dum balaio. Iam para
onde iam. Miguilim chorou de bruços, cumpriu tristeza, soluçou muitas
vezes. Alguém disse que aconteciam casos, de cachorros dados, que levados
para longes léguas, e que voltavam sempre em casa. Então ele tomou
esperança: a Pingo-de-Ouro ia voltar. Esperou, esperou, sensato. Até de
noite, pensava fosse ela, quando um cão repuxava latidos. Quem ia abrir a
porta para ela entrar? Devia de estar cansada, com sede, com fome. — ―Essa
não sabe retomar, ela já estava quase cega…‖ Então, se ela já estava quase
cega, por que o pai a tinha dado para estranhos? Não iam judiar da Pingo-de-
Ouro? (ROSA, 2016, p. 30-31)
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Por muito tempo, Miguilim padeceu sofrimento por ter sido obrigado a se
separar da cadelinha, ―esperou, esperou sensato‖, até se dar conta de que ela não
retornaria. Um dia ouviu a história do Menino Triste, cujo protagonista, batizado com
sua própria dor, achara no mato uma cuca. Cuca é uma personagem conhecida por ser o
―bicho papão‖ feminino. É representada como uma bruxa com feições de jacaré, que
afasta as crianças de seus pais e as engole, privando-as da segurança de se viver em
família, do amor dos pais e da luz. É a personificação de uma das principais angústias
da infância, mas Miguilim não sabe o que é uma cuca e se identifica com o menino
triste porque, assim como ele, perdeu seu animal de estimação. Esse pode ser
considerado mais um rito de passagem vivenciado por Miguilim, um rito de separação.
Na realidade, o início de uma série de ritos de separação, pois antecede uma série de
acontecimentos que preparam o menino para uma mudança mais significativa e
definitiva.
A visão de Nhanina, a bela e sonhadora mãe de Miguilim, aproxima-se do modo
como a infância é defendida por Benjamin (1985, p. 239), que aponta caminhos para a
magia da infância e de como descobrir, com ela e por meio dela, o mistério que emana
do mundo. Nhanina sonha sair do Mutum, queria ver além daqueles morros que
cercavam o lugar – aproximando-se do desejo de Miguilim de ver mais coisas, aquelas
―que o olho não dava‖. Esse desejo de ver além do que os olhos não dão conta é muito
semelhante ao condão da poesia. Mãe e filho tinham uma visão marcada pelo lirismo,
uma sensibilidade para a beleza e uma facilidade para criar imagens poéticas.
Um exemplo é a passagem em que a mãe aprecia as histórias inventadas por
Miguilim, diz que ele e Dito são muito ladinos e, para consolar o ciúme do caçula
Tomezinho, diz que ele é ―um fiozinho caído do cabelo de Deus‖. Miguilim, ―que bem
ouviu, raciocinou apreciando aquilo, por demais‖, comentou com o Dito que a mãe, às
vezes, era a pessoa mais ladina de todas‖ (ROSA, 2016, p. 84). Aos olhos de Miguilim,
sua mãe era a personificação da beleza e do amor. Percebemos o olhar poético de
Nhanina também na passagem em que partilha do encanto das crianças, especialmente
de Miguilim, pelos vagalumes e pelo mar:
A noite, de si, recebia mais, formava escurão feio. Daí, dos demais, deu tudo
vagalume. – "Olha quanto mija-fogo se desajuntando no ar, bruxolim deles
parece festa!" Inçame. Miguilim se deslumbrava. – "Chica, vai chamar Mãe,
ela ver quanta beleza..." [...] O vagalume. Mãe gostava, falava, afagando os
cabelos de Miguilim: - "O lumeio deles é um acenado de amor..." (...) Um
vagalume se apaga, descendo ao fundo do mar. – "Mãe, o que é que é o mar,
Mãe?" Mar era longe, muito longe dali, espécie duma lagoa enorme, um
mundo d´água sem fim, Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. –
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"Pois, Mãe, então mar é o que a gente tem saudade?" (ROSA, 2016, p.74)
Miguilim, menino poeta, perfilhava a beleza das palavras da mãe. Assim como
os vaga-lumes e o mar estão presentes no relato de Brejeirinha, no momento em que o
navio do audaz navegante vira vagalumes, aqui o inseto encantador também é um
elemento mágico de transformação. O lume sugere efemeridade, intermitência,
fugacidade. A mesma luz que aparece depois nos olhos do gato Sossões roncando de
alegria: ―os olhos de um verde tão menos vazio – era uma luz dentro de outra, dentro
doutra, dentro outra, até não ter fim.‖ (ROSA, 2001, p. 52). A luz é um dos elementos
ao qual é atribuída a magia e simboliza os momentos de alegria para Miguilim. O mar
simboliza o longe, o mistério, a saudade, tudo aquilo que olhos poetas buscam diante do
cotidiano. Elementos, inclusive, que encantavam a outros personagens: ―Drelinha
espiava em sonho, da janela. Maria Pretinha e Rosa tinham vindo também.‖ A
capacidade de sonhar talvez seja a maior contribuição de experiência de linguagem de
Miguilim.
À noite, enquanto Miguilim ―esperdiçava‖ as coisas do dia, Dito guarda debaixo
da cama a garrafa repleta de vagalumes, talvez numa tentativa de guardar a beleza da
noite e extinguir a efemeridade do momento. É possível que essa passagem sugira um
marco, uma vez que, a partir dessa noite, ocorre uma sucessão de eventos trágicos na
vida do menino Miguilim, envolvendo desentendimentos em família, separações,
doenças e mortes.
Vivendo em um mundo à parte, para tentar compreender e apreender as relações
e os acontecimentos do mundo dos adultos, com sua visão míope e inocente, Miguilim
detém algumas estratégias. Muitas vezes, recorre à imaginação e à potência das coisas,
sempre com uma percepção sensível e poética do sertão. Outras vezes, quando necessita
ser tocado pelo mundo real, recorre à sabedoria de Dito, seu irmão, que é mais novo do
que ele. É, então, pelo olhar sábio de Dito que, muitas vezes, tanto Miguilim quanto os
leitores entram em contato com o mundo prático, mundo de gente grande. Talvez, em
razão da miopia de Miguilim e da dificuldade em ser aceito pelo pai, a infância seja
percebida, a princípio, de maneira díspar pelos dois irmãos. Enquanto a visão objetiva e
―adulta‖ de Campo Geral é apresentada por meio de Dito, Miguilim é quem traz o olhar
subjetivo, em busca da beleza do Sertão. Mesmo sendo mais novo do que Miguilim,
Dito era mais amadurecido e sensato no sentido de conseguir compreender as relações
complicadas da família. Dito apresenta uma astúcia e uma sabedoria que não eram
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próprias à sua idade, semelhante à de Nhinhinha, do conto ―A menina de lá‖. Com essa
personagem, ele compartilha do mesmo destino, como se a sabedoria, que deveria ser
conquistada com a experiência, tivesse vindo antes da hora e, por isso, a morte
prematura dessas personagens também.
Para Miguilim, seu irmão Dito, mais novo do que ele, ―era a pessoa melhor‖ que
―descarece‖ de olhar a tristeza (ROSA, 2016, p. 61). Miguilim e Dito, opostos e
complementares, são grãos de poesia tão distintos que, juntos, fazem a magia. Miguilim,
o aprendiz, é quem precisa aprender para saber, enquanto o pequeno Dito, os olhos de
Miguilim, o sábio, sabe de modo imediato, sem saber como:
O Dito, menor, muito mais menino, e sabia em adiantado as coisas, com uma
certeza, descarecia de perguntar. Ele, Miguilim, mesmo quando sabia,
espiava na dúvida, achava que podia ser errado. Até as coisas que ele
pensava, precisava de contar ao Dito, para o Dito reproduzir, com aquela
força séria, confirmada, para então ele acreditar mesmo que era verdade. De
onde o Dito tirava aquilo? Dava até raiva, aquele juízo sisudo, o poder do
Dito, de saber e entender, sem as necessidades‖ (ROSA, 2016, p. 80).
Ao contrário de Miguilim, que gostava de ficar sozinho para pensar, Dito
―carecia de ir ouvir as conversas todas das pessoas grandes‖ e transmitia ao irmão o que
apre(e)ndia em suas observações do mundo adulto. Era o primeiro a perceber os
conflitos dos pais e o caso amoroso entre Maria Pretinha e o vaqueiro Jé. Miguilim
pensava que seria capaz de brincar com Dito a vida inteira, pois o considerava a melhor
pessoa, ―de repente, sempre sem desassossego‖ (ROSA, 2016, p. 55). É como se Dito
não tivesse a alma infantil, ―parecia uma pessoinha velha, muito velha em nova‖.
Mesmo sem a experiência de toda uma vida, Dito parece ter uma certa iluminação
espiritual, uma sabedoria precoce que o permitia se relacionar com as pessoas grandes
quase ―de igual para igual‖, causando imensa admiração em Miguilim:
Mas por que era que o Dito semelhava essa sensatez – ninguém não botava o
Dito de castigo, o Dito fazia tudo sabido, e falava com as pessoas grandes
sempre justo, com uma firmeza, o Dito em culpa aí mesmo e que ninguém
não pegava. (ROSA, 2016, p. 56)
A sabedoria de Dito era tamanha que ele usava de subterfúgios para tomar suas
próprias decisões e evitar as consequências. Era somente Dito quem conseguia conter as
maldades de Patori, menino maldoso que sempre debochava de Miguilim, aprontava
maldades semelhantes às do Saci. Patori não tinha pena dos animais, fazia pouco caso
dos meninos menores, Dito e Tomezinho, e tinha um ―olho ruim‖ que acreditavam ser
capaz de dar dor-de-cabeça nas pessoas. Era também Patori quem ensinava coisas ainda
impróprias para a idade de Miguilim, como lições sobre sexo: ―Sabe como é que
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menino nasce? Miguilim avermelhava. Tinha nojo daquelas conversas do Patori, coisas
porcas, desgovernadas‖ (ROSA, 2016, p. 45). Mas, quando Patori passava dos limites,
Dito inventava que o vaqueiro Saluz estava caçando ele para bater por conta do furto de
um laço e, assim, a paz se reestabelecia para Miguilim, pois Patori corria de medo para
perto do pai.
Um outro exemplo da esperteza de Dito é a passagem da árvore pé-de-flor. Seo
Deográcias, respeitado por ser curandeiro e entendedor de remédios, contara uma lenda
segundo a qual, se uma certa árvore de pé-de-flor plantada no quintal ultrapassasse a
altura da casa, alguém que ali morasse ficaria doente. Miguilim, então, que acreditava
profundamente nas superstições do sertão, fica angustiado e pede para que seu pai corte
a árvore, mas ele nega, não dando ouvidos ao menino ou à superstição. Dito, mais para
tranquilizar Miguilim do que por acreditar na lenda, mente ao vaqueiro Salúz que o pai
havia mandado cortar a árvore, e é prontamente atendido. Dito sabia qual seria a
primeira reação do pai assim que ele voltasse para casa, mas, esperto como era, já sabia
como se salvar da surra:
– "Menino, eu te amostro! Que foi que mentiu, que eu tinha mandado sentar
facão na árvore-de-flor?!" –"Ah, Pai, ressonhei que o que se disse, se a árvore
danasse de crescer, mais o senhor é que é o dono da casa, agora o senhor
pode bater em mim, mas eu por nada não queria que o senhor adoecesse,
gosto do senhor, demais..." E o pai abraçou o Dito, dizia que ele era menino
corajoso e com muito sentimento, nunca que mentia. Mesmo Miguilim não
entendia o sopro daquilo; pois até ele, que sabia de tudo, dum jeito não estava
acreditando mais no que fora: mas achando que o que o Dito falou com o pai
era que era a primeira verdade (ROSA, 2016, p. 58).
