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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Programa de Pós-Graduação Mestrado Direito Gabriela Shizue Soares de Araujo INTERPRETAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DAS INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NA NEGATIVA DE DESMEMBRAMENTO DA AÇÃO PENAL Nº 470/MG SÃO PAULO 2013

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Programa de … · 2017. 2. 22. · Durante sete anos de investigação, não se encontrou nada semelhante no esquema Delúbio

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Programa de Pós-Graduação Mestrado Direito

Gabriela Shizue Soares de Araujo

INTERPRETAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA

DE FUNÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DAS

INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NA NEGATIVA DE

DESMEMBRAMENTO DA AÇÃO PENAL Nº 470/MG

SÃO PAULO

2013

Gabriela Shizue Soares de Araujo

INTERPRETAÇÃO DA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA

DE FUNÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DAS

INCONSTITUCIONALIDADES PRESENTES NA NEGATIVA DE

DESMEMBRAMENTO DA AÇÃO PENAL Nº 470/MG

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Constitucional sob a orientação do Prof. Dr. Vidal Serrano Nunes Júnior.

SÃO PAULO

2013

Banca Examinadora

___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________

Agradecimentos Este trabalho é fruto, principalmente, da influência que meus pais tiveram e continuam tendo sobre a minha formação, e, por isso, em agradecimento, quero dedica-lo em primeiro lugar ao meu pai, Attilio, que me ensinou que não há maior riqueza que o conhecimento e a cultura, e à minha mãe, Maria, que me ensinou que não se deve jamais temer dizer a verdade. De modo especial, agradeço ao carinho do meu marido, Emidio, grande responsável pelo meu equilíbrio, paz e força durante a execução deste projeto. Agradeço ainda a todos os professores com quem tive a oportunidade de me aperfeiçoar nesta casa, em especial à Professora Maria Garcia, minha fonte inaugural nos estudos de Direito Constitucional, desde a graduação, e ao Professor Vidal Serrano Nunes Júnior, meu orientador, pela atenção e oportunidade. Por fim, agradeço aos amigos e colegas de trabalho pela compreensão e colaboração, principalmente à querida Keyla Iglesias.

RESUMO

Esta dissertação busca demonstrar a fragilidade a que se expõem os direitos fundamentais do homem, ao se permitir que pressões da opinião pública, movidas por interesses políticos e pessoais, levem nossa mais elevada Corte a olvidar os princípios vetores e as diretrizes hermenêuticas constitucionais na interpretação e aplicação da Constituição Federal ao caso concreto. Procuramos a melhor interpretação da excepcional competência originária por prerrogativa de função do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais, fazendo um paralelo com a condução do tema no julgamento peculiar da Ação Penal n° 470/MG. Demonstramos que os cidadãos comuns não titulares de prerrogativas de função devem ter preservado seu direito ao juiz natural, ao devido processo legal, e principalmente ao duplo grau de jurisdição. Ao final, concluímos que o duplo grau de jurisdição é um direito fundamental que não pode ser negado nem mesmo aos titulares de prerrogativa de função e ressaltamos as inconstitucionalidades latentes quanto à negativa desse direito no julgamento da Ação Penal nº 470/MG. Vasta literatura foi pesquisada, manifestações de respeitáveis mestres e doutores, opiniões de segmentos variados da sociedade, amealhados à convicção pessoal da autora.

Palavras Chave: hermenêutica constitucional, princípios, direitos fundamentais, competência originária por prerrogativa de função, Ação Penal 470, juiz natural, duplo grau de jurisdição.

ABSTRACT

This dissertation seeks to demonstrate the fragility of human rights, when our highest court forgets the principles and guidelines vectors in constitutional interpretation and hermeneutics application of the Constitution, under pressure of public opinion. We seek the best interpretation of the Supreme Court’s exceptional original jurisdiction by prerogative function, making a parallel with the peculiar judgment of the Criminal Action Nº 470/MG. We demonstrate that ordinary citizens that do not hold function´s privileges should have preserved their right to natural justice, due process, and especially the double jurisdiction. At the end, we conclude that the double degree of jurisdiction is a fundamental right that can not be denied even to holders of prerogative function and we highlight the unconstitutionality regarding the latent negative of that right in the trial of Criminal Case Nº 470/MG. Wide literature was searched, manifestations of respected masters and doctors, reviews of various segments of society, slowly gathered the personal conviction of the author.

Keywords: constitutional hermeneutics, principles, human rights, original jurisdiction by prerogative function, Criminal Case 470, natural judge, double jurisdiction.

SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................... 1

1. Competência Originária do Supremo Tribunal Federal por Prerrogativa de Função à Luz dos Princípios Constitucionais...............................................................................

9

1.1. Constituição e Poder Constituinte no Brasil................................................................. 10

1.2. Direitos e Garantias Fundamentais.............................................................................. 15

1.2.1. Classificação dos Direitos Fundamentais.................................................................... 18

1.3. Liberdade da Pessoa Física......................................................................................... 20

1.4. Devido Processo Legal: Ampla Defesa e Contraditório............................................... 27

1.5. Juiz Natural.................................................................................................................. 37

1.6. Duplo Grau de Jurisdição............................................................................................ 44

1.7. Princípio da Igualdade................................................................................................. 56

1.8. Importância do Princípio na Resolução de Conflitos entre Normas............................. 61

2. Noções de Hermenêutica Constitucional..................................................................... 65

2.1. Os Princípios Constitucionais Instrumentais................................................................ 70

2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição.................................................................... 71

2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição.......................................................................... 73

2.1.3. Princípio do Efeito Integrador ou Critério de Eficácia Integradora............................... 77

2.1.4. Princípios da Concordância Prática, Harmonização ou Cedência Recíproca............. 78

2.1.5. Princípio da Conformidade Funcional.......................................................................... 80

2.1.6. Força Normativa da Constituição e Princípio da Ótima Concretização da Norma....... 82

2.1.6.1. Princípio da Máxima Eficiência.................................................................................... 84

2.1.7. Princípio da Interpretação Conforme a Constituição.................................................... 85

2.1.8. Princípio da Proporcionalidade.................................................................................... 86

2.2. Métodos de Interpretação Constitucional..................................................................... 90

2.2.1. Método Hermenêutico-Concretizador.......................................................................... 93

3. O Supremo Tribunal Federal Como maior Intérprete da Constituição......................... 97

3.1. Separação de Poderes e Poder Judiciário................................................................... 97

3.2. Controle de Constitucionalidade.................................................................................. 106

3.3. O Papel do Intérprete da Constituição......................................................................... 110

4. Inconstitucionalidade do Alargamento da Competência Originária do Supremo Tribunal Federal para Processar e Julgar Infrações Penais........................................

120

4.1. Legislação e Jurisprudência Precedente Aplicável...................................................... 120

4.2. Excepcionalidade na Negativa de Desmembramento da Ação Penal nº 470/MG....... 123

4.3. Julgamento de Exceção............................................................................................... 128

4.4. Interpretação Constitucional da Competência Originária por Prerrogativa de Função do Supremo Tribunal Federal.......................................................................................

132

5. A Competência Originária por Prerrogativa de Função Perante o Duplo Grau de Jurisdição.....................................................................................................................

136

5.1. A Hierarquia Constitucional dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e o Duplo Grau de Jurisdição.............................................................................................

139

5.2. Incorporação do Duplo Grau de Jurisdição nos Processos de Competência Originária do Supremo Tribunal Federal......................................................................

146

6. Conclusão.................................................................................................................... 150

Bibliografia.................................................................................................................... 153

1

INTRODUÇÃO

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal e seus respeitáveis ministros se

submeteram a um espetáculo jamais visto: em pleno ano eleitoral, o julgamento de

uma única ação, a Ação Penal nº 470/MG, ganhou todos os holofotes da imprensa e

foi acompanhado em tempo real pela maioria das emissoras de rádio e televisão,

sendo objeto de comentários, encartes e matérias especiais também na mídia

escrita.

Tudo isso foi resultado de anos de uma pressão frenética e de um pré-

julgamento político condenatório dos réus da referida ação penal, provocados por

alguns setores conservadores, inclusive da mídia, contrários ao Partido dos

Trabalhadores, cujo programa é de cunho socialista e que há dez anos vinha sendo

legitimamente eleito pelo povo para comandar o governo federal.

Tamanha foi a pressão que os setores da imprensa preferenciais da

classe média fizeram sobre nossa Corte Suprema, que os ministros mais aguerridos

em sua sanha condenatória foram instantaneamente transformados em heróis e

capas de revista, enquanto que aqueles estritamente técnicos ou que votaram pela

absolvição eram, se não ignorados, criticados como se estivessem sendo parciais ou

coniventes com a suposta corrupção ocorrida.

O jornalista Paulo Moreira Leite, em livro publicado com a reunião de

todas as matérias que escreveu para o blog que mantinha no sítio eletrônico de uma

revista semanal durante o julgamento da Ação Penal nº 470/MG, nos dá um retrato

bem fiel da comoção causada pela mídia durante o julgamento:

―Com 53 sessões e quatro meses de duração, a Ação Penal 470 levou a um dos julgamentos mais longos da história do Supremo Tribunal Federal. Foi o mais midiático desde a invenção da TV – no Brasil, e possivelmente no mundo, superando mesmo o caso de O. J. Simpson, celebridade da TV americana acusada de assassinar a própria mulher. Três vezes por semana, sempre a partir das duas da tarde, suas sessões eram transmitidas, ao vivo e na íntegra, pela TV Justiça, do Poder Judiciário, e pela Globo News. À noite, uma seleção de declarações e comentários fortes ilustrava os telejornais. No dia seguinte, o assunto estava na primeira página dos jornais e,

2

no fim de semana, nas capas das revistas semanais. Joaquim Barbosa, relator do caso, tornou-se personagem conhecido nas ruas. Máscaras de seu roso foram lançadas para o carnaval de 2013. (...) A maioria dos meios de comunicação cobriu o julgamento com tom de celebração e cobrança. Quase todos consideravam que a culpa dos réus já fora demonstrada pela CPI dos Correios e pelas investigações posteriores. A versão dos acusados, que sempre se declararam inocentes, raramente foi levada em consideração1‖.

A Ação Penal 470 também ganhou um apelido pejorativo da imprensa

conservadora, já que foi oriunda de denúncias irresponsáveis feitas por um desafeto

político do dirigente petista José Dirceu, à época Ministro da Casa Civil, que sequer

foram provadas no corpo da ação: a suposta existência de um pagamento de

“Mensalão” (sic) para compra de votos de parlamentares da base aliada do governo

petista de Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato na presidência da

República (2003-2006)2.

A influência que a cobertura e a superexposição desse julgamento

causaram em cada um dos ilustres ministros de nossa Suprema Corte não pode ser

medida em termos subjetivos, porém, em termos objetivos, a condenação da maioria

dos réus da Ação Penal 4703 reveste-se, além de inconstitucionalidades, também de

alterações na jurisprudência consolidada anterior.

1 LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São

Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 12. 2 ―Em 2012, nunca apareceu prova de que um único entre os 380 parlamentares da sempre instável

base governista tivesse mudado de lado em troca de dinheiro. O próprio Roberto Jefferson, que denunciou o mensalão, fez afirmações ambíguas e contraditórias longe dos holofotes. Falando à Polícia Federal, chegou a usar a expressão ‗criação mental‘ para referir-se ao mensalão. Mas nem Jefferson admitiu que foi subornado. Talvez fosse só orientação de advogado. Talvez Jefferson não considerasse que estava recebendo propina quando negociava apoio político. Em 1997, surgiu a confissão gravada de um deputado, dizendo que embolsara R$ 200 mil para apoiar a reforma constitucional que autorizou Fernando Henrique Cardoso a disputar um segundo mandato. Mas o fato foi considerado tão pouco relevante, que o Procurador-Geral da República da época mandou arquivar a denúncia sem qualquer investigação. Durante sete anos de investigação, não se encontrou nada semelhante no esquema Delúbio Soares – Marcos Valério‖. (LEITE, Paulo Moreira. A outra história do mensalão: as contradições de um julgamento político. São Paulo: Geração Editorial, 2013. p. 25.) 3 O julgamento encerrou-se com vinte e cinco condenações e doze absolvições. José Dirceu,

dirigente político do Partido dos Trabalhadores, parlamentar, e um ícone da história da militância estudantil na luta contra a ditadura e pelas eleições diretas, foi condenado a 10 anos e 10 meses de prisão sem que qualquer participação sua em atos criminosos tenha sido comprovada, mas simplesmente por uma aplicação deturpada da nunca utilizada “Teoria do Domínio dos Fatos” e apenas com base em denúncias formuladas por um dos corréus, abertamente seu desafeto político.

