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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Marília Alves Facco Atividade docente em uma escola pública paulista de ensino fundamental I: análise da apropriação e do emprego das propostas do Programa Ler e Escrever em sala de aula DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2013

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP · 4.3.1 Núcleo 1 – A escolha do Magistério.....73 4.3.2 Núcleo 2 – Experiências profissionais na área da educação

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Marília Alves Facco

Atividade docente em uma escola pública paulista de ensino fundamental I:

análise da apropriação e do emprego das propostas do Programa Ler e

Escrever em sala de aula

DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2013

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Marília Alves Facco

Atividade docente em uma escola pública paulista de ensino fundamental I:

análise da apropriação e do emprego das propostas do Programa Ler e

Escrever em sala de aula

Tese apresentada à Banca Examinadora

como exigência parcial para obtenção do

título de DOUTORA em Educação:

Psicologia da Educação pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, sob

a orientação da Profa. Dra. Claudia Leme

Ferreira Davis.

SÃO PAULO

2013

Banca examinadora

______________________

_____________________________

_____________________________

_____________________________

_____________________________

O conhecimento é assim:

ri de si mesmo

e de suas certezas.

É meta da forma

Metamorfose

Movimento

(Mauro Iasi, Aula de voo)

Dedico esta tese aos meus pais... Sem os seus

ricos ensinamentos, meus velhos, eu nada seria!

Dedico, também, ao meu amor e companheiro de

todas as horas... Emer, o seu olhar melhora o

meu!

Agradecimentos

Agradeço a todos os amigos e amigas que, de alguma forma, fizeram parte desta caminhada.

Foram muitas pessoas que contribuíram de formas diferenciadas. Impossível nomeá-las,

então, muito obrigada a todos!

À professora Claudia Davis, por suas inúmeras qualidades intelectuais e pessoais, que me

fizeram crescer não somente como pesquisadora, mas também como pessoa.

À professora Ia, por fazer parte da minha formação. Com presença constante, suas aulas e

seus ensinamentos de vida favoreceram a constituição de uma pessoa mais crítica e uma

pesquisadora mais questionadora.

Aos professores do programa Educação: Psicologia da Educação, por todos os momentos de

reflexão e aprendizagem.

À professora Leda Gomes, que desde a graduação me incentivou a olhar cada vez mais de

perto a Psicologia Escolar. O lápis mágico que você me deu no último dia de aula me ajudou a

escrever esta tese, pode ter certeza!

Ao professor Ricardo Alves de Lima, pelo apoio e incentivo constante tanto na vida

acadêmica quanto na profissional.

Ao professor Dirceu Matheus Júnior, por confiar no meu trabalho, por me ouvir, por acreditar

sempre e, principalmente, por me incentivar a querer mais.

À professora Neiza Fumes, pelos momentos de acolhida em Maceió, pelas diversas conversas

aqui em São Paulo e por fazer parte da banca de qualificação e defesa.

Ao professor Júlio Ribeiro Soares, por aceitar participar da banca, por todos os bons

momentos acadêmicos e sociais compartilhados desde o mestrado.

À professora Ana Bock, por aceitar participar da banca de defesa e pela clareza com que

coloca suas ideias tanto em aula quanto no papel.

À professora Maria Lúcia Zoega, pelo acompanhamento sempre acolhedor e pelas discussões

no decorrer desta pesquisa.

Aos colegas que fizeram parte do Procad, pela acolhida, pelo cuidado e pelas inúmeras

discussões nas reuniões, que me fizeram pensar cada vez mais nos aspectos teóricos e

metodológicos deste trabalho. Fazer parte deste projeto foi uma influência muito positiva na

minha formação acadêmica.

Ao grupo de iniciação científica, Bruna, Diego, Júlia e Luisa, pela oportunidade de

aprendizado e pelos bons momentos. Nossa experiência foi muito enriquecedora. Em vários

dos nossos encontros pude reviver a experiência que tive na graduação.

Aos amigos que fiz durante minha jornada na PUC que, além de ótimos companheiros de

risadas, também deixaram suas marcas em mim: Silvinha, Júlio, Vivi, Virgínia, Elvira,

Vinícius, Solange, Wedja, Karin e Elisandra.

À Janaina Dutra, minha querida amiga, companheira de todas as horas e irmã de coração:

obrigada por me apoiar, me incentivar, estar perto e se orgulhar das minhas conquistas. Nossa

amizade sempre me fortalece e não há distância física que me impeça de estar perto de você

porque o coração sempre fala mais alto...

À Maria Brando, por ter sido não apenas uma parceira de trabalho, mas por ter decidido ficar

em minha vida e ter aberto espaço para que eu pudesse ficar na dela também. Obrigada por

me acolher em todos os momentos, por me ouvir, e, principalmente, por cultivar a nossa

amizade.

À Marcella Olivati, por ter colaborado inúmeras vezes com alguns projetos importantes para

minha formação acadêmica. Pelas discussões sobre alfabetização, pela disposição constante e

pelo brilho que tem no olhar quando o assunto é educação.

Aos amigos professores que sempre frequentam minha casa: obrigada por ampliarem meus

horizontes, pelas ricas discussões e pela possibilidade constante de pensarmos juntos sobre a

educação na atualidade. Agradeço, também, pelos bons momentos de companheirismo e

divertimento.

Aos meus pais que, sempre com muito zelo e dedicação, abriram mão inúmeras vezes de seus

desejos em favor dos meus. Pela dedicação de uma vida toda, expresso aqui o meu profundo

sentimento de gratidão e amor por vocês.

Ao Emerson, amor constante, parceiro, amigo, companheiro de uma vida toda! Obrigada por

me apoiar, por me escutar, por me incentivar, por confiar e por estar sempre ao meu lado.

Você sempre me disse: voe, voe o quanto puder. Se um dia sua asa quebrar ou o vento mudar

de direção, estou aqui para te segurar!

Aos meus pais de coração: Joel e Elza, por tanto carinho e amor nutrido nos últimos 14 anos.

Ao Edson, secretário do Programa Educação: Psicologia da Educação, pelas inúmeras vezes

em que me auxiliou com documentos, processos e assinaturas.

À professora Renata, por aceitar participar da pesquisa, pelo laço que criamos e por toda

disponibilidade em me receber no seu dia a dia – tanto na sala de aula quanto nos momentos

de café e descontração.

A toda a equipe da escola, pelo acolhimento e por terem me recebido tão bem. Realmente me

senti parte do grupo enquanto estive na escola.

À PUC e a CAPES, pela possibilidade de poder me dedicar integralmente aos meus estudos.

Resumo

Este trabalho buscou analisar como se dá a apropriação das diretrizes de um programa

educacional – o Programa Ler e Escrever – (oferecido pela Secretaria de Estado da Educação

de São Paulo), verificando se – e como – esse aprendizado era incorporado à atividade

profissional de uma professora de ensino fundamental I. De igual maneira, buscou-se

apreender os sentidos e significados atribuídos à atividade docente. O referencial teórico

adotado foi o da psicologia sócio-histórica e o da clínica da atividade. A pesquisa foi realizada

em uma escola pública estadual de Ensino Fundamental I, situada no bairro da Brasilândia, na

cidade de São Paulo. Após conversa com as gestoras e com o grupo de professores, uma das

docentes do 1° ano aceitou participar do estudo. Como estratégias para a coleta de

informações, foram utilizadas entrevistas com a professora, observações, videogravações de

suas aulas e autoconfrontações simples. De todas as aulas videogravadas, a professora

escolheu três delas; os materiais foram editados e transformados em episódios de,

aproximadamente, dez minutos, os quais foram vistos e discutidos pela professora e pela

pesquisadora. Na análise dos dados, foi empregada a proposta de núcleos de significação

(AGUIAR; OZELLA, 2006). Foi possível perceber que os sentidos que a professora atribuía à

atividade docente estavam fortemente atrelados ao prazer sentido em lecionar e à segurança

que a profissão lhe proporcionava. Contudo, encontrava dificuldades para articular a teoria

que embasava o Programa com suas práticas cotidianas. Apesar de almejar uma prática

construtivista, suas atividades ainda eram marcadas pela mescla entre ensino tradicional e

construtivista. Esses entraves estavam ligados, também, às dificuldades encontradas pela

docente nos momentos de formação continuada, em razão do despreparo da coordenadora

pedagógica. A autoconfrontação permitiu que a professora, se observasse e discutisse sua

atuação com a pesquisadora, o que resultou num processo reflexivo sobre sua conduta, suas

posturas e suas atitudes frente aos alunos, oportunizando uma ocasião para ressignificar sua

prática, rumo à constituição de novos sentidos para sua atividade profissional.

Palavras-chave: Psicologia Sócio-Histórica, Clínica da Atividade, Atividade docente,

Núcleos de significação, Programa Ler e Escrever.

Abstract

This study aimed to examine the appropriation by a teacher of the guidelines of an educational

program called "Read and Write," offered by the Office of Education of the state of São

Paulo, checking whether – and how – that learning was incorporated into her professional

activity. Similarly, it was tried to grasp the senses and meanings constituted by this teacher to

her teaching profession. The theoretical approach of the sociocultural psychology was used,

as well as that of the French clinical activity. The study was conducted in a public elementary

school, located in the district of Brasilândia, São Paulo, SP, Brazil. After discussing the

investigation with school’s managers and the group of teachers, one of them, who taught at

the 1st grade, agreed to be involved in it. The strategies for collecting information, interviews

with the teacher, classroom’s observations, video recordings of the teacher’s classes and

simple self-confrontation were used. Of all the video recorded classes, the teacher chose three

episodes of approximately 10 minutes each, all of them watched and discussed between her

and researcher. In data analysis, the core meanings of the teacher’s discourse were

constituted, as suggested by Aguiar and Ozella (2006). The results pointed out that the senses

and meanings attributed by the teacher to her teaching activity were strongly linked to the

pleasure of teaching, and to the feelings of security that the profession gave to her. In

addition, it was shown that the teacher found difficulties in articulating the program’s theory

to her daily practices. Although believing that she had a constructivist practice, her activities

were still a blend of traditional and constructivist teaching. These problems were connected to

the difficulties encountered by teachers in continuing education, since the person responsible

for leading it (called in Brazil ‘educational coordinator’) was not adequately trained for this

task. The simple self-confrontation allowed the teacher to observe herself performing her

educational activities and discussing them with the researcher, what permitted her to initiate a

process of evaluation of her own conduct, postures and attitudes in relation to the pupils.

Moreover, the participation in the research provided the teacher an opportunity for creating

new senses and meanings for her Professional activities. As a consequence, she could

transform them in a way more compatible with the ideas of the "Read and Write" Program.

Keywords: Sociocultural Psychology, Clinical Activity, Teachers’ Activities, Sense and

Meanings; "Read and Write" Program.

Sumário

Introdução........................................................................................................... 14

Capítulo 1

Referencial Teórico: Psicologia Sócio-Histórica................................................ 20

1.1 Mediação............................................................................................. 25

1.2 Linguagem: sentidos e significados.................................................... 27

1.3Atividade.............................................................................................. 29

1.4 Yves Clot e as categorias de análise da Clínica da Atividade............ 30

Capítulo 2

Formação de Professores e o Programa Ler e Escrever..................................... 34

2.1 O Programa Ler e Escrever................................................................ 41

2.1.1 A estrutura do Programa Ler e Escrever............................... 47

Capítulo 3

Método................................................................................................................ 51

3.1 Vygotsky e os princípios norteadores do método em Psicologia......... 54

3.2 A Autoconfrontação simples................................................................ 57

3.3 Etapas da pesquisa................................................................................ 58

3.3.1 Escolha da escola e do sujeito participante........................... 58

3.3.2 Material................................................................................. 59

3.3.3 Procedimento de produção e coleta de informações............. 59

3.3.4 Coleta de dados sobre a atividade docente............................ 59

3.3.5 Sistematização e análise dos dados colhidos......................... 60

Capítulo 4

Apresentação e análise de dados......................................................................... 62

4.1 A escola............................................................................................... 62

4.1.1 Apresentando a professora..................................................... 66

4.2 Apresentação dos episódios................................................................ 67

4.2.1 Episódio Rapunzel................................................................. 67

4.2.2 Episódio alfabeto móvel......................................................... 69

4.2.3 Episódio aula de matemática................................................. 71

4.3 Núcleos de significação....................................................................... 72

4.3.1 Núcleo 1 – A escolha do Magistério...................................... 73

4.3.2 Núcleo 2 – Experiências profissionais na área da educação

e os processos formativos: a visão sobre o Ler e Escrever............ 79

4.3.3 Núcleo 3 – Concepção de aluno: suas percepções e seus

sentimentos sobre seus alunos........................................................ 92

4.3.4 Núcleo 4 – Planejando e executando as atividades docentes. 98

4.3.5 Núcleo 5 – A importância da relação com a comunidade

escolar e com a equipe gestora para o adequado desenvolvimento

das atividades docentes................................................................... 121

4.3.6 Núcleo 6 – Os sentimentos de Renata diante da ACS........... 123

4.4 Análise Internúcleos............................................................................ 127

Capítulo 5

Considerações Finais........................................................................................... 132

Referências.......................................................................................................... 137

Anexos

Quadro dos indicadores e pré-indicadores da entrevista e das

autoconfrontações simples................................................................................... 146

Transcrição da entrevista com a professora........................................................ 170

Transcrição da autoconfrontação – Episódio Rapunzel....................................... 187

Transcrição da autoconfrontação – Episódio Alfabeto Móvel............................. 192

Transcrição da autoconfrontação – Episódio Aula de Matemática..................... 195

Transcrição da entrevista com a coordenadora pedagógica................................ 198

Transcrição da entrevista com a diretora............................................................. 223

Transcrição da entrevista com a vice-diretora..................................................... 244

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Introdução

No decorrer de minha escolarização, a docência sempre despertou meu interesse. A

forma como os professores desenvolviam suas atividades em sala de aula (des)encantava-me,

e muitos deles marcaram minha história. Ainda me lembro de que, quando era questionada

sobre qual profissão seguir, respondia com orgulho e sem hesitar: quero ser professora.

Contudo, como ocorre com a maioria dos jovens brasileiros, o momento da escolha

profissional também foi decisivo para mim: no final do ensino médio, algumas dúvidas me

cercaram. Apesar de meu encanto pela Pedagogia, era visível a crescente desvalorização pela

qual passava a carreira, obrigando muitos jovens a optarem por outras profissões1. Diante de

um cenário atravessado por incertezas, decidi cursar Psicologia, que também me permitiria

refletir sobre aspectos relativos à educação. No entanto, conduzida pelo interesse de toda a

vida, dentre tantas outras disciplinas cursadas no Mackenzie, voltei meu olhar à Psicologia

Escolar.

Além da Psicologia Escolar, outro fator que marcou minha história acadêmica foi o

envolvimento em um projeto de iniciação científica na Universidade de São Paulo (USP).

Ainda buscando conhecer melhor a área à qual queria dedicar-me, integrei-me a uma pesquisa

de Psicologia Comportamental. Com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq), pude iniciar minha carreira como pesquisadora2

participando do Projeto Enurese,3 realizado por pesquisadores do Instituto de Psicologia sob a

supervisão da Profa. Dra. Edwiges Ferreira de Mattos Silvares. O objetivo do grupo é

desenvolver trabalhos sobre o tema e atender crianças, adolescentes e adultos que apresentam

quadro de enurese noturna, ou seja, incontinência urinária durante a noite.

Concomitantemente ao envolvimento nesse projeto, eu participava de grupos de estudos

voltados à discussão da Psicologia Escolar e da Psicologia Sócio-Histórica em minha

universidade de origem.

1 Sobre a desvalorização da profissão docente e a escolha dos jovens pelo magistério, Bernadete Gatti (2000, p.

4) destaca o seguinte: “a profissão de professor tem se mostrado cada vez menos atraente para camadas

importantes de nossa juventude, tanto pelas condições de ensino dos cursos em si, como pelas condições em que

seu exercício se dá, passando pelos aspectos salariais e prestígio social”.

2 A participação nesse grupo resultou na elaboração do artigo “Enurese noturna infantil. Tratamento

comportamental com aparelho de alarme e seguimento como controle de recaída: um estudo de caso”, publicado

em 2004 no Jornal Brasileiro de Psiquiatria.

3 Para maiores informações, consultar a página www.projetoenurese.com.br

15

Nos últimos três semestres da graduação, fui fortemente incentivada por uma das

professoras de Psicologia Escolar – que seguia a perspectiva sócio-histórica – a buscar um

curso de pós-graduação stricto sensu, que se figuraria como oportunidade de desenvolvimento

acadêmico-profissional. Movida por esse incentivo, procurei uma formação que me permitisse

aprofundar os conhecimentos voltados à pesquisa científica, à educação e, mais

especificamente, à Psicologia Sócio-Histórica e à formação de professores – assuntos que

aguçavam meu interesse.

Em 2005, iniciei o mestrado no Programa de Estudos Pós-graduados em Educação:

Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),

deparando-me com a oportunidade que tanto esperava: estudar a atividade docente e a

formação de professores. Inicialmente, meu objeto de estudo era a atividade na educação

inclusiva à luz da psicologia sócio-histórica, mais especificamente dos pressupostos teórico-

metodológicos propostos por Yves Clot e colaboradores (2001, 2003, 2006, 2010)4. Nessa

oportunidade, a intenção inicial era analisar a atividade de uma professora do ensino

fundamental I (EF I) com relação à inclusão, por meio da autoconfrontação simples e cruzada,

preocupando-me em compreender em que medida o instrumento de coleta e produção de

informações poderia constituir-se em uma ferramenta relevante à formação de professores.

No entanto, os pressupostos metodológicos de Clot foram seguidos, apenas,

parcialmente: entrevistei a professora e os gestores da escola lócus do estudo, fiz observações

em sala de aula e videogravações. Das filmagens, foram extraídos três episódios, considerados

centrais para a análise da atividade de educação inclusiva. Contudo, não foi possível realizar

as sessões de autoconfrontação, dadas a complexidade dos procedimentos de coleta de dados

e a escassez de tempo para desenvolver a proposta inicial. As informações obtidas, analisadas

sob a perspectiva da psicologia sócio-histórica e da proposta de Clot (atividade prescrita,

4 Yves Clot e colaboradores fazem parte do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios (CNAM) de Paris.

Balizada tanto pelo materialismo histórico-dialético quanto pelos ditames da ergonomia francesa, a proposta de

Clot consiste em analisar a atividade de trabalhadores para poder empoderá-los diante das situações cotidianas

com as quais se deparam no exercício profissional. O método usado é o da Clínica da Atividade, a qual envolve:

(a) a autoconfrontação simples (na qual o trabalhador assiste aos registros das atividades por ele desenvolvidas,

discutindo-as com o pesquisador); (b) a autoconfrontação cruzada (repetição do processo, mas com uma análise

feita por um parceiro mais experiente, que a conduz e discute na presença do trabalhador e do pesquisador). Ao

ampliar o conceito de atividade adotado pela Psicologia Sócio-Histórica, Clot destaca o real da atividade

(intenções não realizadas pelo trabalhador no decorrer de sua atividade) como material relevante para a criação

de novas possibilidades de ação tanto para o trabalhador como para o coletivo profissional ao qual pertence. Para

tanto, o autor destaca que a imagem é um instrumento valioso, pois o sujeito pode observar-se em atividade e,

com base nas reflexões tecidas no decorrer das sessões de autoconfrontação, modificá-la.

16

realizada e real da atividade)5, mostraram-me a importância da formação inicial e continuada

para o bom desenvolvimento do trabalho docente no tocante à educação inclusiva. A

professora que participou da pesquisa apresentava severas dificuldades para trabalhar com seu

grupo de alunos: sua postura, cristalizada nos processos por ela desenvolvidos ao longo de 28

anos de magistério, não lhe permitia perceber a importância da formação continuada como um

instrumento facilitador de suas atividades, tanto as dirigidas aos alunos de “inclusão” quanto

aos demais.

Após a conclusão do mestrado, em 2007, pude retomar meu antigo desejo – ser

professora: iniciei a carreira docente dedicando-me ao trabalho com alunos de licenciatura em

Psicologia. Nesse percurso profissional, fui encontrando questões relativas à formação de

professores que ainda me inquietavam; desejava, também, continuar desenvolvendo pesquisas

sobre esse tema. Busquei, então, dar continuidade a minha formação acadêmica, propondo um

projeto de pesquisa voltado à compreensão da atividade docente e à formação de professores,

ainda sob a perspectiva da psicologia sócio-histórica e da clínica da atividade. No ano de

2009, o ingresso no doutorado foi de suma importância. Tal oportunidade configurou-se tanto

como espaço de formação continuada para o exercício da docência quanto como possibilidade

de desenvolvimento de meu projeto acadêmico-científico, uma vez que o tempo de que

dispunha me proporcionaria seguir mais fielmente os pressupostos teórico-metodológicos de

Clot e colaboradores.

Na ocasião, a orientadora deste estudo, Profa. Dra. Claudia Leme Ferreira Davis

estava envolvida no projeto “Trabalho docente e subjetividade: aspectos indissociáveis na

formação do professor”, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior (Capes), na modalidade Programa Nacional de Cooperação Acadêmica

(Procad). De caráter nacional e com duração de quatro anos (2009 a 2012), o projeto reuniu

pesquisadores de três universidades brasileiras: PUC-SP, com o Programa de Estudos Pós-

graduados em Educação: Psicologia da Educação; Universidade Federal de Alagoas (Ufal),

com o Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira; Universidade Estácio de Sá

(Unesa), com o programa de Pós-graduação em Educação, do Rio de Janeiro.

5 Para Clot (2006), a atividade prescrita refere-se àquilo que deve ser realizado, o que é esperado que o

trabalhador faça no decorrer de sua atividade. A atividade realizada é aquela efetivamente desenvolvida pelo

trabalhador. O real da atividade contempla o que foi realizado, bem como aquilo que não o foi, aquilo que

poderia ter sido feito, mas não o foi, aquilo que se fez para não fazer o que deveria ter sido feito.

17

Vislumbrando compreender o trabalho docente e a formação continuada dos

professores, o projeto centrava-se em: a) desenvolver atividades de pesquisa, ensino e

formação de recursos humanos em nível de pós-graduação; b) possibilitar a troca de

experiências entre os programas envolvidos; c) desenvolver estudos sobre a atividade docente

a fim de subsidiar, contribuir e identificar possíveis entraves no avanço da educação

brasileira, bem como refinar o tratamento teórico-metodológico adotado em tais estudos; d)

permitir a interação científico-acadêmica entre grupos de pesquisa de diferentes programas de

pós-graduação; e) ampliar a formação de mestres e doutores e a produção científico-

acadêmica dos programas; g) subsidiar a qualificação de processos de formação de

professores (AGUIAR, 2007).

A possibilidade de desenvolver estudos sobre atividade docente – dirigidos à solução

de problemas presentes no sistema educativo brasileiro motivou –, minha vinculação ao

grupo. As discussões tecidas nos encontros semestrais e as disciplinas cursadas nos dois

primeiros anos do doutorado foram norteando a delimitação do problema de pesquisa e,

consequentemente, dos objetivos do estudo. No entanto, a teoria não era suficiente: a ida a

campo mostrou-se uma rica oportunidade para aprimorar o que fora inicialmente previsto. Ao

conhecer a escola em que realizaria a pesquisa, seus projetos e a professora que seria alvo de

minha atenção, pensei em verificar como se dava o emprego, por parte da docente, das

propostas veiculadas num programa de formação continuada ofertado pelo governo do estado

de São Paulo denominado Ler e Escrever. O referido programa teve início em 2007,

centrando-se basicamente na melhoria da qualidade do ensino em toda a rede do estado de

São Paulo, sobretudo nas competências de leitura e escrita. Como uma política pública

voltada para o ciclo I, contempla um conjunto de ações que visam à:

[...] formação, acompanhamento, elaboração e distribuição de materiais

pedagógicos [...] objetivando a alfabetização plena de todas as crianças com

até 8 anos de idade (2ª série/3º ano), [...] garantindo também recuperação da

aprendizagem de leitura e escrita aos alunos das demais séries/anos do Ciclo

I do Ensino Fundamental (FDE, 2007, s/p.).

Diante do exposto, o objetivo geral deste estudo centrou-se em analisar como uma

professora utiliza o que aprendeu no Programa de formação continuada Ler e Escrever,

ofertado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE), verificando, ainda, se – e

como – esse aprendizado é incorporado a sua atividade profissional. Três questões nodais

embasaram este estudo:

18

1. Quais são os sentidos e os significados que a professora elaborou

sobre esta formação específica – o Programa Ler e Escrever – no

que concerne ao exercício da docência e às atividades

pedagógicas que emprega?

2. A professora utiliza os conhecimentos adquiridos por meio do

Programa Ler e Escrever em suas atividades docentes? Se os usa,

como o faz?

3. Ao observar-se empregando o aprendido no referido programa, a

professora o considera importante para sua formação

profissional? Por quê?

Como objetivos específicos, configuraram-se os seguintes:

1. Analisar e interpretar os sentidos e significados que a professora elabora

sobre esta formação específica – Programa Ler e Escrever –, notadamente

no que diz respeito ao exercício da docência e à prática pedagógica que

emprega.

2. Identificar se – e de que maneira – a professora utiliza os conhecimentos

adquiridos por meio desse programa em suas atividades docentes.

3. Verificar se – e por que – a professora, ao se observar exercendo

atividades docentes nas quais emprega as propostas do referido programa,

acredita que essa formação seja importante para aprimorar sua prática

pedagógica e/ou sua atuação profissional.

4. Analisar se os procedimentos de coleta e produção de informações aqui

delineados podem apresentar-se como um instrumento profícuo para a

transformação da atividade docente.

Considerando os postulados de Clot (2010), é possível perceber que a imagem e as

sessões de autoconfrontação são propostas valiosas para os professores, contribuindo para sua

formação. Ao observar-se no decorrer de sua atividade, o docente pode repensá-la e modificá-

la, isto é, criar outras formas de fazer o que já faz: pode ampliar suas estratégias de ensino-

aprendizagem e, sobretudo, passar da situação de observado para a de observador de si

mesmo no exercício de sua profissão. Essa mudança de condição, esse autoconhecimento são

19

fundamentais na atualidade. Como demonstram muitos estudos (GATTI, 2003; IMBERNÓN,

2009; OLIVEIRA et al., 2009; ANDRÉ, 2010; DAVIS; NUNES; ALMEIDA, 2011), a

docência tornou-se, no decorrer das últimas décadas, cada vez mais complexa e desafiadora

em razão de diversos fatores: precariedade das condições materiais e físicas das escolas,

desvalorização da profissão, ausência de planos de carreira, intensificação da atividade

laboral, mudanças nos parâmetros de avaliação no âmbito estadual e nacional, precariedade de

políticas públicas efetivamente direcionadas às formações docentes inicial e continuada, entre

outros. Tais aspectos estão intrinsecamente ligados às experiências vividas por professores e

alunos no processo de ensino-aprendizagem

Para tanto, objetivando melhor compreender a atividade docente e os aspectos que a

perfazem, o presente estudo organiza-se em cinco capítulos. O primeiro apresenta e discute o

referencial teórico norteador deste trabalho: a Psicologia Sócio-Histórica e os conceitos

propostos por Yves Clot para analisar a atividade humana. O segundo consiste em uma

revisão da literatura que trata da formação continuada de professores e dos parâmetros

fundamentais que regem o Programa Ler e Escrever. O seguinte centra-se no método de

estudo empregado, ao passo que o quarto realiza a análise e a discussão dos dados e o último

traça as considerações finais.

20

1 Referencial teórico: Psicologia Sócio-Histórica

[...] o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão

sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre

mudando (João Guimarães Rosa).

Na busca de caminhos para a análise do processo de humanização em Psicologia,

Vygotsky sempre demonstrou interesse pelas relações que o homem e o mundo estabelecem

entre si. Para o autor, o homem é um ser em movimento, em constante processo de

transformação, razão pela qual qualquer estudo psicológico deve empenhar-se em

compreender as relações estabelecidas pelo sujeito com sua sociedade, sua cultura e sua

história. Também deve buscar compreender como tais relações – imbricadas em um

movimento dialético – permitem a transformação do sujeito.

Em meados de 1920, na antiga União Soviética, Vygotsky (1996) publica o artigo “O

significado histórico da Psicologia”, no qual destaca aspectos relacionados à crise da

Psicologia, assinalando que as diferentes propostas teóricas dessa área divergiam muito entre

si: “a enorme diversidade na psicologia poderia ser reduzida a uma dicotomia. A psicologia

poderia ser concebida em termos de dois tipos básicos, cada um com sua própria concepção

do que constituía a ciência e com sua própria abordagem metodológica” (VEER;

VALSINIER, 2009, p. 168). Ao analisar as teorias de sua época, Vygotsky aponta a dicotomia

entre a Psicologia objetiva – a ciência “natural” – e a Psicologia subjetiva – a “ciência da

alma”. A primeira era fortemente guiada pela abordagem experimental e, por isso, focava os

processos inferiores. Ao passo que, na tentativa de descrever os processos superiores, a

segunda negava a ciência natural, argumentando que tais “processos só podem ser

compreendidos de maneira empática” (VEER; VALSINIER, 2009, p. 168).

Inspirado por seu contexto e pautado pelos pressupostos filosóficos do materialismo

histórico dialético, Vygotsky não nega a importância das concepções objetivistas nem a das

subjetivistas, mas busca um movimento “de superação do pensamento reflexológico”, que

culmina na elaboração da teoria sócio-histórica com base na priorização do estudo das

funções psicológicas superiores, isto é, na busca da origem e da natureza dos processos

psicológicos (MOLON, 2000, p. 6).

De acordo com o autor, os seres humanos somente se constituem como tais na e pela

relação que estabelecem com outros seres humanos e com o mundo que os cerca. Nessa

perspectiva, o homem não é considerado um ser de capacidades inatas ou externamente

21

determinadas, já que o foco reside em analisar o movimento de constituição do humano, ou

seja, o desenvolvimento do sujeito em sua interação social: como ele se modifica ao modificar

sua realidade. Postula-se, portanto, um processo em que o ser humano transforma/converte o

objetivo em subjetivo e o subjetivo em objetivo, por meio da unidade dialética

subjetivação/objetivação.

Vygotsky (2001) aponta que, para desenvolver o método científico em Psicologia, não

basta descrever puramente o fenômeno sob investigação; é preciso superar o aparente e o

imediato. Inspirado em Marx, entende que o observado nada mais é do que um resultado, um

produto. Se as coisas fossem como se mostram – ou como aparentam ser –, a ciência seria

uma atividade desnecessária. De fato, fosse isso verdade, a compreensão de um fenômeno em

sua totalidade não implicaria a análise dos múltiplos fatores que nele se imbricam. Contudo, a

preocupação de Vygotsky não consiste apenas em elaborar uma teoria sobre psicologia e/ou

desenvolvimento humano. O autor pretende compreender esse processo à luz das condições

sociais, históricas e culturais, além das formas pelas quais os homens produziram e produzem

sua existência. Tais aspectos, uma vez apropriados pelos sujeitos, constituem seu plano

interno – o do psiquismo – e conformam suas formas de ser, agir e pensar.

Dessa maneira, Vygotsky entende haver uma crise na Psicologia, dividida e polarizada

entre correntes subjetivistas e objetivistas, que só poderia ser superada por meio de um

método embasado na história e na materialidade, que entendesse o homem como um ser

social, atuante em seu tempo e espaço, multideterminado pelas redes de mediação presentes

em sua sociedade. Ao analisar sua obra, é possível perceber o caminho trilhado para divergir

das teorias e dos métodos de sua época e entender seus argumentos. Quando apresenta suas

ideias, “revê as principais teorias ligadas à ‘velha psicologia’ mostrando seus pontos positivos

e negativos. [...] Opondo-se aos estudiosos de sua época, ele procura demonstrar os elementos

da crítica e da análise das teorias existentes para construir uma nova psicologia” (TULESKI,

2008, p. 81).

Nessa perspectiva, a compreensão do homem e de seu desenvolvimento não se reduz a

uma determinação simplista da interação que mantém com o meio. As relações de produção,

ou seja, as atividades que o sujeito estabelece para garantir sua sobrevivência e, também, a

sobrevivência da espécie, modificam a natureza. Nesse mesmo movimento, modificam-se os

sujeitos, a sociedade, a cultura e a história. Vygotsky (1995, p. 104) afirma que, para

compreender as interações homem-sociedade, um trabalho científico não deve limitar-se à

descrição pura do fenômeno, àquilo que é manifesto, externo, pois:

22

[...] resulta necessário, à análise científica, o saber descobrir sob o aspecto

externo do processo seu conteúdo interno, sua natureza e sua origem. Toda a

dificuldade da análise científica radica no fato de a essência dos objetos, isto

é, sua autêntica e verdadeira correlação não coincidir diretamente com a

forma de suas manifestações externas e por isso é preciso analisar os

processos; é preciso descobrir por esse meio a verdadeira relação que subjaz

nesses processos por detrás da forma exterior de suas manifestações.

Desvelar essas relações é a missão que há de cumprir a análise. A autêntica

análise científica na psicologia se diferencia radicalmente da análise

subjetiva, introspectiva, que por sua própria natureza não é capaz de superar

os limites da descrição pura. A partir de nosso ponto de vista, somente é

possível a análise de caráter objetivo já que não se trata de revelar o que nos

parece o fenômeno observado, mas sim o que ele é na realidade.

Vygotsky conclui que a análise do humano deve caminhar para além das aparências,

superando os limites da descrição do fenômeno. Cabe, portanto, à Psicologia científica

entender a essência do fenômeno, sendo necessário, para tanto, desvendar o que sua aparência

oculta. 6 O autor considera que a ciência é histórica, ao mesmo tempo produto e produtora da

atividade do homem. De acordo com o materialismo histórico-dialético, a categoria história

pode ser compreendida em dois planos: no mais amplo, o que acontece no real não pode ser

visto como mera sucessão linear de fatos, uma vez que eles são regidos pela dialética geral

das coisas; no plano mais restrito, a história é, também, a história dos homens. Analisando o

trabalho de Vygotski, Pino (2000, p. 49) sintetiza:

[...] dizer que a ciência é histórica, no contexto do materialismo histórico,

equivale a dizer que ela é produto da atividade humana, não um dado puro

da razão, nem a simples expressão da realidade natural das coisas. Como

qualquer produção humana, a ciência está ligada às condições da sua

produção. Em termos gerais, pode-se dizer que a ciência é a natureza

pensada pelo homem que, dessa maneira, passa a integrar a história humana

na forma de ciência da natureza. A natureza, em si mesma, não tem história.

Apesar de enfatizar a história e a importância das interações homem-sociedade-

natureza, Vygotsky não nega a relevância do aparato biológico como constituinte do sujeito.

Ao contrário, ressalta que as funções biológicas fazem parte de um quadro mais amplo, que

diz respeito à pertença do homem à espécie humana. No entanto, tornar-se homem –

humanizar-se – é um processo que só se efetiva na e pela constante apropriação da cultura em

que se vive. Isto é, o ser humano, ao nascer, é dotado de um aparato biológico que lhe permite

humanizar-se, desenvolvendo-se nas e pelas atividades e relações estabelecidas com outros

6 Baptista (2007) destaca que a essência é, para Marx, “a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade do

diverso”. Explica que “é a seu tempo o processo de síntese que se manifesta como resultado das relações

humanas e não como seu ponto de partida”. Na base materialista, a essência apresenta-se mais próxima do

concreto pensado – a forma como o objeto é assimilado pelo pensamento. O objeto, além de histórico, é uma

construção humana determinada pelo processo produtivo, o qual precisa ser compreendido em todas as suas

nuanças, nas leis que o regem.

23

sujeitos e com suas produções. Nesse sentido, Leontiev (2001, p. 285) aponta que “cada

indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para

viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do

desenvolvimento histórico da sociedade humana”. Há, então, outros dois conceitos

importantes para a Psicologia Sócio-Histórica: o das funções psicológicas elementares (FPE)

e o das funções psicológicas superiores (FPS).

As FPE têm origem biológica, são involuntárias e imediatas, ou seja, não se encontram

sob o controle do sujeito: a memória mecânica, a atenção involuntária, a imaginação

reprodutora, a percepção e a sensação imediatas. Ao passo que as FPS, por apresentarem um

caráter voluntário e intencional, desenvolvem-se na atividade, por meio da mediação dos

outros e dos objetos. Envolvem, portanto, a memória lógica, a atenção voluntária, o

pensamento por conceitos, que são características essenciais dos processos tipicamente

humanos de planejamento, da ação intencional e da autorregulação da conduta própria e da

dos demais. Deve-se notar, no entanto, que as FPE são essenciais para o desenvolvimento das

FPS: umas não podem ser analisadas de maneira descolada das outras, pois se interpenetram.

Para Vygotsky (1995b), não cabe dissociar entre processos elementares e superiores. Ao

longo da apropriação do real, seguindo a lógica marxista, dá-se um movimento de superação

por incorporação: um domínio das formas superiores sobre as inferiores, em razão das

diferenças qualitativas entre suas estruturas. Assim, no âmbito das funções psíquicas, “as

formas inferiores não se aniquilam, mas incluem-se nas superiores e continuam existindo

nelas como uma instância submetida” (VYGOTSKY, 1995b, p. 129).

As FPS desenvolvem-se por meio da atividade semioticamente mediada, que emprega

instrumentos e signos, os quais possibilitam ao sujeito planejar e transformar qualitativamente

sua realidade externa e interna. Em interação com a sociedade, a criança desenvolve-se e

modifica-se, observando-se, então, “um salto qualitativo interno, provocado pelo meio

externo, que redimensiona totalmente as funções elementares, elevando-as a patamares

superiores, pois o indivíduo, controlado por elas (funções), passa a controlá-las

conscientemente” (TULESKI, 2008 p. 119-120).

As funções psicológicas superiores surgem em dois planos que se interpenetram: o

interpsicológico e o intrapsicológico. A relação, aqui, novamente não é linear, mas sim

dialética: um movimento que parte do social em direção ao individual e, também, do

individual para o social. Seguindo Leontiev (2004), não se pode afirmar que há simplesmente

adaptação do ser humano ao mundo: trata-se de um processo de apropriação desse mundo, ou

24

seja, de constituição tanto do plano subjetivo quanto do objetivo. Leontiev postula, assim, um

processo eminentemente ativo. No plano interpsicológico, em interação com a realidade

concreta e por meio das diversas redes de mediação – como o emprego de signos – que

estabelece com o social, o sujeito apropria-se do conhecimento e da experiência humana

historicamente acumulada. A mediação do social permite ao homem, no plano

intrapsicológico, reconstruir internamente os aspectos de sua cultura, ou seja, convertê-la em

funções psíquicas. Se, como já foi dito, o sujeito é a síntese de múltiplas determinações, ele se

modifica e é dialeticamente modificado por tudo aquilo que, no bojo das relações sociais, o

constitui.

De acordo com o materialismo histórico-dialético, a compreensão das funções

psíquicas requer reconhecer a importância das instâncias filogenéticas, sociogenéticas,

ontogenéticas e microgenéticas no desenvolvimento humano. A primeira refere-se ao

processo de desenvolvimento histórico da espécie humana; a segunda representa a história do

homem na condição de ser social; a terceira, a constituição do ser humano como sujeito único,

vinculado a um determinado tempo, espaço e contexto; a última delas diz respeito à forma de

constituição dos fenômenos humanos, à história de cada um deles. Essas instâncias

encontram-se imbricadas umas nas outras – todas caminham juntas – cada uma com suas

particularidades. Sobre esses quatro planos do desenvolvimento, Pesce, Peña e Allegretti

(2009, s/p) destacam que:

No plano filogenético, relativo às especificidades da espécie, a história da

espécie animal é, em parte, responsável pelos limites e possibilidades do

desenvolvimento psicológico de um dado sujeito social, obviamente que se

levando em conta a plasticidade do cérebro humano. No plano ontogenético,

referente às especificidades do ser, o desenvolvimento de um indivíduo de

uma determinada espécie ainda se imbrica na filogênese. O plano

sociogenético leva em consideração a história da cultura na qual o sujeito

social está inserido, tendo como premissa a ideia de que as formas de

funcionamento da cultura constituem o desenvolvimento humano. No plano

microgenético, cada fenômeno psicológico tem sua própria história. Nesse

último plano, as singularidades de cada sujeito social rompem com o

primado determinista passível de ser interpretado nos três planos anteriores.

A articulação dos quatro planos de desenvolvimento supracitados ergue-se

em meio à mediação simbólica. Isso equivale a dizer que a relação do

homem com o mundo é sempre mediada, concreta (por instrumentos) e

simbolicamente (por signos).

São destacadas, a seguir, algumas categorias de análise teórico-metodológicas da

Psicologia Sócio-Histórica centrais para o desenvolvimento deste trabalho. No decorrer da

disciplina “Contribuições de Vygotsky para a educação”, Aguiar (2011) pontua que as

25

categorias de análise teóricas – linguagem, sentidos e significados, atividade e mediação,

como categorias metodológicas – são constructos teóricos que representam a realidade e que

ajudam a entendê-la, com o objetivo de apreender um fenômeno em sua totalidade, em seus

movimentos, suas contradições e sua história. Funcionam como “recortes do real”, permitindo

aos pesquisadores aproximarem-se dos aspectos que constituem seu objeto de estudo. A título

de esclarecimento, essas categorias, apesar de serem apresentadas separadamente no decorrer

deste capítulo, não podem ser vistas de modo fragmentado, pois se interpenetram. Os recortes

feitos não são entendidos como conceitos fechados, mas vistos à luz da historicidade que

carregam suas múltiplas determinações e contradições, permitindo entender a constituição do

sujeito.

1.1 Mediação

Na perspectiva sócio-histórica, a interação do ser humano com a natureza, com a

realidade social e com os objetos de seu tempo e lugar, ocorre por meio de diversas redes de

mediação, formadas pelos instrumentos físicos e pelos signos. É justamente essa relação de

mediação que permite ao ser humano apropriar-se de seu meio social e de sua cultura,

transformando-os e sendo por eles transformado. Deste ponto de vista, a mediação é uma

categoria objetiva, ontológica, presente em qualquer realidade (LUKÁCS, 1979).

Para a análise da atividade docente, esta categoria é essencial, uma vez que o

conhecimento, como objeto de trabalho do professor, é sempre resultado das relações entre os

sujeitos, e não fruto de um esforço abstrato. A mediação revela-se, então, como base do

trabalho educativo, pois constitui o “ato de produzir, direta ou intencionalmente, em cada

indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos

homens” (SAVIANI, 1997, p. 11). A mediação só se realiza por meio da atividade e da

linguagem; é por seu intermédio que o ser humano transforma a natureza para satisfazer suas

necessidades e é por ela transformado; e, nesse movimento de contato com o mundo, seu

plano interno se modifica7. Para Pontes (2010, p. 78) “as mediações são as expressões

históricas das relações que o homem edificou com a natureza e, consequentemente, das

7 O plano interno é, muitas vezes, denominado consciência – ou conteúdo psicológico –, construída na e pela

atividade. Clot (2003, p. 17), parafraseando Vygotsky, ressalta que “a consciência não é uma imagem

analógica do real, mas uma atividade prática de seleção”. Segundo o autor, pode-se entendê-la também como

uma ilha, com suas dimensões e formas determinadas pelas situações e conflitos decorrentes das experiências

em que o sujeito vive em razão das determinações históricas.

26

relações sociais daí decorrentes, nas várias formações sócio-humanas que a história

registrou”. De acordo com Lane (2002, p. 12), precursora da Psicologia Social no Brasil:

Uma pessoa é a síntese do particular e do universal, ou seja, sua

individualidade se constitui, necessariamente, na relação objetiva com seu

meio físico, geográfico, histórico e social que irão através das suas ações,

desenvolver o psiquismo humano. Estas relações se dão através da mediação

de grupos sociais dos quais um indivíduo participa necessariamente, a fim de

garantir sua sobrevivência. Assim, a aquisição da linguagem produzida por

esta sociedade permite o desenvolvimento do pensamento, dos afetos e dos

sentimentos.

Embora o homem seja singular (indivíduo), com suas formas particulares de ser,

pensar e agir, também faz parte do todo (de sua sociedade) e, nesse sentido, é um sujeito

semelhante aos de sua espécie. Parte e todo, a despeito de serem aspectos distintos,

constituem uma unidade em que um não nega a existência do outro: ambos se interpenetram,

como bem salientam Oliveira, Almeida e Arnoni (2007, p. 107): “o singular nega o geral, mas

está presente nele; por outro lado, a generalidade nega a singularidade, porém só se realiza por

meio dela”. Desse modo, só se pode compreender o movimento de negação quando são

consideradas as contradições, entendidas como possibilidades de superação: é por causa delas

que o sujeito, engajado em sua sobrevivência, tensionado por sua realidade objetiva, vai

superando suas formas de ser, pensar e agir.

Por serem construídas sócio-historicamente, as mediações carregam em si o

conhecimento humano acumulado pelas gerações precedentes. As mediações são promovidas,

portanto, pelos instrumentos e pelos signos: os primeiros são externamente dirigidos (voltados

ao meio físico e material); são ferramentas criadas pelos sujeitos para transformar a natureza.

Representam instrumentos físicos todo e qualquer objeto criado e/ou transformado para

satisfazer uma realidade humanizada, por exemplo, uma colher, uma cadeira, uma vara de

pescar etc. Ao passo que os signos são internamente orientados e, nesse sentido, buscam

transformar o próprio homem ou os outros homens. São ferramentas psicológicas e culturais

socialmente construídas e compartilhadas. As muitas linguagens, entre elas a da arte, por

exemplo, são mediadoras do mundo mental, afetivo e social, bem como da conduta humana e

dos processos de comunicação, estando, assim, profundamente envolvidas na constituição do

humano.

27

1.2 Linguagem: sentidos e significados

Por ser o principal sistema simbólico constituído pela humanidade, a linguagem é o

recurso utilizado pelos sujeitos para se comunicarem e se apropriarem de sua cultura. Na

perspectiva sócio-histórica, a linguagem não é um reflexo objetivo de um pensamento. Ao

contrário, é no movimento de “transformar-se em linguagem, [que] o pensamento se

reestrutura e se modifica” (VYGOTSKY, 2001, p. 412). Aqui, também, está imbricada a

relação dialética de objetivação e subjetivação: a linguagem aparece inicialmente no plano do

social, como um fenômeno interpsicológico; posteriormente, ao ser subjetivada, constitui o

plano do sujeito, convertendo-se em fenômeno intrapsicológico. Se a linguagem atua primeiro

como um instrumento sígnico, passa a ser uma função psicológica superior quando integra o

pensamento verbal. Pensamento e palavra, tendo como matéria-prima os signos, formam uma

unidade de processos interdependentes e dialeticamente constitutivos que, num constante e

recíproco movimento (do pensamento para a palavra e da palavra para o pensamento),

possibilitam o desenvolvimento psicológico do homem. Para Vygotsky (2001, p. 409-410):

[...] a relação entre pensamento e a palavra é, antes de tudo, não uma coisa,

mas um processo: é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao

pensamento. À luz da análise psicológica, essa relação é vista como um

processo em desenvolvimento. [...] todo pensamento procura unificar alguma

coisa, estabelecer uma relação entre coisas. Todo pensamento tem um

movimento, um fluxo, um desdobramento, em suma, o pensamento cumpre

alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma tarefa. Esse fluxo de

pensamento se realiza como movimento interno, através de uma série de

planos, como uma transição do pensamento para a palavra e da palavra para

o pensamento.

Ainda para o mesmo autor, pensamento e palavra não se unem por um elo primário;

não existe entre eles uma conexão progressiva, paralela ou linear, mas sim dialética, de mútua

interdependência. A partir do momento em que pensamento e linguagem se entrelaçam, não

se separam mais: o pensamento, sem a fala, não se realiza e a fala sem o pensamento são

apenas palavras vazias. Vale destacar, ainda, que todo pensamento tem uma base afetivo-

volitiva, ou seja, “é gerado pela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos

interesses e emoções” (VYGOTSKY, 2001, p. 129). O balbucio do bebê não tem significado

para ele; no entanto, os outros, ao ouvi-lo, abrem-lhe possibilidades de significação,

justamente por atribuírem àquele som um dado significado. Ao apreender esse significado

oferecido pelo outro (e, portanto, pelo social), a criança pequena passa, por meio da fala, a

não ser apenas controlada por seu meio: ela pode, agora, também controla-lo, mediante o

processo de significação. Os significados apreendidos pelo bebê não são, de maneira alguma,

28

idênticos ao que o outro lhes atribui; eles são conformados de maneira singular,

idiossincrática, no plano subjetivo, justamente por estarem enraizados em suas experiências

prévias. Diz-se, assim, que o bebê, ao apropriar-se dos significados que o outro atribui a suas

ações, converte-os – assim como aponta Leontiev (2004) – em sentidos pessoais, em algo que

é particular e subjetivo. Para aproximar-se dos aspectos constitutivos do sujeito, faz-se

necessário, portanto, analisar os sentidos e os significados que ele atribui a suas experiências.

A linguagem e, mais especificamente, os signos envolvem ora aspectos mais fluidos e

instáveis (os sentidos pessoais), ora aqueles mais estáveis, justamente por serem

compartilhados (os significados dicionarizados da palavra). Com isso, reconhece-se que a

linguagem é, notadamente, um instrumento essencial de mediação da atividade humana e do

desenvolvimento das funções psíquicas superiores, desempenhando um papel importante na

comunicação, no planejamento da ação e, em especial, na autorregulação de conduta. Para

Leontiev (2004, p. 45), o significado “é um sistema estável de generalizações que se pode

encontrar em cada palavra igualmente para todas as pessoas”. Por ser construído social e

historicamente, o significado permite a comunicação humana, incidindo no nível semântico,

ou seja, no que a palavra quer dizer. No entanto, ele não é unívoco, pois sua interpretação está

condicionada pela cultura e também pela história pessoal de cada sujeito.

Assim, por conter as particularidades de cada ser humano, a palavra gera sentidos

próprios. A palavra “cadeira”, por exemplo, tem um significado comum, compartilhado por

todas as pessoas que falam português, que é relativamente estável na cultura brasileira. Nesse

sentido, essa palavra, por constituir uma generalização, é um conceito e, portanto, um

fenômeno do pensamento. Ao mesmo tempo, essa mesma palavra tem um sentido próprio

para cada pessoa. Sentidos e significados não podem ser entendidos, entretanto, como

aspectos estanques: eles são mutuamente constitutivos, um não existe sem o outro; cada um

carrega, em si, sua particularidade.

Os sentidos são mais amplos do que os significados porque se constituem com base na

experiência pessoal que subverte o significado instituído, compartilhado. São, portanto,

pessoais, apresentando-se como fluidos, idiossincráticos, inesgotáveis. Desenvolvidos no

decorrer da experiência pessoal, “constituem-se a partir do confronto entre os significados

sociais vigentes e a vivência de cada sujeito particular” (AGUIAR, 2001, p. 105). Resultantes

das relações dialéticas estabelecidas com o mundo social e histórico, os sentidos são

construções individuais, que adquirem valor único para o sujeito: são produções pautadas e

articuladas em suas condições de existência, nas experiências vividas, nas posturas adotadas.

29

É por isso que se supõe que os sentidos se aproximam do plano da subjetividade. Se os

significados são mais estáveis e compartilhados, são também mais restritos. Assim,

compreender o sujeito, sua subjetividade e seu processo de desenvolvimento requer

compreender seus sentidos e significados.

1.3 Atividade

O movimento de satisfação das necessidades humanas ocorre por meio da atividade,

categoria fundamental da Psicologia Sócio-Histórica, que se vincula ao processo de

humanização e à constituição da subjetividade:

Pela sua atividade, os homens não fazem, senão, adaptar-se à natureza. Eles

a modificam em função do desenvolvimento das suas necessidades. Criam os

objetos que devem satisfazer às suas necessidades e, igualmente, os meios de

produção desses objetos, dos instrumentos às máquinas mais complexas.

Constroem habitações, produzem as suas roupas e outros bens materiais. Os

progressos realizados na produção de bens materiais são acompanhados pelo

desenvolvimento da cultura dos homens; o seu conhecimento do mundo

circundante e deles mesmos enriquece-se, desenvolvem-se a ciência e a arte

(LEONTIEV, 1978, p. 265).

Assim, ao agir em determinada conjuntura histórica, o homem produz novas

necessidades que, para serem satisfeitas, requerem outras, em um processo dialético que

impulsiona o desenvolvimento do ser humano e de sua cultura. A título de exemplo: os

homens podem ter a mesma atividade concreta, como desenvolver um determinado tipo de

trabalho; mas essa atividade terá, para cada um deles, sentidos e significados distintos,

decorrendo daí que, ao suprir suas necessidades, as modificações objetivas da ação provocam

transformações subjetivas em cada trabalhador:

O homem, ao produzir os meios para satisfação de suas necessidades básicas

de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade,

humaniza a si próprio, na medida em que a transformação objetiva requer

dele uma transformação subjetiva. Cria, portanto, uma realidade humanizada

tanto objetiva quanto subjetivamente (DUARTE, 2006, p. 118).

Todo trabalho é uma atividade, mas nem toda atividade é um trabalho, pois este último

envolve três esferas distintas: a atividade pessoal do homem, aquilo sobre o qual o homem

trabalha e os meios que utiliza para tanto. Pode-se afirmar, portanto, que o trabalho é um

processo de mediação entre os sujeitos. Fundamentando-se na teoria de Marx, Vygotsky

30

(2001) defende uma estrutura triádica, representada pelo homem, o mundo e o instrumento,

mediante a qual o primeiro age fazendo uso de instrumentos que irão transformar a si mesmo

e ao mundo. No trabalho, a atividade medeia a relação homem-natureza, que não é uma

relação linear, direta, constituindo, antes, uma via de mão dupla, pois:

[...] o sujeito, ao agir diretamente ou indiretamente sobre o meio pela

atividade de trabalho, é, ao mesmo tempo, transformado por ele em função

dos efeitos e resultados de sua ação. Em segundo lugar, esta interação não se

dá a esmo. Ela é guiada por objetivos que o sujeito estabelece vis-à-vis seu

objeto de ação (FERREIRA, 2000, p. 74).

Leontiev (2004), em particular, debruça-se sobre o estudo das categorias atividade e

consciência. Interessa-se pelo processo por meio do qual a atividade leva à construção e ao

desenvolvimento da consciência humana, ou seja, como suas funções psíquicas são

desenvolvidas, investigando seu processo de constituição. Desenvolvendo algumas das ideias

de Vygotsky, Leontiev aponta que, para entender a consciência, é preciso compreender a

atividade; de igual modo, é central apreender os movimentos constitutivos da consciência. De

fato, quando se consideram essas duas instâncias – atividade e consciência –, torna-se possível

perceber as múltiplas determinações do sujeito. Ou seja, a atividade modifica a consciência –

uma unidade dialética, tensionada pela materialidade – e a consciência modifica a atividade.

Assim, a análise da atividade revela-se central, na medida em que aquilo que o sujeito realiza

– ou seja, aquilo que ele faz em determinado momento – constitui a matéria-prima para a

análise do desenvolvimento da consciência.

1.4 Yves Clot e as categorias de análise da clínica da atividade

Apoiando-se nas ideias de Amalberti e Hoc e (1998), Clot (2006, p. 24) define a

atividade como um conjunto de “operações manuais e intelectuais realmente mobilizadas a

cada instante pelo trabalhador para atingir seus objetivos”. Para o autor, é por ela e nela que o

homem atua sobre outros homens e sobre a natureza, transformando-a e sendo por ela

dialeticamente transformado. No processo de humanização, aquilo que se supunha ser a

natureza humana converte-se em condição humana, uma condição que é continuamente

construída e supera as determinações biológicas: a constituição do humano leva à organização

de sociedades ao longo da história, produzindo meios de agir, pensar e sentir, ou seja, sujeitos

que, de igual modo, constroem, para si, uma história.

Inspirado, portanto, pelos pressupostos da Psicologia Sócio-Histórica, da Ergonomia

francesa atual e da Psicopatologia do Trabalho, Clot (2006) e colaboradores tomam como

31

objeto de estudo o trabalho e sua função psicológica e dedicam-se a analisar a atividade,

visando que o trabalhador e seu grupo profissional possam aumentar seu poder de ação por

meio da autoconfrontação, o que, por sua vez, permitiria que suas atividades e eles próprios se

transformassem. Para tanto, Clot (2006) elabora três conceitos que norteiam a análise da

atividade: a) trabalho prescrito ou tarefa; b) atividade realizada; c) real da atividade. O

trabalho prescrito refere-se a tudo aquilo que é esperado que o trabalhador faça, isto é, aquilo

que deve ser feito e para o qual a pessoa é contratada. No entanto, Flottès (2001, p. 60) 8

ressalta que, embora todo trabalho implique uma prescrição, ela nem sempre é seguida, pois

“o trabalho realizado nunca é o trabalho prescrito. Não porque a prescrição não seja adequada,

mas porque ela é geral; o trabalho cotidiano é multiforme, com variáveis que se modificam

constantemente”.

O conceito de atividade realizada refere-se ao que o sujeito realmente faz, ao que pode

ser diretamente observado. Ao passo que o real da atividade caracteriza-se por tudo aquilo que

não se fez, mas que se desejaria ou se poderia ter feito. Nas palavras de Clot (2010, p. 104), o

real da atividade é “o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido; é o que se pensa ser capaz de

fazer noutro lugar; o que se faz para evitar fazer o que deve ser feito; o que deve ser refeito e

o que se fez a contragosto”. Nota-se, assim, que o autor amplia a noção de atividade proposta

por Leontiev (2004) e atenta, ao assim agir, para o fato de a atividade não se resumir ao que

foi efetivamente realizado (observado): ela envolve, também, o que não foi realizado e que,

portanto, não pode ser observado. Clot amplia os aspectos constituintes dessa categoria,

tornando mais complexa sua análise, uma vez que aquilo que não foi feito em um dado

momento torna-se também um objeto de estudo.

Ao articular as ideias acerca do campo profissional, o autor postula dois outros

conceitos que podem auxiliar a análise da atividade: o gênero e o estilo. O primeiro refere-se

ao conjunto de atividades vinculadas a uma profissão e que tem, também, sua história; ou

seja, o gênero refere-se aos diversos modos pelos quais a atividade vem sendo realizada ao

longo do tempo. Nesse sentido, o gênero relaciona-se a uma memória impessoal:

8 “le travail qui est réellement fait n’est jamais le travail qui est prescrit. Ne pas parce que la prescription n’est

pas bonne, mais parce qu’elle est général et que le travail quotidien est multiforme, qu’il varie sans cesse”

(tradução nossa).

32

[...] é a história de um grupo e memória impessoal de um local de trabalho.

[...] mas sempre se tratará das atividades ligadas a uma situação, das

maneiras de “apreender” as coisas e as pessoas num determinado meio. A

esse título, como instrumento social da ação, o gênero conserva a história

(CLOT, 2006, p. 38).

Fica claro, dessa maneira, que é por meio do gênero que o profissional sabe o que dele

se espera, implícita e explicitamente, em uma determinada área ou assunto. Darré (1994 apud

CLOT, 2006, p. 47) salienta que “os gêneros assinalam a pertença a um determinado grupo e

orientam a ação, oferecendo uma forma social de (re)apresentá-la”. Como história de um

grupo profissional, o gênero está sempre em construção e, não obstante, destaca-se por ser o

principal norteador da atividade nas situações em que ela é requerida, possibilitando ao

trabalhador “saber o que é possível – ou não – esperar em uma dada situação. É uma memória

que não se refere apenas ao passado, pois serve, também, para prever o futuro, para antecipar

ações, permitindo ao trabalhador evitar possíveis erros no exercício da atividade de trabalho”

(MURTA, 2008, p. 63). Tensionado pelo movimento dialético, o gênero, a despeito de ser

historicamente constituído, modifica-se sem cessar, formando um sistema indeterminado, com

variantes flexíveis. Esse conceito diz respeito, assim, aos modos de ação, considerando os

objetivos propostos. Nesse sentido, o gênero é definido pelo conjunto dos trabalhadores de

uma determinada profissão:

Trata-se de regras de vida e de ofício destinadas a conseguir fazer o que há

de fazer, maneiras de fazer na companhia dos outros, de sentir e de dizer,

gestos possíveis e impossíveis dirigidos tanto aos outros como ao objeto.

Trata-se por fim das ações que um dado meio nos convida a realizar e

aquelas que ele designa como incongruentes ou fora de lugar; o sistema

social das atividades reconhecidas ou interditas num dado meio profissional.

Ele não regula diretamente as relações entre as pessoas, mas antes as

relações entre profissionais, ao fixar o “espírito” dos lugares como

instrumento da ação: diz, sem o dizer, o que deve fazer em tal ou qual

situação, o suposto desconhecido que jamais vamos conhecer. Ele representa

o sistema simbólico com que a ação individual deve relacionar-se (CLOT,

2006, p. 50).

O estilo, por sua vez, diz respeito à possibilidade de o trabalhador libertar-se do gênero

e, consequentemente, poder agir segundo sua própria maneira ao executar uma dada atividade.

Para o autor, o estilo “é o movimento mediante o qual esse sujeito se liberta do curso das

atividades esperadas, não as negando” (CLOT, 2006, p. 50), mas desenvolvendo-as de outra

forma. Esse conceito indica, também, o distanciamento entre o sujeito e seu trabalho, ou seja,

daquilo que havia sido delineado pelo gênero, evidenciando o quanto as ações são flexíveis e

as numerosas possibilidades de realização. Se o estilo é interessante, ou seja, se torna a

33

atividade mais eficaz ou mais rápida ou, ainda, mais agradável de ser cumprida, indica uma

nova qualidade do trabalho. Desse modo, se o estilo é um jeito próprio de fazer o que deve ser

feito, revela os aspectos subjetivos daqueles envolvidos na atividade, justamente por se referir

à maneira pessoal pela qual o sujeito realiza aquilo que é dele esperado com base nas

prescrições do trabalho e nas determinações do gênero. Nessa medida, pode-se dizer que

ambos – gênero e estilo – formam uma unidade, são interdependentes.

Todas essas categorias não podem ser pensadas e analisadas de modo fragmentado.

Elas foram, aqui, separadas intencionalmente, para efeitos de discussão e análise dos

postulados da Psicologia Sócio-Histórica. Desse modo, como foi visto ao longo deste

capítulo, o ser humano desenvolve-se em contato com o mundo, por meio de sua atividade,

fazendo uso da linguagem e das diversas redes de mediação que lhe permitem estabelecer

contato com a realidade objetiva. A atividade, marcada pelo movimento dialético, traz à tona

possibilidades de novos conhecimentos e, portanto, de mudanças, abrindo espaço não só para

a transformação do indivíduo, como também para a do próprio mundo que o cerca.

Considerado esse potencial de mudança da atividade, as categorias aqui descritas serão as

mediadoras do processo construtivo e interpretativo do presente estudo.

34

2 Formação de professores e o Programa Ler e Escrever

Pensar a educação a partir da unidade escolar como uma unidade

sociológica, que tem uma função social a cumprir, é extremamente

importante. Ela congrega as crianças e, por seu intermédio, a família; ela

congrega os docentes que vão ali trabalhar; os especialistas; o diretor. E é

nela que as políticas públicas se concretizam da maneira como

historicamente isso é possível, porque é no fazer cotidiano que nós estamos

agindo, podendo transformar as coisas (GATTI, 2008, s/p.)

Nos últimos 30 anos, mudanças sociais, políticas e econômicas têm exercido forte

influência nas discussões sobre o campo da educação no Brasil, em especial no que tange à

melhoria da qualidade do ensino. No bojo desse debate, está a formação continuada do

professor – como atesta o crescimento “da produção científica sobre o tema, na visibilidade

adquirida pela temática na mídia, pelo recente surgimento de eventos e publicações

especificamente dedicadas às questões” da área (ANDRÉ, 2010, p. 174). A urgência na

melhoria da qualidade do ensino tem como pano de fundo um momento historicamente

determinado, mais especificamente as décadas de 1970/80, quando o direito à educação foi

ampliado a praticamente todos os brasileiros, provocando “um crescimento jamais assistido

da rede pública de ensino.” No entanto, essa ampliação “da estrutura educacional no país se

deu de maneira desordenada e pouco planejada” (OLIVEIRA et al., 2009, p. 2).

Se, por um lado, as políticas públicas estavam cada vez mais focadas em garantir o

acesso à educação; por outro, a elevação dos índices de repetência e evasão escolar não

negavam o descontentamento da sociedade com o trabalho desenvolvido pelas escolas e,

consequentemente, pelos professores, como indicam os Parâmetros curriculares nacionais

(BRASIL, 1997). Todas essas questões exigem uma reflexão sobre o papel da escola, das

metodologias de ensino, do percurso profissional do professor e, mais especificamente, de sua

formação e de suas concepções sobre o processo de ensino-aprendizagem.

Os fatores que afetavam – e ainda afetam – diretamente o trabalho do professor

centram-se: na desvalorização de sua profissão, na quantidade excessiva de alunos por turma,

na falta de condições materiais e físicas de trabalho etc., que, articulados à precariedade da

formação (inicial e continuada) docente, têm “criado grande desânimo no professorado e

insatisfação com os resultados de seu trabalho. Tudo isso acaba por gerar um grande desgaste

nas relações internas da escola, com impacto na escolha pelo magistério por parte dos alunos

que ingressam na universidade” (DAVIS; AGUIAR 2010, p. 234). Nessa perspectiva, a

compreensão da formação docente é permeada, sobretudo, pelo papel da escola na atualidade.

35

Dessa maneira, a prática escolar, considerada um espaço privilegiado de construção crítica de

conhecimentos e socialização:

[...] distingue-se de outras práticas educativas, como as que acontecem na

família, no trabalho, na mídia, no lazer e nas demais formas de convívio

social, por constituir-se uma ação intencional, sistemática, planejada e

continuada para crianças e jovens durante um período contínuo e extenso de

tempo. A escola, ao tomar para si o objetivo de formar cidadãos capazes de

atuar com competência e dignidade na sociedade, buscará eleger, como

objeto de ensino, conteúdos que estejam em consonância com as questões

sociais que marcam cada momento histórico, cuja aprendizagem e

assimilação são as consideradas essenciais para que os alunos possam

exercer seus direitos e deveres. Para tanto ainda é necessário que a

instituição escolar garanta um conjunto de práticas planejadas com o

propósito de contribuir para que os alunos se apropriem dos conteúdos de

maneira crítica e construtiva. A escola, por ser uma instituição social com

propósito explicitamente educativo, tem o compromisso de intervir

efetivamente para promover o desenvolvimento e a socialização de seus

alunos (BRASIL, 1997, p. 34-35).

Para que a escola consiga atingir seu objetivo – formar cidadãos capazes de atuar com

base em conhecimentos, tomar decisões adequadas, agir com dignidade na sociedade –, o

papel do professor na educação formal é central: cabe a ele a mediação entre os

conhecimentos historicamente acumulados em uma determinada sociedade e o aluno em

processo de formação, como bem aponta Basso (1998, p. 22):

A mediação realizada pelo professor entre o aluno e a cultura apresenta

especificidades, ou seja, a educação formal é qualitativamente diferente por

ter como finalidade específica propiciar a apropriação de instrumentos

culturais básicos que permitam elaboração de entendimento da realidade

social e promoção do desenvolvimento intelectual. Assim, a atividade do

professor é um conjunto de ações intencionais, conscientes, dirigidas para

um fim específico.

Com as pesquisas realizadas sobre o trabalho docente, o fracasso escolar e a qualidade

de ensino, muito se têm discutido a importância do papel da formação continuada de

professores e seu impacto no trabalho pedagógico (KRAMER, 1989; NÓVOA, 1996;

PATTO, 1999; GATTI, 2003; ANDRÉ, 2010; DAVIS; AGUIAR, 2010). No entanto, embora

tais estudos salientem o montante de recursos públicos investidos para esse fim e a

importância da formação docente (tanto inicial quanto continuada), notam-se os limites de tais

programas, como bem mostra Gatti (2003, p. 192):

36

As limitações dessa concepção têm sido tratadas pelas pesquisas e literatura

em psicologia social, que chamam a atenção para o fato de que esses

profissionais são pessoas integradas a grupos sociais de referência, nos quais

se gestam concepções de educação, de modos de ser, que se constituem em

representações e valores que filtram os conhecimentos que lhes chegam. Os

conhecimentos adquirem sentido ou não, são aceitos ou não, incorporados ou

não, em função de complexos processos não apenas cognitivos, mas,

socioafetivos e culturais. Essa é uma das razões pelas quais tantos programas

que visam a mudanças cognitivas, de práticas, de posturas, mostram-se

ineficazes.

Para a autora, a eficácia dos cursos de formação continuada vincula-se a propostas que

considerem as condições sociais, históricas, políticas, culturais e pessoais dos professores, o

que, contudo, poderia não garantir um processo de mudança eficaz, uma vez que é necessário

alcançar “uma integração na ambiência de vida e trabalho daqueles que participarão do

processo formativo” (GATTI, 2003, p. 197). Embora os PCN (BRASIL, 1997, p. 25)

delimitem que “a formação não pode ser tratada como um acúmulo de cursos e técnicas, mas,

sim, como um processo reflexivo e crítico a respeito da prática educativa”, as propostas de

formação continuada não suprem por completo as necessidades do professorado, uma vez que

se distanciam da realidade por eles vivida no cotidiano escolar e, por isso, há pouca utilização

dos conhecimentos adquiridos nesses cursos no decorrer de suas atividades docentes

(AZANHA, 1998). Além de considerar os aspectos anteriormente arrolados, cabe, também,

destacar a escola, seus protagonistas, suas possibilidades objetivas (espaço físico,

disponibilidade de materiais, entre outros), bem como as relações interpessoais nela presentes

e a relação mantida com sua comunidade, dado que “investir no desenvolvimento profissional

dos professores é, também, intervir em suas reais condições de trabalho” (BRASIL, 1997, p.