O ―sopro daquilo‖ que Dito acabara de fazer e que Miguilim não havia
entendido era o fato de modificar o passado por meio das palavras. É por meio desse
―sopro‖ mágico que Miguilim toma conhecimento da força transformadora de se contar
uma história. Desmanchando a realidade e a certeza de que o pai brigaria com os filhos,
a história de Dito, ―ressonhada‖ ou inventada, ganhara outra dimensão. Miguilim
percebe que a história inventada pode tornar-se concreta no mundo, como uma primeira
verdade. Tanto que, mesmo ciente de todo o ocorrido, fica em dúvida do que seria
realidade e do que seria invenção.
Dito usa constantemente de sua sabedoria até para ludibriar Miguilim e evitar-
lhe a tristeza. Quando Miguilim chorava de saudade da cadelinha Pingo-de-Ouro, Dito
sentia vontade de chorar também e inventa que devia ser pecado chorar de saudade de
cachorro. Em um dia em que o pai de Miguilim ainda estava implicando com o filho,
enciumado por conta da viagem com seu tio Terêz e pela relação de carinhos excessivos
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de Miguilim com a mãe, houve uma grande briga entre o casal. Berno ―xingava de
ofensa‖ Nhanina, a ponto de Dito confessar estar com medo de o pai agredi-la. Foi Dito
quem segredou o drama familiar ao irmão: ―– Eu acho, Pai não quer que Mãe converse
mais nunca com o tio Terêz... Mãe está soluçando em pranto, demais da conta‖ (ROSA,
2016, p. 32). As palavras encobertas pelas reticências de Dito dão ensejo a uma
profundidade escancarada de um possível adultério e despertam a curiosidade até sobre
a verdadeira paternidade de Miguilim, tão amigo de seu tio Terêz e tão parecido
somente com sua mãe. Há sempre um paradoxo entre encobrir e revelar o segredo de
Terêz e Nhanina e o que de fato era entendido por Miguilim e Dito: ―Miguilim entendeu
tudo tão depressa, que custou para entender‖.
Miguilim, com sua visão limítrofe, com a ingenuidade e pureza que lhe são
particulares, procura, dentro de suas limitações, compreender a relação amaldiçoada
entre sua mãe e seu tio. O seu querer bem a sua mãe dificultava associá-la a algo
pecaminoso, errado ou mau. Tanto que o desafeto de Miguilim por seu pai e por sua avó
Izidra era justificado: o primeiro era violento com Nhanina por ciúmes, e a segunda
desdenhava de sua moral. A Dito, pelo contrário, não escapavam certos sinais da
conduta da mãe. Percebendo a reação de Miguilim diante da briga, Dito tenta levar seu
irmão para longe dali, inventando o pretexto de irem ao rego ver os patinhos nadando.
Mas Miguilim, disposto a proteger sua mãe da ira de seu pai, num rompante, corre até
ela e a abraça. Diante da sua ousadia de interferir no conflito, ele é espancado pelo pai.
Ninguém o defende, nem mesmo sua mãe. ―Nem Vovó Izidra. E tanto, até o pai parecia
ter medo de Vovó Izidra‖ (ROSA, 2016, p. 32).
Na verdade, de todos os membros da família, o único que estava protegido da
dureza do pai era a avó Izidra, matriarca da família, mulher muito brava, muito cristã,
de grande senso de justiça e que, curiosamente, enxergava no escuro. Berno era
autoritário com cada um dos filhos – mais com Miguilim –, sentia ciúmes do irmão
Terêz e se desentendia constantemente com Nhanina, mãe de Miguilim, por quem vivia
uma paixão apoiada na incerteza da fidelidade. Miguilim já sabia que quando os adultos
não estavam se falando entre si, acabavam implicando mais com as crianças, como se
fosse preciso preencher aquele silêncio, alegando algum malfeito deles. Há vários
episódios ao longo da narrativa em que Miguilim e o pai se estranham, especialmente
nos momentos de instabilidade entre o casal, justamente porque Miguilim não suporta a
crueldade dele.
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Derradeiro, o Pai judiava mesmo com todo o mundo. Ralhava com Mãe,
coisas de vexame: ―Nhanina quer é empobrecer ligeiro o final da gente: com
tanto açúcar que gasta, só fazendo porcarias de dôces e comida de luxo!‖ O
dôce fazia era porque os meninos e ele Miguilim gostavam. Então, mesmo,
Vovó Izidra um dia tinha resmungado, Miguilim bem que ouviu: ―Esse Bero
tem ôsso no coração...‖ Miguilim mal queria pensar. Não tinha certeza se
estava com raiva do Pai para toda a vida (ROSA, 2016, p.102)
No dia da primeira briga, os irmãos pareciam já habituados a cenas de violência
e não deixaram os brinquedos ou ocupações para verem o que estava acontecendo.
Exceto Dito, leal, espiava de longe, para evitar que Miguilim sentisse vergonha de estar
de castigo no tamborete. Miguilim não se queixava, uma vez que o pior havia passado e
ele podia ―brincar de pensar, ali, no quieto‖, entendendo as coisas que faziam parte se
seu pequeno mundo. Ouvia o ―chorinho sem verdade da mãe‖, que em momento algum
viera vê-lo, comportamento que muito magoava Miguilim. Algumas lembranças e
constatações do menino misturam-se na voz do narrador, como o cachorro Gigão, que
salvara a vida de todos de uma urutu e, por isso, tinha livre acesso dentro de casa, as
formiguinhas na horta, caramujinhos, e a lembrança de seus passeios descalços o
remetia a outras lembranças, como ao bicho-de-pé, às broncas de Vovó Izidra, ao sapato
que usara quando se crismava, à figura do Bispo, tão grande que metia medo, vestido de
roxo, em vez de passar serenidade e penitência. Lembrava-se também das ameaças do
pai, de um dia colocá-lo em um castigo pior, no meio do mato, o que lhe remetia à
lembrança da história de João e Maria, de quem morria de pena e tinha vontade de
tornar a chorar. Miguilim se identifica e encontra os reflexos de seus sofrimentos nas
personagens pobres, pela situação de desamparo em que vive, tanto pela pobreza quanto
pelas dificuldades de ser acolhido como criança. Assim como acontece nos contos de
fadas, Miguilim perde a conecção com o tempo em que está ali e o que acontece ao seu
redor.
Dito, sabendo que não poderia conversar com o irmão de castigo, vinha de
longe, olhando para o outro lado e falando baixinho, trazendo notícias sobre tudo o que
os olhos de Miguilim não alcançam: a jeriza do pai, a chuva iminente que ameaça vir
brava, porque o pássaro tesoureiro estava dando rasante no curral. Ao perceber que está
seguro para continuar a conversa, comenta que é melhor não contar sobre a briga com
tio Terêz. E também sobre o que havia dito Mãitina, empregada da casa: para ela, tudo o
que haveria de acontecer, toda desgraça, era feitiço. Mãitina era negra fugida de
cativeiro, tão velha que não se sabia a idade, adepta da cachaça e dos rituais pagãos
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africanos. Quando rezava, era de um jeito ―porqueado‖: ―Véva Maria zela de graça,
pega ne Zezú põe no saco de mombassa...‖ (ROSA, 2016, p. 40).
Quando chega tio Terêz em casa, com um coelho morto ensanguentado,
Miguilim não aceita a licença do tio de sair do castigo. Não tem mais certeza se os
chefes da família, seu pai e a avó Izidra, ainda determinam que ele ―pode mandar
palavra alguma em casa‖ e permanece onde está, o que demonstra um núcleo familiar
instável e incoerente aos olhos de uma criança. Afinal, intuitivamente, Miguilim, desde
cedo, atribui valor à palavra. Avó Izidra dá licença para que Miguilim saia do castigo,
porque não quer que ele ouça a conversa que terá com tio Terêz, mas Miguilim escutava
perto da porta a avó expulsando o tio de casa, acusando-o de ―Caim que matou Abel‖,
em uma referência à primeira história de homicídio da humanidade, narrada em
Gênesis, primeiro livro da Bíblia, tanto a hebraica quanto a cristã. Miguilim sente muito
medo dos ―desatinos das pessoas grandes‖ e da possibilidade de alguém sair morto
dessa história, mas não concorda com sua avó, pois considerava Tio Terêz seu amigo,
mais parecido com Abel do que com Caim.
Sejam as feitiçarias de Mãitina ou as referências bíblicas da avó Izidra,
Miguilim, tocado pela magia e imaginação, atribui significados mágicos a tudo o que
acontece. Teme o temporal que ameaça cair como uma maldição, a correria de todos
para recolherem as peças do varal – roupinhas pobres de quem Miguilim sentia pena,
como se fossem crianças na chuva. O vento arrancando pedaço de árvores, estrondos de
trovão, a escuridão, tudo isso confere legitimidade ao suposto feitiço ou castigo divino
que assola a família, como se a noite escura de tempestade fosse engolir a tudo e a
todos. Dito, aparentemente, não sente tanto medo, mas é solidário a Miguilim:
Trovejou enorme, uma porção de vezes, a gente tapava os ouvidos, fechava
os olhos. Aí o Dito se abraçou com Miguilim. O Dito não tremia, malmente
estava mais sério. - "Por causa de Mamãe, Papai e tio Terêz, Papai-do-Céu
está com raiva de nós de surpresa..." - ele foi falou.
– Miguilim, você tem medo de morrer?
– Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente
todos morresse juntos...
– Eu tenho. Não queria ir para o Céu menino pequeno.
Faziam uma pausa, só do tamanho dum respirar. (ROSA, 2016, p. 38)
Diante da tempestade, todos são chamados para rezar, ato do qual a avó Izidra
faz questão e cuida com esmero, seriedade, velas bentas, porque, segundo ela, ―o
demônio estava despassando nossa casa, os homens já sabiam o sangue um do outro‖ e
somente a inocência das crianças poderia livrar a todos dos castigos. As palavras da avó
Izidra são dirigidas à Nhanina: ―... Só pôr sua casa porta a fora‖ ... – A nossa casa? E
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que o demônio diligenciava de entrar em mulher, virava cadela de satanás...‖ (ROSA,
2016, p. 41) Miguilim não entendia o ódio da avó contra sua mãe, que era tão bonita, e
só pensava em poder abraçá-la e beijá-la.
As lembranças e pensamentos de Miguilim, misturados à fala do narrador, vão
longe, dos enfeites do oratório feitos de ovos de nhambu, os saquinhos com os
umbiguinhos de crianças que, se o rato os roesse, o menino crescia para ser só ladrão,
até o questionamento de sua fé e a lembrança do dia em que ―tinha puxado o paletó de
deus‖, ao engasgar-se com um ossinho de galinha. É quando, por meio do amálgama de
vozes de Miguilim e do narrador, conhecemos um pouco da história da Mãitina e suas
crenças pagãs, que encantavam, ao mesmo tempo que metiam medo nas crianças.
Miguilim entendia que, no ―atrapalho da linguagem dela‖, o que ela dizia eram cantigas
de ninar e querer bem, mas tão condenadas pela avó, que a acusava de rogar demônios.
Conhecemos também um pouco da história da falecida avó Benvinda, mãe de Nhanina e
irmã da avó Izidra, que, quando moça, havia sido ―mulher-à-tôa‖. Um comportamento
que a avó Izidra condenava e atribuía também à sobrinha Nhanina.
É nesse momento que Miguilim e Dito questionam seus afetos, as consequências
de querer bem ou mal às pessoas de sua família, ou se deveriam gostar de Mãitina, uma
vez que ela iria para o inferno. É quando também, no escuro do quarto, do qual
Miguilim sente medo, sem se olharem, eles revelam a angústia do desamparo que
sentem e a promessa de nunca se separarem:
– "Dito, eu fiz promessa, para Pai e Tio Terêz voltarem quando passar a
chuva, e não brigarem, nunca mais..." "– Pai volta. Tio Terêz volta não." " –
Como é que você sabe, Dito?" "– Sei não. Eu sei. Miguilim, você gosta do
Tio Terêz, mas eu não gosto. É pecado?" "- É, mas eu não sei. Eu também
não gosto de Vovó Izidra.
(...)
Dito, se de repente um dia todos ficassem com raiva de nós – Pai, Mãe, Vovó
Izidra – eles podiam mandar a gente embora, no escuro, debaixo da chuva, a
gente pequenos, sem saber aonde ir?‖. ―– Dorme, Miguilim. Se você ficar
imaginando assim, você sonha de pesadelo...‖. ―– Dito, vamos ficar nós dois,
sempre um junto com o outro, mesmo quando a gente crescer, toda a vida?‖.
