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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA REGINALDO DONIZETTI DOS SANTOS MEU TIO O IAUARETÊ: PECULIARIDADES LINGUÍSTICAS E INOVAÇÕES LINGUAGEIRAS SÃO PAULO 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP … · 2017. 2. 22. · a oralidade. O que se destaca nesses trabalhos é que a comunicação humana desde os primórdios

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

REGINALDO DONIZETTI DOS SANTOS

MEU TIO O IAUARETÊ: PECULIARIDADES LINGUÍSTICAS E INOVAÇÕES

LINGUAGEIRAS

SÃO PAULO

2014

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REGINALDO DONIZETTI DOS SANTOS

MEU TIO O IAUARETÊ: PECULIARIDADES LINGUÍSTICAS E INOVAÇÕES

LINGUAGEIRAS

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientador: Prof.-Dr. João Hilton Sayeg de Siqueira

SÃO PAULO

2014

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Banca Examinadora

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“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”

João Guimarães Rosa Grande sertão: veredas

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra.”

Paulo Freire

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AGRADECIMENTOS

A realização do presente trabalho não teria sido possível sem a contribuição daqueles

que, de toda maneira, acreditaram e inspiraram a materialização de um sonho antes impossível:

o da conquista para o presente trabalho. Por tal motivo, gostaria de prestar meus sinceros

agradecimentos.

Primeiramente a Deus, por iluminar-me nos momentos em que dele tanto precisei e que

em infinita sabedoria, a seu tempo, me amparou.

Ao Professor-Doutor João Hilton Sayeg, por acreditar na execução deste trabalho, no

qual me orientou com paciência, dedicação e sabedoria. Agradeço-lhe por me ter despertado a

vontade de querer transformar a atual realidade educacional de nossas escolas. Obrigado,

professor, por suas intervenções, conselhos, saber e acima de tudo: sua amizade.

Aos Professores-Doutores Rodrigo M.T. Santos e Sueli C. Marquesi, por prestigiar-me

com preciosas observações e ensinamentos contribuídos em meu exame de qualificação.

A meus pais e a minha irmã, que mesmo longe, a sua maneira, incentivavam-me nos

estudos. Obrigado, Dª. Cida, Seu João e Rosimeire, pelo exemplo de simplicidade, garra e

superação, pois de vocês veio minha vontade. Lembrem-se: vocês são únicos.

A minha esposa, Eliane, pela paciência e compreensão que teve nas horas em que a

dedicação dadas as constantes leituras e escritas eram inevitáveis. Obrigado, Nani.

A todos meus familiares (Gamaliel, Santos e Cardozo) e amigos, próximos ou não, que

tanto me encorajaram com palavras compartilhadas em vários momentos de minha vida. Um

sincero abraço aos amigos Carlos, Fernando, Jardel, Reginaldo, Lucas, Júlio, Edson, Adriano e

a todos aqueles que, mesmo não citados, estiveram juntos neste caminhar.

Aos colegas de trabalho, que me incentivaram e contribuíram com a experiência

educacional – a árdua e satisfatória maneira de conviver com a diversidade social de nossas

escolas. Obrigado, Elias, Sandra, Roseli e Crislene.

À Secretaria do Estado da Educação, pelo incentivo financeiro proporcionado pela bolsa

de estudo, sem o que não seria possível a realização deste fabuloso curso. Em especial, meus

sinceros abraços aos supervisores Nilton Pereira, Magali e Maria (financeiro).

A todos os colegas do curso, desde que juntos construímos suposições e

questionamentos que serviram para nortear os trabalhos.

Aos demais colegas, amigos e familiares, que se sintam elogiados e agradecidos por

fazer parte de minha vida.

A todos vocês, meu eterno e sincero obrigado.

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RESUMO

A oralidade reinou absoluta desde os primórdios da civilização, até que, com o desenvolvimento das culturas, o surgimento da escrita revolucionou a forma como o conhecimento passou a ser registrado e preservado. Na busca de melhor compreender a aparente dicotomia entre a modalidade oral e a escrita, este trabalho discute as peculariedades linguísticas orais presentes na linguagem espontânea sertaneja. Assim, decidiu-se utilizar como corpus de análise desta dissertação o conto Meu tio o Iauaretê, do mineiro João Guimarães Rosa (JGR), cujo protagonista Tonho Tigreiro supostamente se metamorfoseia em onça mesclando vingança, ódio e arrependimento, valendo-se de uma oralidade que mistura fenômenos linguageiros caracterizados por neologismos e onomatopeias. A partir da revisão da produção de estudiosos do tema como Preti, Bakhtin, Marcuschi, Ullmann entre outros, o objetivo do estudo pôde ser sintetizado na seguinte indagação: Quais marcas de oralidade presentes no texto analisado caracterizam a fala cotidiana e corriqueira do sertanejo e quais são as peculiaridades linguageiras mais frequentes? Entre os achados, verifica-se que JGR exalta a diversidade cultural e combate, mediante o tratamento linguístico utilizado no texto, possíveis preconceitos à fala corriqueira tão frequente nos usos livres da oralidade e da escrita na prática cotidiana da língua, o que faz rever posicionamentos acerca de conceitos como “certo”, “errado”, “apropriado” quanto ao uso da língua em determinados momentos comunicativos.

Palavras-chave: Meu tio o iauretê; João Guimarães Rosa; oralidade; onomatopeia;

neologismo.

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ABSTRACT

Oral communication reigned absolute since the dawn of civilization until, with the cultures development, the emergence of writing revolutionized the way knowledge was recorded and preserved. In the quest to better understand the dichotomy between oral communication and writing, this paper discusses the linguistic peculiarities present in hinterland spontaneous language. Thus, it was decided to use as the corpus of the analysis in this thesis the tale Meu tio o Iauaretê, from the author João Guimarães Rosa (JGR), a natural of Minas Gerais, whose protagonist Tonho Tigreiro supposed metamorphoses into a jaguar that kills enemies merging revenge, hatred and regret, making use of an oral blending linguistic phenomena characterized by neologisms and onomatopoeia. From the review of the production of scholars on the subject as Preti, Bakhtin, Marcuschi, Ullmann among others, the objective of this study could be summarized in the following question: Which signs of orality present in the analyzed text feature the ordinary and everyday speech of the countryman and what are the most frequent linguistic peculiarities in there? Among the findings, it is observed that JGR celebrates cultural diversity and combat, by the language used in the text treatment, the possible biases in ordinary speech so common in the free use of orality and writing in everyday language practice, which also proposes a review of concepts like “right”, “wrong”, “appropriate” for the use of the language in certain communicative moments. Keywords: Meu tio o Iauaretê; João Guimarães Rosa; orality; onomatopoeia; neologism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 7

1 JOÃO GUIMARÃES ROSA: O HOMEM, O SERTÃO E A LINGUAGEM... 11 1.1 A VIDA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA ............................................................. 11 1.2 AS VIAGENS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA E OS PRIMEIROS CONTATOS COM A LINGUAGEM SERTANEJA ................................................................................. 19

2 A MODALIDADE ORAL NA LINGUAGEM ................................................... 34 2.1 A LÍNGUA(GEM) COMO PRÁTICA SOCIAL .................................................... 34 2.2 O PROCESSO DE ENUNCIAÇÃO E O GÊNERO PRIMÁRIO ........................... 35 2.3 AS PECULIARIDADES DA MODALIDADE ORAL .......................................... 41 2.4 NEOLOGISMO E ONOMATOPEIA .................................................................... 46

3 MEU TIO O IAUARETÊ: INOVAÇÕES LINGUAGEIRAS ........................... 49

4 MEU TIO O IAUARETÊ: PECULIARIDADES LINGUÍSTICAS .................. 62 4.1 ORALIDADE ........................................................................................................ 62 4.2 NEOLOGISMOS ................................................................................................... 65 4.3 ONOMATOPEIAS ................................................................................................ 70

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 73

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 77

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INTRODUÇÃO

Desde há muito, o registro dos acontecimentos da sociedade se dá com maior

intensidade na modalidade escrita, porém, é por meio da oralidade que a interação e o

conhecimento humano se expandem com maior intensidade. As particularidades de uma ou

outra, há muito tempo, vêm sendo alvo de estudos, por vezes privilegiando a escrita, por vezes

a oralidade. O que se destaca nesses trabalhos é que a comunicação humana desde os primórdios

da civilização se desenvolveu com maior força na oralidade. Em outras palavras, a fala poderia

ser representada na forma escrita sem prejuízo mínimo das peculiaridades não fosse, segundo

Preti (2006), uma tentativa de representação ilusória – ou ao menos incompleta –, já que outros

elementos tais como os gestos corporais não seriam observados.

A necessidade de escrever está relacionada ao grau de complexidade das culturas

humanas; e, em algumas delas, mesmo que fundamentalmente “fechadas”, o conhecimento

empírico é transmitindo oralmente, de geração a geração, com toda a substância essencial da

memória sem necessidade, aqui, da escrita. No entanto, em nossa cultura, heterogênea e

“aberta”, registrar por escrito os fatos é valor fundamental para a preservação e a manutenção

(futura) da língua.

Para melhor compreender esse universo aparentemente dicotômico entre modalidade

oral e escrita, este trabalho tem por objetivo geral tecer reflexões sobre peculariedades

linguísticas orais presentes na linguagem espontânea sertaneja, em busca dos fenômenos

linguageiros presentes, caracterizados por neologismos e onomatopeias.

Concorrem para a formação dessas peculiaridades diversos fatores culturais, sociais,

históricos e, até, emocionais, marcadamente presentes na constituição do processo de

comunicação. São inúmeras implicações que podem afetar a manutenção e a transmissão das

tradições linguageiras nas gerações subsequentes, tais como traços linguísticos remanescentes

pelo uso que a prática social faz da linguagem, a relevância do processo de enunciação na

interação verbal e algumas idiossincrasias da modalidade oral manifestadas.

Para tanto, utilizou-se como corpus de análise o conto Meu tio o Iauaretê, do autor

mineiro João Guimarães Rosa (JGR). O referido conto traz no papel de narrador-personagem

Tonho Tigreiro (sendo este um de seus vários nomes), que supostamente se transforma em onça

para se vingar dos que o humilharam em um passado não remoto. No texto, a ira e o ódio se

misturam ao arrependimento do protagonista, tornando-o a imagem do herói que representa a

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brasilidade escondida na modalidade oral, simples e espontânea do sertanejo, registrada por

escrito com todas as diversidades linguísticas apresentadas.

Optar por Guimarães Rosa é ir além de sua importância como autor que inovou a

maneira de olhar as palavras, em tempos em que o tratamento linguístico se deveria dar nos

cânones tradicionais da língua. A simplicidade com que o sertanejo se manifestava em

espontaneidade e riqueza linguística não recebia atenção digna dos falantes da época de ser

contemplada como parte formadora da língua mater.

JGR, estrategicamente no conto, por meio da fala do protagonista, promove exaltar a

diversidade cultural e combater, mediante o tratamento linguístico utilizado no texto, possíveis

preconceitos à fala corriqueira tão frequente nos usos livres da oralidade e da escrita no uso

cotidiano da língua.

Escolher o conto de JGR e estudar a biografia do autor é contemplar como sua aparente

ousadia linguística promoveu mudanças em torno dos tradicionais paradigmas linguísticos que

tanto se propagaram ao longo dos tempos. As observações em torno do conto analisado e os

citados relatos das experiências adquiridas pelo autor ao longo da vida, enriquecendo-se das

falas populacionais que colecionava por onde passava, justificam a escolha da temática que

envolve o presente trabalho.

Soma-se ligeiramente a esse comentário que a motivação maior como incansável

estudante e apreciador das curiosidades sobre o conhecimento possibilitou identificar-me com

o autor mineiro, não apenas por ser conterrâneo regional, como também por conviver, tal como

ele, com a natureza linguística sertaneja. Os boiadeiros, as festas tradicionais, os costumes, as

paisagens e o sofrimento vivenciado pelos “heróis por ele exaltados” foram também cenários

de minha formação pessoal. Os acontecidos com o autor, devidamente apresentados na

biografia, seus contatos e observações para com o tratamento linguístico vão ao encontro de

minhas lembranças como pessoa e profissional da educação. Logo, a valorização do falar

cotidiano aparentemente descuidado tão presente nas salas de aula ou das comunidades carentes

com a qual possuo contato teve na leitura rosiana a ponte que uniu minhas expectativas de

pesquisa, tão frequentes em bibliotecas, na aquisição de livros em outros Estados ou no

levantamento de reportagens e filmagens acerca de João Guimarães Rosa, às apreciações sobre

o estudo linguístico.

Faz-se necessário também lembrar que, mesmo tendo optado por este autor, várias eram

as obras ou os textos que poderiam nortear a pesquisa, mas foi na escolha do conto Meu tio o

Iauaretê que encontrei a essência que motivou a pergunta: Quais marcas de oralidade presentes

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no texto analisado caracterizam a fala cotidiana e corriqueira do sertanejo e quais são as

peculiaridades linguageiras mais frequentes ali encontradas?

Sobre as formas investigativas em torno da questão levantada, a mais eficiente foi o

método indutivo, que possibilitou comparar a bibliografia consultada às contribuições teóricas

apresentadas, para criar hipóteses compreensivas sobre a forma como o protagonista do conto

se utilizou de elementos neológicos e onomatopaicos para representar a essência linguística

sertaneja. O neologismo é utilizado no texto ora por mesclar elementos do tupi, ora por adotar

formas onomatopaicas da animalidade decorrentes da metamorfose de homem em onça (iauare

+ etê = onça verdadeira).

Na tentativa de contemplar satisfatoriamente as investigações que embasam as

discussões acerca da modalidade oral e algumas de suas particularidades linguísticas que

compõem este trabalho, fez-se necessário estruturá-lo como segue.

1) O capítulo 1, “O homem, o sertão e a linguagem”, constitui uma biografia de JGR

com informes e relatos em bibliografias da filha Vilma Guimarães, do amigo Alaor Barbosa

dos Santos e de tio Vicente Guimarães sobre sua infância, costumes, os primeiros contatos

linguísticos e as viagens que lhe permitiram encontrar inspiração para as criações literárias que

o levaram à consagração como célebre escritor. Neste caso, o capítulo foi subdivido em três

tópicos: 1.1, “A vida de JGR”, que foca a infância, a adolescência, os serviços como médico no

interior mineiro e o cargo exercido como diplomata na Europa; fatores de grande relevância,

pois dão as pistas necessárias para entender o imaginário das criações rosianas e as experiências

vivenciadas transcritas em formas de histórias/estórias e nas personagens literárias. No 1.2, “As

viagens de JGR e os primeiros contatos com a linguagem sertaneja”, foca-se com mais exatidão

a viagem feita pelo interior mineiro e Goiás junto com vaqueiros que lhe confidenciaram causos

e historietas que ao longo das terras visitadas ia colecionando e anotando nas “surradas

cadernetas”. Acredita-se que as obras que o consagram como reconhecido escritor tiveram

nessas viagens a bagagem informativa necessária para que fossem relatadas mescladas a suas

imaginativas criações. No 1.3, “Os interesses de JGR pela linguagem”, as curiosidades do autor

sobre a simplicidade do falar sertanejo ganham tamanha importância, pois é nesse momento

que os neologismos são manuseados como “brinquedos nas mãos de criança”. As palavras

fogem de suas limitações gramaticais e ganham asas para novas significações. É no encanto

desse “brincar” com as palavras que o autor busca promover a exaltação do falar sertanejo a um

patamar de reconhecimento e valorização.

No Capítulo 2, “A modalidade oral na linguagem”, ressalta-se o conceito de língua,

segundo Bakhtin, além de outras contribuições teóricas que complementam as discussões nesse

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referido contexto. É então que o tratamento inovador linguístico de JGR pode ser compreendido

à luz das contribuições teóricas. Para isso, o capítulo foi dividido em três momentos essenciais:

o 2.1, “A linguagem como prática social”, traz nos conceitos de Bakhtin sobre língua – além de

outras contribuições teóricas complementares – a proposta de que o manifesto linguístico se dá

por meio da interação verbal. No 2.2, “O processo de enunciação e o gênero primário”, estão

as concepções do filósofo de que a interação verbal ocorre por meio de gêneros. Precisamente,

é na modalidade oral que ocorre a manutenção da língua, sendo que, segundo o autor, para cada

situação discursiva, há um gênero apropriado conforme a escolha dos interlocutores. No 2.3,

“As peculiaridades da modalidade oral”, há observações pertinentes acerca do neologismo e da

onomatopeia tão presentes no conto Meu tio o Iauaretê, representantes natos do tratamento mais

informal da língua(gem).

O Capítulo 3, “Meu tio o Iauaretê: inovações linguageiras”, apresenta um olhar mais

investigativo sobre o conto com tom ensaístico. Trata-se, pois, de uma narrativa interpretativa

mais detalhada com observações acerca das escolhas linguísticas rosianas apropriadas para cada

situação decorrente da estória.

No Capítulo 4, “Meu tio o Iauaretê: peculiaridades linguísticas”, tem-se uma perspectiva

detalhada da análise do conto nas particularidades linguísticas. Em alguns pontos do texto, as

contribuições teóricas sobre tais peculiaridades citadas nos capítulos anteriores –

principalmente no caso do neologismo e da onomatopeia – se tornam mais claras à medida que

o texto se desenvolve. Elementos do tupi e até mesmo expressões mineiras ou baianas surgem

na arquitetura do autor para novas palavras.

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1 JOÃO GUIMARÃES ROSA: O HOMEM, O SERTÃO E A LINGUAGEM

O encantador das palavras, o mago inovador da prosa poética e verdadeiro condutor dos

atos e do falar sertanejo, essas seriam, dentre muitas, denominações de uma das maiores

referências da literatura brasileira: João Guimarães Rosa (JGR).

Certamente, o autor foi um revolucionário da literatura brasileira, tendo em vista o

espírito criativo e sensível a ponto de captar a realidade sertaneja e reescrevê-la a partir de um

novo paradigma, destoante do estereotipado por uma sociedade cujos falares valorizavam o

culto a uma única norma privilegiada. Nesse contexto, a linguagem experimental de JGR

permite que suas criações literárias transmitam um novo olhar detentor de admiração e

reconhecimento pelos leitores e estudiosos acerca do falar simples, que ao longo do tempo foi

conquistando.

A respeito, para entender mais sobre como o universo rosiano fora inspirado para

tamanha inovação linguística, há necessidade de relatar um pouco da vida do autor a fim de

perceber que a imaginação para “brincar” com a criação de novas palavras não se desenvolveu

por acaso. Eis pois a importância de estudar JGR para o presente trabalho, ou, precisamente, os

neologismos tão valorizados pela oralidade presentes em seus textos, que fluíam de uma alma

artística como nato observador da cultura e da expressão oral regional.

1.1 A VIDA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

“Joãozito”, como era chamado entre familiares e amigos, nasceu em Cordisburgo

(cidade do interior mineiro próxima a Sete Lagoas e Paraopeba) no dia 27 de junho de 1908.

Ano de grande significado para o universo literário, pela lamentável perda de Machado de Assis

– uma lenda da literatura se eternizava enquanto outra nascia.

JGR era o primogênito dos cinco filhos de Dª. Francisca Guimarães Rosa (“Dª

Chiquitinha”) e de Florduardo Pinto Rosa. “Seu Fulô”, como era tratado, comerciante, juiz de

paz, caçador de onças, contador de estórias, também era detentor de extraordinária vocação de

escritor não cultivada ou desenvolvida, mas tão apreciada pelo filho Joãozito.

Em uma das cartas enviadas aos pais em 13 de setembro de 1962, JGR relata a devoção

paternal:

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Sempre com a maior alegria é que recebo os simpáticos cartões do Papai, ou as cartas. Gosto muito do jeito dele escrever, de dar notícias de todos. Fico pensando que a minha “bossa” (grifo dele) de escritor eu herdei dele, que maneja a pena com tanta facilidade, personalidade, vivacidade e graça (ROSA, Vilma G., p. 195).1

Segundo Rosa, Vilma G. (1983), os primeiros estímulos de JGR, que o introduziram à

literatura criativa que mais tarde viria a reformular a estética e a visão linguística regionalista,

surgiram da convivência paterna, a qual o inspirou à eterna curiosidade investigativa de como

surgem e se manifestam as mais diversas palavras e seus significados.

Do balcão no estabelecimento comercial de Seu Fulô, o pequeno Joãozito não só ouvia

diversos causos e contos como também convivia com personalidades únicas do cotidiano

juvenil, que contribuíram para a construção das instigantes criações escritas. Vale ressaltar que

tais personalidades seriam mais tarde, de alguma forma, homenageadas não por simplesmente

servir de fonte para as personagens que estavam por vir nas futuras obras, mas, por meio delas,

seus costumes, dialetos, experiências e relatos, a voz e os feitos do sertanejo seriam exaltados

e representados.

Em entrevista concedida a Thiago Goulart,2 JGR deixa transparecer, embora com certa

antipatia pelo contato pessoal, a afeição e o gosto imaginário pelos personagens que criava

baseados nos tipos populares com que convivia:

Não gosto de falar da minha infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos. [...] Tempo bom de verdade só começou com a conquista de alguns isolamentos. Da segurança de poder me fechar no meu quarto, trancar a porta, deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo o mundo conhecido como personagem.

O menino Guimarães aprendeu a ler sozinho aos 6 anos de idade e, aproximadamente,

aos 7, tomaria algumas aulas com Mestre Candinho, o qual elogia muito aos pais. Nesse

período, tem contato com uma ou outra leitura, mas a que mais lhe agrada é o primeiro livro

em francês intitulado Les femmes qui aimment.3 Dessa língua, a curiosidade de Joãozito

aumentava demasiadamente.

1 Vilma Guimarães Rosa Reeves é escritora e a filha mais velha de JGR. Escreveu a obra Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai (2008), uma das referências utilizadas para a produção deste trabalho. 2 Thiago Goulart, contador de estórias de Cordisburgo e jornalista que conseguiu entrevistar JGR. A transcrição da entrevista está disponível em <http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/Roteiro%20-%20GuimaresRosa.pdf>. Acesso em 12 jan. 2014. 3 “As mulheres que amam”, conforme o dicionário Michaelis (http://michaelis.uol.com.br/escolar/frances/) e o site Linguee (http://www.linguee.com.br/frances-portugues/traducao/aiment.html). Acesso em 12 jan. 2014, em que é encontrado com apenas um “m” (aiment), apesar de aparecer grafado como aimment em biografias e documentos pesquisados. Visto tratar-se de uma lembrança de algum parente da época em que JGR era menino, pode inclusive o título do livro estar incompleto.

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De acordo com os estudos biográficos e lembranças da convivência fraternal para com

JGR, o escritor Alaor Barbosa dos Santos4 (2007), em investigações e apanhamentos sobre o

autor, relata um fato curioso de infância rosiana que lhe foi compartilhado em entrevista com o

tio de Joãozito Vicente Guimarães Rosa5.

Conta Vicente Guimarães acerca de Joãozito:

Menino diferente foi: sossegado, caladão, calmo, observador, singelo. Lia muito, estudava... Brincar, raramente, depois que descobriu a leitura. Separá-lo de um livro era difícil, até para as refeições. Nem nunca precisava lhe mandassem estudar. Contrariamente: ralhavam-lhe para deixar o livro (SANTOS, 2007, p. 99).