3

Terá sido esse um julgamento de exceção? Ou toda a jurisprudência

consolidada do Supremo Tribunal Federal será alterada a partir de então, para

aplicar uma “Teoria do Domínio do Fato” distorcida, condenar com base em indícios

e presunções, deixando a sociedade brasileira numa constante insegurança

jurídica?

Só o tempo poderá nos dar uma resposta. Mas algumas

inconstitucionalidades presentes no julgamento da Ação Penal 470 são

gritantemente identificáveis, como a negativa do desmembramento da ação para

que os réus não detentores de prerrogativas de função pudessem ser julgados em

primeira instância, o que acabou resultando na supressão dos seus direitos

fundamentais do juiz natural, da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição, entre

outros.

É apenas sobre esses aspectos eminentemente constitucionais, e mais

detidamente de hermenêutica constitucional, que pretendemos nos debruçar no

presente trabalho, não sendo objeto de nosso estudo o direito penal ou o direito

processual penal e, portanto, não nos caberá a análise do objeto principal da Ação

Penal nº 470/MG.

O nosso foco de estudo serão as questões de ordem apresentadas tanto

na fase de inquérito4 (Inquérito 2245, autuado em 26/07/2005) como durante a

tramitação da Ação Penal 4705, para que processo fosse desmembrado de modo

que os acusados que não gozassem de prerrogativa de função pudessem ser

julgados pelo seu juiz natural, em primeiro grau. Pelas breves linhas até aqui

escritas nem é preciso dizer que as questões de ordem foram rejeitadas pela Corte

Suprema, que acabou por chamar para si o julgamento de todos os acusados, a

maioria deles não detentores de prerrogativas de função.

4 Em 26 de julho de 2005, o Inquérito 2245 é autuado no STF após ser remetido pela Justiça Federal

de Minas Gerais em razão da presença de investigados que gozam de foro por prerrogativa de função. Os autos chegaram ao STF como PET 3469, em 20 de julho de 2005. 5 Em 28 de agosto de 2007 a denúncia foi recebida parcialmente contra quarenta acusados e em 12

de novembro de 2007 o Inquérito 2245 foi convertido na Ação Penal 470.

4

Interessante é que processos semelhantes, mas envolvendo acusados de

outros partidos políticos, foram desmembrados: o “mensalão mineiro tucano” foi

desmembrado, o mensalão do DEM foi desmembrado, e até o processo do ex-

senador Demóstenes Torres foi desmembrado, para o que o ex-senador fosse

julgado em primeiro grau. O “mensalão petista”, porém, não foi desmembrado.

Sobre essa desigualdade escandalosa de tratamento conferida pelo

Supremo Tribunal Federal a acusados ligados a diversas vertentes políticas, no

entanto, a maior parte da imprensa se calou. Ignora o que a maioria da comunidade

jurídica já sentiu: a total insegurança que a politização e a falta de freios da Corte

Suprema pode gerar nos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros e em nosso

próprio sistema jurisdicional. Se hoje foram eles, amanhã seremos nós.

No decorrer dos próximos capítulos pretendemos demonstrar o quanto a

imparcialidade e a obediência aos princípios e diretrizes constitucionais e

hermenêuticos são importantes para um julgamento justo, sendo o papel principal do

intérprete e aplicador do direito, em primeiro lugar, fazer prevalecer o texto

constitucional. O limite de sua atuação é sempre o texto da lei. Sem esses limites à

atuação do juiz-intérprete, o Poder Judiciário se transforma num poder sem freios e

uma ameaça à segurança jurídica de seus jurisdicionados.

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes faz um alerta sobre o populismo penal

midiático praticado pelos juízes, que acaba oprimindo o acusado, completamente

tolhido de seus direitos de defesa e de um processo justo, para satisfazer a pressão

da mídia:

―Na medida em que as instituições oficiais foram se fragilizando, a mídia foi ganhando mais força e, com isso, exercendo seu poder de pressão, especialmente sobre os operadores jurídicos, com destaque para os juízes, dificultando, assim, a análise isenta e imparcial de cada caso, consoante os ditames da justiça. Em primeiro grau, sobretudo, essa influência está se tornando cada vez mais evidente, a ponto de o juiz ter medo de liberar as pessoas presas, mesmo quando não devam ficar presas. Os juízes estão deixando essa tarefa para os tribunais, por não terem coragem de enfrentar a pressão midiática e/ou política. Paradoxalmente, quando isso acontece, passam a ocupar a posição de

5

vitimizador (opressor) e vitimizado (oprimido) ao mesmo tempo. É opressor diante do acusado que não vê reconhecidos seus direitos e isso ocorre porque se encontra oprimido pela pressão midiática. Muitos juízes estão sendo estigmatizados pelo populismo penal midiático e isso coloca em risco, cada vez mais, a garantia da justiça imparcial e independente. O risco sério é a célebre frase ―Há juízes em Berlim‖ (que glorifica a função da magistratura de tutela dos direitos e garantias das pessoas frente aos poderes constituídos) transformar-se num vazio infinito com a consequente regressão da sociedade para a era selvagem da lei do mais forte, onde ganha não a justiça, sim, quem tem maior poder de pressão‖6.

Destarte, apesar de ser um tanto quanto inusitada a utilização de um caso

concreto como ponto de partida para uma dissertação de mestrado, acreditamos

que, dada a relevância e excepcionalidade do julgamento da Ação Penal 470, e dos

diversos institutos constitucionais seja expressa ou implicitamente ali colocados em

jogo, essa metodologia é a mais adequada para se chegar ao objetivo final de nossa

pesquisa: demonstrar as falhas do foro por prerrogativa de função à luz do devido

processo legal e da Constituição de 1988, bem como indicar qual seria, a nosso ver,

a melhor interpretação do artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” de nossa Carta

Magna.

Todos os capítulos do presente trabalho, portanto, foram construídos

tendo em vista o instituto da competência originária do Supremo Tribunal Federal

para julgar infrações penais e a melhor interpretação que se pode extrair da letra da

Constituição para aplica-la aos casos concretos, em especial a melhor interpretação

que se poderia ter dado às questões de ordem suscitadas no julgamento da Ação

Penal nº 470/MG.

Assim, antes de passar aos próximos capítulos, importante se faz que o

leitor, em primeiro lugar, conheça o peculiar instituto da competência originária por

prerrogativa de função, expressamente estabelecida pelo artigo 102, inciso I, alíneas

“b” e “c”, da Constituição Federal de 1988, in verbis:

6 GOMES, Luiz Flávio. Mensalão e pressão midiática sobre os juízes: vitimização quartenária. Artigo

publicado pelo Instituto Avante Brasil, em 23/08/2012, no sítio eletrônico: http://atualidadesdodireito.com.br/iab/artigos-do-prof-lfg/mensalao-e-pressao-midiatica-sobre-os-juizes-vitimizacao-quartenaria/

6

―Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: (...) b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter

permanente;7 (...)‖.

A competência por prerrogativa de foro ou de função está taxativamente

prevista nos dispositivos acima transcritos e deve ser atribuída não em razão da

pessoa, mas sim em razão do cargo ou função por ela exercida no momento da

instauração do processo penal. É o que explica José Frederico Marques:

―Não se trata de privilégio de foro, porque a competência, no caso, não se estabelece por ‗amor aos indivíduos‘, e sim em razão do ‗caráter, cargos ou funções que eles exercem‘, como ensinava J.A.Pimenta Bueno. Ela está baseada na ‗utilidade pública e no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência do Tribunal Superior‘ – como o disse, em 1874, o Supremo Tribunal de Justiça (Paula Pessoa, Código de Processo Criminal, p. 195, nota 1905), o que, sob outra forma, repetiu, mais tarde, o insigne Costa Manso, ao reclamar essa competência originária para os secretários de Estado8‖.

Note-se que a competência originária do Supremo Tribunal Federal para

julgar infrações penais comuns é vista como uma proteção à função exercida pela

autoridade, que pode ser um deputado, um senador ou um presidente da República,

por exemplo, todos figuras políticas e portanto sempre polêmicas, que, enquanto

titulares dessas funções, necessitariam de um mínimo de sossego para continuar

desempenhando-as normalmente. A Corte Suprema, em tese, seria mais imparcial

no julgamento e não sucumbiria a pressões políticas ou da opinião pública. No caso

da Ação Penal nº 470/MG, porém, parece-nos que o efeito foi exatamente o

contrário. Nunca se viu um tribunal tão influenciado e tão disposto a interagir com a

mídia como se comportou o Supremo Tribunal Federal nesse caso específico.

7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 05/06/2013.

8 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Vol. 1. Atualizadores: Eduardo

Reale Ferrai e Guilherme Madeira Dezem. São Paulo: Millenium Editora, 2009. p. 169-170.

7

Fernando da Costa Tourinho, no mesmo sentido, esclarece que a

competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais se

dá em atenção a certas funções ou cargos de relevância para o Estado, que

merecem uma proteção especial que só pode ser dada pelos tribunais, em tese mais

isentos de pressões externas do que um juízo singular:

―[...] há determinados pessoas, independente de condições de fortuna, posição social, raça ou credo, que exercem, no cenário jurídico político da nossa terra, funções relevantes e, em atenção a essas funções, gozam elas de foro especial, isto é, não são processadas e julgadas, como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos Tribunais‖9.

Nessa mesma esteira, Julio Fabbrini Mirabete esclarece que a

competência por prerrogativa de função, ou ratione personae, visa proteger

determinadas funções públicas de eventuais pressões externas infensas ao poder

político de que se revestem, o que é atingível pelo princípio da maior independência

dos tribunais:

―(...) a competência também pode ser determinada pela prerrogativa de função. Trata-se de competência ratione personae (em razão da pessoa), ditada pela função da pessoa, bem como a dignidade do cargo exercido e não do indivíduo que a merece. Há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado, devendo ser julgadas por órgãos superiores da justiça, como medida de utilidade pública. A competência, nesse caso, é fundada no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais10‖.

A competência por prerrogativa de função, portanto, é ditada em razão do

cargo exercido e não em razão da pessoa que o exerce. Tanto é assim que, mesmo

que a acusação se refira a crime praticado no exercício da função, caso a pessoa

não mais a exerça na instauração do processo penal, a competência do Supremo

Tribunal Federal se exaure e o processo será remetido ao juiz de primeiro grau. Os

processos de ex-parlamentares, ex-autoridades, regra geral, são remetidos à

primeira instância.

9 TOURINHO, Fernando da Costa Filho. Código de Processo Penal Comentado. 8. ed. São Paulo:

Saraiva, 2004. v. 1. 10

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1997, p.161.

8

É que se trata de uma competência excepcional e, portanto, deve ser

interpretada restritivamente, de forma que apenas devem permanecer em

julgamento perante o Supremo Tribunal Federal os denunciados que gozam de

prerrogativa de função, não sendo possível nem a aplicação dos institutos de

conexão ou continência a corréus que nunca foram titulares de qualquer prerrogativa

de função, nem a permanência de ex-detentores dessas prerrogativas sob o

julgamento originário da Corte Suprema.

Qualquer pesquisa rápida na jurisprudência disponível no sítio eletrônico

do Supremo Tribunal Federal já revela como são reiteradas e majoritárias as

decisões pelo desmembramento doa processos, para se manter sob a égide da

Corte Suprema apenas os detentores de prerrogativas de função, remetendo-se os

demais ao seu juiz natural em primeiro grau.

Isso ocorre porque a competência por prerrogativa de função é uma

exceção expressa a direitos fundamentais essenciais ao devido processo legal,

dentre os quais destacamos o juiz natural e o duplo grau de jurisdição. Quem é

julgado originariamente pelo Supremo Tribunal Federal fica impossibilitado de

recorrer a uma instância superior, ou seja, é julgado em instância única.