25).

Ao questionarem os entraves encontrados na formação de professores (inicial e

continuada) na atualidade, Davis e Aguiar (2010, p. 234) corroboram com Gatti (2003) ao

afirmarem que, além de melhorias nas condições de trabalho, seria conveniente considerar as

experiências e as histórias profissional e pessoal dos professores. No entanto, alertam que a

desvalorização da profissão docente ocorre porque:

[...] falta entrosamento da teoria com a prática, aspecto que acaba fazendo da

docência uma profissão sem conhecimentos aprofundados, sem método,

voltada para um aluno idealizado. Tudo isso redunda, como seria de se

esperar, na visão de que o magistério é uma profissão de menor categoria e

de que aqueles que a exercem não podem, portanto, ser profissionais

valorizados. Estágios sem planejamento e sem supervisão, pouca clareza

acerca do que vem a ser um trabalho docente eficaz, fronteiras difusas

ocultando as especificidades da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e

37

do Médio só fazem agravar a pouca ou nenhuma ênfase dada à função social

da escolarização: transmitir às novas gerações os conhecimentos socialmente

produzidos e, nesse movimento, consolidar valores e práticas centrais para o

convívio humano respeitoso.

Ao analisar aspectos teóricos e históricos da formação de professores no Brasil,

Saviani (2009, p. 154) ressalta, igualmente, a desvalorização da profissão docente na

atualidade. A defasagem salarial e as más condições de trabalho não tornam o ofício atraente

para jovens que estão buscando uma profissão. Para o autor, a situação poderia ser distinta se

a docência:

[...] fosse transformada numa profissão atraente socialmente, em razão da

sensível melhoria salarial e das boas condições de trabalho, pois para ela

seriam atraídos muitos jovens dispostos a investir seus recursos, tempo e

energias numa alta qualificação, obtida em graduações de longa duração e

em cursos de pós-graduação.

Da mesma forma, Cericato (2010, p. 211), interessada em analisar os sentidos da

profissão docente, evidencia a importância das condições objetivas para o bom

desenvolvimento da atividade docente – salários condignos, jornadas adequadas de trabalho,

profissionalização e a perspectiva de seguir uma carreira atraente. Anuncia, ainda, que as

mudanças nos processos de desenvolvimento profissional decorrem da reconstrução do papel

do professor, apontando que “a profissão docente não se assumiu como profissão”. Ao

discutir a autonomia das instituições de ensino, Gadotti (2000) reafirma serem elas um local

privilegiado de formação – de alunos e professores – bem como de desenvolvimento de novas

concepções e práticas. Ao problematizar a autonomia9 das instituições de ensino, o autor

aponta que muitos são os ganhos quando se consegue desenvolver, na própria unidade escolar,

propostas novas, lúcidas e factíveis. Estratégias inovadoras, registros de observação e

encontros coletivos, sistematização de práticas e experiências adquiridas são elementos

9 A Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996) prevê o exercício da autonomia nas escolas e propõe as seguintes

determinações e princípios:

“Art. 14 - Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação

básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I. Participação dos

profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola. II. Participação das comunidades

escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Art. 15 - Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram

progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas de

direito financeiro público.”

Entretanto, no Brasil, não há uma tradição e tampouco um esforço coletivo que vislumbre a importância do

trabalho colaborativo na e para a escola. As reuniões de pais e os momentos de discussão entre os professores,

gestores e a comunidade não se dirigem à busca de soluções e enfretamento dos dilemas da comunidade.

38

mediadores que favorecem a construção do conhecimento do professorado. Nesse sentido, o

docente:

[...] é um mediador do conhecimento, diante do aluno que é o sujeito da sua

própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e,

para isso, também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e

apontar novos sentidos para o que fazer dos seus alunos. Em geral, temos a

tendência de desvalorizar o que fazemos na escola e de buscar receitas fora

dela quando é ela mesma que deveria governar-se. Inovar é mais importante

do que reproduzir com qualidade o que existe (GADOTTI, 2000, p. 8).

É indispensável, portanto, que os professores exerçam uma constante reflexão crítica

sobre seu papel e seu trabalho. Por meio do questionamento e da busca por novos caminhos, a

prática pode ser paulatinamente transformada, afastando-se de modelos do tipo “receitas

prontas”, ou seja, de práticas anteriores que foram positivas em um dado momento ou

contexto, mas que não funcionam de maneira adequada no momento e contexto atuais. Diante

disso, cabe olhar para a comunidade escolar e para os que nela atuam (gestores e professores),

a fim de identificar o foco mais adequado de um trabalho de formação docente, indagando-se

acerca das idiossincrasias desses agentes e discutindo ideias e práticas coletivas que possam

beneficiar a comunidade em questão.

Como alternativa para escapar de processos formativos que engessam o trabalho do

professor, Kramer (1989) salienta que o conhecimento não é algo que se esgota. Não é,

também, construído linearmente: a troca de ideias e a reavaliação coletiva do trabalho dos

docentes são fundamentais. Assim, segundo a autora:

[...] o conhecimento não é algo estático, acabado e definitivo, sua renovação

deve perpassar a prática e vice-versa, num movimento dialético de

realimentação de ideias pela prática e da prática pelas ideias. Mas, para que

isso ocorra torna-se fundamental a reavaliação crítica conjunta do trabalho

dos professores e da equipe escolar, através de um intercâmbio constante de

conhecimentos e ideias (KRAMER, 1989, p. 198).

Do mesmo modo, ao analisar os programas de formação continuada no Brasil,

Celegatto (2008) sugere novos rumos para a elaboração de propostas que possam aprimorar a

docência. Para tanto, destaca três aspectos igualmente importantes – o lócus da formação, os

saberes docentes e o ciclo de vida dos professores:

O lócus da formação deve ser a própria escola; o processo de formação

continuada tem que ter como referência o saber docente, reconhecendo e

valorizando esse saber; para uma formação continuada adequada devem-se

ter presentes as diferentes etapas do desenvolvimento do magistério, pois

não é possível tratar do mesmo modo o professor em fase inicial do exercício

profissional, aquele com mais experiência e aquele que caminha para a

39

aposentadoria. Tanto os problemas, as necessidades, quanto os desafios são

diferentes em cada etapa, de modo que o programa de formação continuada

não deveria ignorar tais divergências, promovendo situações homogêneas e

padronizadas (CELEGATO, 2008, p. 31-32).

Candau (1996) aponta que sempre se ganha quando a proposta é desenvolvida na

própria instituição à qual o professor se vincula, uma vez que assim se torna possível:

aliar o processo formativo às situações cotidianas da escola, sem o necessário

deslocamento do professor para outros locais;

trocar ideias e refletir com o grupo (direção, coordenação pedagógica e

professores) em momentos de trabalho coletivo, pois isso favorece a análise

das práticas adotadas e dos entraves encontrados pelos docentes no decorrer de

suas atividades;

organizar-se, espacial e temporalmente, para as atividades, seguindo o fluxo

das necessidades do grupo em questão;

favorecer a socialização de práticas que podem ser repensadas, discutidas e

novamente sistematizadas;

possibilitar a reconfiguração do trabalho de supervisão e orientação

educacional.

Efetivamente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) reafirmam:

[...] a importância de que cada escola formule seu projeto educacional,

compartilhado por toda a equipe, para que a melhoria da qualidade da

educação resulte da corresponsabilidade entre todos os educadores. A forma

mais eficaz de elaboração e desenvolvimento de projetos educacionais

envolve o debate em grupo e no local de trabalho (BRASIL, 1997, p. 40).

No que concerne aos saberes e à formação docentes, Nunes (2001, p. 27) considera

que, no decorrer da vida profissional, o professor “constrói e reconstrói seus conhecimentos

conforme a necessidade de sua utilização, suas experiências, seus percursos formativos e

profissionais”. Aponta, ainda, que os conhecimentos específicos – referentes ao conteúdo a

ser ensinado – vão se constituindo na e pela reflexão sobre a prática, que, aliada às

concepções teóricas, favorece o desenvolvimento de novas estratégias de atuação. Em

especial, aqueles advindos da experiência – ou seja, construídos na e pela prática – são

igualmente importantes, pois orientam o posicionamento do professor e suas decisões

pedagógicas, permitindo-lhe modificar, adaptar e reorganizar sua atividade diante das

situações vividas no dia a dia em sala de aula. Para Tardif, Lessard e Lahaye (1991, p. 234),

os saberes da experiência:

40

[...] surgem como núcleo vital do saber docente, a partir do qual o(a)s

professor(a)s tentam transformar suas relações de exterioridade com os

saberes de interioridade em sua própria prática. Nesse sentido, os saberes da

experiência não são saberes como os demais: eles são, ao contrário,

formados de todos os demais, porém retraduzidos, “polidos” e submetidos às

certezas construídas na prática e no vivido.

Sobre o ciclo de vida profissional dos professores, Huberman (1992) desenvolveu um

amplo estudo na Suíça, que contou com a participação de 160 docentes secundaristas,

escolhidos mediante o critério de tempo de trabalho em sala de aula, o qual variava de cinco a

40 anos. Por meio dessa pesquisa, o autor identificou cinco fases da vida profissional do

professor, a saber: (i) a entrada na profissão; (ii) a estabilização ou o momento marcado pela

segurança; (iii) a diversificação ou experimentação, (iv) a busca pela estabilidade profissional

e, finalmente, (v) a preparação para a aposentadoria. Apesar de ser possível analisar e

identificar essas etapas, o autor alerta não ser esse um processo linear e, notadamente, o fato

de que não se deve considerá-lo uma sucessão de fatos e acontecimentos, uma vez que no

decorrer da história de profissionalização do docente “há oscilações, regressões, becos sem

saída, declives, descontinuidades” (HUBERMAN, 1992, p. 38).

A formação continuada, quando realizada na própria instituição escolar, possibilita aos

professores o processo de ação-reflexão-ação, facilita a tomada de decisões de forma

colaborativa e no próprio fluxo de suas experiências, dado que os saberes docentes (os

específicos e os advindos da prática) são tidos como o eixo norteador do movimento de

construção de novas ideias e práticas. Considerar, portanto, o ciclo de vida profissional dos

professores amplia a possibilidade de propor novas situações que contemplem os diferentes

momentos do desenvolvimento profissional, satisfazendo, na docência, suas necessidades

específicas. Num programa voltado para o desenvolvimento profissional, a preocupação com

os fatores acima descritos estabelece o desafio de romper com modelos padronizados para

criar propostas eficazes, que contemplem as necessidades do professorado. Contudo, Azanha

(2004, p. 365) pondera que:

Nenhuma metodologia, abstratamente formulada e ensinada, dará respostas

aos problemas que o professor vive cotidianamente na sua escola, e nem

adianta reunir algumas dezenas de professores de uma mesma disciplina

como se eles fossem um grupo de pessoas que enfrentam os mesmos

problemas. Cada escola tem características pedagógico-sociais irredutíveis

quando se trata de buscar soluções para os problemas que se vive.

Objetivando desvelar os sentidos atribuídos pelos professores à formação continuada,

Altenfelder (2004) também defende a escola como um espaço privilegiado para processos

41

formativos. Destaca o trabalho coletivo como um dos principais caminhos para lidar com os

desafios que os tempos atuais e a própria escola impõem. Para a autora, “a formação

continuada de professores deve concentrar-se no trabalho docente e nas relações que se

estabelecem na escola, o que resgata o próprio espaço escolar como lócus importante de

formação continuada” (ALTENFELDER, 2004, p. 151). Interessado em analisar as tendências

da formação permanente do professorado nos dias de hoje, Imbernón (2009) salienta a

influência das mudanças sociais, que levam os docentes a sentirem intensa necessidade de

trabalhar em equipe, em um clima de colaboração (gestores-professores-comunidade),

seguindo propostas formativas que considerem seu lado profissional e pessoal. Acrescenta a

necessidade de intercâmbio entre a escola e os demais centros de formação, bem como do

exercício, na escola, de práticas inovadoras, pois é ela o lócus privilegiado para a gestação, o

planejamento e a realização de processos formativos.

Para que melhores resultados sejam alcançados no campo da educação brasileira,

segundo os estudos analisados, faz-se importante, portanto, ponderar os fatores acima

destacados, mais especificamente, a proposição de programas ou projetos de formação

continuada que considerem as diversas facetas que permeiam as atividades docentes e seu

desenvolvimento profissional. Com objetivo de melhor compreender uma das ações atuais da

Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para a reversão do quadro de fracasso escolar

nas séries iniciais do ensino fundamental, serão detalhados a seguir os constituintes do

programa de formação continuada Ler e Escrever.

2.1 O Programa Ler e Escrever

Almejando alcançar a melhoria da qualidade do ensino no Brasil, diversas propostas

que focam o desenvolvimento profissional dos professores têm sido realizadas pelo Ministério

da Educação (MEC) em conjunto com as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação

desde a década de 1990: TV Escola,10

Proinfo,11

Parâmetros em Ação,12

Profa,13

Letra e Vida,

10

A TV Escola é uma ferramenta destinada “aos professores e educadores brasileiros, aos alunos e a todos

interessados em aprender”. Com programação voltada à educação, “a TV Escola é uma política pública em si,

com o objetivo de subsidiar a escola e não substituí-la. E, em hipótese alguma, substitui também o professor.”. O

objetivo principal é oferecer aos docentes oportunidades de complementar sua formação e suas práticas de

ensino: “para todos que não são professores, a TV Escola é um canal para quem se interessa e se preocupa

com a educação ou simplesmente quer aprender.” (MEC, 2013, s/p, grifo nosso).

42

14 Ler e Escrever, entre outros. De fato, os dados advindos do Sistema Nacional de Avaliação

da Educação Básica (SAEB, 2005) sobre a alfabetização eram e continuam sendo alarmantes:

em algumas escolas, 30% dos alunos, ao final do terceiro ano, não haviam dominado o

sistema de leitura e escrita. Para reverter esse quadro até o ano de 2010, o governador do

estado de São Paulo anunciou dez metas que se centravam na(o):

1. alfabetização de todos os alunos até o final do segundo ano de

escolaridade;

2. redução em 50% da taxa de reprovação na 8ª série;

3. redução em 50% da taxa de reprovação no ensino médio;

4. implementação de programas de recuperação de aprendizagem nas séries

finais de todos os ciclos;

5. aumento de 10% nos índices de desempenho do ensino fundamental e

médio nas avaliações nacionais e estaduais;

6. atendimento da demanda de jovens e adultos por ensino médio com um

currículo profissionalizante diversificado;

7. implementação do ensino fundamental de nove anos, com prioridade à

municipalização das séries iniciais (1ª à 4ª);

8. oferta de programas de formação continuada e de capacitação das equipes

de ensino;

9. descentralização da merenda escolar nos 30 municípios que ainda não

tinham aderido ao programa;

10. realização de obras de melhorias na infraestrutura nas escolas (PALMA

FILHO, 2010, p. 166).

Para que tais metas pudessem ser alcançadas, diversas e variadas ações começaram a

vigorar na rede estadual paulista, com maior ênfase sendo dada às seguintes:

1. Incentivos, política de bonificação e avaliação de desempenho;

2. Programa Ler e Escrever – Formação Continuada, orientação curricular

(propostas curriculares), professor auxiliar na 1ª série e material de apoio a

alunos e professores – 1ª a 4ª séries do ensino fundamental;

11

O Programa Nacional de Tecnologia Educacional tem como objetivo incentivar e promover o uso da

informática como ferramenta pedagógica na educação básica oferecida nas escolas públicas. Os materiais –

conteúdos educacionais, computadores e recursos digitais – são distribuídos às escolas, mas cabe aos estados e

aos municípios “garantir a estrutura adequada para receber os laboratórios e capacitar os educadores para uso das

máquinas” (MEC, 2013, s/p).

12 Esse programa, como ferramenta que buscava o desenvolvimento profissional de professores, tinha como

premissas subsidiar o debate, a reflexão sobre a escola e o desenvolvimento da atividade docente. Sua finalidade

era oferecer aos professores alternativas para compreender as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Infantil e o Ensino Fundamental e facilitar a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

13 O Programa de Formação de Professores Alfabetizadores, orientado pelo pressuposto construtivista e pelas

ideias de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, buscava formar o professor para a compreensão dos “processos de

aprendizagem da leitura e da escrita e de como organizar, a partir desse conhecimento, situações didáticas

adequadas às necessidades de aprendizagem dos alunos e pautadas pelo modelo metodológico de resolução de

problemas” (MEC, 2001, p. 6).

14 Esse programa de formação continuada teve como base o ideário construtivista, amparando-se, também, nas

ideias de Ferreiro e Teberosky.

43

3. Programa São Paulo faz Escola – novo currículo e material de apoio a

alunos e professores – 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio.

São as propostas curriculares encaminhadas às escolas no início do ano

letivo de 2008;

4. Recuperação da aprendizagem – intensiva nas primeiras seis semanas e

paralela ao longo do ano;

5. Criação de função gratificada para professor coordenador pedagógico;

6. Concurso para supervisores e revisão de suas atribuições;

7. Estágio probatório para os novos ingressantes na carreira;

8. Nova gratificação para diretores, vices e supervisores (PALMA FILHO,

2010, p. 166).

Como política pública, o Programa Ler e Escrever – elaborado pela Secretaria da

Educação (SEE) do Estado de São Paulo – tem o mesmo intuito: modificar os resultados

negativos encontrados no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São

Paulo (Saresp). Voltados ao desenvolvimento profissional do professor alfabetizador, os

pressupostos teórico-metodológicos desse programa sustentam-se nas concepções

construtivistas15

de educação, principalmente os da psicogênese da língua escrita. A utilização

do método construtivista para a alfabetização fundamenta-se nas ideias de Emilia Ferreiro e

Ana Teberosky (1985), mais especificamente em 1980, em um contexto de transição social,

política e econômica marcado, no Brasil, pela ditadura militar e pela implantação da

democracia. De origem piagetiana, seus estudos influenciaram fortemente as concepções de

alfabetização no país.

As principais características dos conceitos propostos por Ferreiro e Teberosky pautam-

se na ideia de que as crianças têm capacidade de desenvolver raciocínios e concepções sobre a

escrita, “utilizando-as para entender o mecanismo de funcionamento da língua escrita no

processo de aprendizagem da leitura e da escrita.” Com a mediação do professor, as crianças

são incentivadas a construir conhecimentos da língua escrita, com base em suas experiências

prévias, “a qual se dá por sucessão de etapas, cada uma delas representando um estágio

importante do processo”. No decorrer dessa aprendizagem, os sujeitos e as informações das

quais dispõem têm papel central uma vez que “a interpretação do processo é explicada do

ponto de vista das crianças que aprendem, levando-se em consideração o conhecimento

específico que possuem antes de iniciar a aprendizagem escolar, a saber: a escrita não

representa apenas um traço ou marca, mas sim um objeto substituto” (MELLO, 2007, p. 90).

15

O movimento construtivista busca quebrar o paradigma da educação bancária e da simples transferência de

conhecimento; objetiva, ainda, acurar o olhar dos professores para os movimentos de aprendizagem de cada

aluno, levando em consideração seus conhecimentos prévios e seu papel ativo no processo de ensino-

aprendizagem.

44

O Programa “Ler e Escrever – Prioridade na Escola Municipal” iniciou no ano de

2006 na rede escolar municipal da cidade de São Paulo. Posteriormente, estendeu-se para todo

o Estado, sempre buscando reverter o quadro de fracasso escolar no âmbito da alfabetização.

Propõe, para tanto, “um conjunto de ações cujo objetivo é fazer avançar a qualidade do ensino

oferecido em cada escola” (WEISZ, 2010, p. 21). O guia para o planejamento do professor

alfabetizador, do projeto “Toda Força ao 1° Ano”, apresenta uma definição clara sobre os

objetivos do Programa Ler e Escrever. Ao destacar a principal tarefa do ensino fundamental,

alerta que:

[...] o desafio colocado por este Programa é grande: a formação de alunos

leitores e escritores. Este não é só um dos grandes objetivos da nossa Rede,

mas também de toda a sociedade. Afinal, aprender a ler e escrever, na escola,

é uma condição indispensável para os alunos prosseguirem com sucesso na

sua formação escolar e no seu desenvolvimento profissional. É condição

essencial para que possam atuar como cidadãos e, assim, ter acesso à cultura

letrada e usufruir plenamente dela nas situações de trabalho, de lazer e na

resolução de questões de seu cotidiano (SME/DOT, 2006, s/p).

Consoante aos objetivos acima destacados, algumas ações e medidas foram adotadas

para o desenvolvimento da proposta, tais como:

um estudante universitário do curso de Pedagogia ou Letras atuaria em

conjunto com o professor regente de classe no 1° ano do ciclo I para auxiliá-lo

no processo de alfabetização do grupo de alunos;

a formação de professores e coordenadores ocorreria nas próprias escolas em

que atuavam;

para os alunos retidos ao final do 4° ano letivo do ciclo I, seriam oferecidas 30

horas de aula semanais, além da grade prevista;

as práticas de leitura e escrita fariam parte do trabalho dos professores de todas

as áreas de conhecimento.

No ano de 2007, a SEE anunciou um plano para a melhoria da qualidade do ensino no

âmbito estadual: “como o Estado de São Paulo venceu o desafio da inclusão, com 98,6% das

crianças de 7 a 14 anos em escola e 90% dos jovens de 15 a 17 anos estudando — o objetivo

agora é melhorar a aprendizagem e, para isso, aprimorar cada vez mais a qualidade do ensino

oferecido” (SEE, 2007, p. 6). A resolução da SEE – 86, de 19/12/2007, publicada no Diário

Oficial do Estado de São Paulo de 21/12/2007, instituiu para o ano de 2008 “o Programa Ler e

Escrever no Ciclo I das Escolas Estaduais de Ensino Fundamental das Diretorias de Ensino da

45

Coordenadoria de Ensino da Região Metropolitana da Grande São Paulo”. Os objetivos gerais

do Programa eram: a) alfabetizar, até 2010, todos os alunos com idades de até oito anos,

matriculados em escolas da rede; e b) recuperar a aprendizagem da leitura e da escrita dos

alunos de todas as séries do ciclo I. A proposta desse Programa para as escolas levou em

conta fatores importantes, tais como a:

urgência em solucionar as dificuldades apresentadas pelos alunos de Ciclo

I em relação às competências leitoras e escritoras, expressas nos resultados

do SARESP 2005;

necessidade de promover a recuperação da aprendizagem de leitura e

escrita dos alunos de todas as séries do Ciclo I;

imprescindibilidade de se investir na efetiva melhoria da qualidade de

ensino nos anos iniciais da escolaridade (SÃO PAULO, 2007).

Por meio da experiência previamente adquirida com o Programa “Letra e Vida” – que

tinha como pressupostos epistemológicos a psicogênese da língua escrita –, o Ler e Escrever

tornou-se prioridade da gestão governamental, passando a vigorar nas escolas estaduais

paulistas. Para que essa proposta pudesse ser levada adiante, um conjunto de ações gerais e

específicas foi proposto pela SEE e, igualmente, publicado em 21/12/2007 no Diário Oficial

do Estado de São Paulo. O objetivo era oferecer: a) formação aos supervisores, diretores e

assistentes técnico-pedagógicos (ATP) – o trio gestor; b) formação do professor coordenador,

responsável pelo ciclo I; c) acompanhamento dos dirigentes de ensino; d) formação do

professor regente; e) publicação e distribuição de materiais de apoio às salas de aula; critérios

diferenciados para regência das turmas que participariam dos projetos. Dessa forma, era

importante que:

a) Os supervisores, diretores e ATPs tivessem um encontro mensal com formadores

do programa para discutir os processos pedagógicos imbricados na alfabetização,

refletindo, também, sobre seu papel e sua participação na aprendizagem dos

educandos. O trio gestor participaria da avaliação bimestral, realizada

processualmente em todas as classes envolvidas no Programa, e a acompanharia.

b) A formação contínua do professor coordenador responsável pelo ciclo I seria

desenvolvida pela Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (Cenp) e

pelas Diretorias de Ensino. Para que os professores do 1° ao 4° ano fossem

capazes de alfabetizar seu grupo de alunos, os professores coordenadores atuariam

46

como formadores durante todo o ano letivo. Essas atividades envolviam momentos

de formação, planejamento, acompanhamento e avaliação.

c) Os dirigentes de ensino seriam os responsáveis pela implementação do programa e

de seu futuro desenvolvimento nas escolas que estavam em sua área de

abrangência.

d) A formação do professor regente seria realizada pelo professor coordenador, na

própria escola em que atuava. Caberia a ele a tarefa de acompanhar cada sala de

aula, objetivando o desenvolvimento de discussões na hora de trabalho pedagógico

coletivo – atual aula de trabalho pedagógico coletiva (ATPC) – acerca das

especificidades de cada ano/série. Para tanto, a carga horária do professor regente

seria ampliada em quatro horas semanais.

e) O Programa Ler e Escrever disponibilizaria as unidades escolares um conjunto de

materiais que considerasse as especificidades de cada projeto. Essas publicações

auxiliariam no planejamento das aulas e balizariam as discussões nos encontros de

formação e na ATPC.

f) Para que cada projeto pudesse frutificar e se adequar às características de cada

proposta, o perfil profissional seria considerado no momento de atribuição das

turmas.

Por meio da formação oferecida aos professores, espera-se que eles consigam

identificar, com base na teoria da psicogênese da língua escrita, as hipóteses formuladas pelos

alunos no decorrer de uma sondagem de sua escrita, denominada avaliação diagnóstica. Para

que possa se apropriar dos pressupostos norteadores do programa, o professor necessita ter

um conhecimento teórico que lhe possibilite analisar e interpretar a produção escrita de seus

alunos. Para que isso ocorra, o papel do coordenador pedagógico de cada unidade escolar é

vital: ao receber a formação na diretoria de ensino de sua região, tem a responsabilidade de

formar os professores na própria unidade escolar em que atua.

Como ferramentas facilitadoras do trabalho do professor, os materiais do Programa

Ler e Escrever são compostos por guias de planejamento e orientações didáticas para o

professor; cadernos de planejamento e avaliação do professor; livro de textos e coletâneas de

atividades para os alunos; folheto informativo; conversas com os pais; guia de orientação e

estudos para a ATPC; globo terrestre; kit de livros paradidáticos com 526 títulos; conjunto de

letras móveis; assinatura de revistas: Recreio, Picolé e almanaques.

47

2.1.1 A estrutura do Programa Ler e Escrever

O Programa Ler e Escrever está dividido, intencionalmente, em projetos que

consideram as especificidades dos grupos de alunos aos quais se destinam. A partir das ações

gerais – que embasam todo o Programa –, nasceram outras, específicas, descritas a seguir.

Ler e Escrever na 1ª Série do Ciclo I

No bojo das ações específicas para o projeto “Ler e Escrever na 1ª Série do Ciclo I”,

foram destacadas algumas estratégias fundamentais para o bom desenvolvimento de sua

proposta, tais como:

a) A escola constituir-se como lócus de formação contínua: a formação dos

professores regentes (PRs) aconteceria em sua unidade escolar, nos momentos de

HTPC. Os professores coordenadores (PCs), além de serem os principais agentes

na formação dos professores regentes, organizariam os horários coletivos de

trabalho de modo a garantir a formação dos professores em questão. O

planejamento, o acompanhamento e as avaliações a respeito do trabalho

desenvolvido em sala de aula teriam como guias o professor coordenador e os

seguintes materiais didáticos: o Guia de Planejamento e as Orientações Didáticas

para o Professor Alfabetizador – 1ª Série – e suas respectivas expectativas de

aprendizagem.

b) Acesso aos materiais didáticos: para que os PCs e os PRs pudessem desenvolver

melhor o projeto, diversos materiais seriam distribuídos na rede estadual de ensino

– Guia de Planejamento e Orientações Didáticas para o Professor Alfabetizador -

1ª série; caderno do Professor Alfabetizador - 1ª série; coletânea de atividades do

aluno - 1ª série; livro de textos do aluno do aluno - 1ª série; acervo de 43 livros de

literatura infantil, por classe; letras móveis e assinatura de revistas para o público

infantil.

c) Bolsa alfabetização: alunos dos cursos de Pedagogia ou Letras atuariam como

assistentes dos Prs das 1ªs séries, no que concerne à alfabetização e, ainda, como

pesquisadores, pois lhes caberia informar à universidade a respeito de questões

48

observadas no dia a dia escolar, ampliando e reforçando a importância do diálogo

universidade-escola.

d) Perfil profissional para a regência nas turmas do Projeto “Ler e Escrever na

1ª Série do Ciclo I”: dava-se especial atenção aos professores com disponibilidade

para participar ativamente do projeto; interagir com o aluno-pesquisador; ter

participado do Programa “Letra e Vida”. Salientava-se ainda que, para fins de

evolução profissional, os professores efetivos na rede receberiam pontuação

diferenciada (desde que se mantivessem na mesma unidade escolar, alcançassem

os objetivos propostos pelo programa, recebendo avaliação satisfatória em relação

às expectativas de aprendizagem dos alunos).

Ler e Escrever na 2ª Série do Ciclo I

Esperava-se que, no decorrer da 2ª série/1º ano, os alunos pudessem demonstrar

autonomia nas competências leitora e escritora. No entanto, para que esse objetivo se

realizasse, era importante que o professor dessa etapa desse continuidade ao trabalho

desenvolvido na série/ano anterior, possibilitando às crianças um uso ampliado da linguagem

escrita, nas situações escolares ou fora delas. Para os alunos que não tivessem alcançado o

esperado no ano anterior, o trabalho continuaria a ser desenvolvido pelo professor da série

atual. As propostas formativas seguiam o mesmo padrão das destacadas no item anterior, à

exceção dos alunos pesquisadores. As ações específicas requeriam que se tivesse ou se

considerasse: a) a escola como lócus de formação continuada; b) o acesso aos materiais

didáticos e pedagógicos; c) o perfil profissional para a regência da faixa etária em questão.

Projeto Intensivo no Ciclo - 3ª Série (PIC 3ª Série)

Tal como os anteriores, esse projeto tinha como prioridade o desenvolvimento das

competências leitora e escritora dos alunos, mediante a adequação do currículo da série/ano às

necessidades de aprendizagem daqueles que não haviam alcançado o que deles se esperava

nos dois primeiros anos da escolarização. De caráter emergencial, esse projeto deveria ser

temporário, tendo em vista que obter as metas dos projetos anteriores poderia, ao longo do

tempo, tornar-se desnecessário. Entretanto, para que a proposta seguisse o curso esperado,

49

além de a formação contínua ocorrer na unidade escolar em que atuavam os PRs, algumas

estratégias específicas precisariam ser contempladas:

a) Organização administrativa e curricular diferenciada para as turmas de 3ª

série do ciclo I-/PIC: as unidades escolares poderiam montar uma turma do PIC 3ª

série por turno com, no máximo, 30 alunos. O trabalho a ser desenvolvido pelo

professor pautava-se no Material do Aluno e no Material do Professor, objetivando

garantir o bom aproveitamento do tempo e das atividades didáticas.

b) Materiais específicos: como este projeto buscava preencher as lacunas de

aprendizagem dos anos anteriores, alguns materiais didáticos seriam distribuídos:

PIC-3ª série: material do professor (com orientações didáticas relacionadas ao

trabalho com os alunos) e material do aluno, abordando conteúdos de Ciências

Sociais, Naturais e Matemática.

Acervo de 40 livros de literatura infantil para cada classe: esperava-se que

o professor utilizasse atividades voltadas à leitura, oportunizando a ampliação

dos conhecimentos acerca da literatura infantil.

c) Critério diferenciado para regência das turmas do PIC: só poderiam assumir

essas turmas os professores que tivessem disponibilidade para as ações formativas,

de planejamento e de avaliação. Além disso, se permanecessem com as turmas

durante todo o período letivo, a pontuação seria diferenciada, para fins de evolução

funcional.

d) Critério para encaminhamento dos alunos ao PIC: aqueles que não tivessem

aprendido a ler e a escrever na 3ª série/4º ano do ciclo I seriam encaminhados para

as turmas de PIC. A seleção dos alunos para tais agrupamentos se basearia nos

resultados do Saresp ou nos resultados advindos de sondagens.

Projeto Intensivo no Ciclo – 4ª Série (PIC 4ª Série)

A especificidade desse projeto residia, principalmente, em tentar reverter o quadro de

fracasso escolar no tocante ao domínio da leitura e da escrita de alunos de séries anteriores. O

objetivo era a chamada “recuperação de ciclo”, ou seja, proporcionar ao aluno condições

básicas de seguir com seu processo de aprendizagem no ciclo II. Parâmetros semelhantes aos

propostos pelo PIC 3ª série balizavam esse projeto. A proposta estava organizada em

materiais didáticos – para professores e alunos – e paradidáticos específicos para cada série.

50

Vale salientar que as ações exclusivas para cada projeto tinham como meta diminuir os

entraves encontrados pelos professores nas escolas públicas paulistas do ciclo I, no tocante a

suas atividades docentes. No entanto, no presente estudo, apenas o projeto “Ler e Escrever no

1° Ano do Ciclo I” será analisado, pois a professora que dele participava atuava como

professora alfabetizadora no ano em questão.

51

3 Método

Qualquer método se opõe ao mero acaso, porque o representa, sobretudo,

uma ordenação, uma sistematização intelectual expressa através de um

conjunto coerente de leis, categorias e conceitos. Um método consiste num

“caminho” que pode levar a outros “caminhos”, alcançando os fins propostos

e, também, vários outros não indicados, certamente inatingíveis por meio do

acaso (VIEIRA, 1992, p. 29).

Neste capítulo, são apresentados os pressupostos metodológicos que orientaram esta

pesquisa, seus procedimentos, bem como o processo de sistematização e análise de dados.

Como “caminho” metodológico para a análise da atividade docente no Ler e Escrever,

elegeram-se a pesquisa qualitativa, a proposta de Clot (2010) – autoconfrontação simples

(ACS) – assim como os núcleos de significação sugeridos por Aguiar e Ozella (2006). O

principal objetivo consistia em analisar como uma professora utilizava o que havia aprendido

no Programa Ler e Escrever, ofertado pela SEE de São Paulo, verificando, também, se – e

como – esse aprendizado era incorporado a sua atividade profissional.

Dentre os objetivos secundários, estavam (i) analisar e interpretar os sentidos e

significados que a professora elaborou sobre essa formação continuada específica,

notadamente no que diz respeito ao exercício da docência e à prática pedagógica que

empregava; (ii) identificar se – e de que maneira – a professora utilizava em suas atividades

docentes os conhecimentos adquiridos no programa; (iii) verificar se – e por que – a

professora, ao se observar exercendo atividades docentes nas quais empregava as propostas do

referido programa, acreditava que isso constituía um procedimento importante para aprimorar

sua prática pedagógica e/ou sua formação profissional.

Na busca de tais objetivos, a abordagem qualitativa apresentou-se como a melhor

opção por seu caráter moderno. De fato, foi somente há pouco mais de um século que essa

abordagem foi ganhando espaço – antes predominava a abordagem quantitativa –, mais

precisamente quando os métodos de raízes positivistas já não se mostravam suficientes para

compreender e explicar certos fenômenos em sua particularidade ou quando o que estava em

questão não era alcançar apenas ou exclusivamente uma explicação causal. Surgia, nesse

período, a dicotomia quantitativo-qualitativo, ampliando, notadamente, as discussões sobre as:

52

[...] questões de natureza filosófica e epistemológica – como o critério de

verdade no trabalho científico, a relevância dos resultados da pesquisa, a

questão do objetivismo X relativismo etc. – que foram, sem dúvida,

importantes para a evolução das pesquisas nas ciências sociais e, em

decorrência, na área da educação (ANDRÉ, 2000, p. 25).

Para André (2000), a perspectiva qualitativa na pesquisa em educação vem ganhando

força no Brasil desde 1980. Ao especificar suas características, a autora destaca que essa

proposta metodológica:

[...] não envolve a manipulação de variáveis e nem de tratamento

experimental; é o estudo do fenômeno em seu acontecer natural; se

contrapõe ao esquema quantitativo de pesquisa (que divide a realidade em

unidades passíveis de mensuração, estudando-as isoladamente); defende uma

visão holística dos fenômenos; leva em conta todos os componentes de uma

situação em suas interações e influências recíprocas (ANDRÉ, 2000, p. 17).

Durante algum tempo, prevaleceu a ideia de que a pesquisa qualitativa era menos

confiável e, portanto, de certa forma inferior às que coletam, por meio de amostras

representativas do universo pesquisado, um grande número de dados, dando-lhes um

tratamento estatístico. Considerava-se, também, que os métodos qualitativos destinavam-se a

apreender a “qualidade” de um dado fenômeno. Nada mais falso. A abordagem qualitativa

busca estudar não o fenômeno em si, mas conhecer seu significado na vida individual ou

social, sempre que em torno dele as pessoas organizarem suas vidas. Denzin e Lincoln (2006)

definem a pesquisa qualitativa como aquela que permite estudar os fenômenos/eventos tal

como ocorrem usualmente, tentando dar-lhes sentidos – interpretá-los – segundo a

significação que lhes é atribuída.

Dessa forma, não é o fenômeno em si que interessa, mas sim a significação que lhe

conferem aqueles que o vivem. Bogdan e Biklen (1994), por sua vez, indicam que a meta da

pesquisa qualitativa é compreender o processo pelo qual as pessoas constroem significados

sobre algo, descrevendo o que esse algo é. Para esses autores, o significado desempenha

também um papel central quando a pretensão é conhecer, compreender e identificar as

vivências de uma ou mais pessoas, ou seja, a forma como representam suas experiências de

vida. Fundamentando-se nos argumentos de Godoy (1985) e Lüdke e André (1986), Martins

(2006) aponta cinco requisitos necessários para a realização de uma pesquisa qualitativa:

1. O ambiente natural como base dos fenômenos investigados: por privilegiar a

interação do pesquisador com o fenômeno estudado, é de grande importância que

o primeiro se aproxime do segundo mediante um contato prolongado. Além das

observações, o pesquisador pode valer-se de “filmagens, fotografias, gravações,

53

documentos históricos, registros escritos com o objetivo de ampliar a

confiabilidade de suas percepções” (2006, p. 5).

2. O caráter descritivo das investigações: cabe ao pesquisador estar atento aos

aspectos constitutivos do campo estudado, buscando compreender como se

manifestam, nele, os fenômenos histórica, holística e processualmente.

3. A procura de compreender os processos: o objetivo da pesquisa é analisar os

fenômenos, assentando-se “nas descrições dos problemas estudados, tais como

manifestos nas atividades, nos procedimentos e nas interações cotidianas”

(Ibidem, p. 5).

4. A centralidade do papel do pesquisador: ao mesmo tempo em que ele é

participante, é também observador, cabendo-lhe captar as interações e as relações

que se estabelecem no decorrer do processo investigativo, sem negligenciar a

apreensão objetiva de seu estudo.

5. A natureza indutiva de investigações dessa natureza: inicialmente, o foco do

processo investigativo é amplo e, paulatinamente, vai se afunilando.

Os que adotam os métodos qualitativos seguem um raciocínio indutivo, na medida em

que se apoiam em dados de campo, no estudo de sujeitos, coletando informações que vão,

pouco a pouco, levando à construção de uma visão organizada e plausível do fenômeno em

estudo. A interpretação é feita, sobretudo, com base na perspectiva dos entrevistados. Para

Cericato (2010, p. 95), a pesquisa qualitativa é incompatível com a “neutralidade científica”,

uma vez que o pesquisador mantém estreita relação com o espaço e a questão estudada. Ainda

para a autora:

[...] os dados quando coletados em uma investigação científica, são

construídos na relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado. Trata-se

de uma forma de pesquisa que se propõe a compreender uma realidade

dinâmica, organizada de forma sistêmica e complexa, em que os fenômenos

histórico-culturais apresentam uma importância fundamental na constituição

de tal realidade (CERICATO, 2010, p. 95).

Desprovidos da intenção de confirmar teorias já existentes, os métodos qualitativos

permitem a descoberta de novos e originais conhecimentos, fazendo avançar a ciência.

Minayo e Sanches (1993, p. 245), por meio de uma visão sociológica, retomam a questão do

significado, ao considerarem que os métodos qualitativos são aqueles capazes de “incorporar

a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às

estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua

54

transformação, como construções humanas significativas”. Essencial, nessa escolha, é

considera que, na investigação qualitativa:

[...] a palavra expressa a fala cotidiana em suas diversas relações. Nestes

termos, a fala torna-se reveladora de condições estruturais, de sistemas de

valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e, ao mesmo tempo,

possui a magia de transmitir, através de um porta-voz (o entrevistado),

representações de grupos determinados em condições históricas,

socioeconômicas e culturais específicas (MINAYO; SANCHES, 1993, p.

245).

Em síntese, é possível afirmar que, quando se usa a abordagem qualitativa, pretende-se

identificar o significado das coisas (fenômenos, manifestações, ocorrências, fatos, eventos,

vivências, ideias, sentimentos, assuntos), considerando seu papel organizador na vida humana.

Tais significados tendem, por sua vez, a ser compartilhados em uma dada cultura e,

consequentemente, organizar a vida social. O ambiente em que o sujeito vive ou trabalha é,

indubitavelmente, o local a ser observado. Na condição de observador, o pesquisador é

também o principal instrumento de pesquisa: para apreender o significado do objeto de

estudo, tem de recorrer a seus próprios órgãos de sentido a fim não só de representá-la em sua

consciência mas também de ser por ela interpretado.

Em relação aos aspectos de validade e generalização, o método qualitativo tem, quanto

à primeira, bastante rigor, uma vez que, sem uma observação acurada e/ou uma escuta atenta,

não há como se aproximar da essência do problema em estudo. Por outro lado, não se pode

afirmar que há uma generalização de resultados, pois eles não foram retirados de amostras

representativas do universo pesquisado, não se referindo a fatos quantificáveis, a relações de

causa-efeito nem a correlações: a generalização possível dos resultados da pesquisa

qualitativa é a que se faz com base na revisão dos pressupostos iniciais, ou seja, da teoria.

3.1 Vygotsky e os princípios norteadores do método em Psicologia

A proposta metodológica deste estudo encontra-se no bojo da Psicologia Sócio-

Histórica e do materialismo histórico dialético. Nessas perspectivas, “a busca do método se

converte em uma das tarefas de maior importância da pesquisa” (VYGOTSKY, 1995, p. 47).

Um método que permita ao pesquisador aproximar-se das zonas de sentidos16

do sujeito e,

16

“Zonas de sentido” é uma expressão cunhada por González Rey em Epistemología cualitativa y subjetividad

(1997). Referem-se a zonas do real que encontram significado na produção teórico-metodológica, mas que

não se esgotam em nenhum dos momentos em que são tratadas dentro das teorias científicas.

55

consequentemente, dos constituintes de sua subjetividade, tem como premissa não só analisar

sua fala – por revelar o pensamento em movimento – mas também os afetos e as emoções que

permeiam as relações entre homem e mundo. A escolha metodológica “possibilita contemplar

o presente, o passado e o futuro, enquanto movimento do que é, do que foi e do que poderá

vir a ser” (MOLON, 2008, p. 60).

Objetivando sistematizar seus pressupostos teórico-metodológicos, Vygotsky (1995a)

propõe três princípios: a análise dos processos e não dos produtos; a explicação em

detrimento da mera descrição do fenômeno e a compreensão do comportamento fossilizado.

Analisar o movimento de transformação e mudança do sujeito é o centro norteador do

primeiro princípio. O processo constitutivo do homem e de seu desenvolvimento não são

momentos estanques, de modo que a análise pautada no produto desse movimento vai se

revelar apenas uma parte do todo, que é, justamente, o “acabado”. Para os pesquisadores

adeptos da Psicologia Sócio-Histórica, o processo é de fundamental importância, pois é nele

que se encontra a história que enseja tal ou qual movimento: busca-se o “o quê” e o “como”

dos eventos em escrutínio.

Aprofundar a análise do fenômeno é o convite que o autor parece fazer com seu

segundo princípio: a pura descrição de um fenômeno e de suas características evidentes não

possibilita ao pesquisador ir além das aparências, ou seja, não lhe permite compreender a

gênese dos processos nem suas múltiplas determinações históricas. Ao passo que o

comportamento fossilizado – o terceiro princípio aqui apresentado – diz respeito a condutas

que o sujeito automatiza ao longo de seu desenvolvimento e que só podem ser devidamente

compreendidas na e pela análise histórica. Comportamentos fossilizados são, pois, aqueles já

cristalizados nas formas de pensar, sentir e agir. Diante disso, cabe ao pesquisador a tarefa de

romper com a automatização das condutas em estudo, para entendê-las, ou seja, para estudar o

fenômeno em seus processos de mudança. Para tanto, é preciso contar com um método que

possibilite o emprego de procedimentos capazes de aproximar o pesquisador de seu objeto de

estudo. Por meio dos diálogos tecidos com o sujeito de pesquisa, aos quais se aliam outros

instrumentos de coleta e produção de dados (observação, conversas informais, videogravação,

análise documental, entre outros), a aproximação do pesquisador com o fenômeno a ser

estudado se faz possível.

Apresentam-se, a seguir, as estratégias da ACS, tal como proposta por Clot (2006) e

colaboradores, por serem aqui consideradas como instrumentos relevantes para a

produção/coleta de informações em pesquisa qualitativa. Amparado na Psicologia Sócio-

Histórica, para a qual a categoria atividade é de suma importância, Clot (2006) destaca que a

56

análise do trabalho pelo próprio trabalhador possibilita um movimento de ressignificação da

atividade realizada: ao repensar e discutir a própria atividade, novos reais são inseridos no que

foi realizado. Desse modo, na e pela reflexão da atividade realizada, reside a possibilidade de

mudança na ação, permitindo o desenvolvimento do trabalhador e de seu coletivo

profissional. Clot (2006) utiliza o instrumento da autoconfrontação para a produção de

informações relacionadas ao objetivo da pesquisa, considerando as transformações, no sujeito

e em seus pares, da atividade que realiza. Tais transformações qualitativas requerem uma

análise dialética, focada nas contradições do sujeito e de seu coletivo profissional, para que

lhes seja possível passar de uma situação de estagnação (ou de dor) a outra mais satisfatória

(ou menos dolorosa). Daí a relevância desse procedimento metodológico para o presente

estudo: propiciar a criação de um espaço para a (trans)formação de professores, por meio da

pesquisa:

[...] agimos para transformar a situação. Mais especificamente, nós

estudamos como a ação se desenvolve, esse é um verdadeiro problema

científico, que nós abordamos por meio da abordagem vygotskiana sobre o

estudo do desenvolvimento; a ação é objeto científico e é a ação que

transforma a situação dos trabalhadores. A pesquisa é, portanto, um meio

para transformar a atividade dos trabalhadores (CLOT, 2006, p. 4-5).

Alinhando-se a Vygotsky (2001), Clot (2006) procura, com esses procedimentos,

analisar processos mais do que produtos, focando a forma como o sujeito realiza suas

atividades de trabalho. A tentativa é a de criar, por meio de uma relação dialógica, cognitiva e

emocional, uma nova zona de desenvolvimento próximo: nas sessões de autoconfrontação, o

sujeito – ao observar o que fez, e refletir sobre sua ação, dialogando sobre a atividade

realizada com o pesquisador e com seus colegas – amplia suas possibilidades de ação diante

das prescrições que regem seu ofício e as tarefas que realiza. Dessa forma, a observação e a

análise da atividade buscam “empoderar” o trabalhador e seu coletivo profissional,

depreendendo-se daí que a intensão é ajustar o trabalho ao homem (e não o homem ao

trabalho), permitindo-lhe transformar sua atividade e, assim, escapar das condições que lhe

causam sofrimento ou frustração.

Segundo Clot (2006), tais procedimentos atuam sobre um determinado campo

profissional para desenvolver a capacidade de agir dos trabalhadores sobre eles mesmos e

sobre seus pares. O objetivo não é apenas transformar o sujeito: trata-se de transformar a

atuação profissional. Espera-se, então, que os trabalhadores possam escrever uma nova parte

de sua história, da qual são produtores e também produtos:

57

Instrumento de conhecimento, instrumento de mediação social, instrumento

de formação e, também, instrumento psicológico para os trabalhadores,

entendemos que a análise do trabalho pode apresentar diferentes olhares,

diferentes perspectivas. [...] o trabalho permite ao homem se distanciar de si

mesmo, possibilita que ele se inscreva em outra história, fornecendo-lhe

meios para se realizar (TOMÁS, 2007, p. 12-13).

Assim, ao analisar tanto as atividades realizadas como as que foram descartadas, a

professora – no caso específico deste estudo – pode ampliar seu poder de agir e, assim,

desenvolver-se, (re)avaliando seus sentimentos e emoções, ressignificando sua atividade, ou

seja, atribuindo novos sentidos ao que faz. A autoconfrontação permite não só a modificação

do próprio atuar como também a elaboração de outras ações, inscrevendo-se, assim, novos

possíveis no real. Em outras palavras, espera-se que, mediada pela videogravação, a reflexão a

respeito das atividades realizadas movimente a aprendizagem e o desenvolvimento do

professor. Nessa perspectiva, a pesquisa pode contribuir para a formação de professores,

estabelecendo um canal de comunicação entre o meio acadêmico e o espaço escolar. De

acordo com Durand, Saury e Veyrumes (2005), é importante pensar novas formas de

relacionamento entre atividades de pesquisa e formação de professores, que permitam

satisfazer não só as exigências de rigor científico como as de adequação profissional.

3.2 A autoconfrontação simples

Após o professor ser filmado em sua atividade profissional, recortes são feitos na

videogravação, buscando episódios que tenham começo, meio e fim e duração aproximada de

dez minutos. Com o vídeo editado, faz-se o convite para que o docente, ator do filme, discuta

com o pesquisador os episódios selecionados a partir de sua atividade, ou seja, a partir da

ACS, que acontece quando o professor comenta os recortes das imagens de seu trabalho com

o pesquisador, referindo-se, portanto, à interação sujeito, imagem, pesquisador. Ao ver-se na

tela, o professor procura explicar o que fez e o que poderia (ou não) ter feito, cumprindo,

assim, uma atividade semelhante à do pesquisador, quem, com o intuito de assegurar-se de ter

compreendido bem, tece conjecturas para dar continuidade ao diálogo. Nesse momento, a

filmagem enquadra tanto um como outro – pesquisador e professor.

Inicialmente, o episódio é apresentado integralmente ao colaborador. Logo, retorna-se

ao início, de modo a permitir que o sujeito de pesquisa possa pausar o vídeo nas partes que

despertem seu interesse. Pretende-se, com isso, analisar como é possível, por meio de detalhes

da observação da atividade realizada, alcançar o real da atividade. Isso feito, o pesquisador

58

procura aprofundar o diálogo para apreender aspectos mais obscuros da atividade docente

realizada. As sessões de ACS são também sempre filmadas.

Ao comentar sua atividade, ao se analisar enquanto assiste à cena selecionada, o

professor pensa, sente e age cognitivamente sobre ela, revelando suas crenças, seus valores e

sua história. Tais revelações pautam o trabalho do pesquisador, que, nesse espaço privilegiado

de diálogo, atua como um “guia” do processo reflexivo. Se mal conduzida, no entanto, – com

perguntas mal formuladas ou pesquisadores pouco treinados –, a autoconfrontação deixa de

ser uma estratégia de produção e coleta de informações, para agir contra o sujeito, que pode se

sentir acuado e desestabilizado. Daí a importância do papel do pesquisador: além de um sério

planejamento, a autoconfrontação exige atenção especial para o modo como se questiona,

bem como para as palavras empregadas e, notadamente, para a organização do diálogo.

Como demonstram as pesquisas realizadas no Procad (BARBOSA, 2011; SOARES,

2011; BRANDO, 2012), cada vez mais se percebe a importância dessas precauções quando se

busca “provocar o desenvolvimento das atividades para transformar as situações de trabalho”

(CLOT, 2006, p. 17). Discutindo a transformação – o movimento do sujeito em sua relação

com a realidade –, Clot (2006) adota a perspectiva de Vygotsky (2001, p. 74), para quem “é

somente em movimento que um corpo mostra o que é”. Dessa maneira, o interesse do

pesquisador centra-se entre a atividade prescrita e a realizada, buscando apreender o real da

atividade, bem como as tensões e contradições entre gênero e estilo.

3.3 Etapas da pesquisa

3.3.1 Escolha da escola e do sujeito participante

Para o desenvolvimento desta pesquisa, foi escolhida uma escola pública estadual

situada na zona noroeste da cidade de São Paulo. Nela, foi selecionada uma docente atuante

no ensino fundamental do ciclo I, atuante no 1° ano. Diante da aceitação da instituição de

ensino, de uma de suas professoras e de seus pares, procedeu-se a uma explicação dos

objetivos do estudo, dos procedimentos que seriam seguidos no decorrer do processo de

pesquisa, dos cuidados éticos e do cronograma da coleta de dados.

59

3.3.2 Material

Os materiais utilizados foram uma câmera digital, que permitiu à pesquisadora

movimentar-se na sala de aula no momento das filmagens; um computador para a edição dos

episódios; um gravador digital para a coleta de dados sobre a história de vida da professora e

registro das entrevistas semiestruturadas realizadas à direção e à coordenação pedagógica da

escola.

3.3.3 Procedimentos de produção e coleta de informações

Como instrumentos de pesquisa, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, junto à

professora, à direção e à coordenação pedagógica da escola, buscando compreender como era

a dinâmica escolar, a avaliação que se fazia da infraestrutura disponível e, ainda, os projetos

pedagógicos que se desenvolviam no espaço escolar. Também se procedeu ao levantamento

da história de vida da docente, instrumento que permitiu apreender os sentidos e os

significados que a docente atribuía a sua profissão, aos alunos, ao contexto de trabalho etc., de

modo a tomar conhecimento do processo de tornar-se professor e compreender as metas que

norteavam sua atuação profissional no Programa Ler e Escrever.

3.3.4 Coleta de dados sobre a atividade docente

O processo de coleta de dados iniciou-se com a observação, por seis meses, da prática

pedagógica da professora, buscando conhecer a dinâmica da sala de aula, sua interação com

os alunos e também a interação dos estudantes entre si. Também se realizou uma análise do

material do Programa Ler e Escrever utilizado nas aulas da professora a fim de verificar se – e

em que medida – seu modo de agir pautava-se nos enunciados contidos em tal programa de

formação. As atividades da docente foram filmadas, foram selecionados os episódios que

melhor respondiam às questões da pesquisa, o que implicou uma edição do material. Foram

realizadas três sessões de ACS, nas quais a docente observava, a partir do vídeo, os episódios

selecionados e os analisava junto com a pesquisadora. Essa análise deveria permitir que as

hipóteses iniciais (levantadas pela pesquisadora no decorrer das observações em sala de aula e

nas entrevistas feitas) fossem contrastadas com as produzidas no diálogo

professor/pesquisador.

60

3.3.5 Sistematização e análise dos dados colhidos

Para efeitos de análise, os dados advindos de três momentos da pesquisa foram

importantes: (i) os registros de campo, (ii) os fornecidos nas entrevistas; (iii) os produzidos

por meio das sessões de ACS. Todos eles foram analisados de maneira integrada, à luz dos

demais, do referencial teórico adotado e das propostas do Programa Ler e Escrever. A

pretensão era verificar, mediante essa análise, se a professora utilizava o que havia aprendido

no programa de formação continuada e se – e em que medida – esse aprendizado era

incorporado a suas atividades docentes. Cabe, para tanto, precisar o referencial de análise

seguido neste estudo.

Foram centrais os propostos por Aguiar e Ozella (2006), que se referem à construção

de núcleos de significação. Segundo os autores, uma vez transcritas as entrevistas e o relato da

história de vida do participante, esse material deve ser lido várias vezes, de modo a permitir

maior familiarização com seu conteúdo, situação que possibilitará a construção de pré-

indicadores, uma lista dos diferentes assuntos tratados. Identificados os pré-indicadores, eles

devem passar por um processo de aglutinação, que segue alguns critérios: frequência,

semelhança, contiguidade e contradições encontradas entre as falas. Esse processo resulta na

formação de indicadores que, mais uma vez, são agrupados, configurando-se como núcleos

de significação. Neles, por meio do processo analítico-interpretativo do pesquisador, será

possível apreender os sentidos e os significados buscados, centrando o olhar nas

transformações e nas contradições presentes. Para tanto, serão consideradas as condições

subjetivas, sociais e históricas do sujeito.

Com isso, espera-se ultrapassar o nível da aparência para se alcançar o mais próximo

possível da essência, que é o cerne do fenômeno aqui estudado. Finalmente, cada núcleo deve

receber um nome, sempre que possível extraído de uma das expressões do sujeito e que

melhor defina seu conteúdo. A análise dos núcleos de significação envolve dois momentos:

um em que se analisam os diferentes núcleos de significação e outro em que se busca articulá-

los. A fim de identificar as contradições presentes no discurso, responsáveis primeiras pela

movimentação do sujeito, ou seja, por seu deslocamento da situação inicialmente encontrada,

parte-se de uma análise intranúcleo para se chegar a uma análise internúcleos. Por essa razão,

será necessária uma análise interpretativa por parte do pesquisador, que sai do empírico para

construir uma nova ordem, invisível para quem está imerso nas situações em que o fenômeno

estudado ocorre. Finalmente, os núcleos de significação são analisados com base em seu

contexto social e histórico e, sobretudo, com base na teoria.

61

As sessões filmadas de ACS foram igualmente transcritas e submetidas ao mesmo

processo metodológico exposto: organizadas em núcleos de significação, que devem permitir

articular a tarefa, o real da atividade e a atividade real (DAVIS; AGUIAR, 2010), sempre no

mesmo movimento que vai do empírico ao abstrato e novamente volta ao empírico, agora

organizado com base no referencial teórico da Psicologia Sócio-Histórica: “Perceber as coisas

de outro modo é, ao mesmo tempo, adquirir outras possibilidades de agir em relação a tais

coisas [...]. Ao generalizar um processo próprio de minha atividade, eu adquiro a

possibilidade de manter, com ela, outra relação” (CLOT, 2001, p. 23).

62

4 Apresentação e análise dos dados

Este capítulo tem por objetivo apresentar os dados coletados no decorrer do trabalho

de campo e suas respectivas análises. Inicialmente, descrevem-se a escola, o corpo docente e a

comunidade atendida pela instituição; posteriormente, apresentam-se a professora e alguns

dos aspectos que constituem sua história de vida. Também se descrevem os episódios

selecionados. A seguir, mostra-se um quadro dos núcleos de significação e seus respectivos

indicadores advindos da entrevista e das sessões de ACS.

4.1 A escola

A escola na qual a pesquisa foi desenvolvida integra a rede pública estadual de ensino

e localiza-se na zona norte da cidade de São Paulo, mais especificamente na Vila

Brasilândia17. Na época da pesquisa, atendia, em média, 900 alunos do ensino fundamental I

(1º a 5º ano), no período matutino e vespertino. O quadro de funcionários era composto por

duas inspetoras de alunos, duas secretárias, uma diretora, uma vice-diretora, uma

coordenadora pedagógica, 28 professores – majoritariamente mulheres –, além de seis

especialistas – três em Educação Física e três em Artes.

A equipe gestora atuava nessa instituição desde 2005. Elisa, a diretora, acumulava

grande experiência na área da educação: além de professora e supervisora pedagógica, desde

1989 ocupava esse cargo. Aposentou-se em 2003; em 2005, foi aprovada em um concurso

público para direção e, na época da pesquisa, fazia parte da equipe gestora. Elisa sempre se

mostrou muito acolhedora, afetuosa e disposta a trabalhar nessa escola. No decorrer das

observações, foi possível perceber que ela sentia prazer no que fazia, mostrando-se disposta a

ouvir o que os professores, pais e alunos tinham a lhe dizer: negociava com eles, amparava-os

e discutia os problemas do cotidiano escolar com os interessados.

Larissa, a vice-diretora, também contava com grande experiência na área da educação.

Formada no Curso Normal e em Geografia, fez complementação em Administração Escolar.

Atuou como professora da escola investigada entre os anos de 1987 e 1989. De 1990 a 2002,

foi professora do ensino médio em uma escola da região. Nos anos de 2003 a 2004, foi

17

A população é predominantemente de classe média baixa, as casas apresentam construção simples, algumas

partes não estão completamente urbanizadas e podem ser consideradas “favelas”. Logo, as crianças atendidas

por essa escola advêm de famílias que dispõem, em geral, de poucos recursos financeiros e vivem em

condições materiais precárias. Ademais, a região é conhecida por seus altos índices de criminalidade.

63

designada para assumir a direção da escola, assumindo, no ano seguinte, o cargo de vice-

diretora. Larissa aparentava gostar muito do que fazia e trabalhava bem com Elisa,

auxiliando-a no que fosse preciso. A relação entre o trio gestor – diretora, vice-diretora e

coordenadora – parecia ser bastante cooperativa.

Vivian, a coordenadora pedagógica, atuava havia 14 anos em educação. Formada em

Pedagogia e Letras, foi professora do ensino fundamental II; em 2004, assumiu o cargo de

vice-diretora em outra escola da região, começando, em 2005, seu trabalho como

coordenadora pedagógica na escola pesquisada. No decorrer do trabalho de campo, mostrou-

se constantemente disposta a auxiliar a pesquisadora quando solicitada. Muito esperta e

falante, seu sorriso era contagiante! Buscava aproximar-se dos professores, dos pais e dos

alunos. Apesar de ter se assustado com as demandas do cargo ao dar início a seu trabalho

como coordenadora, sentia-se, no momento da coleta de dados, já bem confortável em sua

função, aparentando gostar muito do que fazia. Nessa mesma época, estava participando do

Programa Ler e Escrever, que lhe exigia oito horas semanais dentro da sua carga horária de

trabalho. Sua tarefa consistia em formar os professores que atuavam em sua unidade escolar,

de modo que pudessem trabalhar com as propostas daquele programa. Em função do grande

número de docentes pelos quais era responsável, relatou sentir-se cansada em alguns

momentos, embora salientasse que essa era sua escolha profissional. Segundo seu

depoimento, a coordenação pedagógica trouxe-lhe inúmeros aprendizados desafiadores e

gratificantes.

A instituição escolar estudada situava-se entre duas favelas, com a maioria das casas

ainda sem reboco. A região dispunha de posto de saúde, ônibus, bancos, ruas asfaltadas, mas

as opções de lazer e entretenimento eram mínimas – poucas praças e parques. Na região havia

outras instituições públicas de ensino e as poucas possibilidades de acesso a bens culturais

(teatro, shows e cinema) eram oferecidas em uma das unidades escolares da prefeitura – o

Centro Educacional Unificado (CEU).

Com 35 anos de funcionamento, a escola foi instalada em uma rua com acentuado

declive e, para melhor aproveitamento do terreno, os quatro prédios foram construídos

separadamente. A quadra de esportes fica no alto – com cobertura para a proteção do sol e da

chuva –, rodeada por arquibancadas de cimento com quatro grandes degraus, sem nenhum

tipo de grade de proteção. Ao redor da quadra, há uma pequena área gramada. Foi possível

observar, no decorrer da coleta de dados, que as crianças não tinham livre acesso ao espaço

porque o terreno é bastante acidentado: poderiam se machucar caso caíssem de uma das

64

arquibancadas. O acesso à quadra de esportes tinha de ser sempre monitorado pelos

professores de Educação Física ou pelas inspetoras. Ainda nesse espaço, há um grande portão

de entrada e saída dos alunos, que permanecia fechado no horário de aula.

O primeiro prédio, localizado abaixo da quadra, tem dois andares com pé-direto alto.

O primeiro, ao qual se tem acesso por meio de rampas ou escadas, conta com um refeitório

ocupado por mesas e bancos de cimento, utilizado pelas crianças como pátio nos intervalos

das aulas; quatro banheiros: dois femininos e dois masculinos; uma cozinha para a produção

da merenda servida aos alunos e professores; um pequeno espaço ao lado do refeitório,

destinado à venda de guloseimas, cujo lucro se destina à escola. O segundo andar, com

acessibilidade apenas por meio de escadas, foi dividido em oito amplas salas de aula; um

pequeno depósito de materiais e uma biblioteca usada como sala de aula para um primeiro

ano, mobiliada com carteiras e lousa e três grandes estantes com livros diversos. Há, ainda,

nesse prédio, um elevador inutilizado por falta de manutenção.

No segundo prédio, térreo, está a parte administrativa da escola. Diante dele, há um

pequeno portão com uma área coberta, que permanece sempre fechado. Por meio desse

portão, os pais têm acesso à escola quando precisam resolver alguma questão na secretaria ou

com a equipe gestora. Há uma secretaria, uma sala para a coordenadora pedagógica, outra

compartilhada pela diretora e pela vice-diretora, uma pequena cozinha, uma sala para os

professores e dois banheiros – um feminino e um masculino – para uso dos funcionários.

Seis salas de aula compõem o terceiro e o quarto prédio. No quarto edifício, há, ainda,

uma pequena sala de vídeo com televisão e aparelho de DVD em bom estado de uso. Para

facilitar a acessibilidade aos prédios, existem escadas e rampas de cimento. Ao final do

terreno, localiza-se um pequeno estacionamento utilizado apenas pela equipe gestora e por

alguns professores. Contudo, nem todos os docentes conseguem estacionar seus veículos e os

deixam na rua, em frente à escola.

A falta de espaço físico sempre foi motivo de queixa da equipe gestora e da professora

participante deste estudo. Em razão da demanda por vagas, a biblioteca estava sendo usada

como sala de aula – fato que impedia os demais professores de a utilizarem com seus alunos.

Tampouco existia lugar para que as crianças pudessem brincar e correr; a única opção para a

diversão dos alunos, nos momentos de intervalo das aulas, era o refeitório, pois a quadra de

esportes oferecia risco de alguma criança se machucar. Nos dias de chuva, a entrada e a saída

das crianças eram conturbadas: a cobertura da quadra era muito alta e a chuva invadia parte

dela. Nesses dias, as crianças entravam e iam diretamente para suas respectivas salas de aula.

65

Na hora da saída, as professoras organizavam-se para liberar, por etapas, os alunos. O único

grande lugar coberto, no período de minhas observações, era o espaço que entre o prédio da

secretaria e o estacionamento. Os prédios estavam bem conservados, mas em processo de

restauração, e todas as salas estavam sendo pintadas. As classes não estavam sujas, pois os

professores cuidavam desse espaço e o organizavam: ao final de cada período, eles o

limpavam para o próximo período.

No decorrer da pesquisa, foi possível perceber que o ambiente de trabalho era

amistoso e os funcionários, bastante cooperativos. A equipe gestora sempre demonstrou

bastante energia para administrar a escola e disposição para cooperar com a pesquisa. Dessa

forma, o clima para o desenvolvimento deste estudo foi muito acolhedor. Nessa “imersão” no

campo, por muitas vezes me senti parte da escola. As secretárias cumprimentavam-me,

chamavam-me pelo nome e, logo que me viam, me abriam o portão. Os professores

conversavam entre si, trocavam ideias e mantinham um bom relacionamento. Na medida em

que foram se acostumando com minha presença, foram incluindo-me em seus diálogos,

convidando-me a participar de suas rotinas. Trocávamos experiências e vivências – tanto

sobre a vida acadêmica quanto a cotidiana.

A merenda oferecida pela escola era extremamente saborosa e a maioria dos

professores fazia suas refeições na própria instituição – e eu era sempre convidada a partilhá-

las. O capricho e o cuidado da merendeira sempre foi assunto na sala dos professores. Eu

andava constantemente pelos corredores, ficava na sala dos professores e, no decorrer desse

período, de mais de seis meses no campo, foi visível o bom relacionamento que mantinham

entre si a diretora, a coordenadora pedagógica, a vice-diretora, os docentes e os alunos. A

equipe gestora e a docente pareciam conhecer as histórias de quase todas as famílias:

buscavam constantemente o diálogo da escola com a comunidade. A coordenadora

pedagógica e a vice-diretora esforçavam-se por levar adiante as ideias e as produções da

diretora. Apesar das dificuldades provocadas pela falta de espaço, pela alta demanda de

alunos e pelas particularidades da população atendida na escola, essa instituição surgia como

um espaço muito produtivo e cheio de vida. Era visível o prazer com que muitos professores

trabalhavam, buscando constantemente desenvolver o espírito coletivo.

66

4.1.1 Apresentando a professora

À época da pesquisa, a professora Renata18

tinha 55 anos de idade. Casada, mãe de

dois filhos e avó de dois netos – dos quais muito se orgulhava –, contava com vasta

experiência no campo da educação. Atuava havia 27 anos na área e apresentava um percurso

profissional interessante: assistente técnico-pedagógica, auxiliar na Associação de Pais e

Amigos dos Excepcionais (Apae) e professora de classes de aceleração. Nos últimos 12 anos,

dedicou-se a classes de alfabetização (antiga 1ª série ou atual 1° ano).

As mediações que foram constituindo a vida profissional da docente possibilitaram seu

contato com diversos cursos de formação continuada: Projeto Ipê, Teia do Saber, Letra e

Vida, Programa Ler e Escrever. Como complemento curricular, estava cursando Pedagogia

em uma faculdade particular. De família humilde e numerosa, perdeu o pai aos dois anos de

idade. Depois do falecimento, a mãe e os filhos receberam apoio de familiares próximos por

um período. Diante da falta de emprego e da impossibilidade de dar sequência aos estudos, a

família mudou-se para Lins, no interior de São Paulo, em busca de novas oportunidades.