Conforme era costume do menino Joãozito, segundo Santos (2007), ele se levantava de

madrugada da cama para ler com luz de vela até o sol nascer, escondido no depósito do armazém

do pai. Fato esse que até rendeu algumas preocupações para a família, de acordo com Santos

(2007), já que não se sabia o paradeiro do menino até descobrirem tal hábito, quando um

funcionário do armazém o encontrou dormindo com o livro aberto sobre uma pilha de sacos.

Sua sede pelo conhecimento linguístico aumenta quando a pequena Cordisburgo recebe

um frade franciscano holandês, frei Canísio Zoetmulder, que dele se fez amigo. Somava-se,

assim, à curiosidade rosiana, o estudo pelo holandês e a continuidade com o francês graças ao

frade. Ambos, segundo Santos (2007), acompanhavam os acontecimentos da Primeira Guerra

Mundial, que ocorriam na época na Europa, e marcavam atentos sobre um mapa o desenrolar

da guerra enquanto torciam pelos aliados.

Desse convívio, o latim tornava-se mais uma das línguas que Joãozito teria por afeto.

Das brincadeiras em fingir de sacerdote e celebrar missas, utilizando-se do missal que pegava

da avó, e, mais tarde, das atividades paroquiais como coroinha, era inevitável o contato para

com os dizeres e a escrita da língua mater.

Próximo aos 10 anos de idade, a convite do avô materno, o qual chamava de “Padrinho

Luís” (de Luis Guimarães), e da avó “Dindinha” (Maria Lima Guimarães) – tratamento dado

conforme as tradições mineiras –, Joãozito vai para Belo Horizonte dar continuidade

oficialmente aos estudos.

4 Alaor Barbosa dos Santos, goiano da cidade de Morrinhos, jornalista, escritor e advogado, ocupante da 33ª cadeira da Academia Goiana de Letras desde 1979, escreveu a homenagem biográfica Sinfonia de minas: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa – Tomo I (2007), outra referência biografia deste trabalho. 5 Vicente de Paulo Guimarães, escritor, jornalista, educador e tio de João Guimarães Rosa (apenas dois anos de diferença), escreveu em 1971 a obra Joãozito – a infância de João Guimarães Rosa, um livro de memórias biográficas sobre a convivência com o sobrinho.

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Matriculou-se no curso primário do Grupo Escolar Afonso Pena em Belo Horizonte e,

aos 11 anos, após concluí-lo, vai para São João del-Rei, também em Minas Gerais, para estudar

no nível secundário.

Ao chegar à cidade, inicia o curso no internato do Ginásio Santo Antônio de frades

franciscanos, mas não fica muito tempo ali por não se adaptar à comida do colégio. Sobre esse

episódio, Vicente Guimarães relata que um amigo da família de JGR foi visitar o filho que lá

estudava e avistou o jovem Joãozito pálido e franzino. Vendo-o assim, o tal amigo tratou logo

de avisar à família do menino, a qual prontamente o transferiu novamente para Belo Horizonte.

Em retorno à capital mineira, JGR dá continuidade ao secundário no Colégio Arnaldo,

de padres alemães. Então, passa interessar-se pela língua alemã e intensifica as leituras e o

estudo do novo idioma. Por essa escola, também grandes homens de Minas passaram, dentre

eles, ressalta-se o poeta Carlos Drummond de Andrade e o político Gustavo Capanema.

Relembra Santos (2007, p. 117) a ocasião do retorno de Joãozito, evidenciada

inicialmente ao autor pelo tio e escritor Vicente Guimarães (GUIMARÃES, 2006, p. 39) a partir

de outros dois episódios envolvendo JGR.

Um trata da forma como o autor adquire o gosto pelo idioma japonês e, em seguida,

umas das curiosidades de menino prodígio e autodidata ocorrida na biblioteca mineira, causo

ainda multiplicado pelos antigos funcionários e contadores de história da época.

Certa vez, nas apreciadas leituras na varanda da casa dos avós, JGR observa um

funcionário da Companhia de Força e Luz trocar uma lâmpada do poste equilibrando-se em

uma escada. O que lhe chamou a atenção fora o fato de esse funcionário ser japonês. Incentivado

pela curiosidade, fecha o livro e aguarda o funcionário descer da escada. Então, puxa assunto,

perguntando ao homem como se dizia “bom dia” e “como vai” em japonês, além de outras

frases corriqueiras. Atendendo ao garoto, os questionamentos foram um a um sanados.

Curiosamente, retornando à atividade de manutenção dos postes de luz no dia seguinte, o

funcionário é surpreendido com um cumprimento em japonês fluente advindo do garoto

Joãozito. Admirado com tão boa memória e correção das frases anteriormente aprendidas, o

moço passa a visitá-lo para ensinar-lhe mais um pouco da língua oriental, idioma em que JGR

se aprofundaria anos depois.

Outro fato revelador do mais importante escritor da pequena Cordisburgo tão recontado

e multiplicado refere-se à adolescência do menino. O avô dava ao filho Vicente Guimarães e a

Joãozito a chamada “domingueira” – termo que segundo os costumes mineiros se refere a um

valor (no caso, 2.000 réis) que os jovens poderiam gastar no fim de semana com o que

quisessem. Além das corriqueiras guloseimas apreciadas pela juventude, JGR ia à Biblioteca

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Municipal todas as tardes de domingo e se punha a ler. Certa vez, o garoto chama a atenção de

um frequentador, que reclama com o bibliotecário que havia um menino “fazendo piquenique”

junto a alguns livros abertos, os quais poderiam ser danificados. O funcionário tranquiliza-o e

diz que o menino, frequentador assíduo aos domingos da biblioteca, onde fazia o lanche e se

sentava sempre no mesmo lugar, era zeloso com os livros. Por via das dúvidas, o frequentador

decidiu ir cautelosamente ao encontro de Joãozito – surpreso, verificou que o menino lia um

clássico francês.

JGR fora privilegiado nessa época juvenil, não só por estar rodeado de um ambiente

familiar acolhedor mas incentivador, isso porque os familiares se dedicavam também aos

estudos, sendo que alguns gozavam de graduação adquirida ou prestes a adquirir.

Consequentemente, pela inevitável soma do estímulo da convivência estudantil familiar

com a vontade e entusiasmo de se aperfeiçoar educacionalmente, em 1925, matricula-se na

então denominada Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais, com apenas 16

anos.

Em entrevista exibida em 2010, no programa Guimarães Rosa: o mágico do reino das

palavras, pelo canal TV Escola (GRACILIANO..., 2013),6 José Luiz Guimarães, irmão do

autor, conta que João Rosa – tratado assim na Faculdade – era chamado para estudar com

colegas que importavam livros e obras da Alemanha, da França e da Inglaterra, e a ele recorriam

para traduzi-las. Assim, JGR não só aprimorava o vasto conhecimento pelas línguas

estrangeiras, como também a fama de poliglota se estendia a ponto de os próprios professores,

em algumas ocasiões, procurarem-no por ajuda.

Em 07 de dezembro de 1929, ganha o concurso literário oferecido pela revista O

cruzeiro, do Rio de Janeiro, e estreia como escritor com o primeiro conto que escreve: O

mistério de Highmore Hall. Mais tarde, em 21 de junho de 1930, publica na mesma revista o

segundo conto, Kronos kai anagke (que traduzido do grego tem o título de “Tempo e destino”),

e um terceiro, Caçadores de camurça, na edição de 12 de julho de 1930. Em 09 de fevereiro de

1930, publicara o conto Makiné no jornal O jornal (suplemento dominical). Essas obras foram

premiadas e renderam ao recém-escritor a quantia de 100.000 réis, que lhe foram muito úteis,

pois ainda era estudante. De certa forma, tais contos foram renegados pelo autor, que confessou,

em cartas posteriores, escrevê-los friamente, sem a devida paixão, além de usar formas e estilos

6 GRACILIANO Ramos: literatura sem bijouterias – Mestres da Literatura. TV Escola. Videoteca Do Estudante. Disponível em <http://www.youtube.com/playlist?annotation_id=annotation_916544&feature=iv&list=PLXfFiE2hM1UviD-bsL39ndxraUz9M6pS4&src_vid=BwTPin3HDAI>. Acesso em 12 dez. 2013.

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influenciado por outros autores. São textos que pouco se aproximavam das invenções

linguísticas e da geniosa criatividade presentes, por exemplo, em Sagarana (1946) e Grande

sertão: veredas (1956).

A década de 1930 foi marcante para o “estreante literário” no que se refere tanto à

questão profissional quanto sentimental. Aos 22 anos de idade, em 27 de junho de 1930, casa-

se com uma jovem de apenas 16 anos, Lygia Cabral Penna. Desse relacionamento, nascem as

filhas Vilma (em 1931) e Agnes (em 1934).

No mesmo ano, JGR se forma no curso de Medicina e, por aclamação da turma de 35

formandos, foi o orador do grupo. O discurso, cujo trecho publicado no principal jornal mineiro

da época, Minas Geraes, já revelava, dentre outras características, o grande interesse linguístico

clássico de JGR, inicia a oratória ao argumentar a citada “apreciação pela natureza”:

Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só à custa de troncos alheios logra ella chegar à altura – faltando-lhe as raízes, que sómente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas. Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha bocca a discussão de um themas científico, nem ponha nesta despedida these alguma de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem incolor dos semidoutos e o plagio ingênuo dos compiladores.

O recém-formado doutor recusou-se a exercer a profissão com renomados médicos da

capital mineira para abrir a própria clínica na pequenina Itaguara (antes chamada Dores da

Conquista), município de Itaúna, região centro-norte de Minas Gerais, à margem da estrada que

hoje liga Belo Horizonte a São Paulo, a Rodovia Fernão Dias (BR-381). Nessa pequena cidade,

o Dr. Rosa, como era tratado, dotado de sensibilidade fora do comum, preocupava-se com a

carente realidade das pessoas que atendia. Auxiliado pela esposa – que, segundo a filha, era

uma pessoa de forte gênio –, JGR compadecia-se das vidas que lhe serviriam futuramente de

inspiração literária, a tal ponto de, na maioria das vezes, não querer receber pelas consultas.

O jovem médico, entretanto, não excluía o lado escritor. Aproveitava a vida simples

para registrar os diversos aspectos dos costumes da pacata cidade. Tomava nota de tudo que

ouvia e via. As amizades, conquistadas por meio do carisma incomum e de férteis conversas,

além de proporcionar-lhe significativas inspirações, também revelavam nele um espírito

diplomático.

Cavalgava para atender os doentes nas fazendas e casebres das redondezas, fato

comprovado, por exemplo, em seu primeiro livro, Sagarana (1946), no conto Corpo fechado.

O autor dá o nome fictício à cidade de Laginha, onde é também um médico que narra os

acontecimentos.

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Sobre esse fato, acrescenta-se de passagem outro informe. Trata-se de uma carta enviada

ao amigo Manoel de Carvalho, em 14 de julho de 1932 e transcrita em 26 de junho de 1933,

segundo Vicente Guimarães (apud SANTOS, 2007, p. 150), em que se ressalta a afetiva

consideração com que JGR se refere ao estimado amigo: “Podem vocês estar certos, digo-o

com toda sinceridade: o único lugar onde já me pareceu ver felicidade mais ou menos perfeita

foi nessa boa casa. Felicidade e paz de espírito merecidas, aliás, e que Deus conserve

longamente” (ROSA, Vilma G., 1983, p. 299-301).

Para a filha Vilma, o citado amigo muito se parecia com o “Compadre meu Quelemém

de Góis”, de Grande sertão: veredas, o qual era espírita, assim como Manoel de Carvalho.

Nesse contexto, poder-se-ia especular que JGR já idealizava possíveis personagens ou

acontecimentos que viriam a surgir em suas obras de características regionalistas.

Da juventude vivida em torno de fazendas de gado, dos criadores, dos vaqueiros, da

paisagem mineira em toda a instigante diversidade, tudo seria relembrado, nos meados da

década de 1930, sob o pseudônimo de Viator, com o volume Contos, o qual mais tarde (em

1946), após revisão do autor, se transformaria na obra Sagarana, uma das mais importantes já

surgidas no Brasil contemporâneo. Cabe lembrar que, um ano antes da publicação, JGR

receberia um prêmio da Academia Brasileira de Letras com a coletânea de poemas Magma.

Logo no início dos anos 1930, participa da Revolução Constitucionalista, vindo a atuar

como médico voluntário da Força Pública de Minas Gerais. Tempos mais tarde, promovido a

capitão-médico, a família rosiana foi morar na mineira Barbacena.

Como médico, convivia de perto com a enfermidade e a morte, o que lhe causava

revoltosa angústia. A cidade do interior mineiro carecia, então, de muitos recursos, inclusive de

eletricidade, fator que comprometia o tratamento de males advindos da precária realidade do

interior mineiro. Consequentemente, era questão de tempo até que JGR se desiludisse do ofício

da Medicina.

Precisamente em 06 de julho de 1934, um amigo impressionado com a erudição do

escritor, acentuado conhecimento de línguas e tal dedicação estudiosa, lembrou-lhe de um

concurso para o consulado. Entusiasmado com os dizeres do amigo, JGR se inscreve para o

concurso de diplomata no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, sendo aprovado em 2º lugar

e imediatamente nomeado para tão prestigiado cargo.

Não tardaria o reconhecimento ao êxito do recém-adquirido ofício, pois, em 1938,

obtém o primeiro posto diplomático. O presidente Getúlio Vargas e o ministro Oswaldo Aranha

assinam o diploma de nomeação para cônsul adjunto em Hamburgo, na Alemanha, local em

que JGR veria de perto os horrores da Segunda Guerra Mundial. Sozinho, sem a família – pois

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ela ficara no Brasil –, o diplomado funcionário embarca no navio alemão General Urtigas e

desembarca em Bremerhaven, seguindo de trem até a cidade na qual assumiria o esperado posto.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o cônsul por diversas vezes escapou da

morte. Conforme citado, JGR era supersticioso e respeitador das concepções religiosas.

Católico por formação e opção, também era admirador convicto de assuntos relacionados ao

sobrenatural, o que, segundo informes do próprio escritor, salvou-o em inúmeras situações.

Uma delas, conforme relatos da filha Vilma, fato marcante na vida de JGR, remete à vez em

que acordou no meio da noite com uma vontade intensa de fumar e saiu para comprar cigarros

em um café da esquina, que ficava aberto 24 horas. Ao chegar, ouviu a sirene de um bombardeio

e refugiou-se no abrigo local. Horas depois, dirigiu-se ao local onde morava, mas ficou perplexo

ao deparar com o pequeno prédio em escombros. Com espantoso espírito otimista que mantinha

para amenizar tantos malfadados acontecimentos, descreve para a filha Vilma que “o cigarro

pode matar, mas aquele havia-lhe salvo a vida” (sic).

Outro episódio ocorreu quando o consulado onde trabalhava fora semidestruído durante

um bombardeio, e junto do então cônsul-geral Joaquim Antônio Souza Ribeiro, negando as

orientações de segurança dos bombeiros e policiais, adentraram o local em busca de

documentos oficiais importantes soterrados nos escombros. Mal saíram, ouviram um estrondo

e o resto do prédio vindo abaixo.

As duas ocorrências de quase morte no passado de JGR contribuiriam para fazer emergir

do espírito rosiano um sentimento místico, que tanto o influenciou na literatura. Espiritualista,

acreditava que fora várias vezes poupado para contribuir com algo mais importante que estava

por vir.

Ousado não apenas por renovar – e por que não inovar – a forma literária brasileira, ao

conciliar e exaltar o espaço regionalista e os exemplos populares de toda uma nação, JGR teria

por uma das alimentações inspiradoras a aversão aos acontecimentos experienciados pelo

grande holocausto.

Como diplomata na Europa, ficaria marcado por um feito que lhe renderia homenagens

futuras, uma delas póstuma, pelo governo israelense.

Em 1938, entrou em vigor no Brasil a Circular Secreta nº 1.127, de 7 de junho de 1937,

que restringia a entrada de judeus no país. O informe revoltaria a paranaense Aracy Moebius

de Carvalho, figura que seria importante na vida de JGR. Por ser poliglota e conhecer francês,

inglês e alemão, Aracy conseguiu um cargo de chefia na sessão de vistos de passaportes no

consulado brasileiro em Hamburgo. Indignada com o ato do então governo brasileiro, ela

preparava vistos para judeus que permitiriam a entrada no Brasil, a fim de que fugissem dos

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horrores da guerra. Para conseguir a assinatura do cônsul-geral ou do adjunto JGR, a paranaense

preparava toda a documentação necessária e misturava-a às papeladas do expediente. JGR

descobre os estratagemas de Aracy, mas, muito além de contrariá-la, vê em seus atos uma

autêntica ação diplomática e passa então a ajudá-la. Mais tarde, enamorados pelo constante

convívio, casariam no México; e Aracy tornar-se-ia a segunda esposa do escritor mineiro.

Ambos passariam a ser investigados pelo serviço secreto alemão e pela própria

embaixada brasileira. Amparado pela relação diplomática ainda existente entre Alemanha e

Brasil, JGR é denunciado como simpatizante dos judeus e fichado na polícia alemã.

O escritor cordisburguense possuía imunidade diplomática, entretanto, com o

rompimento entre os dois países em 1942, JGR, Aracy e outros compatriotas foram presos e

enviados para Bandem-Bandem. Lá ficaram por alguns meses, até ser trocados por presos

políticos alemães no Brasil. Ao retornar, é enviado em 1948 a Bogotá, na Colômbia, onde

atuaria como secretário-geral da delegação brasileira da IX Conferência Interamericana, e

depois a Paris, como membro especial da Conferência da Paz. Na cidade luz, é nomeado

conselheiro da embaixada brasileira, onde residiria com a família por algum tempo.

Em continuidade à vida política de JGR, os anos de 1951 a 1958 merecem o devido

destaque. Sobre a primeira data, ele é novamente nomeado chefe de gabinete de João Neves da

Fontoura e, em 1953, torna-se chefe da Divisão de Orçamento. Cinco anos mais tarde, é

promovido a ministro de primeira classe.

Com o mesmo empenho com que se entregava ao trabalho, o escritor JGR se dedicava

à literatura. Os dois mundos que lhe faziam parte não se relacionavam de forma dicotômica. Os

cargos adquiridos como político renderam-lhe experiências únicas, tais como quando ainda era

médico ou soldado. Das tensas ocasiões e experiências que o autor vivenciou como político, às

personalidades que ao longo desse tempo foi conhecendo, renderam-lhe memoriáveis

inspirações, as quais o autor mais tarde representaria ao criar determinadas personagens.

1.2 AS VIAGENS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA E OS PRIMEIROS CONTATOS COM A LINGUAGEM SERTANEJA

Precisamente sobre as aparentes maneiras citadas que lhe inspiraram as moldagens das

produções literárias, fazem-se necessário ressaltar dois relatos consideravelmente importantes

para complementar o imaginário de JGR. Trata-se pois de duas viagens que o autor fez como

uma espécie de projeto investigativo.

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Era 1952, com a primeira marcha pelo interior do sertão de Minas Gerais, enriquecia-se

com importantes sondagens acerca da paisagem, costumes e dialetos regionais. Todavia, apesar

do grande desejo de vivenciar novas oportunidades, o projeto inicial das viagens teve de ser

adiado por quase sete anos. Oportunamente, porém, a vida lhe proporciona – por meio da

família – a possibilidade de concretizar o momento antes adiado.

Um primo, Francisco Moreira, vulgo “Chico” Moreira, possuía uma fazenda, a Sirga,

situada à beira do Rio São Francisco, próxima à atual cidade de Três Marias e ao vilarejo

Andrequicé. Na cidade do Rio de Janeiro, o primo oferece a tal fazenda para que o autor fizesse

a almejada e adiada pesquisa. Em auxílio do escritor, Chico envia o capataz, Manuel Narde,

após lhe ter dado ordens de recepcionar decentemente e tratar muito bem o parente, facilitando-

lhe ao máximo as respostas às curiosidades surgidas. O capataz e vaqueiro Manuel, vulgo

“Manuelzão” – pessoa tão homenageada, querida e imortalizada pelo autor –, assim o fez. Anos

depois, o próprio Manuelzão em entrevista diria que JGR, em cartas ao amigo vaqueiro,

“perguntava mais do que padre” e que, para dar conta dos detalhados informes sobre os

acontecimentos sertanejos, consumiu “mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes”.

Para chegar à referida fazenda, JGR, montado em uma mula – batizada de “Balalaica”

–, participa de comitiva que conduziria uma boiada até a pequena cidade de Araçaí – local não

muito distante de Cordisburgo – e de lá embarca de trem para o Rio de Janeiro. Nos dias que

passou em viagem, de posse de sete cadernetinhas e de lápis dependurado no pescoço, João

Rosa – como preferia ser chamado – não só constantemente perguntava aos vaqueiros “de tudo

um pouco”, como também anotava incansavelmente os acontecimentos e as paisagens que a

seus olhos passavam. Os detalhes sobre a paisagem, as cantorias de viola, a fauna e a flora

mineira, os ricos costumes, hábitos, expressões e modo de falar dos sertanejos, nada passava

desapercebido às atentas observações e anotações do escritor. Anos depois, após retornar ao

Rio de Janeiro, viria a datilografar todo esse material; e, ao separá-lo por temas, o escritor o

batizaria de “A Boiada 1” e “A Boiada 2”.

A instigante jornada a Minas Gerais, segundo Santos (2007, p. 237), era composta por

oito vaqueiros7: entre eles um tocador de berrante, João Henrique da Silva Silveiro, vulgo

“Zito”; o vaqueiro e um dos guias Raimundo Bindóia; e o próprio Manuelzão.

Conforme descrito por JGR (apud SANTOS, 2007, p. 237), Zito, além de ser o melhor

cozinheiro da comitiva e ótimo contador de causos, era poeta secretamente.

7 Além dos citados nomes, tem-se ainda Chico Moreira (dono da boiada), Tião Leite, Santana, Gregório e Sebastião de Morais (o mais jovem e “olheiro de bois”). Até o segundo dia da viagem, os mais difíceis de toda travessia de bois, eram dezoito vaqueiros, dos quais dez retornaram.

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Para JGR, Zito era “escuro e franzino” com “arqueadas pernas, pequeninotezinho

debaixo de extensas abas de chapéu couruno – de ordinário levaria a nele fazerem pouco”.

A viagem de JGR com os vaqueiros foi documentada, antes de chegar à cidade em

Araçaí, por uma revista carioca de prestígio na época denominada O cruzeiro, com divulgação

de dezenove fotos de autoria de Eugênio Silva, em 21 de junho de 1952, sob o título “Um

escritor entre seus personagens”. A seguir, as imagens8 registradas por Eugênio próximo ao fim

da viagem.

Figura 1 – Hora do cafezinho durante a viagem pelo interior mineiro Figura 2 – JGR

Fonte: GGN (2013) Fonte: SILVA (1952)

Figura 3 – Santana Figura 4 – Manuelzão Figura 5 – Zito

Fonte: SILVA (1952) Fonte: SILVA (1952) Fonte: SILVA (1952)

8 Fig. 01, chegada da comitiva após a viagem pelo interior mineiro; Fig. 02, JGR; Fig. 03, Santana; Fig. 04, Manuelzão; Fig. 05, Zito; Fig. 06, mapa em que JGR traça as viagens JGR e absorve possíveis inspirações para as construções literárias. Fig. 01 e 06 disponíveis em <http://jornalggn.com.br/noticia/literatura-e-viagem>. Acesso em 24 jul. 2013; e Fig. 02, 03, 04 e 05, Revista Cruzeiro, p. 42, nº 36, de 21 de junho de 1952).