―– Pois vamos.‖ (2016, p. 42, 43)
As conversas noturnas entre Miguilim e Dito sempre trazem alguma mensagem
de sabedoria por parte de Dito, ou alguma descoberta por parte de Miguilim. É como se
a ausência de luz trouxesse a clarividência a ambos sobre os problemas fundamentais da
vida. Um exemplo dessas conversas é a passagem a seguir, logo após uma sequência de
injustiças aos olhos de Miguilim, sinais do tempo-do-ruim: o cachorro Julim ser morto
por um tamanduá, um marimbondo picar Tomezinho – isso era comum, sempre abelha
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ou vespa aferroava algum, ou alguém se machucava – e o touro Rio-Negro estranhar
Miguilim, que havia tentado fazer um carinho, e um mal-entendido entre Dito e
Miguilim, que se estapearam. Miguilim se sentiu tão triste por isso que colocou a si
mesmo no tamborete de castigo, mas Dito logo o perdoa e os irmãos passam o dia
refletindo sobre as maldades das pessoas e dos animais. As respostas para as questões
de Miguilim sobre a vida chegam sempre no escuro da noite, por meio das palavras de
Dito:
Mas, de noite, no canto da cama, o Dito formava a resposta: - "O ruim tem
raiva do bom e do ruim. O bom tem pena do ruim e do bom... Assim está
certo." "- E os outros, Dito, a gente mesmo?" O Dito não sabia. – "Só se
quem é bronco carece de ter raiva de quem não é bronco; eles acham que é
moleza, não gostam... Eles têm medo que aquilo pegue e amoleça neles
mesmos – com bondades..." " – E a gente, Dito? A gente?" "- A gente cresce,
uai. O mole judiado vai ficando forte, mas muito mais forte! Trastempo, o
bruto vai ficando mole, mole..." Miguilim tinha trazido a mula de cristal, que
acertava no machucado mão, debaixo das cobertas. "- Dito, você gosta de Pai,
de verdade?" "- Eu gosto de todos. Por isso é que eu quero não morrer e
crescer, tomar conta do Mutum, criar um gadão enorme" (ROSA, 2016, p.
89).
O sentimento de bastardia de Miguilim o assola durante quase todo o seu
percurso e, por isso, é comum Miguilim questionar seus afetos durante a narrativa. A
verdade é que Miguilim é, sim, querido e acolhido por seus irmãos, sua mãe, seu tio
Terêz, Mãitina e Rosa, sua avó Izidra, que sempre lhe beijava a testa, orava por sua
saúde, insistia para que ele se alimentasse e o abençoava quando achava que ele estava
dormindo. Mais tarde, ele descobre que é amado mesmo por seu pai, ainda que este seja
tão bronco em se tratando de demonstrar afeto, mesmo pela esposa. Enquanto Miguilim
ouve e tenta formar posições ante o comportamento hostil dos adultos, Dito, apesar de
mais novo, parece conhecer intuitivamente e aceitar as forças sociais e humanas, sem se
deixa abalar pela insegurança que provocam. Ao contrário, parece sentir-se pronto para
assumir o lugar do pai. Sonha ser vaqueiro e seguir o destino que sua família espera,
integrado ao Mutum. Até os últimos momentos de sua vida, ele revela o sonho de ser
fazendeiro a Miguilim, embora, ou ouvir o mugir do gado, admita: ―Mas depois tudo
quanto há cansa, no fim tudo cansa...‖ (ROSA, 2016, p. 95)
Paulo César Carneiro Lopes (2000, p. 197) traz a importância de Dito para o
aprendizado da personagem Miguilim, em sua trajetória de reconhecimento do outro e
de si mesmo, considerando-o revelação, iluminação, representante da palavra silenciada
da cultura popular, que é capaz de elaborar a sabedoria a partir de seu mundo. Dito é
uma criança com voz num contexto onde as crianças não a possuem. É quem oferece a
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Miguilim, sempre de forma sábia e amorosa, as condições para transitar livremente no
mundo dos adultos. As respostas de Dito sobre o sentido da vida não aparecem como
respostas prontas, acabadas, mas são resultados que se constroem a partir da relação dos
dois irmãos, dos diálogos constantes entre os dois. A visão de mundo de Miguilim é
tecida e modificada à medida que ele age e pensa o seu agir, e este seu pensar é
construído a partir do diálogo com Dito, o que ele pensa sobre o mundo, sobre Deus,
sobre religião, sobre as relações entre as pessoas, sobre a vida.
Assim como Dito, Miguilim também teme a morte, desde o início da narrativa.
Após o dia da chuva e da partida de seu tio Terêz, Miguilim sente dores e pensa que vai
morrer. Pensa em rezar por sua saúde, mas, pelo diálogo com sua avó Izidra,
percebemos como ele vive angustiado e como se sente desamparado em suas
inquietações:
Nem não estava com receio do trovão de chuva, a reza era só para ele
conseguir de não morrer, e sarar. Mas fingia, por versúcia - não queria
conversar a verdade com as pessoas. Falasse, os outros podiam responder que
era mesmo; falasse, os outros então aí era que acreditavam a mortezinha dele
certa, acostumada. – "Vovó Izidra, agora a gente vai rezar de oratório, de
acender velas?!" – ele mais quase suplicava. – "Não, menino..." – que não,
Vovó Izidra respondia – "Me deixe!" – respondia que aquela chuva não
regulava de se acender vela, não estava em quantidades. Ser menino, a gente
não valia para querer mandar coisa nenhuma. Mas, então, ele mesmo,
Miguilim, era quem tinha de encalcar de rezar, sozinho por si, sem os outros,
sem demão de ajuda. (ROSA, 2016, p. 50).
Mesmo rezando, Miguilim não conseguia afastar a ideia de que era ―héctico‖,
palavra que desconhece, e sente-se desenganado. Em face de uma situação de aflição,
mesmo que criada por ele, ele prefere se refugiar nas estórias, como se nelas
conseguisse um abrigo, ou mesmo
Então, ia morrer; carecia de pensar feito já fosse pessoa grande? Suspendeu
as mãozinhas, tapando os olhos. Em mal que, a gente carecia de querer
pensar somente nas coisas que devia de fazer, mas o governo da cabeça era
erroso – vinha era toda ideia ruim das coisas que estão por poder suceder!
Antes as estórias! (...) Miguilim tinha pegado um pensamento quase que com
sua mão (ROSA, 2016, p. 54).
Depois de ouvir a história de seu Sonde sobre um boticário que fez pacto com o
diabo, Miguilim decide fazer um pacto com Deus de que, caso não morresse dentro de
dez dias, não morreria mais. Assim, inclusive, ele teria tempo para iniciar uma novena.
Nesse meio tempo, os dias que seriam supostamente os últimos de sua vida, ele somente
pensava em brincar com Dito a vida inteira, a melhor pessoa, sempre sem desassossego
e que o ajudava sempre. É a Dito que Miguilim confia seus medos, suas angústias de
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menino. Dito, por meio de suas palavras, sempre deixa perpassar uma luz no escuro da
noite, antes de dormirem.
― "Dito, você já teve alguma vez vontade de conversar com o anjo-da-
guarda?" ― "Não pode, Miguilim. Se puder, vai p'ra o inferno..." ― "Dito,
eu às vezes tenho uma saudade de uma coisa que eu não sei o que é, nem de
donde, me afrontando..." ― "Deve de não, Miguilim, descarece. Fica todo
olhando para a tristeza não, você parece Mãe." ― "Dito, você ainda é
companheiro meu? De primeiro você gostava de conversar comigo" ― "Que
eu que eu gosto, Miguilim. Demais. Mas eu quero não conversar essas
conversas assim." ― "Você quer me ver eu crescer, Dito? Eu viver, toda a
vida, ficar grande?" —, "Demais. A gente brincar muito, tempos e tempos, de
em diante crescer, trabalhar, todos, comprar uma fazenda muito grande,
estivada de gados e cavalos, pra nós dois!" A alegria do Dito em outras
ocasiões valia, valia, feito rebrilho de ouro (ROSA, 2016, p. 61).
Ao mesmo tempo em que Miguilim demonstra muita fé cristã, admirada
especialmente pela avó Izidra, ele é supersticioso e muito ligado aos sinais da natureza,
dos ventos, das chuvas, e mesmo a presença da árvore pé-de-flor, que interpreta como
um mau agouro, como prenúncios de sua morte. O mesmo acontece em relação aos sons
dos animais: o pio da coruja, o guincho do tatu, o grunhir do porco – associado às más
previsões, segundo a tradição popular e amaldiçoado na tradição judaica –, o mugir das
vacas, o pio das rolinhas, tudo isso o menino interpretava como sua despedida. Esse
sincretismo pode ser percebido em sua construção imaginária, tanto sendo criança como
sendo fruto do universo sertanejo.
Logo que Miguilim se vê fora de perigo, após ―puxar o paletó de Deus‖, seu pai
fica aparentemente satisfeito em poder cumprir seu papel de pai: moralizá-lo, educá-lo
por meio da imposição do trabalho. Miguilim passa a ser incumbido de levar comida
para ele na roça e se alegra com isso, pois é uma forma de se sentir aceito, uma vez que
as implicâncias do pai diminuem. Ainda assim, o mato é um caminho que muito lhe
assusta. A passagem pelo mato significa, no percurso de formação da criança-aprendiz,
enfrentar as mais íntimas angústias no plano existencial. Perder-se na floresta é uma
experiência comum em contos de fadas, como Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho
e João e Maria. Mas, em vez de confrontos com lobos e bruxas, Miguilim é
atormentado por sua própria consciência, deparando-se com seu primeiro conflito ético.
Na volta da primeira vez em que foi exercer o serviço, encontra seu tio Terêz em um
dos caminhos da mata e este lhe pede que entregue um bilhete a sua mãe. Percebendo,
dentro de suas limitações infantis, que o bilhete é sinal de uma relação adúltera,
Miguilim vive momentos de impasse. Por um lado, seu tio sempre lhe foi afetuoso e
―amigo‖ e, por isso, o menino se sente obrigado a aceitar seu pedido, por outro, entende,
mesmo sem formular claramente o adultério, que a relação entre o tio e mãe desrespeita
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o pai: ―Mas, não poderia entregar o bilhete à Mãe, nem passar palavra a ela, aquilo não
podia, em pecado, era judiação com o Pai, nem não estava correto. Alguém podia matar
alguém, sair briga medonha.‖ (2016, p. 69).
Sendo um dilema de tão difícil solução para uma criança, Miguilim tenta
consultar seus ―oráculos‖, que são as pessoas em cujas palavras confia. Com Dito,
Miguilim se sente mais à vontade para perguntar sobre ele mesmo do que sobre o real
problema. Pela primeira vez, guardava dele o segredo sobre o que realmente o
preocupava: ―– Dito, mesmo você acha, eu sou bobo de verdade?‖ ―– É não Miguilim,
de jeito nenhum. Isso mesmo que não é. Você tem juízo por outros lados...‖ (ROSA,
2016, p. 71) Pelas palavras de Dito, sabemos que o ―juízo‖ de Miguilim é avesso ao que
se espera dele, mas o fato de não ser ―bobo‖ já o satisfaz. À empregada Rosa, a
abordagem de Miguilim é diferente. Ele busca parâmetros para sua conduta: ―Rosa,
quando é que a gente sabe que uma coisa que uma coisa que vai não fazer é malfeito?‖ –
―É quando o diabo está por perto. Quando o diabo está perto, a gente sente cheiro de
outras flores‖. (ROSA, 2016, p. 71) Dessa forma, Rosa alimenta o lado sensorial e
supersticioso de Miguilim. Por fim, pergunta a Mãe sobre o sentido de ―malfeito‖ e
recebe uma diáfana resposta, que muito diz sobre a personalidade de Nhanina: ― – Ah,
meu filhinho, tudo o que a gente acha muito bom mesmo fazer, se gosta demais, então
já pode saber que é malfeito.‖ (ROSA, 2016, p.71). Vaqueiro Saluz, ―valente e
geralista‖ responde que mal feito é ―quando os olhos da gente estão querendo olhar para
dentro, só, quando a gente não tem dispor para encarar os outros, quando se tem medo
das sabedorias‖. (ROSA, 2016, p.72).