A ida para outra cidade e as dificuldades enfrentadas pela mãe para cuidar dos filhos

levaram Renata, desde muito pequena, a trabalhar e contribuir para o sustento da casa: “com

11 anos, eu já trabalhava, só que assim: eu era ajudante numa loja de tecidos de uma prima

minha. Mais isso era mais para [me] ocupar, para ter uma rendinha e ajudar minha mãe”.

No decorrer de sua história, já atuando na área administrativa de uma empresa de consórcio,

realizou o curso técnico em Contabilidade.

Ainda morando em Lins, casou-se aos 22 anos, afastando-se de suas atividades na área

administrativa, pois trabalhava aos finais de semana e o marido – cuja situação econômica era

bastante confortável – queria que ela se dedicasse mais à família. Após dois anos devotados

aos cuidados do lar e à criação de seu primeiro filho, na época com apenas um ano de idade,

decidiu voltar a estudar, optando pelo curso Normal para tornar-se professora. Formou-se em

1984 e começou a atuar como docente em 1985. Desde então, dedica-se à carreira, que,

segundo ela, lhe proporciona muito prazer:

18

Nome fictício.

67

[...] quando meu filho mais novo tinha um aninho, eu resolvi voltar. Aí, eu

disse: ah, eu acho que vou fazer Magistério! Aí eu fiz o [curso] Normal, o

Ensino Médio, e foi onde eu me identifiquei. Em 1984, eu me formei; só que

estava grávida! E, aí, nasceu meu segundo filho. Na verdade, eu já estava

atuando, mas eu comecei mesmo em 1985, depois que ele nasceu. E estou

até hoje.

Por decorrência da vida profissional de seu marido e também de seus filhos, mudou de

cidade algumas vezes. Morou em Brasília, onde trabalhou na Apae; voltou para Lins e

assumiu novamente o magistério. Em 2006, instalou-se em São Paulo. Na época da pesquisa,

trabalhava em uma escola pública estadual de ensino fundamental I e havia sido aprovada em

um concurso público para a Prefeitura de São Paulo; porém, não havia sido contratada por

motivos médicos: voz rouca e postura curvada. Para Renata, mesmo em final de carreira, a

aposentadoria na rede municipal era financeiramente mais atraente do que a oferecida pela

rede estadual, ainda que isso a obrigasse a trabalhar por mais alguns anos.

No decorrer das observações na escola, foi possível perceber que a professora

empenhava-se em buscar novas possibilidades para desenvolver suas atividades. Mantinha

bom relacionamento com seus alunos, colegas professores, gestoras e pais de alunos. Em

virtude de sua vasta experiência em aulas de alfabetização, era considerada uma referência

para os colegas, que buscavam seu auxílio quando tinham dúvidas sobre o processo de

alfabetização dos alunos.

4.2 Apresentação dos episódios

A seguir, descrevem-se os episódios utilizados nas sessões de ACS, assim

denominados: Rapunzel, Alfabeto móvel e Aula de Matemática.

4.2.1 Episódio Rapunzel

A aula começa com Renata explicando aos alunos a importância do gênero textual

“conto”. A turma está sentada em fileiras e os alunos formam duplas. Na lousa, está fixado

um cartaz contendo títulos de contos que eles já conhecem: Chapeuzinho Vermelho, Os Três

Porquinhos, Patinho Feio, Bela Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela e a

68

Fera, O Pequeno Polegar, João e Maria, Rapunzel e, finalmente, João e o Pé de Feijão. Ao

ler a lista de contos para a turma, Renata solicita a interação do grupo. Os alunos estão com os

cadernos e o livro de texto do aluno do Programa Ler e Escrever sobre suas carteiras. A

professora solicita que guardem os cadernos, informando que esse material não será utilizado

nessa aula. Todos acatam seu pedido. Ela diz aos alunos que, embora já tenham lido o conto

Rapunzel, essa é a história escolhida para o dia e indica o número da página em que é possível

encontrar o texto e, assim, acompanhar a leitura em conjunto com a docente. Além da

instrução verbal, Renata escreve na lousa o número da página e, enquanto escreve, fala em

voz alta o que está escrevendo. Inicia a leitura do conto em voz alta e circula por toda a sala.

Ao final da leitura, Renata volta-se para a turma e pergunta: “quais são as características de

um conto?”; “como eles começam?”; “como eles terminam?”. Alguns alunos respondem à

primeira pergunta com um “era uma vez” e, à segunda, com “foram felizes para sempre!”.

A professora, então, aproveita a ocasião para reafirmar que a presença desses dois

marcadores caracteriza e define textos do gênero “conto”. Ainda trabalhando com a oralidade

e estimulando a participação do grupo, faz uma pergunta sobre os personagens, que é

prontamente respondida pelos alunos. Ao explorar o texto, Renata escolhe algumas palavras

(“anoitecer” e “espiando”) cujos significados as crianças devem identificar. Todos participam:

“anoitecer é quando está ficando de noite”; “espiar é quando tem alguém te olhando, te

curiando”. Após o trabalho com a oralidade, a professora apresenta à classe uma folha

intitulada “quem foi que disse...”. Esta atividade contém frases retiradas de outros contos –

“Vou soprar, vou soprar e sua casa derrubar”; “Espelho, espelho meu, existe alguém mais

bonita do que eu?”; “Vovozinha, que nariz grande você tem!”. Enquanto Renata lê essas

frases para os alunos, eles respondem apontando, corretamente, o nome dos personagens

enunciadores das frases. Em seguida, ela entrega a folha de atividades e solicita aos alunos

que escrevam no local indicado – uma linha que se encontra embaixo de cada uma delas – o

nome do personagem a quem atribuem o texto. Interessa observar que, enquanto Renata

entrega as folhas para toda a turma, o aluno Vinícius realiza toda a atividade. Assim, sem ter o

que fazer, o menino fica esperando que todos os colegas terminem o proposto pela docente.

Ao circular pela sala observando o desenvolvimento da tarefa solicitada aos alunos, a

professora percebe que a maioria do grupo tem dificuldade para escrever corretamente a

palavra “madrasta”. Ela, então, vai até a lousa e questiona: “como podemos escrever a palavra

‘madrasta’?”. “Quais são as letras que estão entre o “a” e o “t”?”. Repete a palavra

pausadamente: MA-DRAS-TA. Um aluno responde: o “s”. Ela se dirige ao grupo e diz que

69

algumas crianças estão se esquecendo do “s” e também de outras letras. Renata continua

andando pela sala e, após alguns minutos, volta à lousa, onde registra as várias grafias usadas

pelos alunos para escrever a palavra “madrasta”. Dessa maneira, na tentativa de socializar

dúvidas, ela acaba salientando os erros cometidos, dificultando a solidificação da escrita

correta da palavra. A interação dos alunos para realizar a proposta da professora continua e se

esforçam muito para descobrir as letras faltantes. Finalmente, Renata corrige a atividade na

lousa, contando com a atenção do grupo.

A segunda atividade, apresentada em outra folha, requer que os alunos escrevem uma

palavra que comece com as iniciais da palavra Rapunzel (R, A, P, U, N, Z, E, L). Na terceira

atividade, são apresentadas diversas palavras dos contos (Rapunzel, cabelo, madrasta, torre,

vermelho, porquinhos, espelho, entre outras). O objetivo é que os alunos marquem o

quadrinho com a palavra “torre”, que corresponde à pergunta “em qual lugar Rapunzel ficou

presa?”. A quarta e última atividade desse episódio é de associação: os alunos devem ligar as

palavras que se complementam, como “chapeuzinho” e “vermelho” e, assim,

consecutivamente. Após dar as instruções, Renata indica que, no primeiro exercício, as

palavras não podem ser iguais às dos colegas próximos, ignorando que, nesse momento de

construção da escrita, copiar pode ser uma maneira de aprender com o outro. Enquanto os

alunos tentam seguir suas instruções, ela caminha entre o grupo, atende alguns alunos e senta-

se em sua cadeira, esperando que terminem a tarefa. Os alunos com mais dificuldades

procuram a professora, que os atende prontamente. A atividade termina com sua correção na

lousa.

4.2.2 Episódio Alfabeto móvel

A atividade começa com a professora perguntando aos alunos: “Quem aqui já foi em

uma festa de aniversário”? Todos respondem ao mesmo tempo: “Eu, eu, eu”. Os alunos estão

separados em quartetos. A professora então questiona: “O que nós temos em uma festa de

aniversário?” Prontamente, o grupo replica: “bolo, bexiga, brigadeiro, guaraná, beijinho,

convidados, bala de goma...”. A professora permite que todos falem enquanto fixa uma

sequência de folhas na lousa. Dirige-se, então, à turma: “Agora, eu vou lembrar, com vocês,

algumas coisas que vocês disseram: tem bolo”? E a turma responde: “tem”; novamente, ela

questiona: “tem bexiga?”. E os alunos dizem: “sim”. Em seguida, ela lhes entrega o kit com as

70

letras móveis e solicita a cada grupo que organize a escrita das palavras que nomeiam os

doces de festas de aniversário.

Ao circular pela sala, Renata percebe que um aluno está empenhado em escrever a

palavra “cachorro-quente”. Retoma a instrução da atividade em voz alta: “Pessoal, só para

lembrar: vocês têm que escrever sobre as coisas doces que temos em festas de aniversário”.

Os meninos de um grupo estão tentando escrever a palavra “bolo”, que resulta em “bolau”. A

professora lê o que foi escrito em voz alta, pedindo-lhes que procurem a forma correta da

escrita. Um aluno de outro grupo aproxima-se da docente e questiona: “Prô, como se escreve

pirulito?”. Ela responde pronunciando as sílabas pausadamente: “PI-RU-LI-TO, vai para a sua

mesa e escreva como você acha que é. Daqui a pouco, eu passo lá”. Ao observar que os vários

grupos tentam escrever alguma palavra relacionada aos doces de festas de aniversário, orienta

que todos escrevam a palavra “suco”, no que é prontamente atendida. A docente observa que

uma das meninas escreve “sueo”, mas dirige-se à classe e diz, pausadamente, “SU-CO.” Ela

solicita a ajuda de todos, que rapidamente chegam ao resultado esperado. É possível observar

o engajamento na atividade. Em outro grupo, Renata questiona: “Para formar a palavra ‘suco’,

eu preciso de quais letrinhas?”. Um dos alunos responde: “Começa com ‘s’, prô!”, recebendo

incentivo da professora. Quando todos conseguem atingir o objetivo esperado, Renata propõe

a escrita da palavra “aniversário”, repetindo-a pausadamente: “A-NI-VER-SÁ-RIO!”. “Com

qual letra começa essa palavra?”, questiona, e todos respondem: “A”.

Ao perceber que os alunos apresentam dificuldade para escrever a sílaba “ver” (que

tem três letras), Renata questiona: “Gente, como se escreve o ver?”, recebendo a seguinte

resposta: “Precisa do ‘v’ e do ‘e’.” Ela insiste que falta algo, mas, percebendo que as crianças

não sabem o que é, dirige-se até a lousa e diz, com o giz na mão: “Para formar o ‘ar’, o ‘er’, o

‘ir’, o ‘or’, do que eu preciso?”. Os alunos parecem perdidos, mas Renata não desanima.

Escreve a letra “e” no quadro e, prontamente, um dos alunos responde: “Falta o ‘r’, prô.” Ela

escreve “ver” na lousa e repete: “A-NI-VER-SÁ-RIO”. Ao final da atividade, pergunta mais

uma vez: “Quantas letras eu preciso usar para escrever a palavra ‘aniversário’?”. Os alunos

tentam acertar, mas apenas um consegue: “Prô, eu usei 11 letras”. Esse menino é chamado à

frente da sala e solicitado a dizer em voz alta sua resposta, para todos ouvirem. O menino,

quase gritando, diz: “Eu usei 11 letrinhas”. Ela o parabeniza e ele volta a seu lugar. A

atividade termina quando a professora pede que o grupo guarde as letras móveis e se

reorganize em duplas.

71

4.2.3 Episódio Aula de Matemática

A instrução para que essa atividade possa ocorrer a contento é dada por Renata um dia

antes de sua execução. Ela pede aos alunos que levem à sala de aula uma pesquisa de preços

com alguns produtos dos quais gostam: chocolate, bala, sorvete etc. No entanto, são poucos os

que cumprem a tarefa solicitada, o que não impede o início da atividade. A professora entrega

uma folha aos alunos, que estão sentados em duplas. Em seguida, com uma folha em mãos e

no centro da sala, começa a explicar que eles agora vão realizar uma tarefa denominada

“pesquisa de preços”. Renata lê para todos o que deve ser feito: “pesquise o preço de uma

bala, um picolé e um chocolate que você gosta. Depois disso, escreva o nome dessas

guloseimas, seus preços e quantas moedas você utilizaria para pagar pelo produto no

quadrinho abaixo. O primeiro deles é o que pessoal?”. Todos respondem: “chocolate.” A

professora continua: “então, o que vocês vão escrever no primeiro quadradinho?”. Os alunos

respondem: “chocolate”. Na sequência, ela diz: “Quanto vocês vão pagar no chocolate?”. Os

alunos respondem (olhando para a lousa, pois a professora escreve os valores no quadro): “um

real”. Renata complementa sua instrução: “quantas moedas você utilizaria para pagar o

chocolate? Façam isso com a bala e o picolé, também! Lembrem-se: quantas moedas vocês

usariam para pagar o produto?”. Dito isso, faz algumas simulações de valores com o grupo e

solicita que comece a trabalhar no que lhes fora proposto. No decorrer do processo, sugere aos

alunos que façam uma conta de adição: “pessoal, no final da folha sobrou um espaço. Gostaria

que vocês fizessem uma continha: quanto se vai gastar para comprar dois picolés? Depois a

prô corrige com vocês! Podem fazer”. É possível perceber que as crianças que têm dúvidas

procuram constantemente a professora.

Renata percebe que a aluna Raquel está sem sua folha e pergunta duas vezes, em tom

enérgico: “Raquel cadê a sua folha?”. A aluna hesita em responder, mas acaba indicando que

seu material está com Liliane. A professora dirige-se até a carteira dessa menina e, ao

perceber que ela está com as folhas de outros colegas, questiona: “para quem você está

fazendo esse?”. Liliane abaixa a cabeça e não responde. Irritada com a situação, Renata

segura o braço da menina e pede que ela lhe olhe. A aluna não o faz. Novamente, Renata

pergunta: “de quem é essa folha, Liliane?”. A menina continua sem responder. A professora

retira as folhas de Liliane e pede-lhe que faça sua atividade sem copiar de ninguém: “eu quero

ver você fazer sozinha!”. Depois de alguns minutos, Renata percebe que a menina está

chorando e lhe diz, então, que pegue a folha e vá até sua mesa, para que possam fazer a

72

atividade juntas. A menina atende ao pedido da professora. Observando que outros alunos se

aproximam para esclarecer dúvidas, Renata solicita que esperem, explicando que, naquele

momento, estava atendendo apenas Liliane. O grupo aceita o pedido da professora. Renata

chama para perto de si também Arthur, ao perceber que ele está com as mesmas dificuldades

de sua colega. Arthur e Liliane trabalham juntos, com a mediação da professora, e terminam a

tarefa em suas mesas. A atividade finaliza-se com as correções de Renata na lousa.

4.3 Núcleos de significação

O quadro abaixo apresenta os núcleos de significação articulados por meio das falas da

professora, advindas tanto da entrevista (grafadas, no decorrer do texto, em preto) quanto das

três sessões de ACS (registradas nas cores lilás, marrom e magenta).

Quadro 1: Núcleos e indicadores constituídos pela professora Renata

Núcleos Indicadores

1. A escolha do magistério As influências para a escolha da profissão.

O gosto pelo magistério: sabe quando você vem

trabalhar feliz?

A formação inicial no magistério e a comparação com

o curso de Pedagogia.

2. Experiências profissionais na área da

educação e os processos formativos:

a visão sobre o Ler e Escrever

Experiências profissionais na educação e formação

continuada.

O Programa Ler e Escrever e o papel do coordenador

pedagógico nos momentos de formação continuada.

Os materiais do Programa Ler e Escrever: eu gosto

dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam

também.

A busca por novas estratégias: eu estou em final de

carreira, mas eu quero mais!

3. Concepção de aluno: suas percepções

e seus sentimentos sobre seus alunos

As mudanças da carga horária do ensino fundamental

I e a influência da formação dos alunos na educação

infantil.

A percepção de Renata sobre sua turma.

Os sentimentos de Renata acerca de suas atitudes com

os alunos: aquela angústia, aquela coisa que eu

quero, que eu quero, que eu quero e aí acaba não

73

acontecendo e é onde me frustra.

4. Planejando e executando as

atividades docentes

As facilidades e os entraves do espaço escolar no uso

dos recursos previstos pelo Ler e Escrever.

As metas para o ano letivo e a avaliação: traço uma

meta para o ano, mas, como eles estão no primeiro

ano, eu avalio mesmo é mais a participação deles nas

atividades em sala.

O planejamento e as aulas.

Teoria e prática: meu conhecimento teórico ajudou

muito, mas a minha prática também.

As formas de trabalho planejadas para alcançar as

metas traçadas no início do ano: eu tenho uma meta

de atender, pelo menos duas vezes por semana, de

modo individual, aí eu planejo outra atividade para

os outros que caminham sozinhos.

A reflexão do aluno sobre a escrita: o uso do alfabeto

móvel e da lista de palavras como estratégias de

ensino-aprendizagem.

Os agrupamentos como estratégia de ensino-

aprendizagem e aprimoramento das relações sociais

dos alunos.

A Matemática e o uso de materiais diversificados: a

descrição da aula de Matemática.

5. A importância da relação com a

comunidade escolar e com a equipe

gestora para o adequado

desenvolvimento das atividades

docentes

A parceria com os pais de alunos

O relacionamento com as gestoras e com o corpo

docente

6. Os sentimentos de Renata diante da

ACS

O impacto das ACS: Eu nunca tinha visto uma aula

minha!

Analisando a atividade realizada na aula de

Matemática: Acho que foi bem produtivo o dia para

eles.

As percepções de Renata sobre as atividades

realizadas: Eu ainda tenho que mudar bastante.

4.3.1 Núcleo 1 – A escolha do magistério

Este núcleo ilustra as influências recebidas por Renata no momento da escolha do

magistério, o prazer que a profissão lhe proporciona e a comparação que faz entre o

74

magistério e a Pedagogia. Nele, estão articulados, apenas, os indicadores oriundos da

entrevista semidirigida.

A trajetória profissional de Renata inicia-se com ocupações no setor do comércio e no

campo administrativo: trabalha desde os 11 anos e, no ensino médio, como seria de se esperar,

opta pelo curso técnico de Contabilidade, pensando em ampliar seus conhecimentos na área

em que atuava. A possibilidade de modificar seu percurso profissional surge após seu

casamento e a escolha do magistério é, marcadamente, influenciada pelo contexto familiar:

A minha opção pelo magistério é porque minha família toda é da

educação, por exemplo, eu tinha um tio lá em Buritama mesmo que era

Diretor de escola. Na época era um status, né? Ah, eu fui aluna da mãe do

Gianechinni [risos], ela era minha professora de História. [...] a minha

família toda era ligada à área da educação, minhas irmãs, eu tive um

irmão que era diretor de escola, duas irmãs que já eram professoras,

minhas primas todas [eram] professoras, e aí eu acho que foi por isso

mesmo [que eu escolhi a profissão].

Fica evidente o papel da família nas escolhas profissionais de Renata: num primeiro

momento, encontra na área administrativa e no curso técnico de Contabilidade um labor que

lhe permite certa estabilidade econômica e, num segundo momento, já em condições

financeiras mais estáveis – após o casamento –, segue no magistério seu itinerário. Vale

destacar que, segundo o referencial teórico deste estudo, as escolhas profissionais de uma

pessoa não se relacionam apenas com as características pessoais, mas vinculam-se a questões

históricas, econômicas, sociais e culturais, como bem ilustra o caso de Renata.

A professora afirma diversas vezes seu sentimento positivo em relação à profissão

escolhida e à mudança empreendida em sua carreira. Apesar da precarização da docência –

mais especificamente em razão dos salários pagos aos professores da rede pública estadual

paulista –, Renata comenta que já pensou em procurar atividades mais bem remuneradas, com

as quais conseguisse modificar sua condição socioeconômica. Entretanto, o gosto pelo

magistério impulsionou-a a permanecer na carreira: “Eu falo assim: ah, eu ganho pouco,

vou procurar outro trabalho... Mas não adianta, é disso que eu gosto mesmo”.

O aumento da jornada de trabalho, o arrocho salarial e a ausência de um plano de

carreira são problemas advindos dos processos de reforma do Estado que têm tornado cada

vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público.

Embora Renata evidencie seu desapontamento com a questão salarial, também afirma que se

identifica muito com a profissão docente, que nela se sente realizada:

75

E tem mais: eu me encontrei na profissão! Aqui [na educação] é

onde eu me encontrei. Eu sou feliz... Sabe quando você vem

trabalhar feliz? Então, eu gosto daquilo que eu faço, eu sinto

saudade, eu fico triste quando o ano vai terminar... É uma coisa de

paixão mesmo. Eu amo isso tudo que eu faço.

Renata salienta a relação positiva que estabelece com seu trabalho e com seus alunos.

Vislumbra-se, por meio de sua fala, uma trajetória formativa e profissional marcada pelo

prazer; a professora encontra, na relação com seus alunos, motivação para dar continuidade às

tarefas. As mediações constitutivas da docente perpassam as questões afetivas encontradas em

sua profissão: “Gosto, gosto, gosto muito [de dar aula]! Estou muito feliz, principalmente

pelo retorno que a gente tem [dos alunos]”.

Quando questionada se escolheria a profissão novamente, sua resposta é categórica:

“Escolheria sim, com certeza. Não mudaria nada!”. Essa fala reforça o sentimento positivo

de Renata diante de suas escolhas profissionais. Destaca, ainda, ser o prazer encontrado na

profissão um dos elementos que contribuem para a solução das dificuldades encontradas na

docência. Esse elemento, a vontade de resolver problemas relacionados ao trabalho, aparece

também como uma de suas características pessoais: “quando você gosta daquilo que você

faz, não tem entrave. Mas se surge algum tronco no caminho eu pulo, procuro superar

esse obstáculo e vou em frente. E esse é o meu problema”. Por meio desse excerto, em que

destaca qual é “seu problema”, é possível inferir que as inquietações de Renata por vezes

demandam maior gasto de energia, pois evita uma postura de acomodação frente às

adversidades impostas pelo dia a dia da sala de aula. O que ela poderia considerar como uma

característica positiva acaba se constituindo em algo negativo.

Ao falar a respeito de sua formação escolar, Renata indica ter sempre estudado em

escola pública. No momento da pesquisa, cursava Pedagogia em uma faculdade particular:

“Eu sempre estudei em escola pública. Só a minha faculdade é que está sendo

particular”. A modalidade do curso por ela escolhido foi semipresencial – atividades

realizadas a distância e provas realizadas na instituição.

Ao comparar seus processos formativos na área da educação, Renata enfatiza que o

magistério – e não o curso de Pedagogia – lhe forneceu subsídios para suas atividades

docentes em sala de aula: “Eu me formei, em 84, no magistério, no curso normal. Ainda foi

lá no interior... Foi muito benfeito; muito benfeito: me deu uma base muito grande”. Se a

professora elogia a qualidade dos materiais ofertados na Pedagogia, indica, no entanto, que

76

esse curso tem ficado aquém de suas expectativas: “Eu estou fazendo a Pedagogia agora,

embora meu curso não tenha me acrescentado muito não... A faculdade em si, não! O

material é rico, então eu procuro ler em casa, mas eu gosto de buscar”.

Essa crítica, relacionada aos cursos de formação inicial (Normal e Pedagogia),

assemelha-se àquelas feitas por muitos pesquisadores: no curso Normal – centrado no saber

fazer/instrumentalização técnica –, as disciplinas ofertadas não favorecem uma formação

sólida do professorado. Analisando a estrutura do curso Normal, Fusari e Cortese (1989)

indicam a fragilidade de seu currículo, a inexistência de projetos interdisciplinares e a

dificuldade de realizar estágios, entre outros fatores. Em relação à formação inicial, mais

especificamente à Pedagogia, Pimenta (1997, p. 5) aponta questões muito semelhantes,

principalmente no que tange à estrutura curricular desses cursos: o currículo apresenta grande

distância da situação real encontrada nas escolas; a formação centra-se “numa perspectiva

burocrática e cartorial, que não dá conta de captar as contradições presentes na prática social

de educar”.

Objetivando suprir uma lacuna de formação e, ao mesmo tempo, atender uma

demanda do artigo 62 19 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394/1996, os cursos a

distância ou semipresenciais têm sido um dos caminhos encontrados por muitos professores

que precisam complementar sua formação. No entanto, em função da desvalorização da

profissão docente e de sua baixa remuneração, muitos são os que assumem cargas excessivas

de trabalho, desenvolvendo suas atividades em duas ou mais escolas, a fim de garantir uma

renda mensal minimamente satisfatória. Por isso, algumas das características dos cursos a

distância favorecem a formação do professorado. Atualmente, por meio das tecnologias da

informação, é possível organizar o tempo de forma a aproveitar as horas disponíveis para o

estudo. Esse aspecto, por facilitar a adequação da carga horária, impulsiona a procura por essa

modalidade de ensino (GATTI, 2008).

No que concerne aos cursos a distância em Pedagogia, o eixo IV do documento final

da Conferência Nacional da Educação (Conae) 20, elaborado em 2010, aborda aspectos ligados

19

Este artigo rege que a formação de docentes para atuar na educação básica deve dar-se em nível superior, em

curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida,

como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do

ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal.

20 O documento oficial da Conae 2010 não tem força de lei. Apesar da legitimidade, em virtude da ampla

representatividade dos mais diferentes setores da sociedade, o que ele oferece são subsídios para a

formulação de políticas para a educação brasileira (SOMMER, 2010, p. 24).

77

à formação e à valorização dos profissionais de educação. Com o objetivo de oferecer

subsídios para a formulação de políticas educacionais no Brasil, o documento destaca

possíveis soluções para os processos educativos, que não poderiam deixar de abranger,

também, a formação inicial dos professores nos cursos a distância. Buscando “superar as

soluções emergenciais” (CONAE, 2010, p. 80) e a precarização da formação inicial a

distância, sugere-se que:

[...] a formação inicial deverá se dar de forma presencial, inclusive aquelas

destinadas aos/às professores/as leigos/as que atuam nos anos finais do

ensino fundamental e no ensino médio, como aos/às professores/as de

educação infantil e anos iniciais do fundamental em exercício,

possuidores/as de formação em nível médio. Assim, a formação inicial pode,

de forma excepcional, ocorrer na modalidade de EAD para os/as

profissionais da educação em exercício, onde não existam cursos presenciais,

cuja oferta deve ser desenvolvida sob rígida regulamentação,

acompanhamento e avaliação. Quanto aos/às profissionais da educação em

exercício, sua formação continuada pode, de forma excepcional, ocorrer na

modalidade de EAD, nos locais onde não existam cursos presenciais. A

oferta de formação deve ser ampliada e contar com a participação dos

conselhos estaduais e municipais de educação, a fim de garantir as condições

de acompanhamento dessa formação (CONAE, 2010, p. 83).

A fala de Renata reforça a precariedade de seu curso de formação inicial, oferecido na

modalidade de ensino a distância (EAD). Como já dito, se de um lado o “curso não tem

acrescentado muito”, os materiais didáticos oferecidos pela instituição são considerados de

boa qualidade. Vê-se, então, que sua motivação para a leitura dos materiais parte da

necessidade de buscar novos conhecimentos: “O material é rico, então eu procuro ler em

casa; mas eu gosto de buscar”. Pode-se inferir que, se Renata não se interessasse por se

apropriar das leituras do curso, sua insatisfação seria ainda maior e, consequentemente, sua

formação ficaria ainda mais comprometida.

Quando a professora diz que o curso Normal “foi muito bem feito” e que lhe “deu uma

base muito grande”, infere-se que a instrumentalização técnica é constituinte dos sentidos

atribuídos por Renata ao processo de formação inicial. O saber fazer é fortemente enfatizado,

como se a teoria não fosse um aspecto importante para alcançar a necessária articulação

dessas duas instâncias – a teórica e a prática. Aparentemente, Renata não tinha essa

expectativa, quiçá por desconhecimento, quiçá porque o modelo de “receitas prontas” a

ajudava a escapar de situações embaraçosas vivenciadas em sala de aula. O que se evidencia

em sua fala é o fato de não haver cogitado que a formação teórica – proposta pelo curso de

78

Pedagogia –, se aliada aos seus conhecimentos práticos, seria de valor para sua atividade

profissional.

Além dos aspectos acima arrolados, destaca-se outro, que se liga à formação oferecida

pela SEE de São Paulo. Essa secretaria desenvolveu e ofereceu a sua rede de ensino um

programa de educação continuada, cuja frequência asseguraria a formação universitária: o

Programa de Educação Continuada (PEC) – Formação Universitária. De excelente qualidade

e totalmente gratuito, esse programa foi elaborado por três das melhores universidades do

estado de São Paulo: USP, PUC e Unesp. Cabe salientar que atendeu, entre 2001 e 2003, sete

mil professores efetivos da 1ª à 4ª série. Para dar conta dessa grande missão, várias estratégias

de ensino foram adotadas pela SEE: videoconferências, trabalho monitorado, vivências

educadoras e oficinas culturais (DAVIS et al., 2008).

Se vários aspectos que se ligam ao gosto por lecionar – como a busca de novas

estratégias de ensino e, principalmente, seu envolvimento com as propostas formativas –

perpassam o discurso de Renata, algumas questões ficam pendentes: por que ela não teria

aproveitado a oportunidade oferecida pela SEE e cursado o PEC Formação Universitária?

Não seria esse o melhor caminho a ser seguido para aprimorar sua formação profissional? Por

que teria escolhido outra instituição para realizar seu curso de Pedagogia?

Essa contradição – a seleção de um curso pago de pior qualidade por parte de alguém

que se diz entusiasmado e motivado pela docência – começa a ficar mais aparente, sugerindo

que a busca por aprimoramento profissional e o entusiasmo pelo ensino podem estar

amparados na racionalidade técnica e em situações de aprendizagem que dispensam grande

investimento cognitivo. Quisesse Renata realmente ampliar sua formação e se resguardar de

punições advindas do não cumprimento da Lei nº 9.394/1996, art. 62, não teria procurado se

envolver com as propostas do referido programa? No que concerne ao PEC Formação

Universitária, seus resultados mostraram-se muito relevantes: na condição de alunos, os

professores puderam refletir sobre “o exercício dos ofícios discente e docente” e compreender

não só os processos de ensino e aprendizagem como também “suas práticas e representações

enquanto professores, sobretudo no que diz respeito às atitudes em relação ao corpo discente e

a certas atividades propostas em aula” (OLIVEIRA, 2008, p. 1).

Diante do exposto, pode-se supor que Renata buscou sua formação basicamente para

atender às prescrições da LDB, uma vez que sem formação específica em nível superior, ela

79

poderia perder seu cargo como professora concursada e, consequentemente, não conseguiria

se aposentar após 27 anos de carreira docente.

4.3.2 Núcleo 2 – Experiências profissionais na área da educação e os processos

formativos: a visão sobre o Ler e Escrever

Este núcleo versa, principalmente, sobre as experiências profissionais de Renata e sua

visão sobre o Programa Ler e Escrever. Estão articulados os indicadores da entrevista e de

alguns momentos da ACS que, de forma geral, ilustram algumas das características pessoais

da professora e as influências dos processos formativos: a) as experiências profissionais na

educação e na formação continuada; b) o Programa Ler e Escrever e o papel do coordenador

pedagógico nos momentos de formação continuada; c) os materiais do Programa Ler e

Escrever: “eu gosto dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam também”; d) a busca por

novas estratégias: “eu estou em final de carreira, mas quero mais!”.

As experiências profissionais de Renata no campo da educação e, em particular, na

formação continuada, são elementos importantes para o processo constitutivo docente. Renata

comenta seu percurso formativo e suas experiências em sala de aula de maneira ampla: já

trabalhava há 12 anos com alfabetização no 1° ano (ou antiga 1ª série); havia trabalhado na

Apae; fora assistente técnico-pedagógica (ATP) na Diretoria de Ensino, em Lins, na sala de

aceleração. Além disso, havia participado de diversos cursos de formação continuada: Letra e

Vida, Projeto Ipê, Teia do Saber. Desde 2008, estava participando dos processos formativos

do Programa Ler e Escrever.

Contudo, a professora acredita que “só fazer curso não é suficiente não, eu tenho

que aprender mais! Eu tenho muito que melhorar ainda”. Ou seja, Renata atrela a

constituição dos sentidos sobre a atividade docente ao desenvolvimento profissional. De que

forma suas expectativas poderiam ser sanadas? Como aprender mais, se “só fazer curso não é

suficiente”? Os dados colhidos na entrevista fornecem importantes subsídios para responder a

essa pergunta:

Igual, teve um curso de fantoches que eu gostaria de ter ido, só que era

no horário de HTPC e a diretora não liberou... Então fica truncado

porque não tinha outro horário e eu não pude fazer. Isso para mim tinha

que melhorar muito, muito, muito porque eu quero aprender, mas eu

tenho que ter oportunidade.

80

Como se pode depreender dessa fala, Renata gostaria de contar com uma escola mais

flexível, na qual tivesse oportunidade de dar continuidade aos cursos de aprimoramento

profissional. O aprendizado vincula-se, assim, às possibilidades abertas (ou fechadas) que

surgem no decorrer das trajetórias profissionais. Quando diz “eu quero aprender, mas eu

tenho que ter oportunidade”, Renata parece não perceber que as aulas de trabalho

pedagógico coletivo – ATPCs21

– são oportunidades de formação continuada oferecidas na

escola e, em especial, que abrir exceções pode ser um problema para a organização da escola.

Verificam-se, ainda, no discurso da professora, que seu tempo e suas condições

financeiras são fatores impeditivos objetivos para que siga outras atividades: “Eu queria

fazer um curso de contação de história, porque eu quero aprender, mas eu não tenho

tempo e nem dinheiro – é tudo muito caro!”. Aqui se evidencia, além da queixa sobre a

gestão da escola, outra questão que entra em jogo quando se trata de cursos de formação

continuada: as condições econômicas necessárias para a realização de cursos. Um terceiro

aspecto mencionado relaciona-se à precariedade da oferta para quem leciona nos anos iniciais

do ensino fundamental: “para o primeiro ano não tem nada, nada, nada! Já tem uns três

anos que eu não participo de nenhuma capacitação, porque não tem oportunidade. Eles

[SEE] não oferecem nada e quando oferecem...”. A professora aponta, nessa fala, que

considera central o papel da SEE no desenvolvimento profissional dos docentes. Todavia,

parece desconsiderar, assim, os momentos de formação continuada oferecidos na própria

jornada de trabalho pelo Programa “Ler e Escrever”, assim como desconsiderou antes o PEC

Formação Universitária.

Analisando-se mais detidamente o discurso de Renata, observa-se que sua crítica se

pauta, mais especificamente, no ensino da Matemática: “já atuando muitos anos no

primeiro ano, eu gostaria [de fazer mais cursos], porque tem muita coisa que eu já

esqueci. Essa parte de Matemática”. Por meio da entrevista, das conversas casuais ocorridas

no decorrer da pesquisa e das observações em sala, o ensino da Matemática sempre se

apresenta como uma das dificuldades específicas dessa professora: “eu acho que tinha que

ter mais capacitação [em Matemática], mas nós não temos nada”. Vale destacar que até o

primeiro semestre do ano de 2012, a meta do Programa Ler e Escrever consistia em

alfabetizar “todas as crianças com até oito anos de idade – (2ª série/3º ano) –, matriculadas na

21

O termo HTPC – hora de trabalho pedagógico coletivo – foi substituído em 2012 por ATPC – aula de trabalho

pedagógico coletivo – em razão das mudanças na carga horária. Antes, a HTPC tinha duração de 60 minutos e,

atualmente, a ATPC ocupa 50 minutos; daí a mudança do termo “hora” para o termo “aula”.

81

rede estadual de ensino” (FDE, 2010, p. 1). Em 2012, após quatro anos de funcionamento, a

formação específica para a área da Matemática também passou a ser foco desse mesmo

Programa. No decorrer de uma das sessões de ACS (aula de Matemática), Renata aponta com

otimismo a nova proposta da Secretaria da Educação: “as atividades que o Ler propõe são

boas. Agora começou a formação da área de Matemática [Educação Matemática nos Anos

Iniciais – EMAI] e eu acho que, cada vez mais, só tem a melhorar”.

Diversas propostas voltadas à formação continuada de professores na área da

Matemática têm se implementado no Brasil nos últimos anos, em grande parte decorrentes

dos resultados desfavoráveis advindos do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e

do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp). Além das

avaliações governamentais, diversos estudos indicam que os alunos não têm conseguido

desenvolver conceitos e habilidades básicas envolvidas na aprendizagem considerada

desejável para o ensino fundamental I. O quadro agrava-se ainda mais quando se sabe que

também a formação docente está sujeita a deficiências conceituais, em especial no que

concerne ao campo da Matemática (PIROLA, 2000; QUINTILIANO, 2005; VIANA, 2005;

PIROLA; MORAES, 2009).

Os alarmantes resultados advindos das avaliações governamentais e das pesquisas

acadêmicas elucidam a “natureza das dificuldades dos alunos e professores no processo

ensino-aprendizagem da Matemática” (PIROLA; MORAES, 2009, p. 183). A articulação das

discussões teórico-acadêmicas e dos índices das avaliações deveriam subsidiar as propostas

veiculadas nos programas de formação contínua de docentes. Contudo, apesar do quadro

atual, talvez seja muito audacioso pretender uma reversão instantânea tanto dos resultados

obtidos nas avaliações quanto das lacunas da formação inicial e continuada. Conhecer as

expectativas dos docentes, suas atividades educativas e seus conhecimentos prévios,

permitiria não apenas novas reflexões, como também impulsionaria um movimento de

ressignificação do ensino necessário para o ensino fundamental. Assim, o pressuposto

primordial balizador dos processos formativos deveria residir no fato de que:

[...] o conhecimento adquirido na formação inicial se reelabora e se

especifica na atividade profissional para atender à mobilidade, à

complexidade e à diversidade das situações que solicitam intervenções

adequadas. Assim, a Formação Continuada deve desenvolver uma atitude

investigativa e reflexiva, tendo em vista que a atividade profissional é um campo de produção do conhecimento, envolvendo aprendizagens que vão

além da simples aplicação do que foi estudado (MURTA; SILVA;

CORDEIRO, 2007, p. 8).

82

Apesar de a professora salientar a qualidade do Programa Ler e Escrever, é possível

perceber, nesse processo formativo, alguns aspectos que se encontram mal elaborados e que

entram em contradição entre si, principalmente no que diz respeito ao papel da coordenação

pedagógica:

[...] o Ler é assim, mas ele tem que funcionar, né? Este ano ele está meio

assim... Por conta da carga de trabalho do próprio coordenador

pedagógico, não tem sobrado tempo de estudo com a gente... E tem o

nosso lado, que a gente acaba que fica mais no “blábláblá” do que no

estudo mesmo.

De fato, os momentos de formação continuada previstos no Programa Ler e Escrever

devem ser conduzidos pelos coordenadores pedagógicos (CPs) de cada escola. Para que esses

coordenadores tenham condições de formar seus professores, o Programa oferece-lhes oito

horas semanais de formação na diretoria de ensino de sua região (formação em serviço). O

processo de formação continua junto aos professores nas diferentes unidades escolares, em

um período de quatro horas uma vez por semana, constituindo-se, também, em uma formação

em serviço.

Além disso, prioriza-se que a ATPC também seja utilizada pelos CPs para trabalhar as

propostas do Programa com os docentes. Esse modelo de formação foi adotado pela SEE de

São Paulo com o intuito de facilitar e ampliar largamente as possibilidades de formação de

seu professorado, levando-as a efeito nas próprias escolas da rede estadual. No entanto, para

que essa proposta pudesse se viabilizar, seria necessário que todos estivessem engajados em

um trabalho colaborativo voltado à utilização do Programa no decorrer das atividades com os

alunos. É interessante considerar que a professora atribui as falhas no processo formativo não

apenas à coordenadora pedagógica, mas também a si mesma e aos próprios colegas de

trabalho. Dessa forma, ela não parece se isentar de responsabilidade diante dos problemas

identificados nesse processo: todos ficam no “blábláblá” e o processo formativo parece ser

desconsiderado.

Ao discutirem os elementos que constituem a formação continuada de professores,

Franco e Longarezi (2011, p. 574) salientam que o formador exerce a função de mediador, por

ser alguém que conhece aquele grupo ou que dele faz parte. Esse formador – no caso desta

pesquisa, a coordenadora pedagógica – não é apenas “um transmissor de informações,

técnicas e de procedimentos para aqueles que, supostamente, não os tenha.” Deveria existir,

assim, segundo os autores, uma postura epistemológica e filosófica que sustentasse “esta outra

83

forma de processar o conhecimento, de se fazer educação”, que considerasse a formação

contínua como um processo que se constitui “no coletivo de saberes e fazeres, na relação

dialógica e contextualizada”. No entanto, isso parece não acontecer na escola investigada.

Ainda ao trazer à tona sua apreensão acerca da formação oferecida pelo Ler e

Escrever, Renata aponta caminhos para superar a situação atual de sua instituição. Para ela, o

processo formativo poderia ser diferenciado “porque senão fica um repasse de informações

e, às vezes, nesse repasse nem tudo é falado. A gente não ouve da boca do próprio

formador as coisas como a coordenadora pedagógica tem a oportunidade de ouvir”. Por

essa fala, percebe-se a importância do papel do CP nos momentos de formação continuada:

como visto anteriormente, é ele quem media os conhecimentos e as ideias, promove as

discussões, a troca de experiências e direciona os encontros. Apesar de Renata compreender o

esforço da coordenadora pedagógica, ressalta que:

[...] preferiria mil vezes ter essa formação direta, como a coordenadora

tem. Acho que a gente aprenderia muito mais e utilizaria esse mesmo

tempo para a formação em si. Porque eu acho que escaparia desse

negócio de sair, de vez em quando, do foco do estudo, você entendeu?

Renata acredita que os momentos de formação continuada, quando realizados na

diretoria de ensino, são mais eficazes e mais proveitosos, justamente por evitar conversas

paralelas, que não favorecem o aprendizado coletivo e, tampouco, a colaboração entre os

pares. Ou seja, o modelo de “formação em cascata” privilegia os que são capacitados pela

primeira vez: depois, forma-se um telefone sem fio, com perdas substanciais de conteúdo e,

portanto, da significação pretendida. Segundo a docente, o conhecimento é transferido

diretamente da idealizadora da proposta aos coordenadores, como se eles não se apropriassem

de maneiras diferentes dessas informações, atribuindo-lhes sentidos e significados próprios,

particulares, idiossincráticos. Dessa forma, ressente-se da coordenadora pedagógica, por

acreditar que ela deixa de repassar aos docentes partes importantes do conteúdo, gerando,

dessa maneira, lacunas de conhecimento.

Não se pode desconsiderar essa razão alegada por Renata. Sua crítica incide sobre a

coordenadora de sua escola, que deixa de cumprir bem suas funções: organizar, planejar os

momentos formativos – e neles intervir –, para que o grupo possa ter uma formação centrada

nos aspectos e nas diretrizes do referido programa. Foi possível perceber que Vivian, a CP da

escola, relata, no decorrer de sua entrevista, que sua carga de trabalho a impede, de um modo

geral, de preparar a contento as atividades previstas, fato que gera resistências e má vontade

84

nos professores para participarem do Programa. Essa excessiva centralização na figura da

coordenadora – que se vê sobrecarregada, sem condições de atender a suas múltiplas funções

na escola e às resistências dos docentes em participar das ações de formação – pode ser

alcançada, segundo Franco e Longarezi (2011, p. 573), mediante:

[...] a construção de condições objetivas a partir das quais seja possível a

construção de trabalhos que não somente incluam os professores em seus

processos de formação, mas que também possibilitem a constituição de

coletivos que assumam suas necessidades e as transformem em atividades

formativas, potencializadoras do desenvolvimento profissional docente.

Os trechos analisados anteriormente remetem, também, à compreensão do gênero

profissional deste grupo. Para Clot (2006, p. 50), o gênero profissional é a experiência

histórica, coletiva, impessoal, processual, cognitiva e emocional: “uma forma de rascunho

social, que esboça as relações dos homens entre si para agir no mundo”. Por ser um sistema

em constante movimento, engendra normas e padrões que possibilitam saber “fazer o que há

de fazer, maneiras de fazer na companhia dos outros, de sentir e de dizer, gestos possíveis e

impossíveis dirigidos tanto aos outros como ao objeto”. É uma forma de vincular os atores de

uma situação profissional, como pessoas que apreciam, “compreendem e avaliam essa

situação da mesma maneira” (CLOT, 2006, p. 41). Desse modo, o grupo ocupa um papel

central, pois ele “não é uma coleção de indivíduos, mas uma comunidade inacabada, cuja

história define também o funcionamento cognitivo coletivo” (CLOT, 2006, p. 38).

Os movimentos do gênero são engendrados por uma multiplicidade de fatores

imbricados nas normas e nos procedimentos que os profissionais de um determinado coletivo:

[...] conhecem e veem, esperam e reconhecem, apreciam ou temem; é o que

lhes é comum e que os reúne em condições reais de vida; o que eles sabem

que devem fazer graças a uma comunidade de avaliações pressupostas, sem

que seja necessário reespecificar a tarefa cada vez que ela se apresenta. É

como uma “senha” conhecida apenas por aqueles que pertencem ao mesmo

horizonte social e profissional (CLOT, 2010, p. 121-122).

Se o coletivo profissional tem papel central nos movimentos e nas transformações do

gênero, é possível inferir que esse mesmo coletivo, seja pela precária mediação da CP, seja

pelo “comodismo” dos docentes, encontra-se fossilizado, sem conseguir avançar, portanto, em

função dos momentos de formação continuada. As conversas que fogem do foco do Programa

Ler e Escrever acabam sinalizando, implicitamente, as normas que regem o grupo. É assim,

como parte integrante desse coletivo, mas também como sujeito único, que a professora

Renata se apropria das ideias, das propostas e das atividades do referido programa, quase

85

alcançando sua meta: que a maior parte de seus alunos consiga concluir o 1° ano com domínio

da leitura e da escrita. Os que não atingiram essa meta ficaram dela muito próximos. Teria

sido possível obter melhores resultados, ou seja, um no qual a totalidade dos estudantes

tivesse aprendido a ler e escrever? Se sim, como?

Depreende-se, então, que o estilo de Renata é fundamental em sua tarefa de ensino. O

estilo pessoal é movimento, é uma “metamorfose do gênero em curso de ação”; é, também, “a

transformação dos gêneros na história real das atividades, no momento de agir em função das

circunstâncias” (CLOT, 2010, p. 126). Ao enfrentar as diversas variáveis que perfazem a vida

do gênero, Renata liberta-se e afasta-se de seu estilo pessoal no decorrer de suas atividades

docentes. No entanto, as (re)criações estilísticas não negam totalmente o gênero – não são

dois elementos que se opõem, tal como na lógica formal –, mas se interpenetram, num

movimento dialético de oscilação e manutenção. Vale destacar que esse movimento de

“libertação do sujeito para agir” não se volta somente ao coletivo e ao que deve ser feito;

dirige-se, também, à professora em tela, uma vez que:

[...] o estilo é, da mesma forma, a distância que um profissional interpõe

entre sua ação e sua própria história; é quando ele a adapta e a retoca,

colocando-se à margem dela por um movimento por vezes rítmico, que

consiste em se afastar dela, em solidarizar-se e confundir-se com ela, assim

como dela se desembaraçar, segundo as contínuas mudanças de perspectivas,

as quais podem ser, igualmente, consideradas criações estilísticas (CLOT,

2010, p. 128).

Durante a pesquisa, as falas informais da CP evidenciam alguns de seus

questionamentos quanto ao coletivo de professores. Se Renata consegue atingir a meta de

ensinar a maioria de seus alunos a ler e a escrever, por que os demais colegas tinham

dificuldades em fazê-lo, ou seja, em seguir o Programa e suas propostas? Talvez falte à

coordenadora um processo reflexivo e crítico acerca de alguns aspectos, a saber: a) de como

ela se apropria dos conteúdos do Programa Ler e Escrever em seu processo formativo; b) da

forma como conduz as próprias atividades junto ao grupo de professores; c) dos próprios

momentos de formação do Ler e Escrever, que constituem um dos poucos espaços de troca e

colaboração entre os docentes. De certo que a rotina e as atividades sob a tutela de qualquer

CP são inúmeras e exaustivas, mas a veiculação da proposta do programa e o processo

formativo do grupo de professores constituem sua responsabilidade. Desse modo, é

importante valorizar a construção de uma cultura colaborativa na própria unidade escolar,

com grupos de estudos, presença de mentores, trocas de experiências, entre outros, para que

86

cada um seja empoderado como docente, ao ter seu poder de agir aumentado e, também,

compartilhado com seus pares.

Ao comentar os materiais do Programa Ler e Escrever, a professora disse “eu gosto

dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam também”. Talvez seja por isso que, ao

relatar sua experiência com o programa, ela tenha afirmado: “Já é o segundo ano que eu

estou trabalhando com um 1° ano seguindo o Ler e Escrever e é muito legal”. Ao

salientar os aspectos positivos dessa proposta, a docente ressalta que:

[...] os materiais são bons e me ajudam muito na minha prática. Igual, às

vezes, eles [os materiais] trazem outras opções para a gente fazer em sala

e, daí, dá para trabalhar com os alunos que já têm facilidade no assunto

e com aqueles que ainda não têm. Me ajudam no planejamento

também... Ajudam a ver outras possibilidades de trabalho.

Pode-se perceber, nesse trecho, a importância do material didático como balizador das

atividades de Renata com seus alunos. Embora seja altamente prescritivo, o material sugere e

possibilita que tanto essa professora quanto os demais professores ampliem suas

possibilidades de trabalho em sala de aula. Quando Renata afirma que “dá para trabalhar

com os alunos que já têm facilidade no assunto e com aqueles que ainda não têm”,

evidencia sua noção de desenvolvimento e aprendizagem, pois privilegia a heterogeneidade

de seu grupo. O fato de o professor reconhecer que os alunos são diferentes aumenta as

chances de equidade no ensino: todos têm oportunidades diversificadas de aprender. Se o

material didático – instrumento norteador e mediador – favorece esse processo, o docente

pode organizar os conteúdos curriculares de forma não mecanicista, ou seja, utilizando

estratégias de ensino e aprendizagem variadas, que possam promover a aprendizagem dos

alunos ou, segundo a ótica da Psicologia Sócio-Histórica, incidir na zona de desenvolvimento

proximal (ZDP) de cada aluno.

Ainda no que se refere aos materiais didáticos oferecidos pelo programa, no momento

da ACS (episódio Rapunzel), Renata reafirma a importância do projeto para suas atividades:

“[...] o Ler é um norte para o meu trabalho. Eu gosto de tentar, sabe? E o Ler me dá essa

oportunidade de experimentar e isso eu gosto muito. Tem dado muito certo”. O

programa, com base na abordagem da Psicologia Sócio-Histórica, fomenta a liberdade de

trabalhar com níveis de aprendizagem diferenciados em sala de aula, incidindo, então, nas

diferentes zonas de desenvolvimento do grupo de alunos. Por meio do excerto acima, é

possível inferir que os sentidos que constituem as atividades de Renata são marcados pela

busca, pela experimentação e pela novidade.

87

Mesmo diante da experiência de 12 anos como professora em salas de alfabetização,

Renata afirma ter aprendido – “não faz muito tempo”, com a formação no Programa “Ler e

Escrever” – que ela “deveria ler todos os dias [para os alunos]: Eu aprendi isso no Ler

mesmo”. Esse trecho ilustra a importância do processo formativo e do Guia de Planejamento

e Orientações Didáticas – Professor Alfabetizador 1° ano22 para as atividades da professora. A

prática como alfabetizadora permite a Renata vivenciar diversas formas de ensinar, porém o

Programa “Ler e Escrever” parece ter ampliado seus conhecimentos. Para ela, os ganhos em

sua aprendizagem são notórios e podem ser observados em sua própria prática: “eu vejo isso

nesse ano, como foi rico e foi uma coisa de louco. Eles aprenderam rápido demais”.

Embora tenha passado por diversos processos formativos e disponha de uma ampla

experiência prática em sala de aula, cabe perguntar por que é somente por meio do Ler e

Escrever que Renata aprende que deveria ler para os seus alunos com frequência. De fato, os

saberes docentes não advêm única e exclusivamente da prática, mas devem estar também

fundamentados na teoria. Contudo, a fala de Renata sobre sua aprendizagem reforça as

características altamente prescritivas do Programa Ler e Escrever, que recomenda ao

professor, no Guia de Planejamento e Orientações Didáticas, uma leitura diária aos alunos. No

entanto, considerando as lacunas apontadas por Renata sobre seu processo formativo, tudo

indica que, ao seguir essa prescrição, a professora tenha notado seus resultados positivos e,

por esse motivo, continua seguindo o modelo, como se fosse uma “receita pronta”. Os

aspectos que parecem prevalecer nas atividades de Renata são aqueles que têm a prática e o

saber fazer como referências centrais, sem a devida reflexão teórica sobre o processo, que

acaba sendo preterido, ganhando mais destaque o produto final. O movimento de ensino-

aprendizagem está, portanto, pautado essencialmente pela prática docente.

Na entrevista, ao falar das percepções da proposta do Programa Ler e Escrever, a

professora identifica mudanças no decorrer de suas atividades docentes e atribui isso tanto a

seu processo formativo quanto a sua prática: “Eu já vi uma diferença [na prática] e eu acho

que eu também já me aprimorei de um ano para o outro. [...] isso tudo recebendo crianças

com cinco anos e tem sido muito legal”.

22

Material elaborado e entregue a todos os professores da rede pública paulista. Nesse guia, os professores

encontram procedimentos e alternativas para estimular a aprendizagem de seus alunos. De caráter altamente

prescritivo, com uma linguagem fácil e acessível, é uma ferramenta que objetiva auxiliar o professor no

decorrer de seu processo de formação continuada e em suas atividades em sala de aula.

88

Outra questão importante é a aceitação da proposta por parte dos docentes. A

professora diz: “gosto dessa proposta e vejo que os alunos gostam também. [...] Funciona,

é rico o programa. [...] o programa é ótimo, é ótimo mesmo!”. Interessada em

compreender a avaliação dos materiais elaborados pela SEE de São Paulo, Rosa (2012, p. 22)

verifica que “as professoras foram praticamente unânimes em relação à sua utilidade para o

trabalho de sala de aula, referindo-se a eles como excelentes, muito bons, fáceis de entender”.

Apesar da aprovação dos professores em relação ao programa, Renata aponta algumas falhas

relativas ao conteúdo dos materiais propostos: “o dia do Índio, o livro propõe algumas

atividades, mas eu acho pouco e eu sempre complemento”. Vale salientar que foi possível

observar que a professora propõe atividades diversificadas e busca complementar a proposta

(embora siga as prescrições dos materiais do programa).

Outro entrave identificado por Renata é a distribuição tardia dos materiais: “o

material de 1° ano começou a vir aqui pra gente só nesse ano [2011], antes não tinha.

Ano passado eu trabalhei com um 1° ano e não teve material. Eu trabalhava com livro

meu mesmo, em cima do meu material”. Cabe aqui uma questão: como a SEE espera que os

professores consigam alfabetizar 100% das crianças com até oitos anos de idade, se uma das

ferramentas primordiais – os livros didáticos – não é distribuída para todas as escolas da rede

pública estadual paulista a tempo?

É interessante salientar que, no ano de 2012, os livros somente chegam à escola no

mês de junho. Para prosseguir com suas atividades, Renata utiliza os de 2011. Em conversas

informais, a professora sempre se queixa da falta do material, salientando o quanto seria

produtivo para os alunos se dispusessem desse suporte. Conversas informais com a CP

revelam que todos na escola questionam essa falta dos livros e que ela se sente pressionada,

sobretudo pelos professores. Em todos os encontros formativos dos quais participa, a falta de

material é sempre discutida com a formadora, porém não lhe cabe a entrega do material. Esses

entraves ilustram a importância do gerenciamento e do planejamento das políticas públicas,

em especial daquelas cujo foco é a melhoria da qualidade de ensino: além da formação dos

professores, é de extrema relevância que os alunos tenham seus materiais didáticos no início

do ano letivo, visto que são ferramentas que facilitam, em muito, o processo de ensino-

aprendizagem.

Apesar dessas adversidades, Renata salienta o prazer que seu grupo de alunos tem em

poder utilizar o material didático: “eles andam com os deles [livros do Programa “Ler e

Escrever”] na bolsa, porque eles adoram ler”. A relação que se estabelece entre o saber e os

89

processos de leitura e escrita (mediados pela professora) favorece a relação dos alunos com o

material didático. Além disso, para Renata, há outros desafios que motivam os alunos: “Têm

umas atividades de adivinhar, o material é muito rico”.

Entretanto, o relato positivo não afasta a visão das grandes contradições entre a meta

proposta pela SEE e os conteúdos presentes nos livros didáticos dos alunos. Ainda na

entrevista, Renata aponta que “o material que vem para o aluno, eu achei pobre, porque

eles [SEE] estão querendo muito mais do que aquilo que o material do aluno está

oferecendo”. Durante a ACS, a professora complementa seu ponto de vista sobre a temática:

“na verdade, o material de 1° ano, eu achei fraco para mim, você entende? Eu achei que

o de 2° ano para minha sala era muito mais interessante”. No decorrer das observações e

do processo de filmagem, foi possível perceber que a professora utiliza com seus alunos de 1º

ano os materiais destinados aos alunos de 2º ano/1ª série (livros de capa laranja). Os motivos

que balizaram essa escolha de Renata aparecem na ACS quando ela confirma que:

[...] usar o livro [de textos] laranja [do Programa “Ler e Escrever”] foi

uma opção minha. [...] Como o desenvolvimento da sala foi muito

rápido, eu percebi que muitas crianças se alfabetizaram num piscar de

olhos e, aí, eu queria mais e mais para eles. Daí, eu fui buscar esse livro.

Não é material de 1° ano... É um material de 2° ano, esse livro de texto. Só que, como tinham alguns na escola, eu busquei fora também e completei

para eles.

Desse trecho, pode-se depreender a atenção, o zelo e, principalmente, o engajamento

de Renata para com sua turma. Como garantir, entretanto, a aprendizagem de todos os alunos

em tão pouco tempo? De fato, a maioria dos docentes tem por meta, como resultado final de

sua atividade, que seus alunos aprendam da melhor maneira possível. Contudo, como é

possível garantir uma aprendizagem tão sólida se a professora se sente compelida a valer-se

de outros tipos de materiais, como os do 2° ano/1ª série?

As atitudes educativas de Renata são endossadas tanto pela equipe gestora quanto

pelos pais dos alunos. Nota-se que os familiares incentivam as condutas da professora:

conversam constantemente com ela sobre o aprendizado dos filhos e a elogiam muito. As

interações sociais com os pais e o retorno que eles oferecem para Renata contribuem,

indubitavelmente, para que a professora se valorize no exercício profissional. Mesmo

seguindo a prescrição do Programa Ler e Escrever, a utilização de um material que aguce a

aprendizagem dos alunos é apoiada pela equipe gestora da escola; ou seja, mostra-se possível

90

romper com o modelo, desde que os alunos demonstrem interesse pelo aprendizado. Assim, a

professora encontra apoio para buscar novas estratégias e materiais.

Quando diz “eu quero aprender para ensinar melhor porque [...] eu ainda tenho

muito que aprender”, os motivos e as necessidades de Renata vão se revelando; ao

considerar que “por trás de cada intencionalidade sempre há, portanto, motivos que

impulsionam/mobilizam/direcionam o sujeito com vistas à satisfação de suas necessidades”

(SOARES, 2011, p. 102). A motivação de Renata está em querer ser uma melhor professora e,

por isso, a necessidade de aprender mais. Embora esteja prestes a se aposentar, a busca por

novas estratégias e alternativas de ensino revela que ela se interessa por seu ofício e que não

está apenas esperando pela aposentadoria. O aprendizado próprio é valorizado: “eu acho que

aquilo que eu não souber fazer, eu não vou saber ensinar”. Demonstra buscar formação

profissional que a auxilie a lecionar sem tantas agruras ou sofrimentos, podendo ver, no

sucesso de seus alunos, o seu mesmo. De fato, conhecer os conteúdos a serem trabalhados,

bem como as práticas de ensino, pode dar mais segurança e confiança para ensinar. Contudo,

esse excerto evidencia a concepção de ensino-aprendizagem da professora, segundo a qual a

noção de transferência de conhecimento dos adultos para as crianças novamente se revela.

A busca, característica marcante no discurso da professora – que diz estar “sempre

buscando e quero mais, você entendeu? Eu estou em final de carreira, mas eu quero

mais!” –, parece partir, também, de uma necessidade de compreender os motivos que causam

fracasso ou sucesso nas situações cotidianas em sala de aula. Apesar de estar bem próxima da

aposentadoria, Renata procura aprender com a experiência, evitando os equívocos de

determinadas situações e fazendo disso um meio de encontrar alternativas para refazer o

processo: “Na verdade, eu sempre fui meio ‘atiradona’, assim. Eu sempre busquei, eu

sempre busquei. Eu nunca fui uma pessoa que fica parada, não. Ah, deu certo? Então

vamos lá! É uma oportunidade... então, vamos tentar”.

Se a necessidade de compreender suas dificuldades está tão presente, levando-a a

desenvolver suas atividades da melhor maneira possível, pode-se indagar em quais fontes

Renata se apoia para superar os problemas que encontra em seu cotidiano escolar. Muito

provavelmente, mais no senso comum do que em especialistas da área. Procura na internet

pistas de como sanar suas dificuldades: “eu busco e eu lanço assim: dificuldade em tal

atividade e vou buscando”. Contudo, na internet, muitas vezes, encontra-se o modelo

“receitas prontas” e tal situação faz com que a professora se afaste do processo reflexivo sobre

sua atividade e recaia, novamente, no empirismo, como amparo aos problemas do ensino.

91

Impossível negar que a rede virtual seja uma ferramenta que facilita e amplia a troca de

informações, constituindo subsídio de pesquisa para muitas pessoas. No entanto, se Renata já

apresenta uma formação precária, por que não busca teóricos que possam norteá-la de forma

mais adequada em suas atividades?

Ao buscar informações, a professora destaca que também procura outras coisas que

lhe despertam interesse, mas não podem ser realizadas: “eu busco na internet, às vezes, um

teatro, mas o custo... Porque o salário não proporciona. Mas eu gosto de teatro, shows, leio

bastante... Eu tenho o hábito de ir só, no banheiro, lendo. E, aí, eu pego um livro e leio

ou a [revista] Nova Escola, e leio. Essa é a minha prática”. Fica claro, nessa fala, que

Renata compreende que não apenas o conhecimento escolar e a prática docente são

importantes: um bom docente precisa conhecer seu mundo e estar nele inserido. Daí sua busca

de enriquecimento cultural, como investimento educativo. Quanto mais a professora tem

acesso a bens culturais (teatro, shows, cinema, entre outros), mais ela pode problematizar

questões advindas do mundo próximo ou distante, referente às crianças ou a si mesma, sobre

questões afeitas à escola ou não.

Além disso, seu próprio conhecimento se amplia e possibilita modificar suas

atividades profissionais ou como cidadã, mãe, mulher, favorecendo uma visão mais crítica e

reflexiva do mundo. Renata culpa a desvalorização salarial pelos muitos impedimentos de seu

enriquecimento cultural; realmente, os salários oferecidos nas escolas públicas atualmente não

são suficientes, embora existam diversas possibilidades de acesso aos bens culturais sem

custos. Além disso, os professores da rede pública de ensino, desde 2001, têm direito a pagar

50% do valor do ingresso em qualquer atividade cultural, de acordo com a Lei n° 10.858.

Uma marca muito forte do discurso de Renata está no aspecto volitivo, no querer,

expresso aqui pelo buscar aprender e ensinar melhor. No entanto, essa melhoria não pode ser

sustentada apenas pelo senso comum. A professora aparentemente não percebe que nem todas

as revistas e os artigos da internet que discutem a educação são bons, assim como o que nela

se divulga nem sempre é suficiente para amparar as atividades docentes. No caso de Renata,

há carência de formação e não apenas de informação. Ao que tudo indica, apesar de suas boas

intenções, ainda há um longo caminho para que ela chegue ao que idealiza.

92

4.3.3 Núcleo 3 – Concepção de aluno: suas percepções e seus sentimentos sobre seus

alunos

As ideias apresentadas neste núcleo buscam elucidar a concepção de aluno sob a ótica

de Renata. Para tanto, suas falas – advindas tanto da entrevista (grafadas em preto) quanto das

ACS (grafadas em marrom – Aula de Matemática; lilás – Alfabeto móvel; e magenta –

Episódio Rapunzel) foram retiradas dos seguintes indicadores: as mudanças da carga horária

do ensino fundamental I e a influência da formação dos alunos na educação infantil; a

percepção de Renata sobre sua turma; os sentimentos de Renata acerca de suas atitudes com

os alunos: “aquela angústia, aquela coisa que eu quero, que eu quero, que eu quero e, aí, acaba

não acontecendo e é onde me frustra”.

Ao comentar as mudanças na carga horária do ensino fundamental I e sua experiência

com classes de alfabetização, a professora diz que “ano passado [2010] foi o primeiro ano

que o 1º ano foi instituído no estado. Então, no ano passado, eu trabalhei com um 1º ano e

neste ano [2011], estou com um 1º ano de novo”. Ao explicitar como via tais modificações no

sistema de ensino, comenta, com certo tom de espanto, a idade das crianças: “Nós estamos

recebendo bebês na escola, gente!”.

A fala de Renata sobre a mudança no ensino fundamental refere-se à Lei Federal nº

11.274, aprovada em fevereiro de 2006, que alterou os artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei de

Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996). Objetivando incluir uma parcela maior

de crianças no sistema educacional, essa lei estabeleceu novas diretrizes para o ensino

fundamental I e II, cuja duração passou de oito a nove horas. Desse modo, o último ano da

educação infantil é, atualmente, o 1º ano do ensino fundamental I, com matrícula obrigatória a

partir dos seis anos de idade. A lei determinava que as escolas se adequassem à nova

regulamentação até 2010. Na publicação, intitulada “Ensino Fundamental de nove anos –

orientações gerais” do Ministério da Educação, os argumentos para tal mudança são

justificados da seguinte maneira:

Os setores populares deverão ser os mais beneficiados, uma vez

que as crianças de seis anos da classe média e alta já se

encontram majoritariamente incorporadas ao sistema de ensino

– na pré-escola ou na primeira série do Ensino Fundamental. A

opção pela faixa etária dos 6 aos 14 e não dos 7 aos 15 anos

para o Ensino Fundamental de nove anos segue a tendência das

famílias e dos sistemas de ensino de inserir progressivamente as

crianças de 6 anos na rede escolar. A inclusão, mediante a

antecipação do acesso, é uma medida contextualizada nas

93

políticas educacionais focalizadas no Ensino Fundamental.

Assim, elas podem ser implementadas positivamente na medida

em que podem levar a uma escolarização mais construtiva. Isto

porque a adoção de um ensino obrigatório de nove anos

iniciando aos seis anos de idade pode contribuir para uma

mudança na estrutura e na cultura escolar. No entanto, não se

trata de transferir para as crianças de seis anos os conteúdos e

atividades da tradicional primeira série, mas de conceber uma

nova estrutura de organização dos conteúdos em um Ensino

Fundamental de nove anos, considerando o perfil de seus

alunos. (BRASIL, 2004, p. 17).

Por meio de sua experiência, iniciada em 2010 com alunos de 1° ano, as percepções de

Renata e as estratégias que utiliza para lidar com crianças mais novas vão ficando mais

aparentes:

Você exigir que uma criança fique sentada na carteira

cinco horas é demais para o meu gosto, por isso que às

vezes eu deixo... Quer correr, corre. É lógico que eu

não vou deixar [a criança se] machucar, eu dou um

pouco de liberdade, para ela poder extravasar, porque

eu acho o cúmulo isso!

Esse trecho indica que a professora tem certa flexibilidade ao trabalhar com alunos

mais novos. O próprio Ministério da Educação (2004) sugere aos professores do ensino

fundamental I que, ao receberem crianças mais novas, considerem que a prática educativa

requerer prazer e ludicidade, pois as brincadeiras espontâneas possibilitam a ampliação de

conhecimentos e, de acordo com a Psicologia Sócio-Histórica, impulsionam também o

desenvolvimento infantil como consequência. Renata ilustra, então, algumas das brincadeiras

que seus alunos fazem, utilizando, como exemplo, três meninos pertencentes a seu grupo:

“Eles adoram brincar de lutar, o Roberto, o Tadeu e o Hernesto. São os três e é demais!

Mas eu percebo que, se eu deixo um pouquinho, eles acabam voltando para a atividade

menos estressados. Então, eu procuro ficar sempre olhando, para eles não se machucarem”.

A simples escuta do relato pode levar a entender que Renata dá liberdade a seus alunos

ou que, com essa estratégia, que “desestressa os meninos”, a professora despenderia menor

esforço para manter a disciplina e, consequentemente, não teria tanta dificuldade em atender

ao restante do grupo. Contudo, uma análise mais detida permite ver que, na verdade, essa

parece ser uma estratégia para manter a ordem da sala de aula, pois, liberando os três alunos

para brincar, ainda que sob sua supervisão, há menos ruído e também menos movimentação

94

dos alunos pela sala. Mas isso não significa ensinar os meninos mais jovens, mas sim

abandoná-los, pois as aulas correm seu curso sem incluí-los.