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Figura 6 – Mapa usado por JGR para traçar as viagens em que absorve inspirações para as construções literárias

Fonte: GGN (2013)

Valorizava o conhecimento empírico dos viajantes, e de todos, João Henrique, o Zito,

era o interlocutor mais fluente. As veredas, os buritis, os remédios naturais e todo o

conhecimento do sertanejo sobre as belezas dessa peregrinação aos poucos se tornavam, para

JGR, uma bela descrição que fluíam harmoniosamente da fala simples do humilde vaqueiro.

Para Santos (2007, p. 238-9), a obra Grande sertão: veredas já estava planizada na

mente rosiana e, aos poucos, era enriquecida com relatos e anotações que minuciosamente o

escritor registrava. Santos (2007, p. 239) transcreveu um episódio em que JGR, certa vez,

durante a viagem da comitiva, estava cavalgando ao lado de Zito e prenarrou ao berranteiro de

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“um romance que estava a escrever – uma estória com grátis gente e malapropósitos vícios e

fatos”. Zito, ao baixar o berrante, teria dito que Rosa deveria, pois, reger as nações.

Aparentemente, dessa conversa, teriam surgido contribuições para o imaginário rosiano,

que, somadas a lembranças e experiências anteriores, estariam por eclodir na obra que enfim o

eternizaria como genial escritor e um dos maiores expoentes do século XX. Acredita-se que,

para JGR, a viagem ao interior mineiro não se limitava apenas a conhecer e descrever tanto o

espaço físico ou as pessoas que ali viviam, como também vivenciar de perto todas as

experiências, além obviamente do medo, expectativas e dificuldades que no caminho

encontrava. Percorrer 240 quilômetros sobre o lombo de uma mula, conduzindo uma boiada de

aproximadamente 300 cabeças de uma fazenda a outra, permitiu ao escritor experimentar

muitas e variadas situações.

Além do vaqueiro Zito, outra inspiração que veio do grupo era Manuel Narde, o

Manuelzão. Visto pelo escritor como uma espécie de cowboy dos antigos filmes de faroeste,

Manuelzão tinha fama por ser destemido e bom atirador. Fama acentuada pelo espiritualismo

que JGR apreciava e respeitava, pois, conforme os boatos locais, era exímio “amansador de

cavalos” por causa da “reza brava” que fazia antes de preparar a montaria. Fato esse que pôde

ser confirmado mais tarde quando Osmam Nascimento, filho do guia da comitiva de JGR

Raimundo Bindóia, concedeu entrevista ao jornalista e escritor Pedro Fonseca sobre o hábito

do pai de “abençoar a montaria”. Tal costume era algo compartilhado não só entre os vaqueiros

como também com sertanejos que possuíam tal conhecimento. Entretanto, dos presentes

vaqueiros na romaria, era Manuelzão quem mais detinha a fama de amansar “montaria braba”.

Para isso, enquanto estivesse prestes a arriar o animal a ser amansado, o cavaleiro pronunciava

a seguinte oração: “Com dois eu te vejo. Com quatro eu te amarro. No sangue eu te bebo. No

coração eu te parto. Quando Deus quer Deus pode. Quando Deus pode Deus quer. Fica manso

cordeiro. Debaixo do meu pesqueiro. Pra tudo que eu quiser” (FONSECA, 2012).9

Maravilhado com os costumes regionalistas, o escritor homenagearia o amigo Manuel

Narde quatro anos mais tarde ao dar vida ao personagem Manuelzão, da novela “Uma estória

de amor”, presente no livro Corpo de baile. A obra, atualmente, é composta de três volumes

independentes: Manuelzão e Miguilim (com as novelas “Campo Geral” e “Uma história de

amor”), No Urubuquaquá, no Pinhém (com as novelas “O recado do morro”, “Cara-de-bronze”

e “A história de Lélio e Lina”) e Noites do Sertão (com as novelas “Dão-Lalalão” e “Buriti”).

Com leitura desafiadora, Corpo de baile é tido como uma espécie de relato poético e, segundo

9 Excertos obtidos em Confira: Trechos do livro “O xale de Rosa”. Revista Época. 23.04.2008. Disponível em <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR83217-5856,00.html>. Acesso em 22 set. 2013.

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o professor Ivan Teixeira, é quase um “experimento metafísico”. Ousa-se dizer que é uma obra

que transcende as estruturas impostas pelo estilo literário modernista vigente, e, por que não,

uma ponte entre a segunda e a terceira fase modernista. Mais que mera e superficial

representação provincial, transcendeu as expectativas das particularidades do tratamento

regionalista presente no terceiro período literário modernista do século XX. As personagens do

livro tinham características únicas. Do autoconhecimento aos enfoques universais e

multiculturais, o autor pôde unir questões populares, linguísticas e hábitos do sertanejo, e

estendeu esses elementos a toda uma nação. Exalta, pois, a realidade social, em personagens

como de quase identidade e envolvimento, sem, necessariamente, posicionar-se criticamente

ante a realidade em questão, tal como percebida, por exemplo, na literatura regionalista de

Graciliano Ramos, cujos personagens possuem consciência crítica e reflexiva sobre a própria

realidade precária em que vivem.

Todavia, meses depois com a obra Grande sertão: veredas é que JGR chegaria ao ápice

da carreira literária, consagrando-se como um dos maiores escritores brasileiros por meio de

um estilo extremamente diferenciado. Neste livro, a ficção e a realidade se mesclam ao enfocar

os ambientes e o povo rude do sertão mineiro. A própria visão de mundo do escritor enfatizada

por uma imaginação incomum ganha asas na linguagem erudita. Sem descaracterizar a

linguagem culta, propõe inovar a oralidade espontânea da comunicação humana. Por meio da

extensa e perturbadora narração de uma personagem, o ex-jagunço e fazendeiro Riobaldo, em

forma de quase monólogo – uma vez que a fala do interlocutor é apenas sugerida –, conta

histórias de contendas, vinganças, amores e mortes com linguajar típico do sertão.

Tamanha repercussão no ambiente literário, consequentemente, críticos e leitores

apaixonados entrelaçam interesses sobre o recém-lançado livro. Em outras palavras, dois anos

de dedicação e pesquisas fizeram com que uma obra de arte, antes hibernada, eclodisse e

enriquecesse nossa literatura.

O reconhecimento por tão brilhante trabalho veio com o Prêmio Machado de Assis

concedido pelo Instituto Nacional do Livro, com o Prêmio Carmen Dolores Barbosa, em 1956,

em São Paulo, e, em 1957, com o Prêmio Paula Brito, no Rio de Janeiro.

Menos de dois meses após desbravar o sertão mineiro, o escritor ainda faria outra

viagem, também com o mesmo intuito investigativo, à Bahia, ao lugar denominado Caldas-do-

Cipó, em companhia do jornalista Assis Chateaubriand.

Tais viagens foram importantes fonte de inspiração para as obras, que, como dito, o

consagraram como figura singular no panorama literário da terceira geração modernista –

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período encabeçado também por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto –, porém,

ressalta-se que não foram os únicos.

Mesmo após as viagens e os períodos que antecediam os lançamentos de Corpo de baile

e Grande sertão: veredas, JGR, com iterativa frequência e insistência em cartas, pedia, ao

amigo Manuelzão e ao pai informações precisas sobre acontecimentos diversos da pacata cidade

de Minas Gerais que um dia o lançou para o mundo.

Segundo a filha Rosa, Vilma G. (2008, p. 174 apud SANTOS, 2007, p. 240), em 27 de

outubro de 1953, JGR responde e agradece ao pai por alguns informes sobre ciganos e o entrudo

em Caeté enviados por carta: Vão ser muito bem aproveitas. Sempre que o Sr. tiver disposição, pode mandar. Na carta, falei no interesse que tenho pelo assunto das caçadas na Serra do Cabral – principalmente quanto aos detalhes pitorescos. O detalhe é muitas vezes de grande proveito, pois metido num texto dá impressão de realidade.

Apesar das constantes notícias que circundavam o recanto mineiro, JGR deixa claro para

o pai que complementasse, em futuras cartas, informações referentes a descrições das pessoas

da “roça”, das pescarias, dos jogos de baralho, dos curiosos caixeiros-viajantes frequentadores

da venda da família, dos desentendimentos e discussões que, por motivos simplórios, vinham a

acontecer em tão pequena cidade, além dos recados que os familiares esporadicamente davam.

A seguir, uma imagem do que foi o armazém do pai de JGR situado na cidade de

Cordisburgo, no interior mineiro – atualmente Museu Casa Guimarães Rosa (MCGR).

Figura 7 – Armazém de Seu Fulô, pai de JGR, em Cordesburgo (MG), atual Museu Casa Guimarães Rosa

Figura 8 – Visão exterior do Museu Casa Guimarães Rosa

Fonte: AS MINAS GERAIS (2013) Fonte: ERA VIRTUAL (2013)

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Mesmo com a publicação das relacionadas obras, os pedidos ao amigo e ao pai sobre

informes da pacata vida cordisburguense ainda eram rotineiros. Em resposta, JGR detalhava os

acontecimentos e momentos que vivenciava – e que às vezes vinham mais como em forma de

desabafo do que de notícias.

O ano de 1958 melhor exemplificaria os mencionados acontecimentos já que se tratava

de um ano deveras marcante na vida de JGR. Em 24 de janeiro, segundo Santos (2007, p. 258),

ocorre a eleição na Academia Brasileira de Letras (ABL), porém, com apenas dez votos, JGR

não obteve sucesso. O concorrente e conterrâneo mineiro, o crítico literário Afonso Arinos de

Melo Franco, para suceder a José Lins do Rego, é eleito com 27 votos.

A reação à derrota na ABL obviamente não foi das melhores, tanto que, ao sair

abruptamente, não deu a devida atenção ao amigo Paulo Dantas (Sagarana emotiva, p. 83-4

apud SANTOS, 2007, p. 259), que assistia ao pleito. Após o episódio, em carta datada de 04 de

fevereiro do mesmo ano, JGR explica porque havia deixado o amigo “no ermo e fogo de sol da

Praia do Flamengo e sem mais, sem um final abraço!”: O que houve, agora eu conto [...] Você se lembra que, no grande dia, eu lhe dissera não estar me sentindo bem [...] Pois bem, logo depois da lauta, violenta empresa, vi, com alarme, que as coisas biologicamente se complicavam [...] Daí, a brusca arrancada salvadora, quase uma fuga.

Ao dar continuidade à carta, JGR, após justificar-se sobre a forma inconveniente de

partir sem se despedir do amigo, ainda incluiria o episódio da eleição, cujo resultado, segundo

ele, dera “água de barrela”, em que do “estouro” o escritor havia salvo “dez garrotes – isto é,

os 10 votos bons”.

Poucos meses depois, em maio de 1958, Juscelino Kubitschek de Oliveira, amigo de

faculdade que servira juntamente com o autor como oficial-médico da Força Pública de Minas

Gerais e então, na época, presidente da República, telefona para JGR e o promove ao posto de

ministro de primeira classe. Tempos depois, a convite do próprio presidente, JGR,

acompanhado da filha Vilma, vai ao palácio e, durante um almoço com o político e assistindo

ao filme sobre a construção de Brasília, gentilmente recusa ofertas de postos no exterior, já que

o interesse do escritor era continuar no Brasil.

Sobre o mal-estar criado, citado em carta ao amigo Paulo Dantas, vale ressaltar que o

escritor se preocupava com enfermidades que o assolavam e seriam o prenúncio de um fim não

tardio. A hipertensão arterial juntamente com outros fatores de risco cardiovascular como

excesso de peso e tabagismo seriam as causas desse fim. Em carta enviada ao pai, em dezembro

de 1958, queixava-se de alguns problemas de saúde, dentre eles, a pressão alta era o que mais

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o preocupava. De acordo com as orientações médicas, ele poderia “alcançar 90 anos de vida”,

caso evitasse as “emoções, surpresas, contrariedades e sustos”.

Coincidência ou não, nesse contexto, as obras de JGR ganhariam – mais do que a magia

já existente – uma espiritualidade e sensibilidade incomum, tal como se forças místicas tivessem

um espaço especial na tonalidade da escrita quase comparada a uma parábola, em que a

verdadeira e relevante essência era transcendental à leitura. O cuidado preciso com que o

escritor se dedicava à forma quase intuitiva de escrever fez com que se lançasse tardiamente ao

universo literário.

Segundo Rosa, Vilma G. (ano, p. 322 apud SANTOS, 2007, p. 246), em carta ao amigo

Antônio F. Azevedo da Silveira em 09 de fevereiro de 1956, JGR, prestes a lançar oficialmente

Grande sertão: veredas, escreve em forma de desabafo o aparente transe em que se punha ao

escrever: [...] Conto a você que, na última semana, antes de entregar a José Olympio o “Grande Sertão”, passei três dias e duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver cama: foi uma verdadeira experiência transpsíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito sem corpo, pairante, levitando, desencarnado – só lucidez e angústia.

Mais adiante, na mesma carta, haveria fazia um desabafo sobre entregar os rascunhos

originais ao editor descrevendo a sensação “de renascimento, de completa e incômoda

liberação, de rejuvenescimento” e que estaria prestes a “voar como uma folha seca”.

Por causa da genialidade e estilo de escrita inovador, apesar de visto por alguns críticos

como “rebelde” ou pelo admirador Graciliano Ramos como “antimodernista”, JGR recebe em

1961 o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.

Na mesma época, presta colaborações regulares a alguns periódicos, precisamente à

revista Senhor e ao jornal O globo. A convite do então editor da Senhor, Paulo Francis, JGR

publica textos na denominada Seção de Literatura. Além dele, a revista teria outros

colaboradores consagrados, como Jorge Amado, Clarice Lispector, Carlos Drummond de

Andrade, Aníbal Machado, Fernando Sabino, Vinicius de Morais e Paulo Mendes Campos. Em

março de 1961, na edição de nº 25 da revista, publica o conto Meu tio o Iauaretê 10, que seria

incluído na obra e publicação póstuma Estas estórias. No jornal, a postagem ocorria na seção

Porta de Livraria, de Antônio Olinto, intitulado “João Guimarães Rosa conta”.

Nesse mesmo período de curtas publicações, o escritor elogiaria a produção Serras azuis

do então amigo e conterrâneo mineiro Geraldo França de Lima. Ainda em 1961, publica

10 Conto utilizado como corpus de análise do presente trabalho.

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Sagarana em Portugal, pela editora Livros do Brasil, e na França parte do Corpo de baile é

traduzida, sob o título Buriti, pela Éditions du Seuil com tradução de J.J. Villard.

Um ano depois, em 1962, assumia a Chefia de Serviço de Demarcação de Fronteiras e,

no campo literário, publica a obra Primeiras estórias, quando vê no mais novo livro de 21

contos florescer outra celebridade: A terceira margem do rio.

No mesmo ano, é convidado a participar, na Alemanha, em Berlim, de 16 a 23 de

setembro, do Primeiro Colóquio de Escritores Latino-Americanos e Alemães, onde também

conheceria o tradutor Curt Meyer-Clason. Já no mês seguinte, comunica a Curt ter recebido,

em Frankfurt, carta do diretor e editor Joseph Caspar Witsch, da editora Kiepenheur&Witsch,

um contrato para a tradução de Grande sertão: veredas para o alemão.

Também em 1962, a segunda parte de Corpo de baile é traduzida na França com o título

Les nuits du sertão, de mesma autoria para tradução e edição.

Em 1963, o ano de fecunda felicidade para o autor viria de bons acontecimentos. Na

Itália, parte de Sagarana é traduzida sob o título Il duello, pela Nuova Accademia Editrice, com

tradução de Edoardo Bizzarri e apresentação de P.A. Jannini. Enquanto nos Estados Unidos,

Grande sertão: veredas ganharia tradução com o título The devil to pay in the backlands, por

Alfred A. Knopf, tradução de James L. Taylor e Harriet de Onis.

Em 8 de agosto de 1963, JGR finalmente seria eleito por unanimidade pela Academia

Brasileira de Letras para ocupar a vaga do embaixador João Neves de Fontoura. Entretanto, a

posse é adiada – sine die – por quatro anos, pois receava que algo lhe poderia acontecer

justificado pela forte emoção a ser produzida no momento.

Os três anos que se seguiam permitiriam que JGR fosse lido em outros países, uma vez

que na Alemanha, em 1964, finalmente Grande sertão: veredas é traduzido por Curt Meyer-

Clason e, em Portugal, parte de Corpo de baile, sob o título Miguilim e Manuelzão, é editada.

Em 1965, a França é o país para recepcionar a tradução do mesmo Grande sertão: veredas sob

o título Diadorim – le diable dans la rue, au milieu du tourbillon, assinada por J.J. Villard.

No ano seguinte, em 1966, o diplomata faz importante contribuição para pacificar e

estreitar as relações entre o Brasil e o Paraguai. Uma vez solucionadas as dúvidas do governo

paraguaio sobre questões quanto a demarcações de fronteira entre os dois países, a utilização

do Rio Paraná estaria em comum acordo, e logo se inicia a construção da Usina Hidrelétrica

Binacional de Itaipu.

No mesmo ano, para o escritor cordisburguense tantas vezes agraciado por homenagens

e com a mesma humildade com que as recebia, Israel Pinheiro seria o prestigiador de mais uma

delas. Das mãos deste governador, recebe, então, a Medalha da Inconfidência, honraria

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concedida somente a mineiros ilustres. Ainda em 1966, precisamente no dia 2 de dezembro, foi

condecorado, no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, por Juracy Magalhães, então ministro

das Relações Exteriores, com a Ordem do Rio Branco em virtude dos feitos de honrosa menção

e de valorosos atos cívicos.

Em janeiro de 1967, JGR, em Manaus, participa de reunião dos embaixadores brasileiros

nos países amazônicos,11 e, segundo Santos (2007, p. 328), momento considerado importante,

pois se tratava de “um dos primeiros passos que levaram à assinatura do Tratado de Cooperação

Amazônica” no ano de 1978. Três meses mais tarde, em abril, o escritor é convidado a fazer

parte no II Congresso Latino-Americano de Escritores, no México, como representante

brasileiro, em que atuaria como vice-presidente. Entretanto, renuncia ao cargo em razão de

delegados de Cuba e do Panamá tecer críticas de caráter político ao governo dos Estados

Unidos. Seu manifesto a respeito foi pronunciado em castelhano.

Três meses também seriam o tempo que separariam os admiradores de JGR da

publicação “derradeira” do escritor em vida: Tutaméia – terceiras estórias. Críticas se dividiram

sobre a obra: de um lado, havia os que a considerassem uma espécie de “impacto literário” e,

de outro, os que a viam como um “espelho estilístico rosiano”. A última crítica se justifica pela

criação de um estilo forte, oral e direto. Uma aparente relação dicotômica entre a simplicidade

e a humildade das personagens com a retórica utilizada por eles, típica temática tão explorada

pelo autor. Para Santos (2007, p. 333), o escritor provoca uma radicalização da própria

originalidade “inimitável”, em que o dialeto sertanejo é “elevado à categoria de língua literária”.

Os 44 contos que compõem o livro Tutaméia aos poucos foram publicados no decorrer

de um período de dois anos – desde 1965 – em colaboração quinzenal para a revista médica

Pulso, pois, apesar de ser um periódico semanal, JGR fazia revezamento com o amigo Carlos

Drummond de Andrade.

Em 13 de novembro de 1967, a três dias da adiada posse na ABL, Rosa experienciou a

primeira publicação do livro da filha Vilma, Acontecências, ocorrida no Iate Clube da cidade

do Rio de Janeiro. Chamada por alguns jornais da época como Semana dos Rosa, pois pai e

filha seriam prestigiados na mesma semana –, a posse do escritor era o assunto nos noticiários

– o prestígio do pai no lançamento da obra da filha foi sucinto, já que as emoções eram

controladas, pois premeditava para si algum possível mal ocasionado, talvez, por tão alegre e

orgulhoso momento. Anos depois, de acordo com o próprio noticiamento de Vilma sobre aquele

momento, JGR permaneceu sentado durante a sessão de autógrafos da filha, escondido atrás de

11 Chamam-se “Países amazônicos” os países abrangidos pela grande floresta: Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Bolívia e Brasil.

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um vaso de uma planta que ornamentava o salão e vindo a aparecer momentos depois, com

receio de que a visão da filha em reconhecê-lo fosse causadora de um ataque e, receoso de que

ela se culpasse, poupou-lhe desse possível acontecimento ficando à espreita.

Três dias depois da festa de lançamento, JGR finalmente estaria pronto para se eternizar

ao tomar posse da cadeira de nº 02 – como o terceiro ocupante – da Academia Brasileira de

Letras, na sucessão do amigo e um dia chefe João Neves da Fontoura. No dia 16 de novembro

de 1967, data escolhida pelo escritor por ser também o aniversário do amigo sucedia, JGR é

recebido pelo acadêmico Afonso Arinos de Melo Franco, o mesmo que um dia fora seu

concorrente, eleito na primeira candidatura.

Todavia, segundo Santos (2007, p. 347), Afonso Arinos, por ser conterrâneo das “terras

largas do sertão mineiro”, sentiu-se convidado – não por JGR – para receber tão ilustre escritor,

que promove em um monumental discurso, do qual cabe destacar uma passagem que resume e

justifica a merecida homenagem a JGR: Sem dúvida exprimis o social – isto é, o local – nos vossos livros e neste ponto fostes, como nos demais, um descobridor. Manifestastes um aspecto de Minas Gerais que o Brasil não conhecia: a vida heroica; o heroísmo como lei primeira da existência, na guerra e na paz, no ódio ou no amor.

O prestígio oferecido pelas palavras pronunciadas pelo acadêmico seriam maravilhadas

também ao ser somadas ao discurso do recém-empossado acadêmico. No discurso de posse,

JGR revela o tom evolutivo de seu estilo, em que beleza e neologismos se mesclam nas

evocações da terra natal. Com tom discursivo municipalista, questões psicológicas, filosóficas

e universalistas, revela sua visão de mundo como uma espécie de espelho da própria e humilde

alma “prosa poética”. Acerca da querida cidade de Cordisburgo, exaltando o ato de que um dia

o padre missionário João de Santo Antônio ajudou a formar, pronuncia: Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou “O Burgo do Coração”. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supro-ordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

As pronunciadas palavras se limitavam à cuidadosa emoção que JGR tentava controlar,

com medo de que algo lhe ocorresse durante a posse.

Momentâneos seriam os cuidadosos sentimentos que inevitavelmente lhe premeditavam

as derradeiras palavras. Três dias depois da posse na Academia, em 19 de novembro de 1967,

o terrível momento que tanto acossava o escritor o alcançou enquanto trabalhava no gabinete

do apartamento em Copacabana, na Avenida Francisco Otaviano, no Rio de Janeiro. Morre aos

59 anos de idade o contista, romancista, novelista, grande escritor, médico, soldado, diplomata

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e mineiro João Guimarães Rosa, que de herança deixou obras que há tempos revolucionavam e

renovavam o tratamento literário. Com suas técnicas, amplo mundo ficcional, crença mística e

experimentações linguísticas, o escritor impôs-se ao Brasil e ao mundo e, consequentemente,

fez com que o país se dividisse em dois: um antes e outro depois de João Guimarães Rosa.