As perguntas de Miguilim ficam cada vez mais persuasivas e as respostas cada
vez mais intricadas, provocando ainda mais curiosidade em Miguilim, até que Dito
invoca e avisa Miguilim que tanta pergunta pode gerar desconfiança. Segundo Lisboa,
(1991, p. 175) o bilhete é como um dilema moral confiado unicamente a Miguilim:
―Nenhuma resposta o ajudaria no difícil transe de resolver se entregava ou não o bilhete
cuja gravidade não podia aquilatar, mas já vislumbrava. Nenhuma resposta o ajudaria
senão a da própria consciência de sensitivo, por isso mesmo precoce.‖
Em uma tentativa de esquecer o bilhete, Miguilim vai jogar malha – um jogo de
pontaria que consiste em derrubar todos com uma ferradura – e percebe mais evidente o
―desfoque‖ causado pela miopia. No entanto, ele está tão perturbado com seu dilema
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moral que desconfia que sua dificuldade em enxergar era como um castigo por ter
aceitado entregar o bilhete.
Mas Miguilim não enxergava bem o toco, de certo porque estava com o
bilhete no bolso, constante em que Tio Terêz não queria pensar. Essa hora,
Pai tinha voltado da roça, estava lá dentro, cansado, deitado na rede macia de
buriti, perto de Mãe, como cochilava. Miguilim forcejava, não queria, mas a
ideia da gente não tinha fecho. Aquilo, aquilo. Pensamentos todos desciam
por ali a baixo. (ROSA, 2016, p. 72)
A miopia de Miguilim, mais do que uma dificuldade oftalmológica, aparece de
forma a atribuir um valor simbólico ao confronto que Miguilim enfrenta desde sempre
com o mundo ―turvo‖ dos adultos, a incerteza sobre o bem e o mal. Miguilim vive em
uma luta constante em enxergar e tentar resgatar o aparência perceptiva que detona a
beleza das coisas. Superstições a preceitos religiosos misturam-se em sua mente infantil
quando o medo é gerado pela dúvida sobre o que é certo ou errado. À noite, o medo de
Miguilim cresce associado aos sons da natureza, que sente mais intensamente sua
fraqueza e sua angústia diante do surgimento da sombra. O pavor que toma conta dele
diz menos respeito às assombrações do que à entrega do bilhete. Miguilim vive em
constante negociação com o seu microcosmo e cria para ele uma lógica interna, como se
fosse sempre castigado ou poupado por tudo de errado que fizesse.
Rezava, rezava com força: pegava um temor, até queria que brilhos doessem,
até queria que a cama pulasse. Conseguia era outro medo, diferente. O Dito já
tinha adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O outro herdava os
medos, e as coragens. Do mato do Mutum. Mas não era toda vez: tinha dia de
se ter medo, ocasião, assim como tinha dia de mão de tristeza, dia de sair
tudo errado mesmo, - que esses e aqueles a gente tinha de atravessar, varar da
outra banda. Cuidava de outros medos. Das almas. Do lobishomem revirando
a noite, correndo sete portelos, as sete partidas. Do Lobo-Afonso, pior de
tudo. Mal, um ente, Seo Dos-Matos Chimbamba, ele Miguilim algum dia
tinha conhecido, desqual, relembrava metades dessa pessoa? ROSA, 2016,
p.76)
A resolução do dilema partiu de Miguilim, que ―tinha de ser lealdoso, obedecer
com ele mesmo‖ e veio no momento em que ele se adentrou no mato, ―um mato
calado‖, onde ―Deus vigiava tudo, com traição maior, Deus vaquejava os pequenos e os
grandes‖ (ROSA, 2016, p. 77). Após tamanho sofrimento, do qual saiu transformado,
Miguilim assume ao tio, entre lágrimas, que não havia entregado o bilhete, cumprindo o
que era para ele um rito associado a uma imposição moral. Tio Terêz o consola, diz que
ele tem juízo, que fez bem em não ter dito nada e se despede, isentando Miguilim de
qualquer culpa ou tristeza. Miguilim se alegrou por uns instantes, como se ―um
passarinho cantasse, dlim e dlom‖. Mas outro desespero acomete Miguilim minutos
101
depois, quando, ao se perder no meio do mato, alguns macacos que ele não conseguiu
distinguir o assustam. Em casa, Miguilim fica satisfeito por seu pai contar a todos e
brincar com o acontecido, pois, se está caçoando, não está aborrecido com ele. Das duas
histórias, a conhecida por todos, dos macacos, e a que se mantém em segredo, do
bilhete, Miguilim se vangloria por ser vencedor da segunda, apesar de seu pai e seus
irmãos se alegrarem com o susto da primeira. Lamenta apenas não poder contar ao Dito
sobre o seu aprendizado um segredo que, para ele, tinha ―valor de ouro‖.
Há muitas passagens na narrativa que deixam claro o fato de Miguilim remeter o
ouro somente às suas ―coisas‖ preferidas. Primeiro, à cadelinha Pingo-de-Ouro, que
muita alegria trazia ao menino e a quem Miguilim deu esse nome, provavelmente, por
ser pintadinha de amarelo. A segunda, era à alegria de Dito, que ―valia, valia, feito
rebrilho de ouro‖ (ROSA, 2016, p. 61). Mesmo morando em Minas Gerais, estado
conhecido pela extração do ouro na época do Brasil Colônia, tudo leva a crer que
Miguilim, tão pobre, não é familiarizado com o valioso metal, mas, intuitivamente, com
o que simboliza: a perfeição, a preciosidade, a iluminação, a luz do sol, a sabedoria, a
nobreza, a realeza, a masculinidade e a imortalidade. Foi esse o presente que Jesus,
recebeu, ao nascer do Rei mago Melquior, como reconhecimento de que aquela criança,
mesmo em sua pequenez e fragilidade, era o verdadeiro Rei.
A maior dor de Miguilim, até então, havia sido se separar da cadelinha Pingo-de-
Ouro. Aparentemente, essa separação fora apenas uma preparação para uma perda
maior. Um dia, Dito contou que quando ia espiar duas corujas em um buraco, elas
rodavam e diziam: ―Dito! Dito!‖ Isso assustou muito Miguilim que, como sabemos,
interpretava certos sinais da natureza como um mau agouro. Mais tarde, Dito corta o pé
em um caco de vidro, como se a má profecia se cumprisse. Ele, que era os olhos e o
mentor de Miguilim, passa a ficar na rede e, mais tarde, sua saúde piora ainda mais.
Assim, os papéis se invertem: Miguilim passa a trazer para Dito notícias sobre tudo o
que acontece na fazenda, sobre o que os animais faziam e onde estavam, sobre os
camaradas das roças vizinhas. Mesmo ardendo em febre e sentindo dores na cama, Dito
continua atento ao mundo adulto, com o qual é tão familiarizado, e ao fato de que sua
avó Izidra está sempre xingando sua mãe quando ninguém está olhando. ―Miguilim não
sabia, Miguilim quase nunca sabia as coisas das pessoas grandes.‖ (ROSA, 2016, p. 94)
Estava chegando a época de Natal, e a avó Izidra começava a montar o presépio.
Como Dito não podia acompanhar, Miguilim também não ia e começa a lhe contar
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histórias, das quais faziam parte os bichinhos do presépio da casa. O presépio montado
pela avó Izidra também contava uma história: primeiro eram colocados os animais,
Maria e José, e somente no dia do Natal, o menino Jesus era colocado na manjedoura e,
depois, os Três Reis, cada dia mais próximos da Lapinha. Mas os outros meninos
preferiram ouvir Miguilim a ver o presépio sendo montado. Dito, mesmo enfermo,
pedia que ele contasse mais, um sinal de que o mundo visto pela perspectiva de
Miguilim o encantava, assim como Miguilim aprendia com perspectiva de Dito. O que
Miguilim consegue é revestir o mundo criado por ele com uma linguagem tão poética
que sua palavra, segundo Huizinga (2000, p. 22), delimita um ―círculo mágico‖, espaço
dentro do espaço, suprimindo temporariamente o tempo e a vida quotidiana.
Mas então Miguilim fez de conta que estava contando ao Dito uma estória —
do Leão, do Tatu e da Foca. Aí Tomezinho, a Chica e aquele menino o
Bustica também vinham escutar, se esqueciam do presépio. E o Dito mesmo
gostava, pedia: — ―Conta mais, conta mais…‖ Miguilim contava, sem
carecer de esforço, estórias compridas, que ninguém nunca tinha sabido, não
esbarrava de contar, estava tão alegre nervoso, aquilo para ele era o
entendimento maior. Se lembrava de seo Aristeu. Fazer estórias, tudo com
um viver limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, sabia: Deus mesmo era
quem estava mandando! — ―Dito, um dia eu vou tirar a estória mais linda,
mais minha de todas: que é a com a Cuca Pingo-de-Ouro!…‖ O Dito tinha
alegrias nos olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia que tinha de dormir
a vida inteira. (ROSA, 2016, p. 93).
A essa altura, Miguilim já conhece o valor das palavras, ―apenas mágicas‖,
como se Deus as enviasse. Essa é uma lição que havia aprendido com o próprio Dito, o
―sopro‖ daquilo no episódio da árvore de pé-de-flor. Essa também era uma lição
aprendida com seo Aristeu, que parecia ele mesmo ―desinventado de uma estória‖. Era
artista, cantador, violeiro, apicultor, adivinho, curandeiro e, também, contador de
―estórias‖. Miguilim sempre o considerou uma pessoa inspiradora, detentora do
domínio sobre as palavras. Se, segundo Soares (2002, p. 85), há um nivelamento da
linguagem do narrador de Campo Geral com o ―estágio da infância‖, pode-se dizer que,
no discurso de seo Aristeu, acontece uma duplicação desse mecanismo. De certa forma,
Aristeu é uma personagem que adequa seu discurso à compreensão de Miguilim, usando
palavras no diminutivo como ―abelhinha‖, ―poldrinho‖, ―pombinha‖, concluindo um
grupo semântico relacionado com a natureza, o que promove a identificação de
Miguilim, o encanto de sua Mãe, que o considerava ―um homem bonito e alto‖ e, ao
mesmo tempo, o desprezo de seu pai por seus conhecimentos da natureza e
sensibilidade artística.
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Grivo, amigo de Miguilim, também fora uma de suas inspirações, porque
contava histórias compridas, diferente de todas, de uma forma tão encantadora ―que a
gente ficava logo gostando daquele menino das palavras sozinhas‖ (ROSA, 2016, p.
82). Desde sua primeira aparição em Campo Geral, Grivo é caracterizado por seu
manejo com as palavras, o que é confirmado mais tarde, no conto Cara-de-Bronze, em
que reaparece como adulto, vaqueiro em busca do ―quem das coisas‖, isto é, da rima, do
acorde, das ―palavras-cantigas‖.
Miguilim reconhece com alegria seu dom e descobre que contar histórias poderia
não mudar o rumo das coisas, mas serviria para um entendimento maior, para uma nova
verdade, como no episódio da árvore de pé-de-flor. Uma história poderia ser contada e
recontada sempre que se precisasse, ―tudo com um viver limpo, novo, de consolo‖.
Miguilim pretende compor uma história, que seria a mais linda de todas, pois seria a
história de superação do episódio da perda de Pingo-de-Ouro e uma forma de eternizar –
e reaver – sua cachorrinha do coração, mas, diante da dor pela perda iminente de Dito,
não consegue.
Uma hora o Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho.
Quase que ele não podia mais falar. – ―Miguilim, e você não contou a estória
da Cuca Pingo-de-Ouro…‖ ―— Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso!