Como a experiência embasa essa postura que desconsidera o aporte teórico, tal como

visto no núcleo 2, a professora não percebe que existem outras atividades ou brincadeiras –

que não as de luta – para que seus alunos, mais especificamente esses três, possam liberar

suas energias e, assim, voltar às atividades didáticas com um melhor nível de concentração.

Muito provavelmente, as atividades propostas pela professora desconsideram os

conhecimentos e as experiências prévias dos alunos, bem como suas possibilidades de se

manterem atentos ao que Renata tenta lhes ensinar.

Vale destacar que, no percurso das observações das aulas, os alunos Roberto e

Hernesto são os que mais apresentam dificuldades: eles quase não tomam notas, têm

dificuldades de leitura, são os mais dispersos. Essa dispersão pode atribuir-se à falta de

significado, para as crianças, do que lhes é proposto, pois diversas vezes não fazem o que a

docente lhes sugere. É possível perceber, então, que a “liberdade supervisionada” consiste em

um artifício que facilita a manutenção da ordem da sala, uma vez que, se estão livres

brincando, já não se levantam e não é necessário que Renata os repreenda.

É perceptível que, após as brincadeiras de luta, os alunos voltam para suas carteiras e

lá permanecem “acalmados” por um tempo; contudo, esse tempo não implica envolvimento

nas tarefas propostas, mas apenas atendimento à ordem da professora. Depreende-se, portanto,

que a docente deixa de oferecer atividades diferenciadas para que todos os alunos tenham

oportunidades de aprender, de acordo com seu ritmo e com seus pré-requisitos. De fato, vê-se

um resultado contrário: quanto menos a atividade leva esses aspectos em conta, mais agitadas

ficam as crianças. Ao olhar seus colegas trabalhando e sem compreender o que e como eles

podem fazer sua lição, só lhes restam o passeio pela sala e as furtivas brincadeiras com os que

vivem a mesma situação. A queixa quanto à idade dos alunos permanece constante no

decorrer do discurso de Renata. Ela enaltece, porém, as vantagens da educação infantil pelo

impacto causado nas crianças:

[...] eles estão vindo muito novinhos... No ano passado, eu até falei

para as meninas [outras professoras] – e isso é uma observação minha,

pela minha prática, tá? – as crianças já estão vindo mais maduras,

você entendeu? Então, a gente já vê que é uma mudança lá na

base mesmo, lá na educação infantil. Porque esse ano foi muito

rápido e eles se alfabetizaram muito rápido!

95

Renata reconhece, desse modo, que a passagem pela educação infantil, bem como a

renovação das práticas educativas levadas a efeito junto às crianças de zero a cinco anos

surtem um efeito positivo. Os estudos de Rossetti-Ferreira, Amorim e Oliveira (2009, p. 2)

mostram que Renata está correta. Para as autoras, esse nível escolar vem sofrendo um

processo intenso “de revisão de concepções e de seleção e fortalecimento de práticas

pedagógicas mediadoras da aprendizagem e desenvolvimento das crianças em creches e pré-

escolas”. Possivelmente, a professora, ao tecer tal comentário, estivesse “colhendo os frutos”

dessas novas práticas adotadas na educação infantil. Em uma das ACS, Renata reitera essa

apreensão positiva do trabalho educativo que se realiza nesse nível de ensino, salientando que,

quando bem estruturado, possibilita uma educação de melhor qualidade aos alunos e,

consequentemente, facilita aquele dos docentes de anos seguintes:

[...] eles estão vindo melhores da educação infantil, a base já está mais

estruturada. Eu acho que nós estamos num trabalho de sequência,

porque, às vezes, quando eu vou contar uma história, muitos já

ouviram, né? E ouviram lá na educação infantil... Nós estamos colhendo

os frutos agora. Eu acho que nós estamos no caminho certo. Nós temos

que tentar, arriscar. Nós vamos errar? Vamos sim! Mas temos que

tentar!

Ao exemplificar os benefícios de uma educação infantil de boa qualidade, Renata

recorre à “contação” de histórias. Ora, uma das premissas básicas do Programa Ler e Escrever

é a leitura diária com as crianças. Evidencia-se que, por meio dos conhecimentos adquiridos

nesse programa, a professora passa a seguir essa prescrição: leitura diária com os alunos. Mas

por que motivo ela menciona justamente a “contação” de histórias? Muito provavelmente,

porque ela – apenas após ter participado do Programa Ler e Escrever – adota a prática de ler

todos os dias com o grupo. Inegavelmente, houve investimentos públicos na formação dos

professores que trabalham na educação infantil e tais aspectos devem ter incidido na educação

dada aos alunos. No entanto, é só depois da formação no Programa Ler e Escrever que a

leitura diária se configura, para Renata, como um aspecto central do processo de letramento e

alfabetização nessa fase escolar. Isso explicita que, a despeito de essa ser uma visão que se

revela otimista diante do campo educacional, o que de fato se sobressai são as mudanças

práticas na atividade da professora: se não houvesse se apropriado da prática de leitura diária,

talvez não existissem evidências para ela de melhoria na educação infantil.

No que tange ao comportamento dos alunos, novamente Renata aparenta ter uma visão

otimista: “Eu não tenho problemas sérios com a minha sala, eu não tenho, não”. No

momento da ACS, reitera essa percepção, enaltecendo o comprometimento do grupo: “Estou

96

[satisfeita com a turma] mesmo porque eles foram muito espertinhos. Não teve muito

desgaste, sabe? Até em comportamento... eu não tive muito problema: esse ano, a minha

sala foi bem tranquila, bem comprometida”. Apesar de a professora ressaltar o bom

comportamento dos alunos, o barulho e as conversas paralelas no decorrer das aulas parecem

incomodá-la muito: “a minha sala é barulhenta e eu não consigo fazer eles ficarem

quietinhos! Mas eles participam muito, eles querem, eles gostam e eles se envolveram

comigo! O avanço é notório”. Contudo, o barulho ou a desordem parecem não interferir,

diretamente, em suas atividades docentes: “Tem hora que até eu falo para as meninas [outras

professoras]: ‘eu consigo isolar. Mesmo eles, com todo o barulho, eu consigo isolar isso’”.

Em conversas informais, ao longo da coleta de dados, Renata sempre demonstra

desagrado com o barulho de seu grupo de alunos. Embora afirme que o ruído não lhe parece

completamente negativo, as duas sessões de ACS foram de extrema importância para que a

professora percebesse que o ruído do qual reclamava não era única e exclusivamente de sua

turma. Como as salas de aula foram construídas umas ao lado das outras, o barulho vindo de

fora e de outras salas de aula é maior do que o da sua própria turma. No percurso de duas

sessões de ACS (duas aulas diferentes, filmadas em dias diferentes), a professora foi

convidada a focar seu olhar no comportamento de seus alunos. Com isso, foi possível notar

algumas mudanças em sua visão: “Nossa, eles estão quietinhos mesmo, nem eu, na hora,

tinha percebido isso... Eu acho que eu vou passar esses vídeos para eles, acho que eles

vão gostar de se ver... Nossa, é mesmo: o barulho de fora da sala é maior do que o de

dentro da minha sala”.

Em relação às atitudes tomadas frente aos alunos, a professora diz: “Eu acho que eu

falo muito alto, eu grito... Não é que eu grite, mas meu tom de voz já é alto mesmo, eu

acho que eu teria que trabalhar esse meu lado... E... Eu queria ser melhor!”. Em uma das

sessões de ACS, mesmo antes de o episódio terminar, a professora comenta que se acha

severa com seus alunos. No decorrer do diálogo com a pesquisadora, Renata retoma essa

apreciação: “É, eu achei que eu sou brava [risos]. Ah, tem horas que eu sou chata mesmo,

mas, na verdade, eu quero que eles aprendam e quando algumas crianças perdem o

foco, isso é que me deixa meio brava mesmo!”.

Fica claro, portanto, que, segundo Renata, o comportamento ideal para crianças de seis

anos de idade é o seguinte: todos quietos, focados na atividade, sem interagir uns com os

outros. Daí o fato de ela, em alguns momentos, exaltar-se com a turma. Renata compreende as

mudanças na faixa etária atendida pelo ensino fundamental I na rede pública estadual de

97

ensino e que crianças mais novas, com outras necessidades e possibilidades em termos de

desenvolvimento, estão sendo aí atendidas. Entretanto, recorre, em alguns momentos, a uma

postura autoritária para por fim ao ruído das crianças. Tal incômodo lhe ocasiona o barulho

que nem mesmo percebe que ele não se deve somente a conversas ou movimentações em sala,

mas a interferências externas. Ainda na mesma sessão de ACS, ela se refere às expectativas de

aprendizagem que tinha para sua turma e ao desagrado sentido ao observar a dispersão dos

alunos:

Eu quero conseguir fazer com que eles aprendam e eu acho que às vezes

eles dispersam um pouquinho. Um pouquinho não: bastante, porque eu

acho que tem algumas crianças que dispersam muito. O que eu tento

fazer é arranjar um jeito mais próximo para que todos estejam

envolvidos mesmo.

Se a professora compreende que as crianças atendidas atualmente no 1º ano são mais

novas e que apresentam necessidades diferenciadas, por que a dispersão do grupo tanto a

incomoda? Provavelmente, de acordo com um trecho retirado da entrevista, porque isso a

frustra:

Eu fico angustiada com isso, você entendeu? Eu sei que eu sufoco

eles [os alunos] um pouco, eu sei que cada um tem o seu tempo;

mas, às vezes, eu quero ir no meu tempo e essa ansiedade acaba

prejudicando um pouco. Eu acabo ficando muito em cima de uns

alunos e eu acho que isso acaba prejudicando, você entendeu? Ou

mesmo aquela angústia, aquela coisa que eu quero, que eu quero,

que eu quero e, aí, acaba não acontecendo. É onde me frustra.

Suas expectativas, quando não realizadas, geram um sentimento negativo, como se ela

falhasse no decorrer do processo de ensino-aprendizagem. Embora ela vincule a dispersão à

falta da esperada aprendizagem de seus alunos, é possível perceber que a frustração

desencadeia uma postura autoritária, que se revela por meio da fala em tom enérgico para

colocar ordem e silêncio na sala; impaciência; ameaças, etc. Nesse sentido, o momento da

ACS parece ter constituído uma rica oportunidade de auto-observação e de tomada de

consciência desses aspectos de sua atuação como docente.

Ao final dessa sessão, já com a câmera desligada, Renata salienta que não se sentiria à

vontade para realizar as sessões de ACC. O motivo principal alegado é o sentimento de

desconforto sentido diante das imagens e de não querer provocá-lo em outro colega de

profissão – fosse ele de sua unidade escolar ou um professor convidado de outra instituição. A

professora afirma ter percebido, em alguns momentos, o quanto era ríspida com os alunos e

98

que, por essa razão, não gostaria que ninguém mais a visse naquela situação. A

autoconfrontação pôde, portanto, facilitar o processo reflexivo de Renata sobre seu modo de

atuar como professora e, tendo em vista seu pedido, foram cumpridas apenas as três sessões

de ACS.

4.3.4 Núcleo 4 – Planejando e executando as atividades docentes

Este núcleo tem como eixo as estratégias pedagógicas utilizadas por Renata em suas

atividades de ensino e aprendizagem. Ao tratar dos entraves do espaço escolar e dos recursos

utilizados pela docente, é possível notar, via entrevista, certos aspectos objetivos, próprios da

estrutura da escola em que leciona, que impedem Renata de se valer, por exemplo, do acesso:

à internet, que é um recurso que eu gostaria de estar utilizando

com eles [os alunos] porque têm muitos sites de jogos e daria para

fazer um trabalho bem legal. Mas, muitas vezes, você não pode

usar porque ou não tem, ou não é permitido, ou não está

funcionando. Além disso, [...] aqui na escola, a biblioteca é

ocupada por uma sala de aula. Então, fica difícil [usar a biblioteca]

porque você tem que deslocar a professora e sua turma para outro

lugar.

Esse fragmento é de extrema importância para a compreensão dos entraves

encontrados pela docente no decorrer de suas atividades. Os recursos digitais poderiam,

efetivamente, auxiliá-la no processo de ensino-aprendizagem, mas, por falta de manutenção,

os computadores da escola estão inutilizados, o que dificulta o contato dos alunos com as

tecnologias da informação e, de certa maneira, impede-os de ampliar seus conhecimentos por

meio de outras ferramentas que não aquelas mais conhecidas – lousa, giz e material didático.

Interessa observar, ainda, que a estrutura física da escola não comporta as prescrições do

Programa Ler e Escrever: a biblioteca da escola não pode ser utilizada, pois está sendo

ocupada por uma sala de aula. Se o Programa Ler e Escrever incentiva a apreciação de textos

literários diversificados, como atender a essa recomendação se não se pode ter acesso à

biblioteca – espaço fundamental para o contato com materiais desse tipo?

Como visto no capítulo três deste estudo, o Programa Ler e Escrever fornece acervo

de 43 livros de literatura infantil por classe. Renata utiliza esse material – além do livro de

texto do aluno – para poder responder ao solicitado na formação recebida. Seria interessante a

professora utilizar a biblioteca como espaço para contar histórias, uma vez que isso permitiria

99

a seus alunos ter contato com outros tipos de materiais e com outros gêneros textuais. Além

disso, o uso da biblioteca poderia despertar o interesse dos alunos pelas atividades de leitura,

quando muito por frequentar um espaço com novas possibilidades de aprendizagem. Percebe-

se, então, que a própria estrutura da rede pública de ensino impede o uso de estratégias

diversificadas para incentivar e apoiar o aprender.

Além das atividades que poderiam ser realizadas por meio de recursos digitais e do

uso da biblioteca, a professora destaca a importância da maior oferta de atividades culturais –

passeios e estudos do meio – e de brinquedos para os alunos: “falta [melhorar] essa parte de

passeio, de melhorar a parte de brinquedo”. Essa queixa é legítima e procedente. No

decorrer da coleta de dados, observou-se que não há, no prédio, nenhum tipo de brinquedo, de

modo que a única alternativa de diversão livre para os alunos é a quadra de esportes, só

utilizada sob a supervisão de algum professor. Desse modo, as atividades docentes são

desenvolvidas única e exclusivamente no ambiente de sala de aula, uma limitação séria à

adequada implementação das propostas do Programa Ler e Escrever, que postula a

importância de as crianças explorarem e diversificarem seus ambientes de aprendizagem.

A docente faz referência também a seus anseios: “eu gostaria de ter um apoio de

profissionais especializados, do tipo fonoaudiólogo, porque eu acho que tem criança que

precisa. Eu acho que tinha que ter esse apoio externo, para poder facilitar ainda mais

para a criança, porque acaba sendo para ela um entrave”. Sem negar a importância desses

profissionais, a queixa é vaga, sem explicitar os motivos pelos quais um especialista em

distúrbios da fala deveria compor o quadro dos profissionais da escola, o pedido soa mais

como solicitação de ajuda para cumprir, mais facilmente, as atividades docentes.

Embora já se tenha acesso a inúmeros artigos e livros que abordam o problema da

patologização dos alunos em processo de aprendizagem (PATTO, 1999; MAIA, 2007;

VASCONCELOS, 2010; PROENÇA, 2011), de nada adiantaria retirá-los da sala de aula para

tratamentos fonoaudiológicos, perdendo, com isso, as lições dadas pelos professores. O

próprio relatório do Saresp (2005) aponta que as escolas cujos alunos apresentam os melhores

rendimentos são justamente aquelas nas quais os professores assumem plenamente sua

função, sem delegá-las para outros profissionais, que não são, de modo algum, especialistas

em aprendizagem.

Renata esclarece como traça suas metas e como faz a avaliação do desempenho de

seus alunos: “as minhas metas são traçadas no início do ano e eu espero que eles saiam

todos alfabetizados. Se eu não consigo isso, eu sofro, eu sofro”. A professora relata ter

100

intenso envolvimento afetivo com seu trabalho: o fato de um aluno não atingir as expectativas

da docente – não se alfabetizar – reverbera em seu trabalho, como se ela tivesse falhado no

decorrer de suas atividades. No entanto, segundo Brando (2012, p. 117), espera-se, na cultura

escolar atual, que nem todos os alunos saiam totalmente alfabetizados do 1° ano: “a mesma

cultura prega que cabe à professora do ano seguinte estar preparada para completar esse

processo”. Desse modo, se no núcleo três Renata demonstra uma postura flexível e respeitosa

diante da idade, do conhecimento e da experiência de seus alunos, aqui a professora revela o

desconforto pela eventual falha em suas expectativas sobre o processo de aprendizagem de

seu grupo. Com base nisso, é possível compreender os motivos que a levam a adotar uma

postura mais autoritária quando os alunos estão dispersos ou não se interessam pelas

atividades propostas.

A avaliação é, para Renata, participativa: “Eu faço assim: traço uma meta para o

ano, mas como eles estão no primeiro ano, eu avalio mais a participação deles nas

atividades em sala”. Essa fala aponta que a professora, ao definir os objetivos a serem

alcançados no ano letivo, utiliza um determinado critério, como poderia empregar outro. Não

faz uma avaliação diagnóstica para verificar o nível de conhecimentos prévios, a experiência

anterior das crianças, quais são as eventuais hipóteses levantadas para a escrita. Nesse sentido,

se para ela a avaliação é o crescimento que o aluno mostra no dia a dia, como estabelece seu

patamar de entrada? Como sabe, sem uma avaliação inicial, o que é aquisição nova –

crescimento – em termos de aprendizagem?

Ao articular vários aspectos de sua fala, vão se revelando aspectos de sua

subjetividade: quando os alunos não aprendem, as metas da professora não podem ser

alcançadas e, para que isso não aconteça, é preciso atuar junto a algumas crianças sem

liberalidade alguma, autoritariamente. O suposto barulho, a dispersão e as brincadeiras de luta

aparentemente impossibilitam a aprendizagem, que deve ser obtida mesmo que à custa de

“sufocar” as crianças, como visto no núcleo três. Ao ser questionada sobre o planejamento de

suas aulas, a docente relata:

Eu planejo [as aulas] na minha casa mesmo, de manhã porque eu acordo

muito cedo e é o horário que eu mais [me] concentro mesmo. Às vezes eu

uso o horário do Ler também... Procuro a Coordenadora e as minhas

colegas para ter novas ideias em cima daquilo que eles [Programa “Ler e

Escrever”] estão propondo, seleciono algumas atividades. Mas,

basicamente, eu faço isso na minha casa mesmo.

101

Por meio desse excerto, é possível perceber que as atividades de planejamento são

realizadas em horários não contemplados no Programa Ler e Escrever; no entanto, nas

diretrizes que regem o referido programa, há um período na grade para que os professores

possam planejar suas aulas na escola. A docente não utiliza esse tempo e, ao não fazê-lo,

possivelmente perde diversas oportunidades de troca com seus pares. Isto é, não aproveita ao

máximo a boa relação entre os professores e a coordenadora pedagógica da escola, uma vez

que, quando Renata tem alguma dificuldade, não hesita em pedir ajuda. Além disso, outro

aspecto relevante vincula-se novamente aos sentimentos da docente em relação a sua

atividade e à forma como se reorganiza para dar conta da prescrição das tarefas:

Às vezes eu planejo e chega aqui e não dá certo, mas aí eu faço uma

adaptação e procuro retomar [o conteúdo com os alunos] no outro dia.

Nossa, porque às vezes é complicado, porque você vem cheia de gás e aí

desestrutura tudo. Tem que ter um jogo de cintura para lidar com isso.

Como se pode notar, as dificuldades de Renata no decorrer do planejamento das aulas

e das atividades reaparecem. Todavia, quando uma atividade não sai como previamente

planejada, ela procura outras formas de trabalhar os conteúdos e os retoma com o grupo em

outra ocasião. O “jogo de cintura” é central para a manutenção de sua relação com os alunos,

para seu processo reflexivo acerca de suas práticas e para a reorganização rumo à retomada do

conteúdo proposto.

Quando indagada sobre os aspectos teóricos e práticos que norteiam suas atividades

docentes, Renata afirma que seu “conhecimento teórico ajudou muito, mas a minha prática

também”. É possível perceber a influência dos processos formativos – mesmo que precários e

frágeis – aos quais foi exposta em sua trajetória profissional, e também a relevância de sua

prática como constituinte do seu modo de ser, pensar e agir. Renata expõe claramente que sua

formação teórica a impulsiona a buscar novas possibilidades: “depois que eu comecei a

estudar os autores, eu comecei a pensar diferente”. Ao falar sobre o início de sua formação

teórica, aponta que sua visão era distorcida: “Porque a gente tinha muito uma ideia assim:

‘no papel aceita tudo!’, você entendeu?”. No entanto, diante da vasta exposição a processos

formativos, atualmente ela tem um olhar diferente em relação ao assunto: “porque eu acho

que o autor quer te ensinar, quer te colocar; te dar subsídio para compreender aquilo

que acontece na sua sala de aula”.

Ao comentar as influências de seu processo formativo na sua prática, é possível notar

os movimentos de ressignificação da atividade docente da professora. Infelizmente, ainda é

102

muito difícil para os professores aliarem a teoria e a prática no decorrer de suas atividades:

parece que, idealmente, há um distanciamento entre o proposto pela teoria e o realizado

concretamente em sala de aula. Algo que sugere a ideia de que os teóricos não conhecem o

que se passa no espaço escolar e, por isso, seus discursos se tornam esvaziados de

significados, não favorecendo, consequentemente, a aprendizagem do professorado.

No entanto, muitos deles não levam em consideração a importância da reflexão teórica

como mediadora de sua prática: ao dispor de uma teoria que guia a prática, a atividade

docente pode ser ampliada e o poder de agir do professor, aumentado. A intencionalidade

pedagógica se interpenetra e se revela nas opções teóricas e nas práticas adotadas pelo

docente. No decorrer de suas atividades, Renata vai apresentando as transformações ocorridas

em suas atividades em função dos processos formativos: “Eu aprendi que eu tenho que

refletir sobre a minha prática, eu aprendi isso”. E, ao complementar sua fala, comenta que

sua forma de pensar sobre suas atividades foi se modificando; ou seja, não é apenas a pura

reflexão sobre a prática: “Uma coisa que me chama muito atenção é essa parte da

avaliação que é a ação-reflexão-ação, porque eu só mudei o meu jeito de pensar por

conta do estudo que eu fiz em cima da Jussara Hoffman”.

Aqui, evidencia-se a importância da formação teórica para os movimentos de

ressignificação das atividades docentes de Renata e os postulados epistemológicos que

subsidiaram a formação do professorado no Brasil, especialmente a partir de 1990. Nesse

momento histórico, o papel do professor, sua formação e seus saberes estão no bojo das

propostas de André, Davis, Gatti, Gauthier, Nóvoa, Placco, Schön, Tardif, e Zeichner. Além

de aprimorar a formação dos docentes, esses autores buscavam, também, legitimar a profissão

com reflexões e questionamentos que engendraram o campo da profissionalização do trabalho

do professor. Refletir sobre sua ação, agir em sala de aula e refletir novamente sobre o

realizado (reflexão-ação-reflexão), tal como nos diz Renata, é uma das mediações que

constituíram seu processo formativo e de tantos outros pertencentes à rede pública de ensino.

Os apontamentos da professora convergem com os achados discutidos no capítulo “Formação

de professores” deste estudo.

Vale lembrar que o quadro, no final da década de 1980, era dramático: como a

educação era um direito de todos os cidadãos brasileiros, o crescimento da rede pública de

ensino foi desordenado e pouco planejado; por consequência, os altos índices de repetência e

evasão escolar imprimiram marcas negativas no trabalho do professor (OLIVEIRA et al.,

2009; BRASIL/MEC, 1997). Diante dessa situação, qual caminho seguir? Como melhorar a

103

qualidade da formação rumo à equidade no ensino? Para Nóvoa (1991), existem três aspectos

de suma importância quando se trata de formação de professores: o pessoal, o profissional e o

organizacional. A formação crítico-reflexiva é o motor do desenvolvimento pessoal do

professor – sem reflexão e sem crítica sobre suas atividades, o professor continuaria a

reproduzir propostas elaboradas por outros, sem reconhecer sua autonomia. O

desenvolvimento profissional está atrelado ao processo de repensar o trabalho docente com

base nas regulações burocráticas do Estado que tencionam a atividade docente. Ao passo que

o organizacional está pautado pela transformação da própria organização escolar. Para Nóvoa

(1991, p. 25):

[...] a formação deve estimular uma perspectiva crítico-reflexiva, que forneça

aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as

dinâmicas de autoformação participada. Estar em formação implica um

investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os

projetos próprios, com vistas à construção de uma identidade, que é também

uma identidade profissional.

Contudo, não basta apenas ensinar o professor a refletir sobre suas ações, sobre sua

autonomia e sobre seu processo de construção identitária; é preciso, também, levar em

consideração suas opções teóricas no decurso do processo formativo. Ao aliar teoria e prática,

a intencionalidade educativa se revela: a aula passa a ser vista “como um complexo de

múltiplas relações que busca articular, de forma intencional, a teoria e a prática. E por tratar-

se de uma prática pensada, a aula configura-se como uma das modalidades da práxis, a prática

educativa” (OLIVEIRA; ARNONI; ALMEIDA, 2007, p. 120). Ainda sobre a questão da

teoria e da prática, Renata comenta as influências do Programa Ler e Escrever em sua

atividade:

[...] eu gosto muito da nossa proposta [Programa Ler e Escrever], que é

baseada quase que unicamente em cima da Telma Weisz e eu acho que

ela acrescenta muito para o nosso trabalho. [...] a Telma Weisz, a gente

já sabia porque a Emília Ferreiro colocava isso [das hipóteses silábicas]

há quantos anos? Mas a gente não aplicava, você nem compreendia,

você não entendia aquilo e hoje para mim isso tudo é muito rico porque

ela é uma direção para o meu trabalho.

Esse trecho ilustra o movimento de apropriação teórica de Renata e também reforça as

críticas sobre os processos formativos das décadas de 1970 e 1980. A teoria era (im)posta,

sem que se levassem em conta as possibilidades concretas de cada professor em sua unidade

escolar. Logo, a teoria ficava descolada da prática, sendo impossível aliar uma a outra. Desse

modo, é possível perceber o quanto a formação de Renata carrega o movimento histórico

104

tecnicista. Apesar de ela ressaltar que já havia tido contato com a teoria, mas não a aplicava

por falta de conhecimento, revela não apenas as lacunas decorrentes de sua formação como

também exprime o movimento de formação dos professores no Brasil.

Embora destaque sua dificuldade de compreender as ideias de Ferreiro (1985), ou seja,

de aliar teoria e prática, Renata reconhece a relevância do conhecimento teórico. A despeito

de sua formação frágil, é possível perceber que os processos formativos, de certa maneira, a

impulsionam para a reflexão sobre suas atividades docentes. A procura de articulação teoria e

prática encontra-se presente em seu discurso:

[...] o meu conhecimento teórico ajudou muito, mas a minha prática

também [ajudou]. É uma bagagem muito grande, além disso, eu estou

sempre buscando e eu quero entender o porquê. Eu não aceito, tipo

assim: ah, o aluno não aprendeu. Não aprendeu, por quê? Por que um

[aluno] aprende e o outro não? Eu quero sempre uma explicação para

isso.

Essa fala demonstra que a professora busca compreender os movimentos de

aprendizagem de seus alunos e revela, também, seus próprios movimentos, no interior mesmo

de sua atividade docente. Um professor interessado em compreender as dificuldades de seus

alunos pode refletir sobre seu processo de ensino e, com base nele, pensar em novas formas

de ação. Todavia, pensar e refletir não são suficientes: é preciso que o processo reflexivo

engendre uma ação transformadora, que permita ao docente pensar e questionar

constantemente sua própria história, sua tarefa de formar sujeitos sociais e as marcas que quer

deixar em seu espaço de governabilidade. Como sustenta Freire (2001, p. 39), a reflexão deve

ser “um instrumento dinamizador entre teoria e prática”. Porém, tal como parece ser a

atividade de Renata, a reflexão pura sobre suas ações, sem o respaldo teórico, pode

desencadear um fazer tecnicista e acrítico, na medida em que se pensa no produto em lugar de

pensar no processo.

Ao comentar suas opções teóricas em sala de aula, a professora destaca: “Eu uso o

construtivismo mesmo. É lógico que tem hora que eu mesclo, porque dá assim... É... Eu

procuro buscar alguma coisa que dê significado para eles, então eu acabo mesclando

porque eu acho que deu certo e aí eu acabo trazendo para o meu dia a dia”. As

mediações que constituíram e ainda constituem seu processo formativo têm como base as

ideias advindas tanto do ensino tradicional quanto do construtivismo. A formação de Renata é

produto de um momento histórico marcado pela educação bancária, na qual as atividades

pedagógicas supunham transmitir aos alunos os saberes do professor, visto como único

105

detentor de conhecimento. O ensino tradicional, em voga até meados da década de 1980,

parece ter, portanto, deixado marcas fortes em Renata.

Impossível negar, diante do referencial teórico norteador deste estudo – o da

Psicologia Sócio-Histórica –, que suas experiências como aluna não a constituíram como

professora. Apesar de dizer que segue o construtivismo em suas atividades, a própria ação de

mesclar o tradicional e o dito “construtivista” aponta que, para a docente, esta última corrente

pedagógica não consegue abranger tudo que há a ensinar e a aprender. Evidencia-se que sua

atividade docente não pode ser considerada plenamente construtivista, embora existam, nela,

elementos construtivistas. Ou seja, é como se Renata dissesse que os pressupostos teóricos do

construtivismo são válidos, mas não para serem colocados em prática o tempo todo em sala de

aula. Daí a necessidade de mesclar o novo (o construtivismo) com o antigo (a pedagogia

tradicional), ambos sendo propostas construídas historicamente pela humanidade.

Segundo Macedo (1994), o que aflige muitos educadores é não saber diferenciar uma

proposta da outra e nem mesmo integrá-las, quando necessário, “em proveito da educação da

criança”. Diversificar as estratégias de ensino-aprendizagem ao acaso, sem cuidar de seus

fundamentos teóricos metodológicos, ora escolhendo atividade de uma proposta, ora de outra,

ora de uma terceira, foi o caminho encontrado por Renata para superar tanto suas dificuldades

em articular a teoria e a prática quanto para ensinar alunos diversos, com necessidades

também variadas. Não por acaso Renata diz:

O que me chama atenção [no construtivismo] é essa liberdade da criança

colocar aquilo que ela pensa, sabe? A nossa prática antigamente ela era

voltada ao certo, ou seja, só era considerado aquilo que era realmente

certo... E hoje não é assim, você considera o aluno que está avançando,

que está buscando, né? Essa reflexão [que o construtivismo] propõe eu

acho legal. Eu acho que, quando você dá liberdade para a criança

arriscar, você está fazendo ela crescer.

De fato, a concepção construtivista coloca o aluno no centro do processo: ele é

ativamente o construtor de seu próprio conhecimento. Suas interpretações de si e do mundo

não são desconsideradas, uma vez que balizam o processo de ensino-aprendizagem. Essa

concepção respeita os conhecimentos prévios do aluno – os saberes escolares e não escolares

–, valoriza a aprendizagem em grupo e em cooperação com os pares, dá ênfase ao

desenvolvimento do pensar. Por isso, reconhece a necessidade de o aluno expor o que pensa e

conhecer sobre tal ou qual temática. O professor assume, então, o papel de questionar, de

suscitar o desejo de conhecer, de incentivar os discentes a formular hipóteses sobre si e sobre

106

seu entorno (COLL, 1987; MACEDO, 1994). É possível perceber, no discurso de Renata,

aspectos nodais da concepção construtivista de ensino. A possibilidade que o aluno tem de se

expressar, a “liberdade da criança colocar aquilo que ela pensa”, revela o processo de

apropriação e as influências teóricas que atuam sobre a professora. A reflexão e a liberdade de

expressão, como citado acima, são proposições que guiam o professor no desenvolvimento de

uma atividade pedagógica construtivista. Ao complementar seu ponto de vista, Renata salienta

o papel do aluno na ação: “Na minha prática eu acho que é essa liberdade mesmo, essa

liberdade que eu dou para o meu aluno poder se expressar, dele poder agir, e isso eu

acho que é legal”.

No entanto, não é apenas a liberdade de expressão do aluno que orienta as atividades

de Renata. Ou seja, não é apenas deixar o aluno falar o que pensa sobre tal ou qual assunto.

No decorrer do seu discurso, ela fornece pistas de como lida com a “voz” do aluno: “eu

procuro entender, eu busco entender o porquê [a criança está falando aquilo], dar espaço

para a criança se colocar”. Ao se expressarem, espera-se que as crianças digam como

pensam, sentem e agem diante das situações propostas pela professora. Assim, entra em foco

a maneira como Renata lida com os erros cometidos pelos alunos:

O erro? Eu lido como construção. Uma reflexão para minha

prática porque onde meu aluno está errando é porque eu não

ensinei direito [risos]. Eu uso isso para traçar a minha aula, em

cima do erro deles. Em cima do erro deles é que eu vou aprimorar

a minha prática.

Apesar de Renata relatar que sua visão é construtivista, em vez de pensar que o erro do

aluno pode ser um caminho para compreender seu processo cognitivo e utilizá-lo como forma

de ajudá-lo a superar as barreiras cognitivas que está enfrentando (incidindo na ZDP, nos

dizeres da Psicologia Sócio-Histórica), ela segue outro caminho: acredita que os erros revelam

apenas a ineficácia do ensino. Essa visão aponta, novamente, que os preceitos do

construtivismo não foram totalmente apropriados por Renata e ressalta a ideia de que sua

atividade docente apoia-se apenas em alguns aspectos apregoados pelo construtivismo.

Percebe-se, também, que o erro do aluno é utilizado como forma de aprimorar a

atividade docente de Renata. Quando afirma que “onde meu aluno está errando é porque eu

não ensinei direito”, a concepção tradicional de ensino ressurge. Se no construtivismo o erro

é visto como “fonte de tomada de consciência” para o aluno e para o professor, tal como

sugere La Taille (1997, p. 36), por que Renata se responsabiliza pelos erros de suas crianças?

107

Ora, para a concepção construtivista, não existe uma única resposta correta, mas muitas. Se

devidamente analisados à luz da teoria piagetiana e da hierarquia dos conteúdos da disciplina,

os erros fornecem pistas importantes a respeito do raciocínio seguido por quem os cometeu. É

nessa medida que eles se tornam norteadores da atividade docente, pois o professor busca

entendê-los para estar em condição de auxiliar quem precisa superá-los. Nessa medida, as

palavras de Renata são verdadeiras: “em cima do erro deles é que eu vou aprimorar a

minha prática”.

Objetivando avançar na análise dos aspectos que constituem a atividade da professora,

as metas e as estratégias que utiliza para atingir os objetivos foram com ela discutidas. Renata

comenta: “eu tenho uma meta de atender, pelo menos duas vezes por semana, de modo

individual, aí eu planejo outra atividade para os outros que caminham sozinhos”. A

prática da professora está alicerçada, em alguns momentos, no atendimento individualizado

aos alunos com mais dificuldade. Essa maneira de atuar coincide com as propostas veiculadas

no Programa “Ler e Escrever”, que indica ser possível avaliar os avanços de cada aluno em

determinado período: “Conhecer o processo de cada criança ajuda a identificar as crianças que

necessitam de um apoio mais próximo, dá oportunidade para que se realizem intervenções

mais ajustadas para cada aluno e, também, permite que se organizem parcerias produtivas de

trabalho” (FDE, 2010, p. 46-47).

Além disso, o Programa Ler e Escrever – no Guia de Planejamento de Orientações

Didáticas para o Professor Alfabetizador 2° ano – incentiva que o docente:

[...] dedique maior atenção àqueles alunos cujos resultados não

correspondem às expectativas de aprendizagem [...]. Se mostrarem avanços,

mas estes ainda forem pequenos, o que fazer? Vários aspectos merecem ser

considerados, mas um deles é fundamental: essas crianças precisam do seu

acompanhamento diferenciado e próximo. Mesmo que contem com a ajuda

dos colegas nas propostas em duplas, é indispensável a intervenção direta e

constante do professor. Seu apoio será importante, em certos momentos, para

incentivá-las a continuar manifestando suas ideias. A relação que você

estabelece com a criança e com o que ela produz é fundamental para que se

sinta capaz de aprender. Em outros momentos, porém, cabem intervenções

mais explícitas para que fiquem atentas às características do sistema de

escrita; é o caso, por exemplo, de quando você pede para ajudarem a

escrever certas palavras, faz perguntas sobre as letras iniciais ou finais etc.

(FDE, 2010, p. 18).

Ao comentar suas estratégias de trabalho, certos aspectos da atividade docente de

Renata começam a ficar mais aparentes:

108

Eu dou uma lista de palavras e, com essas crianças que têm dificuldades,

eu vou trabalhar em cima da escrita mesmo, da reflexão de como se

escreve. Aqueles que já estão alfabéticos, vão trabalhar com a mesma

lista de palavras, mas com construção de frases e eu vou ampliando o

repertório e peço para eles usarem mais palavras. Eu peço para eles

explicarem o porquê.

Desse fragmento, pode-se depreender que a atividade proposta é igual para todos,

porém adota diferentes níveis de dificuldade, caracterizando-se como um trabalho

diversificado. A estratégia denominada “lista de palavras” é uma das prescrições do Programa

“Ler e Escrever”: sugere ao professor organizar, durante a semana, atividades desse tipo para

os alunos que ainda “não leem e nem escrevem convencionalmente, nos momentos em que a

turma estiver ocupada com questões de ortografia” (FDE, 2010 p. 90). A estratégia de Renata

é, portanto, válida para os preceitos do Programa, uma vez que:

[...] as listas foram construídas, de propósito, de modo a incluir itens que

começam com a mesma letra, com a intenção de favorecer a busca de outros

indícios, além das letras inicial e final. Enquanto circula pelas duplas,

procure questionar os alunos: o que vocês acham que está escrito aqui?

Aponte para um dos itens que marcaram. E, mesmo que respondam

corretamente, pergunte: como vocês sabem que está escrito isso? Se

responderem que descobriram porque começa com determinada letra, mostre

outro item com a mesma letra inicial e pergunte: vocês têm certeza? Esta

palavra também começa com... Espera-se que, assim, os alunos busquem

outros indicadores para justificar sua escolha, explicando, por exemplo:

termina por... ou tem o som da letra... (FDE, 2011, p. 90).

É interessante observar que Renata gosta de executar as atividades previstas na

referida proposta: “o trabalho com lista funciona para caramba!”. No Guia de

Planejamento, essa ideia é complementada, apontando o que se espera quando se propõe um

trabalho com essa atividade. As listas, desse modo:

têm por função organizar dados ou servir de apoio à memória; assim,

procure sempre apresentar aos alunos listas que tenham também um

propósito. Além disso, os elementos de uma lista costumam estar

organizados de acordo com um critério, e esse critério precisa ser conhecido

e compreendido pelos alunos (FDE, 2010, p. 32).

Após orientar o professor quanto aos objetivos do trabalho com listas de palavras, o

Guia de Planejamento propõe alguns exemplos que podem ser apresentados aos alunos: uma

receita, materiais importantes para que se possa construir um brinquedo, animais a serem

estudados num projeto, personagens de histórias entre outros (FDE, 2011).

Renata ao elucidar o que pensa sobre o trabalho individualizado, diz que:

109

Tem um dia que eu dedico para as crianças que estão com mais

dificuldade. É lógico que todos os dias eu trabalho com eles, mas mesmo

assim, se você trabalha... Eu acho que eles têm que se sentir inseridos

dentro da sala, você entendeu? Se todos os dias eu der uma atividade

diferente para eles, eles se sentem diminuídos... Então, eu procuro

equilibrar.

Para ela, é importante que todos os alunos se sintam bem e incluídos na turma. Mesmo

que o aluno apresente mais dificuldades, a atividade proposta é quase sempre a mesma, porém

para os que têm mais facilidade, a complexidade do solicitado é maior, como o pedido de que

escrever frases e rimas. Quando a professora diz que “procura equilibrar”, o zelo e cuidado

para com todos os alunos ficam evidentes. No decorrer de uma das sessões de ACS (Episódio

Rapunzel), a professora é questionada sobre um dos alunos. Por meio do episódio, é possível

perceber que Vinícius – por estar mais adiantando do que alguns de seus colegas de classe –

realiza a atividade rapidamente e a entrega antes mesmo que a professora termine de oferecer

as folhas para toda a sala. Renata explica da seguinte maneira essa situação:

Eu sempre tenho outra atividade para ele [Vinícius], porque, às vezes, eu

preciso de um tempinho a mais para aqueles que ainda estão

caminhando. Então, eu sempre dou outra atividade para ele, até porque

eu tenho que ocupar ele, porque senão ele pega fogo e dispersa os outros.

Ele é uma criança que precisa estar sempre ocupada.

Como visto, essa estratégia busca solucionar dois problemas: levar Vinícius a

caminhar também em seu ritmo, sempre aprendendo e, ainda, controlar seu comportamento,

evitando assim que os demais se dispersem de seus afazeres, caso o garoto fique ocioso. O

foco da estratégia de oferecer à turma a mesma atividade, mas com adequações ao

conhecimento e à experiência de cada aluno, contempla tanto o avanço da aprendizagem

quanto a tentativa de minimizar a indisciplina. Assim como Vinícius, o aluno Luís também

está mais adiantado do que os demais. Os dois sentam-se juntos, em duplas, e têm sempre

grande êxito nas atividades propostas por Renata. Quando a docente não planeja atividades

diversificadas para a dupla, outra estratégia de trabalho entra em cena: ela solicita aos garotos

que auxiliem os colegas que ainda não terminaram a tarefa. No entanto, para Vinícius, essa

não é uma prática bem-vinda, como informa a professora:

Para o Vinícius e o Luís, eu tenho que pedir um tempo mesmo, porque

eles terminam muito rápido. Mas, eu tento ocupar o tempo deles

pedindo para eles ajudarem os outros que estão com mais dificuldade,

embora o temperamento do Vinícius não seja o de ajudar: ele não gosta,

ele não tem paciência, sabe?

110

Vê-se que Renata tem boa percepção de seu grupo de alunos, mas, possivelmente,

existem falhas em seu planejamento. De fato, conhecendo o perfil das crianças (seu nível de

desenvolvimento, seus conhecimentos, seu modo de vida, seus gostos e antipatias), seria mais

prudente e interessante que outras atividades e outras estratégias fossem empregadas junto à

dupla adiantada ou, pelo menos, que aquela que tanto desagradava um dos meninos fosse

utilizada de forma menos recorrente. As dificuldades no planejamento ficam mais aparentes

quando a professora afirma que tem que pedir um tempo para os alunos, pois esse é um tempo

ocioso, em que, para agradar Renata, eles ou observam seus amigos trabalhando ou se

entediam. Em geral, no entanto, a opção é conversar sobre assuntos sem relação com o tema

da aula, algo que sempre causa dispersão de quem precisa estar atento.

Apesar das eventuais falhas no planejamento de suas atividades, a docente segue

escrupulosamente o que sugere o Programa Ler e Escrever. No Guia de Planejamento e

Orientações Didáticas para o Professor Alfabetizador, a instrução para que se formem duplas

de trabalho é apresentada aos professores como especialmente interessante, cabendo-lhes

organizar:

[...] as duplas de modo que os dois parceiros estejam em momentos

razoavelmente próximos em relação às hipóteses de escrita. [...] a função das

duplas não é garantir que todos façam as atividades corretamente, mas

favorecer a mobilização dos conhecimentos de cada um, para que possam

avançar. Lembre-se, também, de que uma boa dupla (a chamada dupla

produtiva) é aquela em que os integrantes fazem uma troca constante de

informações; um ajuda de fato o outro, e ambos aprendem. Preste muita

atenção às interações que ocorrem nas duplas e promova trocas de acordo

com o trabalho a ser desenvolvido (FDE, 2010, p. 19).

No caso dos alunos Vinícius e Luís, se Renata estivesse atenta, poderia empregar cada

um deles como monitor de outros alunos, situação que a liberaria para atuar mais de perto

junto aos que precisam mais de sua atenção, formando outras duplas. Os dois garotos

poderiam atuar como pares mais experientes para os que ainda estavam desenvolvendo a

atividade e, além do mais, fariam essa tarefa de ajudante do professor com prazer. Ela poderia

se valer dessa estratégia para não deixá-los ociosos e ainda diminuir o ruído advindo de

conversas paralelas.

Os diálogos decorrentes das sessões de ACS foram de extrema importância para que

as atividades docentes de Renata pudessem ser mais bem conhecidas. Ao se observar em

atividade, ela pôde falar de suas escolhas didáticas e de como elas se interpenetram nas

propostas veiculadas no Programa Ler e Escrever. Menciona, então, como faz para promover

111

a reflexão dos alunos sobre a escrita, mediante o emprego de alfabeto móvel e listas de

palavras, duas estratégias de ensino-aprendizagem oferecidas aos docentes no Guia de

Planejamento do Professor Alfabetizador.

Em uma das atividades realizadas, a docente emprega o alfabeto móvel, material

ofertado para todas as escolas da rede pública estadual de ensino, com o nome de “letras

móveis”, dado pelo Programa Ler e Escrever (ver capítulo dois deste estudo). Segundo

Renata, o objetivo a ser alcançado é “refletir como escrever as palavras. O alfabeto móvel

fui eu que escolhi para trabalhar com esse tema [festa de aniversário] e dá para perceber

que a riqueza de vocabulário de uns é bem diferente da dos outros”. As escolhas da

docente, portanto, coincidem com o prescrito pelo Programa Ler e Escrever, pois as letras

móveis:

[...] têm se mostrado um excelente recurso didático. Em primeiro lugar,

porque os alunos podem experimentar várias formas de escrever, sem ter de

se preocupar em acertar logo de início – podem fazer diversas tentativas e

refletir sobre aquilo que estão fazendo. A facilidade para fazer trocas e a

legibilidade também são pontos positivos. Há que se considerar que, para as

crianças no início do processo de alfabetização, o esforço para grafar as

letras pode ser quase tão grande quanto o esforço de pensar quais são as

letras que devem ser grafadas! Por isso, ao liberarmos os alunos da tarefa de

escrever de próprio punho, eles podem concentrar toda a atenção na análise

dos sons e na seleção das letras. As letras móveis também permitem que se

organizem intervenções que convidam os alunos a refletir sobre a relação

entre os segmentos da fala e da escrita (FDE, 2008, s/p.).

Além de compreender o objetivo da atividade, a ACS permitiu que a professora

começasse a ter um movimento no sentido de avaliar seus alunos, pois aponta que “dá para

perceber que a riqueza de vocabulário de uns é bem diferente da dos outros”. Ao

comentar a escolha da atividade realizada, Renata complementa: “[trabalhar o tema festa de

aniversário] veio do Ler, porque ele [Ler e Escrever] sugere que o professor trabalhe com

temas do cotidiano da criança e eu sei que esse tema eles gostam muito. E você vê, aí no

vídeo, que eles gostaram muito e que participaram bastante”. Vale salientar que, nessa

atividade – o uso do alfabeto móvel – os alunos são agrupados e Renata sugere que escrevam

algumas palavras utilizando as letras do alfabeto móvel. É perceptível o interesse e o prazer

do grupo em executar a tarefa: estão engajados, consultam-se mutuamente e,

surpreendentemente para Renata, nenhum dos alunos considerados como mais agitados deixa

de fazer a atividade proposta com empenho e dedicação. Até mesmo Vinícius – o que não tem

muita paciência para ajudar os colegas – lida muito bem com o grupo.

112

Ao se observar em atividade, Renata toma ciência de sua postura diante dos alunos e a

comenta: “as interferências, eu acho que dá para fazer na hora que surge a dúvida,

porque quando o aluno só escreve é mecânico, né? E, aí [com o alfabeto móvel], ele

vivencia, é o concreto. E, ainda, tem também a ajuda do grupo”. Essa fala demonstra que

Renata se apropria das propostas veiculadas no Programa Ler e Escrever e as põe em prática,

sobretudo no que concerne ao trabalho em grupo. A professora, durante a aula, problematiza e

socializa as dúvidas, tanto intragrupo quanto intergrupos. Além disso, ao observar que algum

deles está com mais dificuldade, propõe-se a auxiliá-los.

A atividade de Renata com o alfabeto móvel é bem planejada e bem desenvolvida:

quando chega para essa aula, a professora sabe bem quais são os passos a serem seguidos e

com qual forma de agrupamento de alunos. Os grupos são escolhidos intencionalmente, uma

prática importante não apenas para o sucesso dos alunos nas tarefas como para o da docente

em suas metas. Quando há planejamento e intencionalidade pedagógica, a probabilidade de se

obter bons resultados no processo de ensino-aprendizagem é maior; o ruído, tão

contraproducente para tarefas que exigem atenção e concentração, diminui; conversas

paralelas tendem a minguar, pois os alunos não conversam sobre assuntos diferentes dos

propostos e sequer se levantam de suas carteiras: o foco está em concluir a tarefa com

sucesso.

Em outra sessão de ACS – agora sobe o conto Rapunzel –, os aspectos de relevo em

seu planejamento, aqueles que marcam a intencionalidade pedagógica, podem ser percebidos.

Ao descrever o que esperava das duas atividades apresentadas aos alunos, comenta:

Eu montei essas duas folhinhas para eles, porque eu queria que eles

identificassem, na primeira atividade, de que história era a fala do

personagem. E a outra era para eles estarem, dentro dos gêneros que já

tinham sido trabalhados – contos –, listando mesmo os contos.

Ainda sobre essa questão, afirma que o objetivo da atividade “é a reflexão sobre a

escrita mesmo, dentro dos contos. Porque para eles é prazeroso e eles gostam. Eu acho que

quando você trabalha dentro desse gênero, é significativo para eles. Eles gostam

bastante e participam”. Renata esclarece que, nas duas atividades citadas acima, o sugerido

pelo Programa Ler e Escrever é por ela contemplado; é possível encontrar no Guia de

Planejamento uma seção que trata da importância de se empregar algumas atividades como

mediadoras da reflexão sobre o sistema de escrita, uma vez que:

113

[...] para realizar atividades com foco na escrita, o aluno deve pensar nas

propriedades do sistema de escrita, sem se preocupar com a linguagem. Em

geral, atividades desse tipo envolvem estruturas textuais mais simples (tais

como listas, etiquetas ou títulos) ou textos cujo conteúdo foi previamente

memorizado (parlendas, quadrinhas, poemas, legendas etc.), e, por

conseguinte, não exigem que se pense na linguagem (FDE, 2010, p. 30).

Quando o trabalho tem como base um texto já conhecido pelas crianças, o Guia de

Planejamento sugere:

[...] a escrita de cantigas, parlendas, quadrinhas etc., pois, se os alunos já

souberem o texto de memória, poderão dedicar sua atenção às questões da

escrita. Saber um texto de memória não significa saber sua forma escrita

(letra por letra), mas ser capaz de recuperá-lo oralmente. Em suas

brincadeiras, as crianças recitam quadrinhas, poemas, trava-línguas etc., ou

seja, memorizam o texto pelo uso que fazem dele, em situações

significativas (FDE, 2010, p. 30).

Na ACS do episódio do conto Rapunzel, a professora é indagada a respeito da

estratégia utilizada para que as crianças consigam escrever corretamente a palavra

“madrasta”. No decorrer do diálogo, ela esclarece que:

O objetivo era esse mesmo: trabalhar a reflexão sobre o sistema de

escrita. Por exemplo, na palavra “madrasta”, eu sabia que iam ter

dificuldades. E esse meu trabalho, de colocar os jeitos que as crianças

estavam escrevendo “madrasta” na lousa, era para eles perceberem que

letra estava faltando ou que letra estava sobrando. Por exemplo, eu

peguei vários jeitos diferentes que as crianças escreveram madrasta,

para poder compartilhar e corrigir junto com todo mundo. E isso ajuda

muito! Eles olham não apenas para o erro deles, como para os dos

colegas, para poderem pensar como eles estão escrevendo. E você vê que

tem uma parte lá que eles até riram do colega! Mas o meu objetivo não é

apontar o erro e, por isso, que eu não coloco lá na lousa quem foi que

escreveu o quê. Eu busco compartilhar as possibilidades, para que eles

reflitam e consigam construir o novo em cima do erro que fizeram.

No Guia de Planejamento do Professor (FDE, 2010, p. 30), os docentes são

convidados a refletirem sobre como intervir no decorrer de atividades que têm como objetivo

a reflexão sobre o sistema de escrita por parte do aluno. Ao salientar que uma intervenção

“tem como objetivo favorecer avanços, diferenciando-a de uma simples correção”, o quadro

comparativo abaixo é apresentado aos professores.

114

Quadro 2: Diferenças entre o processo de intervenção e o de correção para os

professores.

Intervenções Correções

Ajudam o aluno a avançar, saber mais em

relação àquilo que já sabia.

Têm o intuito de substituir uma produção

errada por outra, considerada certa; em geral

se afastando muito do que o aluno é capaz de

compreender.

Incluem poucas informações de cada vez,

para que o aluno incorpore a novidade àquilo

que já sabe e avance de acordo com suas

possibilidades.

Não dosam a informação; as letras corretas,

por exemplo, são oferecidas todas de uma só

vez.

Orientam a pesquisa, mas sem dar a

informação pronta: o professor questiona, dá

dicas de onde o aluno pode buscar

informações que possam ajudá-lo a escrever,

favorece a autonomia.

Substituem a escrita do aluno por uma cópia

da escrita do professor, fazendo com que a

criança sempre dependa do docente para

saber a forma correta de escrever.

Fonte: Guia de Planejamento do Professor Alfabetizador (FDE, 2010, p. 30).

Mas se o objetivo de Renata é intervir e não corrigir, pode-se indagar se centrar-se na

escrita errada dos alunos é uma boa estratégia. Ao assim agir, ela justamente não chama a

atenção deles para o que deve ser evitado? Não teria sido melhor mostrar a escrita correta –

mesmo apresentando todas as letras juntas – do que bombardeá-los com muitas letras todas

equivocadas? Seria mais conveniente, talvez, pedir que escrevessem frases que empregassem

a palavra MADRASTA de diferentes formas, sedimentando a aprendizagem de sua escrita?

Em todo o processo de observação e coleta de dados, é possível perceber que os alunos

sempre se sentam em duplas; nunca nenhum deles realiza suas atividades sozinho. Quando

questionada sobre a escolha de dispor o grupo dessa forma, Renata justifica:

Eu trabalho diariamente com os agrupamentos, só que é assim: às vezes,

a criança tem dificuldade de aprendizagem e de comportamento, ou

seja, tem dificuldade de se relacionar com os colegas, também. É difícil,

porque, às vezes, você nem consegue um parceiro para aquele [aluno]

ali. Então, é complicado. Mas eu vou experimentando, vou na base da

experimentação, até quando eu consigo uma parceria que dê certo. Mas

é bem complicado, porque aquele [aluno] que é alfabético, não tem

muita paciência, não aceita. Aquele [aluno] que é indisciplinado e tem

dificuldade também, às vezes recusa até a ajuda do outro. É complicado,

mas eu estou tentando.

O trabalho em duplas ou grupos realizado por Renata assemelha-se ao veiculado pelo

Programa Ler e Escrever no Guia de Planejamento do Professor Alfabetizador. O item

115

denominado “intervenções que favorecem avanços” trata não apenas das possibilidades de

sucesso que um professor pode ter ao trabalhar em duplas ou grupos de alunos como também

incentiva esse trabalho nas salas de aula da rede pública estadual paulista, no que tange ao

processo de leitura e escrita. Como pode ser visto, o trabalho em duplas é considerado de

extrema importância, pois, quando um aluno interage com outro “colega que tem

conhecimentos próximos aos seus, embora diferentes” (FDE, 2010, p. 29), as chances de

sucesso no processo ensino-aprendizagem aumentam. Como essa estratégia, o aluno pode

ampliar o(s)/a(s):

- conhecimento sobre as letras;

- conhecimento sobre as possibilidades de analisar uma palavra em partes

menores (por exemplo, um aluno pré-silábico, que considera as palavras

como um todo, amplia seus conhecimentos ao trabalhar com um colega que,

ao escrever, vocaliza cada uma das sílabas e inclui uma letra para cada som

percebido);

- hipótese sobre o número de letras necessárias para representar uma palavra

ou sílaba;

- conhecimento sobre os sons associados às letras;

- recursos que pode utilizar enquanto escreve (por exemplo, um aluno que

ainda não considera o valor sonoro das letras pode aprender com o outro,

quando este lhe diz que CAVALO começa com as mesmas letras de CAIO,

um colega de classe) (FDE, 2010, p. 29).

Segundo o Guia de Planejamento do Professor Alfabetizador, a formação de duplas de

trabalho requer a realização de uma sondagem para identificar o nível de desenvolvimento de

cada criança. Além disso, o docente deve estar atento ao modo como a dupla trabalha em

conjunto, analisando se o par é produtivo. Nesse sentido, conhecer os modos de pensar, sentir

e agir de cada criança auxilia a definição de critérios para a escolha das duplas: “se os dois

forem inquietos, ou ambos muito tímidos, talvez não sejam bons parceiros” (FDE, 2010, p.

29). Há, ainda, uma sugestão para que o professor mantenha a parceria que foi produtiva em

outras atividades sugeridas, só a trocando quando já não funcionar bem. Uma parceria

produtiva, de acordo com o Ler e Escrever, é caracterizada pela:

- troca mútua de informações, isto é, ambos têm contribuições a oferecer

(isso não acontece quando um sabe muito e o outro se limita a copiar);

- atitude conjunta de colaboração, buscando realizar as atividades propostas

da melhor maneira possível;

- aceitação das ideias do colega, quando parecem ser mais acertadas (FDE,

2010, p. 29).

116

Ainda com base na entrevista, percebe-se que Renata se apropria dos postulados do

Programa Ler e Escrever, notadamente no que concerne à formação das duplas. Ela menciona

que os alunos têm se desenvolvido por meio dessa estratégia:

O Breno tem dificuldade de aprendizagem, mas ele é um menino dócil e

se relaciona bem com os outros. Essa parceria deu muito certo, muito

certo mesmo. O Vinícius é mais avançado que o Breno, ainda mais agora,

que o Breno já está silábico com valor e o Vinícius já é alfabético! E,

agora, eu já vejo mais produtividade nesse agrupamento. Mas, antes,

não. Antes, só dava certo por causa do gênio dos dois, dessa

identificação entre eles. Mas, como agrupamento, eu não sei se era

produtivo. Hoje já é [produtivo], porque ele [Breno] está silábico com valor.

Mas, mesmo assim, eu acho que ajudou, porque o Breno avançou

bastante.

Nesse trecho, nota-se que a formação das duplas é intencionalmente pensada por

Renata e que, por causa desse planejamento, os alunos podem avançar em seu processo de

aprendizagem. Inicialmente, Breno e Vinícius são colocados juntos “por causa do gênio dos

dois, dessa identificação entre eles”; no decorrer das aulas, porém, as trocas impulsionam a

aprendizagem e, consequentemente, o desenvolvimento de ambos. Outro exemplo de sucesso

na formação de duplas são as alunas Laura e Samantha: “A Laura, hoje, já está alfabética; a

Samantha veio pré-silábica e foi galgando. Eu percebo que a Laura influencia

positivamente a Samantha, de modo que esse agrupamento deu bastante certo”. Além de

Laura e Samantha, a professora salienta a relação positiva entre as alunas Yakne e Rafaela; no

entanto, percebe que a troca da dupla não é ainda uma ideia bem-vinda para essas alunas:

A Yakne com a Rafaela é outro agrupamento muito bom. A Rafaela tem

um problema de fala, então ela troca muito as letras. A Yakne e a

Rafaela são um grupinho fechado: elas, normalmente, não aceitam gente

de fora, não. Só que a Yakne se predispôs a ajudar a Rafaela, e, como a

Rafaela falta bastante, eu deixei. Só que ela já evoluiu muito, já está

lendo quase tudo e copiando também! Já está melhorando bastante. Eu já

encaminhei para uma fonoaudióloga, mas ela ainda não foi. Fora isso, no

primeiro trimestre, ela era bem fraquinha. Aí, veio aquele programa Visão

do Futuro e a gente descobriu que ela tinha uma deficiência visual que

também a prejudicava no aprendizado.

Em uma das sessões de ACS (Episódio alfabeto móvel), Renata, nomeia seus critérios

para escolher os grupos de trabalho que vão empregar o alfabeto móvel na atividade: “Os

grupos foram separados segundo o nível de dificuldade de cada um”. Complementa,

chamando a atenção da pesquisadora:

117

E você vê [no vídeo] que todos eles estão no mesmo nível de

aprendizagem. Quando eu montei os grupos, eu fiz uma divisão de

silábico com valor, um silábico sem valor, você entendeu? Porque senão

não funciona... Os agrupamentos têm que ser pensados antes mesmo.

Esses trechos mostram a importância do planejamento para a execução das atividades

pedagógicas. Interessa observar que, além de seguir o prescrito pelo Programa “Ler e

Escrever” no que tange às diretrizes para a formação de duplas de trabalho, a atividade

proposta por Renata vai ao encontro dos ensinamentos de Vygotsky (2001). Para esse autor,

as relações estabelecidas com parceiros mais experientes (sejam eles o próprio professor ou os

colegas de classe) são importantes mediadores na constituição de novas significações,

conhecimentos e habilidades, justamente por incidirem na ZDP, promovendo o

desenvolvimento das funções psíquicas superiores, como visto no capítulo teórico deste

trabalho. Quando a criança é colocada para trabalhar com parceiros mais experientes, abre-se

espaço para que ela consiga desenvolver suas atividades muito melhor do que quando está

sozinha (VYGOTSKY, 2001).

Para Gasparin (2009), os trabalhos em duplas, trios ou grupos são de extrema

importância: com parceiros mais experientes, a criança pode construir os conhecimentos

científicos, sem depender tanto da mediação do professor. Os conhecimentos cotidianos,

advindos da experiência pessoal de cada aluno, são aliados importantes na constituição dos

conhecimentos científicos (aqueles construídos na escola, com intenção deliberada de ensinar

algo). Apesar de distintas, as duas modalidades de conhecimento são interdependentes em

uma situação didático-pedagógica:

Os conceitos científicos não passam diretamente aos alunos, nem os

cotidianos são subsumidos, automaticamente, pelos científicos. É na

caminhada dialógico-pedagógica que se dá o encontro das duas ordens de

conceitos: os conceitos cotidianos são incorporados e superados pelos

científicos. Realizam-se, por intermédio do trabalho coletivo e individual, a

interaprendizagem e a intra-aprendizagem. Os conceitos cotidianos ou

espontâneos são expressos pelo senso comum e pelos conhecimentos

empíricos que os alunos adquiriram no seu dia a dia, nas vivências fora da

escola. Os científicos, por sua vez, são adquiridos pela via escolar e já se

incorporaram à vida de cada um deles e, portanto, também fazem parte do

cotidiano (GASPARIN, 2009, p. 115).

Ainda na sessão de ACS da aula com o alfabeto móvel, Renata indica ter conseguido

refletir sobre a atividade gravada no vídeo. Ao observar-se, comenta:

118

Eu acho que eu atendi muito uns grupos e outros não. Não sei se porque

eles não me solicitaram, mas, eu acho que eu deveria circular mais entre

os grupos. Embora eu não tenha deixado nenhum grupo sem fazer, eu não

sei se foi porque eles não me solicitaram. Mas, mesmo assim, eu acho que

eu deveria ter circulado mais. Mas é isso daí, mesmo: a atividade é dentro

de um campo semântico que eles gostam e isso também ajuda muito; e os

agrupamentos ajudam muito.

Esse trecho demonstra a importância da ACS, que impulsiona a professora a refletir

sobre a atividade realizada, percebendo que “deveria circular mais entre os grupos”. Tal

compreensão deve possibilitar novas formas de agir em situações semelhantes, engendrando

uma postura diferente, pois “perceber as coisas de um modo novo significa poder agir de

forma diferente em relação a elas, isto é, quando se generaliza o processo próprio de uma

atividade, é possível adotar uma postura diferente em relação a ela” (GASPARIN, 2009, p.

68).

Nas aulas de Matemática, além do trabalho em duplas ou grupos, Renata utiliza

materiais diversificados. Vale destacar que o ensino dessa disciplina é uma das dificuldades

dessa professora. Ainda na entrevista, tal como visto no núcleo dois, alguns dos conteúdos

trabalhados por ela haviam sido esquecidos, de tal modo que a oferta de formação continuada

era muito almejada pela docente. No entanto, apesar de suas dificuldades, Renata,

curiosamente, escolhe uma aula de Matemática para ser filmada e, posteriormente, discutida

em uma das sessões de ACS, fato que demonstra seu empenho em compreender suas

atividades para melhor desenvolvê-las. Quando questionada sobre a forma como ensina

Matemática e sobre os materiais que utiliza, Renata responde:

Eu trabalho com dados e é uma coisa minha mesmo, que eu acho que

funciona e eles amam! Por exemplo, o dado, eu dou para os alunos que

vão terminando as atividades... Uma vez por semana, para que todos

tenham a mesma oportunidade, porque eles amam o dado de paixão.

No processo de observação das aulas, é possível perceber que a professora oferece

dadinhos aos alunos que realmente já terminaram a atividade proposta. Dessa maneira, eles

não são oferecidos nem ao acaso, nem sem intenção educativa: ao contrário, a professora

instrui os grupos a fazerem contas de adição com base nos resultados advindos das jogadas.

Além disso, é preciso registrar o processo no caderno. Outras formas de trabalhar com essa

estratégia são também observadas: os alunos, após jogarem dois dados, têm de fazer a soma

dos resultados. Novamente, o processo e os resultados são anotados no caderno. Ganha o jogo

quem completa 100 pontos. Ao final, Renata propõe aos alunos perguntas que incidem nas

119

contas de adição ou subtração. Sempre em duplas ou em grupos maiores, essas são estratégias

utilizadas para lidar com os que se encontram mais adiantados que os demais. Essa forma de

trabalhar facilita o processo de ensino-aprendizagem, minimiza a indisciplina e permite que

Renata possa dar mais atenção aos que ainda estão fazendo a tarefa, encontrando nela,

portanto, maior dificuldade.

Essas ações seguem de perto os postulados do Programa Ler e Escrever e,

principalmente, o prescrito no Guia de Planejamento e Orientações Didáticas para o

Professor. O objetivo é possibilitar que os alunos possam “interpretar e resolver situações-

problema envolvendo adição e subtração e calcular a soma de números naturais utilizando

técnica convencional ou não” (FDE, 2010, p. 18). Ao apresentar os dadinhos para os alunos e

orientar o que deve ser feito por eles, Renata considera a atividade denominada “jogo especial

de dados”. Essa situação didático-pedagógica tem como objetivos “escrever números dentro

de um intervalo previamente definido, utilizando os conhecimentos que possuem sobre o

sistema de numeração; estabelecer relações entre os números (maior que, menor que e entre

os próprios números)” (FDE, 2010, p. 165).

Na sessão de ACS sobre o episódio da aula de Matemática, Renata tem a oportunidade

de discutir seu trabalho. Estabelece que o objetivo é “ver se eles chegariam ao resultado,

quais as possibilidades que eles usariam para chegar a um resultado”. Novamente, nota-

se o quão de perto a professora segue as propostas do Programa Ler e Escrever também no

que se refere ao ensino de Matemática: “o Ler propõe isso mesmo: as diversas maneiras

que eles encontram para chegar ao resultado”. A fala da professora aponta que, além de

utilizar o que foi proposto pelo referido programa, reconhece diferentes maneiras de

encaminhar os alunos para a formação dos conceitos científicos. Quando existe diversidade de

informações, existe, também, a possibilidade de os alunos discutirem e dialogarem sobre as

maneiras pelas quais chegaram a um mesmo resultado; consequentemente, as possibilidades

de aprendizagem se ampliam, levando a um pensamento mais bem estruturado, alargando a

possibilidade de novos sentidos e significados serem atribuídos aos conceitos cotidianos, não

apenas em Matemática como também em outras facetas do mundo que cerca os alunos.

Quando questionada sobre o planejamento e a execução da atividade selecionada para

a autoconfrontação, Renata afirma sentir-se amparada pelo Programa Ler e Escrever:

[Essa atividade de Matemática] é do Ler, sim. E está no livro. Um dia

antes, eu tinha pedido para eles fazerem uma pesquisa de preços. Na

verdade, eu ia trazer o folheto do supermercado, mas, aí, eu achei que,

se eles pesquisassem, era uma maneira deles irem buscando alternativas

120

para fazer a tarefa. Eu achei que foram poucos os que não trouxeram e

dos que trouxeram, nós escolhemos os preços. Como tinha muita

diferença de preço, eu questionei a marca, a qualidade, a quantidade.

Aproveitei para discutir que os preços não são os mesmos em todos os

lugares para as mesmas coisas.

A atividade da qual Renata fala está presente no Guia de Planejamento e Orientação

aos Professores e tem como nome “pagamento de compras”. Por meio dessa situação, a

docente pode incentivar os alunos a fazerem contas de adição e subtração, levando-os a

realizar cálculos numéricos. Além disso, os alunos podem entrar em contato com seu

cotidiano, notando “que os números têm um uso social e estão presentes em muitas situações

cotidianas” (FDE, 2010, p. 179). Quando corrige a atividade, a professora novamente discute

e socializa as diversas maneiras de pagar pelos produtos (seja com moedas de um real, notas

de dois ou de cinco reais), mostrando concretamente, na lousa, as diferenças entre elas. Vale

destacar que Renata coloca, para cada item, pelo menos três possibilidades diferentes de

pagamento do produto, trazidas pelos próprios alunos. Além disso, desenha, na lousa, as

moedas para que o processo fique mais concreto para o grupo. Quando a professora aproveita

a situação “para discutir que os preços não são os mesmos em todos os lugares”,

evidencia-se que seu objetivo não é apenas ensinar os conteúdos de sua disciplina, mas sim

possibilitar o desenvolvimento da criticidade e da pesquisa, para se fazer boas compras.