Com a real sensibilidade que só escritores e poetas possuem, Carlos Drummond de

Andrade, três dias após o triste acontecimento, em publicação no Correio da manhã, retrata em

uma homenagem poética a sensação de perda que tão repentinamente assolou a nação brasileira: João era fabulista?

fabuloso?

fábula?

Sertão místico disparando

no exílio da linguagem incomum?

[...]

Ficamos sem saber o que era João

e se João existiu

de se pegar.

O Brasil se despedia de uma das referências máximas de sua literatura que finalmente

veio a eternizar-se pelo legado estilístico e inovador como escritor. A genialidade rosiana

ultrapassou a forma padronizada e preconceituosa de ver o sertanejo, e o regionalismo ganhou

novas interpretações.

A tendência regionalista vigorada no segundo momento modernista era configurada

principalmente com olhares voltados para a miséria e a seca sertaneja; e nos moradores que

partilhavam de tais realidades presentes nas regiões mais escassas cabia a função de ser

lembrados pelo sofrimento na busca da sobrevivência.

Essa representação regional focada superficialmente no povo apresentava uma realidade

desprendida dos costumes, do folclórico e do pitoresco. Logo, era predominante, até então, a

abordagem crítica da vivência social com ênfase dada às regiões focalizadas.

JGR não se desprende de tal tendência regionalista, entretanto, inova-a ao assumir uma

característica de experiência estética universalizada. O pitoresco e o documental representativo

dão lugar a uma forma diferente de repensar as dimensões da cultura. Radicalmente, o real e o

mágico se fundem aos diferentes processos mentais que aos poucos são proporcionados na

imensidão advinda na viagem de uma leitura de suas obras. O sertão não mais se limita a meros

espaços geográficos, apesar de fornecer a matéria-prima para as inovadoras construções, mas

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surge, sim, como forma de aprendizagem sobre a vida, a existência, o misticismo e o próprio

homem.

O referido regionalismo foi então lapidado por uma mente visionária, cuja fonte se refere

a dois elementos essenciais que compõem o tratamento do escritor: o estilo da escrita e as

observações em torno dos próprios sertanejos.

A capacidade extraordinária de expor conflitos entre valores vitais aos contextos

específicos permite notar os traços característicos do estilo da escritura rosiana. Por meio do

sertão mineiro, as questões humanas mais profundas e o sertanejo, com seus sentimentos,

vontades e questionamentos, independentemente a que posição ou situação venha a pertencer,

ganham atenção e engrandecimento então merecidos.

A população sertaneja até então era desvalorizada e deixada às margens de uma

sociedade favorável e em plena expansão. Assim, em torno dessa realidade inconsonante, o

escritor se utiliza da linguagem e a explora para fazer jus ao tratamento sertanejo.

Poder-se-ia supor então que, se já era necessária mudança na forma como a precariedade

social deveria ser vista, uma inovação no tratamento linguístico, no estilo de JGR, daria à voz

sertaneja a oportunidade de ser reconhecida e valorizada. A padronização de uma linguagem

requintada tão divulgada entre os escritores da época, vista até então como digna de ser

considerada “correta” e a que não correspondesse a seu universo tida como “banal”, não mais

seria a única.

Aparentemente, nas andanças do autor pelo sertão mineiro e de seu convívio com

pessoas de classes desfavorecidas conhecidas ao longo das viagens, fez com que a oralidade e

a espontaneidade comunicativa do sertanejo ganhassem novos ares. Em outras palavras, essa

particularidade linguística oralizada da população carente e os costumes regionais (passados de

geração em geração) proporcionaram inevitavelmente o desenvolvimento da própria identidade

cultural.

JGR torna possível aos leitores o reconhecimento de tal identidade por meio da

sondagem em torno da oralidade. Possivelmente, assim, entendem-se as marcas de oralidade

tão presentes em sua obra.

Outro recurso que corresponde a seu estilo ocorre graças ao tratamento para com o uso

da língua materna. A palavra é tida pelo autor como fosse um ser vivo, e por isso mutável

conforme a necessidade. Era consciente da formalidade com que as palavras deveriam ser

construídas, mas num aparente desprendimento da formação desses vocábulos, léxicos e

terminologias aos poucos sofrem modificações, talvez no intuito de representar o meio e as

vontades de um falar sertanejo. Marcada então pela oralidade cabocla, neologismos,

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agrupamentos regionais e científicos, arcaísmos e expressões estrangeiras, a obra rosiana ganha

vida com tons de musicalidade.

Para a professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São

Paulo (USP) Walnice Nogueira Galvão (apud GOMES, 2011, p. 57), JGR adapta a linguagem

a “cada tipo de evento narrado” de maneira inovadora evitando fórmulas prontas de escrever.

Segundo ela, em vez de dizer “lua de prata”, o escritor diz “luz com que se cunha moeda”; ou,

“a um palmo do nariz”, prefere “altinasal de mim a um palmo”.

Esses traços característicos na constituição do estilo de JGR dão pistas nas formas que

as histórias do escritor assumiam com o uso de algumas particularidades da oralidade como a

principal matéria-prima de suas obras. O escritor depara relações deveras dicotômicas entre a

linguagem coloquial – tão presente na modalidade oral – e a linguagem culta – correspondente

ao universo da escrita, transmitidas em um nível de linguagem com expressões originais.

O enfrentamento do escritor das realidades linguísticas tidas na época como tabu por

uma sociedade tradicional fez dele uma das referências máximas de estilo na literatura

brasileira. Com características de ousar no tratamento da língua materna, indiretamente, nas

obras, o autor propõe um convite para reavaliar a maneira como o manifesto oral era tratado e

ainda o é em nos dias atuais.

Ao perceber as inovações na língua com recursos que parafraseiam ou recriam certos

léxicos, também se observa a tamanha sensibilidade com que faz essas “transformações”, a tal

ponto de não descaracterizar a essência da palavra. A genialidade de captar as possibilidades

de observar a língua é que lhe permitiu ver na fala do sertanejo a riqueza linguística com que o

autor confrontaria elementos comuns da modalidade oral aos cânones dos registros escritos.

Portanto, nesse contexto, conhecer um pouco da vida e dos acontecimentos de JGR é

reconhecer também em suas obras um espelho que reflete os valores dados por ele à

espontaneidade e à simplicidade da oralidade do sertão mineiro, facilmente reconhecidos no

texto por meio de particularidades tão comuns da modalidade oral. Observar um pouco das

experiências vivenciadas como pessoa permite entender que sua sensibilidade e originalidade

se deram do contato vivo com a realidade da população carente, assim, suas obras ganham vida,

porque nelas, meio que indiretamente, não só está inserido o imaginário rosiano como também

a exaltação de um povo antes esquecido.

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2 A MODALIDADE ORAL NA LINGUAGEM

A língua, tão rica na composição e complexa na representação, há tempos é objeto de

investigação e estudos para diversos pesquisadores e linguistas. A concepção apropriada do

conceito é ponto de discussão em inúmeras áreas do conhecimento.

Nesse contexto, mesmo com a aparição das contribuições teóricas complementares aqui

apresentadas, como a teoria bakhtiniana e a concepção de língua(gem) apropriada como viés

colaborativo para este embasamento teórico, busca-se como escopo a reflexão sobre a

concepção de língua(gem) e algumas observações da modalidade oral à luz da perspectiva

sociointeracionista.

2.1 A LÍNGUA(GEM) COMO PRÁTICA SOCIAL

Na supracitada vertente, o filósofo Bakhtin (2011) delega que a língua deve ser

observada como fato social em que os usuários a utilizam para manifestar a concretização

comunicativa. Segundo o autor, todas as esferas da comunicação humana se utilizam da língua

para interagir. Por sua vez, ela não deve ser observada estaticamente, apenas como sistema de

regras e, sim, no processo evolutivo, que está sempre em movimento, viva, conforme as

sociedades surgem e se expandem.

Nesse caso, a língua está em plena evolução por meio da interação verbal, e é na

atividade social – mediante as escolhas e necessidades dos falantes – que se percebe a essência

da natureza da língua defendida pelo autor: a vertente dialógica. É na necessidade comunicativa

do outro – além de fatores como o contexto de produção – que a palavra, produto da interação,

pode retratar de diversas maneiras a realidade que lhe corresponde. Nessa concepção, o usuário

linguístico se utiliza da própria linguagem não só para expressar ou transmitir uma ideia ao

outro, como também se propõe a agir sobre o interlocutor, seja ele ouvinte, seja leitor. Por meio

da linguagem, a interação humana acontece com a apropriação linguística pelos interlocutores

para determinado efeito de sentido contextualizado social e historicamente.

Por sinal, não se pode negar que a comunicação humana, em extensa e diferenciada

(historicamente e socialmente) definição, corresponde a um conjunto de elementos de

composição que, combinados a outros fatores extralinguísticos, provocam a manutenção, a

preservação e a evolução dela mesma. Nesse contexto, para que uma língua não seja extinta,

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faz-se necessário que, tal como o homem é concebido, ela seja considerada um elemento

essencial para a transformação do mundo ao redor.

No Brasil, contemporâneo a Bakhtin, mas ao encontro de suas contribuições, o professor

Marcuschi (2010) delega que a língua deve ser observada como “fenômeno interativo e

dinâmico” vista em plena construção, cuja essência se submete a modificações situacionais,

históricas e socioculturais. Segundo este autor, a língua não deve ser somente analisada como

mero sistema de regras para fins apropriados, pois ela excede o próprio código, já que é na

forma como o homem se relaciona com o meio que possui maior valor comunicativo. Para

Marcuschi (2010), a língua(gem) compartilhada carrega em si elementos essenciais para a

ampliação do conhecimento humano.

A esse olhar colaborativo, soma-se a ideia de Travaglia (2001, p. 62) de que “a língua

não é algo rígido, mas algo que se modifica com o passar do tempo, em função das alterações

socioculturais de cada comunidade linguística e da consciência de forças que entram em jogo

nessa alteração”. Para este autor, por meio dela o mundo torna-se conhecido, quando um

elemento/objeto passa da não-existência ao surgimento de algo novo e, dessa descoberta, ela é

reproduzida e multiplicada no meio ao redor. Fato já constatado por Bakhtin (2011), em que os

diversos campos da atividade humana, de uma forma ou outra, estão interligados à

multiformidade no uso da linguagem. Tal linguagem está situada no contexto social

determinando-o ou sendo determinada por ele; os significados nele contidos são infinitos como

infinitos são as possibilidades conversacionais.

Ao perceber assim o diálogo existente entre os referidos autores, observa-se que a língua

está intrinsecamente relacionada à interação social dados os contextos discursivamente

compartilhados. Ela é dinâmica, heterogênea e sempre está em processo evolutivo. Nela a

sociedade se constrói e é construída, pois no discurso presente na interação, tradições,

representação de mundo e identidades sociais são construídas ou reconstruídas.

2.2 O PROCESSO DE ENUNCIAÇÃO E O GÊNERO PRIMÁRIO

Reconhecendo então que a língua se manifesta por meio do envolvimento social,

Bakhtin (2011) propõe algumas discussões de como ocorre essa interação ou os modos

utilizados pelos sujeitos que interagem. Para o autor, o enunciado nasce na inter-relação

discursiva, como um produto das partilhas vindas da interação social, e está vinculado a

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condições situacionais de determinada comunidade linguística. É o manifesto advindo de um

sujeito, uma voz, seja escrito, seja oral, a outro, inserindo-se na ideia do diálogo existente nesse

envolvimento discursivo.

Em outras palavras, segundo Bakhtin (2011, p. 264):

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem [...], mas, acima de tudo, por sua construção composicional.

Nessa afirmação, nota-se uma relação do autor acerca do uso da língua vinculada à

interação das atividades humanas em que, para isso, os enunciados exercem papel fundamental.

Entendem-se aqui por atividades as variadas representações que o homem desempenha em

certas esferas nas quais está inserido, sejam elas as da escola, igreja, suas relações de amizade,

sejam de trabalho; e para cada uma dessas esferas há necessidade diferenciada da linguagem.

Nesses referidos campos, a linguagem se manifesta em forma de enunciados

devidamente determinados pelas condições e finalidades específicas dessas esferas, e elas, por

sua vez, motivam o aparecimento dos enunciados para cada situação de utilização da língua,

tornando-os, segundo Bakhtin, “relativamente estáveis”.

Ao apropriar um discurso tendo em vista as várias situações (ou esferas, propriamente

ditas) comunicativas, as habilidades discursivas pelos sujeitos, requer-se atenção apropriada

aos eventos nos quais estão inseridos. Neste caso, os sujeitos apropriam-se, segundo o que o

autor define de diferentes gêneros discursivos, de tantos quanto forem necessários os cuidados

com o uso da língua. Entendem-se aqui por gêneros do discurso as diferentes formas de uso da

linguagem que podem ou não se flexionar tendo em vista as infinitas situações de interação

verbal. Entretanto, Bakhtin não busca teorizar o gênero enquanto produto, mas sim seu processo

de produção.

Ao encontro dessa ideia processual, Fiorin (2006, p. 61) acredita que a comunicação é

feita por meio dos gêneros, com a apropriação deles conforme a esfera de atividade vivenciada

por cada pessoa. Assim, para o autor, o gênero proporciona uma interconexão da linguagem

com o cotidiano social.

Fiorin (2006, p. 61-2) complementa que:

[...] a linguagem penetra na vida por meio dos enunciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados a vida se introduz na linguagem. Os gêneros estão sempre vinculados a um domínio da atividade humana, refletindo suas condições específicas

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e suas finalidades. Conteúdo temático (sentido do gênero), estilo e organização composicional constroem o todo que constitui o enunciado, que é marcado pela especificidade de uma esfera de ação (grifo nosso).

Entretanto, o autor ainda alerta que, em se tratando de gênero, este só terá sentido

quando observado na correlação entre forma e atividades. Nesse intuito, não se deve tratá-lo

isolado apenas nas particularidades e composições formais, mas sim na realização espaço-

temporal na interação dos ocupantes linguísticos.

O homem se apropria dos gêneros para apreender a realidade e conceitualizá-la,

permitindo que outros surjam, modificando ou substituindo os já existentes. Dir-se-ia, pois que,

antes de aprender a ler ou escrever, o indivíduo deve saber como se apropriar do gênero para

determinados fins. Para cada situação discursiva ou intencionalidade comunicativa do sujeito,

há necessidade do uso de gêneros apropriados ou que contemplem sua escolha conforme as

ocasiões. Em outras palavras, ter domínio de como se utilizar da língua implica o modo de usar

o gênero em determinado contexto de produção, do contrário, o usuário que não tem o devido

conhecimento de como aplicá-lo a determinadas esferas comunicativas se sentirá deslocado e

até mesmo excluído do convívio social.

Vale ressaltar que os gêneros não se manifestam apenas na modalidade oral ou somente

na escrita, mas são tipos de enunciado que abrangem a totalidade linguística. Com essa

perspectiva, Bakhtin não busca descrever o estilo recorrente de cada gênero, composição ou

conteúdo temático, pois reconhece que as ações discursivas do homem são infinitas, e

inesgotáveis seriam os gêneros que tentassem representar cada escolha dessas atividades

discursivas. No entanto, o autor propõe uma definição ao dividi-los em gêneros primários e

secundários.

De um lado, os gêneros primários referem-se aos episódios da vida cotidiana e se

manifestam, quase exclusivamente, no universo oral. Surgem na comunicação verbal

espontânea caracterizando-se dentro da situação mais direta e informal da comunicação

humana. São exemplos típicos o bilhete manuscrito, a conversa telefônica, o bate-papo, o chat,

entre outras atividades conversacionais do dia a dia dos interlocutores.

Por outro lado, os gêneros secundários estão relacionados a uma esfera da comunicação

cultural mais complexa e elaborada mediados geralmente pela escrita. Correspondem mais

frequentemente (mas não unicamente) ao uso na área jornalística, jurídica, científica e artística,

manifestando-se textualmente, por exemplo, em discursos parlamentares, artigos científicos,

ensaios filosóficos e autobiográficos, poesia lírica e sermão (FIORIN, 2006, p. 70).

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Segundo Bakhtin, é preciso atentar para as particularidades desses gêneros, pois delas

advém a natureza dos enunciados.

Contudo, vale ressaltar que essa “classificação” para o autor do gênero do discurso não

é tratada diferenciadamente entre si. Para ele, os gêneros secundários podem absorver os

primários, e, durante esse processo de transmutação, aos poucos esses gêneros podem perder

antigas particularidades. Em outras palavras, segundo o teórico:

Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples) que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem uma caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais (BAKHTIN, 2011, p. 263).

Nessa perspectiva, entende-se que um texto pode passar de um gênero a outro quando

deparado com uma esfera de atividade diferente. É comum os produtores se valer da escrita ou

do oral conforme as necessidades e intenções linguísticas. Assim, observa-se como ocorre a

escolha por alguns autores de nossa literatura quanto ao tratamento da língua.

Torna-se relevante ressaltar ainda que, como partes constitutivas da língua, a

modalidade oral e a escrita – conceituadas por Bakhtin como gêneros discursivos primários e

secundários – devem ser observadas conforme sejam os contextos das práticas comunicativas.

Para Elias (2011, p. 11), o uso de uma ou outra modalidade deve levar em conta as

situações de comunicação em que os sujeitos estão envolvidos assim como o comportamento

linguístico por eles utilizados, tornando-os consequentemente competentes comunicativamente

ou não.

Nessa linha de pensamento, as referentes modalidades são duas variedades quanto ao

uso linguístico, segundo Marcuschi (2010, p. 43), e portanto não são estanques. O autor adota

os termos oralidade e letramento e refere-se a eles como elementos essenciais e complementares

para a interação e a manutenção linguística e cultural das práticas sociais. As escolhas

linguísticas pelos usuários – com tratamento mais ponderado ou não da língua – têm por base

os mais diferentes contextos de produção e, consequentemente, de acordo com o referido autor,

“a suposição de que as diferenças entre fala e escrita podem ser frutiferamente vistas e

analisadas na perspectiva do uso e não do sistema” (grifo do autor).

Nesse sentido, conforme Marcuschi (2010, p. 43):

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O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos.

Logo, considerando as observações deste autor, o oral e o escrito podem aparentemente

se diferenciar na estrutura, mas se fundem quanto ao uso, e ambos permitem a construção, sim,

de textos coesos e coerentes propondo a expressividade e os sentimentos particulares.

Marcuschi ainda discute sobre a impressão que tem acerca da escrita, vendo-a como um

fenômeno homogêneo e com variações limitadas. Porém, ao referir a fala também como

fenômeno, a vê como aparentemente conturbada, multifacetada.

Marcuschi (2010) completa as observações ao discutir que a relação entre as duas

modalidades não pode ser observada entre dois polos opostos entre si e que a preocupação maior

nessa comparação está, na verdade, na correlação em vários planos. Segundo ele, são as

situações comunicativas que determinam de onde pode surgir um conjunto de variações ao

tratar a língua em vez de vê-las separadamente nas modalidades caracterizadas.

Segundo Fávero (2009a, p. 75), para que o evento comunicativo efetivamente ocorra

distintivamente em cada modalidade, devem-se observar alguns fatores que podem ir desde o

contexto de produção aos elementos de variações, sejam históricas, sociais, etárias, sejam de

gênero. A autora também advoga que, em se tratando da comparação de um texto a outro,

serviria para revelar alguns aspectos específicos a outro e “não propriamente diferenças entre

as modalidades (fala e escrita)”.

Segundo a autora, significa dizer que:

[...] essas diferenças se acentuam dentro de um continuum tipológico. Na verdade, tanto a fala como a escrita abarcam um continuum que vai do nível mais informal aos mais formal, passando por graus intermediários. Assim, a informalidade consiste em apenas uma das possibilidades de realização não só da fala, como também da escrita (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 2009b, p. 75).

Tanto um autor como outro asseveram então, a sua maneira, que a língua, observada em

suas modalidades, é norteada pelo uso vinculado a determinados contextos de produção e à

relação sócio-histórica dos usuários.

Convergente à autora, Marcuschi (2008) informa que essas modalidades podem sofrer

modificações quando determinadas pelas escolhas do uso que se fazem da língua, e nesse

aspecto se dirá que a forma (linguística), decorrente do uso entre a interação verbal dos

interlocutores, é ocasionada pelo contexto. A essa ideia sobre a tonalidade verbal escolhida,

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tendo em vista a situacionalidade comunicativa, o referido autor não deixa de admitir nem

ignora o fato de que a língua seja um sistema simbólico, sistemático e constituído de um

conjunto de símbolos ordenados (MARCUSCHI, 2008, p. 61). Todavia, para o autor, ela deve

ser tomada como uma atividade sócio-histórica, cognitiva e sociointerativa, contemplada em

contextos comunicativos historicamente situados.

A essa ideia, este autor não ignora a forma sistemática linguística nem deixa de atentar

a sua regularidade. Refere-se a ela como “um sistema de práticas cognitivas abertas, flexíveis,

criativas e indeterminadas quanto à informação ou estrutura” (MARCUSCHI, 2008, p. 61).

A teoria adotada e defendida pode ser caracterizada então, segundo o autor, como textual

discursiva na perspectiva sociointerativa, em que o tratamento para com o texto releva

elementos organizacionais internos como seu funcionamento do ponto de vista enunciativo.

Assim, a interatividade verbal não pode estar desvinculada das práticas sociais e históricas e

sensíveis à realidade à qual se situam ou em que atuam.

Conforme informa o autor: “[...] a língua é um sistema de práticas com o qual os

falantes/ouvintes (escritores/leitores) agem e expressam suas intenções com ações adequadas

aos objetivos em cada circunstância, mas não construindo tudo como se fosse uma pressão

externa pura e simples” (MARCUSCHI, 2008, p. 61).

Para o autor, tanto uma quanto outra modalidade da língua refletem a organização da

sociedade, já que mantêm envolvimento em torno das representações e das formações sociais.

Isso não equivale a dizer que constituam um reflexo da realidade, mas sim traços característicos

de identidade presente na funcionalidade, em geral, mais comum do universo da fala.

Duranti (1997 apud MARCUSCHI, 2010, p. 35) faz referência à língua como parte da

cultura humana a ponto de ser esta moldada às variações quanto ao uso. Isso equivale a dizer,

segundo tal perspectiva, que a cultura é um elemento importante na vida do homem, pois ela

dispõe de uma linguagem simbólica articulada superior que a eleva a quaisquer critérios de

classificação. Trata-se, então, de uma prática social que permite estabelecer crenças e costumes

de uma sociedade e em que os recursos da linguagem se tornam relevantes para a manutenção

das tradições culturais de dada comunidade. Isso permite refletir que é na linguagem – e por

que não da linguagem – que o conhecimento e a identidade são construídos na interação entre

as pessoas.