Eu gosto demais dela, estes dias todos …‖ Como é que podia inventar a
estória? Miguilim soluçava. — ―Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha
mesmo, ela há de me reconhecer…‖ ―— No Céu, Dito? No Céu?!‖ — e
Miguilim desengolia da garganta um desespero. (ROSA, 2016, p. 96)
A confirmação da pureza da infância e da amizade dos dois meninos está nas
últimas palavras de Dito, seu último momento de sabedoria e a último aprendizado que
quer transmitir a Miguilim antes de sua morte, ou ―encantamento‖, em uma tentativa de
consolá-lo.
―Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a
gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que
acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais
alegre, por dentro!…‖ E o Dito quis rir para Miguilim. (ROSA, 2016, p. 96)
No episódio do falecimento de Dito, que se inicia às vésperas de Natal, quando a
família se ocupa com a montagem do presépio, vemos acontecer o avesso do que ocorre
na narrativa bíblica, em Lucas, capítulo 2: as pessoas humildes visitam o Mutum, não
para louvar o Menino Jesus que nasceu, não por uma boa nova trazida pelos anjos, mas
para orar pela vida do menino Dito, menino sábio, bondoso e adorado por todos.
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Veio seo Deográcias, avelhado e magro, dizia que o Patori não era ruim
assim como todos pensavam, dizia que Deus para punir o mundo estava
querendo acabar com todos os meninos. Veio seo Aristeu, dessa vez não
brincava nem ria, abraçou muito Miguilim e falou, apontando para o Dito: -
―Eu acho que ele é melhor do que nós... Nem as abelhinhas hoje não espanam
asas, tarefazinha... Mas tristeza verdadeira, também nem não é prata, é ouro,
Miguilim... Se se faz...‖ Veio seo Brízido Boi, que era padrinho do
Tomezinho: um homem enorme, com as botas sujas de barro seco, ele
chorava junto, aos arrancos, dizia que não podia ver ninguém sofrer. (ROSA,
2016, p. 97)
Rosa já esclareceu em cartas aos tradutores a diferença entre ―seu‖ e ―seo‖,
sendo o segundo uma forma de tratamento que indica certa ―fidalguia‖. Sendo seo
Deográcias, seo Aristeu e seo Brízido Boi pessoas de mais instrução que as demais
personagens, há quem os compare com os Três Reis Magos. Esse é mais um dos
indícios de que a fé cristã e o pensamento mítico, mágico e sobrenatural coexistem ao
longo de toda a narrativa. Miguilim, menino de grande fé cristã, mesmo com a família
reunida em torno do oratório em uma casa enfeitada com presépio, em um momento de
desespero, pede para Mãitina fazer um feitiço para Dito não morrer, mas já era tarde
demais, a doença venceu: ―Mas aí, no voo do instante, ele sentiu uma coisinha caindo
em seu coração, e adivinhou que era tarde, que nada mais adiantava.‖ (ROSA, 2016, p.
96)
Nos dias que se seguiram após a morte de Dito, Miguilim fica inconsolável, não
consegue imaginar como será a travessia de sua infância sem os olhos, a sabedoria do
irmãozinho e melhor amigo. Desse modo, percebemos mais um rito de passagem, em
que Miguilim não se reconhece mais, tamanha era a transformação pela qual era
consumido:
Todos os dias que depois vieram eram tempo de doer. Miguilim tinha sido
arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar. Quando
chegava o poder de chorar, era até bom - enquanto estava chorando, parecia
que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais
novas e as muito antigas. Mas, no mais das horas, ele estava cansado.
Cansado e como que assustado. Sufocado. Ele não era ele mesmo. Diante
dele, as pessoas, as coisas, perdiam o peso do ser. (ROSA, 2016, p. 99).
O sentimento de ―despertencimento‖ de Miguilim, de ter sido ―arrancado‖, pode
não ter se iniciado na morte de Dito, mas foi confirmado nesse episódio. A infância de
Miguilim, traduzida por sua percepção poética e pela capacidade de inventar histórias,
não resiste à tamanha dor, à qual se entregava com ―lágrimas quentes, maiores do que
os olhos‖. Ele tenta se lembrar das palavras exatas da mãe abraçada ao corpo de Dito,
tentava repeti-las, imitando a voz da mãe, numa tentativa de decorá-las para manter viva
105
a memória de Dito, ―se não, alguma coisa de muito grave e necessária para sempre se
perdia‖ (ROSA, 2016, p. 100). Quando Miguilim perguntavam aos irmãos ou a avó o
que pensavam do Dito, mesmo estando tristes, ―só respondiam com lisice de assuntos,
bobagens que o coração não consabe.‖ Incapaz de criar uma estória de consolo para a
morte do irmão e atribuir sentido a um fato tão trágico e repentino, ele busca, então,
consolo com Rosa e Mãitina. É comum, nas narrativas de Guimaraes Rosa, as
personagens marginais ganharem voz, visto que a visão primitiva do mundo delas
aproxima-se da visão infantil de Miguilim. Somente Rosa e Mãitina pareciam capazes
de lembrar de Dito como o menino especial que era e de entender o sentimento de
Miguilim, ―no meio do sentir, mas um sentimento sabido e um compreendido
adivinhado‖. (ROSA, 2016, p. 100)
Mãitina, uma mulher muito ―imaginada, muito de constâncias‖ era
especialmente quem Miguilim procurava quando queria falar de Dito, pois ela lhe trazia
uma forma de consolo quando ensinava que o menino ―vinha em sonhos, acenava para a
gente, aceitava louvor‖. Em uma tentativa de superar a morte do irmãozinho, Miguilim
e Mãitina fazem um tipo de ritual, um enterro dos pertences e das roupinhas de Dito, em
uma forma alegórica de conservar o menino perto deles e tentar criar, assim, uma
extensão entre a vida e a morte.
O que eles dois fizeram, foi ela quem primeiro pensou. Escondido, —
escolheram um recanto, — debaixo do jenipapeiro, ali abriram um buraco,
cova pequena. De em de, camisinha e calça do Dito furtaram, para enterrar,
com brinquedos dele. Mas Mãitina foi remexer em seus guardados, trouxe
uns trens: boneco de barro, boneco de pau, penas pretas e brancas, pedrinhas
amarradas com embira fina; […] Miguilim tinha todas as lágrimas nos olhos.
Tudo se enterrou, reunido com as coisinhas do Dito. Retaparam com a terra,
depois foram buscar as pedrinhas lavadas do riacho, que cravaram no chão,
apertadas, remarcando o lugar; ficou semelhando um ladrilhado redondo. Era
mesma coisa se o Dito estivesse depositado ali, e não no cemiteriozinho
longe, no Terentém. Só os dois conheciam o que era aquilo. Quando chovia,
eles vinham olhar; se a chuva era triste, entristeciam. (ROSA, 2016, p. 100)
A personagem Rosa, obedecendo a um pedido de Dito, pelejava desde antes de
sua morte para ensinar o papagaio Papaco-o-Paco a chamar alto o nome dele, sem
sucesso. Até que, um dia, de repente, sem ninguém mandar ou ensinar, o papagaio
gritou ―Dito, Expedito! Dito, Expedito!‖. Para Miguilim, foi como um milagre, uma
grande satisfação e mais uma forma de eternizar a memória de Dito, de reinventá-lo na
voz do papagaio, uma vez que Miguilim, atordoado sobre seus sentimentos, já não
conseguia mais inventar histórias:
106
Exaltado com essa satisfação: ele tinha levado tempo tão durado, sozinho em
sua cabeça, para se acostumar de aprender a produzir aquilo. Miguilim não
soube o rumo nenhum do que estava sentindo. Todos ralhavam com Papaco-
o-Paco, para ele tornar a esquecer depressa do que tanto estava gritando. E
outras coisas desentendidas, que o Papaco-o-Paco sempre experimentava
baixo para si, aquele grol, Miguilim agora às vezes duvidava que vontade
fossem de um querer dizer (ROSA, 2016, p. 101).
Exceto por Rosa e Mãitina, a morte de Dito marca a morte da conexão de
Miguilim com o mundo adulto e a vontade de contar histórias. Por mais que sempre
atribuísse significados poéticos às coisas, Miguilim perde sua fala, a voz que quase não
tinha entre os adultos, a vontade de conversar com os irmãos e mesmo com sua mãe. Os
diálogos com o pai, que já eram difíceis com a ajuda de Dito, tornam-se impraticáveis.
É como se Miguilim se perdesse de si mesmo e de sua infância, tanto por desconsolo,
como por insistência de seu pai, que acha que o menino se utiliza da tristeza como
desculpa para não ajudar na fazenda, por se sentir superior, por orgulho. Até que
acontece o salto determinante de Miguilim para o mundo adulto, quando ele vai
―cumprir calado o desgosto‖, nem triste nem alegre, de ir trabalhar com o pai na
fazenda.
Esta é uma passagem em que se vê a discrepância entre a rudeza do pai e a
sensibilidade do filho – ao mesmo tempo em que aparece uma dica da miopia de
Miguilim, não anunciada até o final da estória. Miguilim é atento a detalhes, insetos,
pedrinhas no chão do Mutum, miudezas vistas de perto, mas, seus olhos falham quando
se vê diante de um território adulto desconhecido. Quando é tomado pela tristeza, pelo
sentimento de injustiça e pela incoerência da maldade, ele passa a não distinguir formas
e temer as sombras, a ponto de tropeçar, errar alvo em brincadeira de malha e sentir
medo da mata escura.
Vinha com uma coisa fechada na mão. — ―Que é isso, menino, que você está
escondendo?‖ ―— É a joaninha, Pai.‖ ―— Que joaninha?‖ Era o besourinho
bonito, pingadinho de vermelho. ―— Já se viu?! Tu há de ficar toda-a-vida
bobo, ô panasco?!‖ — o Pai arreliou. E no mais ralhava sempre, porque
Miguilim não enxergava onde pisasse, vivia escorregando e tropeçando,
esbarrando, quase caindo nos buracos: — ―Pitosga…‖ (ROSA, 2016, p. 103)
Da mesma forma como Miguilim é muito atento às palavras, a leitura que ele faz
do mundo é, quase sempre, intercedida pelas cores e pela luz. Miguilim se sente
amedrontado pelo negro, pelo escuro, pela sombra, seja associado ao quarto da avó
Izidra, à sombra do mato ou ao touro Rio-Negro, que lhe machucara a mão uma vez.
Mas, sem dúvida, aos olhos de Miguilim, uma das mais importantes marcas visuais é a
cor vermelha. Está presente no sangue dos animais, inclusive o do tatu sacrificado para
107
que Miguilim sobrevivesse e no coelho morto trazido por seu tio Terêz no dia da grande
briga. Já vimos em Fita Verde no cabelo que o vermelho aparece como oposição ao
verde, simbolizando desejo, sexo e paixão, mas também violência, agressividade, raiva,
revolução, crueldade e imoralidade. Erich Nogueira (2004, p 10), defende que o sentido
da cor, em ―Campo Geral‖, pode variar da cruel alegria dos vaqueiros que matam o tatu
à alegria de Miguilim diante das lembranças ―fugidas‖ e ―afastadas‖ das frutinhas
vermelhas espalhadas pelo chão em uma fazenda que visitou quando ainda era pequeno.
Das pintinhas vermelhas, as lembranças lhe vêm como um sonho:
Depois, na alegria num jardim, deixavam-no engatinhar no chão, meio àquele
fresco das folhas, ele apreciava o cheiro da terra, das folhas, mas o mais lindo
era o das frutinhas vermelhas escondidas por entre as folhas – cheiro
pingado, respingado, risonho, cheiro de alegriazinha. Doía. (ROSA, 2016,
p.28)
É essa alegria, esse ―cheiro de alegriazinha‖, que Miguilim vai perseguir na
narrativa. O movimento que se estabelece é, portanto, de reversibilidades: as frutinhas
têm o ―cheiro de alegria‖, a alegria tem o ―cheiro das frutinhas‖. Talvez, as experiências
representadas pelas framboesas, em Fita-Verde. Os sentidos com os quais Miguilim
apreende o mundo não se obrigam a fazer sentido. Certamente, as pintinhas vermelhas
que Miguilim encontrou na joaninha remetem-no a essa alegria ―fugida‖. O vermelho
aparece como um sentimento ―salpicado‖, respingado em pintinhas, como a luz dos
vagalumes, uma ―alegriazinha‖ suave, insaturada, em um vermelho que não chega à
densidade do sangue de um ato de crueldade.