Novamente é possível observar que a atividade educativa não se volta apenas aos conteúdos,

mas também à apreensão do mundo objetivo.

A autoconfrontação parece ter sido para Renata um momento propício para que

pudesse perceber a importância de utilizar essa estratégia, pois: “essa atividade é uma

proposta do Ler, mas a gente não usa tanto. Se a gente usasse mais, você vê que tem

resultado. Porque os que sabem mais ajudam os outros”. Quando ela diz “a gente”,

possivelmente está se referindo a sua categoria profissional, ao conjunto de docentes e, mais

particularmente, a seus colegas, os professores da escola. De fato, esse tipo de atividade é uma

proposta que o Programa “Ler e Escrever” recomenda que seja utilizada ao longo de todo o

semestre.

A análise deste núcleo permitiu que a atividade docente de Renata fosse compreendida

e elucidada. A autoconfrontação mostrou-se um momento importante para que a professora

pudesse se observar ao longo da implementação de suas atividades, iniciando, assim, um

movimento de reflexão sobre elas e de possível ressignificação delas. O trabalho em grupo foi

um dos aspectos pedagógicos mais interessantes encontrados no decorrer das várias atividades

121

observadas, além de ir ao encontro dos postulados do Programa Ler e Escrever, bem como

das teorias de desenvolvimento de natureza interacionista, como as de Piaget e de Vygotsky.

Efetivamente, quando o trabalho pedagógico se organiza em duplas, trios ou grupos, quando é

cuidadosamente planejado com intencionalidade educativa, as chances de sucesso nas

atividades docentes se ampliam.

4.3.5 Núcleo 5 – A importância da relação com a comunidade escolar e com a equipe

gestora para o adequado desenvolvimento das atividades docentes

Este núcleo versa sobre a maneira como Renata se relaciona com a comunidade

atendida pela escola e, também, com seu grupo de colegas. Na entrevista, ao falar sobre o

bom relacionamento que tem com os pais dos alunos, ressalta: “Eu nunca tive problema

com pais, de rejeição ou de críticas. E, com os pais, o relacionamento foi sempre bom e

com os alunos também”. Ao complementar seu discurso, aponta as estratégias que utiliza

para lidar com os problemas do cotidiano das crianças. Nota-se na fala de Renata certo

desconforto quando precisa chamar os pais na escola:

Às vezes, eu sou obrigada a chamar a mãe. Mas eu evito o máximo que

eu posso, porque eu procuro resolver tudo dentro da sala mesmo... Resolver os conflitos que surgem ali dentro... Ontem mesmo teve a questão

do piolho e, se você deixar, o negócio cresce. E se você se envolve muito, a

família também [não gosta], né? Nenhuma mãe gosta de receber um

bilhetinho escrito: olhe a cabeça da sua filha, porque está tudo cheio de

piolho. Então, eu procuro mesmo trabalhar no todo, levar um problema

individual e estruturar para a sala toda.

Apesar de Renata enaltecer o contato com a família e ressaltar que esse encontro é

importante para o desenvolvimento de suas atividades, a fala “e se você se envolve muito, a

família também [não gosta], né?” vai ao encontro dos achados de Szymanski (2009). Para a

autora, é interessante notar que os professores e dirigentes das escolas consideram, muitas

vezes, “a presença das famílias na escola ameaçadora” (p. 10). Esse não parece ser o caso de

Renata: ela gosta – ou, pelo menos, não parece se incomodar – da presença deles, muito

embora tome cuidados ao encontrá-los. A professora enaltece o comprometimento dos pais,

pois diz sentir-se confortável com o apoio que eles lhe dão: “os pais também ajudaram

bastante, nessa parceria com os pais, tudo o que eu propus foi aceito. Então, eu acho que

é um conjunto de ações que ajudam nesse trabalho”. Mas a que se refere ela quando se fala

de um “conjunto de ações”? Certamente, à relação dialógica e respeitosa, estabelecida entre

122

equipe docente e gestora com as famílias dos alunos. De fato, é importante que isso ocorra,

pois:

O encontro pais-escola constitui um ambiente de aprendizagem e ensino e

um contexto de desenvolvimento pessoal para todos os protagonistas,

crianças e adultos, o que é coerente com o que a proposta dialógica também

preconiza. Se educadores e pais puderem compreender a sua relação como

uma oportunidade de desenvolvimento para ambos, o que significa ampliar a

compreensão do contexto das trocas interpessoais numa atitude de abertura

criativa para o outro, tendo como horizonte o investimento na educação de

crianças e jovens, é possível desenvolver uma relação dialógica entre eles

(SZYMANSKI, 2009, p. 10).

Para Renata, o relacionamento com as gestoras da escola – diretora, coordenadora

pedagógica e vice-diretora – é, igualmente, muito positivo: “eu me relaciono bem com as

gestoras, eu não tenho problema, não!”. Seu discurso evidencia a dinâmica das relações

interpessoais na escola e como as decisões são aí tomadas:

Tudo o que a gestão vai fazer, ela participa com os professores. Tudo é

resolvido junto, em conjunto mesmo e isso me dá uma certa autonomia,

embora uma autonomia entre aspas, né? Porque nem sempre a equipe

gestora pensa igual a você. Aqui, quando dá para ceder, a gente sempre

busca ver os dois lados – cede de um lado, aí o outro cede de outro e a

gente procura sempre um acordo. Nem sempre a gente é atendida, mas é

feito um acordo.

É perceptível o equilíbrio na tomada de decisões na escola. O diálogo e a forma como

a gestão insere os professores no processo decisório permitem que todos possam se sentir

autores do que ficou acordado, fato que facilita bastante as relações entre os pares. Embora as

demandas da professora não sejam sempre atendidas, a busca por resolver a situação é

civilizada e respeitosa. Isso se manifesta também na entrevista, quando Renata comenta:

Eu aprendo muito, aprendo bastante mesmo com eles [com os outros

professores]. E assim... Eu não aceito o “eu não sei”. Eu quero uma solução

para o meu problema. Por exemplo, caiu numa questão do concurso: para

que a gente ensinava sequência numérica? E a gente não tinha a resposta e

eu não aceito, eu fico atrás até descobrir. E, aí, hoje, nós descobrimos juntos.

Eu acho isso legal.

A relação positiva entre os docentes da escola contribui para um clima agradável na

instituição. De fato, a boas relações são fatores relevantes para a construção de novos

conhecimentos por parte do grupo de professores. Quando existe bom relacionamento, novas

possibilidades de aprendizagem surgem e o grupo tenta, em conjunto, sanar as dúvidas e/ou

lacunas de conceitos, entendimento ou experiência profissional sobre tudo o que diz respeito

123

ao trabalho do professor. O coletivo se fortalece quando existem relações saudáveis entre os

professores, havendo confiança para, juntos, descobrirem as respostas que buscam. Vale

destacar que Renata é sempre procurada por seus colegas, quando eles têm dúvidas sobre as

sondagens e/ou atividades que realizam com seus alunos. Por ser considerada uma professora

bem-sucedida junto a seu grupo de alunos, ela é uma das que mais gostam de discutir no

coletivo e de propor atividades diferentes para serem realizadas em sala de aula:

Nós trocamos muito. Por conta de eu estar sempre buscando,

mesmo, e da minha prática, acaba que eu auxilio os meus colegas. Por exemplo, a gente busca alguma coisa na internet, mas eu não vou

chegar lá [na sala de aula] e dar isso para os meus alunos, sem analisar

determinada atividade. Então, coisa pronta eu não gosto; eu gosto da

construção, mesmo. Eu acho que é por conta [dos colegas

professores] de verem que está dando certo, que eles acabam me

procurando.

Esse reconhecimento por parte dos colegas de profissão parece fazer bem a Renata,

que se sente, aparentemente, gratificada por conseguir resolver suas dúvidas. Essa sensação

gratificante está, ao que tudo indica, presente tanto em seu trabalho com os alunos quanto com

o corpo docente a que pertence. Além disso, quando há oportunidade de discutir – ou de

construir uma atividade – mesmo que o grupo se engaje, a presença de Renata tem um papel e

um peso determinantes. Novamente, fica claro que a professora se interessa por um trabalho

coletivo, que tenha como base a construção e/ou análise de propostas pedagógicas inovadoras,

que possam melhorar o processo de ensino-aprendizagem.

Em suma, este núcleo traz subsídios importantes ao revelar quão importantes são as

relações positivas que se estabelecem tanto com a comunidade quanto com os professores,

gestores, funcionários e alunos da escola. Efetivamente, quando o professor se sente apoiado

pelos pais e encontra um grupo de professores e gestores abertos à troca de experiências, esses

fatores favorecem notadamente e, ainda, impulsionam a realização das atividades docentes.

4.3.6 Núcleo 6 – Os sentimentos de Renata diante da autoconfrontação simples

Este núcleo auxilia a compreensão da autoconfrontação como mediadora do

movimento reflexivo de Renata. Quando questionada sobre o processo de planejamento de

sua aula denominada “conto da Rapunzel”, foi possível perceber que a aula não havia sido

devidamente planejada: “eu não me preparei para dar essa aula, você entendeu? E eu

124

achei muito legal”. Mesmo com falhas no planejamento, a professora, contrariamente ao

esperado, faz uma avaliação positiva de sua atividade. A despeito de sua análise ter sido

positiva, Renata encaminha sua reflexão sobre o real da atividade (intenções não realizadas, o

que poderia ter sido feito, o que tinha desejado fazer etc.), dizendo que, para ela:

[A atividade] estava sim [de acordo com o desenvolvimento dos alunos].

Para os alfabéticos, eu achei que foi fácil demais, porque quando eu

terminei de entregar as folhas para a turma do fundo, alguns, daqui da

frente, já tinham terminado. De repente, eu poderia ter dado uma

reescrita, ou uma produção coletiva.

Muito provavelmente, as brincadeiras de luta e as conversas paralelas que dispersam

os alunos acontecem em função da falta de planejamento das atividades docentes, tal como

visto no núcleo 3. Além disso, apesar de dizer que a atividade está de acordo com o

desenvolvimento de seu grupo, Renata poderia, sem dúvida, ter pensado em outras estratégias

para ensinar os alunos mais adiantados, mantendo-os interessados na tarefa e, portanto,

ocupados. De fato, sem planejamento, não se pode usar estratégias diferenciadas, daí sua

importância para o bom desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

Na atividade sobre o alfabeto móvel, a professora percebe a importância de trabalhar

com muitos e variados materiais pedagógicos. O envolvimento do grupo chama muito a

atenção, pois todos os alunos participam, com afinco, do que lhes é proposto. Ao se observar

e ao discutir com a pesquisadora, Renata aponta: “o que eu percebi é que eu preciso

trabalhar mais o alfabeto móvel com eles, porque eu vi o envolvimento deles”. Com base

na ACS, ela salienta: “eu acho que é uma atividade trabalhosa para mim, mas eu acho

que depois de ver o vídeo, eu tenho que fazer mais, porque é uma coisa que ajuda muito

no processo educativo deles”.

Esses trechos apontam para a importância do vídeo como elemento mediador para a

reflexão sobre a atividade realizada. Ao se observar atuando, Renata analisa sua forma de

trabalhar e pode pensar em outras formas de realizá-la, de ampliar e aprimorar o que foi feito.

Apesar de ser uma atividade trabalhosa, notar o grupo de alunos envolvido na tarefa e

conseguindo realizá-la com sucesso, parece ter sido um fator determinante para incentivar a

realização de atividades semelhantes, mas com objetivos distintos, em outras situações de

aprendizagem dos alunos. Vale destacar que a atividade com o alfabeto móvel foi

exaustivamente planejada pela docente e, portanto, o sucesso obtido decorreu, em particular,

desse empenho de Renata.

125

No que concerne à aula de Matemática (episódio 3), a professora comenta: “eu fiquei

feliz com a atividade e acho que foi bem produtivo o dia para eles”. Ao falar sobre o real

da atividade, a professora diz: “eu acho que o folheto do supermercado, se todos tivessem

trazido, ajudaria bastante, não sei se a ida a um mercadinho poderia ter motivado mais.

Mas, eu acho que o objetivo [testar as diversas maneiras de chegar a um resultado] eu

consegui!”. Ao complementar seu discurso, Renata destaca seu sentimento positivo diante do

resultado observado no vídeo:

Eu acho que eu consegui atingir o meu objetivo, porque eu tive várias

crianças que usaram várias possibilidades diferentes. E, o que eu mais

gostei, foi que eu mostrei para eles que não existe um único jeito de fazer

a conta de adição e que, na Matemática, eles podem usar muitas outras

maneiras de somar.

Essas falas de Renata indicam que ela está ciente de que é possível, por meio de

diversas estratégias, chegar ao mesmo fim. Em outras palavras, uma mesma atividade pode

ser realizada a contento de diferentes maneiras. De fato, o Guia de Planejamento do Professor

sugere, na atividade seguida em Matemática, que os alunos pesquisem os preços e utilizem,

para tanto, distintos materiais – folhetos de lojas/mercados, jornais, revistas –, pois eles

costumam indicar os valores dos produtos discutidos na aula de Matemática. Renata sugere

que os alunos tragam para a aula essa pesquisa, mas poucos cumprem a tarefa solicitada.

Diante disso, a professora utiliza as que têm em mãos, socializando seus dados com o restante

do grupo. Apesar de a instrução da atividade não ter sido seguida por todos, Renata não

parece ter considerado esse um fato relevante, em função do sucesso alcançado nas adições e

na apreensão dos discentes de que, variando os meios, se chega a um mesmo fim. Inquirida

acerca da utilidade do procedimento de autoconfrontação (aula de Matemática), a professora

afirma que, em seu entender, caberia, algumas vezes, modificar sua atividade:

Eu acho que a gente tem que estar aprendendo mesmo. Isso daqui, para

mim, é um aprendizado, porque me leva a mudar a minha prática em

muitos aspectos que eu vi, como por exemplo, esse da minha voz ser

muito alta e rouca; de atitude diante dos alunos, de postura do meu

corpo. (Até isso eu preciso mudar, a minha postura mesmo: acho que eu

estou muito curvada), de buscar caminhos para atingir todos os alunos,

fazer eles aprenderem.

Os aspectos levantados por Renata enaltecem a importância da estratégia de

autoconfrontação como uma boa mediadora no processo de refletir sobre suas atividades: ao

se observar e discutir as aulas planejadas com a pesquisadora, ela pode elencar suas

126

prioridades, caso decida modificá-las. O que mais chama a atenção, nessa fala, é o quanto ela

enfatiza as mudanças no tom de voz e na postura, pontos delicados para a docente, pois foram

os que a barraram no concurso de ingresso na prefeitura municipal de São Paulo (tal como

visto anteriormente). A autoconfrontação parece ter levado Renata a se deparar com aspectos

de sua docência que precisam ser modificados:

Ah, eu achei legal [a autoconfrontação]. Eu acho que eu vi que tenho que

mudar bastante, que eu preciso estudar muito ainda, que eu não estou

tão longe, mas preciso chegar mais perto do que eu quero: fazer tudo

para que todos consigam aprender. Isso daí [autoconfrontação] vai

abrindo o olhar da gente, para que se possa buscar e se olhar atuando

mesmo.

Ao falar a respeito de como foi compreendendo o processo da pesquisa e,

principalmente, o da autoconfrontação, a docente faz um apontamento importante sobre sua

apreensão e sua ajuda na ressignificação de sua atividade:

Tudo depende do seu olhar. Porque eu não vejo isso como crítica: eu vejo

como espaço de construção mesmo, para melhorar a minha prática. Mas

tem gente que não aceita isso, né? Tem gente que tem dificuldade para

enfrentar o novo e isso pode acabar sendo um problema para muita gente.

Na primeira filmagem, eu não sabia direito o que ia acontecer; mas,

hoje, eu uso sempre isso [vídeos, com os episódios analisados, entregues à

docente, ao final do trabalho de campo] para refletir e rever a minha

prática mesmo. Mas, para quem acha que isso pode ser uma avaliação, é

mais difícil. Eu acho que tudo o que a gente tiver para chegar mais perto

do nosso objetivo, que é a ensinagem, é bom.

Fica claro, desse modo que houve, no caso dessa professora, impacto da

autoconfrontação em sua apreensão de si mesma e de seu trabalho docente. Assim, ao que

tudo indica, esse é um procedimento importante para promover o desenvolvimento

profissional de professores. A indicação que Renata faz de que a autoconfrontação não pode

ser confundida com a avaliação constitui uma importante pista para futuras pesquisas: quanto

mais informações os professores tiverem sobre os procedimentos utilizados no processo da

pesquisa, menor a possibilidade de que se sintam avaliados ou julgados. Desse modo, a

transparência ganha, nessa modalidade de estudo, centralidade. De destaque, também, é que

se o caminho só se faz ao caminhar, Renata precisou passar pela experiência da primeira

autoconfrontação para entender o que com ela se pretendia.

A relação de confiança estabelecida precisa ser também devidamente analisada: a

professora não colocou nenhum impedimento às ACS, que contavam com a presença apenas

da pesquisadora, recusando-se, entretanto, a participar das sessões de ACC, na qual um

professor da rede estadual a observaria em ação. Evidencia-se, assim, que, sem haver certeza

127

de que alguém está colocando seu conhecimento e experiência a serviço dos docentes, eles

tentam, a todo modo, preservar sua face, não expondo indevidamente suas fragilidades a

estranhos. Para empoderar o professor, aumentando seu poder de agir, a autoconfrontação

parece ser muito eficaz, possibilitando movimentos reflexivos que oportunizam, na e pela

mediação do parceiro mais experiente, novas e mais eficazes possibilidades de atuação

profissional.

4.4 Análise internúcleos

A análise internúcleos é um momento de produção de informações qualitativamente

diferente do anterior, pois nele se tenta articular a interpretação dos diferentes núcleos de

significação entre si. Os temas que vieram à tona no decorrer do processo de análise

intranúcleos foram detalhadamente descritos, pois por meio deles é que seria possível

aproximar-se dos movimentos de constituição de sentidos e significados da professora Renata

sobre o Programa Ler e Escrever, no que diz respeito ao exercício da docência e às atividades

que emprega ao realizar sua função. A essa primeira etapa, segue-se a análise internúcleos,

que consiste em um esforço analítico-interpretativo do pesquisador para compreender e

explicitar aspectos contraditórios ou semelhantes que se fazem presentes e interpenetram-se

na constituição dos sentidos do sujeito.

O objetivo dessa seção é, portanto, compreender os aspectos pertinentes à forma de

ser, pensar e agir da professora. Ao discutir o processo de análise internúcleos, Soares (2011,

p. 274) salienta que “o movimento de constituição de sentidos não se reduz apenas às

experiências atuais do sujeito”, mas também está formado por vivências historicamente

acumuladas por ele “em espaços sociais diversos”. Tais experiências modificam seu modo de

ser, pensar e agir e, consequentemente, sua subjetividade.

Os núcleos 1, 2 e 4 são passíveis de articulação: neles estão presentes aspectos

relacionados ao modo de ser, pensar e agir da professora que, aparentemente, engendram

movimentos de (re)significação das atividades cumpridas. No núcleo 1 – que tratou da

escolha do magistério –, a professora demonstra ter grande prazer na profissão docente e se

diz muito feliz com o trabalho que realiza, indicando sentidos marcados por sentimentos de

segurança e, também, de inquietação, pois nota-se uma busca constante de novas estratégias

de ensino-aprendizagem. Tais sentimentos movimentam as atitudes da docente, que, mesmo

estando prestes a se aposentar, após 27 anos de trabalho, desenvolve suas atividades tentando

128

incluir e contemplar todos os alunos. Não por acaso a análise do núcleo 2 – que versa sobre a

formação, as experiências profissionais e a visão de Renata sobre o Ler e Escrever – aponta

uma atuação pautada pelo senso comum, pelo acúmulo de informações (modelo “receitas

prontas”), pela racionalidade técnica (saber-fazer) e, principalmente, pela experiência prática

adquirida ao longo de seus anos de profissão. Renata segue bem de perto as propostas do

programa, pois encontra no Guia de planejamento do Professor um instrumento que alimenta

uma prática repetitiva, altamente prescritiva, mas interessante para ser trabalhada com seu

grupo de alunos e, sobretudo, que dá bom resultado.

Algumas questões importantes no processo de formação continuada do referido

programa na escola pesquisada surgiram: os encontros são pouco planejados pela

coordenadora pedagógica e os professores parecem não se sentir motivados a discutir suas

propostas. Na visão de Renata, o trabalho da coordenadora deixa a desejar e, diante disso,

segundo ela, só resta aos professores se valerem dos materiais como suporte para as

atividades, ou seja, como ingredientes imprescindíveis da receita a ser aplicada em sala de

aula. Nessas condições, é de pouca valia o eventual aprendizado que se pode alcançar nos

momentos de formação entre pares.

A análise do núcleo 4, articulada aos núcleos 1 e 2, salienta a problemática da

formação continuada na escola pesquisada e revela alguns movimentos da professora na

tentativa de articular teoria e prática. Renata diz que, no decorrer de sua carreira e com a

mediação de outros processos formativos, optou pelo construtivismo como pressuposto

epistemológico norteador de seu trabalho. No entanto, observando mais de perto sua

atividade, percebem-se nela aspectos contraditórios entre o que diz fazer e o que realmente

faz. É possível, ainda, notar em sua atividade fortes marcas do ensino tradicional, com mescla

de aspectos construtivistas: Renata parece ter se apropriado das propostas teóricas dessa

corrente pedagógica, embora ainda encontre certa dificuldade de colocá-las em prática. Isso

decorre tanto dos entraves dos momentos de formação continuada do Ler e Escrever quanto

do fato de ela ignorar e/ou desconsiderar a importância de momentos destinados ao

planejamento das atividades na carga horária de trabalho. Perde, com isso, a oportunidade

talvez rica de discutir e partilhar com seus colegas dúvidas que poderiam ou não ser comuns.

Depreende-se, então, que um dos pressupostos do construtivismo – aprender com os

pares – só vale para a sala de aula, quando em atividade com os alunos. Como visto no núcleo

1, a formação dessa docente ainda é frágil e, por isso, articular teoria e prática (núcleo 4), tal

como apregoa o modelo construtivista, permanece um desafio a ser por ela enfrentado. Para

sanar as lacunas de sua formação e dar conta de sua atividade principal – alfabetizar todos os

129

seus alunos –, a professora não busca na teoria um alicerce, mas lança mão de sua experiência

prática: ampara-se em fontes de informação pouco rigorosas (internet e revistas de educação),

que, ao oferecem atividades mais estruturadas e informações de fácil acesso, dão ênfase ao

fazer. Daí, contraditoriamente com a proposta construtivista de ensino, o olhar de Renata recai

no produto, ao invés de se centrar no processo.

A necessidade de atingir a meta proposta pela SEE – alfabetizar todos os alunos –

também dirige a atividade de Renata, que, aparentemente, sabe que cada criança tem um

tempo diferente da outra e reconhece que as dificuldades decorrentes do fato de elas estarem

entrando mais novas no 1° ano (tal como visto no núcleo 3) acabam imprimindo,

autoritariamente, um ritmo de trabalho pesado ao grupo. Evidencia-se, aqui, uma clara

contradição, pois o cenário ideal de Renata, para sua sala de aula, parece ser aquele próprio do

ensino tradicional: todos quietos e focados na atividade.

Assim, apesar de os relatos constantes de que o barulho de seus alunos a incomoda, é

somente na primeira sessão de autoconfrontação (núcleo 6) que a professora pode começar a

refletir sobre as vinculações entre planejamento das atividades e ruídos desnecessários. Ela

ainda não havia percebido que o barulho do qual tanto reclamava nem sempre vinha de sua

sala de aula. Com a mediação do vídeo, percebe que, por vezes, seu grupo está focado na

atividade, de modo que sua queixa, em alguns momentos, é infundada.

Como não considera no planejamento diário as diferenças de conhecimentos e

experiências presentes entre os alunos (que, na Psicologia Sócio-Histórica é denominado nível

de desenvolvimento real), Renata propõe atividades muito fáceis para uns e muito difíceis

para outros. Quando os alunos não compreendem o que lhes é pedido ou realizam a atividade

rapidamente ou não a realizam, acabam entretendo-se com conversas que aumentam a

intensidade do ruído na sala de aula. Como o objetivo da professora é alcançar o produto

final, não se dá conta de que pode minimizar o ruído dos alunos se as atividades forem mais

bem planejadas, ou seja, se levarem em consideração os conhecimentos prévios das crianças,

desenvolvendo para elas atividades diversificadas, de forma que cada uma tenha seu saber e

sua experiência contemplados e todas contem, então, com a possibilidade real de aprender.

Ainda na autoconfrontação, ao se observar em duas aulas diferentes (a do alfabeto

móvel e a de Matemática), Renata percebe que, ao propor e executar atividades bem

planejadas, o ruído de seus alunos diminui: todos se sentem motivados e interessados, de sorte

que o objetivo da atividade é alcançado sem a necessidade de posturas que a ela mesma não

agradavam. Essa descoberta é fundamental, pois constitui uma maneira eficaz de colocar em

prática os postulados construtivistas e de levar todos os alunos a aprender de acordo com suas

130

possibilidades, sem ter de criar um clima tenso em sala de aula. Portanto, o impacto da

autoconfrontação é grande para a professora. O fato de ela não ter aceitado participar das

autoconfrontações cruzadas fica, então, nesse contexto, iluminado: ao criticar sua própria

atividade docente e sua conduta junto aos alunos, por que iria ela se expor aos olhos de um

colega?

A professora reconhece, ainda, a importância da proposta (psicogênese da língua

escrita), das estratégias (trabalho em dupla/grupo, listas, contos, leitura diária) e dos materiais

(letras móveis, dados, livros, revistas e almanaques) empregados no Programa Ler e Escrever,

razão pela qual os utiliza, diariamente, em seu trabalho. Outro fator parece contribuir para

isso: a linguagem acessível, que permite a Renata entender e empregar as propostas desse

material como modelo a ser seguido. Apesar de suas dificuldades de planejar a adoção das

propostas veiculadas no Programa, a professora trabalha muito bem com agrupamentos.

Observa seus alunos, propõe mudanças quando elas se fazem necessárias e compreende a

importância do trabalho conjunto não apenas para a aprendizagem dos conteúdos curriculares,

como também para o desenvolvimento da autonomia e do respeito ao próximo. Mas como

alcançar tais metas se os materiais demoraram quase seis meses para chegarem à escola? A

logística de todo o programa requer, ela também, planejamento rigoroso, sob pena de boas

iniciativas acabarem se perdendo por falta de organização.

Fica claro que as propostas do Programa Ler e Escrever levaram Renata a ressignificar

suas atividades docentes, possibilitando-lhe alterá-las de forma a melhor atender a seus

alunos. Por exemplo, ao instalar, como rotina, a leitura diária para os alunos (tal como visto

no núcleo 4), é possível à professora perceber que há, com isso, ganhos em termos de

aprendizagem no grupo-classe; atribuiu novos sentidos à educação oferecida às crianças na

educação infantil, justamente por reconhecer que elas têm chegado ao 1° ano com mais

conhecimentos, sobretudo sobre histórias e contos, a estrutura da narrativa e sua organização.

Se Renata não tivesse seguido a prescrição de ler diariamente para a classe, muito

provavelmente não teria essa visão tão favorável sobre a educação infantil.

Os núcleos 4, 5 (a importância da relação com a equipe gestora e comunidade) e 1,

quando articulados entre si, auxiliam também a melhor compreender como os sentidos

constituídos por Renata sobre o programa Ler e Escrever mudaram drasticamente sua forma

de ver a escola e seu papel. A estrutura física da escola mostrou-se, então, ser um forte

impeditivo para a boa docência: a biblioteca, por exemplo, é mostrada no Programa como um

espaço interessante para que as crianças tenham contato com diversos gêneros textuais,

desenvolvam o gosto pela leitura e, ainda, como um local de aprendizado distinto e

131

complementar ao da sala de aula. Em sua escola, no entanto, esse espaço nunca é utilizado

com seu fim específico, pois tinha se convertido, por força de necessidade, em sala de aula.

As contradições entre o proposto pelo Programa Ler e Escrever e as condições reais em que o

processo de ensino e aprendizagem se dá – a precariedade da estrutura física e sua

superlotação, a ausência de todo e qualquer tipo de brinquedo e a pouca oferta de atividades

extracurriculares – levam a professora a repensar a educação, notadamente a paulista, que

adota uma abordagem pedagógica, o construtivismo, sem lhe oferecer o contexto necessário

para seu adequado emprego e sucesso.

Ter compreendido isso foi importante para Renata, que deixou de culpar os pais ou a

gestão da escola pelas dificuldades que enfrenta (rompendo o discurso estereotipado dos

docentes vinculados à rede pública de ensino) e, sobretudo, por acolher e sentir-se acolhida

pelas famílias e pela equipe gestora. A professora pode, então, envolver-se com suas

atividades, entendendo que faz o melhor possível; é esse envolvimento que faz dela uma

figura de apoio e de referência para todos os docentes dessa escola. Sentir-se valorizada pelos

que a cercam promove, consequentemente, um maior prazer e um maior empenho no

cumprimento de suas atividades. O reconhecimento por parte dos pais de seus alunos e da

gestão da escola é, portanto, um aspecto mediador dos sentimentos positivos de Renata pelo

programa, pela profissão escolhida e pelos que, como ela, atuam na mesma escola.

Por meio das análises aqui apresentadas (intranúcleo e internúcleos), é possível

perceber que as sessões de autoconfrontação engendraram em Renata movimentos reflexivos

sobre suas práticas (todas orientadas pelo Programa Ler e Escrever), sua escola, a educação.

As imagens e o diálogo (pesquisadora-professora) impulsionaram-na a fazer isso, pois havia

que justificar sua conduta profissional, bem como suas posturas e atitudes diante de seus

alunos. Além disso – e ao que tudo indica – ao compreender o processo de autoconfrontação,

a docente parece ter buscado dedicar-se com mais afinco ao planejamento das atividades,

compreendendo a importância desse processo para o sucesso das aprendizagens infantis. Ao

ver seu grupo de alunos participando, com empenho e dedicação, foi-lhe possível constatar a

centralidade do planejamento dentre as atividades docentes, situação que, como não poderia

deixar de ser, constitui novos sentidos acerca da profissão do magistério.

132

5 Considerações finais

Este trabalho teve por objetivo dar resposta a três questões centrais, ora retomadas

para verificar se o estudo cumpriu seu propósito inicial:

1. Quais são os sentidos e significados que a professora elaborou

sobre a formação específica recebida no Programa “Ler e

Escrever”, no que concerne ao exercício da docência e à prática

pedagógica que emprega?

Os achados específicos deste estudo corroboram o que muito se tem

veiculado nas discussões promovidas por entidades interessadas em compreender o

trabalho do professor e sua formação, como a Associação Nacional pela Formação

dos Profissionais da Educação (Anfope), a Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Educação (Anped), que vêm, já há muitos anos, ressaltando a

importância do aporte teórico e do prático nos cursos de formação inicial/continuada,

de modo que se possa falar de uma práxis docente. O histórico de Renata se enquadra

nas discussões tecidas no capítulo sobre formação de professores, no qual se viu que,

se é importante ensinar o professor a refletir sobre sua prática, mais ainda seria criar

um espaço colaborativo de troca entre os pares, no qual a teoria se aliasse à prática,

convertendo-se em práxis23.

A proposta formativa do Ler e Escrever, tal como visto no núcleo 2, obedece

ao modelo “em cascata”, que se mostrou, neste estudo, não ser uma alternativa

interessante, pois privilegia aqueles que são capacitados pela primeira vez, caso dos

coordenadores pedagógicos (CPs), a quem compete repassar os conteúdos aos

demais docentes em suas unidades escolares. Como bem revela Renata, os

professores que recebem a formação por vias indiretas sentem que o conteúdo

original não lhes chega por completo, o que gera um desconforto quanto ao domínio

da proposta. Explica-se facilmente, portanto, a sensação de incompetência, sobretudo

à luz dos pífios resultados do Saresp, que ocasiona sérios prejuízos para a

23

A práxis é, na verdade, uma atividade teórico-prática; isto é, tem um lado ideal, teórico, e um lado material,

propriamente prático, com a particularidade de que só artificialmente, por um processo de abstração, podemos

separar, isolar, um do outro (VÁSQUEZ, 2007, p. 262).

133

autoimagem profissional, para a conduta em sala de aula e, sobretudo, para os

aprendizes que lhes são encarregados.

2. A professora utiliza os conhecimentos adquiridos por meio do

Programa Ler e Escrever em suas atividades docentes? Se os usa,

como o faz?

A análise empreendida permitiu compreender que, apesar de Renata

apresentar em seu discurso aspectos que se referem ao “ensino construtivista”,

muitas de suas práticas ainda contradizem os preceitos dessa corrente teórica.

Embora aparente afinidade com o pressuposto epistemológico em questão, a

formação frágil e precária faz a professora pensar que a abordagem construtivista não

lhe fornece subsídios suficientes para colocar em prática o tempo todo, em sala de

aula, o conhecimento teórico. Nota-se que Renata, embora não o perceba, ainda tem

muita dificuldade para articular teoria e prática, pois sua experiência em sala de aula

e sua motivação para desenvolver bem seu trabalho, de certo modo, a resguardam das

dificuldades encontradas no cotidiano escolar. Esse aspecto não difere dos

encontrados em algumas pesquisas do Procad (tanto as de São Paulo quanto as de

Maceió e Rio de Janeiro). Os resultados de algumas delas apontam que os

professores ainda utilizam muito de sua experiência prática e, de certo modo,

desconsideram a teoria como central.

Renata estabelece, portanto, uma relação instrumental com o programa,

buscando “receitas prontas” que lhe permitam chegar a seu objetivo principal:

ensinar todos os alunos. Interessa observar que, contrariamente à proposta

construtivista de ensino, essa relação instrumental é, de certa maneira, engendrada

pelos próprios materiais veiculados pelo programa, pois suas características

prescritivas possibilitam aos professores seguirem de perto o Guia de Planejamento

de Professores, inclusive nas formas de questionar o aluno e nas de intervir para

impulsionar a aprendizagem. Se assim é, o que justifica a presença de momentos de

formação continuada? A que eles se destinam? Ao que tudo indica, a essência do

Programa tem, ainda, como pano de fundo a racionalidade técnica, pois “esse modelo

investe todas as suas energias na ‘capacitação’ e no monitoramento das práticas dos

profissionais da educação em busca de ‘indicadores de qualidade’” (ROSA, 2010, p.

8).

134

Contudo, os materiais são aportes importantes para as atividades docentes da

professora: ao seguir estritamente algumas de suas propostas (trabalho em

duplas/grupos, dados, leitura diária, listas e alfabeto móvel), ressignificou sua

atividade, uma vez que com o apoio desses instrumentos – aliados à melhor

formação dos alunos obtida na educação infantil –, sua mediação em sala de aula

levou os alunos a se desenvolveram mais rapidamente quando comparados aos que

Renata atendia antes do contato com o Programa Ler e Escrever. Dessa forma, os

sentidos constituídos pela professora a respeito do Ler e Escrever passaram a ser

vistos como positivos, tornando-se ferramentas diferenciadas para ensinar os alunos

e alcançar um ensino mais igualitário.

Se antes do Ler e Escrever a professora pautava-se pelo modelo da

racionalidade técnica (saber fazer), os materiais novos lhe permitem construir

atividades estruturadas, que lhe asseguram um relativo manejo de classe. Nesse

sentido, pode-se dizer que o programa aqui analisado não ampliou os horizontes

teóricos da professora, mas deu-lhe condições de desenvolver uma prática mais bem-

sucedida, mesmo que ao preço de ser mera executora de saberes alheios, vinculados e

legitimados na rede paulista de ensino. Não é de se estranhar, portanto, que a

professora tenha constituído um sentido bastante positivo para as propostas

veiculadas no Programa Ler e Escrever.

No entanto, vale mencionar que, ao garantir um conteúdo mínimo a ser

ministrado por todos os professores da rede pública de ensino, homogeneizando seus

discursos e suas práticas, cria-se uma contradição ainda não resolvida com os

próprios princípios que regem a concepção construtivista de ensino. A autonomia

pedagógica e didática dos professores é negligenciada, pois o programa desconsidera

suas concepções, seus estilos pessoais e suas experiências prévias (HYPÓLITO;

VIEIRA; PIZZI; 2009) e, sobretudo, a subjetividade docente. Mas, como

evidenciado, Renata percebe isso. Vê progressos em seus alunos e, por isso, gosta do

Ler e Escrever. Depreende-se, então, que os sentidos constituídos por Renata sobre

sua atividade são, notadamente, os de prazer, satisfação, motivação, felicidade e

certeza na escolha de sua profissão.

Em síntese: o discurso que permeia todo o programa sugere que os

docentes possam refletir sobre sua prática e que tenham, nos momentos de formação

135

continuada, espaço para desenvolver seu aporte teórico, à luz do que se passa em sua

unidade escolar e em sua realidade concreta. Mas, como visto, esses pressupostos se

perdem no meio do caminho, de modo que central mesmo é a apropriação de uma

prática sistemática (o que pode ser bom, por estruturar a prática docente quando falta

tal habilidade ao professor), incidindo mais no saber fazer. Esse aspecto, ao invés de

romper com as críticas sobre o modelo da racionalidade técnica na formação dos

professores, perpetua-o, pois o “como fazer para que os alunos aprendam” é algo

constante em todo o material destinado aos professores, que passam assim a ser

meros executores de uma dada proposta sem a devida apropriação da teoria que lhe

dá sustentação.

3. Ao observar-se empregando o aprendido no referido programa, a

professora o considera importante para sua formação

profissional? Por quê?

Além de compreender os sentidos que a professora atribui ao Programa

Ler e Escrever e a sua atividade docente, este estudo também objetivou verificar o

impacto da autoconfrontação nas atividades de Renata. Como se pôde observar, esse

procedimento foi bastante profícuo e deve ser empregado na formação inicial e

continuada de professores, pois permite aos futuros ou atuais docentes passarem da

condição de protagonistas da ação para a de observadores de si mesmos. No caso

específico de Renata, a autoconfrontação possibilitou que ela refletisse sobre sua

postura e suas atitudes com os alunos, a ponto de sentir-se constrangida ao saber que

outro colega de profissão poderia vê-la naquela situação.

Em especial, a professora parece ter-se dado conta da contradição entre seu

discurso e o que foi observado por ela, pois percebeu sua rispidez e sua postura

rígida diante de uma aluna e, no mesmo movimento, que era mais exigente com seu

grupo do que imaginava ser, uma situação que não favorece o aprendizado dos

alunos. Depreende-se, então, que o sentimento de desconforto diante das imagens

engendrou uma reflexão a respeito de sua turma e uma nova maneira de agir com os

alunos. Muitas vezes, depois disso, ela pôde ser observada incentivando a

participação dos alunos nas atividades, ouvindo-os, socializando suas dúvidas. De

igual modo, continuou apresentando problemas em sua docência, mas se a

136

autoconfrontação fosse um instrumento corriqueiro na escola, a própria observação

compartilhada com outros poderia fazer muita diferença.

Diante disso, é preciso maior investimento e mudanças de postura e práticas,

tanto na formação inicial quanto na continuada. Na inicial, os processos formativos

precisam possibilitar ao futuro professor a reflexão sobre as teorias sociológicas,

pedagógicas, didáticas e psicológicas aliadas à realidade concreta das escolas, pois

de nada adianta contarem com diversos conhecimentos teóricos se não os empregam

em suas atividades rotineiras. Na formação continuada, é necessário compreender as

experiências prévias dos professores, o momento em que se encontram em seu ciclo

de vida profissional e os recursos que utilizam para lidar com o cotidiano escolar. De

igual modo, seria interessante que os professores pudessem confiar uns nos outros,

pois todos conhecem como é precária a formação que receberam no magistério.

Aprender com os pares e construir comunidades colaborativas de aprendizagem

parece ser a melhor saída para formar bem os professores em exercício. Criando

espaços de discussão nas próprias escolas, que levem em consideração sua realidade

e o que é possível nela realizar, os professores podem encontrar caminhos para,

coletivamente, superar suas dificuldades. Tais questões incidem diretamente no

empoderamento do professor, que, assim, se sentiria capaz de aliar teoria e prática,

algo que renovaria seus discursos, seus conhecimentos e sua atuação profissional.

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146

Anexos

Quadro dos indicadores e pré-indicadores da entrevista e das

autoconfrontações

Indicadores Pré-indicadores

As influências para a escolha da profissão A minha opção pelo magistério é porque

minha família toda é da educação, por

exemplo, eu tinha um tio lá em Buritama

mesmo que era Diretor de escola. Na época

era um status, né? Ah, eu fui aluna da mãe

do Gianechinni [risos], ela era minha

professora de História. [...] a minha família

toda era ligada à área da educação, minhas

irmãs, eu tive um irmão que era diretor de

escola, duas irmãs que já eram

professoras, minhas primas todas [eram]

professoras, e aí eu acho que foi por isso

mesmo [que eu escolhi a profissão].

O gosto pelo Magistério: “sabe quando

você vem trabalhar feliz?”

Eu falo assim: ah, eu ganho pouco, vou

procurar outro trabalho... Mas não

adianta, é disso que eu gosto mesmo.

E tem mais: eu me encontrei na profissão!

Aqui [na educação] é onde eu me encontrei.

Eu sou feliz... Sabe quando você vem

trabalhar feliz? Então, eu gosto daquilo

que eu faço, eu sinto saudade, eu fico triste

quando o ano vai terminar... É uma coisa

de paixão mesmo. Eu amo isso tudo que eu

faço.

Gosto, gosto, gosto muito [de dar aula]!

Estou muito feliz, principalmente pelo

retorno que a gente tem [dos alunos].

Escolheria sim [a profissão novamente], com

certeza. Não mudaria nada!

[...] quando você gosta daquilo que você

faz, não tem entrave. Mas se surge algum

147

tronco no caminho eu pulo, procuro

superar esse obstáculo e vou em frente. E

esse é o meu problema.

A formação inicial no magistério e a

comparação com o curso de Pedagogia

Eu sempre estudei em escola pública. Só a

minha faculdade é que está sendo

particular.

Eu me formei em 1984 no Magistério, no

curso normal. Ainda foi lá no interior. Foi

muito benfeito, muito benfeito, me deu

uma base muito grande.

Eu estou fazendo a Pedagogia agora,

embora meu curso não tenha me

acrescentado muito não. A faculdade em si,

não! O material é rico então eu procuro ler

em casa, mas eu gosto de buscar.

Experiências profissionais na educação e

na formação continuada

Só fazer curso não é suficiente não, eu

tenho que aprender mais! Eu tenho muito

que melhorar ainda...

Igual, teve um curso de fantoches que eu

gostaria de ter ido, só que era no horário

de HTPC e a diretora não liberou. Então

fica truncado porque não tinha outro horário e

eu não pude fazer. Isso para mim tinha que

melhorar muito, muito, muito porque eu

quero aprender, mas eu tenho que ter

oportunidade.

Eu queria fazer um curso de contação de

história porque eu quero aprender, mas eu

não tenho tempo e nem dinheiro – é tudo

muito caro!

[...] para o primeiro ano não tem nada,

nada, nada! Já tem uns três anos que eu

não participo de nenhuma capacitação

porque não tem oportunidade. Eles [SEE]

não oferecem nada e quando oferecem...

[...] já atuando muitos anos no primeiro ano,

eu gostaria [de fazer mais cursos] porque

tem muita coisa que eu já esqueci. Essa

148

parte de Matemática... Eu acho que tinha

que ter mais capacitação [em Matemática],

mas nós não temos nada.

As atividades que o Ler propõe são boas.

Agora começou a formação da área de

Matemática (Educação Matemática nos

Anos Iniciais – EMAI) e eu acho que cada

vez mais só tem a melhorar.

O Programa Ler e Escrever e o papel do

coordenador pedagógico nos momentos de

formação continuada

[...] o Ler é assim, mas ele tem que

funcionar, né? Esse ano ele está meio

assim... Por conta da carga de trabalho do

próprio coordenador pedagógico, não tem

sobrado tempo de estudo com a gente e

tem o nosso lado que a gente acaba que

fica mais no “blábláblá” do que no estudo

mesmo.

[...] porque senão fica um repasse de

informações e às vezes nesse repasse nem

tudo é falado. A gente não ouve da boca do

próprio formador as coisas como a

coordenadora pedagógica tem a

oportunidade de ouvir.

Eu preferiria mil vezes ter essa formação

direta como a coordenadora tem. Acho que

a gente aprenderia muito mais e utilizaria

esse mesmo tempo para a formação em si.

Porque eu acho que escaparia desse

negócio de sair do foco do estudo de vez em

quando, você entendeu?

Os materiais do Programa Ler e Escrever:

“eu gosto dessa proposta e eu vejo que os

alunos gostam também.”

Já é o segundo ano que eu estou

trabalhando com um 1° ano seguindo o Ler

e Escrever e é muito legal.

Os materiais são bons e me ajudam muito

na minha prática. Igual, às vezes eles [os

materiais] trazem outras opções para a

gente fazer em sala e daí dá para trabalhar

com os alunos que já têm facilidade no

assunto e com aqueles que ainda não têm.

Me ajudam no planejamento também...

149

Ajudam a ver outras possibilidades de

trabalho.

O Ler é um norte para o meu trabalho. Eu

gosto de tentar, sabe? E o Ler me dá essa

oportunidade de experimentar e isso eu

gosto muito. Tem dado muito certo.

Na verdade, eu aprendi e não faz muito

tempo que eu deveria ler todos os dias. Eu

aprendi isso no Ler mesmo.

E eu vejo isso nesse ano, como foi rico e foi

uma coisa de louco. Eles aprenderam rápido

demais.

Eu já vi uma diferença [na prática] e eu

acho que eu também já me aprimorei de

um ano para o outro... E isso tudo

recebendo crianças com cinco anos e tem

sido muito legal.

Eu gosto dessa proposta e vejo que os

alunos gostam também.

Funciona, é rico o programa. [...] o

programa é ótimo, é ótimo mesmo!

[...] o dia do Índio o livro propõe algumas

atividades, mas eu acho pouco e eu sempre

complemento.

[...] o material de 1° ano começou a vir

aqui pra gente só nesse ano [2011], antes

não tinha. Ano passado eu trabalhei com

um 1° ano e não teve material. Eu

trabalhava com livro meu mesmo, em cima

do meu material.

Eles andam com os deles [livros do

Programa Ler e Escrever] na bolsa porque

eles adoram ler.

Têm umas atividades de adivinhar, o

material é muito rico.

O material que vem para o aluno eu achei

150

pobre, porque eles [SEE] estão querendo

muito mais do que aquilo que o material

do aluno está oferecendo.

[...] na verdade, o material de 1° ano, eu

achei fraco para mim, você entende? Eu

achei que o de 2° ano para minha sala era

muito mais interessante.

[...] usar o livro [de textos] laranja [do

Programa Ler e Escrever] foi uma opção

minha. [...] Como o desenvolvimento da

sala foi muito rápido, eu percebi que

muitas crianças se alfabetizaram num

piscar de olhos e, aí, eu queria mais e mais

para eles. Daí, eu fui buscar esse livro. Não

é material de 1° ano... É um material de 2°

ano, esse livro de texto. Só que, como

tinham alguns na escola, eu busquei fora

também e completei para eles.

A busca por novas estratégias: “eu estou

em final de carreira, mas eu quero mais!”

[...] Eu quero aprender para ensinar

melhor porque [...] eu ainda tenho muito

que aprender.

Eu acho que aquilo que eu não souber

fazer, eu não vou saber ensinar.

Sempre buscando e quero mais, você

entendeu? Eu estou em final de carreira,

mas eu quero mais!

Na verdade, eu sempre fui meio

“atiradona” assim. Eu sempre busquei, eu

sempre busquei. Eu nunca fui uma pessoa

que fica parada, não. Ah, deu certo? Então

vamos lá! É uma oportunidade... então,

vamos tentar.

Na internet, eu busco e eu lanço assim:

dificuldade em tal atividade e vou

buscando.

[...] eu busco na internet, às vezes um teatro,

mas o custo... Por que o salário não

proporciona, né? Mas eu gosto de teatro,

151

shows, leio bastante... Eu tenho o hábito de

ir só, no banheiro, lendo e aí eu pego um

livro e leio ou a [revista] Nova Escola e leio.

Essa é a minha prática.

As mudanças da carga horária do ensino

fundamental I e a influência da formação

dos alunos na educação infantil

Ano passado [2010] foi o primeiro ano que

o 1° ano foi instituído no Estado. Então no

ano passado, eu trabalhei com um 1° ano e

neste ano [2011] estou com um 1° ano de

novo.

Nós estamos recebendo bebês na escola,

gente!

Você exigir que uma criança fique cinco

horas sentada na carteira é demais para o

meu gosto, por isso que às vezes eu deixo...

Quer corre, corre. É lógico que eu não vou

deixar [a criança se] machucar, eu dou um

pouco de liberdade para poder extravasar,

porque eu acho o cúmulo isso!

Eles adoram brincar de lutar, o Roberto, o

Tadeu e o Hernesto. São os três e é demais!

Mas eu percebo que, se eu deixo um

pouquinho, eles acabam voltando para a

atividade menos estressados.

Eles estão vindo muito novinhos... No ano

passado, eu até falei para as meninas [outras

professoras] – e isso é uma observação

minha, pela minha prática, tá? – as crianças

já estão vindo mais maduras, você

entendeu? Então, a gente já vê que é uma

mudança lá na base mesmo, lá na educação

infantil. Porque esse ano foi muito rápido e

152

eles se alfabetizaram muito rápido!

[...] eles estão vindo melhores da educação

infantil, a base já está mais estruturada.

Eu acho que nós estamos num trabalho de

sequência, porque, às vezes, quando eu vou

contar uma história, muitos já ouviram,

né? E ouviram lá na educação infantil...

Nós estamos colhendo os frutos agora. Eu

acho que nós estamos no caminho certo.

Nós temos que tentar, arriscar. Nós vamos

errar? Vamos sim! Mas temos que tentar!

A percepção de Renata sobre sua turma

Eu não tenho problemas sérios com a

minha sala, eu não tenho, não.

Estou [satisfeita com a turma] mesmo

porque eles foram muito espertinhos. Não

teve muito desgaste, sabe? Até em

comportamento, eu não tive muito

problema: esse ano, a minha sala foi bem

tranquila, bem comprometida.

A minha sala é barulhenta e eu não consigo

fazer eles ficarem quietinhos! Mas eles

participam muito, eles querem, eles gostam

e eles se envolveram comigo! O avanço é

notório.

Tem hora que até eu falo para as meninas

[outras professoras]: “eu consigo isolar.

Mesmo eles, com todo o barulho, eu

153

consigo isolar isso”.

Nossa, eles estão quietinhos mesmo, nem

eu, na hora, tinha percebido isso. Eu acho

que eu vou passar esses vídeos para eles,

acho que eles vão gostar de se ver.

Nossa, é mesmo: o barulho de fora da sala

é maior do que o de dentro da minha sala.

Os sentimentos de Renata acerca de suas

atitudes com os alunos: “aquela angústia,

aquela coisa que eu quero, que eu quero, que

eu quero e aí acaba não acontecendo e é onde

me frustra.”

Eu acho que eu falo muito alto, eu grito.

Não é que eu grite, mas meu tom de voz já

é alto mesmo, eu acho que eu teria que

trabalhar esse meu lado. E... Eu queria ser

melhor!

É, eu achei que eu sou brava [risos]. Ah,

tem horas que eu sou chata mesmo, mas,

na verdade, eu quero que eles aprendam e,

quando algumas crianças perdem o foco,

isso é que me deixa meio brava mesmo!

Eu quero conseguir fazer com que eles

aprendam e eu acho que às vezes eles

dispersam um pouquinho. Um pouquinho

não: bastante, porque eu acho que tem

algumas crianças que dispersam muito. O

que eu tento fazer é arranjar um jeito mais

próximo para que todos estejam

envolvidos mesmo.

Eu fico angustiada com isso, você

154

entendeu? Eu sei que eu sufoco eles [os

alunos] um pouco, eu sei que cada um tem o

seu tempo; mas, às vezes, eu quero ir no

meu tempo e essa ansiedade acaba

prejudicando um pouco. Eu acabo ficando

muito em cima de uns alunos e eu acho que

isso acaba prejudicando, você entendeu? Ou

mesmo aquela angústia, aquela coisa que

eu quero, que eu quero, que eu quero e, aí,

acaba não acontecendo. É onde me frustra.

As facilidades e os entraves do espaço

escolar no uso dos recursos previstos pelo

Ler e Escrever

A internet, que é um recurso que eu

gostaria de estar utilizando com eles [os

alunos] porque tem muitos sites de jogos e

daria para fazer um trabalho bem legal.

Mas, muitas vezes, você não pode usar

porque ou não tem, ou não é permitido, ou

não está funcionando. Além disso, [...],

aqui na escola, a biblioteca é ocupada por

uma sala de aula. Então, fica difícil [usar a

biblioteca] porque você tem que deslocar a

professora e sua turma para outro lugar.

Falta [melhorar] essa parte de passeio, de

melhorar a parte de brinquedo.

Eu gostaria de ter um apoio de

profissionais especializados, do tipo

fonoaudiólogo, porque eu acho que tem

criança que precisa. Eu acho que tinha que

ter esse apoio externo, para poder facilitar

ainda mais para a criança, porque acaba

155

sendo para ela um entrave.

As metas para o ano letivo e a avaliação:

“traço uma meta para o ano, mas como eles

estão no primeiro ano eu avalio mesmo é

mais a participação deles nas atividades em

sala.”

As minhas metas são traçadas no início do

ano e eu espero que eles saiam todos

alfabetizados. Se eu não consigo isso, eu

sofro, eu sofro.

Eu faço assim: traço uma meta para o ano,

mas, como eles estão no primeiro ano, eu

avalio mesmo é mais a participação deles

nas atividades em sala.

O planejamento e as aulas

Eu planejo [as aulas] na minha casa mesmo,

de manhã porque eu acordo muito cedo e é o

horário que eu mais [me] concentro mesmo.

Às vezes eu uso o horário do Ler também.

Procuro a coordenadora e as minhas

colegas para ter novas ideias em cima

daquilo que eles [Programa Ler e Escrever]

estão propondo, seleciono algumas

atividades. Mas, basicamente, eu faço isso na

minha casa mesmo.

Às vezes, eu planejo e chega aqui e não dá

certo, mas aí eu faço uma adaptação e

procuro retomar [o conteúdo com os

alunos] no outro dia. Nossa, porque às

vezes é complicado, porque você vem cheia

de gás e aí desestrutura tudo. Tem que ter

um jogo de cintura para lidar com isso.

Teoria e prática: “o meu conhecimento

teórico ajudou muito, mas a minha prática Depois que eu comecei a estudar os

156

também [ajudou].”

autores, eu comecei a pensar diferente.

Porque a gente tinha muito uma ideia

assim: “no papel aceita tudo!”, você

entendeu?

Porque eu acho que o autor quer te

ensinar, quer te colocar; te dar subsídio

para compreender aquilo que acontece na

sua sala de aula.

Eu aprendi que eu tenho que refletir sobre

a minha prática, eu aprendi isso.

Uma coisa que me chama muito a atenção

é essa parte da avaliação que é a ação-

reflexão-ação, porque eu só mudei o meu

jeito de pensar por conta do estudo que eu

fiz em cima da Jussara Hoffman.

Eu gosto muito da nossa proposta

[Programa Ler e Escrever], que é baseada

quase que unicamente em cima da Telma

Weisz e eu acho que ela acrescenta muito

para o nosso trabalho.

A Telma Weisz, a gente já sabia porque a

Emília Ferreiro colocava isso [das hipóteses

silábicas] há quantos anos? Mas a gente

não aplicava, você nem compreendia, você

não entendia aquilo e hoje para mim isso

tudo é muito rico porque ela é uma direção

157

para o meu trabalho.

O meu conhecimento teórico ajudou muito,

mas a minha prática também [ajudou]. É

uma bagagem muito grande, além disso, eu

estou sempre buscando e eu quero

entender o “porquê”. Eu não aceito, tipo

assim: ah, o aluno não aprendeu. Não

aprendeu, por quê? Por que um [aluno]

aprende e o outro não? Eu quero sempre

uma explicação para isso.

Eu uso o construtivismo mesmo. É lógico

que tem hora que eu mesclo, porque dá

assim. É... Eu procuro buscar alguma coisa

que dê significado para eles, então eu

acabo mesclando porque eu acho que deu

certo e aí eu acabo trazendo para o meu

dia a dia.

O que me chama atenção [no

construtivismo] é essa liberdade da criança

colocar aquilo que ela pensa, sabe? A nossa

prática antigamente ela era voltada ao

certo, ou seja, só era considerado aquilo que

era realmente certo... E hoje não é assim,

você considera o aluno que está

avançando, que está buscando, né? Essa

reflexão [que o construtivismo] propõe eu

acho legal. Eu acho que, quando você dá

158

liberdade para a criança arriscar, você

está fazendo ela crescer.

Na minha prática, eu acho que é essa

liberdade mesmo, essa liberdade que eu

dou para o meu aluno poder se expressar,

dele poder agir, e isso eu acho que é legal.

Eu procuro entender, eu busco entender o

porquê [a criança está falando aquilo], dar

espaço para a criança se colocar.

O erro? Eu lido como construção. Uma

reflexão para minha prática porque onde

meu aluno está errando é porque eu não

ensinei direito [risos]. Eu uso isso para

traçar a minha aula, em cima do erro

deles. Em cima do erro deles é que eu vou

aprimorar a minha prática.

As formas de trabalho para alcançar as

metas traçadas no início do ano: “eu tenho

uma meta de atender, pelo menos duas vezes

por semana, de modo individual, aí eu

planejo uma outra atividade para os outros

que caminham sozinhos.”

Eu dou uma lista de palavras e com essas

crianças que têm dificuldades eu vou

trabalhar em cima da escrita mesmo, da

reflexão de como se escreve. Aqueles que já

estão alfabéticos, vão trabalhar com a

mesma lista de palavras, mas com

construção de frases e eu vou ampliando o

repertório e peço para eles usarem mais

palavras. Eu peço para eles explicarem o

porquê.

O trabalho com lista funciona pra

159

caramba!

Tem um dia que eu dedico para as crianças

que estão com mais dificuldade. É lógico

que todos os dias eu trabalho com eles, mas

mesmo assim, se você trabalha... Eu acho

que eles têm que se sentir inseridos dentro

da sala, você entendeu? Se todos os dias eu

der uma atividade diferente para eles, eles

se sentem diminuídos. Então, eu procuro

equilibrar.

Eu sempre tenho outra atividade para ele

[Vinícius], porque, às vezes, eu preciso de

um tempinho a mais para aqueles que

ainda estão caminhando. Então, eu sempre

dou outra atividade para ele, até porque eu

tenho que ocupar ele, porque senão ele

pega fogo e dispersa os outros. Ele é uma

criança que precisa estar sempre ocupada.

Para o Vinícius e o Luís, eu tenho que

pedir um tempo mesmo, porque eles

terminam muito rápido. Mas eu tento

ocupar o tempo deles pedindo para eles

ajudarem os outros que estão com mais

dificuldade, embora o temperamento do

Vinícius não seja o de ajudar: ele não

gosta, ele não tem paciência, sabe?

A reflexão do aluno sobre a escrita: o uso

do alfabeto móvel e da lista de palavras [O objetivo da atividade] era refletir como

escrever as palavras. O alfabeto móvel fui eu

160

como estratégias de ensino-aprendizagem

que escolhi para trabalhar com esse tema

[festa de aniversário] e dá para perceber

que a riqueza de vocabulário de uns é bem

diferente da dos outros.

[Trabalhar o tema festa de aniversário]

veio do Ler, porque ele [Ler e Escrever]

sugere que o professor trabalhe com temas

do cotidiano da criança e eu sei que esse

tema eles gostam muito. E você vê, aí no

vídeo, que eles gostaram muito e que

participaram bastante.

As interferências, eu acho que dá para

fazer na hora que surge a dúvida, porque

quando o aluno só escreve é mecânico, né?

E, aí [com o alfabeto móvel], ele vivencia, é

o concreto. E, ainda, tem também a ajuda

do grupo.

Eu montei essas duas folhinhas para eles,

porque eu queria que eles identificassem,

na primeira atividade, que história era a fala

do personagem. E a outra era para eles

estarem dentro dos gêneros que já tinham

sido trabalhados – contos –, listando

mesmo os contos.

[O objetivo da atividade] é a reflexão sobre

a escrita mesmo, dentro dos contos. Porque

para eles é prazeroso e eles gostam. Eu

acho que, quando você trabalha dentro

desse gênero, é significativo para eles. Eles

161

gostam bastante e participam.

O objetivo era esse mesmo: trabalhar a

reflexão sobre o sistema de escrita. Por

exemplo, na palavra “madrasta”, eu sabia

que iam ter dificuldades. E esse meu

trabalho, de colocar os jeitos que as

crianças estavam escrevendo “madrasta”

na lousa, era para eles perceberem que

letra estava faltando ou que letra estava

sobrando. Por exemplo, eu peguei vários

jeitos diferentes que as crianças

escreveram “madrasta” para poder

compartilhar e corrigir junto com todo

mundo. E isso ajuda muito! Eles olham

não apenas para o erro deles, como para os

dos colegas, para poderem pensar como

eles estão escrevendo. E você vê que tem

uma parte lá que eles até riram do colega!

Mas o meu objetivo não é apontar o erro e,

por isso, que eu não coloco lá na lousa

quem foi que escreveu o quê. Eu busco

compartilhar as possibilidades, para que

eles reflitam e consigam construir o novo

em cima do erro que fizeram.

Os agrupamentos como estratégia de

ensino-aprendizagem e aprimoramento

das relações sociais dos alunos

Eu trabalho diariamente com os

agrupamentos, só que é assim: às vezes, a

criança tem dificuldade de aprendizagem e

de comportamento, ou seja, tem

dificuldade de se relacionar com os

colegas, também. É difícil, porque, às

vezes, você nem consegue um parceiro

para aquele [aluno] ali. Então, é complicado.

Mas eu vou experimentando, vou na base

162

da experimentação, até quando eu consigo

uma parceria que dê certo. Mas é bem

complicado, porque aquele [aluno] que é

alfabético, não tem muita paciência, não

aceita. Aquele [aluno] que é indisciplinado e

tem dificuldade também, às vezes recusa até a

ajuda do outro. É complicado, mas eu estou

tentando.

O Breno tem dificuldade de aprendizagem,

mas ele é um menino dócil e se relaciona

bem com os outros. Essa parceria deu

muito certo, muito certo mesmo. O Vinícius

é mais avançado que o Breno, ainda mais

agora, que o Breno já está silábico com

valor e o Vinícius já é alfabético! E, agora,

eu já vejo mais produtividade nesse

agrupamento. Mas, antes, não. Antes, só

dava certo por causa do gênio dos dois,

dessa identificação entre eles. Mas, como

agrupamento, eu não sei se era produtivo.

Hoje já é [produtivo], porque ele [Breno] está

silábico com valor. Mas, mesmo assim, eu

acho que ajudou, porque o Breno avançou

bastante.

A Laura, hoje, já está alfabética; a

Samantha veio pré-silábica e foi galgando.

Eu percebo que a Laura influencia

positivamente a Samantha, de modo que

esse agrupamento deu bastante certo.

A Yakne com a Rafaela é outro

agrupamento muito bom. A Rafaela tem

um problema de fala, então ela troca muito

163

as letras. A Yakne e a Rafaela são um

grupinho fechado: elas, normalmente, não

aceitam gente de fora, não. Só que a Yakne

se predispôs a ajudar a Rafaela, e, como a

Rafaela falta bastante, eu deixei. Só que ela

já evoluiu muito, já está lendo quase tudo e

copiando também! Já está melhorando

bastante. Eu já encaminhei para uma

fonoaudióloga, mas ela ainda não foi. Fora

isso, no primeiro trimestre, ela era bem

fraquinha. Aí, veio aquele programa Visão do

Futuro e a gente descobriu que ela tinha uma

deficiência visual que também a prejudicava

no aprendizado.

Os grupos foram separados segundo o

nível de dificuldade de cada um.

E você vê [no vídeo] que todos eles estão no

mesmo nível de aprendizagem. Quando eu

montei os grupos, eu fiz uma divisão de

silábico com valor, um silábico sem valor,

você entendeu? Porque senão não

funciona... Os agrupamentos têm que ser

pensados antes mesmo.

Eu acho que eu atendi muito uns grupos e

outros não. Não sei se porque eles não me

solicitaram, mas eu acho que eu deveria

circular mais entre os grupos. Embora eu

não tenha deixado nenhum grupo sem fazer,

eu não sei se foi porque eles não me

solicitaram... Mas, mesmo assim, eu acho

que eu deveria ter circulado mais. Mas é

isso daí, mesmo: a atividade é dentro de um

164

campo semântico que eles gostam e isso

também ajuda muito; e os agrupamentos

ajudam muito.

A Matemática e o uso de materiais

diversificados

Eu trabalho com dados e é uma coisa

minha mesmo, que eu acho que funciona e

eles amam! Por exemplo, o dado, eu dou

para os alunos que vão terminando as

atividades. Uma vez por semana, para que

todos tenham a mesma oportunidade,

porque eles amam o dado de paixão.

Era ver se eles chegariam ao resultado, quais

as possibilidades que eles usariam para

chegar a um resultado.

O Ler propõe isso mesmo: as diversas

maneiras que eles encontram para chegar

ao resultado.

[Essa atividade de Matemática] é do Ler,

sim. E está no livro. Um dia antes, eu tinha

pedido para eles fazerem uma pesquisa de

preços. Na verdade, eu ia trazer o folheto

do supermercado, mas, aí, eu achei que, se

eles pesquisassem, era uma maneira deles

irem buscando alternativas para fazer a

tarefa. Eu achei que foram poucos os que

não trouxeram e, dos que trouxeram, nós

escolhemos os preços. Como tinha muita

diferença de preço, eu questionei a marca,

a qualidade, a quantidade. Aproveitei para

discutir que os preços não são os mesmos

em todos os lugares para as mesmas coisas.

165

Essa atividade é uma proposta do Ler, mas

a gente não usa tanto. Se a gente usasse

mais, você vê que tem resultado. Porque os

que sabem mais ajudam os outros.

A parceria com os pais de alunos

Eu nunca tive problema com pais, de

rejeição ou de críticas. E, com os pais, o

relacionamento foi sempre bom e com os

alunos também.

Às vezes, eu sou obrigada a chamar a mãe.

Mas eu evito o máximo que eu posso,

porque eu procuro resolver tudo dentro da

sala mesmo... Resolver os conflitos que

surgem ali dentro... Ontem mesmo teve a

questão do piolho e, se você deixar, o negócio

cresce. E se você se envolve muito, a família

também [não gosta], né? Nenhuma mãe

gosta de receber um bilhetinho escrito:

olhe a cabeça da sua filha, porque está

tudo cheio de piolho. Então, eu procuro

mesmo trabalhar no todo, levar um

problema individual e estruturar para a

sala toda.

Os pais também ajudaram bastante, nessa

parceria com os pais, tudo o que eu propus

foi aceito. Então, eu acho que é um

conjunto de ações que ajudam nesse

trabalho.

A relação com as gestoras e com o corpo

docente

Tudo o que a gestão vai fazer, ela participa

com os professores. Tudo é resolvido junto,

em conjunto mesmo e isso me dá uma certa

autonomia, embora uma autonomia entre

aspas, né? Porque nem sempre a equipe

166

gestora pensa igual a você. Aqui, quando

dá para ceder, a gente sempre busca ver os

dois lados – cede de um lado, aí o outro cede

de outro e a gente procura sempre um acordo.

Nem sempre a gente é atendido, mas é feito

um acordo.

Eu aprendo muito, aprendo bastante

mesmo com eles [com os outros professores].

E assim... Eu não aceito o “eu não sei”. Eu

quero uma solução para o meu problema...

Por exemplo, caiu numa questão do concurso:

para que a gente ensinava sequência

numérica? E a gente não tinha a resposta e eu

não aceito, eu fico atrás até descobrir. E, aí,

hoje, nós descobrimos juntos. Eu acho isso

legal.

Nós trocamos muito. Por conta de eu estar

sempre buscando, mesmo, e da minha

prática, acaba que eu auxilio os meus

colegas. Por exemplo, a gente busca alguma

coisa na internet, mas eu não vou chegar lá

[na sala de aula] e dar isso para os meus

alunos, sem analisar determinada atividade.

Então, coisa pronta eu não gosto; eu gosto da

construção, mesmo. Eu acho que é por

conta [dos colegas professores] de verem

que está dando certo, que eles acabam me

procurando.

O impacto da ACS: “eu nunca tinha visto

uma aula minha!”

Eu não me preparei para dar essa aula,

você entendeu? E eu achei muito legal.

[A atividade] estava sim [de acordo com o

desenvolvimento dos alunos]. Para os

167

alfabéticos, eu achei que foi fácil demais,

porque, quando eu terminei de entregar as

folhas para a turma do fundo, alguns,

daqui da frente, já tinham terminado. De

repente, eu poderia ter dado uma reescrita

ou uma produção coletiva.

O que eu percebi é que eu preciso

trabalhar mais o alfabeto móvel com eles,

porque eu vi o envolvimento deles.