Destarte, nos próximos capítulos, sempre fazendo um paralelo ao caso

concreto da Ação Penal 470, pretendemos pesquisar os institutos, princípios e

interpretações que orbitam em torno da competência por prerrogativa de função,

prevista no artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Carta Magna, aprofundando um

pouco mais nossos estudos sobre o princípio do devido processo legal, do duplo

grau de jurisdição, do juiz natural e outros a eles correlatos, bem como o papel do

intérprete na aplicação do direito, com o objetivo de construir um raciocínio lógico

que culminará, ao final, na demonstração da inconstitucionalidade de uma

interpretação ampliativa desse instituto, e mais, na inconstitucionalidade da negativa

do duplo grau de jurisdição àqueles que se submeterem ao julgamento originário da

Corte Suprema.

9

CAPÍTULO 1 – COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO À LUZ DOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS

No presente capítulo pretendemos situar o papel dos princípios

constitucionais, notadamente as garantias fundamentais, no contexto da

Constituição Federal de 1988, de modo a deixar clara a importância e força

normativa que tais garantias devem ter na concretização do direito pelo intérprete

constitucional.

Sendo assim, o artigo 102 da Constituição Federal, norma-disposição que

trata da competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e

julgar, não pode se furtar ao cumprimento dos princípios constitucionais que

passaremos a abordar mais adiante.

Conforme estudaremos melhor no capítulo que trata da Hermenêutica

Constitucional, embora todas as normas do texto constitucional possuam o mesmo

nível hierárquico, ainda assim é possível identificar, entre elas, algumas com maior

carga valorativa, que acabam se espraiando sobre todas as outras. Essas são as

chamadas normas-princípio, que abrigam um alto grau de abstração e generalidade,

bem como um conteúdo axiológico muito mais acentuado que o das demais normas

constitucionais, as normas-disposições, o que faz com que as normas-princípio

funcionem como diretrizes, vetores, normas-guia de toda a Constituição.

O principal papel dos princípios constitucionais, que se expressam

através das normas-princípio, é orientar a interpretação e a aplicação das demais

normas jurídicas, pois são eles que guardam os valores fundamentais de todo o

ordenamento jurídico de um país e, devido ao seu alto grau de abstração e força

valorativa, acabam por influenciar as demais normas do sistema constitucional e

infraconstitucional.

10

Luís Roberto Barroso11 classifica os princípios constitucionais em três

ordens, dentre as quais nos interessam os princípios gerais, que englobam, por

exemplo, o princípio da liberdade e todos os princípios dele decorrentes, expressos

no artigo 5º da Constituição Federal, ou seja, são os direitos e garantias

fundamentais, que servem como vetores de todo o sistema jurídico brasileiro.

1.1. Constituição e Poder Constituinte no Brasil

A fim de que se obtenha um desenvolvimento gradativo do estudo

proposto, necessária se faz a análise de alguns conceitos constitucionais básicos, a

começar pela resposta à seguinte pergunta: o que é Constituição?

O fato é que essa é uma pergunta difícil de se responder, uma vez que o

termo Constituição presta-se a mais de um sentido, de acordo com o ângulo pelo

qual é estudado, havendo diversas definições corretas, porém distintas.

Celso Ribeiro Bastos, no entanto, entende que a Constituição possui um

núcleo ou um centro que é comum a todos os conceitos, apesar de todas as

diferenças existentes entre eles. Em seus dizeres, “num sentido muito amplo,

Constituição significa a maneira de ser de qualquer coisa, sua particular estrutura12”.

José Afonso da Silva13, também conhecedor da multiplicidade de sentidos

que podem ser dados à palavra constituição, observa que:

“A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas

11

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 147-50. 12

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 42 13

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 37-38.

11

garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado”.

Como já dito, há diversos ângulos sob os quais pode ser vislumbrado o

conceito de Constituição. Sob o ângulo material, por exemplo, Ferdinand Lassale

observa a necessidade de a Constituição ser o reflexo das forças sociais que

estruturam o poder:

―Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a

verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social (...)14‖.

Entretanto, dentre todas as conceituações de Constituição, a mais

relevante para o presente estudo e também para o direito brasileiro é aquela calcada

no direito formal, pois é na Constituição formal que se evidencia de forma mais clara

a superioridade das normas constitucionais sobre as normas infraconstitucionais.

Constituição, em sentido formal, é o conjunto de normas jurídicas que se

distinguem das normas não constitucionais em razão de serem produzidas por um

processo legislativo mais árduo e mais solene, instituindo a maneira pela qual as

coisas devem ser.

Nos dizeres de Celso Bastos15:

―(...) a Constituição formal não procura apanhar a realidade do comportamento da sociedade, como a material, mas leva em conta tão somente a existência de um texto aprovado pela força soberana do Estado e que lhe confere a estrutura e define os direitos fundamentais dos cidadãos‖.

Em consequência dessa submissão a um processo legislativo mais

dificultoso para ser formada, a Constituição passa a ser a Lei Fundamental do país

14

LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? 2ª ed. São Paulo: Kairós Livraria Editora, 1985. p. 61. 15

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 46

12

e, beneficiada de um regime jurídico diferente, ocupa uma posição de superioridade

e, até melhor, supremacia sobre as demais normas do ordenamento jurídico.

Nossa Teoria Geral do Direito segue a linha kelseniana no entendimento

de que a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo

plano, mas sim uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de

normas jurídicas, em que uma norma é produzida de acordo com outra norma, que

por sua vez busca seu fundamento de validade em outra norma superior, e assim

por diante.

Em nosso caso, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

ocupa o topo da hierarquia de normas escalonadas a que Kelsen se refere.

Em outras palavras, se imaginarmos que todas as normas componentes

de um ordenamento jurídico encontram-se dispostas segundo uma hierarquia e

formando uma espécie de pirâmide, a Constituição Federal ocupará o topo dessa

pirâmide legal, sendo todas as demais normas não-constitucionais a ela

subordinadas.

Desta feita, todas as normas que não forem constitucionais serão

infraconstitucionais e, para garantir sua validade e eficácia, deverão obedecer aos

preceitos constitucionais. Em caso de conflito entre normas infraconstitucionais e

constitucionais, estas últimas sempre prevalecerão.

A Constituição abriga todas as garantias fundamentais do povo e tudo

aquilo que é considerado mais importante para a sociedade. Estrutura o Estado,

define as competências de seus órgãos superiores, regula as funções dos três

poderes etc. Em razão de tudo isso e de seu processo de elaboração mais

dificultoso do que o das demais normas, adquirindo um regime jurídico constitucional

peculiar, ocupa a Constituição uma posição de superioridade, submetendo, assim,

todo o ordenamento jurídico a seus férreos princípios.

13

Quando se diz que a Constituição advém de um processo legislativo mais

dificultoso, está-se fazendo referência ao Poder Constituinte Originário, anterior à

própria formação do direito.

Essa ideia de Poder Constituinte surgiu na época da Revolução Francesa,

através de um pequeno panfleto escrito por Emmanuel Sieyès, denominado “Que é

o terceiro Estado?”.

Sieyès desenvolveu uma teoria segundo a qual o Poder Constituinte é um

poder de direito que não encontra limites em direito positivo anterior, mas se

fundamenta apenas no direito natural, existente antes da nação e acima dela. Em

outras palavras, Sieyès sustenta a tese jusnaturalista de que, além do direito

positivo, há um direito superior decorrente da própria natureza humana, que precede

a formação do Estado. Desse direito superior é que decorrerá a formação da

Constituição e por isso ela também será soberana e inquestionável.

Carl Schmitt, porém, não acredita que a validade de uma Constituição se

apoie na justiça de suas normas, como os seguidores de Sieyès, mas sim na

decisão política que lhe dá existência, pois o Poder Constituinte, segundo esse

grande pensador jurídico, “é a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de

adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência

política, determinando assim a existência da unidade política como um todo16”.

De qualquer forma, apesar de todas as teorias em torno do Poder

Constituinte, uma coisa é certa: o Poder Constituinte é aquele que tem legitimidade

para gerar uma constituição. E, no Brasil, atualmente, a titularidade desse poder

pertence ao povo.

A doutrina distingue o Poder Constituinte em Originário e Derivado. O

primeiro é aquele que inaugura uma nova ordem jurídica, revogando a Constituição

16

SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucion. Madrid: Alianza, 1996. p. 86

14

anterior e os dispositivos infraconstitucionais anteriormente produzidos e

incompatíveis com a nova Constituição. É desse poder que temos falado até agora.

Já o Poder Constituinte Derivado é instituído na Constituição a fim de proceder à sua

reforma, devendo, porém, obedecer a limites impostos pela própria Constituição.

A Constituição Federal de 1988 é rígida e, portanto, só poderá ser

reformada pelo Poder Constituinte Derivado. Este, diferentemente do Poder

Constituinte Originário, está instituído na própria Constituição, possuindo uma

competência jurídica que se sujeita a limitações.

Essas limitações materiais à reforma da Constituição por via de emendas

ou por via de interpretações demasiadamente ampliativas são o maior objeto de

nosso estudo, principalmente quando tratamos de cláusulas pétreas.

Cláusulas pétreas são os dispositivos constitucionais impassíveis de

reforma, dada a sua peculiar importância ao interesse nacional. O §4º do artigo 60

da nossa Lei Fundamental dispõe, in verbis:

―Art. 60 (...) §4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais17‖.

Por ora importa ressaltar que os incisos III e IV acima transcritos, que

dispõem expressamente a impossibilidade de reforma de qualquer dispositivo

constitucional que verse sobre a separação dos poderes e sobre os direitos e

garantias individuais, será de grande importância no desenvolvimento de nosso

estudo.

17

Constituição Federal de 1988, Acesso em 05/06/2013, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

15

É importante verificar que as cláusulas pétreas são imutáveis porque são

consideradas o que há de mais importante e essencial pela Constituição.

Destarte, se alguma lei infraconstitucional vier a conflitar com quaisquer

dessas cláusulas pétreas, se fosse possível graduar a gravidade da

inconstitucionalidade, essa lei seria a mais inconstitucional de todas, pois estaria

ferindo princípios essenciais à sociedade, os mais privilegiados pelo poder soberano

que criou originariamente nossa Carta Magna.

Além disso, na ponderação da aplicabilidade das normas sobre os casos

concretos, os princípios contemplados como direitos e garantias fundamentais e

como cláusulas pétreas pela Carta Magna de 1988 devem ser privilegiados.

É o que demonstraremos a seguir: princípios como o do juiz natural e do

duplo grau de jurisdição não podem ser relativizados por motivos de praticidade para

a administração judiciária, ou em prol de eventual celeridade processual,

principalmente quando o bem jurídico em risco é a liberdade do homem, outra

garantia constitucional protegida como cláusula pétrea, e todos eles direitos

fundamentais de primeira geração.

1.2. Direitos e Garantias Fundamentais

A positivação dos direitos fundamentais ganhou concreção a partir da

Revolução Francesa de 1789, onde era consignada de forma precisa a proclamação

da liberdade, da igualdade, da propriedade e das garantias individuais liberais.

Entretanto, muito antes disso, no Código de Hamurabi (1690 a.C.), já havia indícios

primitivos desses direitos, que foram se desenvolvendo até o Bill of Rights (1689),

para enfim serem expressamente reconhecidos pela Declaração de Direitos

Francesa de 1789, ratificada na Declaração de Direitos do Homem de 1948.

16

Dessarte, a Revolução Francesa ganhou caráter universal e, conforme

bem salienta o professor Dalmo de Abreu Dallari18, não restam dúvidas que a

influência dessa revolução na vida constitucional (tanto no Ocidente como no

Oriente) representou um considerável progresso na história da asseveração dos

valores fundamentais da pessoa humana. No entanto, pondera Dallari, sendo ela um

produto do século XVIII, por evidente que seja, seu cunho é nitidamente

individualista, subordinando a vida social ao indivíduo e arrogando ao Estado a

finalidade de preservação dos direitos individuais.