A rudeza de Berno somada à inconformidade de ver o menino se relacionando
com o mundo de forma tão sensível e sensória afastam ainda mais pai e filho. A
melancolia e o silêncio de Miguilim são confundidos com sentimento de superioridade:
―O que ele quer é sempre ser mais do que é, é um menino que despreza os outros e se dá
muitos penachos.‖ (ROSA, 2016, p.102). O sentimento de rejeição de Miguilim torna-se
ainda maior quando o pai confessa que ―menino bom era Dito que Deus tinha levado
para si, era muito melhor tivesse levado Miguilim.‖ (ROSA, 2016. p. 105).
O conflito entre pai e filho chega ao limite quando Liovaldo, irmão mais velho
de quem ninguém mais se lembrava as feições, vem visitar o Mutum. Liovaldo é muito
parecido com Patori nas maldades, ou até pior. Miguilim não fez questão de ser amigo
do irmão, mas quando este humilhou o menino Grivo, de quem Miguilim gosta tanto,
não conteve o ódio e o sentimento de injustiça e partiu para cima de Liovaldo. O
108
episódio resulta no pai quase matando Miguilim de pancadas, nu no alpendre, a ponto
de sua mãe, suas irmãs, Tomezinho, Rosa e avó Izidra, pela primeira vez, implorarem
chorando para que Berno parasse. Miguilim, ferido nos brios, não chorava. Aguentava a
surra pensando em uma vingança edipiana de que, quando crescesse, mataria o pai. No
meio da contrariedade, pensando em como o mataria, Miguilim começa a rir e seu riso
assusta o pai. Este é mais um rito de passagem e a prova do crescimento de Miguilim:
ele não tem mais medo de ninguém. Sente até um desprezo por todos, mesmo por sua
mãe, que nunca se posicionava em sua defesa.
Para evitar novos episódios de violência, Nhanina manda que Miguilim fique
uns dias morando com o vaqueiro Saluz. Sair de casa, desabitar a casa da infância, a
mesma casa que o acolhe e ama, aprisiona e maltrata, é mais um sinal de que Miguilim
se despede da infância. Ao mesmo tempo que queria ir, Miguilim temia que o vaqueiro
Saluz o tratasse com o mesmo desrespeito e desdém que via Berno tratando o filho. Mas
não é o que acontece, pois Miguilim torna-se seu pupilo nas primeiras funções do ofício
de vaqueiro e passa a ter mais percepção da luz do sol iluminando as flores formando
um ―amarelo de alumiado‖, talvez semelhante aos vagalumes que tanto o encantaram na
mencionada noite de alegrias, e tão diferente daquele mato escuro ―tudo tão sozinho,
tão escuro, o ar ali era mais escuro‖ do qual estava acostumado no Mutum. Ao contrário
do que acontece quando viaja com seu tio Terêz para ser crismado, Miguilim
―desprezou qualquer saudade‖ de qualquer pessoa de sua casa, exceto Mãitina e Rosa.
No último encontro entre pai e filho, diante do desprezo e da insubordinação de
Miguilim, Berno, em vez de agredir o filho, se desfaz de um dos símbolos de sua
infância: os passarinhos. Ao soltar os tico-ticos de Miguilim e destruir as gaiolas, o pai
talvez tenha libertado o filho e aniquilado sua prisão em relação à família: Miguilim não
mais sentia ódio ou medo pelo pai, nem um amor idealizado pela mãe. Miguilim não
fica atrás na réplica e ele mesmo resolve destruir todos os seus brinquedos: rodinha
d‘água, alçapões, sementes, insetos mortos, couro de cobra. Lisboa (1991, p. 175)
descreve essa passagem como o momento definitivo de sua maturidade:
Ao drama de ordem pessoal e à tragédia inelutável, segue-se o conflito com a
força maior, representada pelo domínio paterno contra o qual se insurge o
menino, ferido nos brios. A represália do pai é tremenda. Mas o menino que
tinha mesmo ―coisa de fogo‖, e estava nas ―tempestades‖, não fica a trás na
réplica. Pisa, quebra arrebenta e arrasta ele próprio os seus últimos
brinquedos em devastação total. Crescia de repente, era homem.
109
Mas ainda lhe falta o rito final de separação. Miguilim amadurece a ideia de ir-
se embora e dedica-se à dureza do trabalho braçal como forma de realizar essa travessia,
a ponto de medir forças consigo mesmo. Fortemente atacado pela doença, Miguilim fica
de cama e não consegue mais distinguir o dia da noite, tomado pela cegueira e pela
escuridão que tanto o amedrontava. Não por mera eventualidade, Miguilim tem a
―barriguinha toda sarapintada de vermelhos‖. Dessa vez, o significado do vermelho na
forma de pintinhas que Miguilim associava à alegria atravessa-lhe o corpo,
transformando os sentidos da cor tanto em relação à vida quanto à morte. Miguilim vê o
pai chorar perto de sua cama, vê a disposição do pai em buscar o que fosse preciso para
que Miguilim melhorasse e sorri diante da certeza de ser amado por ele. Este é o
momento em que Miguilim supera seu Édipo: não deseja mais matar o pai. Pouco
depois, tem-se a notícia da tragédia: seu pai matara Luisaltino, personagem que pode
tanto ser amante de Nhanina quanto mediador do romance entre ela e seu tio Terêz. Em
seguida, ele se enforca de remorso. Somamos três mortes neste episódio, sendo a
terceira a infância de Miguilim. Ao contrário do que acontece com Édipo na tragédia,
Miguilim não é mais tomado pela cegueira e volta a distinguir dias e noites.
À medida que se recupera da doença, ressurge em Miguilim a vontade de ―de
poder tirar estórias compridas, bonitas, de sua cabeça, outra vez. Não queria nada.‖
(ROSA, 2016, p. 119). Logo recebe uma visita crucial de seo Aristeu, curandeiro à força
de alegria. Ele chegou transmutando tristeza em mel por meio do favo que trazia e por
meio de palavras que inspiram Miguilim mais uma vez:
―Miguilim, você carece de ficar alegre. Tristeza é agouría…‖
— Foi o Dito quem ensinou isso ao senhor, seo Aristeu?
— Foi o sol, mais as abelhinhas, mais minha riqueza enorme que ainda não
tenho, Miguilim. (ROSA, 2016, p. 117)
Miguilim, lembrando-se do conselho de Dito na hora de sua morte, e também de
sua alegria, que rebrilhava feito ouro, internaliza o seu aprendizado, reacendendo, então,
a sua visão poética do mundo. Para Lisboa (1991, p. 176), Miguilim adquire nesse
momento ―seus pequenos conceitos de conformismo – a que nem os poetas escapam‖:
Se o Dito em casa ainda estivesse, o que era que o Dito achava? O Dito dizia
que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro,
mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia?
Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais
com coisa nenhuma. (ROSA, 2016, p. 119)
110
Veio a notícia da volta de seu tio Terêz ao Mutum, que também era a razão da
partida de sua avó Izidra. Miguilim se vê diante de uma nova organização familiar, sem
a presença daqueles que o oprimiam: o pai e a avó. Diante da indagação de Nhanina, se
o menino gostaria que ela se casasse com o seu tio Têrez, Miguilim mostra-se
indiferente, não se importa com a nova organização que se inicia e acha aquilo tudo uma
bobagem. Ele já está ciente de suas escolhas, apto a deixar a casa da família e a traçar
seu destino individual.
Segundo Resende (1988, p. 30), ao longo de sua trajetória, Miguilim descobre,
com alegria e tristeza, a vida, até chegar a uma relativa maturidade, quando está pronta a
passar a outro estágio do aprendizado.
Nesse ponto, final da narrativa, é capaz de ver o mundo com mais equilíbrio,
porque, tendo saído daquele estado caótico, nebuloso, do início, já é capaz de
formular alguns conceitos, principalmente aprendidos com Dito, o seu irmão.
Seguirá viagem, adiantando na experiência da vida e na vivência de reveses e
de alegrias, e ampliando a sua percepção da realidade. [...]
Assim, uma nova possibilidade de ver o mundo surge para Miguilim na forma de
Doutor José Lourenço, um médico que está por ali de passagem. Percebendo que o
menino tinha ―vista curta‖, pois apertava os olhos para poder enxergar, empresta os
óculos a Miguilim. Quando Miguilim coloca os óculos do doutor, este objeto tem
também um valor simbólico e mágico, pois é como a abertura de um portal para o
conhecimento. Ao mesmo tempo em que Miguilim se rompe com o ―medievalismo‖ da
infância do Sertão, onde a escuridão e a ignorância fazem as leis, ele parte para uma
concepção mais moderna do ―sentimento de infância‖. Ao colocar os óculos, finalmente
ele pode dar a si mesmo o presente que tanto gostaria de ter dado à mãe quando voltou
da viagem para o Sucurijú com seu tio Terêz: enxerga por si que o Mutum é um lugar
bonito e que o mundo pode vir a se tornar um lugar mais inteligível e menos confuso. A
luz de um novo tempo se abriu diante do menino, como mágica:
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo
novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os
grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas
passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta
coisa, tudo… (ROSA, 2016, p. 120)
A recuperação de seu olhar lírico e a entrada para a vida adulta, uma vez que,
agora sim, Miguilim poderia iluminar e desembaçar sua visão do mundo de gente
grande, são marcadas pela oportunidade de ir viver na cidade, aprender ofício, ver por si
111
o que o olhar dele (até então) não dava – fosse pela carência biológica da miopia, pela
carência intelectual, pelas sombras e pela escuridão que tanto temia, pelo sentimento de
despertencimento, pelo olhar infantil ou até mesmo pela impossibilidade de perpassar os
morros do Mutum.
Miguilim, ao longo de sua infância, jamais se acostumou com o ―embaçamento‖
do mundo dos adultos ou com o desajustamento do mundo, justamente por ser como o
―menino poeta‖ de Lisboa (1991). Ele sempre manteve o encantamento e o
estranhamento, sempre esteve disposto a aprender meios de desdobrá-los em detalhes,
em poesia e, como lhe ensinou Dito, em alegria.
112
Considerações finais
Nada em rigor tem começo e coisa
alguma tem fim, já que tudo se passa em
ponto numa bola; e o espaço é o avesso de
um silêncio onde o mundo dá mais voltas.
Guimarães Rosa
Iniciamos nossos estudos com o objetivo de refletir acerca das seguintes
questões: até que ponto as narrativas de João Guimarães Rosa com personagens crianças
operam o encantamento e o desencantamento de maneira a atribuir sentido ao rito de
passagem da vida infantil à vida adulta? Como as sutilezas que diferem e separam a
linguagem da infância da linguagem da vida adulta implicam ações mágico-poéticas
nessa ficção?
A primeira questão visa a refletir sobre os artifícios de encantamento
empregados por Rosa. Esses artifícios, mais do que características das narrativas
rosianas, funcionam como método de construção poética.
Por meio de suas obras em que crianças são personagens, percebemos que Rosa,
em vez de reproduzir a infância mantendo-se a uma distância segura do imaginário
infantil – a distância do adulto –, dilui seu discurso e seu olhar poético no discurso do
narrador e no discurso das personagens, tornando-os indissociáveis. Nesse viés, o autor
permite a criação de prismas de pensamento mágico-poético, como se a criação literária
assumisse a continuação ou a substituição das brincadeiras infantis. Um olhar atento às
sutilezas poéticas de Rosa, descobre, portanto, que o maravilhoso é dificilmente
demarcado. Verificamos em nossas análises que o maravilhoso se abriga dentro de
fronteiras permeáveis, especialmente em se tratando das narrativas rosianas.