Eu acho que é uma atividade trabalhosa

para mim, mas eu acho que, depois de ver

o vídeo, eu tenho que fazer mais, porque é

uma coisa que ajuda muito no processo

educativo deles.

Analisando a atividade realizada na aula

de matemática: “acho que foi bem produtivo

o dia para eles.”

Eu fiquei feliz com a atividade e acho que

foi bem produtivo o dia para eles.

Eu acho que o folheto do supermercado, se

todos tivessem trazido, ajudaria bastante,

não sei se a ida a um mercadinho poderia ter

motivado mais. Mas eu acho que o objetivo

[testar as diversas maneiras de chegar a um

resultado] eu consegui!

Eu acho que eu consegui atingir o meu

objetivo, porque eu tive várias crianças

que usaram várias possibilidades

diferentes. E, o que eu mais gostei, foi que

eu mostrei para eles que não existe um

único jeito de fazer a conta de adição e

que, na Matemática, eles podem usar

muitas outras maneiras de somar.

As percepções de Renata sobre as Eu acho que a gente tem que estar

168

atividades realizadas: “eu ainda tenho que

mudar bastante”

aprendendo mesmo. Isso daqui, para mim,

é um aprendizado, porque me leva a

mudar a minha prática em muitos aspectos

que eu vi, como por exemplo, esse da

minha voz ser muito alta e rouca; de

atitude diante dos alunos, de postura do

meu corpo (até isso eu preciso mudar, a

minha postura mesmo: acho que eu estou

muito curvada), de buscar caminhos para

atingir todos os alunos, fazer eles

aprenderem.

Ah, eu achei legal [a autoconfrontação]. Eu

acho que eu vi que tenho que mudar

bastante, que eu preciso estudar muito

ainda, que eu não estou tão longe, mas

preciso chegar mais perto do que eu quero:

fazer tudo para que todos consigam

aprender. Isso daí [autoconfrontação] vai

abrindo o olhar da gente, para que se possa

buscar e se olhar atuando mesmo.

Tudo depende do seu olhar... Porque eu não

vejo isso como crítica: eu vejo como espaço

de construção mesmo, para melhorar a

minha prática. Mas tem gente que não aceita

isso, né? Tem gente que tem dificuldade para

enfrentar o novo e isso pode acabar sendo um

problema para muita gente. Na primeira

filmagem, eu não sabia direito o que ia

acontecer; mas, hoje, eu uso sempre isso

[vídeos, com os episódios analisados,

entregues à docente, ao final do trabalho de

campo] para refletir e rever a minha

prática mesmo. Mas, para quem acha que

169

isso pode ser uma avaliação, é mais difícil.

Eu acho que tudo o que a gente tiver para

chegar mais perto do nosso objetivo, que é

a ensinagem, é bom.

170

Transcrição da entrevista – Professora Renata

Pesquisadora: Estamos aqui com a professora Renata para o desenvolvimento desta entrevista.

Eu gostaria de saber, antes de qualquer coisa, a sua trajetória de vida pessoal.

Renata: Eu era de uma cidade muito pequenininha do interior, Buritama. A minha mãe ficou

viúva com oito filhos e, por consequência disso, a cidade era muito pequenininha, não tinha

emprego. Aí nós procuramos um centro maior [uma cidade maior], onde a gente pudesse

estudar e trabalhar. Como eu tinha um irmão que trabalhava e era solteiro, trabalhava num

banco, no banco Itaú, ele foi transferido para Lins e todos nós optamos ir para Lins também.

A minha irmã foi fazer Serviço Social e eu fiz [curso] técnico em Contabilidade porque eu

trabalhava numa empresa de consórcio.

Pesquisadora: Você começou a trabalhar muito cedo?

Renata: Ah sim! Com 11 anos eu já trabalhava, só que assim, eu era ajudante numa loja de

tecidos de uma prima minha. Mais isso era mais para [me] ocupar, para ter uma rendinha e

ajudar minha mãe, você entendeu?

Pesquisadora: Seu pai morreu muito cedo?

Renata: Muito cedo, eu tinha dois anos quando meu pai morreu e a minha irmã mais nova

tinha quatro meses. A nossa cidade, para você ter uma ideia, era muito pequena e a cidade

maior que era mais próxima era Birigui. Só que para você atravessar de Buritama para Birigui

era só de balsa. Às vezes a balsa estava para o lado de lá e você tinha que ficar esperando.

Meu pai tinha uma beneficiadora de arroz e era manual. Acho que conforme ele fez a força

pra tocar o motor, a apêndice dele “suporou”, estourou. Aí até que a balsa chegou não deu

tempo. A balsa estava do lado de lá. Aí minha mãe ficou com os oito filhos, o mais velho

tinha 14 anos e a mais nova quatro meses. Teve o apoio da família, até uma certa idade...

Nessa época foi em 77, que nós mudamos pra Lins. A minha opção pelo magistério é porque

minha família toda é da educação, por exemplo, eu tinha um tio lá em Buritama mesmo que

era Diretor de escola. Na época era um status, né? Ah, eu fui aluna da mãe do Gianechinni

(risos), ela era minha professora de História.

Pesquisadora: Mas, você me disse que fez o curso de Contabilidade primeiro, é isso?

171

Renata: Isso, eu fiz Contabilidade porque eu trabalhava na área administrativa. Aí, quando eu

conheci meu marido, me casei... Aí ele achou que eu não deveria trabalhar mais porque era

para eu cuidar do filho, né? Porque logo veio o primeiro filho, né?

Pesquisadora: Você se casou com quantos anos?

Renata: Me casei com 22. Na verdade era assim, quando eu me casei ele [o marido] não quis

mais [que Renata trabalhasse]. Quando eu trabalhava na loja, na parte administrativa,

funcionava de sábado... No interior tem muito disso, né? Aqui também [se referindo a São

Paulo]. Eu trabalhava aos finais de semana e ele [o marido] queria mais exclusividade. Como

na época dava a gente conversou e eu optei por ficar em casa mesmo, só que quando você está

acostumada a trabalhar, né? Aí quando meu filho mais novo tinha 1 aninho, eu resolvi voltar.

Aí eu disse: ah, eu acho que vou fazer Magistério! Aí eu fiz o [curso] Normal, o Ensino

Médio e foi aonde eu me identifiquei. Em 1984 eu me formei, só que eu estava grávida e aí

nasceu meu segundo filho. Na verdade, eu já estava atuando, mas eu comecei mesmo em

1985 depois que ele nasceu e eu estou até hoje. Em 1986, não foi em 1988, meu marido foi

transferido para Brasília e aí eu fui também. Não tinha como eu ficar e nem dava para ficar eu

pra cá e ele pra lá. Quando eu fui para Brasília eu me afastei do Estado, mas trabalhei lá na

área da saúde e tal. Quando eu voltei para Lins assumi de novo o Magistério. Aí, meus filhos

foram crescendo e o mais velho arrumou um estágio aqui [em São Paulo] e veio para cá. Com

o negócio de municipalização lá no interior e tudo mais, eu acabei vindo pra cá também.

Pesquisadora: Faz quanto tempo isso mesmo?

Professora: Foi em 2006... O meu [filho] mais novo trabalhava numa empresa, em um

frigorífico e foi transferido pra cá também. Meu marido ainda ficou em Lins e era aquela

coisa ele lá e eu cá. Aí, meu marido viu que não dava... Aí ficamos 1 ano assim: um final de

semana eu ia, no outro ele vinha. Ele achou melhor vir também e foi a melhor coisa que nós

fizemos, porque depois vieram os netos, que são a alegria da minha vida...

Pesquisadora: Quantos netos?

Renata: Dois, um casal. Os dois são do meu [filho] mais velho. O meu [filho] mais novo é

solteiro, mora comigo. Agora, meu primeiro neto veio [nasceu] com uma síndrome de

hipoplasia do ventrículo esquerdo, ele tem metadinha do coração, mas não tem o lado

esquerdo do coração. Ele nasceu em 2008 e foi uma fase bem, bem difícil, mas é uma benção

de Deus. Ele já passou por quatro cirurgias, mas está firme forte aqui com a gente.

172

Pesquisadora: Nossa, que bom! Mas, voltando ao assunto, alguém te influenciou na escolha

pelo magistério?

Renata: Como eu disse, a minha família toda era ligada à área da educação, minhas irmãs, eu

tive um irmão que era diretor de escola, duas irmãs que já eram professoras, minhas primas

todas [eram] professoras, e aí eu acho que foi por isso mesmo. E tem mais: eu me encontrei na

profissão, esse que é o problema.

Pesquisadora: Ou a solução, né? (risos)

Renata: Eu falo assim: ah, eu ganho pouco, vou procurar outro trabalho... Mas não adianta, é

disso que eu gosto mesmo. Eu já fui ATP (Assistente Técnico Pedagógico) na Diretoria de

Ensino lá em Lins na sala de aceleração, já trabalhei na APAE um tempo... Na verdade, eu

gosto mesmo (ênfase especial na expressão “gosto mesmo”). E tem mais, eu gosto de

desafios... Às vezes eu falo: ah, não vou mais pegar 1° ano porque dá muito trabalho, mas

depois eu acabo pegando o 1° ano, não tem jeito! (risos)

Pesquisadora: Você tem muita experiência no 1° ano?

Renata: É, eu já tenho 12 anos [que atuo] no 1° ano. Tem uma coisa que é legal nisso tudo: o

meu conhecimento teórico ajudou muito, mas a minha prática também [ajudou]. É uma

bagagem muito grande, além disso, eu estou sempre buscando e eu quero entender o

“porque”. Eu não aceito, tipo assim: ah, o aluno não aprendeu. Não aprendeu, por quê? Por

que um [aluno] aprende e o outro não? Eu quero sempre uma explicação para isso. Mas, eu

estou meio angustiada com isso, você entendeu? Eu sei que eu sufoco eles [os alunos] um

pouco, eu sei que cada um tem o seu tempo, mas às vezes eu quero ir no meu tempo e essa

ansiedade acaba prejudicando um pouco.

Pesquisadora: Mas, como você acha que sufoca os alunos?

Renata: Ah, eu acabo ficando muito em cima daquele aluno e eu acho que isso acaba

prejudicando, você entendeu? Ou mesmo aquela angústia, aquela coisa que eu quero, que eu

quero, que eu quero e aí acaba não acontecendo e é aonde me frustra.

Pesquisadora: E, como você lida com isso? Com essa frustração?

Renata: É... é difícil (risos). As minhas metas são traçadas no início do ano e eu espero que

eles saiam todos alfabetizados e se eu não consigo isso, eu sofro, eu sofro. Mas assim, eu

173

tinha vontade de acompanhar, mas nunca aconteceu, acompanhar eles no próximo ano. Eu

queria isso porque eu acho que eu já conheço as dificuldades e eu queria ver se dá certo. Mas,

às vezes, não depende só da gente, depende de questões administrativas, né?

Pesquisadora: Você me disse que uma das suas metas é que todos os seus alunos saiam

alfabetizados, certo? Para isso, quais são as estratégias que você utiliza?

Renata:Olha, eu procuro tudo, eu busco recurso em tudo, com as próprias colegas que tem um

trabalho diferente, eu procuro diversificar, eu procuro dar um atendimento individual... Não

vou dizer que todos os dias eu faço isso porque não dá tempo mesmo, mas eu tenho uma meta

de atender, pelo menos duas vezes por semana, de modo individual, aí eu planejo uma outra

atividade para os outros que caminham sozinhos. Mas, eu acho que eu ainda tenho muito que

aprender... (risos)

Pesquisadora: Você poderia me dar um exemplo das atividades diversificadas que você usa no

seu dia a dia?

Renata: Ah, por exemplo, o alfabeto móvel. Para os alunos alfabéticos eu até dou a letrinha,

mas como passatempo mesmo. Os agrupamentos, eu trabalho diariamente com os

agrupamentos, só que é assim: às vezes a criança tem dificuldade de aprendizagem e de

comportamento, ou seja, tem dificuldade de se relacionar também. É difícil porque às vezes

você nem consegue um parceiro para aquele [aluno] ali. Então, é complicado. Mas, eu vou

experimentando, vou na base da experimentação até quando eu consigo uma parceria que dê

certo. Mas, é bem complicado porque aquele [aluno] que é alfabético não tem muita

paciência, não aceita. Aquele [aluno] que é indisciplinado e tem dificuldade também às vezes

recusa até a ajuda do outro. É complicado, mas eu estou tentando.

Pesquisadora: Então é por isso que algumas crianças mudam de lugar e ficam cada dia com

um outro aluno?

Renata: Isso mesmo. E, eu percebo que o aluno que tem dificuldade de aprendizagem e

disciplina... Na minha sala eu tenho 3 crianças assim, com esses dois problemas e além disso

eles [alunos] têm muita dificuldade de se relacionar.

Pesquisadora: Quem são eles mesmo?

Renata: O Roberto, O Tadeu e o Hernesto. São esses três, porque o Breno tem dificuldade de

aprendizagem, mas ele é um menino dócil e se relaciona bem com os outros.

174

Pesquisadora: É, eu percebi que ele fica ali perto do Vinícius.

Renata: É, porque ele aceita... Hum, essa parceria deu muito certo, muito certo mesmo. O

Vinícius é mais avançado que o Breno, ainda mais agora que o Breno já está silábico com

valor e o Vinícius já é alfabético, e agora eu já vejo mais produtividade nesse agrupamento.

Mas, antes não. Antes, só dava certo por causa do gênio dos dois, dessa identificação entre

eles. Mas, a nível de agrupamento não sei se era produtivo. Hoje já é porque ele [Breno] já

está silábico com valor, mas mesmo assim eu acho que ajudou porque o Breno já avançou

bastante.

Pesquisadora: Tem outro agrupamento que te chama atenção?

Renata: Ah, tem sim a Laura com a Samantha. A Laura, hoje, já está alfabética e a Samantha

veio pré-silábica e foi galgando. E eu percebo que a Laura influencia positivamente a

Samantha e esse agrupamento deu bastante certo. A Yakne com a Rafaela é um outro

agrupamento muito bom.

Pesquisadora: A Yakne está mais na frente do que a Rafaela.

Renata: isso mesmo. A Rafaela tem um problema de fala, então ela troca muito as letras. Eu já

encaminhei para uma fonoaudióloga, mas ela ainda não foi. Fora isso, no primeiro trimestre

ela era bem fraquinha, aí veio aquele programa Visão do Futuro e aí a gente descobriu que

ela tinha uma deficiência visual e essa deficiência visual também a prejudicava no

aprendizado.

Pesquisadora: Ah, então ela não usava óculos antes?

Renata: Isso ela não usava e começou a usar agora, depois desse projeto. Ah, outra dupla legal

é a Karine, apesar dela faltar bastante, quando junta com a Valéria também ajuda bastante.

Pesquisadora: E o Gustavo?

Renta: ah, o Gustavo é fraquinho. Só que é assim, o Gustavo já consegue se relacionar com a

turma, mas o problema dele é que ele falta muuuuuuito, muito, muito, muito. Nós [a

professora e a coordenação] já chamamos os pais só que nada foi feito, ele continua faltando.

Então, ele não avançou muito. Mas, eu percebo que o social dele já está ótimo. Ele era

apático, uma criança isolada e agora já está muito melhor. A Saula já melhorou muito no

social também e hoje eu já posso colocar [agrupar] ela com todos os colegas que ela já

175

consegue se sentar. Porque antes não, ela só ficava perto de mim e chorando o tempo todo da

aula, as 5 horas de aula. Isso foi no começo do ano e, aos poucos, foi melhorando essa parte

social. Ela também tem dificuldade de aprendizagem, mas já avançou bastante mesmo, já está

silábico com valor.

Pesquisadora: E para você, o que é uma dificuldade de aprendizagem? Você tem um nome

específico para isso?

Renata: Por exemplo, a Saula, eu acho que em casa eles superprotegem ela, ela tem um irmão

mais velho e depois veio ela e os pais paparicam, deixam ela fazer tudo o que ela quer. Ela é

daquele jeitinho dela, pacata e se você não chamar, não buscar ela, ela fica as 5 horas lá

sentadinha. Ela não mostra dificuldade em nada e se você deixar ela lá, ela vai ser copista. Por

exemplo, a Yakne e a Rafaela são um grupinho fechado, elas normalmente não aceitam gente

de fora, não. Só que a Yakne se predipôs a ajudar a Rafaela e como a Rafaela falta bastante eu

deixei. Só que ela já evoluiu muito, já está lendo quase tudo e copiando também, já está

melhorando bastante.

Pesquisadora: Como você lida com as dificuldades do dia a dia em sala de aula: indisciplina,

relação com as famílias?

Renata: Ah, eu procuro entender, eu busco entender o porquê, dá espaço para a criança se

colocar... Mas, às vezes eu sou obrigada a chamar a mãe, mas eu evito o máximo que eu posso

porque eu procuro resolver tudo dentro da sala mesmo... Resolver os conflitos que surgem ali

dentro... Ontem mesmo teve a questão do piolho e se você deixar o negócio cresce. E se você

envolve muito a família também, né? Nenhuma mãe gosta de receber um bilhetinho escrito:

olhe a cabeça da sua filha porque está tudo cheio de piolho. Então eu procuro mesmo

trabalhar no todo, levar um problema individual e estruturar para a sala toda... Eu nunca tive

problema com pais, de rejeição ou de críticas e com os pais o relacionamento foi sempre bom,

e com os alunos também. Tem hora que até eu falo para as meninas [outras professoras]: “eu

consigo isolar”. Mesmo eles com todo o barulho eu consigo isolar isso. Lógico que eu procuro

dar um pouco de liberdade... Eles adoram brincar de lutar, o Roberto, o Tadeu e o Hernesto.

São os 3 e é demais, mas eu percebo que se eu deixo um pouquinho eles acabam voltando

para a atividade menos estressados. Então eu procuro deixar sempre olhando para eles não se

machucarem. Mas é assim... Eu não tenho problemas sérios com a minha sala, eu não tenho

não.

176

Pesquisadora: E sempre foi assim? Ou você já teve alguma experiência que não foi legal?

Renata: Eu já trabalhei com sala de aceleração, mas assim... Eu sempre dominei, eu sempre...

É meu jeito assim sabe? Eu amo isso tudo que eu faço (risos).

Pesquisadora: Você faz uso de algum recurso que a escola te oferece? Por exemplo:

biblioteca, quadra de esportes, sala de vídeo?

Renata: Eu trabalho com a leitura diária, todos os dias eu faço uma leitura com eles. Aqui na

escola a biblioteca é ocupada por uma sala de aula. Então fica difícil [de usar a biblioteca]

porque você tem que deslocar a professora. O que eu faço às vezes é levar [os alunos] nessas

escadas que tem aí ou lá perto da quadra mesmo e aí eu faço a minha leitura lá com eles. E

assim, como a minha sala está bem avançada e a maioria é alfabético, eles gostam de ler.

Então eu oportunizo isso para eles, porque eles falam assim: “ai prô, deixa eu ler hoje? “ É

uma briga para ver quem vai ler. Mesmo se o aluno não lê fluentemente, depois eu retomo a

leitura, mas eu sempre dou essa oportunidade para eles. A sala de vídeo eu uso como recurso,

uso jogos também... A matemática eu trabalho com dados e é uma coisa minha mesmo que eu

acho que funciona e eles amam. Por exemplo, o dado eu dou para os alunos que vão

terminando as atividades... Uma vez por semana, para que todos tenham a mesma

oportunidade, porque eles amam de paixão, eu inicio a minha aula que é na Sexta-Feira, a

primeira aula eu dou o dado para todo mundo para que todos tenham essa oportunidade e

também na última aula na Sexta-Feira eu deixo trazer brinquedo. Na Sexta-Feira minha sala é

lotada, não falta ninguém. Embora ela esteja sempre lotada. O problema de falta mesmo é o

Gustavo e a Rafaela porque eles têm problema de saúde. O Caio também falta, principalmente

de Segunda-Feira. A mãe dele também é professora... Eu não sei se de Domingo ele fica com

o pai, eu não sei se os pais são separados ou se ele chega tarde, então ele tem sempre um

probleminha de Segunda. Mas ele não falta muito não.

Pesquisadora: Como você faz a avaliação dos seus alunos? O que é avaliação para você?

Renata: Eu faço assim: traço uma meta para o ano, mas como eles estão no primeiro ano eu

avalio mesmo é mais a participação deles nas atividades em sala. Principalmente com as

crianças que tem mais dificuldade: é muito gratificante você ver o crescimento deles, por

mínimo que seja, mas você consegue perceber. Então isso para mim é avaliação: o

crescimento que ele mostra no dia a dia, sabe? Eu às vezes até fico com dor na consciência

porque às vezes eu acho que... Igual o Hernesto mesmo, ele me surpreendeu nessa minha

177

sondagem porque ele é um aluno que não registra nada, ele tem a maior dificuldade para

registrar. Só que quando eu fiz a sondagem eu percebi que ele está silábico com valor e para

quem era pré-silábico, para mim foi muito bom. E ele é um aluno ouvinte porque... O Roberto

tem dificuldade para registrar também, mas na oralidade ele participa da aula todinha. Então é

essa participação que é a minha avaliação mesmo, principalmente no primeiro ano.

Pesquisadora: E com qual frequência você faz isso?

Renata: eu, eu, eu, faço isso diariamente, porque a criança por algum problema não vem e não

participa, mas aí no outro dia participa, você entendeu?

Pesquisadora: E como funciona a questão de recuperação ou reforço aqui na escola?

Renata: Aqui na escola tem sim. A recuperação paralela... A contínua é dentro da sala de aula

e a paralela é oferecida fora do horário de aula. Mas, o primeiro ano... Tem um dia que eu

dedico para as crianças que estão com mais dificuldade. É lógico que todos os dias eu trabalho

com eles, mas mesmo assim, se você trabalha... Eu acho que eles têm que se sentir inseridos

dentro da sala, você entendeu? Se todos os dias eu der uma atividade diferente para eles, eles

se sentem diminuídos... Então eu procuro equilibrar. Vamos supor: eu dou uma lista de

palavras e com essas crianças que tem dificuldades eu vou trabalhar em cima da escrita

mesmo, da reflexão de como se escreve. Aqueles que já estão alfabéticos eles vão trabalhar

com a mesma lista de palavras, mas com construção de frases e eu vou ampliando o repertório

e peço para eles usarem mais palavras... Eu peço para eles explicarem o porque...

Pesquisadora: Então os seus alunos não frequentam a sala de reforço?

Renata: O reforço paralelo não. E nem tem espaço, a escola não tem espaço... Nós

trabalhamos com reforço para as crianças de 4° ano que vão ser promovidos e ainda

apresentavam dificuldades. Inclusive eu trabalhei com uma turma, tive bastante sucesso

também... Mas o primeiro ano não, principalmente o primeiro ano. A proposta do governo

para o primeiro ano não... Porque eles estão vindo muito novinhos... No ano passado eu até

falei para as meninas [outras professoras] isso, é uma observação minha, pela minha prática,

tá? As crianças já estão vindo mais maduras, você entendeu? Então a gente já vê que é uma

mudança lá na base mesmo, lá na Educação Infantil. Por que esse ano foi muito rápido, eles se

alfabetizaram muito rápido.

178

Pesquisadora: Mas isso tem a ver com sua prática também, não é? Quais são os teóricos que

você utiliza para guiar sua prática?

Renata: Eu uso o construtivismo mesmo. É lógico que tem hora que eu mesclo, porque dá

assim... é... Eu procuro buscar alguma coisa que dê significado para eles, então eu acabo

mesclando porque eu acho que deu certo e aí eu acabo trazendo para o meu dia a dia. Mas, eu

procuro trabalhar dentro do programa Ler e Escrever mesmo... O trabalho com lista funciona

para caramba, o programa é ótimo, é ótimo mesmo. Já é o segundo ano que eu estou

trabalhando com um primeiro ano dentro do Ler e Escrever e é muito legal. Eu já vi uma

diferença e eu acho que eu também já me aprimorei de um ano para o outro... Porque ano

passado foi o primeiro ano que o primeiro ano foi instituído no Estado, né? Então no ano

passado eu trabalhei com um primeiro ano e nesse ano com um primeiro ano de novo. E isso

tudo recebendo crianças com 5 anos e tem sido muito legal. Funciona, é rico o programa.

Agora, assim, o material que vem para o aluno eu achei pobre, porque eles estão querendo

muito mais do que aquilo que o material do aluno está oferecendo, você entendeu? Então é

aonde eu o que tem dado certo...

Pesquisadora: E onde e como você aprendeu o construtivismo?

Renata: Eu já fui ATP de aceleração e participei de muitos cursos: eu fiz o programa de

formação que a Secretaria da educação ofereceu que é o Letra e Vida que aonde assim... Na

verdade eu sempre fui meio atiradona assim. Eu sempre busquei, eu sempre busquei. Eu

nunca fui uma pessoa que fiquei parada não. Ah, deu certo? Então vamos lá! É uma

oportunidade, então vamos tentar. Porque eu acho que aquilo que eu não souber fazer eu não

vou saber ensinar. É lógico que eu tive coisas que eu tive entrave... Eu procuro aprender

primeiro, eu não vou chegar lá na sala sem ter visto como aplicar, entendeu? Então eu sou

assim... Mesmo na internet eu busco lá: eu lanço assim: dificuldade em tal atividade e vou

buscando. Eu estou fazendo a Pedagogia agora, embora meu curso não tem me acrescentado

muito não... A faculdade em si, não! O material é rico então eu procuro ler em casa, mas eu

gosto de buscar. Eu quero aprender para ensinar melhor.

Pesquisadora: E o que te chama atenção no construtivismo?

Renata: O que me chama atenção é essa liberdade da criança colocar aquilo que ela pensa,

sabe? A nossa prática antigamente ela era voltada ao certo, ou seja, só era considerado aquilo

que era realmente certo... E hoje não é assim, você considera o aluno que está avançando, que

179

está buscando, né? Essa reflexão [que o construtivismo] propõe eu acho legal. Eu acho que

quando você dá liberdade para a criança arriscar você está fazendo ele crescer.

Pesquisadora: E como você lida com o erro?

Renata: Ai... o erro? Eu lido como construção. Uma reflexão para minha prática porque onde

meu aluno está errando é porque eu não ensinei direito (risos). Eu uso isso para traçar a minha

aula, em cima do erro deles. Em cima do erro deles é que eu vou aprimorar a minha prática.

Pesquisadora: para que eu possa me organizar melhor, você se formou quando?

Renata: Eu me formei em 84 no magistério, no curso normal. Ainda foi lá no interior... Foi

muito bem feito, muito bem feito, me deu uma base muito grande... Eu fiz projeto Ipê, fiz

Teia do Saber... É aquilo que eu falei: eu estou sempre buscando e quero mais, você

entendeu? Eu estou em final de carreira, mas eu quero mais!

Pesquisadora: A escola era pública ou particular?

Renata: O magistério foi em escola pública. Eu sempre estudei em escola pública. Só a minha

faculdade é que está sendo particular.

Pesquisadora: E qual é o tempo profissional como um todo no Magistério?

Renata: 18 anos. Com 25 você se aposenta.

Pesquisadora: E nessa escola aqui?

Renata: Nessa escola eu estou há 2 anos.

Pesquisadora: E é gratificante? Você gosta de trabalhar com educação aqui?

Renata: Gosto, gosto, gosto muito! Estou muito feliz, principalmente pelo retorno que a gente

tem.

Pesquisadora: Você já deu aula em escola particular?

Renata: Já dei sim, mas eu acho assim... Tradicional, muito tradicional... Curso apostilado,

não gostei, não gostei. Foi um ano só e era concomitante com a escola pública. Aí depois

desse um ano eu optei por ficar só no Estado e aí veio essa oportunidade de ser ATP, que me

afastou da sala de aula e foi uma experiência que eu também não gostei, porque na verdade

180

esse “blábláblá”de papelada não é comigo, meu negócio é ali na sala de aula mesmo, em lócu

ali... Isso é o que eu gosto.

Pesquisadora: Qual é a sua caraga horária de trabalho hoje?

Renata: A minha são 170 horas mensal, no período da tarde.

Pesquisadora: E como você usa o seu tempo livre?

Renata: Nesse momento aqui eu estou meio estressada porque eu me mudei [de casa], estou

em fase de adaptação, estou com um quintal enorme que está me dando muito trabalho. Mas é

aquilo que eu falei: eu estou com dois netos, um casalsinho de netos, gosto muito de ficar com

eles (risos). Mas eu busco internet, às vezes um teatro, mas o custo... Porque o salário não

proporciona, né? Mas eu gosto de teatro, shows, leio bastante... Eu tenho o hábito de ir só no

banheiro lendo e aí eu peho um livro e leio, a [revista] Nova Escola e leio. Essa é a minha

prática.

Pesquisadora: E se você tivesse que escolher novamente ser professora, você escolheria essa

profissão?

Renata: Escolheria sim, com certeza. Não mudaria nada! (risos)

Pesquisadora: E você troca experiência com seus colegas professores?

Renata: Sim, nós trocamos muito. Por conta de eu estar sempre buscando mesmo e a minha

prática, acaba que eu auxilio os meus colegas. Por exemplo, a gente busca alguma coisa na

internet, mas eu não vou chegar lá [na sala de aula] e dar isso para o meu aluno sem analisar

determinada atividade. Então, coisa pronta eu não gosto, eu gosto da construção mesmo. Eu

acho que é por conta [dos colegas professores] verem que está dando certo eles acabam me

procurando.

Pesquisadora: A sua troca com eles é positiva?

Renata: Ah é, é sim! Eu aprendo muito, aprendo bastante mesmo com eles. E assim... Eu não

aceito o “eu não sei”. Eu quero uma solução para o meu problema... Por exemplo, caiu numa

questão do concurso: para que que a gente ensinava sequência numérica? E a gente não tinha

a resposta e eu não aceito, eu fico atrás até descobrir e aí hoje nós descobrimos juntos. Eu

acho isso legal.

181

Pesquisadora: O relacionamento entre o grupo de professores aqui na escola é bom?

Renata: É bom, todo mundo se dá bem e isso é muito produtivo.

Pesquisadora: E isso é diferente do interior?

Renata: No interior é melhor ainda. No interior, além do trabalho você tem o relacionamento

familiar porque às vezes você vai nas mesmas festas, você vai nos mesmos lugares, as

famílias se conhecem. Aqui [em São Paulo] é mais frio essa parte, você conhece o professor

na escola e só. Agora com esse Facebook aí, o Orkut, até que a gente está se falando mais.

Mas mesmo assim eu ainda acho meio frio.

Pesquisadora: No seu dia a dia em sala de aula, como você utiliza a teoria para ajudar na sua

prática?

Renata: Eu aprendi que eu tenho que refletir sobre a minha prática, eu aprendi isso... Porque

assim, depois que eu comecei a estudar os autores, eu comecei a pensar diferente. Porque a

gente tinha muito uma ideia assim: “no papel aceita tudo!”, você entendeu? Hoje eu tenho um

olhar diferente para isso porque eu acho que o autor quer te ensinar, quer te colocar... Te dar

subsídio para compreender aquilo que acontece na sua sala de aula. Uma coisa que me chama

muito atenção é essa parte da avaliação que é a ação-reflexão-ação, porque eu só mudei o meu

jeito de pensar por conta do estudo que eu fiz em cima da Sara Holfman e esse povo aí. Eu

acho que a gente tem que buscar compreender mesmo, você entendeu? A própria política do

governo, quando ela vem imposta de cima para baixo, ela é mau vista. Então, se você não

aceita, como você pode aplicar? Mas eu acho que isso é uma mudança de postura mesmo, mas

até hoje você se depara com colega que não aceita mudança, que nada está bom, nada está

bom... Então eu acho que é essa a maneira de olhar diferente mesmo. E a partir do momento

que você busca compreender, que você busca entender... Igual a Telma Weizs, a gente já

sabia porque a Emília Ferrero colocava isso [das hipóteses silábicas] há quantos anos? Mas a

gente não aplicava, você nem compreendia, você não entendia aquilo e hoje para mim isso

tudo é muito rico porque ela é uma direção para o meu trabalho.

Pesquisadora: Então hoje você utiliza a Emília Ferrero?

Renata: É Emília Ferrero e eu gosto muito da nossa proposta que é baseada quase que

unicamente em cima da Telma Weisz e eu acho que ela acrescenta muito para o nosso

trabalho. Eu acho também que todos os meios de avaliação externa têm auxiliado e mostrado

182

e feito com que a gente se abrisse para o novo, você entendeu? Porque não adianta eu

trabalhar dentro de um tradicionalzão se uma avaliação externa não vai pedir isso.

Pesquisadora: Então você acha que essas avaliações externas são boas?

Renata: Eu acho sim, eu gosto.

Pesquisadora: Mesmo você tendo que atingir algumas metas para essas avaliações?

Renata: Na verdade, eu não concordo com os critérios da avaliação porque eu acho que eu

tenho que ser avaliada pelo meu trabalho e não pelo todo, isso eu não concordo.

Pesquisadora: E quais são suas condições de trabalho aqui? Existe algum obstáculo para a

realização da sua atividade?

Renata: Ai meu Deus, é complicado! Porque é assim: quando você gosta daquilo que você faz

não tem entrave. Mas se surge algum tronco no caminho eu pulo, procuro superar esse

obstáculo e vou em frente. E esse é o meu problema (risos). Mas, eu gostaria de ter um apoio

de profissionais especializados, do tipo fonoaudiólogo porque eu acho que tem criança que

precisa... Eu acho que tinha que ter esse apoio externo para poder facilitar ainda mais para a

criança, porque acaba sendo para ele [criança] um entrave.

Pesquisadora: E como que é a gestão da escola?

Renata: Eu me relaciono bem com as gestoras, eu não tenho problema não! O que eu acho que

falha é a estrutura. Por exemplo, tem um programa da Secretária da Educação que se chama

cultura e currículo e nunca o primeiro ano foi, você entendeu? Ele leva para museu, para

lugares interessantes... E isso eu acho falho porque eles oferecem para outros anos e para o

primeiro ano nunca. Então, falta essa parte de passeio, de melhorar a parte de brinquedo...

Porque nós estamos recebendo bebês na escola gente! E nós não temos nada. Você exigir que

uma criança fique cinco horas sentada na carteira é demais para o meu gosto, por isso que às

vezes eu deixo... Quer corre, corre. É lógico que eu não vou deixar machucar, eu dou um

pouco de liberdade para poder extravasar, porque eu acho o cúmulo isso. Então eu acho que

essa parte é falha, você entendeu?

Pesquisadora: Tem alguma atividade que você gostaria de fazer aqui na escola, mas você não

consegue ou não pode?

183

Renata: Ah, tem muitas! O acesso a internet é um recurso que eu gostaria de estar utilizando

com eles porque tem muitos sites de jogos e daria para fazer um trabalho bem legal. Mas,

muitas vezes você não pode usar porque não tem, ou não é permitido, ou não está

funcionando, né?

Pesquisadora: Na sua prática, o que você considera como um ponto positivo? O que dá

certo?

Renata: Eu hein? (risos). Acho difícil eu falar de mim... Na minha prática eu acho que é essa

liberdade mesmo, essa liberdade que eu dou para o meu aluno poder se expressar, dele poder

agir, e isso eu acho que é legal.

Pesquisadora: E o que você faria de diferente?

Renata: Ah, muita coisa. Eu acho que eu falo muito alto, eu grito... Não é que eu grite, mas

meu tom de voz já é alto mesmo, eu acho que eu teria que trabalhar esse meu lado... E... Eu

queria ser melhor! (risos).

Pesquisadora: você me disse que já fez vários cursos, que você está sempre buscando... Você

acha que isso é suficiente para o desenvolvimento de suas atividades?

Renata: Só fazer curso não é suficiente não, eu tenho que aprender mais! Eu tenho muito que

melhorar ainda...

Pesquisadora: E por quê?

Renata: Porque eu quero ser melhor do que eu sou... Não! Eu quero ser melhor porque eu

acho que eu não sei tudo, aliás, eu não sei nada!

Pesquisadora: Você me disse que seu Magistério foi super bem feito e que você gostou muito.

E sobre os outros cursos de formação continuada, o que você achou?

Renata: Eu achei todos eles muito bons. Isso eu acho que falta na Secretaria da Educação,

você entendeu? Eu mesma, já atuando muitos anos no primeiro ano, eu gostaria [de fazer mais

cursos] porque tem muita coisa que eu já esqueci. Essa parte de Matemática... Eu acho que

tinha que ter mais capacitação, mas nós não temos nada. Eu queria fazer um curso de

contação de história porque eu quero aprender, mas eu não tenho tempo e nem dinheiro – é

tudo muito caro! Porque se nós estamos recebendo essa crianças tão cheias de vontade de

aprender, eu tenho que oferecer um bom trabalho. Nós tivemos um encontro com o Secretário

184

da Educação mas as coisas não chegam, você entendeu? Assim, de que adianta eu ir numa

orientação técnica aonde eu só vou ver as coisas prontas? Eu tenho que ir lá para aprender. E

tem mais, para o primeiro ano não tem nada, nada, nada! Já tem uns 3 anos que eu não

participo de nenhuma capacitação porque não tem oportunidade. Eles [secretaria da educação]

não oferece nada e quando oferece... Igual, teve um curso de fantoches que eu gostaria de ter

ido, só que era no horário de HTPC e a diretora não liberou... Então fica truncado porque não

tinha outro horário e eu não pude fazer. Isso para mim tinha que melhorar muito, muito, muito

porque eu quero aprender, mas eu tenho que ter oportunidade.

Pesquisadora: E como é o HTPC aqui na escola?

Renata: O HTPC acaba sendo só uma resolução de conflitos. Porque são tantos os problemas

que tem para serem resolvidos e o horário é curto. Momentos de estudo mesmo é só quando a

agente necessita de alguma orientação e fica assim...

Pesquisadora: E o Programa Ler e Escrever tem uma formação, né? Tem alguns dias da

semana que vocês ficam aqui na escola para isso, não é?

Renata: É, o Ler é assim, mas ele tem que funcionar, né? Esse ano ele está meio assim. Por

conta da carga de trabalho do próprio coordenador pedagógico não tem sobrado tempo de

estudo com a gente e tem o nosso lado que a gente acaba que fica mais no “blábláblá” do que

no estudo mesmo.

Pesquisadora: Eu me lembro que você me disse um dia, numa conversa informal, que você

preferiria que professor fosse até a Secretaria da Educação ou na Diretoria de Ensino da

Região para que ele próprio tivesse a formação do Ler e que não fosse dessa forma como é

hoje. Ou seja, da Coordenadora Pedagógica fazer a formação na Diretoria e depois fazer essa

mesma formação com vocês aqui na escola né?

Renata: Isso mesmo, porque senão fica um repasse de informações e às vezes nesse repasse

nem tudo é falado. A gente não ouve da boca do próprio formador as coisas como a

Coordenadora Pedagógica tem a oportunidade de ouvir. Tudo bem que ela se esforça, vai lá e

faz o curso, mas eu preferiria mil vezes ter essa formação direta como a Coordenadora tem.

Acho que a gente aprenderia muito mais e utilizaria esse tempo mesmo para a formação em si.

Porque eu acho que escaparia desse negócio de sair do foco do estudo de vez em quando,

você entendeu? Mas eu acho o programa muito bom! Os materiais são bons e me ajudam

muito na minha prática. Igual, às vezes eles [os materiais] trazem outras opções para a gente

185

fazer em sala e daí dá para trabalhar com os alunos que já tem facilidade no assunto como

aqueles que ainda não tem. Me ajuda no planejamento também... Me ajuda a ver outras

possibilidades de trabalho. Eu gosto dessa proposta e eu vejo que os alunos gostam também.

Pesquisadora: E você conhece o Projeto Político Pedagógico da escola? Você participou da

elaboração?

Renata: Conheço sim, participei da elaboração...

Pesquisadora: E como foi essa experiência?

Renata: Boa, porque tudo o que a Gestão vai fazer ela participa com os professores. Tudo é

resolvido junto, em conjunto mesmo e isso me dá uma certa autonomia, embora é uma

autonomia entre aspas, né? Porque nem sempre a equipe gestora pensa igual a você. Aqui

quando dá para ceder a gente sempre busca ver os dois lados – cede de um lado, aí o outro

cede de outro e a gente procura sempre um acordo. Nem sempre a gente é atendido, mas é

feito um acordo.

Pesquisadora: Como você planeja suas aulas? Quais dias e horários você reserva para isso?

Renata: Eu planejo na minha casa mesmo, de manhã porque eu acordo muito cedo e é o

horário que eu mais concentro mesmo. E até assim, para não fazer barulho para quem está

dormindo. É na minha casa e de manhã. Às vezes eu planejo e chega aqui e não dá certo, mas

aí eu faço uma adaptação e procuro retomar [o conteúdo com os alunos] no outro dia. Nossa,

porque às vezes é complicado, porque você vem cheia de gás e aí desestrutura tudo. Tem que

ter um jogo de cintura para lidar com isso. Às vezes eu uso o horário do Ler também...

Procuro a Coordenadora e as minhas colegas para ter novas ideias em cima daquilo que eles

[Programa Ler e Escrever] estão propondo, seleciono algumas atividades... Mas, basicamente

eu faço isso na minha casa mesmo.

Pesquisadora: Que nota você atribuiria para essa escola?

Renata: Para minha escola? Hum... Aí é complicado também porque eu gosto daqui! Dez não

é... Eu dou oito.

Pesquisadora: E para você?

Renata: Piorou (risos). Eu me dou sete.

186

Pesquisadora: Por quê?

Renata: Porquê eu quero ser melhor (risos).

Pesquisadora: Qual foi a sua maior realização como professora?

Renata: De verdade mesmo? (risos). Aqui [na educação] é aonde eu me encontrei. Eu sou

feliz... Sabe quando você vem trabalhar feliz? Então, eu gosto daquilo que eu faço, eu sinto

saudade, eu fico triste quando o ano vai terminar... É uma coisa de paixão mesmo.

Pesquisadora: Só ficou uma pergunta chata para fazer?

Renata: Ichi...

Pesquisadora: Quantos anos você tem?

Renata: (risos) 55 anos.

187

Transcrição Autoconfrontação Simples – Episódio Rapunzel

Pesquisadora: Eu vou passar o vídeo para você e nós vamos assistir juntas. Se você quiser

voltar em algumas partes para comentar, fique à vontade. Como eu fiz um recorte da sua aula,

vamos assistir ele inteiro ok?

Renata: Sim, sim.

Pesquisadora e Professora assistem ao vídeo juntas.

Pesquisadora: Em primeiro lugar, o que você achou de ver e se observar?

Renata: Na verdade? Eu estou gordona (risos). Eu nunca tinha visto uma aula minha né?

Quando eu vejo nas capacitações alguma filmagem às vezes eu achava: “ah, não é assim que

acontece, isso tudo é montagem!” E agora para mim parece mais real porque é aquilo que eu

faço no dia a dia. Eu não me preparei para dar essa aula, você entendeu? E eu achei muito

legal. Às vezes quando eu vejo nas capacitações eu acho que é montagem e não é.

Pesquisadora: Nas capacitações eles usam trechos de aula também?

Renata: Isso mesmo, eles mostram salas de aula então parece que está tudo muito

arrumadinho, certinho... A impressão que eu tinha era que era montagem e agora eu vendo

aqui eu penso que não é montagem aquilo que aparece lá também porque pelo que eu estou

vendo aqui é uma coisa normal, é igual.

Pesquisadora: Nossa, que bacana! E qual foi o objetivo dessa atividade?

Renata: Na verdade é a reflexão sobre a escrita mesmo, dentro dos contos. Porque para eles é

prazeroso e eles gostam. Eu acho que quando você trabalha dentro desse gênero é

significativo para eles. Eles gostam bastante e participam.

Pesquisadora: Mesmo sendo uma história repetida?

Renata: Você pode contar quantas vezes forem que eles gostam, eles gostam mesmo.

Pesquisadora: E eu percebi que você deu duas folhinhas para eles, como foi a escolha das

tarefas que tinham na folha?

Renata: Eu montei essas duas folhinhas para eles porque eu queria que eles identificassem, na

primeira atividade, qual era o personagem daquela história que eu contei. Aliás, era o

188

contrário, de que história era aquela fala do personagem. E a outra era para eles estarem,

dentro do gêneros que já tinham sido trabalhados – dos contos, para eles estarem trabalhando

a lista mesmo de contos.

Pesquisadora: tem uma coisa que a gente percebeu e até conversou no final dessa aula que

assim que você terminava de entregar a folha lá no final da sala os que estavam aqui na frente

já tinham terminado a tarefa. Como é isso para você? Parece que alguns alunos são mais

rápidos que outros. E tem ainda um outro grupo que nem conseguiu chegar na segunda

folhinha por conta das dificuldades. Como você lida com isso?

Renata: Não sei se você percebeu aí no vídeo, mas a Yakne auxiliou uns alunos, às vezes eu

peço para que um ajude o outro... O Vinícius é um aluno que termina tudo muito rápido, mas

ele ainda não tem paciência de ajudar o outro, então nem adianta eu pedir que não vai dar

certo. O Luís é um outro aluno que termina tudo rápido, mas ele ainda não tem aquela

autonomia porque ele não é seguro. Ele até auxilia sim se eu pedir, mas ainda não é uma

criança que eu posso colocar com uma outra para auxiliar. É lógico que ele tenta, mas ele

ainda não consegue. Mas eu tento trabalhar assim... Para o Vinícius e o Luís eu tenho que

pedir um tempo mesmo porque eles terminam muito rápido. Mas, eu tento ocupar o tempo

deles pedindo para eles ajudarem os outros que estão com mais dificuldade... Embora o

temperamento do Vinícius não seja o de ajudar: ele não gosta, ele não tem paciência, sabe?

Pesquisadora: Mas o e o Luís sempre foram mais rápidos que os demais?

Renata: Não! O Vinicius aprendeu muito rápido, aprendeu rápido demais. Ele já chegou pré-

silábico na minha primeira sondagem. Eu sempre tenho uma outra atividade para ele porque

às vezes eu preciso de um tempinho a mais para aqueles que ainda estão caminhando, então

eu sempre dou uma outra atividade para ele. Até porque eu tenho que ocupar porque senão ele

pega fogo e dispersa os outros e ele é uma criança que precisa estar sempre ocupado.

Pesquisadora: E quando você disse que o objetivo da atividade era trabalhar o gênero conto e

a reflexão sobre o sistema de escrita, o que você esperava dos alunos?

Renata: O objetivo era esse mesmo: trabalhar a reflexão sobre o sistema de escrita. Por

exemplo, na palavra “madrasta”eu sabia que ia ter dificuldade. E esse meu trabalho de colocar

os jeitos que as crianças estavam escrevendo “madrasta” na lousa era para eles perceberem

que letra estava faltando ou que letra estava sobrando. Por exemplo, eu peguei vários jeitos

diferentes que as crianças escreveram madrasta para poder compartilhar e corrigir junto com

189

todo mundo. E isso ajuda muito! Eles olham não apenas para o erro deles como para os dos

colegas para poderem pensar como eles estão escrevendo. E você vê que tem uma parte lá que

eles até riram do colega e o meu objetivo não é apontar o erro e por isso que eu não coloco lá

na lousa quem foi que escreveu o que. Eu busco compartilhar as possibilidades para que eles

reflitam e consigam construir o novo em cima do erro.

Pesquisadora: Os materiais são entregues para eles no começo do ano e eu percebi que uma

parte da sala estava com o livro e a outra não. Por que isso aconteceu?

Renata: Usar o livro laranja foi uma opção minha. Na verdade é assim: como o

desenvolvimento da sala foi muito rápido, eu percebi que muitas crianças de alfabetizaram

num piscar de olhos e aí eu queria mais e mais para eles. Daí eu fui buscar esse livro. Não é

material de 1° ano... É um material de 2° ano esse livro de texto. Só que como tinham alguns

na escola, eu busquei fora também e completei para eles.

Pesquisadora: Eles trazem o material deles também?

Renata: Eles andam com os dele na bolsa porque eles adoram ler. Tem umas atividades de

adivinhar, o material é muito rico. Na verdade, o material de 1° ano eu achei fraco, para mim,

você entende? Eu achei que o de2° ano para minha sala era muito mais interessante.

Pesquisadora: E você já trabalha com esse material faz tempo?

Renata: faz 4 anos que eu trabalho com o Ler e Escrever, desde 2008.

Pesquisadora: E todos os anos foram assim? Você precisa usar outros livros?

Renata: Na verdade, o material de 1° ano começou a vir aqui pra gente só nesse ano, antes não

tinha. Ano passado eu trabalhei com um 1° ano e não teve material.

Pesquisadora: E como você fez?

Renata: Eu trabalhava com livro meu mesmo, em cima do meu material.

Pesquisadora: E você se assistindo no vídeo, tem alguma coisa que você faria de diferente?

Renata: Ah, acho que sim. Teria sim. Nossa! Muita coisa... Eu acho que vendo o vídeo eu

percebi que algumas crianças não participaram da aula e ficaram mais preocupadas com

outras coisas. Não passou despercebido, mas olhando agora eu acho que eu tinha que ter

voltado essas crianças para o assunto. Agora, quanto a minha prática, eu acho que era isso

190

mesmo. De repente eu poderia ter... hum... Eu acho que era isso mesmo que eu falei: que eu

deveria ter vindo nessas crianças que eu to percebendo agora que não participaram da aula e

ter dado mais atenção. Isso para mim passou despercebido e agora eu estou vendo. Por

exemplo, às vezes eles até vem pedir ajuda, mas agora eu estou vendo que a Samantha não

veio, esse menino novo daqui [apontando para o vídeo] não veio e foi mais a Yakne que

ajudou ele.

Pesquisadora: E como você avalia essa aula? Ela cumpriu o seu objetivo? As atividades

estavam de acordo para o nível de desenvolvimento deles?

Renata: Eu achei que estava sim. Até para os alfabéticos eu achei que foi fácil demais, porque

quando eu terminei de entregar as folhas para a turma do fundo alguns daqui da frente já

tinham terminado. De repente eu poderia ter dado uma reesccrita, ou uma produção coletiva.

Pesquisadora: E você sempre trabalha assim? Um texto do livro e uma atividade que você

elabora?

Renata: Não, quando eu trabalho o Ler mesmo, por exemplo, o dia do Índio o livro propõe

algumas atividades, mas eu acho pouco e eu sempre complemento.

Pesquisadora: E agora, você se vendo no vídeo, como foi essa experiência?

Renata: Ah, isso vai ajudar na minha prática para o próximo ano. Eu acho que eu fiquei muito

na frente e eu acho que eu deveria ter circulado mais...

Pesquisadora: Não, você circulou bastante, mas como eu tinha que editar o vídeo acabei

pegando algumas partes da sua interação com as crianças.

Renata: Ah tá, porque quando eu olhei logo pensei: nossa, eu só fico na frente!

Pesquisadora: A gente estava conversando antes de começarmos a gravar hoje e você me

disse que está muito satisfeita com o seu trabalho.

Renata: Isso mesmo, estou mesmo porque eles foram muito espertinhos. Não teve muito

desgaste, sabe? Até em comportamento... Eu não tive muito problema, esse ano a minha sala

foi bem tranquila, comprometidos... Os pais também ajudaram bastante, essa parceria com os

pais, tudo o que eu propus foi aceito. Então eu acho que é um conjunto de ações que ajudaram

nesse trabalho.

191

Pesquisadora: E o que o Ler ajuda na sua formação?

Renata: O Ler é um norte para o meu trabalho. Eu gosto de tentar, sabe? E o Ler me dá essa

oportunidade de experimentar e isso eu gosto muito. Tem dado muito certo. Na verdade eu

aprendi e não faz muito tempo que eu deveria ler todos os dias. Eu aprendi isso no Ler

mesmo. E eu vejo isso nesse ano, como foi rico e foi uma coisa de louco. Eles aprenderam

rápido demais. Tem mais, eles estão vindo melhores da Educação Infantil, a base já está mais

estruturada. Eu acho que nós estamos num trabalho de sequência porque às vezes quando eu

vou contar uma história muitos já ouviram, né? E ouviram lá na Educação Infantil e nós

estamos colhendo os frutos agora. Eu acho que nós estamos no caminho certo. Nós temos que

tentar, arriscar. Nós vamos errar? Vamos sim, mas temos que tentar.

Pesquisadora: E qual é a sua expectativa para o próximo ano?

Renata: Eu queria eles de novo (risos). Eu queria essa sala de novo para poder dar uma

continuidade, mas pelo jeito não vai ser possível. Seria ótimo se eu pudesse continuar de onde

eu parei. A esperança é a última que morre.

Pesquisadora: Você gostaria de voltar em alguma parte do vídeo para falar mais alguma

coisa?

Renata: eu me propus para essa pesquisa e tem algumas coisas aí que eu acho que eu tenho

que mudar. Até a minha postura mesmo, acho que eu estou muito curvada (risos).

Pesquisadora: E o que você achou que ia acontecer? Mesmo eu tendo explicado, como foi

para você ser filmada e depois se ver em atividade?

Pesquisadora: Ah, eu fiquei com um pouco de medo né? Eu falei “vixe, o que vai acontecer?”

(risos). Mas não foi assim, eu achei legal. Eu imagino que eu estou sendo um instrumento

para um estudo, não a minha pessoa, mas o meu lado profissional. E eu acho isso importante

porque eu ainda tenho que aprender muito, muito, muito. O nosso objetivo é mudar e se tiver

alguma coisa que esteja errada a gente precisa mesmo é mudar.

Pesquisadora: e agora, depois de ver todo o processo, sua percepção sobre a pesquisa mudou?

Renata: Bom, para mim é uma coisa nova e que eu nunca tinha visto e eu achei legal. Até

aquela ideia de que eu tinha de que era uma coisa montada mudou. Quando eu for para o

curso vou ver com outros olhos.

192

Transcrição Autoconfrontação simples – Alfabeto Móvel

No decorrer da passagem do episódio – no momento em que um dos alunos olha para ela feliz

por ter conseguido montar a palavra aniversário – a professora comenta: “e você vê como dá

certo, né? E você vê que todos eles estão no mesmo nível de aprendizagem. Quando eu

montei os grupos eu fiz uma divisão de silábico com valor, um silábico sem valor, você

entendeu? Porque senão não funciona... Os agrupamentos tem que ser pensados mesmo.

Pesquisadora: E aí o que você achou?

Renata: Olhando assim minha voz é muito grave mesmo. E assim o que eu percebi é que eu

preciso trabalhar mais o alfabeto móvel com eles porque eu vi o envolvimento deles.

Pesquisadora: E na hora da aula você não tinha conseguido perceber isso?

Renata: Eu tinha até percebido, mas eu já tinha esquecido muitas coisas que eles tinham feito.

As interferências eu acho que dá para fazer na hora que surge a dúvida porque quando o aluno

só escreve é mecânico, né? E aí [com o alfabeto móvel] ele vivencia, é o concreto. E tem a

ajuda do grupo também.

Pesquisadora: E quando você escolheu essa atividade qual era o objetivo?

Renata: Era refletir como escrever as palavras. E os grupos foram separados com o nível de

dificuldade de cada um.

Pesquisadora: E olhando o vídeo, o que você faria de diferente se você fosse dar essa aula de

novo?

Renata: Ah, sei lá... Eu acho que eu atendi muito uns grupos e outros não. Não sei se porque

eles não me solicitaram, mas eu acho que eu deveria circular mais entre os grupos. Embora eu

não tenha deixado grupo sem fazer, mas eu não sei se foi porque eles não me solicitaram...

Mas mesmo assim eu acho que eu deveria ter circulado mais. Mas é isso daí mesmo, a

atividade é dentro de um campo semântico que eles gostam, que também ajuda muito, e os

agrupamentos ajudaram muito.

Pesquisadora: E como foi o planejamento dessa atividade? Porque antes dessa atividade você

fez a leitura da formiguinha que é um dos objetivos do Ler, que é a leitura diária. No entanto,

o texto da Formiguinha não estava no livro do Ler.

193

Professora: um dos objetivos do Ler é a leitura diária e os textos não necessariamente

precisam estar no livro texto do Ler. Eu escolhi a formiguinha porque é uma leitura que eu fiz

logo no começo do ano e que eles gostam de ouvir e eu também tenho facilidade para contar

ela e eu usei ela por isso.

Pesquisadora: E a ideia de trabalhar com o tema “festa de aniversário” veio do Ler ou você

que pensou essa atividade?

Professora: Veio do Ler, porque ele [Ler e Escrever] sugere que o professor trabalhe com

temas que venham do cotidiano da criança e eu sei que esse tema eles gostam muito. E você

vê aí no vídeo que eles gostam muito e que participaram bastante. O alfabeto móvel foi eu

quem escolhi para trabalhar com esse tema e dá para perceber que a riqueza de vocabulário de

uns é bem diferente de outros.

Pesquisadora: E o tempo para o desenvolvimento da atividade foi suficiente?

Renata: Foi sim e eu acho que ela não pode ser uma atividade muito longa porque senão eles

perdem o foco. Mas dentro do que estava proposto para essa atividade eu acho que foi

suficiente. E depois dessa atividade eu deixei eles em grupo e coloquei a lista para eles

escreverem. Porque com o alfabeto móvel eles tiveram a oportunidade de trocar e chegar na

escrita correta. Depois quando eles foram para a lista eles já tinham passado pela experiência

do alfabeto móvel.

Pesquisadora: E quando o aluno Eduardo conseguiu escrever a palavra aniversário e você

pediu para que eles falasse quantas letras tinham na palavra, será que todos os alunos

conseguiram ver como se escreve “aniversário”, pois as letrinhas ficaram na carteira dele.

Renata: Acho que nem todos conseguiram mas eu acho que todos conseguiram no final com a

minha interferência.

Pesquisadora: Uma ideia que eu te daria para uma próxima vez seria a de escrever a palavra

na lousa junto com eles.

Renata: Eu não me lembro se nesse dia eu fiz, acho que não. Mas eu faço sempre isso sim,

escrevo junto com eles na lousa. Na outra aula que você filmou eu escrevi a palavra

“madrasta”. Primeiro eu deixo sempre eles arriscarem e depois nós vamos construindo juntos

a escrita correta.

194

Pesquisadora: O objetivo da atividade foi alcançado?

Renata: Foi sim. Eu percebo que muitas crianças estão avançando muito, muito e eu acho que

foi bem produtivo. E você vê a carinha deles de felicidade quando alcançam o objetivo. Eles

gostam muito... Eu acho que é uma atividade trabalhosa para mim, mas eu acho que depois de

ver o vídeo eu tenho que fazer mais porque eu acho que é uma coisa que ajuda muito no

processo educativo deles.

Pesquisadora: Tem mais alguma coisa que você gostaria de comentar?

Renata: Eu gostei muito dessa atividade e eles também, mas eu acho que eu ainda tenho que

mudar bastante. Algumas coisas eu preciso rever na minha interferência. Porque mesmo eles

estando na mesma mesa, com dificuldades próximas, ainda tem criança que não aceita a ajuda

do outro, sabe? Então eles preferem fazer sozinhos e eu acho que eles vão ter que aprender

ainda a interagir com os colegas sim.

Pesquisadora: Tem uma coisa que eu percebi que eu gostaria de dividir com você: você

percebeu que muitas vezes a gente ouve mais o barulho de fora da sua sala do que o dos seus

alunos?

Renata: Nossa, é mesmo.

Pesquisadora: Quando você problematiza, quando você está apresentando alguma atividade

que é do interesse deles, muitas vezes o barulho de fora da sua sala é bem maior do que o da

sua própria sala.

Renata: Na verdade, a minha sala é barulhenta e eu não consigo fazer eles ficarem quietinhos,

mas eles participam muito, eles querem, eles gostam e eles se envolveram comigo e o avanço

é notório.

195

Transcrição da Autoconfrontação simples – Aula de matemática

A professora teceu alguns comentários antes de acabar a exibição do vídeo.

Renata: Nossa, eles estão quietinhos mesmo, nem eu na hora tinha percebido isso... Eu acho

que eu vou passar esses vídeos para eles, acho que eles vão gostar de se ver...

Pesquisadora: Qual foi o objetivo dessa atividade?

Renata: O objetivo era ver como eles chegariam ao resultado, quais as possibilidades que eles

usariam para chegar a um resultado. E eu acho que eu consegui porque eu tive várias crianças

que usaram várias possibilidades diferentes. E o que eu mais gostei foi que eu mostrei para

eles que não existe um único jeito de fazer e que na matemática eles podem usar outras

maneiras de fazer. O meu objetivo foi esse e eu acho que eu consegui porque eles usaram

várias estratégias para chegar ao resultado.

Pesquisadora: Eu percebi que tem aluno que é mais avançado em matemática do que em

Língua Portuguesa.

Renata: é sim, e tem mais, o dinheiro para eles é fácil e como a quantia era pequena é aquilo

que eles usam no dia a dia.

Pesquisadora: E essa atividade é do Ler?

Renata: É do Ler sim e está no livro. Um dia antes eu tinha pedido para eles fazerem uma

pesquisa de preços. Na verdade, eu ia trazer o folheto do supermercado mas aí eu achei que se

eles pesquisassem era uma maneira deles irem buscar. Eu achei que foram poucas que não

trouxeram e das que trouxeram nós escolhemos os preços. Como tinha muita diferença de

preço eu questionei a marca, qualidade... Aproveitei para discutir que os preços não são os

mesmos em todos os lugares. Pra mim, eu fiquei feliz com a atividade e acho que foi bem

produtivo o dia para eles.

Pesquisadora: No decorrer do vídeo você me falou que você achou que é brava com eles...

Renata: É, eu achei que eu sou brava (risos). Ah, tem horas que eu sou chata mesmo mas na

verdade eu quero que eles aprendam e quando algumas crianças perdem o foco isso é que me

deixa meio brava mesmo. Mas assim, se você perceber no geral, eles participaram, tiveram

interesse, fizeram o que foi proposto.

196

Pesquisadora: O que o Ler propõe quando você trabalha com essa atividade?

Renata: O Ler propõe isso mesmo: as diversas maneiras que eles encontram para chegar ao

resultado.

Pesquisadora: Na entrevista você me relatou que sua grande dificuldade está nas aulas de

Matemática. E agora ao se ver, o que você achou?

Renata: (risos) Eu quero conseguir fazer com que eles aprendam e eu acho que às vezes eles

dispersam um pouquinho. Um pouquinho não, bastante porque eu acho que tem algumas

crianças que dispersam muito. O que eu tento fazer é arranjar um jeito mais próximo para que

todos estejam envolvidos mesmo. E as atividades que o Ler propõe são boas. Agora começou

a formação da área de matemática (EMAE) e eu acho que cada vez mais só tem a melhorar.

Pesquisadora: E aquela continha na qual você apresentou Unidade, dezena e centena, eles

estavam preparados para trabalhar com isso?

Renata: Na verdade, eu não cobro isso não. Eu cito e apresento para eles estarem se

familiarizando mesmo. O que eu uso é mais por estimativa mesmo, porque eu tenho criança

que já conhece e já faz a continha de cabeça mesmo.

Pesquisadora: É objetivo desse ano que você leciona que eles aprendam unidade, dezena e

centena?

Renata: Não. Eu coloquei aquela conta na hora de corrigir porque eu fiquei pensando como

eles iriam chegar no valor de R$ 3,80. Mas isso eu não vou cobrar, é uma situação inicial para

eles irem se familiarizando. Eu costumo trabalhar assim com o material dourado e com os

números naturais, não com dinheiro. Com esse material eu faço as fichinhas e eles vão

trocando.

Pesquisadora: Olhando para a sua aula, o que você faria de diferente?

Renata: Eu acho que o folheto do supermercado ajudaria bastante, não sei se a ida a um

mercadinho poderia ter motivado mais. Mas eu acho que o objetivo que era deles testarem as

diversas maneiras de chegar a um resultado eu consegui.

Pesquisadora: E depois de passar por essa experiência, como foi se ver em atividade?

197

Renata: Ah, eu achei legal... Eu acho que eu tenho que mudar bastante, que eu preciso estudar

muito ainda, que eu quero chegar mais perto e o que eu puder fazer para que todos consigam

aprender eu vou fazer. Isso daí só vai abrindo meu olhar para que eu possa buscar e me olhar

mesmo. Igual, essa atividade é uma proposta do Ler mas a gente não usa tanto. Se a gente

usasse mais você vê que tem resultado. Porque os que sabem mais ajudam o outro.

Pesquisadora: E tem mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?

Renata: Eu acho que a gente tem que estar aprendendo mesmo. Isso daqui para mim é um

aprendizado porque me leva a mudar a minha prática em muitos aspectos que eu vi, por

exemplo, esse da voz, de atitude, de postura, buscar caminhos para atingir todos os alunos.

Pesquisadora: E você acha que outros professores gostariam de se ver em atividade?

Renata: Eu acho que sim, mas tudo depende do seu olhar porque eu não vejo isso como

crítica, eu vejo como espaço de construção mesmo para melhorar a minha prática. Mas tem

gente que não aceita isso, né? Tem gente que tem dificuldade para enfrentar o novo e isso

pode acabar sendo um problema para muita gente. Na primeira filmagem eu não sabia direito

o que ia acontecer, mas hoje eu uso isso para refletir e rever a minha prática mesmo. Mas para

quem acha que isso pode ser uma avaliação é mais difícil. Eu acho que tudo o que a gente

tiver para chegar mais perto do nosso objetivo que é o de ensinagem é bom.

198

Transcrição Entrevista – Coordenadora Pedagógica

Pesquisadora: Eu queria começar, a gente estava falando um pouquinho aqui rapidamente

aqui do seu trabalho, mas até para te conhecer melhor, enfim, conhecer a sua trajetória, eu

queria que você falasse para a gente, assim, um pouquinho, sobre a sua história de vida.

Coordenadora: Então vamos lá. Desde criança, assim, que eu me lembre, sete, oito anos..., eu

tenho uma irmã gêmea...

Pesquisadora: Ah, é mesmo? Legal!

Coordenadora: ...é nós brincávamos, as companheiras, uma brincava com a outra. Eu nunca

fui de brincar na rua, minha mãe não deixava, enfim, e aí nós brincávamos de professora.

Uma vez eu escrevia na lousa e ela era a aluna e vice versa. Então, isso foi muito marcado,

porque, embora eu comecei a trabalhar, acho que..., eu acho hoje que eu comecei a trabalhar

tarde, com dezoito anos, mas eu comecei a trabalhar em empresa privada, quatro anos e

depois eu fui para a área educacional.

Pesquisadora: Então, inicialmente, originalmente, você não tinha intenção de trabalhar na

educação?

Coordenadora: Não, eu sempre tive.

Pesquisadora: Ah tá.

Coordenadora: Sempre tive, mas eu não tinha formação para isso ainda. Então, eu entrei na

faculdade com dezoito anos. O meu período de faculdade eu trabalhei numa empresa privada.

Assim que eu me formei, coincididamente, ou não, eu fui demitida. Em março, eu lembro

perfeitamente, em março de 1994 e em maio de 1994 eu fui chamada para trabalhar em escola

e não parei mais. São treze anos, vai fazer catorze agora e me identifico muito com isso,

porque eu acredito que a base de qualquer ser humano é a educação. Eu acredito nisso. E aí

isso me frustra um pouco quando a gente vai para a prática, porque a parte teórica é muito

bonita, filósofos, historiadores e pensadores, tal, mas quando eu me deparei com a prática eu

falei: - Meu Deus! É totalmente diferente, é uma outra realidade e eu ouvi da diretora, é:

Nossa, você é tão novinha - vinte e um anos na época - será que você vai dar conta? Isso

marcou para mim. E eu insisti. Com quatro dias que eu – eu trabalhei quatro anos no R. e

estou há seis anos aqui. Eu não gosto muito de ficar trocando, não. Eu acho que a gente tem

199

que tentar desenvolver, começar um trabalho e tentar desenvolver ele e dar continuidade,

porque você começa aqui, começa lá e não termina. Essa é a minha filosofia. E essa diretora

hoje, ela já aposentou e tudo, nós temos contato ainda, e ela é super parceira agora. Quer

dizer, eu venci, não é que eu venci, eu mostrei até para mim mesma que eu estava naquela

transição, se eu ia dar conta ou não. Entrei de cabeça, com tudo.

Pesquisadora: E sua formação em nível superior foi...

Coordenadora: Eu fiz pedagogia primeiro, terminei em 97, em 2001 eu fui fazer letras. Achei

necessidade, precisava estudar... (Pausa. Alguém bateu à porta.). E, eu sei dividir bem. Tem

gente que não. Chega carrancudo e eu não posso fazer isso, porque eu tenho que tentar, é,

entusiasmar, não posso destruir, eu tenho que construir. Isso é continuamente (risos). Eu tenho

uma força de vontade, hoje eu vi uma cena que me deixou bem, é, assim, emotiva, nós não

conseguimos atingir o índice e aí está aquele clima tão pesado, que o pessoal estava

esperando.

Pesquisadora: Esse índice se refere a quê?

Coordenadora: Ao IDESP – Índice de Desenvolvimento do Estado de São Paulo.

Pesquisadora: Vocês fazem uma prova?

Coordenadora: Nós temos uma meta anual e fazemos uma prova do SARESP, que os alunos

tem que atingir essa meta. Alunos, professores, isso são todos, né?! Isso é o global. E a nossa

meta era três e cinquenta e oito e nós conseguimos três e cinquenta.

Pesquisadora; Mas foi por pouco.

Coordenadora: E aí o pessoal começou assim: Não, eu não acredito nisso, qual foi o critério?

Eu falei: Gente, o critério só o governo sabe, nós não podemos nem discutir isso. É que nós

não chegamos lá ainda e ponto final, gente. Tem que trabalhar isso mais.

Pesquisadora: Isso é transparente para vocês, essa coisa do critério?

Coordenadora: Não. Nada é transparente. Eles colocam a meta e depois dão o resultado.

Pesquisadora: Eles mesmos estabelecem as metas?