Na realidade, os direitos e garantias fundamentais têm origem no direito

natural mais puro, anterior ao positivismo. Nos dizeres de Canotilho19:

―As concepções cristãs medievais, especialmente o direito natural tomista, ao distinguir entre lex divina, lex natura e lex positiva, abriram o caminho para a necessidade de submeter o direito positivo às normas jurídicas naturais, fundadas na própria natureza dos homens. Mas como era a consciência humana que possibilitava ao homem aquilatar da congruência do direito positivo com o direito divino, colocava-se sempre o problema do conhecimento das leis justas e das entidades que, para além da consciência individual, sujeita a erros, captavam a conformidade da lex positiva com a lex divina‖.

De acordo ainda com Canotilho, as expressões “direitos do homem” e

“direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo sua

origem e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do

homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão

jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem,

jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente.

Os direitos do homem surgiriam da própria natureza humana e daí o seu

caráter inviolável, atemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos

objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

18

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 2ª ed. São Paulo, Editora Saraiva, 1998. p. 215 19

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5º ed. Editora Livraria Almedina, 2002. p. 1378.

17

Portanto, adotando-se a visão de Canotilho, pode-se dizer que os direitos

e garantias fundamentais de nossa Constituição Federal são aqueles que,

decorrentes também de um direito natural, foram escolhidos para serem realmente

inseridos na ordem jurídica concreta, através da ação de um Poder Constituinte cujo

titular é o povo brasileiro.

Hodiernamente nossa Carta Magna reconhece e assegura DIREITOS

FUNDAMENTAIS explicitamente em seu artigo 5º. Os direitos fundamentais estão

inseridos dentro daquilo que a soberania popular quis denominar de princípios

constitucionais fundamentais, que são os princípios que guardam os valores

fundamentais da nossa ordem jurídica.

É possível afirmar que sem os direitos fundamentais a Constituição nada

mais seria do que um aglomerado de normas que somente teriam em comum o fato

de estarem insertas num mesmo texto legal, pois, atualmente, o reconhecimento e a

proteção dos direitos fundamentais do homem encontram-se na base das

Constituições modernas democráticas.

Assim, considerando-se que os direitos fundamentais originam-se do

direito natural mais puro, que são essenciais à manutenção da ordem jurídica de um

Estado, entre outros aspectos essenciais, devem ser eles duplamente protegidos e

respeitados.

Eis porque o legislador constitucional tomou o cuidado de colocar todo o

artigo 5º e seus incisos, que tratam dos direitos individuais e coletivos, sob a

proteção da imutabilidade, ou seja, transformou-os em cláusulas pétreas, a fim de

evitar que algum poder arbitrário tentasse privar o povo de seu gozo.

18

Os direitos fundamentais, porém, não se restringem apenas àqueles

expressos no texto da Constituição, como bem esclarece José Afonso da Silva ao

tratar do §2º20 do artigo 5º de nossa Carta Magna:

―Levaremos em conta também a circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias individuais não enumerados, quando, no §2º do art. 5º, declara que os direitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte21‖.

Destarte, os direitos fundamentais possuem natureza materialmente

constitucional, mesmo que não estejam expressamente previstos no texto da

Constituição, mas em tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

1.2.1. Classificação dos Direitos Fundamentais

A doutrina tradicional divide os direitos fundamentais em direitos de

primeira, segunda e terceira gerações (ou dimensões).

Os direitos fundamentais de primeira geração concernem aos direitos civis

e políticos do indivíduo, constituindo-se em uma proteção da esfera individual das

pessoas (direito de ir e vir, de pensamento, de liberdade, de igualdade, de

expressão, dentre outros) frente à opressão do Estado, que deve se quedar numa

postura de não intervenção ou não violação desses direitos.

Herança do pensamento liberal do século XVIII, esses direitos surgiram

como garantias negativas, de defesa da esfera privada dos indivíduos frente ao

Estado.

20

―Art. 5º. § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes

do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte‖. (Constituição Federal de 1988, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 05/05/2013) 21

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed.São Paulo: Malheiros

Editores, 2005.p. 183.

19

Os direitos fundamentais de segunda geração são os socioeconômicos e

culturais, pois contemplam a interação do indivíduo com o todo, isto é, o contato da

esfera individual com a da comunidade.

Por fim, os direitos fundamentais de terceira geração são aqueles direitos

de titularidade coletiva que se projetam tanto no plano interno do Estado como

internacionalmente (direito à paz, direito ao meio-ambiente etc).

Alguns doutrinadores sustentam que nem todos os direitos fundamentais

são cláusulas pétreas, existindo uma hierarquia entre eles. Entretanto, até mesmo

os defensores dessa corrente são unânimes com relação à irretocabilidade dos

direitos fundamentais de primeira geração, o que é referendado também pela

jurisprudência dominante.

Ademais, muitos defendem que a nossa Constituição de 1988 tem uma

tendência ideológica de proteção superconstitucional exclusiva desses direitos de

primeira geração, que incluem direitos civis referentes à proteção da esfera privada

contra a intervenção do Estado.

Oscar Vilhena Vieira, saindo das limitações dessa classificação, prefere

compreender os direitos fundamentais enquanto expressão daquela esfera de

proteção indispensável à realização da dignidade humana:

―Assim, aqueles direitos que possam ser moralmente reivindicados e racionalmente justificados, enquanto elementos essenciais à proteção da dignidade humana e que habilitem a democracia, como procedimento para a tomada de decisão entre seres racionais, iguais e livres, devem ser protegidos como superconstitucionais – estejam eles positivados por intermédio de normas constitucionais ou decorram dos princípios adotados pela Constituição ou, ainda, de tratados de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, o que é expressamente admitido pelo §2º do art. 5º da Constituição22‖.

22

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 245

20

Destarte, todos os direitos fundamentais que vamos tratar a seguir devem

ser protegidos como superconstitucionais, desde a liberdade e a igualdade, até o

direito ao duplo grau de jurisdição.

1.3. Liberdade da pessoa física

A liberdade é um direito fundamental do ser humano em todas as suas

acepções, ou seja, tanto como liberdade interna (liberdade subjetiva, psicológica ou

moral) como liberdade externa (liberdade objetiva ou liberdade de fazer, de atuar).

Se de um lado a liberdade externa, mais especificamente a liberdade da

pessoa física (de locomoção e circulação) é a que realmente interessa aos

propósitos do presente trabalho, importante se faz, em primeiro lugar, chegar a uma

breve definição do princípio.

Voltaire tratava a liberdade como um poder, o poder de se fazer o que se

quer:

―Ser verdadeiramente livre é poder. Quando posso fazer o que quero, eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero, pois de outro modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade consiste em andar quando quero andar, desde que não sofra de gota‖23.

Kant, por sua vez, não conseguia dissociar a liberdade da ideia de

igualdade. Ao tratar a liberdade como essência do homem, acreditava que ela só

poderia ser plena se garantida de forma igualitária a todos e, dentro de um contexto

de igualdade, as leis aplicadas sem distinções ou critérios arbitrários configurariam

uma expressão de uma sociedade livre. É o que se extrai das palavras de Francisca

Pamplona:

"Kant preocupa-se conscientemente, em conceber o modo de realizar a liberdade não apenas no plano exclusivamente individual, mas no convívio

23

VOLTAIRE (cog.) Jean-Marie de Arouet. O filósofo ignorante. Trad. Marilena de Souza Chauí, Bruno da Ponte e João Lopes Alves. In: Os pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978d, p. 297-328, p. 304.

21

humano, no contexto da sociedade humana. Para tanto, postulou que a liberdade pertencendo à essência do homem, deve existir em todos igualmente. Segundo esse filósofo, a liberdade só pode ser garantida na sociedade civil se a limitação imposta ao arbítrio de cada um pelo pacto social for igual para todos. De fato, a igualdade exige uma reciprocidade incondicionada no tratamento com o outro, explicitando, não me é lícito tratar alguém segundo certo princípio e, ao mesmo tempo, exigir que esse alguém me trate por princípio diverso. O homem não pode considerar-se como fim em si mesmo, e desconsiderar essa mesma condição em outrem, daí se conclui que as máximas de uma vontade devem ser também máximas de uma vontade universal, ou seja, as leis criadas para si mesmo, pela atuação de uma vontade individual devem coincidir com as leis criadas para a sociedade, pela atuação de uma vontade universal. Assim, o exercício da liberdade de cada um compatibilizar-se-ia com o da liberdade de todos os demais, segundo um princípio de igualdade, isso exatamente por ser o direito de liberdade, inato e igual para todo ser racional24".

Montesquieu, numa análise mais política do conceito, definiu liberdade

como o direito de se fazer tudo o que as leis permitem:

"Não há palavra que tenha recebido as mais diferentes significações e que, de tantas maneiras, tenha impressionado o espírito como a palavra liberdade. Uns tomaram-na pela facilidade em depor aquele a quem outorgaram um poder tirânico; outros, pela facilidade de eleger aquele a quem deveriam obedecer; outros pelo direito de se armar, e de exercer a violência; estes, pelo privilégio de só serem governados por um homem de sua nação, ou por suas próprias leis. Certo povo considerou, por muito tempo, como liberdade o hábito de usar barbas compridas". (...) ―É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam tal poder25‖.

De modo um pouco diverso do preceituado por Montesquieu, segundo

quem liberdade seria poder fazer tudo o que as leis permitissem, nossa Constituição

de 1988 adotou a liberdade como um verdadeiro princípio: princípio de que todos

têm a liberdade de fazer e de não fazer o que quiserem, desde que não existam leis

em contrário. Esse princípio ligado à liberdade de fazer em geral consta do artigo 5º,

24

PAMPLONA, Francisca Edineusa. A Dignidade da Pessoa Humana na Ordem Constitucional Democrática. Dissertação apresentada na Universidade Federal do Ceará, ano 2002. p. 10-11 25

MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do Espírito das Leis – in Coleção Os Pensadores - Montesquieu. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.199.

22

inciso II do texto constitucional: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei‖.

No mesmo sentido, o constitucionalista Luiz Pinto Ferreira definiu

liberdade como ―o poder do indivíduo de exercer suas atividades física, moral,

econômica e intelectual até o limite que o Estado autoriza, a fim de permitir o

exercício da liberdade alheia. A liberdade de um finda quando começa a liberdade

do outro‖26.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da

Costa Rica) contemplou a garantia de liberdade a todos, em seu artigo 7º, item 1:

"Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoal27".

Em verdade, a liberdade está intimamente ligada à finalidade de uma

Constituição em um Estado Democrático de Direito. Segundo Jorge Miranda, o

Estado constitucional é aquele que entrega à Constituição a salvaguarda da

liberdade de seus cidadãos:

―A ideia de Constituição é de uma garantia e, ainda mais, de uma direção da garantia. Para o constitucionalismo, o fim está na proteção que se conquista em favor dos indivíduos, dos homens cidadãos, e a Constituição não passa de um meio para o atingir. O Estado constitucional é o que entrega à Constituição o prosseguir a salvaguarda da liberdade e dos direitos dos cidadãos, depositando as virtualidades de melhoramento na observância dos seus preceitos, por ela ser a primeira garantia desses direitos28‖.

A Constituição Brasileira de 1988 tem a liberdade como um de seus

principais objetivos, fazendo menção a ela desde o seu preâmbulo até o caput do

artigo 5º e vários de seus incisos:

―Preâmbulo: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a

26

FERREIRA, Luiz Pinto. Manual de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p.70. 27

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, Acesso em

07/07/2013. 28

MIRANDA, JORGE. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1983, v. 2, p. 18.

23

assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL‖. ―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (...) XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar; (...) XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; (...) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (...) LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; (...) LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; (...) LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades

24

constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;29‖.

A ampla proteção constitucional às liberdades individuais encontra-se

também em outros artigos da nossa Carta Magna, como o artigo 206, inciso II, que

trata da liberdade de aprender e ensinar ou o artigo 227, que trata do direito à

liberdade da criança e do adolescente.

Tanto cuidado com o direito à liberdade, em nosso ordenamento jurídico

ocorre porque, dentro da classificação dos direitos humanos de Lafer, o direito à

liberdade é um direito de primeira geração, portanto, merecedor de uma proteção

maior, conforme Bonavides esclarece:

―Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente‖30.

Para José Afonso da Silva, a liberdade é a expressão mais importante

dos direitos individuais e valor que deve ser protegido pela democracia, como

condição de sua própria existência:

―Assim, a democracia – governo do povo, pelo povo e para o povo – aponta para

a realização dos direitos políticos, que apontam para a realização dos direitos econômicos e sociais, que garantem a realização dos direitos individuais, de que a liberdade é a expressão mais importante31‖.