Ao iniciar a análise de Partida do audaz navegante (2016), partimos do princípio
que o encantamento era ascendente e transcendente, pois a narrativa se dava em um
contexto em que uma menina faz renascer o ―sentimento de infância‖ das demais
personagens, tornando-se soberana em seu ato de narrar e encantar. Além de
ressignificar o amor e a vida, Brejeirinha é acolhida em sua infância pelas demais
personagens e pela natureza, que brumava, chuviscava e se iluminava, submissa à sua
narrativa, além de lhe acarinhar: ―Um ventinho faz nela bilo-bilo acarinha-lhe o rosto,
os lábios, sim, e os ouvidos, os cabelos.‖ (ROSA, 2016, p. 145) Ela é acolhida, acima de
113
tudo, em sua capacidade criativa, em sua poesia. Ao final, o navio do audaz navegante
se transforma em vagalume e os guarda-chuvas se transformam em asas, a escritura
transcende.
Em Fita verde no cabelo, pressuporíamos que o movimento do encantamento
seria oposto, descendente, uma vez que a protagonista sai atrás de suas asas ligeiras
criando um caminho de experiências repletas de magia, até dar-se com a morte de sua
avó. Esse encontro seria, além de um rito de separação, o momento de desencanto. No
entanto, esse pensamento seria equivocado em se tratando de Rosa. Atribuir o
desencanto à personagem adulta ou à morte seria um engano, a nosso ver. A
personagem adulta, no caso, é a avó, que a amava. O desencanto não aconteceria na
presença do adulto, mas na sua ausência. Isso contradiz o pensamento que, na presença
da personagem adulta, acontece a perda ou a ruptura do encantamento. Além disso,
Rosa, três dias antes do seu encantamento, em seu discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras ressignificou a morte, retirando dela o desencanto. ―As pessoas não
morrem, ficam encantadas… a gente morre é para provar que viveu,‖ (ABL)‖.
16.11.1967.
Em Miguilim, prevíamos a oscilação do encantamento, mas o olhar do menino é
muito mais um prisma mágico e poético do que uma visão limítrofe acerca do mundo.
Rosa faz do míope aquele que enxerga além, que, de minúcia em minúcia, de vagalumes
a joaninha, é capaz de ultrapassar a visão fechada. Trilhar os caminhos de Rosa é como
assumir o olhar de Miguilim. Paulo Rónai explica que o maior triunfo de Rosa está no
fato de fazer o leitor sentir o frescor das ―descobertas‖ e dos ―espantos‖ do menino
quando é introduzido no universo dos adultos (RÓNAI, 2002, P.23). Miguilim
familiarizava-se com o universo adulto por meio de um dos condões de seu
encantamento: o menino Dito. Na ausência deste, a maturidade – e os óculos –
trouxeram-lhe a claridade, o olhar mais longe, o verde dos buritis, o morro coberto de
algodão, a possibilidade de ver o mar, além de novas possibilidades em uma nova vida,
sem que ele se despedisse do condão poético. Podemos concluir que a presença da
personagem adulta, no caso de Miguilim, na figura de seu pai, principalmente, não
representa uma quebra ou ruptura ao encantamento, mas o estímulo para que a criança
recorra a esse encantamento. Encantamento este que é obtido por meio da palavra.
Para Rosa, (GUIMARÃES ROSA apud ROSA, 1999, p. 385), lembremos
sempre, as palavras transbordam do sentido comum, por dizerem mais do que dizem,
são ―apenas mágicas‖. Seguindo seu próprio conselho aos tradutores, ele as trata bem.
114
Mais do que isso, atribui-lhes importância semelhante à palavra de Deus em Gênesis, na
criação do universo.
Em um dos prefácios de Tutameia, Rosa (2017, p. 92) desdenha o Hipotrélico,
um sujeito avesso à poesia, ―antipodático, sengraçante imprízido, falto de respeito com
a opinião alheia‖. Uma vez que ele não permite a invenção de palavra e da palavra, esse
sujeito começa por se negar a própria existência. Afinal, Rosa (apud LORENZ, 1991,
p.83) considera a criação de palavras como a metafísica de sua linguagem (o poeta no
papel de amo da criação). Além de assumir que meditar sobre a palavra é uma forma de
se descobrir a si mesmo e ser um caminho de redenção, de se aproximar de Deus.
Muitas vezes, o hábito de criar palavras invade o criador com ―imperiais manias‖,
especialmente no sertão, onde as pessoas, curiosamente, parecem se ocupar em
acrescentar mais beleza, riqueza e expressividade na língua.
Pode-se lá, porém permitir que a palavra nasça do amor da gente, assim, de
broto e jorro: aí a fonte, o miquirilho, o olho-d‘água; ou como uma borboleta
sai do bolso da paisagem? (ROSA, 2017, P. 93)
É Spina (2002, p. 34) quem explica o que de fato Rosa faz com as palavras:
moduladas na boca dos mágicos, segundo regras especiais, elas tornam-se verdadeiros
corpos tangíveis, realidades objetivas, animadas de vida e de virtudes criadoras. Mais do
que isso, Rosa faz-se, nas palavras de Drummond (apud ROSA,2016, p. 13),
―embaixador do reino que há por trás dos reinos, dos poderes, das supostas fórmulas de
abracadabra, sésamo‖.
Rosa é um poeta capaz de convencer que todos os nossos devaneios de criança
merecem ser rememorados. Bachelard (1996, p. 112) afirma a necessidade de embelezar
para restituir: uma vez que estamos longe de uma memória exata, que poderia ser
emoldurada e guardada, valemo-nos da imagem do poeta, que é capaz de devolver o
esplendor, ―uma auréola‖ às nossas lembranças, como se fosse possível lhe recuperar as
cores por meio da infância.
A infância vê o Mundo ilustrado, o Mundo com suas cores primeiras, suas
cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar nossas
lembranças de infância é o mundo da primeira vez. Todos os verões da nossa
infância testemunham o "eterno verão". As estações da lembrança são eternas
porque fiéis às cores da primeira vez. O ciclo das estações exatas é ciclo
maior dos universos imaginados. Assinala a vida dos nossos universos
ilustrados. Nos devaneios, revemos o nosso universo ilustrado com suas cores
de infância.
A influência mágica que Guimarães Rosa pede emprestada ao linguajar infantil
para realizar seus processos de inovação mais aventureiros, o ―sentimento de infância‖,
115
produz o germe de sua poesia. Pelo pensamento poético, é possível obter intensos
momentos de regresso ao tempo acolhedor da infância e a superação de uma existência
restrita ao aqui e agora. São os poetas que nos auxiliam no reencontro com a infância
viva, permanente, mas que é a própria poesia que irá nos renovar: somos feitos para
respirar livremente. [...] E é nisso que a poesia – ápice de toda alegria estética – é
benéfica (BACHELARD, p. 25).
Para Barthes (1979), a literatura, incluindo-se aí obviamente a poesia, deve ser
para a criança uma brincadeira, um jogo; mas brincadeira no sentido de encenação:
Nela [na literatura] viso, portanto, essencialmente o texto, isto é, o tecido dos
significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da
língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida,
desviada: não pela mensagem de que ela é o teatro (p. 16-17).
Finalizar um estudo sobre a obra de Guimarães Rosa requer a abertura para
novos questionamentos. Não é nosso objetivo responder definitivamente a todas as
questões, muito menos de esgotar as possibilidades de leitura da infância nas narrativas
rosianas, mas, pelo contrário, é instigar outras tantas e dar margem a novas veredas.
Observamos que, aliás, a palavra ―criança‖ e ―infância‖ raramente aparecem nos
textos de Rosa. Todavia, a presença de Miguilim, Dito, Brejeirinha, Fita-Verde e,
também, Grivo, Nhinhinha, e tantos outros meninos e meninas inomináveis assumem,
como já defendeu Lisboa (1991), importância limiar e fundamental na obra de Rosa. Em
vez de simplesmente utilizar a linguagem, a literatura a transcende, fazendo com que o
poeta tome emprestado da criança a sua capacidade de criar seu próprio mundo,
reorganizando-o sob uma nova perspectiva.
Nosso desejo é que o fim deste estudo seja o prenúncio de muitos recomeços.
Queremos saber mais de João e sua magia poética. Além de descobrir se...
Tinha parte com… (sei lá
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar. (Drummond apud ROSA, 2016, p.16)
116
Referências
DO AUTOR
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Rio de Janeiro, 1983.
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ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
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ROSA, João Guimarães. Tutameia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
SOBRE O AUTOR
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122
Anexo I
Partida do audaz navegante
Guimarães Rosa
Na manhã de um dia em que brumava e chuviscava, parecia não acontecer coisa
nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de alpendre, atrás da
pequena casa. No campo, é bom; é assim. Mamãe, ainda de roupão, mandava Maria Eva
estrelar ovos com torresmos e descascar os mamões maduros. Mamãe, a mais bela, a
melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus cabelos davam o louro
silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas. Ciganinha, Pele e
Brejeirinha ─ elas brotavam num galho. Só o Zito, este, era de fora; só primo. Meia-
manhã chuvosa entre verdes: o fúfio fino borrifo, e a gente fica quase presos, alojados,
na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se enxergam o barranco, o
galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um pedaço de um morro ─ e o
longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e olhares as três meninas e o
menino. Da Brejeirinha, menor, muito mais. Porque Brejeirinha, às vezes, formava
muitas artes.
Nesta hora, não. Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no
caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçada as pernocas, ocupava-se com a caixa de
fósforos. A gente via Brejeirinha: primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-cobre; e,
no meio deles, coisicas diminutas: a carinha não-comprida, o perfilzinho agudo, um
narizinho que-carícia. Aos tantos, não parava, andorinhava, espiava agora ─ o xixixi e o
empapar-se da paisagem ─ as pestanas til-til. Porém, disse-se-dizia ela, pouco se vê,
pelos entrefios: ─―Tanto chove que me gela!‖ Aí, esticou-se para cima, dando com os
pés em diversos objetos. ─―Ui, ui-te‖ ─ rolara nos cachos de bananas, seu umbigo
sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar. ─―E o cajueiro ainda faz flores...‖ ─
acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo assim, com essas
aguaceirices, de durante dias, a chuvinha no bruar e a pálida manhã do céu. Mamãe
dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava ajudar, diligentil. Ciganinha lia
um livro; para ler Ciganinha e Zito nem muito um do outro se aproximava, antes
paravam meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a
morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo da
Mamãe. Zito perpensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele abrira-se à
espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por pirueta. ─ ―Eu
sei porque é que o ovo se parece com um espeto!‖ ─; ela vivia em álgebra. Mas não ia
contar a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus segredos são sem acabar.
Tem porém infimículas inquietações: ─―Eu hoje estou com a cabeça muito quente ─
isto, por não querer estudar. Então, ajunta: ─―Eu vou saber geografia.‖ Ou: ─―Eu queria
saber o amor...‖ Pele foi quem deu risada. Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase
assustados. Quase, quase, se entrefitaram, num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que
se crê com a razão, muxoxa. Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto
de não aguentar. Se, à socapa, mirava Ciganinha, ela de repente mais linda, se envoava.
ela não precisava virar página.
123
─―Sem saber o amor, a gente pode ler os romances grandes?‖ ─ Brejeirinha
especulava.
─―É, hem? Você não sabe ler nem o catecismo...‖ Pele lambava-lhe um tico de
desdém; mas Pele não perdia de boazinha e beliscava em doce, sorria sempre na voz.
Brejeirinha rebica, picuíca: ─―Engraçada!... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa
de fósforos...‖ Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor de
expressão, deduzidos de babinhas. ─―Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou
demagogo?‖ Porque gostava, poetisa, de importar desses sérios nomes, que lampejam
longo clarão no escuro de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de repente,
controversioso-culposo, sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele
estalava numa raiva. Mas Brejeirinha tinha o dom de apreender as tenuidades: delas
apropriava-se e refletia-as em si ─ a coisa das coisas e a pessoa das pessoas. ─‖Zito,
você podia ser o pirata inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-onge
no mar, navegante que o nunca-mais, de todos?‖ Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha
estremecera, e segurou com mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a terrina,
para ela bater os ovos.