Portanto, como produto constitutivo do tratamento da língua, os gêneros primários

(chamados por alguns autores como oral) e os gêneros secundários (pertencentes ao universo

da escrita), conforme os excertos apresentados, manifestam-se nas mais variadas situações, e

infinitas são as criações dadas as quantidades de ocasiões comunicativas. Poder-se-ia assim

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dizer que, por meio dos gêneros discursivos, a atividade verbal irá concretizar-se e,

consequentemente, propor-se a manutenção e a compreensão ao tratamento da modalidade oral

e escrita, transformando-as em uma ferramenta essencial, mediadora para a interação entre os

interlocutores. Logo, não se pode falar em interação verbal caso não se faça uso dos gêneros,

pois sem a criação deles ou o domínio deles nos enunciados a comunicação estaria

comprometida ou nem sequer existiria.

2.3 AS PECULIARIDADES DA MODALIDADE ORAL

Das observações de Bakhtin sobre gêneros primários, em que a interação verbal se

efetiva primeiramente por meio do oral, faz-se necessário uma ressalva, pois, ao referir

particularidades da modalidade oral (tratada por Marcuschi e outros autores como oralidade),

torna-se inevitável não observá-la sem o universo escrito. Para isso, informes distintos se fazem

necessários.

Nessa perspectiva, tendo em vista os acertos teóricos antes apresentados, considera-se

relevante entender a relação do tratamento da língua (falada ou escrita) segundo Marcuschi

(2008), que sugere a aparente distinção entre (1) oralidade e letramento e (2) fala e escrita, em

que uma (1) está interligada com as práticas sociais, enquanto a outra (2) às modalidades de uso

da língua.

Para Marcuschi (2008, p. 25), oralidade é “[...] uma prática social interativa para fins

comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais fundados na realidade

sonora; ela vai desde uma realização mais informal à mais formal nos mais variados contextos

de uso”.

A essa teoria se somam as ideias de Ong (1982 apud MARCUSCHI, 2008; e URBANO,

2011), quando se refere à oralidade como um grande meio de expressão comunicativa e

responsável pela racionalidade, sendo de extrema necessidade para a identidade social, regional

ou grupal. Como padre jesuíta, Ong teve o privilégio de reconhecer as particularidades

constitutivas da língua falada no percurso como religioso e não só se utilizou da oratória para

evangelizar como também viu nos outros as diferentes maneiras com que as identidades sociais

se construíam.

Padre Ong estabelece uma distinção ao se referir aos estudos da língua falada e escrita

em dois níveis de prática da oralidade: a oralidade primária e a secundária. A primeira refere-

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se às pessoas que convivem em sociedade sem conhecimentos da escrita, ou não familiarizadas

com ela, ou intocadas pelo letramento, realidade comum ainda a certos povos indígenas ou

isolados – neste caso, costumes artísticos, epopeias, danças, exibições ou crenças são

preservados e retransmitidos oralmente às gerações futuras das sociedades tribais ou

interioranas.

Para o padre, as palavras, que são sons, não possuem suporte visual, logo, estão

vinculadas diretamente a eventos, acontecimentos e ocorrências do meio. Por ser efêmero, o

som, segundo Ong, tem íntima relação com o tempo, diferentemente de outras sensações

humanas. Nesse caso, a palavra se torna mais um modo de ação do que de referenciar o

pensamento, tática comum às comunidades orais. Por sua vez, além da prática comunicativa, (a

palavra se torna responsável em manter viva a memória social; e tal manutenção ocorre, então,

por meio do uso oral da língua.

Ainda nessa primeira perspectiva acerca da oralidade, observam-se algumas

características peculiares comuns ao universo sonoro e relevantes para o presente trabalho.

Como exemplo, cita-se a espontaneidade discursiva, de certa forma descompromissada

ou com tom emocional predominante conforme o grau de intimidade dos usuários linguistas.

Do ponto de vista dialogal, a redundância do “já dito” também é aspecto constitutivo desse

universo, pois infere a ideia da situação interacional face a face e de suas relações participativas

e empáticas de comunicação. O falante adiciona informações e promove alterações à fala de

acordo com as reações apresentadas pelos ouvintes.

Nesse caso, percebe-se que a oralidade primária se faz dependente não só desses

elementos, mas daqueles ligados ao universo físico da pessoa, e dele se faz também dependente.

Em outras palavras, os gestos, a imitação e a repetição se tornam complementares ao oral para

que as intencionalidades dos usuários tenham a efetiva exposição do pensamento e a devida

resposta compreendida pelos interlocutores.

Já a oralidade secundária é aquela que, segundo o padre Ong, de certa forma depende

da escrita para existir e funcionar. Refere-se a pessoas com grau de alfabetização baixo ou

realmente semialfabetizadas, mas que possuem, mesmo que diminuído, um considerável

contato com as práticas do universo escrito. Convivem em sociedades relativamente letradas,

pois têm a oportunidade de estar vinculadas a simples particularidades do cotidiano, como, por

exemplo, ler uma placa e tomar um ônibus, assistir a TV ou trabalhar como empregados em

casa de patrão com formação e linguagem culta. Isso não impede que analfabetos possam

participar de atividades comuns diárias, como as citadas, mas são vistas como parcialmente

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letradas, cujo conhecimento, nessa perspectiva, ocorre naturalmente, longe da sala de aula, não

aprofundada ou limitada aos padrões ideais convencionais de letramento.

Segundo Marcuschi (2010, p. 25), letrado é o indivíduo “que participa de forma

significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz um uso formal da escrita”.

O letramento, segundo o autor, é como uma espécie de condição em que determinado grupo se

apropria da escrita e o faz com competência e desenvoltura. É tido, segundo Marcuschi (2010,

p. 16), como prática social “formalmente ligada ao uso da escrita”.

Para Urbano (2011, p. 33), ainda há uma terceira classificação denominada oralidade

letrada, a qual se refere à competência com que o usuário tem em tratar o oral e o escrito

adaptando-os ao tratamento culto ou ao popular conforme a necessidade comunicativa ou os

devidos contextos de produção.

Diga-se de passagem sobre essa adaptação da fala às necessidades comunicativas que

ela requer um domínio linguístico do sujeito para com seu uso, já que se devem observar os

fatores externos que podem influenciar na escolha mais ponderada ou descuidada da língua. A

respeito, Preti (2005, p. 22) advoga que muitos são os casos de pessoas que se apropriam do

“bom uso” do que denomina de variação de linguagem para certos fins argumentativos.

Para o autor: [...] problemas de variação de linguagem provocados por variação de situações interacionais já tinham demonstrado que falantes cultos podem utilizar uma variedade de registros que vai do formal ao coloquial, em função de suas necessidades de comunicação. E, mais: é a possibilidade dessa variação de registros que nos permite identificar o falante culto real e não seu conhecimento maior ou menor das regras da gramática tradicional, conhecimento de que se utilizaria muito mais na língua escrita (PRETI, 2005, p. 22).

Apesar de não se discutir a questão da variação, ressalta-se que ao falar sobre adaptação

da língua às situações comunicativas, segundo Preti (2005), o descuido das escolhas linguísticas

pode afetar a forma de como o outro avalia o sujeito quanto à competência comunicativa. Os

estereótipos criados ao elevar uma modalidade em detrimento da outra é objeto de investigação

por muitos pesquisadores.

A citação sobre variação é relevante ao referir Tonho Tigreiro, protagonista do conto

Meu tio o Iauaretê, quando inevitavelmente o leitor se deixa levar pelas armadilhas de JGR em

que o descuido cria o estereótipo de um caboclo dotado de pouca inteligência.

Outra recorrência que corresponde a uma das marcas características do universo da

modalidade oral é a repetição de palavras, que se torna constante na fala dos sujeitos como

estratégia discursiva no sentido de reforçar uma afirmação, captar a atenção do ouvinte ou

ganhar tempo para preparar a formulação de dada proposição.

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A respeito, Marcuschi (1996 apud FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 2009b, p. 61)

delega que: A repetição é uma das atividades de formulação mais presentes na oralidade, podendo assumir um variado conjunto de funções. Dentre elas, podemos destacar a sua contribuição para a organização do discurso e a manutenção da coerência textual, bem como a organização tópica e a geração de sequências mais compreensíveis.

Cabe citar uma observação teórica mais recente mas não diferente na continuidade do

assunto sobre repetição de palavras. Trata-se de Piaget (1983), que firma que expressões

repetidas ocorrem mais comumente no homem na fase infantil, precisamente na infância, que

se estende do nascimento aos 2 primeiros anos de vida, fase denominada por ele de período

sensório-motor, cuja repetição balbuciada de uma ou outra palavra recebe, segundo o autor, o

nome de ecolalia.

Para Fávero, Andrade e Aquino (2009b, p. 61), as repetições “enquanto atividade de

formulação textual conduzem à produção de segmentos inteiros duas ou mais vezes, motivados

por fatores de ordem interacional, cognitiva, textual”.

Nos textos escritos, a repetição, segundo Marcuschi (2008), é uma tentativa de

aproximar da oralidade por meio de particularidades linguísticas comuns da fala.

Para Preti (2006, p. 128), a repetição pode desencadear uma espontaneidade que

promove certo ritmo que os interlocutores “imprimem à sua participação conversacional”, o

que, no caso, faz com que o texto se aproxime mais da realidade de uma interatividade entre

dois falantes. Segundo o autor: A repetição também contribui para o envolvimento entre os interlocutores numa conversação, que se desenvolve num processo de colaboração entre os interlocutores (um discurso a dois). A ratificação das ideias e até mesmo a discordância são índices de que os falantes estão envolvidos no desenrolar do tema conversacional (PRETI, 2006, p. 128).

Outro fator característico da modalidade oral é a predominância de frases curtas,

inacabadas, divididas frequentemente para auxiliar na memorização das informações

compartilhadas na interação dos falantes. Na escrita, percebe-se que esse recurso é pouco

utilizado, já que a tendência das frases é ser mais elaboradas e revisadas. Alguns autores – tal

como em JGR – se utilizam dessas divisões de frases como estratégia discursiva para dar –

dentre outras opções possíveis – a sensação ou a concepção de aproximação ao universo do

oral.

A respeito da divisão das frases, principalmente por pequenas pausas, Preti (2006, p.

133) diz que:

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A divisão nos mostra comportamentos comuns em fala espontânea: frases curtas, períodos simples, justapostos, um “mas” introduzindo uma adversativa, só identificável pelo contexto, uma estrutura double bind, em que um elemento central pode ligar-se à direita ou à esquerda da frase; frases mínimas interrompidas, abandonadas e retomadas posteriormente pela repetição.

Característica comum da expressividade oral são os sufixos ora representados pelo grau

aumentativo, ora pelos diminutivos. Segundo Preti (2006), o grau diminutivo pode indicar tanto

valor de apreciação, elogio, ternura ou humildade, quanto pode conotar ironia, desdém ou

irritação. Trata-se de uma particularidade mais comum (mas não única) da modalidade oral, por

estar vinculada à espontaneidade, já que na escrita se pode ter com mais frequência por meta a

objetividade. Acrescido à palavra, o sufixo tem um tom neológico, por agregar possíveis novos

significados.

Corresponde ao tratamento mais frequente do uso coloquial da língua tanto sejam os

sujeitos que usam dessa forma (sufixos) de expressão linguística. Pode-se especular, por

exemplo, que tanto o aumentativo quanto o diminutivo são recursos mais comuns do universo

juvenil, no sentido de afetividade ou ternura, pois nos adultos o uso desses elementos tende

mais frequentemente – salvo exceções – a representar desdém ou ironia.

Quanto aos níveis de tratamento da língua, por muito tempo houve diferença dicotômica

entre oral e escrito, em que a fala era considerada o lugar da recorrência coloquial e a escrita o

do culto.

Segundo Koch (1992, p. 68), a relação entre fala e escrita é mais acentuada por

diferenciações do tipo que se observa no Quadro 1, a seguir.

Quadro 1 – Diferenciações entre fala e escrita

Fala Escrita Não-planejada Planejada Menor densidade lexical Maior densidade lexical Pouco elaborada Elaborada Predominância de frases curtas, simples ou coordenadas Completa

Fonte: KOCH (1992)

Quanto a questão da modalidade oral (ou oralidade – termo usado, como vimos, por

alguns autores), portanto, vários fatores devem ser observados em sua execução. Se de um lado

o oral está vinculado às situações comunicativas, do outro os sujeitos se utilizam de elementos

que enriquecem a qualidade comunicativa ao escolher essa modalidade linguística. É o caso,

por exemplo, do uso de gestos corporais ou de tonalidades vocais de que se vale o interlocutor

ao expressar ideias ou argumentar com o outro. Fatos que pouco ou quase não seriam possíveis

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na modalidade escrita. Obviamente, há características da escrita que também não seriam

possíveis na fala. Nesse intuito, o que se torna notável é que as características peculiares da

modalidade oral aqui propriamente discutidas estão intrinsecamente interligadas à interação e

aos sujeitos e à escolha linguística apropriada para que a interação ocorra efetivamente. A

manutenção do conhecimento humano veiculado pelo uso da língua permite que a sociedade se

desenvolva ao longo do tempo.

2.4 NEOLOGISMO E ONOMATOPEIA

Em outros momentos, discutiu-se sobre a língua – conforme as contribuições de Bakhtin

(dentre outros teóricos aqui apresentados) – e de que ela está em constante evolução, por isso

passível de mutação. Enquanto as sociedades evoluem, a língua aos poucos sofre modificações

conforme as influências externas às interações verbais vão surgindo. O conhecimento humano

se desenvolve, identidades culturais se expandem e novas palavras vão sendo incorporadas à

língua, tão grande seja o compartilhamento de novos léxicos pelos sujeitos que os utilizam. A

língua se transforma e se renova ao longo dos tempos e nos mais diferentes contextos,

independente da modalidade utilizada. Porém, é inegável que a oralidade preceda a escrita, e

nessa perspectiva os surgimentos lexicais são mais frequentemente observados por meio dos

neologismos. Obviamente, não cabe afirmar que os neologismos correspondem unicamente a

um recurso linguístico comum da oralidade, mas, sim, que seu aparecimento é mais comum.

Assim como comum é outro recurso linguístico, a onomatopeia, utilizada na modalidade escrita

como espécie de artifício que busca aparentemente representar os sons da natureza ou de

ocorrências sonoras ao redor.

Observar as ocorrências desses recursos em uma ou outra modalidade é compreender as

particularidades que acentuam (mas não diferem) o oral e o escrito nas mais diversas práticas

comunicativas.

JGR compreende isso e percebe que a língua deve ser tratada desde a particularidade –

de como se manifesta para cada falante – à generalização, em que muitos personagens

compartilham dado conhecimento mediado pelo idioma regional.

Para o escritor, as palavras possuem sentidos conforme o contexto de produção; e pela

voz das personagens literárias tais sentidos podem tanto ampliar-se como até mesmo

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diferenciar-se daqueles presentes nos dicionários, tal como ocorre com os neologismos, recurso

tão utilizado pelo autor.

Subentende-se como neologismo, segundo Heckler et al (1984), um fenômeno

linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, ou na atribuição de um

novo sentido a uma palavra já existente. Pode ser fruto de um comportamento espontâneo,

próprio do ser humano e da linguagem, ou artificial, para fins pejorativos (palavrões, gírias,

ironias etc.), ou para fins comunicativos simplesmente. É uma nova palavra criada na língua, e

geralmente surge quando o indivíduo quer expressar-se mas não encontra a forma ideal. Como

o falante nativo tem total domínio dos processos de formação de palavras, pois tem a língua

internalizada, para ele é fácil criar uma nova palavra sem nem mesmo se dar conta de que está

utilizando um dos intrincados processos próprios da língua, como a justaposição, a prefixação,

a aglutinação, a verbalização, a sufixação, a abreviação, a importação de vocábulos existentes

em outra língua ou, ainda, por novo sentido dado a uma palavra já existente.

Existem várias formas de classificar os neologismos de acordo com diferentes

estudiosos da área: neologismo semântico, a palavra já existe, mas ganha nova conotação, novo

significado (“bicho” = amigo); neologismo lexical, é criada uma palavra com novo conceito

(“internetês” = língua da internet); neologismo sintático, resultado da organização de um novo

vocábulo a partir de combinatória de elementos já existentes na língua, como a derivação ou a

composição (“papamóvel” = meio de transporte usado pelo papa); neologismo popular, criado

pelos próprios falantes, seja nas conversas espontâneas do dia a dia, com o uso frequente de

gírias, seja na internet, nas comunicações eletrônicas; neologismo científico ou técnico,

responsável pela atribuição de nomes a novos aparelhos e máquinas inventados e pela

introdução de novos termos técnicos na linguagem; neologismo literário, criação de novas

palavras por escritores, compositores de música e poetas; neologismo estrangeiro ou

estrangeirismo, palavras de outro idioma incorporadas à língua (HECKLER et al, 1984).

O neologismo está presente, também, na representação de sons por meio de ruídos,

gritos, canto de animais, sons da natureza, barulho de máquinas etc., e neste caso recebe o nome

específico de onomatopeia, que é uma figura de linguagem que reproduz um som por meio de

fonema ou de palavra. A onomatopeia é muito comum na linguagem infantil e no uso

espontâneo da fala cotidiana.

A construção onomatopaica tem grande importância estilística e poética, pois nela se

concentra a melodia, a harmonia e o ritmo da frase. Por isso, a literatura é tão sensível a esse

recurso de linguagem. No uso da onomatopeia como artifício estilístico, o efeito baseia-se não

tanto nas palavras individuais como na combinação de valores sonoros que podem ser

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reforçados pela aliteração e ritmo. A onomatopeia é, pois, um dos recursos expressivos mais

comuns usados na literatura para produzir um efeito especial: reforçar a capacidade

comunicativa de um texto, produzindo mensagens vivas e autônomas. Do ponto de vista

semântico, há que distinguir a onomatopeia primária, que consiste na imitação do som pelo

som, e a onomatopeia secundária, que evoca não uma experiência acústica, mas um movimento

(ULLMANN, 1964)

Lopes (1961, p. 20) destaca que a onomatopeia é uma “palavra motivada que se mantém

em relação com a realidade que exprime – ou por imitação de um som, ou por sugestão de um

movimento, ou ainda por simultaneidade dos dois”.

Nesses acertos, pode-se então verificar que onomatopeia e neologismo são recursos

linguísticos em que este se manifesta mais comumente na modalidade oral e tende a incorporar

novos léxicos à língua, “aceitos” pela interação de dados sujeitos de uma comunidade

linguística; e aquela uma forma de tentar representar – mais comumente na escrita – a realidade

de dada situação discursiva. Obviamente, tanto uma como outro são relevantes para o

desenvolvimento da língua. Trata-se, pois, de mecanismos mantenedores que se manifestam

mais em outra modalidade de uso comunicativo, logo, são complementares para que a

efetividade discursiva ocorra naturalmente.

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3 MEU TIO O IAUARETÊ: INOVAÇÕES LINGUAGEIRAS

Conforme averiguado anteriormente, a língua se concretiza nos modos como se a utiliza,

seja na forma oral, seja escrita. Ela evolui, modifica-se e transforma-se tanto quanto novos

conhecimentos lhe vão sendo incorporados. A modalidade oral tem papel importante nesse

processo de manutenção da língua, pois algumas particularidades se fazem presentes na prática

discursiva.

Para a continuidade e a ampliação da discussão sobre uma das modalidades de uso da

língua, precisamente a oral, busca-se amparo em um conto de JGR intitulado Meu tio o Iauaretê.

A justificativa e a relevância para a escolha do citado texto encontram-se na forma de como o

autor busca tratar a língua ao incorporar nela remodelagens lexicais advindas da simplicidade

de um falar sertanejo. Por meio dos causos narrados pelo protagonista Tonho Tigreiro, o

neologismo e a onomatopeia, recursos linguísticos, se fazem especialmente presentes.

No decorrer da apresentação do referido conto, uma retomada a alguns acontecimentos

históricos de como o tupi se incorporou à língua pátria se fez necessária a fim de que os

neologismos utilizados pelo autor e os sentidos por detrás de alguns personagens fossem

contextualizados à narrativa. Consequentemente, uma comparação da teoria sobre a modalidade

oral aos poucos é feita na recorrência de alguns trechos do texto. A genialidade criativa de JGR

facilmente é perceptível ao fazer referência a diversas culturas por meio do falar simples do

sertão tão presentes nas frases do protagonista do conto. O referido texto reflete aparentemente

a ousada e a maior ruptura do escritor com a língua padrão e com o tradicional tratamento

narrativo linear.

Publicado inicialmente no nº 25 da revista Senhor, em março de 1961, e mais tarde

republicado em 1969 no volume póstumo Estas estórias, pela Livraria José Olympio Editora,

com organização do próprio autor, o referido conto se inicia com a fala do narrador-personagem

Antonho de Eiesús, vulgo “Tonho”.

Não necessariamente se tratará o texto como um monólogo, pois se nota, conforme a

narrativa se estende, a presença de um interlocutor, cujas falas são percebidas e inseridas pelas

próprias respostas do narrador, estruturando-se de tal maneira que dá a impressão de que a ação

ocorre na frente do leitor: “Assopro o fogo. Nhem? Se essa é minha, nhem? Minha é a rêde”

(ROSA, J.G. 1969, p. 126).

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O referido protagonista é um onceiro, mestiço de índia com branco, que fora contratado

pelo fazendeiro Nhôs Nhuão Guedes para eliminar as onças que assolavam a região matando

os animais da fazenda e amedrontando a população do sertão mineiro:

Eu cacei onça, demais. Sou muito caçador de onça. Vim pra aqui pra caçar onça, só pra mor de caçar onça. Nhô Nhuão Guede me trouce pra cá. Me pagava. Eu ganhava o couro, ganhava dinheiro por onça que eu matava. [...] Por isso Nhô Nhuão Guede me mandou ficar aqui, mor de desonçar este mundo todo (ROSA, J.G., 1969, p. 128-9).

Certa noite, bate-lhe à porta um visitante que se havia perdido dos demais companheiros

e, ao avistar ao longe a luz vinda da fogueira projetada de dentro da tapera do mameluco, pediu-

lhe para ali passar a noite, no intuito de no dia seguinte seguir viagem: “Mecê enxergou este

foguinho meu, de longe? É. A’ pois. Mecê entra, cê pode ficar aqui. [...] Hã, pode trazer tudo

para dentro. Erê! Mecê desarreia cavalo, eu ajudo. [...] Mecê cipriuara, homem que veio pra

mim, visita minha; iá-nhã? Bom. Bonito” (ROSA, J.G., 1969, p. 126-7).

O bugre tenta entreter o viajante contando-lhe vários causos de quando ainda era caçador

enquanto degusta de uma cachaça trazida pelo visitante. Apesar do aparente abuso do anfitrião

em querer se servir dos mantimentos do interlocutor ou de querer se empossar de seus pertences,

há registros do texto em que momentaneamente Tonho oferece comida ao visitante:

Eh, mais nhor sim. Eu gosto. Cachaça de primeira. Mecê tem fumo também? É, fumo pra mascar, pra pitar. Mecê tem mais, tem muito? Há-hã. [...] Mecê quer de-comer? Tem carne, tem mandioca. Eh, oh, paçoca. Muita pimenta. Sal, tenho não. Tem mais não. Que cheira bom, bonito é carne (ROSA, J.G., 1969, p. 127).