No direito positivo, a liberdade de fazer ou de atuar é a que ganha maior

destaque, sendo possível destacar cinco formas dessa liberdade: liberdade da

pessoa física, liberdade de pensamento, liberdade de expressão coletiva, liberdade

de ação profissional e liberdade de conteúdo econômico e social.

29

Constituição Federal de 1988, Acesso em 05/06/2013, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 30

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24.ed. SÃO PAULO: Malheiros, 2009, p. 517 31

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2005.p. 132.

25

A liberdade da pessoa física (liberdade de locomoção e de circulação), no

rol de direitos fundamentais de primeira geração, ao lado do direito à vida, configura

um dos direitos mais primitivos do homem, posto que decorrente de sua própria

natureza:

―A liberdade da pessoa física (também impropriamente chamada liberdade individual, já que todas o são) constitui a primeira forma de liberdade que o homem teve que conquistar. Ela se opõe ao estado de escravidão e de prisão. A revolta de Espártaco tinha por objetivo da conquista dessa liberdade elementar do ser humano. A Guerra dos Palmares durante cem anos foi a mais expressiva batalha dos negros brasileiros contra o seu cativeiro. Resta, porém, a outra forma de oposição à liberdade da pessoa física, que é a detenção, a prisão ou qualquer impedimento à locomoção da pessoa, inclusive a doença32‖.

Não se pode restringir a liberdade de um homem a menos que seja

estritamente necessário, posto que se trata de um direito fundamental natural e

essencial desde os primórdios da sociedade. Eis porque se deve observar

rigorosamente o cumprimento dos direitos fundamentais, sobretudo do devido

processo legal e do duplo grau de jurisdição, em processos judiciais que envolverem

potencial restrição à liberdade de um cidadão:

―As restrições impostas à liberdade pessoal devem ser somente as necessárias à manutenção do convívio pacífico e harmonioso dos indivíduos, preservando-a sempre que possível, mas apenas a ela como também e sobretudo todos os direitos inerentes à personalidade, pois o homem tem que ter preservada sua vocação natural para decidir sobre seus rumos e sobre si mesmo, afirmando-se na sociedade em que vive33‖.

Se no texto constitucional não existirem salvaguardas positivas de

proteção às liberdades individuais, de nada adiantará a simples previsão de

proteção a essas liberdades:

―É que a liberdade da pessoa física, para ter efetividade, precisa de garantias contra a prisão, a detenção e a penalização arbitrárias, mediante mecanismos constitucionais denominados, em conjunto, direito de segurança. Essas regras de segurança pessoal exigem que as medidas tomadas contra os indivíduos

32

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 218-219. 33

ALMEIDA, Arnaldo Quirino de. Prisão ilegal e responsabilidade civil do Estado. São Paulo, Ed. Atlas, 1999. p. 14.

26

sejam conformes com o direito, isto é, anterior e regularmente estabelecidas, vale dizer, atendam ao princípio da legalidade, ao devido processo legal34‖.

O poder punitivo do Estado deve sempre se pautar pela intervenção

mínima aos direitos fundamentais do cidadão, principalmente quando se trata de

restringir sua liberdade, como explica Mariângela Gomes:

―(...) para que as possibilidades de intervenção estatal na esfera de liberdade dos indivíduos restem efetivamente limitadas, não basta a existência de limites apenas formais, mas impõe-se uma garantia material perante o risco de que a maioria parlamentar escolha criminalizar de forma antiliberal. E neste sentido, então, que o princípio da proporcionalidade assume especial papel de garantia, de caráter negativo, cumprindo a finalidade de frear a degeneração do poder punitivo, impedindo-o de expandir-se ilimitadamente35‖.

Como se vê, a liberdade em acepção ampla e, mais especificamente, a

liberdade da pessoa física, é um direito fundamental amplamente protegido tanto

pelo nosso sistema constitucional como pelos demais Estados Democráticos de

Direito desde o início da história da proteção dos direitos humanos no mundo. Em

sendo assim, qualquer limitação a esse direito fundamental apenas será possível se

houver expressa previsão legal e, mesmo assim, não poderá em hipótese alguma

ser dissociada do devido processo legal com todas as cautelas possíveis.

É o que dispõe o artigo 5º da nossa Constituição, em seu inciso LIV:

―ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal36‖.

Nesse contexto, nitidamente injustificável qualquer interpretação ampliativa da

competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais,

que, mesmo sendo excepcional e taxativa para algumas pessoas titulares de

determinados cargos ou funções, ainda assim poderia ser questionada diante da

supressão do devido processo legal, já que inviabiliza o duplo grau de jurisdição.

34

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 240. 35

GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 74-75. 36

Constituição Federal de 1988, Acesso em 05/06/2013, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

27

1.4. Devido Processo Legal: Ampla Defesa e Contraditório

O princípio do devido processo legal tem suas origens na Inglaterra da

Baixa Idade Média, quando se viu registrado em um dos primeiros instrumentos

históricos relevantes para a evolução do reconhecimento dos direitos humanos: a

Magna Carta de 1215 (Magna Charta Libertatum).

Carlos Roberto Siqueira Castro sintetiza a inserção do devido processo

legal na Magna Carta como suprema garantia das liberdades fundamentais do

indivíduo e da coletividade em face do Poder Público, in verbis:

―Ao despontar na Idade Média, através da Magna Carta conquistada pelos barões feudais saxônicos junto ao rei JOÃO ―SEM TERRA‖, no limiar do Século XIII, e embora inicialmente concebido como simples limitações às ação reais, estava esse instituto fadado a tornar-se a suprema garantia das liberdades fundamentais do indivíduo e da coletividade em face do Poder Público. Aqueles revoltados de alta linhagem que, sob a liderança do arcebispo de Canterbury, Stephen Langton, conquistaram a aposição do selo real naquela autêntica declaração dos direitos da nobreza inglesa frente à Coroa, jamais poderiam cogitar que nesse dia 15 de junho do ano de 1215 se estava lançando aos olhos da história da civilização a sementeira de princípios imorredouros, como o da ―conformidade com as leis‖, o do ―juiz natural‖, o da ―legalidade tributária‖ e o instituto do habeas corpus37‖. (grifos nossos)

Em uma época em que a monarquia regia até então soberana e sem

limitações, a instituição de uma nova legislação prevendo que os homens não

poderiam ser privados de seus bens e da sua liberdade sem que houvesse um

processo regular e que nele fossem julgados pelos seus pares, foi uma grande

vitória para os direitos humanos e um embrião do que viria a ser o princípio do

devido processo legal, como se verifica no artigo 39 da Magna Carta abaixo

traduzido:

―39 – Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra‖.

37

CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p.7.

28

O que se chamou de “lei da terra” na Magna Carta de 1215, veio a ser

consagrado como “devido processo legal” (due process of law) no reinado de

Eduardo III, através da lei inglesa de 135438.

No direito norte-americano, o princípio do devido processo legal vinha

sendo contemplado nos Estados Americanos desde a Declaração dos Direitos da

Virgínia, de 1776, antes mesmo da promulgação da Constituição Americana de

1787, e foi explicitamente contemplado na Quinta Emenda da Carta de Direitos

norte-americana (Bill of Rights), como se verifica na tradução abaixo, com os nossos

grifos:

―Ninguém poderá ser detido para responder por crime capital, ou por outra

razão infame, salvo por denúncia ou acusação perante um grande júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá ser sujeito, por duas vezes, pelo mesmo crime, e ter sua vida ou integridade corporal postas em perigo; nem poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo, nem poderá ser privado da vida, liberdade, ou propriedade, sem devido processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização‖. (grifos nossos)

Em 1868 entrou em vigor a Décima Quarta Emenda, que passou a ser

chamada de cláusula do devido processo legal, nos seguintes termos:

―Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado-membro onde residam. Nenhum Estado-membro poderá fazer ou aplicar nenhuma lei tendente a abolir os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privá-los da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo

38

―Muito embora a Magna Carta não tivesse utilizado a locução due process of law, sabe-se que esta logo sucedeu, como sinônima, a expressão law of the land. É certo nesse sentido, que já no século seguinte, durante o reinado de Eduardo III, no ano de 1354, foi editada uma lei do Parlamento inglês (statute of Westminstee of the Liberties of London) em que o termo per legem terrae é substituído pelo due process of law, o que é curiosamente atribuído a um legislador desconhecido (some unknown draftsman), segundo a meticulosa explicação histórica de Rodney Mott em seu festejado livro sobre o assunto. Na realidade, nesse período da primeira infância do nosso instituto, as expressões law of the land, due course of law e a due process of law, que acabou se consagrando, eram tratadas indistintamente pela mentalidade jurídica então vigorante‖. (CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p.10).

29

legal; nem poderá denegar a nenhuma pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis39‖. (grifos nossos)

Nos tempos atuais, nos Estados Democráticos de Direito de todo o

mundo, o princípio do devido processo legal é tratado como direito fundamental de

todos, o que pode ser observado pela simples leitura da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia

Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 194840:

―Artigo IX Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo X Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso‖. (grifos nossos)

Também pela leitura do Artigo 8º da Convenção Americana sobre os

Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, ratificada pelo

Brasil em 1992, é possível verificar a proteção ao devido processo legal em toda a

sua extensão41:

―Artigo 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração

39

RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de direito penal norte-americano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 269. 40

http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm 41

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, Acesso em 04/05/2013

30

de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos. 5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça‖. (grifos nossos)

No Brasil, como não poderia ser diferente, já que vivemos em um Estado

Democrático de Direito, o princípio do devido processo legal encontra-se protegido

como cláusula pétrea pelo artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, que

dispõe expressamente que ―ninguém será privado da liberdade ou de seus bens

sem o devido processo legal‖.

Nesse diapasão, a jurisprudência da Corte Suprema referenda o princípio

do devido processo legal como princípio básico do Estado Democrático de Direito e,

portanto, direito fundamental, dele decorrente a garantia da ampla defesa:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO - PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL - NORMAS LEGAIS - CABIMENTO. A intangibilidade do preceito constitucional que assegura o devido processo legal direciona ao exame

31

da legislação comum. Daí a insubsistência da tese de que a ofensa à Carta da República suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo apreciar a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto do Diploma Maior, muito embora se torne necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito: o da legalidade e o do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. (...)‖. (RE 428991, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 26/08/2008, DJe-206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL-02339-05 PP-01053 LEXSTF v. 31, n. 362, 2009, p. 223-230) (grifos nososs)

Segundo Alexandre de Moraes, ―o devido processo legal configura dupla

proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de

liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições

com o Estado-persecutor e plenitude de defesa [...]42‖.

A maioria dos doutrinadores entende o princípio do devido processo legal

como um “super-princípio”, que abarcaria outros princípios constitucionais, como a

ampla defesa, o contraditório e o acesso à justiça.

Nelson Nery Júnior, nesse sentido, explica:

―Especificamente quanto ao processo civil, já se afirmou ser manifestação do ‗due process of law‘: a) a igualdade das partes; b) garantia do jus actions; c) respeito ao direito de defesa; d) contraditório. Resumindo o que foi dito sobre esse importante princípio, verifica-se que a cláusula procedural ‗due process of law‘ nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível, isto é, de ter ‗his day in Court‘, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos. Bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e a maioria dos incisos do art. 5º seria absolutamente despiciendo. De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5º, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o legislativo e o judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores indagações43‖.

42

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 121. 43

NERY Júnior, Nelson. Princípios de processo civil na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 39.

32

Destarte, o inciso LV da Constituição de 1988, ao explicitar a necessidade

de respeito ao contraditório e à ampla defesa, simplesmente reforçou a garantia do

devido processo legal, tamanha sua importância no ordenamento jurídico pátrio:

―aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são

assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a

eles inerentes‖. (grifos nossos)

Ressaltamos aqui que o contraditório e a ampla defesa são assegurados

com todos os meios e RECURSOS a eles inerentes, sendo inimaginável a existência

de uma decisão irretocável ou irrecorrível pelo menos uma vez a um tribunal

superior.