Mas Brejeirinha punha a mão em rosto, agora ela mesma empolgada, não
detendo em si o jacto de contar: ─―O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros
lugares valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares
eram longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos
irmãos, do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir. Disse: ─―Vocês vão se
esquecer muito de mim?‖ O navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou
batendo o lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi
saindo do perto para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava as costas para a gente,
para trás. A gente também inclusive batia os lenços brancos. Por fim, não tinha mais
navio para se ver, só tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse: ─―Ele vai
descobrir os lugares, que nós não vamos nunca descobrir...‖ Então e então, outro disse:
─―Ele vai descobrir os lugares, depois ele nunca vai voltar...‖ Então, mais, outro
pensou, pensou, esférico, e disse: ─―Ele deve de ter, então, a alguma raiva de nós,
dentro dele, sem saber...‖ Então, todos choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para
casa, para jantar...‖
Pele levantou a colher: ─―Você é uma analfabetinha ―aldaz‖. ─―Falsa a beatinha
é tu!‖ ─ Brejeirinha se malcriou. ─―Por que você inventa essa história de de tolice,
boba, boba?‖ ─ e Ciganinha se feria em zanga. ─‖Porque depois pode ficar bonito, ué!‖
Nurka latira. Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em
cafeteiras, e outras. Disse ainda, reflexiva: ─―Antes falar bobagens, que calar
besteiras...‖ Agora, fechou os olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de
conduta. Só ouvirá o rumorejo da chuvinha, que estarão fritando.
A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo
Antônio, tãoquanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou.
Só era março ─ compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam.
Soltavam-se as galinhas do galinheiro, e o peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava
a azul?
124
Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio. ─―Ah, e você vai
conosco ou sem-nosco?‖ ─ Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de
alheada, desferia chufas meigas: ─―Que nossa vergonha!...‖ ─ e a dela era uma voz de
vogais doçuras. A manhã se faz de flores. Então, pediu-se licença de ir espiar o
riachinho cheio. Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra-a-saia. De
impulso, se alegraram. Só que alguém teria de junto ir, para não se esquecerem de não
chegar perto das águas perigosas. O rio, ali, é assaz. Se o Zito não seria, próprio, essa
pessoa de acompanhar, um meiozinho-homem, leal de responsabilidades? Cessou-se a
cerração do ar. Mas tinham de vestir outras roupas quentes. ─‖Oh, as grogolas!‖
Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se: menina só ave. ─―Vão com
Deus!‖ ─ Mamãe disse, profetisa, com aquela voz voável. Ela falava, e choviam era
bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.
A ir lá, o caminho primeiro subia, subvexo, a ladeirinha do combro, colinola.
Tão mesmo assim, os dois guarda-chuvas. Num ─ avante ─ Brejeirinha e Pele. Debaixo
do outro, Zito e Ciganinha. Só os restos da chuva, chuvinha se segredando. Nurka
corria, negramente, e enfim voltava, cachorra destapada ditosa. Se a gente se virava,
via-se a casa, branquinha com a lista verde-azul, a mais pequenina e linda, de todas,
todas. Zito dando o braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam. Pele
se crescia, elegante. E ágil ia a Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero. Ela andava
pés-para-dentro, feito um periquitinho, impávido.
No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha colavam-se, muito às tortas, nos
comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua experiência de
felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental. Descia-se agora a outra ladeira,
pegando cuidado, pelo enlameável e escorregoso, poças, mas também para não pisar no
que Brejeirinha chamava de ―o bovino‖ ─ altas rodelas de esterco cogumeleiro. Ali,
com efeito, andavam bois: ―o boi, beiçudo‖; aí, Brejeirinha levou tombo. Ela disse que
Mamãe tinha dito que eles precisavam de ter: coragem com juízo. Mas, isso, era
mentirinhas. E, o que pois: ─―Agora, já me sujei, então agora posso não ter cuidado...‖
Correu, com Nurka, pela encosta inferior, no verdinho pasto. Pele ainda ralhou: ─―Você
vai buscar um audaz navegante?‖ Mas, mais. Entanto, à úmida, à luz, o plano capim ─ e
floriu-se: estendem-se, entremunhadas, as margaridinhas, todas se rodeiam de
pálpebras.
O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos
bons bambus, e às pedreiras de beira-rio, ouvindo o ronco, o bufo d‘água. Porque, o rio,
grossoso, se descomporta, e o riachinho porém também, seu estuário já feio cheio,
refuso, represado, encapelado ─ pororoqueja. ─―Bochechudo!‖ ─ grita-lhe Brejeirinha.
Sumiu-se a última areiínha dele, sob baile de um atoalhado de espumas, no belo
despropositar-se, o bulir de bolhas. Brejeirinha já olhou tudo de cor. Cravou varetas de
bambu, marcando pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o
fervor daquilo impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostando de mar: ─―O mar
não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho...‖ Lamentava-se de não ter trazido pão
para os peixes. ─―Peixe, assim, a esta hora?‖ ─ Pele duvidava. Divagava Brejeirinha:
─―A cachoeirinha é uma parede de água...‖ Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era
a Ilhazinha dos Jacarés. ─―Você já viu jacaré lá?‖ ─ caçoava Pele. ─―Não. Mas você
também nunca viu o jacaré-não-estar-lá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar
125
ou não estar...‖ Mas, Brejerinha, Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu par de
olhos passarinhos. Demorava-se, aliás, o subir e alargar-se da água, com os mil-e-um
movimentos supérfluos.
A gente se sentava, perto, não no chão nem em tronco caído, por causa do
chovido do molhado. Ciganinha e Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam
horas infinitas; apenas, conversando ainda feito gente trivial. Pele saíra a colher um
feixe de flores. Mais não chuviscava. Brejeirinha já pulando de novo. Disse: que o dia
estava muito recitado. Voltava-se para a contramargem, das mais verdes, e jogava
pedras, o longe possível, para Nurka correndo ir buscar. Depois, se acocora, de entreter-
se, parece que já está até calçada com um sapatinho só. Mas, sem se desgachar, logo
gira nos pezinhos, quer Ciganinha e Zito para ouvirem. Olha-os.
─―O Aldaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir?
Ele amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele
dentro, escrutínio. O Aldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor,
preliminar. O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original...‖
Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos. ─―Nossa! O assunto ainda não parou?‖
─ era Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um ―ah!‖
e quis que continuou: ─―...Envém a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. O
mar se encheu, o esquema, amestrador... O Aldaz Navegante não tinha caminho para
correr e fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio parambolava... Ele, com o medo,
intacto, quase nem tinha tempo de tornar a pensar demais na moça que amava,
circunspectos. Ele só a prevaricar... O amor é singular...‖
─ ―E daí?‖
─―A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois
estavam nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O Aldaz Navegante, o perigo
era total, titular... não tinha salvação... O Aldaz... O Aldaz...‖
─ ―Sim. E agora? E daí?‖ ─ Pele intimava-a.
─ ―Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz
do mar. E pronto. Ele estava combinado com o homem do farol... Pronto. E...‖
─ ―Nã-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu!
E ─ olha o seu ―aldaz Navegante‖, ali. É aquele...‖
Olhou-se. Era: aquele ─ a coisa vacum, atamanhada, embatumada, semi-
ressequida, obra pastoril no chão de limugem, e às pontas dos capins ─ chato, deixado.
Sobre sua eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o
chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da água,
enchente, já o atingiam, quase.
Brejeirinha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou, caindo no
chão umas flores. ─ ―Ah! Pois é, é mesmo!‖ ─ e Brejeirinha saltava e agia, rápida no
valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas ─ josés-moleques,
douradinhas e margaridinhas ─ e veio espetá-las no concrôo do objeto. ─ ―Hoje não tem
nenhuma flor azul?‖ ─ ainda indagou. A risada foi de todos, Ciganinha e Zito bateram
126
palmas. ─―Pronto. É o Aldaz Navegante...‖ ─ e Brejeirinha crivava-o de mais coisas ─
folhas de bambu, raminhos, gravetos. Já aquela matéria, o ―bovino‖, se transformava.
Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes. Brejeirinha teme
demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele. Pele, a meiga. Que:
─―Então? A estória não vai mais? Mixou?‖
─―Então, pronto. Vou tornar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a moça,
recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um valor,
desasssustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus abraços...
Então, pronto. O mar foi que se aparvalhou-se. Arres! O Aldaz navegante, pronto.
Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi ─‖Fim‖!‖
De fato, a água já se acerca do ―Aldaz Navegante‖, seu primeiro chofre
golpeava-o. ─―Ele vai para o mar?‖ ─ perguntava, ansiosa, Brejeirinha. Ficara muito de
pé. Um ventinho faz nela bilo-bilo ─ acarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os ouvidos,
os cabelos. A chuva, longe, adiada.
Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade.
─―Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste
tempo...‖ E: ─―Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes?‖ E: ─―Se
Deus quiser, eu venho...‖ E: ─―Zito, você era capaz de fazer como o Audaz Navegante?
Ir descobrir os outros lugares? E: ─―Ele foi, porque os outros lugares ainda são mais
bonitos, quem sabe?...‖ Eles se disseram, assim eles dois, coisas grandes em palavras
pequenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma outra coisa se agitava
neles, confusa ─ assim rosa-amor-espinhos-saudade.
Mas, o ―Aldaz Navegante‖, agora a água se apressa, no vir e ir, seu espumitar
chega-lhe já re-em-redor, começando a ensopação. Ei-lo circunavegável, conquanto em
firme terrestreidade: o chão ainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha aumenta-
lhe os adornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro, colorido,
estrambótico, folhas, flores. ─―Ele vai descobrir os outros lugares...‖ ―─Não,
Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!‖ ―─Uê? O quê?‖ Então, Ciganinha, cismosa,
propõe: ─―Vamos mandar, por ele, um recado?‖ Enviar, por ora, uma coisa, para o mar.
Isso, todos querem. Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele, um chicle.
Brejeirinha ─ um cuspinho; é o ―seu estilo‖. E a estória? Haverá, ainda, tempo para
recontar a verdadeira estória? Pois:
─―Agora, eu sei. o Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele embarcou
com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O mar foi indo
com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada vez mais bonito,
mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...‖
Pronto. O trovão, terrível, este em céus e terra, invencível. Carregou. Brejeirinha
e o trovão se engasgam. Ela iria cair num abismo ―intacto‖ ─ o vão do trovão? Nurka
latiu, em seu socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a amparar. Antes,
porém, outra fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor.
―─Mamãe!‖
127
Deitou-se-lhe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como um esquilo
pega uma noz. Brejeirinha ri sem til. E, Pele:
─―Olha! Agora! Lá se vai o ―Aldaz Navegante‖!‖
―─Ei!‖
―─Ah!‖
O Aldaz! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o levavam,
ao Aldaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas folhagens, suas flores
e o airoso cogumelo, comprido, que uma gota orvalha, uma gotinha, que perluz ─ no
pináculo de uma trampa seca de vaca.
Brejeirinha se comove também. No descomover-se, porém, é que diz:
―─Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo, é com um
espeto!‖
De novo, a chuva dá.
De modo que se abriram, asados, os guarda-chuvas.
128
Anexo II
Fita verde no cabelo
(Nova velha história)
João Guimarães Rosa
Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas
que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e
cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por
enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e
quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O
pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá
lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham
exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: — Vou à vovó, com cesto e
pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou. A aldeia e a casa
esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a
gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o
outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vinha-lhe
correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar
essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu
lugar as plebeinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.
Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela,
toque, toque, bateu: — ―Quem é?‖
— ―Sou eu…‖ — e Fita-Verde descansou a voz. — ―Sou sua linda netinha, com
cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.‖
Vai, a avó, difícil, disse: — ―Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus
te abençoe.‖
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco,
assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: — ―Depõe o pote e o cesto na arca, e
vem para perto de mim, enquanto é tempo.‖
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em
caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de
almoço. Ela perguntou:
— ―Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!‖
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— ―É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta…‖ — a avó
murmurou. — ―Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!‖
— ―É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta…‖ — a avó
suspirou.
— ―Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,
pálido?‖
— ―É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha netinha…‖ — a avó
ainda gemeu. Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou: — ―Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!…‖
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio,
triste e tão repentino corpo.
[Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 8 de fevereiro de 1964]