Coordenadora: Isso. E eles não dão nem o retorno, o feedback, para nós sabermos o que

erramos. Isso é muito ruim. Isso, eu sinto, assim, a angústia dos professores. E todo mundo

200

naquele clima... Ficamos sabendo sexta-feira e aí foi um final de semana horrível, chegou

ontem e alguns professores comentaram também, hoje eu já ouvi, mas aí eu vim pensando,

não hoje especialmente, mas assim, não conseguimos, vamos tentar trabalhar de uma outra

forma, vamos ver em conjunto o que a gente pode melhorar. E hoje eu tomei o ônibus ali na

P. P., em frente ao hospital P. subiu no ônibus a mãe e o cadeirante, um menino aparentando

uns nove anos, é, também aparentando paralisia cerebral, porque não mexia braço, perna,

nada, só olhava para cima. Quando ele entrou, aí eu fiquei pensando assim: Meu Deus!

Primeiro eu agradeci, pelas minhas pernas, pelos meus braços (professora se emocionou),

depois pela minha sabedoria, porque, olha uma criança daquela, quem que vai estar por ele, se

a mãe dele falece quem vai estar por ele na vida?

Pesquisadora: É verdade.

Coordenadora: E aí você se depara assim, vem para cá e professor reclamando: Ai que saco,

tenho que vir enfrentar essa sala, é, tô cansado. Quer dizer, reclama por pouco. Tem

sabedoria, tem formação, tem trabalho e aí reclama demais. E aí isso me emocionou e

comecei até a chorar dentro do ônibus (coordenadora se emocionou novamente). Depois

segurei e tudo, mas é porque eu estou assim mesmo. Aí, vim pensando nisso. Nós reclamamos

muito, muito e aí: obrigada pelo meu trabalho, assim, por tudo. Enfim, estou desabafando

isso, porque...

Pesquisadora: Não, imagina, eu entendo.

Coordenadora: E vou colocar isso no HTP hoje. Eu falei: eu preciso falar isso com eles,

preciso fazer eles refletirem na importância do trabalho deles. Obrigada pela vida, porque eu

tenho sabedoria para chegar até aqui, tenho trabalho, né? E eu vou colocar. Se tiver uma

oportunidade eu vou colocar, mas para eles refletirem, para eles pararem de reclamar um

pouco. Eu também reclamo, mas eu...

Pesquisadora: É do ser humano, a gente tem momentos que...

Coordenadora: Mas a gente tem que segurar, a gente tem que ser mais firmes e pensar que,

olhar para trás e, tem muitas coisas piores, muitas por aí. E isso acho que foi para mim, para

que eu possa passar para eles e aconteceu isso hoje, dentro do ônibus. Acredito nisso.

Pesquisadora: Olha, você estava falando dessa coisa de vocês terem meta, aí vocês, acho que

fica uma chateação, um clima, enfim, desagradável.

201

Coordenadora: É como se você não tivesse trabalhado o ano inteiro, para não conseguir

atingir aquela meta, sabe?

Pesquisadora: E isso é uma coisa que, assim, vamos dizer, é meio contagiante. Fica todo

mundo...

Coordenadora: Ah sim, e no ano passado nós já não recebemos também, porque a meta era

4,60 e aí nós não conseguimos, essa meta abaixou para 3,58 e esse ano nesse ano nós

conseguimos 3,50. Então, está todo mundo assim, muito, talvez vocês vão sentir isso um

pouco no HTP. Então, até para se preparar e tudo, porque eu tenho que me preparar

psicologicamente para falar isso também, mas para deixar isso claro que a gente está aí e tem

o trabalho e vamos trabalhar.

Pesquisadora: Vocês agora fazem uma retomada disso?

Coordenadora: Sim, no mês de julho, que é o nosso replanejamento, é..., vêm os dados já

formalmente, porque agora nós temos via terminal só e não temos os dados corretos assim.

Corretos que eu digo, parte de língua portuguesa, matemática, vem uma porcentagem de

quanto vem abaixo do básico, quanto vem no básico, o que nós temos que melhorar.

Pesquisadora: Agora é uma informação mais geral?

Coordenadora: Isso, mas não vem específico o que a nossa escola errou nessa prova, o que os

alunos pecaram e o foco onde a gente tem que trabalhar melhor, isso não vem. Nós é que

temos que reformular isso e trabalhar isso em meio às atividades, mas isso só em julho.

Pesquisadora: E aí vocês ficam só meio ano trabalhando com a meta?

Coordenadora: Não, não. Isso é anual. Agora o erro ninguém sabe até agora onde foi

Pesquisadora: Então, por exemplo, vocês receberam a meta de que a escola deveria pontuar

3,58 em que época do ano passado? No começo do ano passado?

Coordenadora: No começo do ano passado. Era mais ou menos agosto. Agosto, setembro. Aí

nós tivemos final do ano, o SARESP é feito em novembro e aí é computadorizado todos os

dados, tudo sai agora em março o resultado. Então, nós ficamos ansiosos o mês de dezembro,

janeiro, fevereiro e março.

Pesquisadora: Entendi. Então você trabalha o ano todo independente de meta?

202

Coordenadora: Independente de meta, claro.

Pesquisadora: Mas a meta só vai vir mais para o final do ano, vamos dizer assim, lá para

agosto que é um período próximo a avaliação.

Coordenadora: Isso.

Pesquisadora: Ah, agora eu entendi.

Coordenadora: É anual, o nosso trabalho é anual, porém esse retorno do que foi, do que não

conseguiu atingir são só números para eles e para nós não, nós queremos ver aonde nós

erramos e isso não vem para nós.

Pesquisadora: E quando que você como coordenadora vai ter então esse resultado: olha nossa

fragilidade foi maior aqui ou ali. Quando que você vai saber disso para fazer um trabalho mais

voltado, mais específico?

Coordenadora: Então, em julho nós temos o replanejamento. É aí que vêm os dados concretos,

vem as porcentagens do nível básico, abaixo do básico, adequado e avançado. São o quatro

níveis. Em cima dessas porcentagens: Olha aqui nossa porcentagem de avançado, olha aqui

nossa porcentagem do básico, então, precisa aumentar esse básico pra chegar lá no bom.

Pesquisadora: Então, tecnicamente, vocês só trabalham meio ano em cima desses dados.

Coordenadora: Isso. Agora, anualmente o conteúdo, desde fevereiro trabalhamos o conteúdo,

existe né, as expectativas de aprendizagem dentro do “Ler e Escrever”. É trabalhado anual.

Agora, em nível de números eu só posso dizer para eles que pecou um pouco em julho, no

replanejamento, mas o que a gente quer mais é aonde esse avançado ou básico errou. Existe

uma prova, existe uma tabulação, quer dizer, onde erramos mais? Isso não vem para nós. Nós

temos que trabalhar e esperar que em novembro venha o próximo SARESP e nós podemos

tentar melhorar.

Pesquisadora: Vocês só suspeitam qual é a maior fragilidade. Vocês supõem: olha, nossa

maior fragilidade é essa aqui e vamos trabalhar com isso. É isso que vocês fazem na primeira

metade do ano?

Coordenadora: É.

Pesquisadora: É só para eu entender.

203

Coordenadora: Tudo dentro do currículo, né?

Pesquisadora: Só para eu entender como funciona a lógica dessa avaliação.

Coordenadora: Então é um critério muito jogado do Estado, é, você não tem, você não sabe se

você pecou, por exemplo, aqui nós temos uma escola totalmente periférica e onde

semanalmente nós corremos, entre aspas, atrás dos alunos, porque, se ele falta três, quatro

dias, nós temos que ir atrás para saber o que que está acontecendo e aí não conseguimos entrar

em contato, porque o telefone não existe mais e porque troca o chip do celular cada uma

semana e aí você fica com esse ponto de interrogação e não sabemos se isso também

prejudica a escola em nível de evasão, porque a gente tenta, é, de uma forma, assim, bem

concreta não deixar essa parte evasiva dos alunos, a gente tenta resgatar isso. Uns, por

exemplo, param agora de vir em abril, só vão retornar em junho e a gente não sabe o que foi

que aconteceu.

Pesquisadora: Mas aí como é que fica?

Coordenadora: Não pede a transferência, não vem dar satisfação na secretaria. Então, também

nós sabemos se esse índice, que é um índice, a meta que nós temos que atingir fica

prejudicado devido essas particularidades de alunos e frequência.

Pesquisadora: E quando se faz essa avaliação não se leva em consideração dados que a escola

fornece como esses, por exemplo. É só o desempenho do aluno?

Coordenadora: Isso. Para você ter uma ideia uma escola centralizada ele é nivelada por uma

escola periférica, onde a clientela é totalmente diferente. Então, é claro que aquela escola

centralizada vai ter um maior controle, ela vai conseguir, porque existe uma frequência,

porque existe a participação dos pais. E uma escola periférica, onde o pai deixa a criança aqui

às sete horas da manhã e só chega às onze da noite. Então, é muito discrepante e eu acho que

a revolta toda também é essa, nivelar no mesmo patamar uma escola que tem tantos

problemas, que encontra esses problemas, muitas vezes não consegue resolvê-los, porque não

tem dados, e a outra, que é centralizada, que chega até o pai e consegue ter um

acompanhamento e essa consegue e essa (C.) não consegue devido essa discrepância. Então, é

difícil entender isso e aí você trabalha do mesmo jeito, você tenta trabalhar, você desenvolve

o currículo, mas não é suficiente para o que eles querem, né?! O que nós queremos é que eles

saibam o currículo e o que o governo na verdade quer é só números, eles querem dados

positivos.

204

Pesquisadora: E aí, diante disso que você está me dizendo, como é que você faz então para

pensar na formação dos professores, porque o espaço que vocês têm semanal do HTPC é um

espaço de formação?

Coordenadora: Isso, e é muito pouco para mim, é pouco.

Pesquisadora: Pouco.

Coordenadora: Então, eu vou assim, na formação do Ler e Escrever que eu tenho

semanalmente as informações, o material eu adequo a nossa necessidade.

Pesquisadora: Essa formação do HTPC é separada da do Ler ou é o mesmo espaço?

Coordenadora: Não, é separada.

Pesquisadora: Então, além do HTPC, que vocês têm semanalmente, ainda tem outro espaço de

formação que é o espaço do Ler? É isso?

Coordenadora: Não. É assim. O ano passado era assim. O professor que fazia o Ler e Escrever

tinha quatro horas a mais que essas duas horas de HTPC. Então, ele tinha quatro horas para

estudo, preparação de atividades e esclarecimento de dúvidas.

Pesquisadora: E nesse período de quatro horas semanais ele ficava na escola?

Coordenadora: Na escola. Fora do período dele.

Pesquisadora: Entendi.

Coordenadora: E era eu que formava.

Pesquisadora: E era opcional para o professor?

Coordenadora: Opcional para o professor. Infelizmente eu digo até, porque esse ano tiraram

essas quatro horas. Um espaço rico de estudos, um espaço aonde os professores trocavam com

maior intensidade problemas e atividades direcionadas àqueles alunos com dificuldades e eles

esse ano tiraram. Então, eu coordenadora, só tenho duas horas – nem hora é mais, são

cinquenta minutos cada uma - eu só tenho dois dias de cinquenta minutos para formar esse

professor. Então, se torna uma coisa mais difícil para mim, porque eu recebo a formação lá

semanalmente, oito horas, eu fico a sexta-feira inteira lá na diretoria ou numa outra escola,

onde eles queiram se reunir, recebo essas informações e cobranças, muitas cobranças e aí eu

205

tenho que adequar ao meu professor nesses dois dias devido, de acordo a necessidade. É

muito difícil isso, se tornou mais difícil, já era e se tornou mais. Então, eu venho trazendo

para eles assim muitos estudo de leitura primeiro e em cima dessa leitura uma reflexão na

prática deles, a importância do ato de ler, principalmente. Se nós queremos formar um aluno

leitor, nós temos que ter um professor leitor e o professor, eu também sou professora, fala que

não tem o hábito de ler, ele não estuda antes. Essas quatro horinhas que teríamos aí, como

tínhamos no ano passado e poderia ter esse ano, justamente era para isso, é para ele ter um

tempinho a mais para ele estudar, vai falar que ele vai estudar em casa, ele não vai estudar em

casa, gente. Ele dobra período, ele tem os seus afazeres, ele tem a sua família, ele não vai

parar uma hora, duas horas do seu dia para ler, ele não vai fazer isso e é isso que eu tenho a

maior dificuldade de trazer para nós, para o grupo, é, a importância da leitura, do preparo,

para depois a aplicação.

Pesquisadora: E você sente que quando você consegue fazer esse trabalho ele faz diferença na

prática?

Coordenadora: É, já começou, já começou esse mês de março. Primeiro eu recolhi os

materiais e me adequei a necessidade do professor. Então, eu fiz assim, primeiro que mostrar

para eles, nós temos que estudar a importância do ato de ler. Então, eu trouxe um capítulo de

um livro que é do Paulo Freire, “a importância do ato de ler”. Fizemos uma leitura

compartilhada e trouxemos isso para a nossa realidade. Isso eu fiz, consegui fazer isso em

dois dias, um nós lemos e no outro nós discutimos. É... desde a sua infância qual seu contato

com a leitura? Vem resgatando isso. Um trabalho de formiguinha, né? Qual seu contato com a

leitura? Como que era sua leitura?

Pesquisadora: Você conhece um livro que se chama “Como um romance”, de Daniel Penac?

Coordenadora: Não.

Pesquisadora: Vou depois dar os dados para você. Ele é bem interessante, ele fala que toda

criança, toda pessoa gosta de ler e que, quem mata esse desejo natural nosso de ler é a escola e

a família. Aí ele vai dizer porque, vai dizer a gente impõe a leitura como castigo, etc e tal. É

bem interessante.

Coordenadora: E eu, de uma certa forma, não que esteja, você falou de castigo agora e eu até

pensei, não é que eu esteja castigando o professor.

206

Pesquisadora: Sim, sim. É diferente.

Coordenadora: Minha obrigação é de formar, então, eu tenho que mostrar pra eles, de uma

forma é, lúdica, sincera, que eles precisam ler, precisam estudar. Eles têm que organizar um

pouco mais o tempo deles para isso. Tanto que, nos meus HTPC’s, às vezes as pessoas que

fazem dois no mesmo dia eu preciso da rotina deles. É aí o momento onde eles se agrupam

por ano/série e que montam a rotina semanal, que todos, dentro de uma forma unificada

dentro da sua realidade, vão trabalhar as atividades para atingir quem? Os alunos com maior

dificuldade. Então, eu dou dois espaços para eles. Eu cobro primeiro a leitura, o estudo e

depois eu dou esse espaço para que eles tenham essa troca. Professor precisa ter essa troca.

Pesquisadora: E você sente que o resultado disso é positivo?

Coordenadora: Ele é satisfatório, ele é satisfatório, porém ele é pouco, muito pouco para a

nossa necessidade.

Pesquisadora: Certamente.

Coordenadora: Então, duas horinhas duas vezes por semana é pouco para aquele professor se

dedicar na rotina. E, olha, todos os terceiros anos vão seguir essa rotina. É impossível. É um

exemplo, só. Cada terceiro ano tem a sua dificuldade, a sua rotina em sala de aula, mas o

professor se adequa a isso. De repente, aquilo que deu certo para o terceiro A, não está dando

certo para o terceiro B, mas o que o terceiro A pode ajudar o professor do terceiro B a tentar

chegar só a cinquenta por cento daquele ideal? Pra isso o HTPC, eu acredito. “Hora de

Trabalho Pedagógico Coletivo”. Eu preciso cobrar sim porque eu sou cobrada, eu preciso

mostrar pra eles a importância, sim, eles chegam no HTP (dizendo): “Ai, que saco!”, “Ai, tem

que fazer HTP”. Tem, tem que fazer. Isso está na sua carga horária, isso está no seu currículo

e aí, toda semana eu tenho que me motivar, eu também tenho que estudar, não tenho tempo

para estudar, eu passo nove horas aqui dentro, levo trabalho para a minha casa. Não tenho

filhos, porque eu acho que se eu tivesse..., não problema, mas, menos uma possibilidade para

estudar. Esse texto eu vou dar sequência, então, esse texto eu vou chegar lá amanhã e vou tirar

a cópia para eles, porque eu vou estudar com eles no HTP. Mas ainda é muito pouco e com

essas quatro horas que existia eu tinha o meu espaço também para estudar junto com eles e

hoje eu não tenho mais.

Pesquisadora: É, porque esse espaço agora se incorpora a sua rotina aqui na escola e você

acaba fazendo outras coisas. Não para fazer a formação, então faz outras coisas.

207

Coordenadora: Então, eu não posso fechar a porta. Você acha que eu posso fechar a porta

assim para estudar?

Pesquisadora: Imagino que não.

Coordenadora: O quê? Aqui eu não consigo.

Pesquisadora: V., nós estávamos antes falando um pouco da sua formação, eu queria retomar

isso com você. Você estava me falando que fez pedagogia e depois letras.

Coordenadora: E depois eu vi a necessidade e fiz letras, que eu gosto muito e atuo na área de

português e inglês, como PEB II, que é Fundamental II e Médio.

Pesquisadora: Então, você, além da coordenação, ainda dá aula?

Coordenadora: Não. Dentro da carga horária eu sou professora de PEB II e sou designada ã

coordenação de PEB I.

Pesquisadora: Entendi.

Coordenadora: E gosto muito. Vim pra cá, trabalhei oito anos no R., como PEB II e vim pra

cá, passei por uma entrevista, fiz uma dinâmica com os professores, me apresentei, porque

naquela época era voto. Não sei nem se é bem essa palavra, mas eu gostei mais da proposta

dela, então vamos votar. E aí passei aqui, conheci a E. a L., o A. na época, que era o outro

vice-diretor e apresentei a minha proposta e nunca, nunca não, eu havia trabalhado com PEB I

seis meses e depois eu fui para PEB II. Então, eu não tinha muito essa realidade. Quando eu

cheguei aqui é que eu percebi a dificuldade, primeiro do aluno de primeira à quarta e como

ele chega na quinta série em diante. Então, antigamente eu tinha uma realidade de quinta série

e falava: - Puxa, por que o aluno não aprendeu nada em quatro anos? Por que ele chegou aqui

e não conseguiu e não consegue desenvolver? E hoje eu penso totalmente diferente. Ele já

chega com defasagem no primeiro aninho e se não for trabalhado bem nesse primeiro aninho,

ele carrega isso para a vida escolar dele inteira. E aí, foi em cima disso que eu comecei a

trabalhar. Fui atrás, busquei, eu costumo dizer que eu vim de peito aberto mesmo, porque eu

nunca tinha assumido nada. Eu tinha sido vice-diretora um ano lá no R., mas vice-direção é

totalmente diferente. Embora você esteja envolvida, mas você não está direto com o

professor. E aí eu vim para cá e de peito aberto encarei essa missão e acredito que seja uma

missão mesmo, porque não é fácil você dividir. Eu tenho trinta e sete professores, cada um de

um jeito, cada um fala o que quer e ouve o que ele quer também. Então, eu tenho que saber

208

conversar com cada um, saber cobrar de cada um. Vem um e diz aqui: “Olha, eu não posso

ficar hoje no HTP, porque eu tenho consulta médica, porque eu tenho..., né?” “Professor, mas

o senhor sabe que tem que ser feito aquilo, aquilo.

Pesquisadora: Existe um controle, um registro, do professor que faz o HTPC?

Coordenadora: Eu que registro tudo. Eu ainda não consegui passar isso para eles. Olha, hoje

vocês vão registrar.

Pesquisadora: Mas eu digo até, assim, registro de presença.

Coordenadora: Do professor? Tem, tem. Eu tenho que colocar falta. É aula para ele. Ele está

ganhando por isso.

Pesquisadora: Entendi.

Coordenadora: Então, ele vem aqui e fala. Você viu a professora que veio aqui? “Olha, eu

preciso ir ao banco”. É, mas ela está com tantos problemas, já. “Preciso ir ao banco, me

cobraram indevidamente.” Prô, eu precisava muito que você participasse hoje do HTP, mas...

se você não consegue...”. Ela vai perder e é uma professora que precisa ouvir. Ela está com

muito problema, ela está trazendo isso para o aluno, ela é professora de educação física, uma

matéria que eles gostam tanto, eles amam e esperam a semana inteira pelas duas aulinhas de

educação física e eu tenho observado que ela está mais agressiva com os alunos, ela está sem

paciência. É uma professora que necessitava de estar ouvindo tudo isso que vocês vão estar

falando ou alguma dinâmica. Precisa pensar. Parar e pensar. Você viu o que eu falei? “Tudo

bem, prô. O que eu vou fazer? Gostaria muito”. E eu sou obrigada a colocar a falta para ela,

porque ela não está presente. E aí isso gera... “Pô, vai colocar falta para mim, mas eu te dei

satisfação, meu motivo é justo.” “Você me deu satisfação, mas acontece com todo mundo”. O

que que eu vou fazer? Claro que existem suas, suas idas e retornos, né?! Por quê? Professor

que a gente percebe que está... Eu não posso fazer diferença com nenhum deles. É falta para

um é falta para todos. Mas, o modo que vem a abordagem para a gente, a satisfação é

diferente. “Olha, eu estou assumindo hoje a minha falta, por isso, por isso e por isso, porque

eu não estarei aqui, porque eu não vou ficar.” Agora, não chegar assim e, ou alguém que nem

me dá satisfação, sem falar nada, como é que eu vou saber? Eu tenho que fazer a minha parte

e o HTP é pouco, é pouco tempo de formação. O professor necessita estudar, parar, ler. Nosso

planejamento foram três dias, certo?! Sete, oito e nove de março. Eu fiz leitura os três dias

209

com eles. Leitura, discussão, prática. Uns: “De novo, isso?”(risos) “De novo, isso?” “De

novo, isso!”

Pesquisadora: E eles propõem alguma coisa diferente?

Coordenadora: Não, não. Eles só dizem assim: “Nós temos que ver a nossa realidade, a

realidade é outra” “Professor, pensa naquilo que você está lendo, naquilo que você está

estudando pra sua realidade”.

Pesquisadora: Com isso ele está querendo dizer... (coordenadora interrompe)

Coordenadora: Ele quer fórmula.

Pesquisadora: Você acha que ele está querendo dizer que o que se estuda, que se lê é muito

distante do que ele vivencia na sala de aula?

Coordenadora: Não, eu acredito que ele quer fórmula pronta e isso não existe. Porque se eu

tivesse, eu chegaria aqui hoje, colocaria uma varinha assim, ó, e estaria tudo prontinho. Então,

eu cheguei aqui hoje, como eu disse para você, com toda a expectativa, minha rotina, meu

cronograma e a rotina me engoliu. Aí eu tenho que me adequar a isso para uma realidade que

eu tenho daqui a pouco com trinta e oito professores e eles acham: “De novo, isso? Nós

vamos ler de novo isso?” “Tem, tem que ler”. O professor tem que entender que ele tem que

ler, que ele tem que estudar. Trazer isso para a prática.

Pesquisadora: E você acredita que, digamos, a médio, a longo prazo, isso tem um efeito?

Coordenadora: Tem, tem.

Pesquisadora: Sua experiência tem mostrado isso.

Coordenadora: Eu acho que todo, é, eu acho que tudo mesmo é, vamos dizer, insistência.

Você vai insistindo de acordo com a necessidade. Você vai e pega daqui, pega um pouquinho

ali. Você puxa, no bom sentido, a orelha de um aqui, o outro já sente lá.

Pesquisadora: Essa necessidade (de formação) você que faz um levantamento dela ou sempre

o HTPC é o que você recebe da Diretoria de Ensino e passa para os professores?

Coordenadora: Foi isso que eu disse. Eu recebo a formação e dentro dessa formação eu me

adequo a necessidade aqui dentro. Então, eu vejo, eu percebo o professor me traz isso, eu olho

as salas, eu pesquiso cadernos, porque que aquele aluno não está aprendendo. Então, em cima

210

disso desse dado, é que eu tenho que adequar aquilo que eu ouço lá, pra vir pra cá, pra trazer

isso para eles.

Pesquisadora: E você faz o filtro?

Coordenadora Isso! Era o que eu ia falar agora. Nem tudo que eu ouço lá eu posso dizer aqui.

Porque eu ouço lá muita parte teórica, totalmente diferente da nossa realidade e então eu

tenho que me adequar a isso. Não posso jogar isso para eles: “Se virem”. Não é assim. Eu

tenho que dar respaldo. Eu tenho que cobrar, mas eu tenho que dar respaldo. Então, nunca um

professor chegou aqui na porta, bateu ou entrou e eu falei: “Da licença, professor, agora, não.”

Eu nunca fiz isso. Isso eu estou falando com a maior sinceridade. Olha, eu já ouvi um grito lá,

do professor (risos). É, porque o professor necessita disso, ele precisa falar. Então, às vezes

ele senta aí ou me chama na sala é pra falar, falar, falar, desabafar, desabafar e dentro daquela

realidade eu tento pensar como é que posso ajudar aquele professor. Isso de uma forma

individual e até coletiva, porque tem o professor que caminha muito bem. Ele sabe a proposta,

ele sabe o currículo, ele consegue dominar a sala, ele consegue atingir os alunos e tem um

resultado bom. E tem o professor que ele precisa de orientação, ele precisa de uma ajuda

psicológica (risos) não sou psicóloga, mas..., acabo me colocando no lugar. Ele precisa ser

ouvido, ele precisa de um respaldo. Às vezes ele está muito, assim, tá fora. “Você pode ficar

aqui um pouco? Eu preciso sair, respirar.” Fico lá com os alunos. E aí, tudo para ter um bom

resultado. Então, eu tenho os extremos, assim. Aquele que precisa mais, eu tô acolhendo mais.

Aquele que eu vejo que pode caminhar, claro, de uma certa forma. “Você precisa de alguma

coisa?” ”Precisa de uma certa..., precisa de alguma coisa?”, eu também não posso deixar ele

só, porque ele caminha bem, eu não posso deixar ele, então, eu tenho que ouvir. Nunca

ninguém entrou aqui e eu falei não. Às vezes ele vem chorar aqui. Chorou, chorou e eu aqui,

firme (risos).

Pesquisadora: Então, além de ser uma referência, do ponto de vista pedagógico, acaba sendo

um pouco conselheira, um pouco o ombro amigo.

Coordenadora: Precisa, senão não ele não trabalha bem. Ele está angustiado, ele está

mordendo lá por dentro e como é que ele vai passar algo bom para quarenta que estão dentro

da sala? Então, a gente precisa ter muita, muita, paciência e eu sempre falo: “Puxa, eu ouço

um, ouço o outro, mãe veio aqui já querendo desabafar, sentou aqui, falou que tinha uma

doença, que queria falar comigo. Quando ela falou isso pra mim. “Eu saí da minha casa, eu

não tenho ninguém, não tenho vizinho.” Ela chegou aqui e começou a falar: “estou com uma

211

anemia profunda, não sei como é que eu vou, não estou conseguindo acompanhar os meus

filhos, estou preocupada com os meus filhos.” Desde isso até um professor que chega aqui e

fala: “Eu hoje, minha manhã foi tão complicada, aí, nossa, eu estou tão cansado.” Tem uma

que chega aqui: “Ai, eu não estou aguentando aqueles alunos da prefeitura.” Eu fico lá, ouço:

“Prô, tenta se concentrar agora no seu trabalho, esquece o que passou, eles estão aí, eles não ,

eles não bateram lá na sua porta “professora, vai dar aula pra mim” foi você quem escolheu

eles. Então, eles estão aqui esperando tudo de bom de você.” Aí a professora acalma e tenta

renovar de novo. Aí eu falo: “Puxa, eu ouço um, falo com outro, ouço e é lamentação. Hoje,

você que me ouviu. Por que quem é que vai me ouvir?

Pesquisadora: É verdade, foi o que eu pensei agora.

Coordenadora: Quem é que vai me ouvir. Pai vem aqui, mãe vem aqui, criança. Você viu a

criança? Só precisei conversar, bater um papo, sai da sala e bate um papo com ele. A

inspetora fica lá, mas olha, bate um papo assim: “Eu sou sua professora, eu quero te respeitar,

me respeita e eu te respeito também.” Você tem que resgatar isso.

Pesquisadora: E você falando disso me fez pensar em uma coisa. Pode ser que muito do que

chega aqui para você como, por exemplo, o caso dessa criança que você acabou de citar, que

nós vimos, poderia ter sido resolvido lá e, talvez, não ter chegado aqui na coordenação.

Coordenadora: Poderia. Poderia. Não que eu sou salva-vidas. Eu me considero uma pessoa

cheia de defeitos, cheia de atribulações que eu não consigo, às vezes eu me sinto uma inútil,

estou sendo muito franca, que eu passo as nove horas aqui, vou para a minha casa e penso: eu

não fiz nada do que eu tinha que fazer hoje. Já chorei muito, já desabafei com o meu esposo,

ele pergunta: “como foi hoje lá?” “Ah, você quer saber? Senta aí que você vai saber.” Ai

desabafo, desabafo. Aí parei e pensei, ele também me disse isso: “V., você não é sozinha,

você depende de uma equipe e quando a equipe não está junto, você não consegue abraçar

tudo sozinha”. Aí foi amadurecendo isso, porque é real. Eu não consigo abordar mil e cem

alunos. Eu não consigo entrar lá no íntimo de trinta e sete professores, eu não consigo

sozinha. Eu preciso de uma equipe, eu preciso de uma colaboração, uma visão diferente, uma,

de professor mesmo. Eu acho que todo mundo, todo professor, tem que passar pela

coordenação, pela vice-direção e pela direção. Todos. Pelo menos trinta dias. Para sentir.

Pesquisadora: Depois de ter passado pela sala de aula.

212

Coordenadora: Sentir o que eu estou sentindo, que quando eu estava dentro da sala de aula eu

perguntava: “- Nossa, mas por que esse aluno chegou na quinta série e não consegue aprender

a ler e nem escrever?”. Aí eu vim para uma realidade e vi e percebi que a situação é outra.

Todo professor tem de passar pela coordenação, pela vice-direção e pela direção, porque é

muito fácil você criticar o trabalho do outro, desde quando você não vivencia aquilo e a maior

dificuldade do ser humano é se colocar no lugar do outro. Essa é a maior dificuldade. Todo

mundo pensa só no seu problema, no seu umbigo e esquece do umbigo dos outros (risos).

Pesquisadora: Então, você está há quanto tempo como coordenadora?

Coordenadora: Seis anos.

Pesquisadora: Seis anos como coordenadora. E nessa escola há seis anos também?

Coordenadora: Seis anos. É. Isso.

Pesquisadora: Qual sua experiência anterior com esse tipo de trabalho de coordenação? De

coordenação, não, né? Sua experiência anterior...

Coordenadora: Eu assumi aqui, faz seis anos de coordenação e nunca havia, na coordenação,

não. Eu fiquei um ano na vice-direção lá do R. e em sala de aula

Pesquisadora: Tá. Então você tinha uma experiência de oito anos em outra escola que foi em

sala de aula.

Coordenadora: Em sala de aula.

Pesquisadora: No Fundamental II.

Coordenadora: Isso.

Pesquisadora: E você veio pra cá já para ser coordenadora.

Coordenadora: Isso.

Pesquisadora: Então, assim, essa experiência de sala de aula sua foi fundamental para você

compreender toda essa... é por isso que você está dizendo que é importante o professor passar

pela coordenação.

Coordenadora: Só para a gente sintetizar isso. Lá no R., mesmo em sala de aula eu tinha essa,

esse, essa vontade de ajudar o coordenador. Era o Seu A., eu lembro bem dele, professor de

213

história e eu ajudava ele a preparar o HTPC. Ajudava assim: “O senhor quer que eu ajude em

alguma coisa de texto, o senhor quer que eu tire xerox, quer que eu leia?”. E ele me pegou

para isso. Então, foi uma experiência boa. Eu comecei assim a perceber que eu tinha o dom,

não sei, para aquilo. Então, de abordar, de preparar a sala, esse ambiente. Ele falava: “Não,

deixo com você.” Era um senhor de idade já e tudo. Então, eu tinha essa iniciativa.

Pesquisadora: Além dele alguém mais foi marcante para você nessa sua experiência

profissional anterior?

Coordenadora: Então, foi essa diretora que um dia me falou: “Será que você vai dar conta?” E

aí ela me foi jogando desafios, desafios. Não é que eu coordenei, eu organizei. Não sei se

você já ouviu falar a “Caminhada da Paz” que a dona E., que já foi dirigente da Norte I, ela

organiza uma caminhada da paz aonde montou um livro, eu trouxe até esse livro para mostrar

para os professores. Ela montou um livro sobre a paz. Será que está aqui? E ela me ajudou

nesse sentido, assim, onde os alunos da escola como eu era, era não, sou professora de letras,

então eles formavam e elaboravam versos, estrofes, poesias e nós montamos, do R., um livro

sobre a paz, os alunos.

Pesquisadora: Que interessante.

Coordenadora: E quando ela foi para a diretoria, ela montou esse de todas as escolas.

Pesquisadora: Que legal!

Coordenadora: Então tem todos os alunos, parte deles, uns já se formaram. Está aqui no livro

a poesia deles e tudo. E eu ajudei ela a desenvolver esse trabalho lá no R. Isso foi oito anos de

trabalho dentro da sala de aula, fazendo projeto. E aí, depois eu vim pra cá.

Pesquisadora: Então você trabalhou nessas duas escolas. Essa de agora e na anterior.

Coordenadora: E o que me marcou foi isso, foi ela me apresentando desafios e eu fui atrás e

fui buscando. O vice-diretor disse que eu tinha perfil. Depois de uns cinco anos que eu estava

lá ele disse para mim: “Você tem todo o perfil de direção, de coordenação. Você não quer

montar a proposta?” Eu falei: “Nossa, mas será que eu...” A princípio eu fiquei até meio

assustada. Ele falou assim: “Tem o C., tem outras escolas. Você monta a proposta.” E eu:

“Mas em cima de quê, de primeira a quarta, que eu não vivencio isso, né?!” E ele falou assim:

“Não, é para ajuda dos professores”.

214

Pesquisadora: Porque você não fez magistério no ensino médio, né?!

Coordenadora: Não, não. Eu fiz normal, né, e parti para a faculdade.

Pesquisadora: Tá.

Coordenadora: E aí eu fiz a proposta, pensando na alfabetização, pensando nos alunos,

pensando em ajudar os professores. E assim eu fui votada, de uma certa forma, para a

coordenação.

Pesquisadora: E aí eu até aproveito para te perguntar como você descreve essa sua função de

coordenação. É claro que, anteriormente, você já falou uma série de coisas para mim, mas

quem sabe você retomaria isso agora, sintetizaria, enfim, como você descreveria sua função

de coordenadora?

Coordenadora: Olha, eu tenho uma responsabilidade muito grande em relação a professor e

aluno, porque eu tenho que formar esse professor, para esse professor formar esse aluno. E

quando você lida com cabeças formadas, personalidades formadas é totalmente diferente

quando você entra numa sala e você vai formar aquilo, o aluno junto. Então, o meu papel

maior é mostrar para esse professor, fazer com que esse professor reflita sobre a prática dele e

que seja a melhor, a melhor que ele conseguir. Não depende só dele também.

Pesquisadora: Claro.

Coordenadora: Depende do aluno, da família do aluno, de todo um processo, mas que ele tem

que rever isso. É o que eu estou tentando fazer nesses seis anos. Porque as pessoas, às vezes,

pensam assim: “Ah, mas você já está há seis anos, você já está acostumada com o grupo.”

Não é assim, eu não posso estar acostumada, eu tenho que cutucar sempre, porque senão eles

acostumam comigo e aí, não vai dar certo (risos). Então, tem professores que dizem: “Nossa,

você mudou, né, esse ano?”. “Não, não mudei, só estou cobrando um pouco mais, eu só estou

mostrando um pouco mais, por que estão me cobrando, eu preciso ter resultados. A minha

parte pedagógica são resultados.”

Pesquisadora: Como você se sente diante disso? Porque aí, tem uma coisa que é uma pressão

também. Por um lado você tem essa consciência, essa noção do que você, da sua função como

coordenadora, mas por outro lado você também tem uma cobrança, você tem resultados que

você precisa apresentar.

215

Coordenadora: Tem números. Eu preciso começar o ano em fevereiro com número X e

terminar, em dezembro com número Y. E como que eu vou chegar nesse professor e mostrar

dados? Eu pego a sondagem que eles fazem, monto gráficos e mostro pra eles a real. “Olha

quantos aluninhos nós ainda temos com dificuldades. Por que isso está acontecendo?”. Claro

que existem os casos específicos. A gente conhece cada um. Tem os cadeirantes, tem aquele

com problema, com dificuldade mental, mas eu preciso atingir esse aluno. E o professor, ele

está avaliando de uma forma correta? Às vezes, não. Tem professor que chega aqui pra mim

com a sondagem do aluno que o professor acha e coloca que ele é silábico sem valor sonoro,

que ele ainda não conhece que cada duas letras ele precisa para formar uma sílaba. Ele precisa

do som de duas letras para formar uma sílaba. Então, o professor vem aqui e fala: “Estou com

dificuldade nesse aluno, olha aqui, não progrediu.” “Prô, como foi que ele leu?”, eu pergunto.

“Como foi que ele leu, ele leu para você?”. Porque o professor tem muito disso concreto, só

números, e letras, e papel, mas a oralidade precisa trabalhar muito mais ainda. O aluno, eu

tenho aluno super inteligente na oralidade e ele não consegue registrar. Tenho esse problema

também. E aí ele chega aqui e eu tento mostrar pra ele que a realidade é outra. Eu nunca vou

chegar e falar: “O senhor avaliou errado.”, porque quem conhece o aluno é o professor. Eu

não estou lá quatro horas por dia, lá, junto com ele. Mas eu tenho que falar assim: “Ele não

melhorou nessa parte aqui? E como que ele leu para o senhor? Então, ele já reconhece isso?

Ele não reconhece?”. E o professor tem ainda um pouco de dúvida e avalia errado, muitas

vezes e desse avaliar errado é que os resultados vão para baixo. Aonde um aluno que ele é,

existem os níveis pré-silábico sem valor, com valor. O aluno pré-silábico é aquele que não

reconhece nada, nem letras, nem números e nem nada. Para o professor o aluno que ainda não

consegue é, é, reconhecer as letras, ele é um aluno pré-silábico, mas ele não é pré-silábico

mais, ele sabe que aquilo é letra, mas ele não reconhece, diferente do aluno que coloca

bolinha, pauzinho, estrelinha, que reconhece símbolos e não letras. Então, eu tento mostrar

isso para eles também, que é a minha função, que tem que ter um novo olhar para a avaliação.

Pesquisadora: E como que você minimiza, resolve, enfim, esse problema do professor?

Coordenadora: Trazendo atividades para eles fazerem.

Pesquisadora: Na formação, no HTPC?

Coordenadora: É. Hoje eu trouxe também. Eu cheguei no final de semana, peguei todos os

meus documentos antigos, lá e tudo, aí eu trouxe para eles, ó, tá vendo? (a coordenadora

mostra as atividades) de capacitações minhas. Então, eu vou tirar xerox e vou dar o exercício

216

para eles fazerem. “Avalie essas escritas”. A partir daí é que eu vou sentir as maiores

dificuldades do professor ainda em avaliar. Então, eu tento trazer de forma concreta a

dificuldade deles, porque que ainda esse aluno..., avalie esta escrita. Ele vai lá, vai ler. E a

leitura, professor, é assim que você faz com o seu aluno, é assim que ele ainda está? Pensa no

aluno J. – supondo, só – ele ainda escreve assim? Então, eu trago a realidade para eles

avaliarem e em cima dessa avaliação é que eu vejo a dificuldade deles também.

Pesquisadora: Entendo. Descreva pra nós, assim, brevemente a comunidade escolar que você

trabalha. O que você sabe sobre essa comunidade, quem são os alunos, quem são os

professores.

Coordenadora: Comunidade escolar pensando em aluno: são muito carentes. Carentes de quê?

De afeto, de atenção. Eles não têm o contato alfabético em casa, os pais, muitos deles não

sabem ler, escrever, saem de manhã sete horas, só chegam às onze. E também temos outros

que os pais acompanham, que sabem ler, que são letrados, é, muitos até fazem faculdade. Nós

temos dois extremos, aquele que só sabe vir aqui na reunião, tadinho, colocar o dedo

(carimbar o dedo para assinar), quantas vezes isso.

Pesquisadora: Analfabetos mesmo?

Coordenadora: Sim.

Pesquisadora: É comum?

Coordenadora: É comum. Você fala assim: “Assina aqui a ficha que você veio para a

reunião.” “Eu não sei assinar.” Aí você tem que pegar a carimbeira, ele vai lá, coloca. É

difícil, é muito difícil. Então, como o aluno não tem esse contato com a leitura em casa,

ninguém lê para ele, ninguém lê junto com ele, ele não consegue desenvolver também isso e é

na escola que ele vai desenvolver. Então, é nesse sentido de carência que eu falo, carência

afetiva, carência social. Então, é onde a escola, ela está com a função de suprir essa

necessidade. Ela supre cem por cento? Nunca vai acontecer. Ela vai suprir, que seja lá, setenta

por cento. Os outros trinta depende da vida deles social. Então, é uma comunidade difícil, nós

estamos cercados por duas favelas, né? Não que favela vá denegrir ninguém, não é isso, é a

condição social totalmente diferente. O aluno vem aqui de chinelinho, um baita frio, aonde

você tem que fazer um chá quente pra ele, pra ele tentar se aquecer, porque ele não consegue

se concentrar lá na aula, então, eu peço, sapato, meia, roupa para os professores, se os filhos

dos professores podem doar pra deixar de reserva pra um aluno que não tem. Essa é a nossa

217

comunidade, assim, onde você chama os pais e falam assim: “Mas eu trabalho, professora.”.

“Mas eu também trabalho, só que o filho é seu.”. Então, vem acompanhar, acompanha em

casa. Se você olhar todo dia o caderninho o aluno vai se sentir cobrado também de uma certa

forma, ele vai se sentir importante. “Olha meu pai está olhando meu caderno, minha mãe está

olhando o meu caderno.”. Não é só a professora, a coordenadora, a diretora que está

cobrando, que está vendo. É isso que falta na nossa comunidade, acompanhamento. É

totalmente o extremo uma aluno que é acompanhado, que o pai está aqui, ou que o pai liga:

“Eu posso passar aí uma vez por semana, posso passar só para ver como ele está?”. “Pode.”. É

diferente daquele outro que nem na reunião de pais ele vem. Ele passa o ano inteiro sem vir na

reunião e só vem para assinar, em dezembro, a rematrícula, preocupado se esse aluno, no ano

quem vem vai ter ou não a vaga aqui. É totalmente diferente.

Pesquisadora: E os professores?

Coordenadora: Isso, eu vou falar. A nível de professor eu acredito no meu grupo, acredito que

eles são capacitados, que eles são assim, esforçados, mas de uma forma bem sutil é, eu cutuco

para eles se esforçarem um pouco mais. Acho que essa é a minha função, eu tenho que ir

cutucando devagar. “Professor, será que você não podia mudar aqui, será que não seria

diferente aqui?”. Nunca falando pra ele: ”Você não sabe, você não soube avaliar, você não

sabe...”. Isso eu nunca vou falar. “Mas pode ser diferente, não pode professor? E se a gente

fizer dessa maneira? E se a gente tentar dessa maneira?”. Sempre “a gente”, “nós”, porque é

um grupo, eu não posso falar: “você, você...”, não posso. E existe o nosso professor, além de

ser capacitado, ele tem boa vontade, mas eu preciso disso, minha função é essa, pra mostrar

isso pra eles. E tem aqueles que, como eu já disse, não precisa cutucar tanto, por ele próprio.

Essa professora que veio me entregar o livro, ela tem trinta e três anos de magistério, tem

sessenta e dois anos de idade e eu não preciso falar pra ela: “Professora, a senhora está no

sistema que é outro, está avaliando assim, diferente. Ela, naquela época, há trinta e três anos

atrás, ela tinha uma realidade, hoje ela tem outra e não quer se aposentar, ela gosta daquilo

que ela faz.

Pesquisadora: Interessante.

Coordenadora: Então, ao mesmo tempo que eu tenho professores que só estão preocupados

com o governo e com a cobrança e não sei o que, e muitos que já falaram para mim, falaram

para mim, falaram para a diretora: “Eu só estou aqui pelo dinheiro, eu preciso de aumento, eu

quero aumento.”, “Eu não vou para outra área, porque eu não passei em outro concurso.”. Eu

218

tenho o extremo, eu tenho o outro professor de trinta e três anos que gosta daquilo que faz e

está aqui. Ela traz roupas das netas dela, até das bisnetas, que ela já tem duas bisnetas, já, é,

para os alunos, para doar para os alunos. Faz gincana, faz..., gente, eu fico assim, boba. Então,

eu tenho vários, mas no contexto eu tenho que cobrar de todos e tenho que ouvir todos. Em

cada um eu tenho uma dificuldade e eu tenho que atingir aquela dificuldade. Com jeitinho,

com conversa, mas eu tenho que atingir. Mas eu acredito no meu grupo, acima de qualquer

coisa. Eu acredito que todos, dentro das suas limitações, é..., desenvolvem um bom trabalho.

Pesquisadora: Bom, você já apontou isso quando você respondeu a questão anterior que eu

coloquei, mas assim, na sua opinião, quais são as maiores necessidades dos alunos dessa

escola?

Coordenadora: Necessidades pedagógicas?

Pesquisadora: Necessidades. Quaisquer necessidades.

Coordenadora: Olha, você presenciou aqui uma. Primeiro é a conversa, o afeto, o ouvir. Ele

precisa de alguém para ouvir ele também. Ele senta lá na cadeirinha e ouve, ouve, ouve.

Quem o ouve? Ele precisa disso. Muitas vezes a gente está numa rotina, já numa, numa

situação que ele chega e já aprontou. Esses três que estavam sentados aqui, eles aprontaram,

bateram, né?!. Você chega até meio agressiva: “Por que que você fez isso? Você não tem o

direito de fazer isso. Quer que alguém bata em você?”. Mas aí você tenta resgatar neles o

seguinte: qual a função deles aqui, para que eles vem para a escola. Não foi isso que eu

perguntei para a criança? Para tentar fazer ela refletir: “O que eu estou fazendo dentro da sala

de aula? O que eu estou fazendo na minha escola? Para que eu levanto cedo, seis horas da

manhã e venho para a escola? E para brigar? É para responder a professora, é para quê?”. É

para me esforçar, para estudar. Eles sabem. Eles são inteligentes, só que precisa desse resgate.

A necessidade maior, eu acho, é o resgate dos valores dessas crianças. Precisa saber o que eles

têm de bom, para trabalhar junto com as habilidades a desenvolver. E a nível social eu acho

que eles precisam de tudo, francamente dizendo. Tenho alunos que vêm de perua escolar, o

pai paga e tem aqueles alunos que vêm de chinelo de dedo. “– Ah, V., você vai dar mais

importância para aquele que vem de chinelo de dedo, você vai dar mais atenção porque aquele

outro tem uma certa bagagem, uma certa base?”. Não. Tenho que tratar todos iguais. Mas os

problemas acontecem com esses que vêm de chinelinho de dedo, porque já está na vida social

deles. Os outros eu trato bem, a gente conversa e tudo, dou bronca também, mas a realidade é

outra e o resultado também é outro. Então, para que eu possa atingir esse de chinelinho de

219

dedo eu tenho que ter essa conversa, eu tenho que ter essa, esse ouvir. Que o aluno fala: “Ah,

todo mundo me cobra, professor me cobra, direção me cobra, mas, é aí? Aí, fecha assim os

bracinhos? “Não vou fazer, não vou fazer.” “Por que que você não quer fazer?” “Não vou

fazer!” “Fala para mim, porque que você não quer fazer? Você veio aqui para quê?” Você tem

que resgatar isso.

Pesquisadora: Você acha que tem de ter um resgate de valores? Ter uma escuta para os

alunos?

Coordenadora: É. E o professor, eu entendo o lado deles porque eu sou, é, ele não tem tempo

para isso, ele tem quarenta dentro da sala. As salas são lotadas. Como ele vai parar com esse

aluno e deixar os trinta e nove lá? É aí que entra o meu papel também de..., se ele quiser ter

esse, essa conversa com o aluno eu tenho que ir lá na sala, fico lá com os alunos e ele tem

uma conversa particular com ele que deu o problema.

Pesquisadora: Você se dispõe a fazer isso?

Coordenadora: Sim, eu já fiz muitas e muitas vezes. Já dei aula dentro da sala. Faltou

professor, fui eu dar aula para o aluno não ficar sem aula. Complicado, né?

Pesquisadora: Porque você descobre uma outra também... Sua função fica descoberta.

Coordenadora: Totalmente.

Pesquisadora: E do ponto de vista pedagógico, você diria que a maior necessidade deles é?

Coordenadora: Então, quando a gente ouve a gente se põe no lugar e se colocando no lugar, a

gente tem motivação para mudar, para melhorar. Muitas vezes, não, às vezes não dá, mas,

outras acontece isso. “Puxa, então a necessidade dele é mais de afeto? Deixa eu abordar ele

diferente. Deixa eu cobrar ele diferente.”. Não é eu cobrar: “Faça isso aqui agora”. É abordar

diferente, é: “Eu estou aqui para te ensinar, então, tenta fazer, tenta fazer, tenta desenvolver.

Se tiver alguma dúvida, você levanta a mão, você me pergunta, mas tenta”. Aí, até faço isso

com os alunos: “Qual é essa letrinha, qual é essa? Então, agora aqui, o que é que eu formo?”

É um espaço que ela não tem, mas eu tenho um pouco mais aqui. Então, eu tento ajudar o

professor nesse sentido. Ele tem quarenta. Se ele quiser vir aqui, só ele e a criança, pode vir

aqui. Senta aqui e eu fico lá, desde que isso não atrapalhe os outros também, né? Mas

pedagogicamente eu acho que a necessidade ainda é desse professor estudar. Eu sempre falei

isso para eles: estudar, estudar, estudar. “De novo?”. Estudar, estudar, estudar. Eu ouço:

220

“Hum, que saco!” Outra que foi entregar..., essa professora de educação física, foi entregar,

porque eu acho que educação física, artes, também tem que participar, ele está num contexto.

Então, eu entreguei o texto “A importância do ato de ler” e ela fez assim para mim (cara feia),

na minha frente, e é uma pessoa que quer fazer pós-graduação. Aí eu só chamei ela depois que

acabou o HTP, falei: “Prô, eu percebi que você...” – com todo um, uma sutileza, sabe? – Eu

falei assim: “Eu percebi que você, é..., não foi agradável para você essa leitura hoje. O que

que está acontecendo?” “Ah, não, é que tem que ler seis páginas?” Eu falei assim: “Mas, prô,

a senhora não quer fazer pós-graduação? É muita leitura. Para quem quer fazer pós precisa

dessa leitura e não é só a leitura que te agrada é a leitura que é necessária”. Aí ela mudou um

pouquinho, sabe (risos)?! Trouxe ela para a realidade dela. Até com o professor a gente tem

que fazer isso e é o que eu pretendo fazer isso hoje, por exemplo, nesse caso que, nessa

situação que aconteceu comigo no ônibus, reflita um pouquinho sobre isso, não reclame da

sua prática, não reclame da sua sala, não reclama da sua vida: “Ai, tem que ir para a outra

escola”. Não reclame, gente.

Pesquisadora: É verdade.

Coordenadora: Eu tenho que resgatar também o valor do professor. Eu não sou Deus, nunca

vou ser, não quero ser. Eu não sou sabe tudo, toda poderosa. Nunca fui, nunca vou ser. Eu

estou aprendendo a cada dia. Mas eu aprendi a ser mais humilde, a agradecer o trabalho que

eu tenho. Meu esposo fala assim, eu chego, falo das coisas terríveis que acontecem, “muda de

escola” ele fala pra mim. Eu falo assim: “Olha, escola é tudo igual, existem os seus

problemas, mas eu me sinto útil aqui. Se eu for para uma escola centralizada aonde eu não

tenho problema de aluno indisciplinado, aonde eu não tenho dificuldade de falar com o

professor, aonde eu não tenho que ler com o professor, para que que eu vou estar lá? É

diferente, eu não vou só assinar e ganhar o meu salário.

Pesquisadoraa: Você se enxerga útil desenvolvendo um trabalho aqui.

Coordenadora: Aqui. É impressionante, eu só trabalhei em periferia, nessas duas escola, uma

lá em baixo, que é na periferia do C. e outra aqui na periferia do J. P. É assim que eu me

enxergo.

Pesquisadoraa: Interessante. Legal. Bom, eu vou fechar com você aqui, porque, é claro, eu

tenho outras, muitas questões que eu quero perguntar para você, mas eu estou atenta um

pouco ao horário, porque eu sei que o HTPC, que inclusive nós vamos estar juntos. Tem mais

221

um monte de coisa que eu queria perguntar para você, muito legal esse bate papo, a gente

compreende uma série de coisas também, para nós, que estamos desenvolvendo pesquisa isso

é essencial e aí assim, só para a gente encerrar a parte de hoje, eu já vou até pedir para você

que no dia dezessete a gente tenha um espacinho para a gente poder continuar isso e eu até

vou trazer transcrito o que a gente conversou, eu perguntaria para você assim, você me falou

das necessidades que os alunos têm, falou também das necessidades que os professores têm.

Eu queria que você fechasse essa parte de hoje me dizendo quais são os objetivos desta

escola, em linhas gerais.

Coordenadora: O maior objetivo é que a criança aprenda. Nós, nós estudamos para isso, nós

estudamos para isso. Ninguém bateu na sua porta e falou: “Vem, vem estudar pedagogia, vem

estudar letras”. Ninguém fez isso comigo. Então, se eu escolhi isso para a minha vida eu tenho

que tentar desenvolver o melhor possível. E a maior necessidade, o objetivo da escola é esse,

é formar o cidadão e fazer a criança aprender, ler, escrever, ter visão de mundo, trabalhar as

habilidades dela. Tem crianças aqui com uma habilidade para teatro que você não imagina.

Você fala assim: “Nossa, aquela ali abriu a boca?” Porque ela não abria a boca e quando na

hora do teatro ela abriu tudo, não só a boca, mas tudo dentro dela. Então é isso que a gente

tem que formar, cidadão crítico, crítico no bom sentido, aonde ele saiba de direitos e dos

deveres dele. Então, meu direito começa quando termina o seu e aí é isso que a gente tem que

fazer e formar. Formar cidadão crítico, no bom sentido, no sentido que ele saiba o que é certo

o que é errado e para a vida, como nós temos alunos aqui que, essa professora de trinta e três

anos (de serviço), a Luci, ela já está dando aula para os filhos dos alunos dela.

Pesquisadora: Nossa! É porque são trinta e três anos de magistério.

Coordenadora: E aqui eles têm filho muito cedo, muito cedo. O pai é..., a mãe tem vinte, o pai

tem vinte e um, então, uma criança que passou pela escola e que hoje casou, já tem os seus

filhos, os seus filhos já estão estudando aqui e que já estão fazendo faculdade, os alunos dessa

professora. Então, eles vêm aqui reencontrar a professora, isso é gratificante, isso é a função

de uma escola, é deixar boas lembranças, é deixar um bom estudo, aonde ele fala assim: “Eu

adoro o C.!” Quando ele fala assim, eu fico... “Eu adoro o C.!” “Essa escola..., eu estudei

aqui, agora o meu filho está estudando aqui, eu queria ver a professora Luci”. “Pois não”. Eu

levo lá na sala. Vai atrapalhar cinco minutinhos? Não vai atrapalhar. Vai ser um ganho para

aquela professora, aonde ela vai recordar tudo aquilo que ela fez e que ela está vendo o

resultado agora. Isso motiva, isso deixa a professora mais..., “Puxa, eu posso fazer melhor

222

também, eu posso... Essa, eu acho que é a maior, é o objetivo da escola, é formar, reformar,

porque já vem de uma certa forma, a cabeça..., a criança vem de uma certa vivência e tudo, e

mostrar o que é certo ou errado. Esse menino que estava aqui, a diretora, até a secretária

falou: “Não, manda uma convocação para a mãe vir aqui para a gente conversar”. Primeiro eu

tenho que ouvir o que aconteceu, eu tenho que ouvir o outro lado. Como que eu vou mandar

uma convocação e eu nem sei o que está acontecendo? Eu não vou mandar mãe vir por nada.

Não é que “por nada” eu primeiro preciso saber. E a mãe vai falar pra mim: “De novo, de

novo está me convocando?”Aí que ela não vem, ela pega birra, pega raiva. Então, eu tenho

que ver os dois lados e a comunidade espera muito da escola, muito. Só que fazemos o que

podemos. Também não somos detentores de tudo.

223

Entrevista com a Diretora

Pesquisadora: Há quanto tempo que você assumiu a função de diretora aqui dessa escola?

Diretora: Nessa escola, 6 anos.

Pesquisadora: E você começou nesta escola como diretora?

Diretora: Eu comecei como diretora.

Pesquisadora: Então faz 6 anos que você está na escola...

Diretora: Em junho, faz 7.

Pesquisadora: Anteriormente, você trabalhou em outras unidades como diretora?

Diretora: Trabalhei. Assim, eu ingressei, eu comecei a dar aula em 77, em 80 eu ingressei

como professora. Em 84, eu fui ser assistente de diretor de escola. Até 89, fui assistente. De

84 a 89. De 89 a 99, eu fui diretora designada. Aí, depois, de 99 a 2003, eu fiquei na

supervisão. Aposentei, 2003. E tinha passado no concurso de diretor. Aí, ingressei em 2005. E

aí, ingressei aqui e to aqui até hoje.

Pesquisadora: Nessa trajetória profissional toda, quais foram os fatos mais marcantes, que

você poderia destacar?

Diretora: Se eu vou falar o que marcou muito a gente, a reorganização. Então, passei por

aquele ciclo, o CCI, que é o ciclo inicial e ciclo continuidade, aceleração. Passei por tudo. Aí,

quando houve a reorganização em 96, foi muito dolorido pra todo mundo. Porque, trocar de

escola, fica de 1ª a 4ª numa escola e os demais vão pra outra escola. Então, teve uma série de

problemas com professores... isso aí foi assim, marcante nesse sentido. Agora, eu tive uma

escola em 96, onde eu trabalhava, que tinha a sala especial, né, hoje são as crianças com

necessidades especiais. Lá era assim, a sala especial, classe especial. E nisso, por exemplo, a

gente tá falando em alfabetização: tinha aluno de 4ª série que não sabia absolutamente nada. E

aí, ele não sabia nada e o que a gente fazia? A gente passava ele um pouquinho pra sala

especial, pra aprender alguma coisa. E essa coisa de tirar a criança de uma sala e passar pra

outra, faz sentido pra gente. Porque, eu tenho um aluno na 4ª série que não acompanha. Aí,

pega esse aluno e passa lá pro 3º ano, 2º, tal, pra ver que estágio. Onde que a gente pode pegar

essa criança, trazer ela de volta.

224

Então, esse tipo de situação, por exemplo, o fato de ter a sala especial era bom por isso.

Porque são crianças especiais que não conseguem aprender. São, eles têm necessidades

especiais, embora aparentemente não tenha. Você vai pra um psicólogo, fazer uma avaliação,

qualquer coisa, fala que não tem. Então, vai pro lá posto, faz uma avaliação: "não, não, essa

criança é normal." Normal, é normal. Toda a criança é normal, só tem algumas dificuldades

de aprendizado e tal. Então, o que eu to querendo dizer é assim: o que marcou bastante foi

essa história dessa área especial ajudar as crianças que estão lá, vamos dizer, nas crianças

normais, que na verdade, antes ... hoje todas vão ver que hoje tem a inclusão e eles

acompanham também. Então, acho que o que marcou mais foi a reorganização. Porque mexeu

muito com os professores e mexeu com a cabeça das crianças também. Dos pais, de todo

mundo, viu. Essa parte aí... eu não se era isso que você queria saber.

Pesquisadora: Sim, é isso. E nessa trajetória, teria alguma pessoa, ou pessoas que você

explicaria, que exerceram influência no teu exercício profissional?

Diretora: Sim. Tinha uma dirigente, A. C. Ela era coordenadora da COGSP. Nota 100. Então,

acho assim, aprendi muito com A. C. e com a dona N. A., também. Professora N. A., que

também foi nossa dirigente. Então, são pessoas assim, fora que escola tinha, é, com

professores. Vários professores, assim. A gente aprende muito com professores e com as

crianças também. Então, aí, crianças, de montão, a gente aprende muito com eles. Mas,

bastante com professores assim, que passou na minha vida e colegas que, enquanto

professora, e depois também, enquanto diretor, supervisor, a gente acaba aprendendo. E,

enquanto supervisor, aprende muito com várias escolas, que eu passei e aprendi com o

trabalho dos outros diretores também, né. A gente acaba aprendendo com todo mundo.

Pesquisadora: E como você descreveria a função de diretora de escola?

Diretora: Olha, na verdade, eu acho fundamental, viu. Não to querendo puxar pra lado

nenhum, não é isso. Agora, assim, a escola, quando falam assim que a escola é a cara do

diretor e diz "ah, a escola não tem cara..." - tem sim. Tem, porque é assim: as pessoas, elas

seguem o ritmo... embora a gente ache... antes eu não achava dessa importância. Mas o diretor

é muito importante, uma figura importante. Os professores, eles seguem, sim, o perfil do

diretor, vão seguir, e acabam entrando no esquema. Eu não sei se é a gente que também...

Aqui é um grupo, eu falo que é um grupo, assim, especial pra mim. Mas acho que é porque eu

to aqui, né. Então, eu acho que é especial porque eu tô aqui. Então, as pessoas, parece que a

gente têm uma ligação, uma coisa que a gente conversa e se entende. Que eu acho que é

225

assim, que há um entendimento no grupo. É um grupo bom. Tem aqueles que, assim, desvia...

onde tem muita gente, não é todo mundo igual, é tudo diferente. Mas eu sinto que, quando eu

falo alguma coisa, onde eu to presente, que eu falo, eles escutam. Então, a gente conversa, a

gente fala, a gente propõe algumas coisas e aí, a coisa rola. E não é a mesma coisa se eu não

estou presente. Você entendeu? Não to querendo falar porque a diretora é isso e aquilo, não é

isso. É que às vezes, a gente sabe que, se a gente não tá em determinado lugar, e aí, acontece,

desvia alguma coisa, então fala "poxa, né, não tinha que estar assim?" Mas acontece. Então, o

diretor é uma peça fundamental. Ele é líder, sim, não adianta a gente falar que não, porque é

sim. Então... a vice-direção também, que ela exerce uma influência muito boa aqui, em todo

mundo. E a V. também.

Então o grupo é um grupo bacana e a gente conversa, a gente fala... eu me entendo muito com

a Luzia, porque às vezes, eu vou falar determinada coisa e ela fala, aí é o que eu ia falar

mesmo. Parece um casamento.

Pesquisadora: A gestão de vocês, desde sempre,foi essa composição?

Diretora: Foi, praticamente sim. Em 2005, quando eu entrei, era o A., que era o vice-diretor.

Aí, ele ficou na direção do Renato, que é aqui perto, e a L. voltou, porque ela era diretora

aqui. Aí, quando ele veio, ela ficou vice dele, aí quando eu vim, ela saiu e ele ficou meu vice.

Aí, quando.. e ela foi ser vice na escola C. Aí, quando o A. foi pra lá, eu falei "ah, então

vamos trazer a L., né." Ela era daqui. E, aí a L. veio e ficou comigo. Hoje, eu falei "Quando

ela aposentar, eu aposento junto." Porque eu me acostumei tanto, que não dá pra... assim, é

difícil.

Pesquisadora: Quando uma equipe funciona, né?

Diretora: É difícil você trabalhar com outras pessoas... No começo, quando eu tava aqui, eu

pensei em remoção várias vezes. Entrei em remoção três anos. Depois, eu falei "não vou me

remover daqui. É aqui mesmo que eu vou ficar e pronto. Vou trabalhar com eles", e esse

grupo que eu tenho, vou trabalhar com esse grupo, e a gente vai se conhecendo, eles também

vão me conhecendo e a gente vai trabalhando junto. Às vezes, a gente pensa que... eu falo

assim: que eu aqui... se eu não to até do mesmo jeito, se eu não estou... continua tudo igual. E

continua mesmo. Eu acho que é um prolongamento do que a gente faz. Os professores, têm o

compromisso, eles sabem o que eles têm que fazer, eles têm essa coisa assim,já traçada. E a

Vanessa trabalha muito bem também.

226

Pesquisadora: Quando que a V. chegou?

Diretora: 2006.

Pesquisadora: Ah, então vocês são todas contemporâneas.

Diretora: Isso. Porque aí, eu tinha a S. B., que era coordenadora. Só que quando a Sandra foi

trabalhar na oficina da E. R. na diretoria de ensino, veio e falou pra mim que tinha tido uma

proposta, e tal. E eu falei: "olha, o que a bom a gente tem que deixar, né. " Porque ela

trabalhava muito bem, e ela queria abrir mais. Então vai pra oficina, que aprende mesmo! Que

tem mais curso, tem mais coisa, vai, vai fazer. Aí, ela foi e veio a V. pra cá. E aí, a V. Porque

os professores daqui também são assim. E vem e fica. Então, a L., por exemplo, tem mais de

20 anos dentro da escola. A R. também tem bastante tempo. Tem alguns que vão aposentar. E

os novos que vêm também ficam. Quando chegam, ficam.

Pesquisadora: Isso ajuda num processo de construção, de um projeto de escola, né.

Diretora: Isso, isso.

Pesquisadora: E como você descreve a comunidade dessa escola? Assim, as famílias,

características do bairro.

Diretora: Olha, a gente tem, tem vários problemas, que falei, desajustados. Assim, não tem

estrutura. A gente vê que a criança não tem. Algumas crianças, você vê que tem estrutura

dentro de casa. Então, é meio que misturado, né. Quando fala assim "ah, é um bairro carente",

não é assim também, sabe, tem de tudo. Assim como aqui ou naquela escola mais

centralizada, tem. A visão das pessoas em relação à comunidade, acha assim "não, é porque

eles não têm condições, é por isso que eles não vão. Em determinadas coisas, é assim que

acontece. " Não é bem assim. Eu acho assim, que eles têm dificuldades, alguns têm mais

dificuldades... é... financeira, de alimentação, tudo mais... bom, é um bairro pobre.

Quando eu vim pra cá, em 2005, eu senti bem a pobreza. Hoje, eu já não sinto com tanta..

sabe... porque é assim, na época que eu vim, parece que era pior.

Pesquisadora: E era mais desestruturado, né, lógico. Mais início de urbanização...

Diretora: Isso, foi melhorando. Foi melhorando... Eu acho também que é assim, que bolsa

família, a gente não valoriza essas coisas. Embora as pessoas falem assim "ah, agora que tem

227

bolsa família, eles pega dinheiro pra tomar cachaça" - Tá. De tudo tem. Mas assim, eu acho

que as crianças vêm de uma forma diferente pra escola.

Pesquisadora: São muitos os alunos cujas famílias recebem bolsa família?

Diretora: Ah, a maioria recebe. E isso ajuda, né, a criança.

É o nosso sistema de alarme da escola...

Pesquisadora: Quer ir lá ver?

Diretora: Não, as meninas tão lá. Que vai desligar, se for o caso.

Então, a bolsa família: antes eu tinha muito mais criança que chegava aqui com fome. À 1

hora da tarde, sem almoçar, sem ter tomado café, sem nada. Então, chegava, já entrava e

falava que tava com dor de barriga. Coisa que eu perguntava "você comeu?" - "não." - Não

tinha comido nada. Então come um... Então, tinha criança que já chegava, já almoçava. Já

teve mãe que chegou pra mim, chorando, falando que o menino tinha diabetes, que não podia

ficar sem comer, aquelas coisas. Eu falava "olha, então a senhora já, quando entrar, chegar, já

manda. Vem antes do horário, já vem, já come." Tinha essas coisas. Agora, nossas crianças

comem bem. Tanto de manhã, quanto de tarde. Eles comem mesmo.

Pesquisadora: Mas penso que a qualidade da merenda também é um fator assim, que leva a

criança a aceitar ou não, né.

Diretora: É, a merenda é boa. Melhorou bastante também. De uns tempos pra cá, foi

melhorando.

Pesquisadora: Vocês que são responsáveis pelas compras dos...

Diretora: Não. Assim, natura, sim. A gente compra fruta, aqui eles comem rúcula, acelga,

alface, tomate, repolho, cenoura. Todas as hortaliças e a gente diversifica, porque tem criança

de primeira ali que não aceitava a rúcula. Depois começou a aceitar. Porque a Elzinha tem

isso, ela falou "não, eles têm que conhecer tudo quanto é verdura, não é só..." e ela que cuida

dessa parte. Então, ela.. que nem, a fruta, não é só banana. Tem escola que acha dificultoso

cortar o abacaxi, então dá só banana. É banana, maçã, mexerica, abacaxi, melão. Cada dia é

uma coisa gostosa. Uma fruta diferente. Caqui, goiaba, né... fruta da época. Eles vão

comendo, e aí eles conhecem. Que tem criança que não conhece. Que a mãe mesmo compra

só aquela fruta mais barata, ou a verdura na hora ali, é alface... outros é arroz e feijão e pronto,

né. Então, eles comem.

228

Deixa eu só ver uma coisa aqui... dá uma licencinha. Deixa eu ver a dona C. aqui, ver o que

que aconteceu...

(interrupção)

Diretora: Escola é assim, né. É truncado. (risos)

Pesquisadora: Ano passado, eu tava na minha faculdade e me roubaram, dentro da sala e a

câmera não funcionou. Então é assim, a qualidade da gravação é fundamental. Porque senão,

não resolve nada.