O princípio do contraditório é bem sintetizado por Enrico Liebman como

garantia fundamental da própria Justiça, cuja condição primordial é que as defesas

sejam apresentadas de maneira plena e sem limitações arbitrárias, como se lê in

verbis:

―A garantia fundamental da Justiça e regra essencial do processo é o princípio do contraditório, segundo este princípio, todas as partes devem ser postas em posição de expor ao juiz as suas razões antes que ele profira a decisão. As partes devem poder desenvolver suas defesas de maneira plena e sem limitações arbitrárias, qualquer disposição legal que contraste com essa regra deve ser considerada inconstitucional e por isso inválida44‖.

Mais do que isso, segundo Humberto Theodoro Júnior, o direito ao

contraditório constitui-se também numa ―verdadeira garantia de não surpresa que

impõe ao juiz o dever de provocar o debate acerca de todas as questões, inclusive

as de conhecimento oficioso, impedindo que em solitária onipotência aplique normas

ou embase a decisão sobre fatos completamente estranhos à dialética defensiva de

uma ou de ambas as partes45‖.

44

LIEBMAN, Enrico Túlio. APUD MARCATO, Antônio Carlos. Preclusões: Limitação ao Contraditório. Revista de Processo, São Paulo, ano 5, nº 17, 1980, p. 111. 45

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico, in ASSIS, Araken de; MOLINARO, Carlos Alberto; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro.

33

Esse também é o entendimento de Leonardo Greco:

―Hoje, o contraditório ganhou uma proteção humanitária muito grande, sendo, provavelmente, o princípio mais importante do processo. Ele é um megaprincípio que, na verdade, abrange vários outros e, nos dias atuais, não se satisfaz apenas com uma audiência formal das partes, que é a comunicação às partes dos atos do processo, mas deve ser efetivamente um instrumento de participação eficaz das partes no processo de formação intelectual das decisões. Assim, impõe-se que as partes sejam postas em condições de, efetivamente, influenciar as decisões. As regras tradicionais da igualdade das partes e da sua audiência bilateral são básicas, mas, como já se afirmou, não satisfazem o contraditório participativo como um instrumento do princípio político da participação democrática. É necessário que o contraditório instaure o diálogo humano, que permita, por exemplo, ao juiz flexibilizar prazos e oportunidades de defesa, para assegurar a mais ampla influência das partes na formação da sua decisão46‖.

Importante também destacar que o direito ao contraditório e a exercer a

plenitude da defesa, com todos os recursos a ela inerentes, livre de qualquer

arbitrariedade, no direito processual penal, acaba revestindo-se de maior

importância ainda, uma vez que o que está em jogo é a própria liberdade do

acusado, outra garantia fundamental já estudada neste capítulo.

É o que se extrai do magistério de José Frederico Marques:

―Defesa é o direito que tem o réu ou acusado de opor-se à pretensão do autor (público ou privado), no curso do processo instaurado contra este. E como o processo tem um duplo conteúdo – um processual e outro de mérito – distinguem-se duas formas de defesa: a defesa processual e a defesa de mérito. Com a primeira, o acusado procurará mostrar, quando isto couber, que é inadmissível a prestação jurisdicional pedida, por falta de algum pressuposto processual, condição da ação ou de procedibilidade; e com a segunda, tentará demonstrar que inexiste o direito de punir, ou que a acusação, no todo ou em parte, é improcedente‖47.

“Processo Coletivo e outros temas de Direito Processual – Homenagem 50 anos de docência do Professor José Maria Rosa Tesheiner 30 anos de docência do Professor Sérgio Gilberto Porto”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 271. 46

GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. Introdução ao Direito Processual Civil. Vol. 1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 541. 47

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1980, vol. 1, p. 102-103.

34

O mesmo autor defende ainda que um ―processo em que se anule o

direito de defesa, colocando-se o réu em posição de inferioridade injustificável, não é

due process of law, e sim procedimento iníquo potencialmente capaz de violar e ferir

direitos subjetivos48‖.

Podemos concluir, portanto, seguindo o mesmo raciocínio de Arturo

Hoyos49, que o princípio do devido processo legal insere-se no rol das garantias

constitucionais do processo e, num sentido mais amplo, poderíamos afirmar que

somente em razão da existência de normas processuais justas e que venham a

permitir a justeza do próprio processo é que se conseguirá manter a sociedade sob

o império do Direito.

Fica claro, assim, que todos os demais princípios constitucionais

processuais derivam de alguma forma do super-princípio do devido processo legal,

restando manifestamente inconstitucional a supressão de quaisquer direitos

inerentes à defesa de um cidadão, principalmente quando sua liberdade pode ser

subtraída.

Conforme anota José Baracho, “o direito de ação e o direito de defesa

judicial são assegurados aos indivíduos, de modo completo, por toda uma série de

normas constitucionais que configuram o que se denomina de ‗due process of law‘,

processo que deve ser justo e leal50”.

Rogério Lauria Tucci defende que o devido processo legal, com relação

ao processo judicial, consubstancia-se, sobretudo, numa garantia conferida pela

Magna Carta ―objetivando a consecução dos direitos denominados fundamentais,

mediante a efetivação do direito ao processo, materializado num procedimento

48

MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil, 3ª ed., vol.II, p. 95-96. 49

HOYOS, Arturo. Apud WABIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre o princípio do devido processo legal. Revista dos Tribunais. São Paulo, a. 78, v. 646, p. 33-40, ago 1989 p. 34. 50

BARACHO, José Alfredo Oliveira. Processo Constitucional. In: ____. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. [s.n.t.]. p. 67.

35

regularmente desenvolvido, com a concretização de todos os seus respectivos

componentes e corolários, e num prazo razoável51‖.

O mesmo autor prossegue discorrendo sobre os direitos fundamentais

perseguidos pela garantia do devido processo legal:

―Esses direitos fundamentais – bem é de ver – são tidos nessa garantia, explícita ou implicitamente, como inerentes ou essenciais ao membro da coletividade na vida comunitária; e a saber: a) direito à integridade física e moral, e à vida; b) direito à liberdade; c) direito à igualdade; d) direito à segurança; e) direito à propriedade; f) direitos relativos à personalidade (a par, obviamente, do direito ao processo). E, não só deles, como, também, de todos os direitos subjetivos materiais, emergentes dos diversificados relacionamentos jurídicos resultantes da convivência social, concretamente lesados ou ameaçados de lesão52‖.

Dessa forma, não apenas o contraditório, a ampla defesa e o direito de

acesso à justiça (princípio da inafastabilidade da jurisdição) são inerentes ao devido

processo legal, mas este também abrange outros princípios, dentre os quais

citamos: o tratamento paritário conferido às partes envolvidas no processo; a

publicidade do processo; a proibição da produção de provas ilícitas; a imparcialidade

do julgador, bem como a garantia do juiz natural; a motivação das decisões; a

duração razoável do processo; o duplo grau de jurisdição, entre outros.

Mais especificamente no direito penal, Alberto Silva Franco ressalta a

“necessidade de reconhecimento do crime e de determinação da pena, através do

devido processo legal, respeitados os princípios atinentes à jurisdição, à ampla

defesa, ao contraditório e à igualdade de armas53‖.

Todos esses princípios estão contemplados em nossa Carta Magna como

direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, protegidos como cláusulas pétreas,

sendo completamente inconstitucional, injusta e arbitrária qualquer decisão que prive

51

TUCCI, Rogério Lauria.‖Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro‖. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 64-65. 52

CRUZ E TUCCI, José Rogério e TUCCI, Rogério Lauria. ―Constituição de 1988 e processo. Regramentos e garantias constitucionais do processo‖. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 16-17. 53

FRANCO, Alberto Silva. Temas de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 97.

36

um cidadão comum, sem qualquer prerrogativa de foro, de gozar desses direitos,

tão-somente em razão de interpretação extensiva e equivocada da competência

originária do Supremo Tribunal Federal para julgamento de infrações penais.

Nos próximos subcapítulos, procuraremos destacar algumas das

principais garantias relacionadas ao princípio do devido processo legal,

principalmente no âmbito do processo penal, uma vez que são elas que, no dizer de

Railda Saraiva, asseguram a legitimidade do procedimento, a imparcialidade do

julgador e a justiça das decisões:

―São, enfim, essas garantias que asseguram à sociedade fazer justiça, com a

dignidade que requer a preservação dos elevados interesses sociais e não, meramente, buscar vingança em ritmo passional, com elevado risco de cometer injustiça na aplicação de precipitadas represálias. A luta contra o crime exige efetivamente severidade das sanções penais correspondentes à gravidade do crime, certeza do julgamento e efetiva punição dos culpados, no mais breve espaço de tempo, de modo que a comoção social decorrente da ação criminosa seja apaziguada pela justa e pronta punição do criminoso. Mas não se pode descambar para o terrorismo penal, para usar a expressão de Radbruch, o qual pode estimular a violência do Estado e acabar vitimando inocentes. O processo penal e as garantias que o regem não são dirigidas aos criminosos, podendo ser alterados conforme o grau de perversidade destes. A tutela se dirige à Sociedade como um todo e a cada indivíduo em particular, que pode, a qualquer momento, se transformar em suspeito ou acusado, ficando sujeito a abusos injustificáveis e a injustiças irreparáveis se não cercado das garantias constitucionais que lhe asseguram um devido processo legal. A gravidade do crime em investigação ou em julgamento não pode autorizar a adoção de meios repressivos que repugnam a consciência de país democrático, violando a dignidade da pessoa humana, reduzindo o valor da liberdade e da igualdade, e levando o Estado à imoral competição com os criminosos da prática da violência, em atos de desumanidade (cf. Valiante, Il nuovo processo penale; processo per l´uomo, Milão, 1975, p. 45)54‖.

Depreende-se do exposto que a violência e a supressão de direitos

individuais fundamentais de um cidadão sub judice cometidas pela ira persecutória

de um Estado sob pressão midiática e da opinião publicada (transformada em

54

SARAIVA, Railda. ―A Constituição de 1988 e o ordenamento jurídico-penal brasileiro‖. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 69.

37

pública) resulta num verdadeiro ataque à democracia e à própria segurança jurídica

da sociedade como um todo55.

1.5. Juiz Natural

A pré-constituição de um órgão jurisdicional competente, ou seja, do juiz

natural, no direito brasileiro, é uma garantia constitucional que vem sendo

contemplada desde a Constituição Imperial de 1824, que dispunha em seu artigo

179, inciso XI, que "ninguém será sentenciado, senão pela autoridade competente,

por virtude de Lei anterior, e na forma por ela prescrita56".

Em adição, o princípio do juiz natural foi observado também na

Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução

217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948,

como se verifica no dispositivo abaixo transcrito:

―Art. 10. Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal57‖.

A mesma foi a orientação seguida pela Convenção Americana de Direitos

Humanos, o chamado Pacto de São José da Costa Rica, adotada e aberta à

assinatura em 1969 e ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. A

convenção prestigia o juiz natural em seu art. 8º, n. 1, transcrito abaixo:

55

Nesse sentido, citamos Humberto Theodoro Júnior: ―O devido processo legal, no Estado Democrático de Direito, jamais poderá ser visto como simples procedimento desenvolvido em juízo. Seu papel é o de atuar sobre os mecanismos procedimentais de modo a preparar e proporcionar provimento jurisdicional compatível com a supremacia da Constituição e a garantia de efetividade dos direitos fundamentais‖. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico, in ASSIS, Araken de; MOLINARO, Carlos Alberto; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro. “Processo Coletivo e outros temas de Direito Processual – Homenagem 50 anos de docência do Professor José Maria Rosa Tesheiner 30 anos de docência do Professor Sérgio Gilberto Porto”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 265). 56

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm , Acesso em 05/06/2013 57

http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm, Acesso em 04/05/2013

38

―Artigo 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza58‖. (grifos nossos)

Na Constituição Brasileira de 1988, o princípio do juiz natural está

consagrado no artigo 5°, inserto no Título II, que trata dos direitos e garantias

fundamentais dos indivíduos, conforme se verifica do excerto abaixo transcrito:

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; (...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;59‖.