O protagonista diz morar sozinho no lar que um dia já foi do preto Tiodoro, mas se

revela também um nômade a perambular pelas matas da região e a reconhecer a presença dos

animais da floresta, em especial, as onças, pois a região de sua residência era conhecida como

Jaguaretama, do tupi, “terras de onça”: “Hã-hã. Isto não é casa... É. Havéra. Acho. Sou

fazendeiro não, sou morador... Eh, também sou morador não. Eu – toda parte. Tou aqui, quando

eu quero eu mudo” (ROSA, J.G., 1969, p. 126).

Além de reconhecer os odores e os barulhos emitidos pelos diversos bichos tão logo,

segundo o personagem, lhe são presentes: “Nhã-hem, é barulho de onça não. Barulho de anta,

ensinando filhote a nadar. Muita anta, por aqui” (ROSA, J.G., 1969, p. 144). Frequentes são as

provas desse reconhecimento: “Hum, hum. Êsse é barulho de onça não. Urucuéra piou, e um

bichinho correu, destabocado. [...] Pode ser veado, caititu, capivara. Como é? Aqui tem é tudo

[...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 150).

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Tonho Tigreiro (chamado assim pelo contratante Nhôs Nhuão Guedes) também tem

pleno conhecimento sobre plantas medicinais, ensinamento adquirido da mãe, que era índia:

“Bebo chá do mato. Raiz de planta. Sei achar, minha mãe me ensinou, eu mesmo conheço.

Nunca tou doente” (ROSA, J.G., 1969, p. 127).

Conforme a conversa se prolongava e notoriamente com certa dificuldade para se

expressar – tendo em vista a quantidade de cachaça que estava ingerindo –, aos poucos, Tonho

vai confessando certos segredos, que deixam o forasteiro perplexo e atento.

Depois de informar que não mais caçava, o onceiro dizia que inicialmente se sustentava

com o dinheiro que ganhava da venda do couro das onças que juntara na residência, mas depois

de se isolar no meio do mato tornara-se “amigo” das onças, tratando-as pelo nome tal como

fossem pessoas, a ponto de não mais lhes fazer mal: “[...] Antes, de primeiro, eu gostava de

gente. Agora eu gosto é só de onça. Eu aprecêio o bafo delas... Maria-Maria – onça bonita,

cangussú, boa-bonita. Ela é nova. Cê olha, olha – ela acaba de comer, tosse, mexe com os

bigodes, eh, bigode duro, branco, bigode pra baixo [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 134).

Esse relato permite inferir a ideia de que aos poucos a história vai ganhando um ar de

estranhamento conforme a “conversa” dos dois personagens se desenvolve. Prova disso é

quando o locutor confessa friamente ao viajante que havia matado várias pessoas entregando-

as às onças, cada qual a sua maneira.

Entretanto, torna-se perceptível aos ouvidos atentos do interlocutor as sinistras

informações que surgiam meio que impostas por Tigreiro, permitindo ao viajante criar a

suposição do prenúncio de um iminente perigo que não tardaria. Essa “premunição” ocorre por

não somente o fato de o interlocutor se identificar com as onças, como também pelo fato de ele

dizer que elas são suas parentes: “Tinham dúvida em mim não, farejam que eu sou parente

delas... Eh, onça é meu tio, o jaguaretê todas. Fugiam de mim não, então eu matava...” (ROSA,

J.G., 1969, p. 137).

Conforme a noite avançava, a conversa continuava e as afirmações de parecer muito

com os felinos também. O ex-caçador insistentemente relatava com muita precisão ao ouvinte

as características dos referidos “parentes”, quando saíam para caçar à noite outros animais,

espreitando-os sorrateiramente em cima das árvores ou atrás da vegetação: “[...] onça tava de

tocaia: onça vinha, sacaquera, toda noite eu sabia que ela tava rodeando” (ROSA, J.G., 1969,

p. 151).

Com ênfase, não só falava em detalhes dos ataques das onças, valorizando-os com certa

frequência no decorrer da narrativa, como também o fazia nas formas de como elas abatiam

outros bichos:

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Quando pinima vai saltar pra comer mecê, o rabo dela encurvêia com a ponta pra riba, despois concerta firme. [...] Poder de onça é que não tem pressa: aquilo deita no chão, aproveita o fundo bom de qualquer buraco, aproveita o capim, percura o escondido de detrás de toda árvore [...] Dá um bote, às vez dá dois [...] Aí, vai pular: olha demais de forte, olha pra fazer medo, tem pena de ninguém... [...] arruma as pernas, toma o açôite, e pula pulão! – é bonito... (ROSA, J.G., 1969, p. 132-3).

Tonho dizia ser tão destemido e intimidador tal como eram seus semelhantes: “Aí, eu

aprendi. Eu sei fazer igual onça” (ROSA, J.G., 1969, p. 133).

Aparentemente, nota-se que esse detalhamento das ações das citadas caças que se

espalham por quase todo o conto ocorre com o intuito de amedrontar o forasteiro, para intimidá-

lo tal como faziam os urros das onças que circulavam a moradia ou assemelhando-se aos de

suas estórias: “Eh, urrou e mecê não ouviu, não. Urrou cochichado... Mecê tem medo? Tem

medo não? Mecê tem medo não, é mesmo, tou vendo. Hum-hum. [...] Quando onça urra,

homem estremece todo...” (ROSA, J.G., 1969, p. 150).

Tonho também aproveitava – entre um relato intimidador e outro – para revelar os fins

trágicos que levaram as pessoas que moravam na região, acentuando a ideia de que preferia a

solidão a outros moradores nas redondezas de sua morada: “Eh, aqui ninguém não pode morar,

gente que não é eu” (ROSA, J.G., 1969, p. 131). Obviamente, esse episódio não é diferente das

aparentes intenções anteriores: causar temor ao ouvinte.

Não se deixando inibir com os dizeres do narrador, o transeunte oferecia-lhe bebida na

intenção de incentivá-lo a “prosear” cada vez mais, a fim de que mais detalhes de sua estada na

região lhe fossem revelados: “Careço de beber, pra ficar alegre. Careço, pra poder prosear. Se

eu não beber muito, então não falo [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 130). À medida que ia ficando

embriagado, mais segredos iam sendo revelados.

Dentre tantos episódios que causam certa perspectiva, o que chama mais a atenção e

talvez uma das partes que encaminhe a narrativa para um já aguardado desfecho – já que a

leitura do texto permite construir um clímax por meio das pistas que vão sendo deixadas na

qualidade enfatizada dos relatos – é o fato de o narrador-personagem permitir o entendimento

de que está ligeiramente apaixonado por uma fêmea felina, a qual era tratada por ele de “Maria-

Maria”: “Eh, eh, eu fiquei sabendo... Onça que era onça – que ela gostava de mim, fiquei

sabendo... Abri os olhos, encarei. Falei baixinho: – ‘Ei, Maria-Maria... Carece de caçar juízo,

Maria-Maria...’ Eh, ela rosneou e gostou, tornou a se esfregar em mim, mião-miã” (ROSA,

J.G., 1969, p. 131).

Adentrava a madrugada, e o hóspede insistia em querer arrancar mais informações do

hospedeiro para saber de todos os causos dele emitidos. Nesse aspecto, é como se o autor desse

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ao leitor a possibilidade de viajar em suposições durante a leitura. Seriam pequenas migalhas

deixadas em um caminho de hipnotismo causado pela leitura, cujo final resultaria no ápice de

uma trama que se costurava conforme a narrativa prosseguia. Prova disso são certas indagações

que brotam ao mesmo tempo em que a imaginação é desafiada. Questionamentos como: seria

o viajante um homem enviado pelo antigo patrão do onceiro para vigiá-lo e estudá-lo já que

outros morreram tentando? ou seria o viajante algum parente das vítimas que buscava maiores

esclarecimentos ou algum tipo de vingança? Esses questionamentos se encasulam em torno da

trama e desabrocham com o clímax em consequência das exaltações da “conversa”. Clímax

esse que não tarda a acontecer, pois, conforme a conversa de Tonho se estendia,

intencionalmente ele ultrapassa o limite existente da fala, no instante em que quer tocar o

visitante: “Ói: deixa eu ver mecê direito, deix’eu pegar um tiquinho em mecê, tiquinho só,

encostar minha mão...” (ROSA, J.G., 1969, p. 158).

Esse gesto só reforça os discursos ameaçadores anteriores expondo o propósito maligno

que a conversa assumia. Logo, o visitante não demora em responder à afronta quando as

suposições se tornam verdade. A arma que mantivera engatilhada debaixo da mesa desde o

momento que notara mudança no estilo da conversa do anfitrião é acionada quando à frente

Tonho revela o lado animal e se transforma em onça. O viajante reage à metamorfose dando-

lhe tiros com a arma antes de se tornar mais uma vítima do Iauaretê:

[...] Ói: cê quer me matar, ui? Tira, tira revólver pra lá! Mecê tá doente, mecê tá variando... Veio me prender? Ói: tou pondo mão no chão é por nada, não é à-toa... [...] Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu Macuncôzo... [...] Hé... Aar-rrâ... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaaã... Uhm... Ui [...] (ROSA, J.G., 1969, p. 158-9).

Pode-se perceber que Meu tio o Iauaretê apresenta a clara evidência da costumeira

transformação e renovação da língua, notável desde a escolha de JGR pelo título do conto. O

termo iauaretê é uma variação do tupi-guarani (iaguar’eté) que significa “onça verdadeira”. O

sufixo etê (em tupi eté) é verdadeiro; e iaguara, onça.

Entretanto, acerca dessa renovação linguística, segundo Campos (1970), não há apenas

no presente conto a prevalência única do recurso da função estilística, como também a

fabulativa. Segundo o autor, JGR consegue agrupar dois aspectos diferentes no trecho acima

citado que corresponde ao término do conto. Campos (1970) delega que o autor se vale da

estilística ao usar léxicos que representam o sentimento do protagonista de quase espanto ao ser

atingido pelo tiro, já que se sentia confiante de que iria devorar o interlocutor. Também,

segundo Campos (1970), JGR apropriou-se do termo Macuncôzo (um dialeto regional) deferido

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pelo protagonista no sentido de referir-se ao interlocutor como “irmão”, “fraterno” ou de

“semelhante a seus costumes”, mas se nota como última mentira do protagonista, já que, ferido,

tentava livrar-se da morte buscando identificar-se com o próximo, um humano.

Ainda em Campos (1970), a colocação de que JGR consegue mesclar recursos

estilísticos a fabulativos trata-se, pois, da sobreposição (no último trecho supracitado acima)

dos léxicos seguidos das reticências. Entre o uso de um léxico (Macuncôzo) como dialeto,

seguido de interjeições (que representam, nesse trecho, o sentimento de espanto e dor, recursos

comum da estilística), as reticências foram colocadas no intuito de dar continuidade à estória,

que no caso do conto se refere à metamorfose do protagonista em onça. É por meio desses

entroncamentos no trecho acima do dialeto citado e das interjeições (ambos vistos como recurso

do autor) que se percebem os rastros que aparecem para preparar e anunciar o momento da

metamorfose. Também é nessa metamorfose, para Campos (1970, p. 74), que a própria fábula

dá a fabulação ou, segundo ele, “à estória o seu ser mesmo”.

A narrativa rompe os conceitos lineares tradicionais de contar uma estória, pois o

enfoque está em torno da linguagem do protagonista, e é nela que a trama se constrói. É a

palavra que pode ser colocada em primeiro plano e não a estória, pois ela configura a

personagem e seus atos, devolvendo-os à estória. Como já citado, insere-se a ideia da existência

de um possível interlocutor nas próprias respostas emitidas pelo onceiro de supostas perguntas

feitas ao protagonista. Nas colocações e construções da linguagem presentes no texto,

possibilita-se recriar quase totalmente a cena ou a própria figura felina.

As constantes pausas presentes nas interjeições e as sobreposições de frases intercaladas

fazem lembrar o respirar ofegante de um animal, nesse caso, a onça. Os frequentes elementos

onomatopaicos, o grunhir do felino e a insistência do narrador-personagem em amedrontar o

ouvinte, enfastiando-o com inúmeras conversas e querer fazê-lo dormir, assemelham-se ao

gesto de uma onça de querer cansar a presa antes de atacá-la.

Campos (1970), no ensaio A linguagem do iauaretê, compara JGR ao poeta Irlandês

James Joyce ao afirmar que o brasileiro rompe radicalmente com o modo de ver a palavra e

procura revolucioná-la libertando-a do léxico tradicional culto. Ao aproximar o autor do conto

ao poeta, Campos (1970) enfatiza a ideia de que uma realidade diferente pode ser criada e uma

paisagem recriada. Vários são os efeitos possíveis que um texto pode causar, o que, segundo o

crítico literário, JGR fazia com maestria ao criar um “palco móvel da realidade” por meio da

experimentação da própria linguagem:

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[...] Guimarães Rosa retoma de Joyce aquilo que há de mais joyciano: sua (como disse Sartre) “contestação da linguagem comum”, sua revolução da palavra, e consegue fazer dela um problema novo, autônomo, alimentado em latências e possibilidades peculiares a nossa língua, das quais tira todo um riquíssimo manancial de efeitos (grifo nosso) (CAMPOS, 1970, p. 72).

O molde linguístico utilizado por JGR no conto para reapresentar ao público leitor uma

nova visão da realidade do sertanejo foi a língua tupi. A esse assunto (o tupi), torna-se relevante

um breve comentário, pois não é somente nessa língua que o autor lapidou o texto, como

também supostamente se pode ter baseado em uma lenda que provavelmente deve ter ouvido

ou nos diversos causos anotados em viagens – ora a serviço como diplomata, ora como

pesquisador nos confins de Minas Gerais e Goiás – ou ao ter conhecimento da existência de tal

lenda, para inspirar-se a criar Meu tio o Iauaretê.

Torna-se relevante retomar rapidamente certos episódios da história acerca dos

caminhos percorridos pelo tupi e a influência exercida pela chegada do português, para que se

possam entender algumas representações históricas presentes no conto que JGR sucintamente

utilizou em quase tom de protesto.

A respeito da citada língua, Segundo Sá (2009), o tupi foi um forte vetor literário desde

os tempos coloniais ao período romântico, isso sem falar de que exerceu indiscutível influência,

também, sobre o Modernismo dos anos de 1920 e em algumas produções literárias após os anos

1960.

Segundo a autora, as quarenta línguas do tronco tupi se espalharam desde o norte da

Amazônia até o Rio da Prata, e da costa atlântica aos Andes. As grandes distâncias percorridas

pelos índios tornavam-nos nômades à procura religiosa do Ivymarãey (“a terra sem males”).

A citada migração deu origem a duas rotas, uma para o leste e outra para o sul do

continente, conhecidas como o “garfo de Brochado”. A do leste, levou-os ao litoral, e a outra,

tanto para o interior do continente como também para o litoral. Os grupos nativos do litoral

(principalmente os tupinambás) foram os primeiros a “enfrentar” a invasão dos portugueses no

início do século XVI. Muitas perdas foram contabilizadas por causa da violência dos

colonizadores. Porém, o comportamento destes para com os índios era descrito de forma

positiva, sem deixar transparecer, logicamente, a vontade de querer eliminá-los. Prova disso,

segundo Sá (2009), seria o próprio “descobridor da América”, o navegante genovês Cristóvão

Colombo. Isso porque, acreditando ter chegado ao mundo novo, relata no diário entusiásticos

comentários sobre a “generosidade” e a boa-fé indígena, mas o faz assegurando ao rei que,

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tendo em vista a inocência dos selvagens, seria fácil escravizá-los, pois “com cincuenta

hombres los tendrán todos sojuzgados, y los harán hacer todo lo que quisieren”12.

Por muito tempo, para facilitar a comunicação entre colonizadores e colonizados, uma

mescla entre o dialeto tupi com certa influência do português era amplamente usado desde os

primeiros anos da colonização até quase o fim do século XIX, apesar da proibição imposta por

um édito em 1757 pelo então governador do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça

Furtado, irmão do marquês de Pombal.

Esse dialeto, conhecido como Nheengatu ou língua geral (também chamado tupi

moderno), parecia caracterizar os distintos grupos tupis (tupinambás, tupiniquim, tapirapé,

tabajara, timbira, entre outros), apesar de haver algumas rivalidades (motivadas pelo domínio

de terras ou plantações). Muito além das semelhanças existentes entre os termos linguísticos,

curiosamente tais grupos partilhavam coincidentemente temáticas parecidas que envolviam a

cosmologia e a religião.

Muitas foram as literaturas de interesse do folklore indígena desde a segunda metade do

século XIX até as primeiras décadas do século XX, porém, para Lúcia Sá (2009), a produção

literária que mais se aproxima da vivência e da realidade indígena foi do autor alemão Curt

Unkel (1914) intitulada As lendas da criação e destruição do mundo. Apelidado de

Nimuendaju, depois de ter sido acolhido pelos apapocuvas-guaranis do interior de São Paulo,

Curt Unkel estudou com afinco os costumes e a cultura desse povo. Sua obra reproduz as

narrativas da criação da terra e do dilúvio na perspectiva que lhe fora relatada pelo xamã

Joguyrovyjú, por Guyrapaijú e por Tupãjú.

Segundo Sá (2009), a coletânea de Nimuendaju foi a obra mais importante – senão a

primeira – a revelar, na época, a complexa escatologia dos guaranis, a qual se caracterizava pela

divisão do espírito humano entre a alma-palavra celestial e a alma-bicho terrena. Além da

crença apresentada, a obra do etnólogo alemão traz evidências substanciais sobre o tema das

migrações guaranis em busca da “terra sem males”. Alguns autores mais recentes até enfatizam

a busca dos guaranis pelo Ñandereko, o estilo de vida guarani, visto pelos indígenas como uma

filosofia e necessidade mais importante para a sobrevivência. Obviamente, sem lugar para

plantar milho, abóbora, feijão, plantas medicinais, sem florestas para caçar ou de rios para

pescar, não teriam como manter o Ñandereko. Logo, ao se sentir ameaçados ou de carecer por

12 Grosso modo, traduzido como “com cinquenta homens tentaram nos subjugar, logo, farão tudo o que nós quisermos”. Trecho citado por Sé (2009, p. 161) referindo-se à obra: Colombo, Cristóvão. Diário de navegación y otros escritos. Santo Domingo: Fundación Corripio, 1988, p. 94.

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necessidades advindas da manutenção do estilo de vida, os guaranis se juntam a outros grupos

ou continuam a vasculhar em longas caminhadas lugares que atendam a suas expectativas.

Assim, pode-se então perceber que no conto Meu tio o Iauaretê JGR consegue

aproximar a referida obra da temática tupi em vasculhar por “terras sem males” cujo

protagonista, ocasionalmente se sentindo meio indígena, busca valorizar os costumes deixados

pela mãe índia.

Não é somente nesse episódio, ainda há outros que ligam o conto à cultura tupi-guarani,

além da citada linguagem e de alguns costumes estilizados. Trata-se da crença indígena,

principalmente difundida nas planícies da América do Sul, de que homens se transformam em

onças e vagueiam pelas matas e florestas, conforme observa Alfred Métraux (1979 apud SÁ,

2009, p. 161): É uma crença comum na região amazônica que feiticeiros vagueiam pela noite transformados em onça a fim de atacar seus inimigos. Não fica claro, no entanto, se é o próprio feiticeiro que se transforma em onça, ou se ele manda a sua alma para incitar onças de verdade a atacar suas vítimas. A crença em homens-onça era particularmente forte entre os antigos abipões. No Paraguai essa superstição é compartilhada igualmente por índios e mestiços.

A presente observação instiga a especulação de que JGR, sendo coletor de estórias como

era, poderia ter-se baseado nessa lenda amazônica, pois, já que também foi diplomata, as

viagens eram comuns e consequentemente os contatos com outras culturas. Porém, talvez a

mais convincente possibilidade que ativou sua “fabulável” inspiração para a produção de tão

criativo conto possa ter vindo da coletânea de Nimuendaju, justamente por apresentar claras

semelhanças com a narrativa de Meu tio o Iauaretê:

Os kaingyns são jaguares; não só na opinião dos guaranis, mas eles próprios se denominam assim e se vangloriam de seu parentesco (literalmente entendido) com aquele animal predador. Quando pintam sua pele amarela com manchas ou listas negras para a luta, entendem que também na aparência se assemelham bastante ao jaguar, e o alarido que fazem no ataque soa quase como o grunhido surdo da onça quando está sobre a presa. Tudo isso não é absolutamente simbólico; levam tão a sério seu parentesco com o jaguar que, naquelas pessoas que eles mesmos denominam de mi-ve, “aquele que vê jaguares”, estas ideias degeneram em uma forma peculiar de perturbação mental (MÉTRAUX, 1979 apud SÁ, 2009, p. 162).

Logo, podem-se perceber claramente algumas elaborações que se aproximam à temática

do conto rosiano quando se referem aos costumes indígenas.

Um exemplo típico se pode retirar de um trecho do conto em que Tonho Tigreiro se

apaixona pela onça Maria-Maria, pois, segundo Sá (2009, p. 163), “é uma variação do nome de

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sua mãe: Mar’Iara-Maria (que combina, por sua vez, o nome cristão Maria e o indígena Iara

[ou Uiara], a Mãe das Águas tupi)”.

No conto, o protagonista não só deixa transparecer a ideia de se apaixonar por uma onça,

como também o de se metamorfosear em um felino de mesma espécie. Ao fazê-lo, pode-se

entender que o onceiro passa a identificar-se com a cultura indígena da mãe índia, ou, conforme

observado por Nimuendaju, sente-se próximo aos costumes ancestrais totêmicos dos kaingangs

ou de outros grupos que compartilham das mesmas tradições: “Mas eu sou onça. Jaguaretê tio

meu, irmão de minha mãe, tutira... Meus parentes! Meus parentes!” (ROSA, J.G., 1969, p. 145).

Quando a mãe morre, o protagonista perde os laços com a cultura ancestral. A mãe era

uma índia tacunapéua, apesar de que no conto o personagem viveu por algum tempo entre os

caraós. Isso faz lembrar mais uma vez dos costumes guaranis anteriormente citados, de que, ao

se sentir ameaçados, ou se juntam a outros grupos ou partem sozinhos em viagens à procura de

novas terras: “[...] Quando vim pra aqui, vim ficar sozinho. Sozinho é ruim, a gente fica muito

judiado [...] Atié! Saudade de minha mãe, que morreu, çacyara. Arãa... Eu nhum – sozinho...

Não tinha emparamento nenhum...” (ROSA, J.G., 1969, 133).

Vale ressaltar que o personagem era mestiço de um branco com uma índia; e, por esse

motivo, há indícios no conto que levam a crer na sua não aceitação pelos não índios: “[...]

Àquele Pedro Pampolino disse que eu não prestava. Tiaguim falou que eu era mole, mole,

membeca. [...] Ninguém não queria me ver, gostavam de mim não, todo o mundo me xingando”

(ROSA, J.G., 1969, p. 149).

Para Darcy Ribeiro (1996 apud SÁ, 2009, p. 163), os caraós (variação de carió ou de

carijó, oriundo do termo tupi karai-yo, “descendentes dos anciões”) foram os primeiros índios

receptivos à catequese cristã e, por ter medo dos colonos de São Vicente, foram escravizados e

em maioria virtualmente extintos nos meados do século XVIII.