Diretora: É. A gente tem câmera no pátio, aqui duas (sala de informática), aqui na secretaria.

Aí eu falei “pronto, sala de informática”, né, que é a única que poderia... ou lá em cima,

alguém mexeu alguma coisa e tocou o alarme. Aí falou que o alarme toca mesmo. De vez em

quando toca sozinho aí tem que ligar pra... Ela ligou.

Pesquisadora: não foi nada mais...

Diretora: Não.

Pesquisadora: Que necessidades a mais dessas que você descreveu, que você apontaria em

relação aos alunos? Que você observa?

Diretora: Eles são muito violentos. A gente tem que trabalhar essa parte da violência. Eu acho

que o professor, dentro da sala, tem um trabalho, tem que ter esse trabalho conta a violência: a

não-violência. É que nem agora, no recreio. Só pegando esse caso aqui dos meninos. O

menino falou que estava separando os outros dois. Então, disse que foi brincar com o outro e

tomou um soco. Aí o outro se meteu no meio e falou que tava separando, mentira, ele foi lá e

socou o outro. Porque viu o outro brincando, batendo, ele foi lá e bateu também. E esses

corinthianos e palmeirenses, é a mesma coisa: um começa, o outro vai e bate e mata uma

pessoa. Você já imaginou, viver com uma situação dessas pro resto da vida? Eles não podem

tem. Eles têm que ter noção, não tem que imitar a televisão e não tem que imitar a violência

que está aí fora. Agora, eles vivem a violência dentro de casa também, né. Então, pra eles é

muito fácil resolver no tapa, no soco, porque vê o pai bater na mãe, vê o irmão bater não sei

em quem... eles, sabe, vivem isso. No vizinho, né... Aqui tem muito disso. O companheiro

bater na companheira, aquelas coisas todas. Então, eles vivem isso.

Pesquisadora: Você observa alguma ação de conselho tutelar nessas intermediações? Em

casos de violência contra a criança, o adolescente?

229

Diretora: Contra a criança, sim. A gente já teve mesmo, aqui na escola, eu já tinha visto o

problema com uma criança. Eu comecei a investigar com a criança, pra entrar em contato com

o conselho tutelar. Quando eu tava aqui, com a criança, conversando e ia chamar a família pra

ver o que estava acontecendo, chega a moça do conselho tutelar, dizendo que tinha uma

denúncia e que tinha vindo atrás da menina, também, por conta da denúncia dos vizinhos.

Então, foi de imediato: a gente viu e aconteceu deles estarem... mas tem! Tem sim. Funciona,

funciona bem.

Pesquisadora: E além da violência, você destacaria alguma outra coisa? Alguma necessidade

dos alunos, que a escola tem atuado pra suprir?

Diretora: (pausa)...gente... A questão da aprendizagem, que a gente falou, é assim: esse

professor Ronaldo, ele fala assim: “a criança já é rejeitada no útero. A mãe fuma, bebe, então

a criança nasce com problemas de rejeição, de tudo mais, o que vai acarretar problemas no

aprendizado. Tem uma porcentagem isso? Tem. A gente sabe que tem. E a gente tem que

trabalhar com o que a gente tem. Se tem essas crianças assim, o que a gente precisa estar

trabalhando... e tem as que você... ela vai sozinha. Aí, tudo bem. Você ensina e a criança vai.

E ai, é... ta indo...

Pesquisadora: ta indo...

Diretora: Aí, você... com essa questão da... ó, só pra te resumir: o bônus, agora, que sai nessa

6ª-feira. Eu acho assim, que foi um absurdo. Porque nós não atingimos a meta. E tava todo

mundo crente que iria atingir, porque as crianças foram bem. As nossas crianças estavam bem

no ano passado. Aí eu falei... era 3,58 a meta, foi 3,50, abaixo da meta. Então, o que o

governo faz atrapalha, desestimula o professor. Porque eles trabalharam, eles fizeram, eles

treinaram as crianças nos gabaritos - porque também tem essa coisa de passar errado no

gabarito - foi treinado, foi feito, então teve um bom trabalho em cima dessas 4as séries todas,

o ano passado, e de repente, um balde de água fria. Ano passado, a mesma coisa. Ano

passado, até entendo, porque a gente tinha, no ano anterior, de 2 foi parar no 4, 4 e pouco.

Quer dizer, subiu muito, por que as crianças... quer dizer, foi um trabalho que anos anteriores

não conseguiu atingir, então os professores começaram a trabalhar de forma diferente.

“Vamos trabalhar em gabarito”, porque se você olhasse a prova deles no caderno, era uma

coisa, no gabarito era outra. Eles não sabiam passar no gabarito. Então, vamos treinar

gabarito. Treinou, treinou e surtiu efeito. Uma das coisas, porque eles faziam um bom

trabalho. Nunca deixou de fazer esse bom trabalho. E ai, ano passado não recebeu porque

230

tinha que atingir muito mais e porque foi 3,51 no ano passado, né. Aí, não chegou aos 4

pontos que tinha que chegar. Aí, esse ano, falei “bom, 3, 51 vai conseguir com certeza, porque

é nessa média, de 3 e pouco a 4, né, então não ultrapassou tanto.” Mas não atingiu de novo.

Mas os professores ficaram chateados, nossa, foi assim, um absurdo. E o governador falou

que todos iriam receber. Ia repartir o pão, né... e não foi o que aconteceu. Nossa, ficaram

todos muito chateados. E a gente sabe que as coisas não são tão verdadeiras em umas escolas

e a gente sabe que as crianças não são tão diferentes daqui, agora. Então, me preocupa essa

coisa da maquiagem, o que pode acontecer. Agora, a gente tenta não influenciar no dia da

prova. A gente explica, a gente fala junto com as crianças, tal.. e tenta não influenciar pra que

as coisas sejam verdadeiras, reais. E, de repente, a realidade é uma outra. Então, isso ai,

desestimula o professor. Ao invés de estimular, desestimula. Então, fala assim: “olha, eu não

falto”, que tem o critério de falta, “não falto, eu faço tudo pra estar aqui todos os dias,

trabalhar, estar sempre constante.” Primeiro que não tem eventual, né. Difícil. Então, eu já

combino com os professores “não falta, se tiver necessidade de faltar, avisa com muita

antecedência, pra gente procurar alguém pra ficar na sala”. A gente trabalha em torno disso.

Aí, professor fala “Eu trabalhei doente o ano passado. Eu fiz num sei que... e ainda, assim que

é a recompensa da gente? Olha, não adianta a gente ser. Se tiver que tirar licença, eu vou tirar

licença, se tiver que faltar, vou faltar, porque não adianta. A gente não é reconhecido... eaí,

você vai responder o que?” eu falei “não, gente, olha, é que a gente não pode reclamar do

nosso... 3,50 não ta ruim. Não ta porque tem coisas muita piores. Aí, o outro lá, que recebeu

R$4 mil reais porque ele tava lá embaixo. Era 0,85, foi pra 1 e pouquinho, então ele conseguiu

a meta. E a gente não conseguiu porque a gente ta lá no alto. Já ta num índice bom. Aí, vira o

professor “ih, esse ano vai ser pior, porque as nossas crianças, no ano passado estavam

melhores.” Aí, eu disse “bom, então a gente vai ter que treinar bastante essas crianças,

trabalha com eles bastante, até chegar lá, pra ver se a gente consegue melhorar o índice.”

Agora, aí o pessoal começa a ver as outras escolas “0,71? Como?” A gente fica assim, sem

saber, o dobro da gente. Mas a gente sabe que a gente faz um bom trabalho. Então eu falo

assim “tem que ter consciência do trabalho que você faz.” Se as crianças não foram bem na

prova, tem a ver com outros problemas. Aí, a gente já não pode... ultrapassa os limites do

entendimento da gente. E é assim, a gente só fica triste com isso. Porque o governo, ao invés

de incentivar, ele desestimula. Então, tem que haver um incentivo sim, pro professor. E os

professores têm que ganhar. Aqui, eu tenho um bom número de professores que ganha aquele

mérito, que eles fizeram prova de mérito, conseguiram, então receberam um pouco mais.

Agora, quando a gente fala “dinheiro é importante, sim.” Faz parte da vida de todo mundo.

231

“Trabalha porque gosta?” Trabalho porque gosto, to na educação porque eu gosto. Mas assim,

se eu recebesse mais, eu ia ficar mais feliz, né?

Pesquisadora: É, é uma professor como outra, né...

Diretora: É. Eu ia gostar mais. Eu ia poder fazer outras coisas pra mim, pra minha família.

Então, eu ia ficar mais feliz. Só que assim: eu até esqueço e quanto eu ganho, sabia? Eu

trabalho e esqueço essa parte. Só na hora do “vamo vê”, que eu preciso de alguma coisa, é que

eu lembro “poxa!” O dia que eu recebo, eu sei o que me custa isso. Mas assim, fora isso, eu

acabo esquecendo e trabalho. Simplesmente trabalho. Faço as coisas que tem que fazer. E os

professores são assim também. Chega no dia pagamento, é que vai lembrar que tinham coisas

que precisava ser feito. Mas precisa, o governo precisa melhorar isso aí. A gente tem que ter

voz nesse pedaço aí, e tem que mudar essas coisas.

Pesquisadora: profissão de professor tem que como ta.

Diretora: Profissional. Profissional.

Pesquisadora: E reconhecida, o papel dela na construção de um país...

Diretora: Exatamente, porque se eu quero um país melhor, menos violência na rua, menos

assalto, menos bandido, eu vou ter que fazer alguma coisa diferente. E é na periferia. E eu

vejo, eu sei aqui que eu tenho filho de traficante, tenho filho de assassino, eu tenho filho de

tudo quanto é coisa. Tá lá na prisão, eles saem de lá, eles vêm na escola, você pode ver que a

escola não é depredada, não tem nada disso. Eles cuidam da escola porque eles não querem

que os filhos deles sejam iguais a eles. Eles não querem. Eles querem o melhor pro filho. Eles

não querem a vida deles para os filhos. Eles querem uma vida melhor. Agora, quando

acontece de roubar o step da professora, o GPS, não sei o que, na porta da escola, dentro de

um lugar que, a gente fala “não é nem estacionamento”, porque na escola não tem

estacionamento. Tem um espaço lá que eles colocam o carro. E ai, o que acontece? Aqui

dentro da escola aconteceu. Então, deve ter alguém solto por aí que eles não tão sabendo

ainda. Agora, a gente passa pras crianças o que aconteceu, é só comunicar as crianças, pronto.

Não mexe em mais nada. Porque alguém descobre que quem fez, fez na escola, e não pode

fazer na escola. Eu contei paralelo, que a gente tem. Quando eu cheguei aqui, eu levei

um susto em 2006. Nossa, festa junina, nós fomos assaltados, colocados aqui dentro, que

gente tava aqui... levou pouco dinheiro, não levou muito não. Levou celular de professor,

levou celular meu, algumas coisas assim e a gente ficou bastante assustado. Só que quando eu

cheguei na 2ª-feira, a máquina fotográfica da escola que tinham levado, tal.. já tava aqui com

232

uma pessoa da comunidade já tava com a máquina, o celular das pessoas... mas o meu não

achava. E não era de chip naquela época. Aí falaram pra mim “não, eles vão dar outro celular

pra senhora.” Eu falei “não, obrigada. Não precisa dar, não, porque eu já ia trocar mesmo,

agora vai ter chip, então eu vou ter que trocar. Larga mão...” - porque eu sabia que ia tirar de

outra pra dar pra mim. Mesmo que desse com nota e tudo, roubou de alguém, né... Eu falei

“não, não quero, não precisa. O que achou tudo bem, o que não achou...” - “e o dinheiro?” -

eu falei “também não precisa, porque foi pouco dinheiro, não foi muito. Pegou só o que tava

aqui, porque a gente tava guardando em uma outra sala. Então, não quero. Veio a máquina

fotográfica? Que bom que tava as fotos das crianças, então ta bom.” E o susto que a gente

teve que foi muito grande. Só que daí, nunca mais mexeram com a escola. Foi uma pessoa

que veio de fora. AÍ, quando viram, pegaram a máquina de volta, bateram na pessoa, diz que

apanharam muito... não sei de nada, não sei de nada, não conheço pai de ninguém, nem nada.

Se vem um pai aqui, eu trato como se fosse um pai normal e pronto, e acabou. Eu trato a

criança do jeito que eu trataria qualquer criança, sempre como tratei em qualquer lugar. A

gente tem que educar, a gente tem que ensinar o que é melhor, falar as coisas, tem que ser

rígido também, tem que ter punição? Tem que ter punição. Não é uma coisa pesada, nunca é.

Se, por exemplo, lá no recreio, quer bater nas crianças, fica sem recreio? Aí vai lá, pega a

comida, vem sentar, vem comer aqui, vai ficar aqui, vai pro banheiro... vai fazer tudo igual ao

que é, só que não vai ficar solto lá batendo em ninguém. Não vai ficar machucando ninguém.

É a única coisa. Então, é assim: não existe aquela coisa “ah, não sei que...” não! A gente dá

uma bronca, briga, é que nem pai e mãe. Pai e mãe não briga com o filho, dá bronca? Sabe,

tem que dar. Não pode deixar fazer o que quer.

Pesquisadora: Então, você pode dizer que a relação da escola com a comunidade é uma

relação boa?

Diretora: Boa, boa. É tranquila.

Pesquisadora: E os casos de violência, deturpação contra a escola são pontuais...?

Diretora: Não tem. Na verdade, não tem. O que acontece às vezes, que nem aconteceu aqui,

que pegou o GPS da professora aqui, tal... é alguém que anda solto por aí. E agora, ontem eu

vi o L. A. (não posso que foi o L. A.), ele ficou uns cinco anos fora daqui da comunidade e

veio ontem trazer o sobrinho dele. “Ah, posso entrar pra tomar uma água?” falei “Não, não

pode. Você mora aqui perto, não vai entrar aqui, não.” E aí, então tem a escola da família, as

233

vezes ele vem... mas ele andou meio sumido. Me falaram ate que ele tinha sido morto, tava na

FEBEM, num sei o que, aquelas coisas...

Pesquisadora: Foi aluno da...

Diretora: Foi dessa casa. Daqui. Foi. Eu não peguei ele como aluno, ele já tava fora, mas ele

vinha aqui... acho que ele foi aluno em 2005 e ele perturbava muito. E ele sumiu. E a escola

ficou tranqüila, e tal. Agora, ele veio trazer o sobrinho, ontem eu vi. Eai, falaram disso, eu

falei “será que tem alguma relação?” A gente não sabe, né. Mas é assim: se falar aí pra

comunidade, ele daqui a pouco desaparece de novo.

Pesquisadora: E quais são os objetivos da escola?

Diretora: Em que sentido?

Pesquisadora: O que a escola pretende em relação às crianças?

Diretora: O que a gente quer realmente é que eles aprendam a ler, a escrever, pra ter condição

de continuidade de estudos. Isso aí é o primeiro. Porque eu acho assim: que as coisas ruins

que eles vivem aí fora, eles vão continuar vivendo. Então a gente tem que mostrar o outro

lado. O nosso dever é mostrar o lado bom da vida. A gente acha que a pessoa, pra ela

sobreviver, ela tem que estudar, trabalhar, ela tem que ter um trabalho digno, e ela poder sair

dessa vida, que ela pode não desviar, entendeu? Eu, inclusive falo, quando vem um aqui: “em

que sua mãe trabalha? O seu pai, tal?” “Ah, eu não tenho minha mãe, meu pai ta preso, e eu

moro com minha vó, com meu tio, sei lá o que...” – “Você quer isso pra você?” – vou citar só

o V., a mãe dele ta presa e ele mora com a vizinha. A vizinha pegou quando era pequeno, que

vivia na rua, e a vizinha pegou e botou pra dentro de casa. A mãe saiu, queria levar, mas a

mãe dele mora na rua, agora. Ela saiu da prisão e mora na rua. Ele tava meio revoltado,

quando a mãe saiu da prisão e tava na rua. E a mãe queria levar as crianças, mas não tem

como, mora um numa vizinha e outro na outra vizinha. Aí eu peguei e falei “você quer isso

pra você? Você quer tirar sua mãe da onde ela ta? Então, você tem que estudar. Tem que

aproveitar essa família que tá te acolhendo, você tem uma casa, tem alimentação, você tem

roupa, você tem tudo. Agora, você tem que aprender e você tem que estudar, pra um dia você

poder trabalhar e tirar sua mãe da onde está. Você tem que ajudar sua mãe. Mas pra isso, você

precisa crescer, e tem que crescer em todos os sentidos, né.” Então, a gente trabalha

com as crianças nesse sentido também, de mostrar pra eles que eles podem ter uma vida

melhor e trazer quem ta La também, na pior. Ajudar essas pessoas e poder melhorar a vida de

todo mundo. Então, acho que é nesse aspecto que eles têm que ter uma visão e ver o lado

234

bom. Eles não tem que ser massacrados aqui, maltratados, porque eles já são maltratados

demais pela vida. Uma vidinha maltratada. A gente tem que ajudar eles a enxergar um outro

lado, pra não ocorrer a mesma coisa que acontece com a família deles.

Pesquisadora: E esses objetivos estão expressos no PDP da escola?

Diretora: Eu tento, sabe, melhorar minha proposta. Inclusive, tinha começado a trabalhar isso,

mas tem que dar uma melhorada. Tem que colocar mesmo essa parte social, que a escola tem,

não adianta. A gente quer que aprenda mas tem esse lado aí que a comunidade, a gente sabe,

que tem uma série de problemas e que a gente quer tirar essa criança de lá e mostrar um outro

lado, pra poder também influenciar a família. Que influencia. A escola influencia. O que eles

aprendem aqui, eles passam pros pais. Então, tem uma influência, a gente sabe que a gente

tem uma influência, a gente tem um trabalho. E tem que desenvolver bem, porque é daí que

vai acontecer coisas.

Pesquisadora: Esses objetivos, você acha que é compartilhado pelos professores, pelos

servidores da escola?

Diretora: Eu acredito que sim. Porque a gente conversa, então eu acredito que sim. Não quero

ser tão ingênua de achar que todo mundo vá trabalhar da mesma forma, não. Mas a maioria

tem uma visão assim, mais humanitária. Que tem que ter. Eu trabalho com a gente e a gente

tem que ter esse olhar também. Que eles têm que trabalhar com essas crianças... Você sabe

que a maioria, que nem, quem recebe as nossas crianças é o R., da escola aqui de baixo. E a

diretora lá, fala muito bem dos nossos alunos, sabe. Então, tem uma minoria que vai sem

aprender mesmo. Que aí, tem que trabalhar lá. Mas é minoria, não é maioria. A maioria sai

sabendo, sai fazendo coisas, sai sim. E tem uns que são tão bons que não querem nem estudar.

O R. não escolhe... não é uma escola... é a localização talvez. Os pais não querem que vá pra

lá, querem que vá pra uma outra escola. Então a gente arruma vaga pra eles em outras escolas,

a gente liga pra outros diretores e vê. Pra atender também essa expectativa do pai, que

também não quer que vá pra uma escola que, assim, que concentra drogas, não sei o que, não

sei o que lá. E ser pra adolescência, né. Então, eles falam mesmo das escolas. Não é só nessa

escola. Tudo quanto é escola tem. Então, a gente sabe que a gente tem que estar atento. Pai e

mãe tem que estar atento.

Pesquisadora: Segundo Ciclo, Ensino Médio, já começam a andar mais propensos, né...

Diretora: Já começam. Então, eles têm medo por conta da localização da escola, que fica num

lugar assim... e aí, é difícil. E aqui em frente à escola, tinha um senhor que morava aqui,

235

morreu. Eai, eles invadiram a casa do senhor e a filha veio esses dias aqui, porque eles usam

droga dentro daquela casinha, alugam a casa ali pra usuários de droga. Aluga assim, o espaço

pra eles fazerem o uso da droga. E a moça, dona da casa, veio falar pra mim que andaram

acontecendo umas coisinhas assim, de entrar e pegar alcool do professor na sala. Aí, a gente

falou “é pra beber ou pra acender o fogo”, né, que eles têm ... pra...

Pesquisadora: Pra (?)

Diretora: É. Aí, eu chamei a polícia. De dia, ele ficava sentado – tinha um só – ele ficava

sentado, encostado no muro. Eu fui conversar com ele. O pessoal tava com medo. Eu fui

conversar com ele e falei “Você usa droga?” ele falou “Eu uso”. Falei “Olha, é o seguinte,

não quero você aqui, na calçada da escola.” Ele olhou pra mim assim, eu falei “É, você mora

ali, então você vai ficar pra lá. Porque aqui os pais vêem você aqui, então vão achar que a

gente não ta tomando nenhuma providência. Você é usuário de droga, não é preconceito nem

nada, mas não vai ficar aqui, encostado no muro da escola.” – “Não, porque eu queria

comida.” Daí, teve uns dias que, sobrava merenda e, depois do recreio das crianças, eu favala

“Pode dar comida pra ele.” Aí, começou a achar que era obrigação da escola. Eu falei “Não,

então não vai comer mais da comida. Se é isso, então vai trabalhar e vai fazer alguma coisa.”

E aí, a comida que sobra, a gente em que jogar. Mas ela coloca num saco plástico as sobras de

comida, inclusive das crianças; é uma comida limpa, não é uma comida suja, mas assim: vai

no saco de lixo. Aí, ele tava comendo ali. E aí, você fica assim... “é, é desumano, não é?”

Pesquisadora: Exato.

Diretora: É. E é uma coisa assim que fica... Aí, ele veio um dia e disse “ai, vou comer comida

do lixo. Vocês jogam comida no lixo, porque não dá comida pra gente...” Aí ele falou que iria

arrebentar todos os carros, eu chamei a polícia. E foi embora. Aí, ficou um outro casal, que

também usa drogas. Só que esses não vêm atrás, não incomodam. Só que a moça, a dona da

casa, falou isso.

Então, a gente convive com isso também e as crianças vêem essas coisas. Eles convivem com

a droga. O tempo inteiro. E eles sabem aonde tem... e eles usam (?) que às vezes choca. A

gente choca, mas ao mesmo tempo a gente tenta trabalhar isso de uma outra, com uma outra

visão.

Pesquisadora: Pensando no professor dentro da escola, como você imagina que eles

descreveria o ser professor aqui nessa escola?

Diretora: Hmmm, difícil...

236

Pesquisadora: É falar pelo outro...

Diretora: É.

Pesquisadora: De uma maneira geral...

Diretora: Olha, eu vou falar assim, eu acho que eles gostam de trabalhar aqui. Eu tenho a

impressão que eles têm medo de trabalho. Porque eu não gosto de trabalhar sob pressão. Eu

sou uma pessoa que, se tiver alguém me pressionando, aí é que não sai nada mesmo. Não sai,

porque eu não aceito trabalhar. Eu sou um pouco rebelde, também. Né, nesse sentido. Eu sou

uma pessoa fácil de trabalhar, eu entro em acordos, a gente acerta as coisas, a gente resolve

junto, né. Mas assim, eu também sou impulsiva, eu sou bem... eu procuro não ser mal-

educada, né. Porque se me aprontar muito, eu sou grosseira. Então eu faço tudo pra não

chegar ao extremo. Porque eu sou uma pessoa que, às vezes, eu falo coisa que vou magoar

mesmo a pessoa. E não quero isso. Então, eu acho assim, eu dou liberdade pro trabalho, mas

quando vejo que está querendo extrapolar os limites, aí eu chamo aqui mesmo. Ó, conversar,

antes do que as coisas... porque eu sou, eu sou muito chata. Então, pra eu não chegar nesse

ponto que vai pegar no pé e tudo o mais, então eu já converso antes. "Ó, tem toda a liberdade

de trabalho. Tem que saber o que tá fazendo. Tá trabalhando, a gente sabe do trabalho, né." A

V. é muito atenta, (?) e ai, a gente deixa trabalhar mas ao mesmo tempo ali, né, na supervisão

do trabalho. Mas eles gostam porque a gente deixa cada. E eles trabalham. Direitinho.

Pesquisadora: Nesse sentido, o que você imagina que eles esperam de você? Como diretora

desta escola?

Diretora: ...Olha... Eu acho assim, que essa coisa, essa troca de trabalho, assim, num sei... que

eles...

Pesquisadora: (risos).

Diretora: Pensando assim, eu acho que é isso. É deixar trabalhar pra ver resultado, né. E eu

acho que muitas vezes eles acham que a gente deveria ser muito mais rígidos com as crianças,

quanto a isso, você entendeu? Mas eu não sou, porque eu vejo os dois lados. Eu vejo o lado da

criança também e vejo o lado do professor. Porque tem professor que provoca determinadas

situações. Tem professor, que faz coisa que não pode fazer. Um menino usou de uma rebeldia

com ela lá, respondeu, porque ela falou assim, que ele era zé povinho. Ele respondeu à altura,

que ela era também: "se eu sou zé-povinho, você também é, né". Nossa, a professora se sentiu

agredida. "Quando eu agrido, tudo bem. Quando me agridem, com a mesma palavra, aí eu

fico... eu fui agredida, fui desrespeitada..." Claro, você derespeitou...

237

Em primeiro lugar, eu tenho que respeitar quem tá comigo, certo? Porque tem um monte de

criança e você ta trabalhando, resolvendo, aí de repente, um vai lá e soca o outro, pega o

lápis... agora, tem professor que já pega e.... é birra, né. Pega assim com a criança e aí, não

aceita nada que a criança faz. Se ela derrubar um lápis, ela jogou o lápis. Ela derrubou, não

jogou. Então, é assim. Então, eu vejo os dois lados. E aí, não é a mesma coisa, né.

Esse caso hoje da (?) por exemplo, ele falou "tem que ver o lado, conversar com a professora

e ver o que aconteceu, porque o menino não ia peitar a professora assim." Quando falaram

que ele peitou, eu achei que ele tinha ido pra cima dela. Chegado perto, não que... porque as

crianças falaram que ele tinha feito isso. Que tinha peitado a professora. Mas ele respondeu,

foi o que ele falou. Eu preciso ver o lado dela, conversar com ela, que não conversei ainda.

Mas são coisas assim, que eles acham que devia deixar 3, 4 dias suspensos. Porque chamar os

pais, a gente chama.

Então, eu acho que eles gostariam que eu fosse mais rígida.

Pesquisadora: E os funcionários, que você pensa? Quando eu falo funcionário, a merendeira,

o pessoal da limpeza...

Diretora: Eu não tenho problema com eles não. Eles trabalham direitinho.

Pesquisadora: Mas que você acha que eles esperam de você?

Diretora: Eu acho...... não sei. Porque é assim, eu vejo quantas vezes eles chegam assim e

falam "ai, tem pouca gente pra trabalhar." Eles acham que eu tenho poder de chegar e

conseguir mais pessoas. Eles trabalham, eles dão conta do serviço, porque trabalham muito. A

gente sabe o trabalho. Mas quando não tem criança...

Pesquisadora: Quantas merendeiras você tem?

Diretora: Duas. Uma tá de licença (?). Então, peguei uma que é do estado também, que tá

ajudando na merenda. Da lanchonete. É uma contratada do estado que tá ajudando na

merenda. E tem a empresa que faz a limpeza. São dois funcionários. É pouco, mas eles dão

conta. É o marido e mulher, um casal que trabalha aí, na faxina. Eles dão conta. A escola não

é assim... mais por conta do espaço físico mesmo. Porque ela é aberta, completamente aberta.

Então, pra fazer limpeza e ficar bonito e tal, não vai ficar não. Tem que derrubar isso tudo aí e

fazer uma outra. Eu, na minha cabeça, faria lá na quadra, uma extensão daquele outro prédio

lá. Fazia uma quadrinha lá onde é o estacionamento, pra ter aula, né. Até fazer lá. E depois,

derrubava tudo ali. E fazia quadra em cima, que nem é lá no Renato agora, a quadra é lá em

238

cima, no último andar. Aí, sim. Aí, sobraria espaço pra fazer mais uma escola. Mas dividido.

Essa era uma escola, a outra, outra escola.

Pesquisadora: E pras crianças terem alguma possibilidade de brincar mais à vontade, né.

Diretora: É... porque aqui, é complicado. Não tem espaço, o intervalo lá no pátio, é muito

pequenininho. Muito pequeno.

Pesquisadora: Muitas crianças, né?

Diretora: É.

Pesquisadora: E os pais, o que você acha que esperam de você enquanto diretora?

Diretora: Acho que eles esperam um bom tratamento pros filhos, e que os professores

trabalhem. E que as crianças saiam daqui sabendo. É isso o que eles esperam.

Pesquisadora: Como você pensa que é a avaliação deles em relação ao trabalho da escola?

Diretora: Olha, tem os que não gostam e tem os que gostam da escola. Eu acredito que a

maioria até goste da escola. Tá de lado, tal. Agora, existem os pais aí que eu acho assim, que

são meio revoltados. Então, por exemplo, já vão entrando pra entrar com as crianças no

começo do (?), nos primeiros dias, sempre deixo. Aí, achavam que todo dia tem que entrar. E

quando você fala "não, agora, eles vão sozinhos. Já conhecem a professora, já sabem entrar,

então agora, aqui no portão vocês deixam." Nossa, foi uma guerra. E tem um ou outro que

furam. Querem conversar com professor na entrada. Eu falei "não pode, não pode. O senhor

tem que vir conversar aqui comigo primeiro. Saber o que que é, de repente eu posso resolver o

assunto." Não tem que conversar com professor ali na entrada. Tem 40 crianças esperando, 40

crianças. Tem que entrar com as crianças. Agora, vai atender um pai? Não pode. Tem horário

pra atender. A gente marca um horário pro pai vim. Não tem essa. "Ah, mas eu só posso..." -

Então, o senhor vem conversar comigo. Se eu achar que o caso é assim, eu mando inspetor de

aluno na classe e a professora vem conversar. Não vou deixar... a gente até chama, não tem

problema. Só que assim, na entrada não. Porque atrapalha os demais. Então, tem todo um

processo né. Não pode ser assim, não tem que ser do jeito que eles querem. A escola tem

regras e as crianças têm que ter regras e eles tem que... também os pais têm que ter. E tem os

que não têm. De jeito nenhum. Chega aqui peitando, peita a L., a "formiga", sabe? E a gente

não se intimida. Não. A gente também vai em cima. Chega junto. Aquele "chega junto, na

moral, mano..." (risos)

Pesquisadora: Mas, vai aprendendo como (?) educação, né...

239

Diretora: Exatamente. E a gente faz isso por conta de estabelecer regras mesmo, disciplinar

com a criança, com os pais. Porque, se eles não têm limite em casa, aqui eles não têm que ter.

Eles chamam os pais e conversam: "é, porque essa escola não sei que, não sei que, não sei que

lá..." Depois que conversam, vem os pais aqui feito leão. Sentou, conversou, conversou

conversou, falou bastante? eu deixo falar. Eu ouço bastante, por quê? Porque eles têm essa

necessidade. E aí, a gente vai, conversa. Então vamos lá, vamos chamar professor, vamos ver

o que aconteceu, ta ra ran... a gente chega num consenso. Aí sai daqui, sai bem, sai tranquilo.

Agradece o professor e tudo. Mas é assim, de primeiro momento, você tem que deixar

explodir. Fal, fala, fala, fala, tudo o que tem que falar. Porque aí, depois que terminou de

falar, aí você consegue ter um diálogo, do contrário você não tem. Chegam exaltados. Então,

a gente tem que ter paciência com algumas coisas. O dia que eu não tô paciente, nem nada,

deixo com a Luzia, largo, saio fora. Falo "não, atende porque se eu for atende, vai ter..."

Pesquisadora: Vai pegar fogo...

Diretora: Vai, vai. Então é melhor eu sair fora. E eu faço isso com criança também. Às vezes,

quando eu vejo que eu vou estourar, explodir, largo pra outros e saio fora, porque... e eu falo

isso pros professores: "tá nervoso? Tá grave na sala, acontece alguma coisa... sai, vai no

banheiro, vai tomar uma água. E chama, manda uma criança me chamar. O inspetor de aluno

vai ficar lá, a S. fica lá. Se a S. não estiver aí, outro vai e fica. E você vai dar uma volta, vai

tomar uma água, vai tomar um café, relaxa, porque não dá pra entrar em confronto com

criança, de jeito nenhum. Porque tem alguns que peitam mesmo.

Pesquisadora: Eles tiram a paciência, né...

Diretora: É. E olha que são os pequenos. Imagina (?) Aí, os professore têm assim, a gente

sabe que têm uma série de problemas.

Pesquisadora: É verdade. E quais são os principais desafios que você vê aqui pra escola?

Diretora: Aprendizagem. O que mais me preocupa é aprendizagem. Não entra na minha

cabeça uma criança entrar no 1º ano e sair no 5º ano sem saber escrever. Não entra na minha

cabeça. Eu não consigo entender isso. Não consigo, por mais que as pessoas, sabe... Aí, veio

uma professora, Sara, e falou assim: "Mas E., às vezes eles aprendem na 1ª assim e chega no

3º ano e desaprendem." - "Como assim? Como é que desaprende uma coisa que você

aprendeu?" - "Desaprende." - E aí, que eu fiquei sem entender mesmo. E eu não consigo

entender. Porque eu lembro de mim, quando fui pra escola, 1º ano. Cheguei lá no 1º ano, D.

M. falou que eu era cega e que eu ia enxergar. Aí quando chegou mais ou menos em junho, eu

240

deixei de ser cega. Então, aquilo pra mim, foi um instante que eu era cega e não enxergava a

estrada, e de repente, comecei a enxergar. E aí, eu falo pras pessoas "Como é que eu

consegui? Não sei como, na cartilha?" - É, na cartilha. É na cartilha. (?) E todo mundo é

contra a cartilha, contra isso, contra aquilo. E porque que eu aprendi e as crianças não

aprendem?

Então, isso aí é uma coisa que não entra na minha cabeça. Não consigo entender isso. Isso pra

mim é um desafio. Alfabetização. Porque, eu sempre lidei com escola de primeira, até o

ensino médio, sempre trabalhei em escola grande. E aí, quando eu vim pra uma escola de 1ª a

4ª série, que eu nunca tinha trabalhado, só com 1ª a 4ª série, eu fui fazer "Letra e Vida". Logo

no semestre seguinte ao que eu entrei, fui fazer "Letra e Vida". E prestei (?) comecei a

estudar. Fui fazendo coisas pra ver se entendia. Pra esse lado, esse lado com alfabético, com

valor, sem valor, aquela coisa toda. É assim, eu to engatinhando. São seis anos que estou

engatinhando. Porque eu não tinha consciência da alfabetização quando a minha escola era do

1º ano até ensino médio. A criança não aprendia ou aprendia e, sem saber, os professores

reclamavam de 5ª série. Aí, professor de 4ª série ia lá, trabalhava junto com professor, era

uma integração ali, e coisa e tal. "Ah, manda pra minha sala, a gente vai trabalhar isso e tal."

E devolvia pra 5ª série. Havia muita (?), coisa tal, que passava meio desapercebida. Porque

tinha outros problemas junto, então a gente trabalhava um toldo, né. E aí, de repente, veio

uma escola de 1ª a 4ª série, que o foco é alfabetização. Realmente, e pra mim ainda que, eu

não sou alfabetizadora. Eu comecei a aprender a alfabetizar depois que eu entrei pra uma

escola de 1ª a 4ª série. Aí, eu comecei a aprender como é que você pode funciona a leitura de

uma criança. As letrinhas, de pegar uma letra com outra e formar "B" e o "A" dá o que, dá

"BA". Aqui, é o "N", aqui é o "A", junta o "N" e o "A", dá "NA". Aqui, você junta o "N" e o

"A" de novo, que que tá escrito? É BA-NA-NA. Que é então que tá escrito? É a banana?

Então, essa coisa assim de juntar "C"-"V"-"L" pra mim é o cavalo, nome da criança... então,

eu começo a enxergar de uma forma diferente. Mas assim, é difícil, viu. É muito difícil, não é

fácil, não. Então, eu valorizo muito o trabalho do professor alfabetizar. Porque é ele que

começa...

Pesquisadora: Bem que a tua professora disse: "é ele que dá a luz ao olhar"

Diretora: É, exatamente. É isso aí. Então, e eu, na minha cabeça, não passa uma criança não

saber. E eu, quando chegou em novembro, do 1º aninho que eu tava, antes de novembro, já

tava lendo o livro. Aí, ganhei o livro dessa mesma professora. Capa dura, ela me deu de

presente no meu aniversário, em novembro. Aí, nunca mais deixei de ler, ler, ler, ler muito.

241

Então acho que a gente tem que passar isso pras crianças também. E meu pai não deixava a

gente ler gibi, que engraçado, né. E gibi é tão bom pra criança.

Pesquisadora: É que naquela época, havia um preconceito muito grande, né.

Diretora: E tinha aquelas telenovelas, tele, pra revista...

Pesquisadora: Telenovela, né.... É, fotonovela.

Diretora: Fotonovela, é. Não deixava eu ler, aquilo era tudo escondido. Mas eu lia também,

mas era escondido. E adorava ler fotonovela, nossa. E tudo o que caia na minha mão, porque

meu pai também, apesar de não ter estudado, só fez o primário, ele lê, sempre leu. Sempre leu.

Jornal, essas coisas em casa, sempre teve, né, leitura. E a minha mãe também, ela só fez o

primário. Mas assim, eles lêem, escrevem, conta... ninguém passa a perna nos dois de jeito

nenhum. Minha mãe vai fazer 88, domingo, meu pai vai fazer 90 em outubro, e é assim. Meu

pai lê, minha mãe lê, e eles gostam de televisão também, mas eles gostam de ler. Continuam

gostando de ler.

Então, isso tudo faz parte da cultura da família, né. Eu acho que isso, se tem jornal em casa, se

tem alguma coisa... Agora, a gente dá pras crianças, também levar pra casa. Livro, essas

coisas. Porque eles têm que ter em casa, pra ajudar as pessoas que estão lá, que não tem... pra

ler também. Então, tem que incentivar a leitura, né. Uma das grandes... um dos grandes

desafios.

Pesquisadora: E você tem alguma expectativa em relação à nossa equipe. À equipe da PUC?

Diretora: Ai, é assim, é meio mágica a coisa, né. Então, só o fato de vocês estarem aqui, eu

acho assim: por menos que possa acontecer alguma coisa, vai acontecer alguma coisa. Vai

mexer com os professores? Vai, vai mexer com os professores, vai mexer com gente que tá

aqui. Eu acho que acaba influenciando, acho que alguma coisa a gente pega. Milagre não se

faz, né. Mas assim, muita coisa acontece quando alguém , vem alguma coisa de fora pra

gente. E a gente acaba aprendendo, né. Acaba absorvendo... coisas. Então, acho que é isso.

Acho que a gente vai aprender com vocês, sim. Por mais que a gente, às vezes, pense que não

a gente tá passando nada, tá sim. Então, a presença de vocês é importante, sim. É bom.

Pesquisadora: Você gostaria de acrescentar mais alguma coisa a mais em relação à escola?

Diretora: Nossa, acho que eu já falei tanto, eu já falei bastante, né? Às vezes eu fico falando, e

eu não sei se eu to falando exatamente o que você gostaria de saber. Porque eu tenho uma

expectativa com a escola e a única expectativa que eu tenho é essa mesmo: de incentivar a

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leitura, de que as crianças saiam daqui sabendo ler e escrever, sabendo fazer as continhas

deles. Sabendo fazendo conta, né, pra ninguém passar a perna neles, né. Pra eles fazerem

coisas. E assim, seguir em frente, conseguir acompanhar, ˜é. O ciclo 2, o ensino médio, a

faculdade. E eu acho que eles têm esse direito e eles precisam disso, né. É um direito de todo

o cidadão, então eu acho que é o mínimo que se faz. A gente tá fazendo o mínimo da gente.

Mas a gente tem que fazer o máximo, pra que esse mínimo aconteça.

Pesquisadora: A despeito de todas as (?)

Diretora: De todas as coisas que acontecem, a gente tem que ter, né, essa... essa... tem que

acontecer alguma coisa. E não é esperar. Se a gente ficar esperando (?)... nada acontece. As

coisas vão acontecendo muito lentamente. Então, desde que eu to no magistério, eu vejo

assim: o professor segura alguma coisa apodrecida que tá caindo. Mas ele segura. Ele segura,

ele vai, ele luta contra essa coisa que tá querendo derrubar. Então, é um peso em cima, mas

ele luta contra. Ele não deixa cair. Então, quando se fala que aqui é a base, é a base. Quando

um professor grita lá "cala a boca!", é que ele não ta aguentando. Ele tem meia duzia de

alunos que atrapalha os outros trinta. E essa meia dúzia não quer fazer nada. Então, que cê

faz? Pega um dessa meia dúzia e passa com uma outra professora. Aí, lá, ele não sabia ler

nem escrever, e tá numa 4ª série. Ou seja, num 5º ano. Aí, não aprende. Ele chegou lá sem

saber. Então, não consegue acompanhar e o que acontece? Ele fica indisciplinado. Então, tem

tudo isso. Então, o que a gente quer é que eles aprendam, só isso. É isso.

Pesquisadora: Então, a gente também, da PUC, da nossa equipe, a gente agradece muito essa

oportunidade, de estar na escola. Eu acho que isso é uma experiência muito importante pra

gente em termos de formação mesmo, porque a maioria vai se tornar formadores de

professores. E assim, a gente tem que conhecer esse universo da escola, pra falar de um

universo que realmente, seja mais próximo da realidade possível. Que não fique numa

abstração que pouco colabore na formação desse professor. Então, assim, agradeço muito essa

possibilidade.

Diretora: A gente que agradece.

Pesquisadora: E à tua a disponibilidade de fazer essa entrevista com a gente.

Diretora: É, mas assim. Eu acho que essa parceria é uma parceria boa. Eu aprendo bastante

com vocês, e acho que eles também vão aprender. Então, nós todos. O grupo vai aprender.

Pesquisadora: Como você mesma colocou: "é um processo em que todos participam."

243

Diretora: Todo mundo ganha. É, todo mundo ganha. Então, a gente ta aí pra isso, né. E se a

gente puder ter esse tipo de parceria e quando a gente enxergar uma outra necessidade,

qualquer coisa, a gente ter com quem a gente possa contar. Chegar e pedir ajuda, né. É bom, é

bom. Porque a gente tem: a oficina pedagógica, vamos dizer assim, tem a oficina pedagógica

da diretoria de ensino, e tal, que ajuda. Ajuda, faz o trabalho do ler, né. Que tá sendo muito

bom. Mas assim, uma outra ajuda também... porque eles têm muitas escolas pra atender.

Muitas escolas. Então, fica difícil pra atender todo mundo o tempo todo, né. A gente sabe da

dificuldade. E aí, a gente ter um outro tipo de apoio também, pra escola, pra todo.

E eu sei que professor é assim, que muitas vezes acha que o diretor tem uma boa vida.

Flexibilidade de horário... falei "não, eu tenho horário." Outro dia, o professor falando "ah, eu

quero ser diretor...", eu falei assim "eu acho que tem que ser mesmo, né. E que todo mundo

tem que... você quer ser diretor, vai ser diretor, quer ser supervisor, vai ser supervisor." É só

viajar na carreira e vai embora. Aí, fala assim "ah, diretor faz o que quer a hora que quer." Eu

falei "é, (?), faz o que quer na hora que quer." Tem flexibilidade de horário? Tem. Agora,

compromisso de professor é diferente. Por exemplo, se a Luzia chegar pra mim e falar "ah,

minha filha tá doente, tem que sair agora, tenho que ir lá buscá-la..." ela vai. Ela não vai tá

mexendo com 40 crianças. Agora, se o professor chega e fala a mesma coisa, que que eu faço

com essas 40 crianças?

Então, eu faço eles enxergarem uma coisa assim: eu tenho compromisso com horário, sim. Só

que, se eu chegar 5 minutos atrasada, eu não vou fazer diferença. (Faz também, porque eles

ficam de olho, né) Mas assim, não vou fazer diferença quanto você vai fazer, porque você tá

com as crianças. É diferente, é diferente. Eu saio mais cedo pra levar as impressões, porque eu

não tenho um boy pra vir aqui, pegar as coisas, levar, fazer, e acontecer. Eu tenho que

negociar com os caras lá da loja, pra ficar mais barato pra escola? Tenho, porque não tem

dinheiro, o dinheiro é pouco. Então, tem tudo isso, né. Então eu falei "olha, é bom ser

diretora. Tem o lado bom e tem o outro lado ruim também." A cobrança é grande também.

Então, a gente tá ali, né. Fica no meio de professor e da Diretoria de Ensino e Secretaria da

Educação, fica meio... Mas não tem problema. A gente trabalha com todo mundo.

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Transcrição da entrevista com a vice-diretora

Vice: Agora você não pode mais entrar aqui. (Falou isso para alguém que abriu a porta da sala

e disse, brincando que a pessoa não poderia entrar mais).

Pesquisadora: Porque a gente acredita, o seguinte. A gente tem visto muita pesquisa que não

dá o retorno para as pessoas que estão envolvidas, que deveriam ser aquelas que são as

beneficiárias da ação e que a gente também aprende muito e as pessoas pouco.

Vice: Hum hum.

Pesquisadora: Então, a gente vai falar isso durante esse ano, mas, assim, nesse quadro que a

gente está, na psicologia da educação é a pesquisa de cunho colaborativo e aí, é em função das

necessidades também...

Interrupção – uma pessoa que entrou na sala tropeçou no fio da filmadora.

Pesquisadora: ... do público que está envolvido. Por que que a gente faz isso? Porque quanto

mais a gente entende os contextos mais a gente pode trabalhar, ver aquela formação que eu te

falei, para uma pessoa concreta, não para uma pessoa idealizada e aí nesse quadro teórico

também. Todo material é disponibilizado aos participantes. Todos. E a gente só usa com

autorização e o que tiver de ser, por exemplo, tirado, falado: “olha, eu não quero isso, quero

tire isso”, não precisa nem justificar, é um direito de todos nós quando somos participantes de

pesquisa. Como a gente tem o direito também de dizer onde foi aquilo. Então, essas perguntas

são justamente para nós conhecermos melhor esses contextos. Ah, só um uma coisa que eu

vou falar enquanto a gente está aqui. Dentro dessa teoria, também não do jeito que eu estou

falando, mas eu vou explicar melhor, é assim, uma pessoa, por exemplo, uma vice-diretora,

ela tem uma questão que é única, que é dela, de como você se constituiu, mas um pouquinho

do todo, ela revela, porque ela faz parte de um todo maior e essa relação parte/todo, que pra

gente é importante. Então, é importante você saber o que eu estou fazendo aqui, numa outra

escola estadual em Carapicuíba, trabalho com as diretoras da prefeitura num projeto também

de pesquisa chamado AB. Então, a gente está investigando, eu pessoalmente, a questão da

equipe diretiva, que formação que se espera, que se precisa para a equipe diretiva hoje para

que ela possa fazer melhor. Então, essa entrevista a gente fala, é inicial, é assim, eu queria que

você falasse livremente - depois eu vou pensar - como você chegou, qual é a sua história

profissional e...

Vice: Como eu cheguei aqui ou na educação?

245

Pesquisadora: É, no dois.

Vice: Ah, na educação foi assim, eu estava perdida, era bancária, né?! Aí, minha mãe, né, me

ajudou a: “ah, faz o magistério, porque é uma saída, já que você não está decidida ainda.” Aí

eu acabei fazendo o magistério, não trabalhei logo em seguida, continuei no banco, depois...

Pesquisadora: E como é que foi para você fazer o magistério? O que que você achou do

magistério?

Vice: Ah, eu achei... Eu era muito nova, né? Tinha dezenove anos. Então, eu achei

interessante, né, estar fazendo o magistério, mas me achava assim, “nossa, trabalhar com

criança, trabalhar com pessoas, né, será que eu sei tudo? Eu não sei tudo. E quando eu me

formei eu falei: “nossa, o que é que eu vou fazer com essas crianças?”. Então, faz, né, mas

quando sai dali a preocupação minha era muito grande , né? Como trabalhar, como receber,

como fazer. Aí, de imediato eu não comecei. Aí eu recebi um convite. Como eu participo da

comunidade da igreja aqui da Brasilândia, aí foi feito um convite, que eles davam preferência

para pessoas da comunidade para trabalhar como coordenadora numa creche conveniada.

Pesquisadora: Ah, numa creche conveniada da prefeitura?

Vice: É, da prefeitura. Aí, eu falei assim: “bom, é o início”. E aí eu peguei e me inscrevi. Aí

me inscrevi e aí eu fui chamada. Fizeram as entrevistas, tal e aí falaram que eu tinha sido a

escolhida, porque eu era a única que era do bairro, porque eu conhecia bem lá a comunidade e

aí eu trabalhei seis meses como, como coordenadora, mas foi um trabalho muito difícil,

porque a pessoa com quem eu trabalhava era uma pessoa difícil também, era uma irmã, que

ela era bem conhecida aqui, irmã N., não sei se vocês conhecem e assim, tinha determinadas

coisas que ela fazia que eu concordava, né? Botava criança de castigo no sol, essas coisas e aí,

na época, não eram formadas, eram as pajens e era muito difícil trabalhar com as pajens

também e elas ficavam questionando porque eu trabalhava pouco e ganhava mais que elas,

porque, então era esse tipo de coisa, né?! Aí eu fiquei seis meses, saí e depois eu comecei

aqui, logo em seguida eu comecei aqui.

Pesquisadora: Então você prestou concurso?

Vice: Não, aqui eu entrei como comissionada.

Pesquisadora: Ah tá.

246

Vice: Comissionada não, contratada, né? Eu era OFA. Em 87 eu entrei aqui. Aí fiquei aqui, já

peguei sala em fevereiro, peguei uma sala, o CB, na época, né? Era o CB. Lembro que no

meio do ano, assim, muito insegura, pedia muito, conversava com as professoras, porque não

tinha experiência de sala de aula, mas eu lembro que no meio do ano um aluno meu, porque

aqui a comunidade é muito pobre, muito carente, né? Então, a gente tem dar muito afeto, a

gente tem que estar muito junto para eles confiarem e lembro - que foi uma coisa marcante

pra mim – que aí, quando foi junho, julho, mais ou menos, o menino começou a ler. Eu trouxe

ele na mesa e ele começou a chorar e eu chorei também e isso eu lembro até hoje, né? Que

aquilo era muito importante para ele, muito importante, um desafio muito grande pra ele e pra

mim também, né? Aí eu fiquei até 89 aqui, fazendo esse trabalho aqui, eu gostava muito de

trabalhar aqui.

Pesquisadora: Você ficava em sala de aula?

Vice: Em sala de aula. Sala de aula, professora OFA, né? Contratada. Sala de aula. Nunca

fiquei, tinha até uma amiga minha trabalhava aqui, a Angela, né? Me deu muita força

também: “Você não tem que ficar só com o magistério, você tem que ir pra frente, você tem

capacidade, vai fazer faculdade”. Sempre me incentivando, né? Mas eu sempre precisei, né?

Trabalhava aqui, trabalhava no banco, então ficava bem dividida.

Pesquisadora: Ah, você trabalhava também no banco? Era professora e trabalhava no banco

Vice: É, depois eu saí.

Pesquisadora: Dava para conciliar o horário?

Vice: Era meio período, eu era digitadora.

Pesquisadora: Ah tá.

Vice: Aí depois eu saí, final do ano, aí eu tive a minha filha e aí eu saí e fiquei só na escola

mesmo. Aí eu fiquei aqui até 89 e aqui era um grupo muito bom, um grupo de trabalho, até

nós que saímos daqui: Z., M., elas foram para a mesma escola, né? Então era um grupo muito,

compromissado.

Pesquisadora: Do estado também?

Vice: Do estado.

247

Pesquisadora: Aí você prestou concurso?

Vice: Aí eu fiquei aqui e fui para outra escola em 89.

Pesquisadora: Como contratada?

Vice: Como contratada. Aí eu prestei concurso como PEB I. Aí não passei, chorei, fiquei

toda, aí fiz geografia e prestei e concurso e fiquei como PEB II. Aí eu exonerei de PEB I e

fiquei como PEB II, aí eu fiquei trabalhando como PEB II lá na outra escola, em 89, Aí eu

fiquei lá até 2003.

Pesquisadora: Você não fez pedagogia, então?

Vice: Fiz complementação.

Pesquisadora: Ah tá.

Vice: Fiz complementação, fiz supervisão, fiz tudo (risos).

Pesquisadora: Hã, hã.

Vice: Fiz a complementação, supervisão e aí eu fiquei lá até 2003, aí dava aula para o ensino

médio e pegava sempre as finais, né?. E aí chegou um momento que não dava mais pra ficar

lá muito difícil trabalhar. Os alunos gostavam de mim, sempre me dei muito bem com os

alunos, sabe? A gente sempre, sempre compromissada. Eu até encontro os alunos hoje e eles:

“ah, prô, lembro de vocês”. Só que aí não deu mais por causa da indisciplina da escola.

Chegou um momento que a gente também estava correndo risco. Falei: “bom, não dá mais pra

mim, eu ficar enrolando em sala de aula, não dá!”. Aí eu me inscrevi para a direção, pela 73,

aqui nessa escola. Aí fui duas, três vezes para substituição.

Pesquisadora: Qual é a diretoria regional aqui?

Vice: É a Norte I, Norte I. Aí eu me inscrevi e a primeira vez eu não escolhi, na segunda, aí

tinha o C., eu falei: “Ah, vou voltar para o Crispim! Saí de lá em 89”. Aí como tinha vaga

aqui eu vim para cá como profess..., como diretora. Diretora...

Pesquisadora: Eventual?

Vice: Designada, né? Designada. Aí eu vim pra cá e fiquei em 2003. Cheguei aqui, minha

filha, isso aqui estava de ponta cabeça, estava em reforma, tinha uma direção aqui muito

248

complicada, que saiu. Assim, que depois eu fiquei sabendo e depois me cobraram coisas que

eu nem sabia que existiam. Então, foi muito difícil, não tinha funcionários. Hoje a gente está

no paraíso aqui. Então, eu tive que contratar pessoas que eu também não sabia. Eu saí da sala

de aula e vim para a direção, né? Então, eu não tinha experiência nenhuma, Então, eu aprendi

tudo na raça mesmo, né?! Aí eu fui aprendendo, passei bons bocados aqui, mas foi um desafio

para mim, né? Daí, fiquei até 2005 e depois veio a E.. Aí veio a E. Eu não, eu prestei concurso

para direção, mas não chegou no meu número e depois eu não prestei mais, não queria mais,

porque você vai conhecendo, né?! Não, eu quero ficar como vice-diretora. Aí a E., veio outro

diretor, depois...

Pesquisadora: Se você precisar sair, a qualquer hora.

Vice: Tá. Depois veio outro diretor, aí teve uns problemas lá na diretoria e eu não quis me

indispor lá com ninguém, sabe? Aí, “vou ficar como vice-diretora, não tenho problema

nenhum, vou fazer o meu trabalho como estou fazendo até hoje, tenho capacidade para isso”.

Depois o diretor que saiu daqui me indicou para a E. Aí eu falei: “mas, E., você nem me

conhece!”. (Ela) falou: “Não, mas eu quero ficar com você.”. E aí eu fiquei aqui com ela e aí

ela veio e aí a gente foi trabalhando junto, né? A gente se dá bem, né? E aí a gente foi fazendo

o trabalho aqui na escola, com os alunos, que o objetivo maior mesmo é o ensino-

aprendizagem, porque essas crianças, muitas dificuldades, os pais não, é, acompanham entre

aspas, né?

Pesquisadora: Hm, hum.

Vice: Os pais acompanham entre aspas. Então, a gente, esse trabalho também da disciplina, da

violência, são muito violentos, então...

Pesquisadora: Quem é muito violento?

Vice: As crianças, as crianças. Muito assim, qualquer coisa é tapa, é chute, é, então eu trato

tudo na base da... (frase incompleta). Então, a gente vem administrando isso, né? Vem

tentando melhorar e trazer a comunidade para dentro da escola, fazendo reuniões,

conversando, falando da importância dos pais na vida escolar dos filhos, a importância deles

dentro da escola também, ajudando, mostrando nosso trabalho, né? Inclusive hoje eles falam

que a escola melhorou muito, que a escola está diferente, né? Porque a gente precisa ter essa

cumplicidade, né, com a comunidade, senão a gente não consegue nada, mas assim, não é o

que a gente espera, né?

249

Pesquisadora: Mas fala um pouco mais disso? Como é a sua comunidade e que necessidades

você identifica?

Vice: Eu acho assim, é uma comunidade que tudo o que ela precisa ela vem na escola, ela

acha que a escola resolve tudo, né? Então, que a escola tem que resolver todos os problemas.

É, então, tudo eles vêm aqui, até um problema do posto de saúde eles vêm aqui ver, recorrem

à escola. Por quê? Porque a escola atende, a escola dá né, dá atenção. Mesmo que a gente não

possa resolver a gente dá atenção, a gente recebe. Então, é uma comunidade assim, carente.

Pesquisadora: Carente do quê?

Vice: Carente de direitos, né? Carentes de direito, mas elas não, não...

Pesquisadora: Elas não conhecem os direitos, ou não têm, o Estado ainda não chegou com os

direitos

Vice: Não, eu acho que eles não conhecem os direitos, eles não vão atrás, porque eles não têm

informação, né? Mas os deveres, aliás, aliás os direitos eles querem ter também, mas eles

também não se preocupa com os deveres deles, né? Então, a gente trabalha muito isso, é uma

comunidade que, é, coloca o filho na escola e acha que a escola tem que resolver tudo. Então,

isso é a grande dificuldade da gente. Ontem mesmo eu peguei um pai no portão, falou que vai

tirar o filho, vai levar, porque aqui tem que botar o menino que bateu no filho suspenso. Aí,

você fala de legislação, que não é assim que trabalha. Então, é assim, eles... (não terminou a

frase, interrupção).

Vice: O que está acontecendo?

Pesquisadora; Vai lá e a gente...

Vice: Não, não.

Pesquisadora: A gente pode ir para outro lugar. Não tem nenhuma sala vazia que a gente

possa ir? Sala de aula?

Vice: Não tem (risos). Tudo lotado aqui. Então, e o grande problema dessa escola é isso:

espaço. A escola é uma escola grande, né? Tem uma estrutura assim toda irregular e daria pra

gente ter ótimos espaços e a gente não tem e não é falta de pedir.

250

Pesquisadora: Eu só preciso de uma tomada. Se tiver uma tomada no pátio eu posso fazer a

entrevista com você sentada no chão, não tem problema nenhum.

Vice: No pátio as crianças ficam passando toda hora também.

Pesquisadora: Ali naquele lugar que a gente, que vocês fizeram aquele café, comemoração do

aniversário?

Vice: Ah, pode ser.

Pesquisadora: Né, porque daí os professores não ficam, que a gente dá uma interrompida.

Podemos ir lá?

Vice: Ah, pode, mas se você quiser ficar aqui, vai demorar muito ainda?

Pesquisadora: Não, não.

Vice: A gente fica aqui. Ai, onde eu estava, eu esqueci.

Pesquisadora: Você estava falando dos pais.

Vice: Dos pais, né? Então, é isso, eu acho que não sabem, mesmo, né? Não sabem mesmo

qual é a função da escola, então a gente tem que estar o tempo todo explicando isso para eles,

né? Que eles precisam também estar acompanhando os filhos, que eles precisam saber dos

direitos e precisam saber, é, onde a escola pode ir, né? Porque eles cobram, cobram muito isso

da gente, pedir. É, tá certo que eles é: “porque meu filho entrou e não está aprendendo a ler”

“meu filho não está levando a lição para casa”. “Mas porque isso está acontecendo? O senhor

veio na reunião? O senhor veio até aqui perguntar isso pra gente?” “Não, eu estou vindo

hoje.”.

Pesquisadora: E tem bastante reunião?

Vice: Tem, a gente faz, a gente faz, ó, fizemos uma reunião mês passado, reunião de pais, né,

e, a gente faz assim, duas por bimestre.

Pesquisadora: À noite?

Vice: Não, a gente faz no horário que, de aula mesmo. Por exemplo, de manhã, eles vêm para

deixar o filho, então, pela manhã eles já preferem já ficar na reunião, pegam um comprovante,

já levam, né, para poder... Nós já andamos fazendo reunião aqui aos sábados, mas não deu

251

certo, vieram muito poucos pais, pouquíssimos pais. Então, durante a semana é melhor. Mas,

no mês passado nós fizemos e teve... vieram bastante pais. Mas assim, aqueles que realmente

precisam não vem, né? Então, mas também a gente também tem crianças de família assim,

muito irregular, né? Pai preso, mãe que abandonou, então ai vem o tio, vem o avô, é...nós

temos um aqui que nós temos um problema muito grande, que é uma família que adotou, e o

menino é super revoltado. A família vem, acompanha mas a gente nunca sabe na verdade o

que é que acontece. Então, são esses casos, não crianças muito violentas...violentas assim,

com os amigos mesmo, que a gente precisa estar assim, a toda hora cobrando, falando...não é?

Pesquisadora: Então a violência é uma questão assim, na escola.

Vice: Sim, a violência é entre eles. Assim, não tem uma conversa. Já vai no murro, já vai no

xingamento. Então, é isso que a gente trabalha o tempo todo aqui. Chamo os pais para isso

também, né? E aquela criança também que tem dificuldade do aprendizado, então isso vai

gerar a indisciplina também. Gera uma indisciplina muito grande e ai onde gera também os

problemas em sala de aula, os professores também, né? Muitos..., muitos são

compromissados, competentes, e outros estão assim, né? No seu ápice assim, né..., de

tolerância.

Pesquisadora: Dentro desse contexto, até você começou a falar disso, quais são os objetivos

da escola? Como você descreveria os objetivos dessa escola?

Vice: Então, o objetivo seria assim...é...que a criança saia daqui, né...é...lendo, escrevendo,

podendo, é... ter autonomia nesse sentido, né? E que a criança, nessa escola, leve algo de bom

para fora, né? Principalmente nessa questão da violência, do respeito, da, né? Da superação de

algumas coisas. Então, o objetivo aqui eu acho que é isso. Fazer com que essa criança possa

sair daqui e, do muro dessa escola para fora, poder se dar bem em outros ambientes aonde ela

passar.

Pesquisadora: E onde estão expressos esses objetivos?

Vice: Ah, eu acho que em todos os lugares da escola. Acho que no nosso plano, né? Nos

nossos HTPC’s, em nossas reuniões com os professores, nas nossas conversas, né? Equipe

gestora. Nas nossas conversas com nossos funcionários, né? Então, todos aqui, a gente

conversa para que haja, né? Para que aconteça isso, para que aconteça, para que essa criança,

pelo menos aqui “dentu”, ela seja respeitada da maneira que ela precisa ser. Então, eu acho

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que esses objetivos assim, de aprendizagem, de respeito, de tolerância, de autonomia, acho

que está expresso assim, em todos os ambientes da escola.

Pesquisadora: Você acha que os professores conhecem, os pais conhecem? Conhecem como?

Vice: Então, todas as vezes que a gente faz a reunião..., que eles (os pais) saem até

xingando...ah, de novo a gente vem aqui pra ouvir isso? Todas as reuniões a gente repete. A

gente repete quais os objetivos da escola, que os pais precisam estar envolvidos, precisam

estar acompanhando, mesmo que saia..., a gente também coloca a vida da gente, né? Eu

também saio de casa 7h da manhã e volto às 11h da noite. Tenho uma lá, mas eu tenho que

chegar, eu tenho que dar um abraço, eu tenho que saber como foi o dia..., porque são filhos,

né? Eles são nossos. Se nós não fizermos isso, quem vai fazer é o mundo, para eles. Então,

mesmo que a gente esteja cansada, nós colocamos para o mundo e nós temos esse

compromisso de escrever. Então, todas as reuniões, todas as chamadas que nós temos com os

pais, a gente coloca essas, essas questões para eles.

Pesquisadora: L., o que, que você acha que é um trabalho importante para fazer com os

professores? Qual é a necessidade desses professores?

Vice: Ai, a autoestima. A autoestima, porque é assim...é um grupo muito compromissado. Um

grupo que trabalha mesmo. Que ver resultado... Quer ter resultado, né? Que...não adianta, eles

estão aqui, eles sabem que é o nosso trabalho que está em jogo também, né? Mas ai, que

nem...a gente faz, faz, acontece...ai vem um índice externo, né? Um índice da secretaria da

educação. Ai a gente não alcança esse índice. Ai fica todo tudo desanimado, sabe? Fica todo...

então, a gente precisa o que? Precisa estar levantando novamente essa autoestima,

dizendo...não, nosso trabalho é um trabalho sério. Eu acho que é por ai mesmo, que a gente

tem que...a gente tem que estar sempre melhorando, né? Então é isso. E eles se sentem só

nessa questão dos pais não ajudarem, também né? Então, eu cobro muito essa questão dos

pais não ajudarem. Então, eu acho que isso é o grande dilema.

Pesquisadora: As necessidades dos professores, o que eles precisam.

Vice: Também eu acho que uma formação, né?!

Pesquisadora: Do que?

Vice: Uma atualização. (risos)

253

Pesquisadora: Atualização?

Vice: Risos.

Pesquisadora: Mas, aí, não precisamos resolver tudo hoje, né?! Vamos pensar, e...

Vice: É

Pesquisadora: Tá. O que você acha que os professores esperam de você, do seu cargo?

Vice: O que eles esperam? (Risos) Que eu resolva os problemas que eles têm em sala de aula.

Os problemas de indisciplina, os problemas de aprendizagem, eu acho que é por aí. Uma

ajuda, né?! Então, é isso que eu tenho que fazer. Deu problema? Eu vou até lá, converso,

ajudo, vejo se precisa ser feito um remanejamento, que o professor está assim, meio sem

tolerância com determinado aluno, então a gente faz remanejamento até a coisa melhorar, se

for o caso volta, se não for, fica remanejado o aluno. Então a gente, eu acho assim, essa

assistência que eles esperam da gente. A gente está tentando ajudá-los, né? Dessa forma,

assim, mas nessa questão, principalmente da indisciplina, principalmente.

Pesquisadora: E os funcionários, o que esperam da sua função?

Vice: Ah, os funcionários? (risos) É a mesma coisa, mesmas coisas. Os funcionários me

procuram para eu estar ajudando. Interrupção externa. Onde nós estávamos? Ah, os

funcionários, né?! Então, os funcionários, eles também sempre me procuram pela questão:

criança correndo, criança indo muito ao banheiro, criança..., e a questão da manutenção do

prédio, né?! Então, tudo o que existe de manutenção eles me procuram, um cano quebrado,

uma necessidade na cozinha, uma dispensa, merenda, né?, é..., tudo isso ligado a manutenção

da escola eles me procuram para eu estar ajudando, para eu estar resolvendo e mesmo assim

nas questões, acho que deles, eles têm alguma dificuldade, é, precisam sair, precisam..., então,

eu sou a porta-voz para chegar até a diretora. Se ela não pode resolver, então eu resolvo,

depois passo para a direção. Então, é isso, eu acho que eles esperam de mim é essa ajuda, né,

para eu estar resolvendo aquilo que eles não podem estar resolvendo. O que diz respeito a

merenda, manutenção.

Pesquisadora: E você, o que você espera da sua função? Só tem essa pergunta e mais uma.

Vice: O que espero da minha função?

Pesquisadora: O que ela é e o que você espera dela?

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Vice: Olha, eu gosto muito dessa parte administrativa, me identifiquei bastante. Tanto que eu

não me incomodo, por exemplo, o pessoal fala: “nossa, por que você não fez um concurso

para ser diretora?” Eu não almejo isso, eu acho que onde eu estou eu estou bem, né?! Porque

eu estou trabalhando com os alunos, eu estou trabalhando a parte administrativa que eu gosto,

eu estou...

Pesquisadora: O que é que é essa parte administrativa?

Vice: Parte administrativa? É a vida funcional dos professores, apoiando, podendo resolver,

né? É, alunos, salas, salas lotadas, então, a gente faz todo esse trabalho conjunto, né? Direção,

a gente vê, nunca está negando uma vaga, mesmo que a gente esteja com superlotação, a

gente sempre tem, essa nossa criança vai ficar fora da escola? Não dá para a gente dar um

jeitinho? E a gente vai dando esse jeitinho. Sabe que não é certo, né?! Que isso seria uma

parte mais, é, uma parte do governo, teria que estar ampliando essa escola, que a demanda é

grande, né? Mas ao mesmo tempo a gente tem esse compromisso da criança não ficar fora da

escola, então, a gente tenta ajudar nessa parte funcional também, né? E..., que mais você

perguntou? Esqueci...

Pesquisadora: Uma última coisa que eu acho que..., o que que você espera desse nosso

trabalho? Dos professores, das nossas vindas. Você se preocupa? O que você espera?

Vice: Então, eu espero assim, que seja dado retorno para os professores, né? Que possa, é, ser

dada essa ajuda para eles, que, que é isso que eu disse, para melhorar, para saber que tem

alguém aqui na escola, né? Que está observando o nosso trabalho, está vendo o que é feito,

porque dentro de uma escola a rotina nos engole, né? Então, a gente acha que nós estamos

assim, abandonados. Então, vindo, né, por exemplo, vocês, uma instituição de fora, fazendo

esse trabalho, acompanhando, a gente percebe que não estamos tão, assim, abandonados, por

aí, e tem alguém que possa estar aqui dando uma ajuda, né? Para melhorar nossa qualidade,

assim, de trabalho.

Pesquisadora: Muito obrigada. Essa é a primeira, mas depois a gente conversa. Se ficar

alguma dúvida, você, por favor, nos procure e eu vou transcrever e devolvo para você, tá

bom?

Vice: Está certo.

Pesquisadora: Obrigada, viu?

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Vice: De nada, imagina.