Nossa jurisprudência dominante sempre tratou o princípio do juiz natural

como um verdadeiro postulado fundamental, como se pode verificar de mais um

excerto de voto:

―É irrecusável, em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural –, que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judiciária competente. Nenhuma pessoa, em conseqüência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A nova Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado –, consagrou, de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que ‗ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente 60.‖

José Frederico Marques bem simplifica a abrangência do princípio do juiz

natural:

58

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, Acesso em 04/05/2013 59

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, Acesso em 04/05/2013 60

Trecho do voto do Ministro Relator Celso de Mello no julgamento do HC 106.171 AM.

39

―A jurisdição pode ser exercida apenas por órgão previsto na Constituição da República: é o princípio do juiz natural ou juiz constitucional. Considera-se investido de funções jurisdicionais, tão-só, o juiz ou tribunal que se enquadrar em órgão judiciário previsto de modo expresso ou implícito, em norma jurídico-constitucional. Há previsão expressa quando a Constituição exaure a enumeração genérica dos órgãos a que está afeta determinada atividade jurisdicional. Há previsão implícita, ou condicionada, quando a Constituição deixa à lei ordinária a criação e estrutura de determinados órgãos61.‖

Ada Pellegrini Grinover62 resume a garantia do juiz natural através de três

afirmativas: “(...) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição;

ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os

juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui

qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja‖.

O Supremo Tribunal Federal, como já aludido acima, por diversas vezes

ressaltou em sua jurisprudência o princípio do juiz natural como expressão de uma

das mais importantes matrizes político-ideológicas que condicionam o desempenho,

por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório, como se

verifica do excerto a seguir transcrito:

―A essencialidade do princípio do juiz natural impõe, ao Estado, o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais. Na realidade, o princípio do juiz natural reveste-se, em sua projeção político-jurídica, de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem, por titular, qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado, e, enquanto limitação insuperável, incide sobre os órgãos do poder incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal. Vê-se, desse modo, que o postulado da naturalidade do juízo, ao qualificar-se como prerrogativa individual (ex parte subjecti), tem, por destinatário específico, o réu, erigindo-se, em consequência, como direito público subjetivo inteiramente oponível ao próprio Estado. Esse mesmo princípio, contudo, se analisado em perspectiva diversa, ex parte principis, atua como fator de inquestionável restrição ao poder de persecução penal, submetendo, o Estado, a múltiplas limitações inibitórias de suas prerrogativas institucionais. Isso significa que o postulado do juiz natural deriva de cláusula constitucional tipicamente bifronte, pois, dirigindo-se a dois destinatários distintos, ora

61

MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo: Editora Saraiva, 1976, v.1, p. 74. 62

GRINOVER, Ada Pellegrini, ―O Processo em Sua Unidade – II‖, p. 39, item n. 6, Rio de Janeiro: Forense, 1984.

40

representa um direito do réu (eficácia positiva da garantia constitucional), ora traduz uma imposição ao Estado (eficácia negativa dessa mesma garantia constitucional). O princípio da naturalidade do juízo, portanto, encerrando uma garantia constitucional, limita, de um lado, os poderes do Estado (impossibilitado, assim, de instituir juízos ―ad hoc‖ ou de criar tribunais de exceção) e assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma de lei anterior (vedados, em consequência, os juízos ―ex post facto‖)63.

Assim, o princípio do juiz natural, referendado pela Constituição de 1988

como direito fundamental que todo cidadão tem de não ser julgado por tribunal de

exceção, mas sim por um juiz previamente previsto em lei, não pode ser

excepcionado por discricionariedade de qualquer juízo ou tribunal, nem mesmo pelo

Egrégio Supremo Tribunal Federal.

Dessarte, a competência originária do Supremo Tribunal Federal para

processar e julgar infrações penais comuns é direcionada expressamente àquelas

pessoas descritas no artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal,

configurando uma violação à Constituição e à garantia do juiz natural, o julgamento

de qualquer pessoa que não àquelas expressa e previamente previstas no referido

dispositivo constitucional.

Nesse sentido, citamos recente jurisprudência do Egrégio Supremo

Tribunal Federal:

―COMPETÊNCIA – PRERROGATIVA DE FUNÇÃO – DIREITO ESTRITO. A competência do Supremo, presente a prerrogativa de função, é de direito estrito. Não a alteram normas processuais comuns, como são as da continência e da conexão. COMPETÊNCIA – JUÍZO NATURAL. O princípio do juiz natural surge com envergadura maior. O cidadão comum não pode ficar prejudicado pelo fato de haver corréu detentor da prerrogativa de ser julgado por este ou aquele Tribunal‖. (AP 666 AgR, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 13/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 06-06-2013 PUBLIC 07-06-2013). (grifos nossos)

63

Trecho do voto do Ministro Relator Celso de Mello no julgamento do HC 105.256 – Paraná, 2ª Turma, em 12.06.2012.

41

A jurisprudência acima citada reflete a realidade do Egrégio Supremo

Tribunal Federal consolidada há décadas, como se observa da ementa abaixo

transcrita, de 1992:

COMPETÊNCIA - CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA - CO-AUTORIA - PRERROGATIVA DE FORO DE UM DOS ACUSADOS - INEXISTÊNCIA DE ATRAÇÃO - PREVALÊNCIA DO JUIZ NATURAL - TRIBUNAL DO JÚRI - SEPARAÇÃO DOS PROCESSOS. 1. A competência do tribunal do júri não é absoluta. afasta-a a própria Constituição Federal, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o Estado, a competência de tribunais - artigos 29, inciso VIII; 96, inciso III; 108, inciso I, alínea "a"; 105, inciso I, alínea "a" e 102, inciso I, alínea "b" e "c". 2. A conexão e a continência - artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal - não consubstanciam formas de fixação da competência, mas de alteração, sendo que nem sempre resultam na unidade de julgamentos - artigos 79, incisos I, II e parágrafos 1º e 2º e 80 do Código de Processo Penal. 3. O envolvimento de corréus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro como tal definida constitucionalmente, não afasta, quanto ao outro, o juiz natural revelado pela alínea "d" do inciso XXXVIII do artigo 5º da Carta Federal. A continência, porque disciplinada mediante normas de índole instrumental comum, não é conducente, no caso, a reunião dos processos. A atuação de órgãos diversos integrantes do Judiciário, com duplicidade de julgamento, decorre do próprio texto constitucional, isto por não se lhe poder sobrepor preceito de natureza estritamente legal. 4. Envolvidos em crime doloso contra a vida conselheiro de tribunal de contas de município e cidadão comum, biparte-se a competência, processando e julgando o primeiro o Superior Tribunal de Justiça e o segundo o tribunal do júri. Conflito aparente entre as normas dos artigos 5º, inciso XXXVIII, alínea "d",105,inciso I, alínea "a" da Lei Básica Federal e 76, 77 e 78 do Código de Processo Penal. 5. A avocação do processo relativo ao corréu despojado da prerrogativa de foro, elidindo o crivo do juiz natural que lhe é assegurado, implica constrangimento ilegal, corrigível na via do habeas-corpus. (HC 69325, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/1992, DJ 04-12-1992 PP-23058 EMENT VOL-01687-01 PP-00115 RTJ VOL-00143-03 PP-00925). (grifos nossos)

A garantia do juiz natural, pelo exposto, é um princípio constitucional que

não pode ser relativizado por questões práticas de administração judiciária e muito

menos por mera discricionariedade do órgão julgador, sob pena de atentar ao

próprio Estado Democrático de Direito64.

64

“O principio do juiz natural, enquanto postulado constitucional adotado pela maioria dos países cultos, tem grande importância na garantia do Estado de Direito, bem como na manutenção dos preceitos básicos de imparcialidade do juiz na aplicação da atividade jurisdicional, atributo esse que presta à defesa e proteção do interesse social e do interesse público geral‖. (NERY JUNIOR, Nelson.

42

Além disso, um dos principais propósitos do postulado do juiz natural é a

garantia da imparcialidade do juiz que procederá ao julgamento. Se for permitido ao

juiz escolher as ações que irá julgar, principalmente na esfera criminal, não se pode

garantir ao réu que seu julgamento será isento de pré-conceitos políticos, sociais,

morais, ideológicos ou pessoais por parte daquele que escolheu ser seu julgador.

Eis porque a competência tem que ser previamente definida por critérios objetivos

legais. Sob esse aspecto, o princípio do juiz natural deriva não apenas do devido

processo legal, mas também do princípio da segurança jurídica.

Com relação à importância da imparcialidade dos juízes e tribunais nos

julgamentos criminais, o Supremo Tribunal Federal reiteradamente se manifestou no

sentido de que “o princípio do Juízo - que traduz significativa conquista do processo

penal liberal, essencialmente fundado em bases democráticas - atua como fator de

limitação dos poderes persecutórios do Estado e representa importante garantia da

imparcialidade dos juízes e tribunais65".

Segundo nossa melhor doutrina, representada por Fernando da Costa

Tourinho Filho, a imparcialidade do juiz é condição para se salvaguardar a dignidade

da administração da justiça:

"(...) o Juiz deve ser imparcial. Como órgão que proclama o Direito, não se poderia aceitar como justa a decisão proferida por Juiz não imparcial. Destarte, o juiz suspeito deve ser afastado imediatamente da direção do processo. Não apenas pelo risco que a parte corre em ser julgada por Juiz parcial, mas, também, como diz Alcalá-Zamora, para salvaguardar o prestígio profissional e a dignidade da administração da justiça"66.

Em outras palavras, a observância da imparcialidade nos julgamentos

trata-se de um pressuposto da própria validade e regularidade da relação processual

e de característica inerente ao princípio do juiz natural, como se extrai dos dizeres

de Ada Pelegrini Grinover:

Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 6ª edição,v.21, 2000, p. 65.) 65

STF - 1ª T. - HC n° 69.601/SP - Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 18 dez. 1992, p. 24.377. 66

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 659

43

―A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se

instaure validamente (...). A incapacidade subjetiva do juiz, que se origina da suspeita de sua imparcialidade, afeta profundamente a relação processual. Justamente para assegurar a imparcialidade do juiz, as constituições lhe estipulam garantias, prescrevem-lhe vedações e proíbem juízos e tribunais de exceção67"·

Sem a garantia da imparcialidade do juiz, não se pode falar sequer em

atividade jurisdicional, como ressalta Vicente Greco Filho, in verbis:

―(...) imparcialidade do Juiz é pressuposto de toda a atividade jurisdicional. A imparcialidade pode ser examinada sob um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. No aspecto objetivo, a imparcialidade se traduz na equidistância prática do juiz no desenvolvimento do processo, dando às partes igualdade de tratamento"68.

Não se pode negar, dessa forma, uma certa parcialidade por parte do

Egrégio Supremo Tribunal Federal, ao usurpar do juiz natural de primeiro grau o

julgamento de réus que não gozam da prerrogativa de função descrita no artigo 102,

inciso I, alíneas “b” e “c” da Carta Magna.

Afinal, já demonstramos exaustivamente aqui que a jurisprudência

dominante do Egrégio Tribunal Constitucional, desde a promulgação da Constituição

de 1988, vem se consolidando no sentido de que sua competência originária,

presente a prerrogativa de função, é de direito estrito, sendo-lhe vedada a avocação

do processo relativo a corréu despojado da prerrogativa de foro, o que elidiria o crivo

do juiz natural que lhe é assegurado.

Quais seriam os motivos para se negar uma garantia constitucional como

a do juiz natural em apenas alguns julgamentos, enquanto que, na grande maioria

dos casos essa garantia, ou melhor, esse postulado, é enfaticamente sublimado pela

Corte Suprema?

67

GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria Geral do Processo, 20'Ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 51/52. 68

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil brasileiro. ValI, São Paulo, Saraiva, n. 3 • p. 22.

44

No julgamento da Ação Penal 470, por exemplo, de grande apelo

midiático e político, é praticamente impossível pensar que a avocação irregular do

julgamento de corréus que não gozavam de prerrogativa de foro tenha se dado por

motivos que não subjetivos e, portanto, completamente parciais.