Por ser índios mais adiantados de outros grupos nas questões que envolvem feitiçaria,

na manutenção de remédios, em artesanatos ou em construções de casas, ficaram conhecidos

pelos portugueses por ser “homens de boa-fé” e pelos semelhantes indígenas (tendo em vista o

parentesco com os guaranis) de “traidores”, isso por se ter vendido aos brancos e, assim, trair

outros índios, ao ajudar os colonizadores a investir nas terras desconhecidas: Nhenhém? Eu cá? Mecê é que tá preguntando. Mas eu sei porque é que tá preguntando. Hum. Ã-hã, por causa que eu tenho cabelo assim, olho miudinho... É. Pai meu, não. Êle era branco, homem índio não. Á pois, minha mãe era, ela muito boa. Caraó, não. Péua, minha mãe, gentio Tacunapéua, muito longe daqui. Caraó, não: caraó muito medroso, quage todos tinham medo de onça. Mãe minha chamava Mar’Iara Maria, bugra. Despois foi que morei com Caraó, morei com eles (ROSA, J.G., 1969, p. 143-4).

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A apresentada traição das tradições indígenas ocasionada pelos caraós não difere

totalmente do protagonista do conto rosiano ao negar a identidade indígena em consequência

da morte da mãe. Com base na coletânea de Nimuendaju, ao ficar isolado na mata enviado por

Nhô Nhuão Guedes à região onde vivia, o personagem de Meu tio o Iauaretê se torna mi-ve.

Porém, o estado de mi-ve no referido conto também é visto como uma tentativa de redenção, já

que o onceiro havia matado vários felinos e, ao oferecer as vítimas humanas aos citados

animais, pôde libertar-se da culpa que carregava em trair sua espécie, tal como os caraós. Ao

fazer isso, ou seja, a oferenda das pessoas, Tonho vinga a morte dos próprios ancestrais

indígenas, não diferente das vítimas indígenas que os colonizadores europeus fizeram ao atracar

nas terras brasileiras. Portanto, as vítimas humanas simbolizam a identidade indígena que o

personagem tenta recuperar.

Totalizam-se sete as vítimas mortas ou que foram entregues às onças por Tonho. Nesse

sentido, o número sete também lembra os sete pecados capitais tão recitados pelos cristãos, e

ao referir a temática do conto, a ideia de cristianismo se revela presente na imposição

catequética dos padres jesuítas que, de certa forma, sufocaram as crendices dos índios pós-

colonização, pois, caso não aceitassem um único ser supremo, em vez das figuras totêmicas

defendidas pelos ancestrais e passados de geração em geração, na visão católica poderiam

“perder a alma”. Essa afirmação de imposição se vê presente na fala de Tonho: “Nhem? Missa,

não, de jeito nenhum! Ir pra o céu eu quero. Padre, não, missionário, não, gosto disso não, não

quero conversa [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 143).

Curiosamente, a vítima primeira a ser oferecida aos familiares felinos é um cavalo, visto

como um ícone da colonização europeia ao chegar ao continente sul-americano: “[...] No outro

dia, cavalo branco meu, que eu trouxe, me deram, cavalo tava estraçalhado meio comido, morto,

eu ’manheci todo breado de sangue seco...” (ROSA, J.G., 1969, p. 150).

A vítima seguinte é Seo Rauremiro e família, que representavam a soberba ao desprezar

a raça indígena, elevando-se a uma condição de seres mais “sofisticados” ou “civilizados”: Veredeiro seo Rauremiro, bom homem, mas chamava a gente por assovio, feito cachorro. Sou cachorro, sou? Seo Rauremiro falava: – “Entra em quarto da gente não, fica pra lá, tu é bugre...” Seo Rauremiro conversava com preto Tiodoro, proseava. Me dava comida, mas não conversava comigo não (ROSA, J.G., 1969, p. 154).

Em seguida, outra vítima foi Seo Rioporo, pois que também o depreciava,

menosprezando a figura materna de Tonho, logo, ao fazer isso, ofendia sua ancestralidade

indígena. Rioporo representava, conforme os pecados capitais, a ira.

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Já o preto Bijibo até que o tratava bem, mas um de seus defeitos, no total de dois –

segundo o conto –, era ter medo de tudo (o que faz recordar o temor vivenciado pelos caraós

durante o período da colonização). Entretanto, o segundo defeito de Bijibo, que talvez seja de

maior intensidade presenciado pelo protagonista do conto, era comer demais sem repartir.

Traça-se uma ponte então com a cultura tupi-guarani, pois comer demasiadamente sem dividir

é ofensa para a maioria da cultura indígena. Ao defender não somente a tradição herdada da

mãe, o onceiro também via em Bijibo uma ameaça para outra tradição, representada nos grupos

felinos, pois, pelo fato de comer muito, não sobraria nada para ser repartido com as onças: Bijibo era bom, com aquêle medo dôido, êle não me largava em hora nenhuma... A gente caminhamos três dias. Prêto conversava, conversava. Eu gostava dele. [...] Prêto comia. Atié! Atié, que êle comia, comia, só queria era comer, até nunca vi assim, não... Prêto Bijibo cozinhava. Me dava do de-comer dele, eu comia de encher barriga. Mas prêto Bijibo não esbarrava de comer, não. Comia, falava em comida, eu então ficava vendo êle comer [...] (ROSA, J.G., 1969, p. 151).

Outra vítima de Tonho foi o preto Tiodoro, personagem enviado à região do onceiro

pelo próprio ex-patrão, Nhô Nhuão Guede, com a intenção de tomar a casa de Tonho e expulsá-

lo daquela localidade. Essa visão faz recordar as invasões dos colonizadores nas terras que um

dia foram o lar dos antigos povos indígenas: “Nhô Nhuão Guede justou, pra ficar no despois,

pra matar as onças todas [...] Falou que o rancho era dele, que Nhô Nhuão Guede tinha falado,

tinha dado rancho pra prêto Tiodoro, pra toda a vida” (ROSA, J.G., 1969, p. 153).

Já Guguê, mesmo sendo boa pessoa para o protagonista, era preguiçoso, pois não

caçava, não pescava nem se dedicava a nenhuma atividade para a própria sobrevivência. Esse

gesto também não é bem visto pela cultura tupi, já que para a própria razão da existência

humana o trabalho é primordial: “Aquêle jababora Gugué, homem bom, mas mesmo bom,

nunca me xingou, não. Eu queria passear, ele gostava de caminhar não: só ficava deitado, em

rêde, no capim, dia inteiro, dia inteiro” (ROSA, J.G., 1969, 155).

Personagem de destaque é Antunias, já que pode ser observado na característica pior de

todas as falhas humanas: a avareza. Na maioria das ramificações indígenas existentes no

período do descobrimento e ainda persistentes em algumas tribos, como informado, a partilha

é quase que uma obrigação na cultura desses povos. Costume que já existia antes das invasões

estrangeiras e ainda resiste aos modernismos e às grandes expansões das cidades e populações.

Uma única personagem poupada pelos assassinatos foi Maria Quirineia, apesar de

cometer o último dos sete pecados capitais: a luxúria. Ela tenta seduzir o protagonista, mesmo

sendo casada, fato esse que se pode comparar, ainda que de maneira invertida, à sedução e

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porque não ao abuso dos brancos navegadores para com as índias ao longo dos séculos pós-

colonização.

Ao entregar ou “oferecer” as vítimas aos variados grupos felinos (onça porreteira, onça

tatacica, onça papa-gente entre outras), o narrador-personagem do conto tem a oportunidade de

recuperar a terra roubada dos ancestrais indígenas assim como a própria dignidade outrora

perdida: “Eh, este mundo de gerais é terra minha, eh, isto aqui – tudo meu. Minha mãe haverá

de gostar... Quero todo o mundo com medo de mim” (ROSA, J.G., 1969, p. 134).

Percebe-se que o protagonista é assassinado pelo visitante e interlocutor quando este

percebera que, pela última vez, Tonho deixara a humanidade de lado ao se transformar em onça

e querer fazer do ouvinte outra vítima. Neste caso, uma das últimas palavras ditas antes de

morrer no auge da metamorfose foi o próprio nome dado anos antes ao protagonista:

Macuncôzo.

Segundo Sá (2009, p. 166), tempos antes de ele chegar à região à qual fora mandado

para matar as onças que assolavam quem ou o que passasse pelas redondezas, Tonho Tigreiro

teve outros nomes. Um deles é Bacuriquirepa, o nome indígena; Beró – variação de peró, nome

dado pelos indígenas (precisamente, os tupinambás) para se referir aos portugueses e que,

segundo a autora, demonstra a condição de mestiço do protagonista.

Ao longo dos acertos no conto de JGR, é possível perceber, portanto, que o texto faz

referências regulares à cultura tupi por meio de criações linguísticas provenientes da

criatividade rosiana. Dos neologismos às onomatopeias, o autor ousou mesclar recursos

linguísticos no intuito de representar diferentes costumes e tradições brasileiras. A simplicidade

sertaneja se exalta nas construções lexicais do texto enquanto diferentes vozes culturais se

faziam presentes por detrás dessas criações. Observar atentamente o conto em plenitude é

contemplar a genialidade rosiana quando o autor propõe refletir, por meio da fala aparentemente

descuidada do protagonista, as diferentes e duras experiências que determinada população

vivencia diariamente.

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4 MEU TIO O IAUARETÊ: PECULIARIDADES LINGUÍSTICAS

Oralidade, onomatopeia e neologismos compõem o substrato da matéria-prima utilizada

por JGR para enredar o leitor na conversa franca, afiada e capciosa de vocalização estranha do

homem-iauretê Tonho Tigreiro. Diante da dificuldade natural de lidar com as fronteiras entre

linguagem, língua e fala, o leitor crítico observa instigado o esforço de transformação em texto

da oralidade recorrente na fala do protagonista do conto Meu tio o Iauaretê na recriação

linguística rosiana – a imagem da metamorfose do zagaieiro-bugre em onça, via isomorfismo,

com a transfiguração no momento em que a linguagem se desarranja e os resíduos sonoros

ressoam como rugidos nos estertores iminentes da morte planejada e anunciada no dialeto

rosiano.

Repetições, sufixos aumentativos e diminutivos, frases curtas desorganizadas e

sobrepostas; neologismos criados a partir da língua tupi, do idioma português e das raízes

africanas; além de onomatopeias aproximando o homem do animal, mesclados e

magnificamente orquestrados no texto inovador e revolucionário de apelo social em defesa das

classes atavicamente desfavorecidas daquele Brasil estereotipado em meados do século XX,

serão discutidos a seguir.

4.1 ORALIDADE

Uma das considerações mais marcantes no conto Meu tio o Iauaretê é a recorrência da

oralidade, que se manifesta não na tentativa de representar mecanismos da fala por meio de

personagens criados – recurso esse da ideia de oral tão comum em vários momentos da literatura

brasileira –, mas, sim, na fala do protagonista Tonho Tigreiro, dando a sensação viva do

acontecimento à frente do leitor.

Vários foram os recursos aparentemente utilizados pelo autor para que se aproximasse

o mais fiel possível da oralidade – fala-se em tentativa, já que, conforme Preti (2006, p. 126), a

“escrita não pode ser, em momento algum, a representação absoluta e fiel da fala”.

Todavia, ainda referindo às contribuições do citado autor, mesmo que seja complexa a

originalidade da oralidade para a modalidade escrita – tendo em vista os gestos corporais, as

trocas de olhares dos interlocutores ou determinadas situações ou emoções cultivadas no

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momento da conversação –, ainda é possível ter a noção, ou outrora dito, a sensação do oral na

escrita, tendo em vista alguns mecanismos usados como recursos linguísticos de autoria.

Segundo ele: [...] é possível fazer chegar ao leitor a ilusão de uma realidade oral, desde que tal atitude decorra de hábil processo de elaboração, privilégio do texto literário. O escritor emprega, na escrita, “marcas de oralidade” (grifo do autor), que permitem ao leitor reconhecer no texto uma realidade linguística que se habituou a ouvir ou que, pelo menos, já ouviu alguma vez e que incorporou a seus esquemas de conhecimento (Tannen & Wallat, 1993), frutos de sua experiência como falante (PRETI, 2006, p. 126).

A presente colaboração teórica vai ao encontro do que se acredita ser a base para a

genialidade da “recriação” linguística rosiana, pois, supostamente, JGR traz uma bagagem

experimentada em longas viagens pelo sertão mineiro e anotadas em surradas cadernetas de

bolso, e no conto Meu tio o Iauaretê ficam claras e quase vivas as marcas do oral.

JGR possivelmente pode ter tido a experiência de registrar inúmeros dialetos regionais

nas várias viagens e adaptá-las à fala do protagonista Tonho Tigreiro, a fim de que a diversidade

cultural brasileira se manifestasse no sobrinho do iauaretê.

Prova de uma das marcas de oralidade (dentre outras) contidas no conto são as

constantes repetições de palavras ou expressões do protagonista ao longo do texto, ora para

acentuar a fala, ora para expressar algum tipo de emoção: “[...] Maria-Maria roncou, suaçurana

foi saindo-saindo” (ROSA, J.G., 1969, p. 138); “[...] Também, eu nesse tempo eu já tava triste,

triste [...]”, “[...] Se algum macho vier, eu mato, mato, mato [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 139);

“[...] Mas a Pé-de-Panela tinha comido, comido, comido, bebeu sangue da mula, bebeu água

[...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 146).

O fato de o protagonista repetir de diversas maneiras certas palavras, segundo Piaget

(1983), lembra uma criança que na fase de aprendizagem conversacional, logo, na inocência

infantil, remete à ideia da simplicidade do homem sertanejo que tem carência pela

aprendizagem ou pelo desenvolvimento adequado quanto à fala ou escrita. Obviamente, essa

falta lhe ocorre devido ao fato de viver isoladamente ou por não ver na aquisição de quase um

alfabetismo a importância para a plena necessidade e efetividade comunicativa.

Outrora, como um dos recursos estratégicos de JGR para enriquecer o citado conto,

nessa identidade simplória sertaneja antes referida também se enquadra o protagonista que se

isola em sua cabana e, por não ter contato com outras pessoas, aos poucos perde a habilidade

de falar – em outras palavras, a identidade humana –, a ponto de quase mesclar a própria

linguagem com a linguagem de um bicho – tal como observado na metamorfose.

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Outro recurso de oralidade no conto é o uso de sufixos, tanto em grau aumentativo

quanto diminutivo. Este último, segundo Preti (2006), pode ter valor afetivo ou depreciativo,

dependente da relação existente entre os falantes ou da situação em que for utilizado. Na

sentença “Capim mexeu redondo, balançadinho, devagarim, mansim [...]” (ROSA, J.G., 1969,

p. 129), o diminutivo revela o aparente grau de humildade que se manifesta na simplicidade

sertaneja observável como coloquialismo. Porém, essa face de ingenuidade do protagonista tão

logo se percebe que ora se revela também ser astuta, sagaz, que constrói a fala, ora pelo uso do

diminutivo como aparência de afetividade – na tentativa de conquistar a confiança do

interlocutor –, ora por ocasiões em que o sufixo “inho” tem o sentido de ironizar, de desdenhar:

“Mas então agora pode me dar canivete e dinheiro, dinheirinho [...]” ROSA, J.G., 1969, p. 129).

Quanto à estrutura sintática do conto, encontram-se outros vestígios do manifesto da

oralidade. As frases curtas são recorrência comum no texto tão utilizadas pelo protagonista

Tonho Tigreiro; e, a respeito, segundo Preti (2006, p. 132), mesmo que sejam acentuadas ou

não com ponto de exclamação, tais frases são outra particularidade comum na conversa face a

face, pois lembram a não organização mental na construção da frase, em que novas informações

são construídas e postas sobre as anteriores mediante a situação conversacional: “Eh, mais, nhor

sim. Eu gosto. Cachaça de primeira” (ROSA, J.G., 1969, p. 127).

Outra consideração acerca da oralidade presente no conto, tendo em vista a estrutura

sintática apresentada, é a organização interna em que as frases mínimas compostas por pausas

demonstram dada característica da conversação face a face, pois se tem a ideia, segundo Preti

(2006), de um interlocutor que interrompe o protagonista, tendo em vista o reconhecimento da

mensagem transmitida. A ocorrência dessas interrupções pode ser verificada, dentre muitas

outros, no trecho: “Sair de onça, no escurinho da madrugada... Tava urrando calado dentro de

em mim... Eu tava com as unhas... Tinha soroca sem dono [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 149).

Percebe-se que a pausa, neste caso, apresenta não apenas a omissão de uma informação,

completada pelo auxílio de gestos ou outros recursos na presença dos interlocutores, como

também indica espontaneidade conversacional, tal como informado anteriormente.

Portanto, ao observar as diferentes recorrências em Meu tio o Iauaretê sobre algumas

particularidades da modalidade oral, pode-se, pois, perceber que JGR trouxe nas falas do

protagonista a representatividade do falar sertanejo. Na espontaneidade tão marcada pelo tom

coloquial e simples de se expressar de Tonho Tigreiro, o autor proporcionou uma reflexão de

que outras formas simples de se expressar se tornam presentes por detrás da fala do

protagonista. Assim, percebe-se que a língua está em constante evolução; e pela modalidade

oral – sem desmerecer a escrita – é que a efetiva manutenção da língua ganha grandes

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proporções de crescimento. A cultura e as tradições regionais são repassadas às futuras gerações

veiculadas – segundo constatadas no conto – por meio da oralidade.

4.2 NEOLOGISMOS

Os neologismos – conforme discutido anteriormente – são mecanismos recorrentes da

oralidade que permitem a manutenção da língua em constante processo evolutivo. Mas, no

imaginário criativo de JGR, diversas culturas, historicidade e regionalismo se transfiguram

espelhadas pelas “novas” palavras do vocabulário do autor mineiro.

No conto Meu tio o Iauaretê, a riqueza de significados oriundos principalmente da

língua tupi e do português – isso sem falar das explorações da cultura e dialetos regionais do

Brasil e uma ou outra expressão com raízes africanas – é fabulosa.

Vale ressaltar que JGR como que brinca com as palavras, transformando-as tal qual uma

combinação de roupas das quais se apropria para determinados fins. Assim o fez com o tupi,

com o qual muito se familiarizara, bem como com tantas outras línguas do extenso e mágico

vocabulário.

Para ter ideia de tal magia construtivista do renomado autor, empresta-se do conto como

exemplo inicial a palavra Macuncôzo: “[...] Eu Macuncôzo... Faz isso não, faz não... [...]”

(ROSA, J.G., 1969, p. 159). Buscando deter o interlocutor para que não lhe desse um tiro –

apesar do relato de ter matado vários negros (Tiodoro e Bijibo) –, o protagonista tenta

identificar-se com a raça africana na tentativa de compadecer o atirador.

Segundo Campos (1970, p. 75), o próprio JGR lhe escreveu uma carta explicando o

termo Macuncôzo, que a priori faz referência ao lugar (Sítio Macuncôzo), mas, em

continuidade explicativa dada nessa carta, o escritor mineiro informa: O Macuncôzo é uma nota africana, respingada ali no fim. Uma contranota como tentativa de identificação (conscientemente, por ingênua, primitiva astúcia? Inconscientemente, por culminação de um sentimento de remorso?) com os pretos assassinados; fingindo não ser índio (onça) ou lutando para não ser onça (índio), numa contradição, perpassante apenas, na dersordem, dele final, o sobrinho-do-iauaretê emite aquele apelo negro, nigrífico, pseudonigrificante, solto, só, perdido na correnteza de estertor de suas últimas exclamações (ROSA apud CAMPOS, 1970, p. 75).

A suposta ideia de significação do termo anterior parece confirmar-se nas palavras

seguintes ditas pelo protagonista pouco antes de ser morto, pronunciadas entre pausas e

grunhidos: Remuaci e Rêiucàanacê (ROSA, J.G., 1969, p. 159).

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Com origem tupi, a palavra Remuaci, segundo Masucci (1978, p. 36), é formada da

junção do prefixo subordinativo tupi ré (“depois de”) mais a sílaba mu (“parente, raça, amigo,

aliado”) e o sufixo aci, que é a abreviação de Moacyr (“sentido, doente”). Logo, ao referir o

termo criado com elementos do tupi, JGR dá o sentido grosso modo de uma lamentação do

protagonista ao interlocutor em querer saber por qual razão ele o está matando depois de o

visitante ter sido acolhido. Novamente uma apelação para o emocional do viajante.

Já Rêiucàanacê, segundo Boudin (1978, p. 225), é formada pelo prefixo tupi rê (“apesar

de” também traduzido como “amigo”), yucá com variação tupi de yuká (“matar”) e o sufixo

tupi anacê (“parente”). Nesse instante do conto (ROSA, J.G., 1969, p. 159), a expressão

remontada por JGR reforça a palavra analisada anterior, referindo-se novamente ao protagonista

quando tenta emocionar o agressor no sentido de poupá-lo, informando-lhe que o tinha mais do

que como amigo, a ponto de vê-lo como parente.

No trecho “Marido falava bobagem, em noite de lua incerta êle gritava bobagem,

gritava, nheengava...” (ROSA, J.G., 1969, p. 133), segundo Ferreira (2007 [1928], p. 98), tem-

se o termo nheenga, variação de Nhemgatu (a língua do tupi), que significa “falar”. No trecho,

JGR acrescenta ao termo tupi o sufixo do português ava (desinência verbal), a ponto de conjugar

a palavra em português tal como se ela fosse um verbo qualquer, num procedimento claro de

neologismo. No sentido adaptado nesse trecho, entende-se como “falar”, ou, segundo o autor,

nheengar.

Já em “[...] ela então esbraveja, mopoama, mopoca, peteca, mata cachorro de todo lado

[...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 132), a palavra peteca, segundo Tibiriçá (1984, p. 138), é um termo

do tupi que significa “bater com a palma da mão” e mopoca, também do tupi, significa disparar.

Porém, há mais uma vez, mais do que uma aglutinação, pois não consta na maioria dos

dicionários pesquisados a palavra mopoama, mas de fácil dedução, já que JGR usou o termo

tupi mopoca, omitindo o sufixo ca e somando à palavra outra também de origem tupi, ama, que

significa, segundo Tibiriçá (1984, p. 56), “ficar ou estar de pé”. Assim, pode-se entender que o

uso de tal palavra nesse contexto lembra o gesto da onça ao dar saltos sobre a presa, caindo

quase em pé enquanto desfere patadas, semelhante ao bater com a palma da mão aberta.

Em continuidade ao fato de como era relatado o ataque da onça em várias partes do

conto, o narrador esclarece que o informado felino “[...] pula de lado, muda o repulo no ar. Pula

em-cruz. É bom mecê aprender. É um pulo e um despulo” (ROSA, J.G., 1969, p. 132). Nota-se

claramente no uso da palavra “repulo” o prefixo português re, que dá ideia de repetição ou

retomada; somado ao substantivo “pulo”, também do português e que dá origem ao substantivo,

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segundo o texto, “repulo”, o que faz lembrar do gesto da onça de retroceder a ponto de melhorar

a investida sobre a caça.

Não diferente ocorre com a palavra “despulo”, no mesmo trecho, cujo prefixo português

“des”, somado também ao substantivo português “pulo”, pode significar ato negativo, ou, no

trecho citado, de não cumprimento do suposto investimento felino.

Outro parágrafo em que o autor usa o prefixo português “re” ocorre em “Dormindo e

redormindo, com a cara na mão, com o nariz do focinho encostado numa mão...” (ROSA, J.G.,

1969, p. 138). Neste caso, pode-se supor que o autor se utilizou desse neologismo para enfatizar

a simplicidade do narrador com a marca de coloquialismo. Quanto ao sentido dado ao contexto,

pode-se avaliar que se trata do fato de a onça dormir em poucos sonos, ou seja, pequenos

cochilos, que leva a crer que está repondo as energias, mas atenta a qualquer eventualidade.

No trecho “Se é coelho, bichinho pequeno, ela comeu até às juntas: engolindo tudo,

mucunando, que mal deixou os ossos” (ROSA, J.G., 1969, p. 133), tem-se na palavra

mucunando o acréscimo de um sufixo português, precisamente um gerúndio, o qual é somado

possivelmente à palavra tupi mucura (mu’kura), que, segundo Ferreira (2007 [1928], p. 94),

significa “mamífero marsupial da família dos dedelfídeos”, ou seja, algo semelhante ao gambá.

No contexto, o uso de mucunando por JGR refere-se ao fato de a onça mastigar um bicho

pequeno, já que o gerúndio usado na formação da palavra dá ideia de uma ação em

continuidade, no caso, a mastigação.

Outro uso de acréscimo de sufixo do gerúndio é percebido no excerto “Vi aqueles olhos

bonitos, olho amarelo, com as pintinhas pretas bubuiando bom [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 137),

na palavra bubuiando, em cuja formação está a expressão bubuia (be’bui), do tupi, que

significa, segundo Ferreira (2007 [1928], p. 30), “leve” ou “capaz de boiar”; mais o gerúndio

português, como sufixo, dando novamente a ideia de um ato instantâneo. Logo, neste trecho,

refere-se ao fato de a onça “espionar” ou “vigiar” à espreita de uma possível presa.

Referindo-se ainda à onça, quando o narrador conta que “Dentro das orelhas, é

branquinho, algodão espuxado [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 139), nota-se uma elaboração típica

do escritor mineiro em que supostamente, dado o contexto, se utilizou para a criação de

“espuxado” as duas primeiras sílabas da palavra portuguesa “espuma”, para se referir à maciez

da pele felina, somada às sílabas finais da palavra portuguesa “espichado”, para se referir ao

fato de as orelhas da onça estar esticadas, ouvindo cada movimento ao redor; ou, para manter a

grafia da palavra no conto, reutiliza talvez outra expressão: “puxado”, neste caso, para manter

a continuidade da ideia de “orelhas esticadas”.

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O termo tupi canguçu (akãgu’su) em “Cangussú braba é a Tibitaba – onça com

sobrancelhas [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 141), segundo Ferreira (2007 [1928], p. 37), significa

“onça pintada de cabeça grande”. Contudo, em “[..] aqui mesmo pertinho, tem a onça Mopoca,

cangussú fêmeo” (ROSA, J.G., 1969, p. 140), a palavra fêmeo, termo em português designado

para identificar o sexo feminino, foi usado com o sufixo “o”, indicativo de masculino. Nesse

caso, pode-se supor que a criação do autor é indicativo, no texto, do fato de a onça ser tão brava

a tal ponto que suas atitudes e forças são mais comuns no sexo masculino, assim, incomum para

a espécie.

Outro termo que merece destaque é “barulhando” na frase “Iquente! Ói cavalo seu

barulhando com medo” (ROSA, J.G., 1969, p. 145). Nela, JGR utilizou-se do substantivo em

português “barulho” mais o acréscimo de sufixo do gerúndio também em português para criar

o verbo “barulhar”. Aí, dá o sentido de que o cavalo está com medo e demonstra isso

provocando barulhos estranhos enquanto se movimenta.

A recorrência do gerúndio tão presente no decorrer do conto Meu tio o Iauaretê ainda

vai prolongar-se com certa frequência como um recurso utilizado por JGR na construção de

neologismos. Como exemplo, pode-se encontrar no trecho “Quando tem um preto numa

comitiva, onça vem acompanhando, seguindo escondida, por escondidos, atrás, atrás, atrás,

ropitando, tendo olho nele” (ROSA, J.G., 1969, p. 151) o termo “ropitando”, que, segundo

Tibiriçá (1984, p. 168), vem do tupi ropytá e significa “ficar com” ou “deter”, é acrescido de

gerúndio português, como sufixo, dando novo significado ao uso. Contextualizado, o elemento

citado tem o sentido de “vigiando” ou “analisando” a futura presa.

Não distante do trecho anterior, encontra-se a terminologia “beiradeando” com junções

de palavras do português: “Foi outro prêto, prêto Bijibo, a gente vinha beiradeando o rio

Urucúia, despois o Riacho Morto [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 151). Nesse enfoque, tal palavra

refere-se à soma de “beira de” e (novamente) ao gerúndio “ando”, para formar “beiradeando”,

tendo, pois, como sentido, andar à beira do rio ou na beirada (margem).

Em continuidade ao tão explorado gerúndio da língua portuguesa, tem-se a expressão

“munhamunhando” presente no trecho “Tou rindo de mecê não. Tou munhamunhando sozinho

pra mim [...]” (ROSA, J.G., 1969, p. 128). Segundo Boundin (1978, p. 124), é formado pela

junção do termo tupi munhã (variação de mu-hê’ê), que significa “dizer ou manifestar

bobagens”. A duplicação tupi presente na palavra representa a pluralidade, logo, tem-se o

sentido de reforçar a ideia de dizer algo repetidamente. Como sufixo, a palavra recebe o

gerúndio do português dando-lhe uma possibilidade de sentido, que no caso seria “falando ou

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pensando bobagens” ou, seguindo a temática de neologismo proposta pelo autor, dir-se-ia que

se trata também de “bobageando”.

No segmento “Lua tá vesprando, mais logo sobe” (ROSA, J.G., 1969, p. 128), a

construção “vesprando” foi dada com a soma do substantivo português “véspera” ao verbo

também em português “esperar” ou “aguardar” acrescido do gerúndio “ando” como sufixo.

Assim, tem-se o sentido posto na frase de que a lua estava prestes a surgir.

Na sentença “Prêto tinha medo, sabia que onça tava de tocaia: onça vinha, sacaquera,

tôda noite eu sabia que ela tava rodeando, de uauaca, perto do foguinho do arranchamento...”

(ROSA, J.G., 1969, p. 151), uma palavra merece destaque, precisamente “sacaquera”. Ela é

formada, segundo Tibiriçá (1984, p. 168), pelo prefixo tupi sá, que significa “olho (em

composição)”, mais o substantivo tupi caquera (kaa’kera), que segundo Ferreira (2007 [1928],

p. 38) significa “arbusto da família das cesalpináceas, ‘planta’ que dorme”. Ao formar a palavra

“sacaquera”, JGR deu-lhe o sentido situado no contexto de uma onça que vigiava as vítimas

escondida detrás das folhagens das plantas de folhas largas.

No decorrer do trecho “[...] caçador rico, jaguariara, vêm todo ano, mês de agosto, pra

caçar onça também” (ROSA, J.G., 1969, p. 131), encontra-se o léxico jaguariara, que é

formado pela junção de dois elementos do tupi: ya’wara (“onça”) e yara (“senhor ou dono”).

Logo, tem-se o sentido dado à nova palavra de “dominador de onças” ou, conforme apresentado

no contexto do conto, “caçador de onça”.

Já no trecho “Estremece de diante pra trás, arruma as pernas, toma o açôite, e pula pulão!

– é bonito...” (ROSA, J.G., 1969, p. 133), no “pulão” aqui presente, ao colocar o sufixo

aumentativo “ão”, JGR agrupa dois léxicos repetidos quanto à grafia, mas não ao significado,

pois o termo “pula” deriva do verbo “pular”, enquanto “pulão” deriva do substantivo “pulo”

acrescido do sufixo aumentativo “ão”.

Enfim, essas são algumas das criações de JGR que permitem ter uma ideia da facilidade

com que o autor “brincava” com a língua, em que palavras eram reformuladas a ponto de

adquirir não nova semântica, mas um realce, uma ênfase na raiz formativa.

As representações de espaço, ambientes e seres presentes no conto tornam-se vivas na

mente dos apreciadores da referida obra graças às infinitas ilusões criadas a partir da linguagem

utilizada.

Logo, JGR, ao dar à luz palavras que encantavam pela simples forma como foram

emolduradas, traz um ar à imaginação a tal ponto em que a ficção se confunde com a realidade.

É o fabular rosiano que se espelha na fundição de léxicos oriundos do tupinismo, de vários

dialetos da língua portuguesa ou até da influência europeia.

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4.3 ONOMATOPEIAS

Como fruto representativo da emoção humana, as onomatopeias presentes no conto

ganham destaque maior do que aquele constatado pelas definições gramaticas que justificam o

surgimento desse recurso linguístico.

Isso é melhor compreendido ao verificar no conto Meu tio o Iauaretê que a relação entre

homem e animal fica mais próxima tendo em vista a linguagem utilizada pelo protagonista. Sua

fala denuncia clara proximidade com o agir e o grunhir das onças. Por meio da própria

linguagem, o conto se manifesta ao leitor, que tem a oportunidade de preencher as lacunas já

normalmente completadas em um conto linear qualquer, mas não neste. A captação do ambiente

como também dos moradores é promovida conforme as palavras se entrelaçam numa rede de

significações sem que necessariamente se descaracterizem.

A esfera da realidade aos poucos é construída por tupinismos que também logo se vão

perdendo até dar lugar aos grunhidos do animal totêmico.

Assim, as onomatopeias espalhadas ao longo do texto e mescladas ora com termos

surgidos da língua tupi, ora do português, permitem observar a sequência que se constrói

lentamente, direcionando à metamorfose do narrador.

A primeira observação onomatopaica é “n’t, n’t” presente em “Camarada ruim, n’t, n’t!

Nhor não” (ROSA, J.G., 1969, p. 127). Trata-se de um quase resmungo onomatopaico que

lembra o mastigar da onça ou a degustação próxima pela futura vítima. Há uma pequena

variação dessa expressão no trecho “Se deixar, eu bebo, até no escorropicho. N’t, m’p” (ROSA,

J.G., 1969, p. 136), logo, pode-se supor que essa troca da variante n’t por m’p é para reforçar a

ideia da mastigação.

Em seguida, tem-se “Nhenhem” no trecho “Nhenhem? Eu cacei onça, demais. Sou

muito caçador de onça” (ROSA, J.G., 1969, p. 128), que lembra a interjeição “Hein?”

Um pouco mais à frente, encontra-se “glim-glim” em “Dinheiro bom: glim-glim...”

(ROSA, J.G., 1969, p. 129), que lembra o tilintar das moedas batendo umas nas outras.

Na mesma página, no trecho “Esturra – urra de engrossar a goela e afundar os vazios...

Urrurrú-rrrurrú...” JGR (1969, p. 129), esta última expressão retoma a ideia do urrar

amedrontador da onça.

Não tarda e a seguir, no trecho “Nem deixei ela arrebitar as orelhas: por isso, por isso,

pum! – porro de fogo...” (ROSA, J.G., 1969, p. 130), surge a palavra pum, uma típica

representação sonora do disparo de uma arma.

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Outros trechos são perceptíveis no texto como representantes da “fala” dos animais. Em

“Apê! Poranga, suú, suú, jucá-iucá...” (ROSA, J.G., 1969, p. 132), o “suú” é destinado ao

rastejar da cobra pelo chão ou nas árvores, “tateando” com a própria língua. Pouco depois, tem-

se no trecho “Mecê viu a sobra? Então mecê tá morto... Ah, ah, ah... Ã, ã-ã-ã...” (ROSA, J.G.,

1969, p. 132) a representação do rosnado do temida felino.

Esse informe em relação à onça também se completa com a frase “Mecê acha que eu

pareço onça? Mas tem horas em que eu pareço mais. Mecê não viu. Mecê tem aquilo – espelhim,

será? Eu queria ver minha cara...Tiss, n’t, n’t...”, cujo trecho em destaque itálico lembra o rosnar

da onça, no caso do texto, quase uma interposição sobre a voz humana.

Na oração “Quando eu parava de falar, ela miava piado – jaguanhenhém...” (ROSA,

J.G., 1969, p. 138), observa-se ao mesmo tempo também um neologismo e uma onomatopeia,

pois JGR junta o radical jaguar do tupi (“onça”) ao já citado nhém, também do tupi (“falar”).

Neste caso, jaguanhenhém é a linguagem da onça namoradeira. Um pouco adiante, em “Filhote,

jaguaraim, cachorrinho-onço, oncinho”, o autor usa o termo jaguaraim para se referir aos

miados dos filhotes das onças.

No decorrer do conto Meu tio o Iauaretê, é comum o uso de certas interjeições como

“Hum”, “Hé”, “Ah-hã” ou “Uhm”, dando a ideia que há uma intercalação da voz humana com

a do animal. Já no final do conto, esses elementos sobressaem com o auxílio do uso de aspas

(apesar de nas últimas páginas já se notar o aparecimento delas), no intuito de não só identificar

as mudanças comportamentais e as alterações na forma de falar, como também se justifica

porque elas reforçam a ideia do momento da transformação. Note-se que há no término do conto

palavras com origem tupi, o que indica a vinculação com a parte humana (presente na palavra

Rêiucàanacê). Porém, há expressões onomatopaicas como araaã ou arrhoôu, cuja letra “r”

usada repetidamente lembra o urrar da onça, confirmando a metamorfose.

A interjeição “Ui” presente na penúltima linha vem confirmar a ideia de que o onceiro,

já transformado em onça, havia tomado um tiro. Porém, se foi um tiro mortal, é uma suposição

que o autor preferiu deixar indefinida, uma vaga ideia, isso porque, supostamente, pode-se

imaginar que quem morreu foi o visitante, já que as últimas palavras são “êêêê...êê... ê... ê...”,

que também dão a ideia de um desdém por parte do protagonista, que, mesmo ferido, consegue

devorar o interlocutor. Outrora, para estimular a imaginação, a diminuição na quantidade

existente dos “ês” na última linha também faz lembrar os últimos suspiros de um ser à beira da

morte.

De qualquer forma, percebe-se, pois, por meio da própria construção da linguagem, que

fica nítida a narratividade apresentada vinda dessa frutífera cornucópia de palavras. Logo, a

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magia dos acontecimentos emana da forma como as expressões e termos são expostos ao longo

do texto. É o “fabular” rosiano que mescla riquezas linguísticas e tradições culturais regionais

a um tom de criticidade envolvendo a forma tradicional de ver a língua e, por que não, como

um protesto político em que o conhecimento dos povos de dadas regiões não deve ser

menosprezado justamente por não possuir posição de destaque ou reconhecimento de qualquer

sociedade. Poder-se-ia dizer que seria uma espécie de espelhamento linguístico, pois na voz de

um único protagonista, no caso do conto Meu tio o Iauaretê, Tonho Tigreiro, o guarani, um

pouco do baiano, do mineiro e do próprio português ecoam como motivos para que Tonho fosse

a pura representatividade do herói brasileiro.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as propostas discutidas em torno das observações do conto Meu tio o Iauaretê, de

JGR, tendo em vista os diálogos entre as referências teóricas apresentadas sobre o conceito de

língua e sua manifestação principalmente por meio da oralidade, podem-se apresentar alguns

acertos dos recursos linguísticos do autor dadas as particularidades do falar sertanejo.

Inevitavelmente, em torno do conto citado, pressupõe-se um posicionamento de JGR

perante as desigualdades sociais tão observadas nas viagens pelo sertão mineiro e transparecidas

na fala do protagonista Tonho Tigreiro. Se na aparente crença de que o autor se teria inspirado

nas diversas personalidades encontradas tanto ao longo da vida quanto observadas nas viagens,

também se pode propor que a realidade experienciada por JGR se fez refletir supostamente na

fala do protagonista. Seria uma espécie de reflexo das discórdias linguísticas e sociais tão

defendidas pelo autor no universo literário recorrente de suas obras, ou no caso, precisamente,

em Meu tio o Iauaretê.

As contradições sociais existentes na época – e ainda tão claras no cotidiano – também

se refletiam na linguagem emitida pela população desprivilegiada. O tratamento culto era o

único aceitável por uma sociedade em expansão, tanto no universo escrito quanto,

principalmente, no oral. A discórdia e o preconceito existentes fizeram com que JGR

demonstrasse, por meio da enorme criatividade literária, a criticidade para com o destrato das

culturas sertanejas. Sustentado pelo reconhecimento das particularidades linguísticas anotadas

em cadernos e cadernetas, advindas dos depoimentos e falas das pessoas que ao longo da vida

recolhera, JGR fez da fala do personagem, rica em particularidades linguísticas, a principal

forma de expressar a própria indignação.

Mais precisamente, nessa perspectiva, pode-se notoriamente observar tais

peculiaridades e desproporções no conto apresentado. O protagonista se vê em uma constante

busca da própria identidade, ora por dizer, inicialmente, que era filho de branco com índio, ora

por não se identificar mais com o mundo dos homens e passar a se identificar com as parentes,

as onças. Pelo histórico de Tonho Tigreiro, contado ao interlocutor, cabe relembrar um trecho

em que Tonho fora enviado pelo antigo patrão, Nhô Nhuão Guedes para eliminar as onças

presentes na propriedade do fazendeiro. Inicialmente, o protagonista cumpre seu papel, mas

logo se vê arrependido; e o patrão então envia o preto Tiodoro para dar um fim ao protagonista

e continuar com o trabalho antes contratado pelo patrão.

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Pode-se inferir, dentre possíveis interpretações, o fato de o protagonista ser descartável,

pois não era mais importante aos interesses do patrão. Logo, sendo deixado à margem da

sociedade por ter sido enviado a um lugar ermo, que não lhe era agradável, para fazer algo que

não queria mais fazer.

Essa suposição também é observável quando, ao passar por índio, o protagonista lembra

as invasões portuguesas durante o descobrimento: os colonizadores fizeram-se de homens de

boa-fé para a população indígena. Assim, o índio se viu descartável pelos portugueses quando

não mais servia para enriquecê-los com as preciosidades exploradas em territórios de domínio

da população indígena nem como mão-de-obra barata.

No conto, a alusão de descartável fica notória pela busca constante de identidade do

protagonista entre branco, índio ou onça. Assumir a condição de índio é cultivar e valorizar a

cultura da mãe, apropriando-se do tupi como meio de comunicação da terra defendida e o

cultivo de alimentos para a própria sobrevivência. Como branco, herança originária por parte

de pai, assume os pecados tão recorrentes da condição humana. Ao se metamorfosear em onça,

identifica-se com a própria animalidade, a única condição por que não seria rejeitado, pois como

homem era inválido, simples, incapaz de exercer os trabalhos impostos pelos superiores; como

onça, seria aceito como membro do bando. Porém, o sentimento de arrependimento por no

passado ter sido um caçador de felinos não lhe permite assumir totalmente a condição animal.

No texto, o protagonista deixa transparecer a essência de sua subsistência como o único

recurso que ainda lhe resta na condição de homem: a fala. A modalidade oral é o recurso que

se faz presente para transfigurar ora indícios de selvageria, ora a humanidade. Possivelmente

como um dos recursos do autor para exaltar a condição marginalizada do falar simples e

coloquial do sertanejo a patamares antes desvalorizados, promove na fala do protagonista a

implícita criticidade.

Na época, como escritor – e não muito diferente do tempo atual –, JGR percebia que o

ser dominante, de maior poder aquisitivo, era detentor único do conhecimento e da palavra,

enquanto aos subalternos, simples, cabia a condição de obedecer e de apenas ouvir as ordens

impostas. No conto, como um aparente monólogo, o autor permite uma reviravolta nessa

condição, ao propor que o protagonista Tonho, um caboclo simples de expressão coloquial, seja

detentor da fala – apesar de se comprovar a inserção da fala de um interlocutor em respostas

dadas pelo próprio protagonista mediante possíveis questionamentos.

O escritor mineiro se utiliza da oralidade como meio para exaltar o sertanejo ao

reconhecimento universal, para que este possa enfrentar a discriminação social antes imposta

por uma sociedade tradicional.

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Nessa perspectiva, recordam-se as propostas de Bakhtin acerca dos gêneros, quando

esses são manifestados pela interação comunicativa e pelos aspectos sócio-históricos ao

tratamento da linguagem, que podem ser observadas também nas criações de JGR.

Considerações que, além de averiguados fatores quanto às questões de desigualdades em torno

do social, se referem também a outros, vinculados ao falar simples do sertanejo provenientes

do espaço regional do interior mineiro. Essas composições foram importantes para suas obras,

pois JGR enfoca a fala como algo situado no sertão de Minas Gerais e a universaliza ao propor

um olhar diferente ao tratamento da língua, seja por recursos estilísticos e morfológicos, seja

sintáticos.

É sabido que a oralidade, pelo aspecto sócio-histórico, precede a escrita e, nos

primórdios da civilização, o homem se valia dos gêneros orais para a efetivação da

comunicação. A escrita, por sua vez, com o desenvolvimento do alfabeto por volta do século

VII, aos poucos foi adquirindo lugar de destaque e, graças à invenção da imprensa e às grandes

navegações, sua valorização e disseminação foi inevitável. Logo, a fala, que um dia foi motivo

de admiração pelos antigos oradores gregos, e a escrita, vista como blasfêmia por

descaracterizar essa particularidade “artística”, foi dada como desprivilegiada socialmente.

Não diferentemente, esse tratamento é dado convencionalmente pela sociedade, pois

dela ainda se veem preconceitos para com a oralidade. Vale-se dessa observação quando se

presenciam nas salas de aula as imposições de professores conservadores ao valorizar

unicamente a escrita como a única e “correta” forma de se manifestar socialmente. Não muito

distante, outrora a modalidade oral era detentora do coloquialismo, do “erro” e do uso

“incorreto” da língua. Apesar de ainda haver realidades educacionais que conceituam o falar

“corretamente”, aos poucos a ideia de situação e conhecimento adquirido passa a constituir

elementos que complementam o ensino da língua portuguesa.

Segundo Bagno (2003), o aluno possui uma bagagem linguística adquirida no convívio

social, por isso o autor propõe que os professores reconheçam esse conhecimento em sala de

aula. Cabe à escola, sim, segundo Bagno, informar que a linguagem culta é vista como maior

prestígio, obviamente, tendo em vista a situação comunicativa. Para ele, não se deve adotar o

conceito de “certo” ou “errado” quanto ao uso da língua e sim o “apropriado” ou não para

determinados momentos comunicativos.

Não diferente, esse conceito pode ser observado no conto quando apresenta os

neologismos, pois é no falar espontâneo, segundo JGR, que o conhecimento humano se vai

expandindo; e, logo, a manutenção da língua ocorre naturalmente. Reconhecido, entre outros

aspectos, por altos índices de musicalidade nas obras, característicos da poesia, JGR propõe um

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olhar diferente ao tratamento linguístico, ao observar que na essência composicional a palavra

detém significados diferentes do léxico, pois é na interação verbal que a palavra adquire real

significado. A língua, segundo JGR, é transmitida a outros tal como são os ensinamentos das

salas de aula, mas, para ele, o essencial está na forma como usá-la para tornar-se únicos.

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