Para reflexão sobre essa intrigante questão, vale finalizar o presente

tópico com um trecho de artigo publicado pelo jurista Luiz Flávio Gomes no site

Consultor Jurídico em 25 de setembro de 2012:

―O julgamento do STF, ao ratificar com veemência vários valores republicanos de primeira linhagem — independência judicial, reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc.—, já conta com valor histórico suficiente para se dizer insuperável. Do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do Estado de Direito, no entanto, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo, especialmente, o do Brasil, apresentam-se como deploráveis. No caso Las Palmeras a Corte Interamericana mandou processar novamente um determinado réu (na Colômbia) porque o juiz do processo era o mesmo que o tinha investigado anteriormente. Uma mesma pessoa não pode ocupar esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no mesmo processo. O Regimento Interno do STF, no entanto (artigo 230), distanciando-se do padrão civilizatório já conquistado pela jurisprudência internacional, determina exatamente isso. Joaquim Barbosa, no caso mensalão, presidiu a fase investigativa e, agora, embora psicologicamente comprometido com aquela etapa, está participando do julgamento. Aqui reside o primeiro vício procedimental que poderá dar ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela Corte Interamericana69‖.

1.6. Duplo Grau de Jurisdição

O princípio do duplo grau de jurisdição pode ser expresso na

possibilidade da parte pleitear o reexame integral da sentença de primeiro grau que

lhe for desfavorável e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que a

proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Em outras palavras, trata-se do

direito fundamental de se recorrer de decisão desfavorável em primeira instância a

69

GOMES, Luiz Flavio. Julgamento do Mensalão no STF pode não valer. Publicado em 25 de setembro de 2012 na Revista Consultor Jurídico. http://www.conjur.com.br/2012-set-25/luiz-flavio-gomes-julgamento-mensalao-stf-nao-valer

45

um tribunal hierarquicamente superior na administração judiciária, o que comumente

se vê refletido no recurso de apelação.

Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio

Scarance Fernandes detalham como seria essa possibilidade de revisão por

jurisdição superior de decisão proferida em jurisdição inferior:

―Chama-se jurisdição inferior aquela exercida pelos juízes que conhecem do

processo desde o seu início (competência originária). E denomina-se jurisdição superior a exercida pelos órgãos a que cabem os recursos contra as decisões proferidas pelos juízes inferiores. Essa terminologia, que é corrente, não significa, porém, uma relação de subordinação entre os juízes. Os magistrados são livres para julgar, obedecendo somente à lei e à sua consciência (princípio do livre convencimento)70‖.

A necessidade de correção de possíveis erros de decisões judiciais é uma

preocupação existente desde as civilizações mais remotas, como lembra José

Carlos Barbosa Moreira:

―desde tempos remotos têm-se preocupado as legislações em criar expedientes para a correção dos possíveis erros contidos nas decisões judiciais. À conveniência da rápida composição dos litígios, para o pronto restabelecimento da ordem social, contrapõe-se o anseio de garantir, na medida do possível, a conformidade da solução ao direito. Entre essas duas solicitações, até certo ponto antagônicas, procuram os ordenamentos uma via média que não sacrifique, além do limite razoável, a segurança à justiça, ou esta àquela71‖.

No Direito Grego já se podia falar em duplo grau de jurisdição em

algumas situações, como nos recursos endereçados ao Tribunal dos Heliastas,

guardadas as devidas proporções, já que os gregos não desenvolveram a noção de

direitos individuais72.

No Direito Romano, na época da República (510 a 27 a.C.), a

organização administrativa era composta pelo Senado, pelas Assembleias do Povo

70

GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; e FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 27. 71

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1993. v. 6. p. 204. 72

Cf. LIMA, Carolina Alves de Souza. O princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. São Paulo: Manole, 2004. p. 24.

46

e pela Magistratura. Quando um cidadão romano tivesse uma decisão da

magistratura que lhe fosse desfavorável, poderia recorrer à Assembleia do Povo,

para reexame da decisão: provocatio ad populum.

No entanto, foi somente durante o Principado Romano (27 a 284 d.C),

com o instituto da appellatio, no período da cognitio extraordinaria, que o recurso

surge como direito subjetivo do vencido de provocar o reexame da sentença e se

consolida definitivamente no direito romano:

―Evidentemente foram os próprios romanos que, sentindo a necessidade de

haver novo julgamento sobre a causa já decidida, instituíram o duplo grau no principado, após o período inicial do procedimento no direito romano clássico, onde era negado o exercício do direito de recorrer73‖.

Em estudo histórico do Direito Romano, Oreste Nestor de Souza Laspro

afirma que, no início, não havia recursos, mas somente formas de impugnação de

decisões judiciais, entre elas a intercessio, infitiatio, revocatio in duplum e a restitutio

in integrum. A appellatio somente surgiria na terceira fase do processo romano,

consistindo num típico "instituto imperial", como manifestação de fortalecimento dos

poderes do príncipe:

―Dentre as modificações sofridas pelo direito processual, destaca-se a possibilidade de se recorrer da decisão do magistrado para princeps, com base no poder imperial e prestígio pessoal por ele mantidos. Esse recurso, se tinha também como finalidade garantir ao povo a possibilidade de revisão das decisões, com uma tutela eficaz de seus direitos, concentrava uma relevância política fundamental, na medida em que, por meio dele, os imperadores afirmavam e estendiam a aplicação das leis imperiais e garantiam um controle cada vez maior sobre toda a estrutura administrativa romana74‖.

É o que se extrai também dos ensinamentos de Silvanio Covas, que

acrescenta que ―a princípio, o julgamento da appellatio era exercido pelo próprio

imperador que, com o passar do tempo, delegou tal função a funcionários do estado

73

NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 38. 74

LASPRO, Oreste Nestor de Souza, Duplo grau de jurisdição no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 41.

47

devidamente investidos de jurisdição, que passaram a ser chamados de

magistrados75‖.

Nesse sentido, interessante o resgate histórico do recurso no direito

romano, realizado por Thicianna da Costa Porto Araujo:

―No que interessa à análise que se inicia, foi o período da cognitio extra ordinem que marcou o aparecimento da apelação recebida com efeito suspensivo, como forma de impugnação das sentenças definitivas, instituído o preparo como condição de admissibilidade recursal. Costuma-se admitir que o nascimento do sistema recursal no Império Romano deveu-se mais a uma inspiração hierárquico-autoritária que à preocupação com a garantia de Justiça, visto que a aplicação das leis pelo imperador, que inicialmente constituía a instância recursal, garantia-lhe um enorme controle sobre toda a sociedade, em face da inegável concentração de poder que representava. A posteriori, a evolução do próprio Direito romano encarregou-se de atribuir a responsabilidade pelo julgamento dos recursos a outros juízes que não os prolatores das sentenças impugnadas. Duas características do sistema recursal romano cumpre ressaltar para o que interessa à análise em questão: primeira, não só o duplo grau de jurisdição restava garantido a partir do estabelecimento da justiça pública em Roma, como também a pluralidade de instâncias, o que permitia à parte apresentar mais de uma apelação; e, segunda, a existência de limitações ao direito de recorrer em razão do grau hierárquico do prolator da sentença76‖.

Moacyr Amaral Santos destacou as características fundamentais do

período da cognitio extraordinaria, ressaltando a possibilidade de interposição de

recursos contra a sentença no Império Romano:

―a) desenvolvia-se todo perante o juiz, suprimida a divisão do procedimento em

duas fases, como o era no período formulário; b) aplicação da escrita: escritos eram o libellus conventionis, o libellus contradictionis, ou libellus responsionis, a litis denuntiatio, a sententia; c) a citação (litis denuntiatio) fazia-se por meio de funcionário do Estado, auxiliar da justiça; d) possibilidade da instauração e prosseguimento do processo à revelia do réu: uma vez citado, o não-atendimento do réu à convocação judicial não impedia a instauração e o desenvolvimento da instância; e) a litiscontestatio, não mais com o sentido que

75

COVAS, Silvânio. O duplo grau de jurisdição. In: ALVIM, Eduardo Pellegrini de Arruda, NERY JUNIOR, Nelson, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 76

ARAUJO, Thicianna da Costa Porto. O princípio do duplo grau de jurisdição. Artigo publicado na Revista Âmbito Jurídico, Acesso em 18/08/2013, no endereço eletrônico http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5030.

48

tinha no procedimento formulário, mas apenas correspondendo ao momento em que se encerrava a fase postulatória, ou seja, aquela em que o autor formula o seu pedido e o réu oferece sua defesa; f) força autoritária da sentença, por provir de uma autoridade do Estado; g) admissibilidade de interposição de recursos contra a sentença; h) execução da sentença por via de medidas coativas do Estado, penhorando-se bens do vencido suficientes para garantia da execução (pignus in causa iudicati captum)77‖.

Na Idade Média, o sistema recursal romano começou a se aperfeiçoar,

principalmente sob a influência do direito canônico, que generalizou a recorribilidade

das sentenças à medida em que os senhores feudais iam sendo submetidos à

autoridade dos reis:

―No Direito Canônico, que evoluiu a partir do Direito Romano e paralelamente ao

Direito Germânico, perduraram os recursos do Direito Romano. E, tanto por influência da Igreja como pelo fortalecimento do poder dos reis, generalizou-se em toda a Europa o emprego da apelação ao monarca contra os abusos dos senhores feudais ou dos magistrados locais. Multiplicaram-se pouco a pouco as vias impugnativas, a ponto de o processo civil se tornar tormentoso e quase infindável e as custas aumentarem, enriquecendo os juízes e tornando os cargos judiciários objeto de comércio78‖.

Ainda segundo Moacyr Amaral Santos, os recursos acabaram se

tornando fonte de enriquecimento para os magistrados, perdendo um pouco o

sentido de justiça que justificaria sua existência, conforme explicado abaixo:

―Criaram-se juízes proprietários dos cargos, e esses, praticamente, se transformaram em proprietários da função judiciária. À irrecorribilidade das sentenças se substituiu a recorribilidade da generalidade das decisões, até de simples despachos, multiplicando-se os graus de jurisdição e, em conseqüência, os recursos. O sistema propiciava aos juízes o crescimento de suas rendas. Desmereceu-se a justiça, tornada objeto de comércio durante largos séculos‖.

Foi somente a partir da Revolução Francesa que se começou uma

revisão do sistema recursal que era praticado até então com base no direito romano,

para se chegar ao princípio do duplo grau de jurisdição tal como o conhecemos hoje,

conforme se pode extrair das lições de Pontes de Miranda:

77

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2001a. v. 3. p. 44. 78

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2001a. v. 3. p. 81.

49

―Enquanto a justiça era diretamente administrada pelo povo, ou pelo rei, a regra era a instância única. Nos primórdios, desconhecia-se a pluralidade das instâncias. Mas, depois, quando se tirou do povo, ou do rei, a função judiciária, introduziu-se a tendência a submeter-se a reexame, devido à possibilidade de erro ou de má-fé, a sentença judicial. Compreende-se que, primeiro, se desse tal função ao próprio rei, ou ao povo. A aparição da pluralidade de instâncias foi seguida por lenta e pertinaz investigação da melhor técnica para a composição dos tribunais e, conseqüência, da admissão dos recursos e do processo dos recursos. Na Revolução Francesa, o princípio do duplo grau de jurisdição apareceu como firmado79‖.

Devido aos abusos cometidos com a generalização dos recursos na Idade

Média, a Assembleia Constituinte Francesa chegou a debater a possibilidade

inclusive de suprimi-los. Felizmente, ao final dos debates, prevaleceu o duplo grau

de jurisdição como uma garantia fundamental do jurisdicionado, conforme bem

recorda Nelson Nery Júnior:

―Quando se estabelece nova ordem jurídica em determinada sociedade, a

preocupação dos que assumem o poder é extirpar todo e qualquer resquício restante da ordem jurídica anterior. Foi nesse clima que, imediatamente após a revolução francesa, os então novos detentores do poder viam no recurso forma de elitismo, onde os juízes dos tribunais superiores seriam uma espécie de casta com poderes de mando sobre os magistrados de primeiro grau. Os opositores do duplo grau já assim se manifestavam quando da Assembleia Nacional Constituinte instalada logo em seguida à Revolução Francesa. No entanto, o Decreto de 1.5.1790 assegurou-o, prevendo recursos contra as sentenças dos juízes de primeiro grau, o que ficou definitivamente estabelecido na grande lei sobre a organização judiciária, de 16-24 de agosto de 1790. No calor dos debates revolucionários, foi dado a lume o ato constitucional de 24.6.1793, que atendendo à ideia então tida como liberal, estabeleceu em seu art. 87 que as decisões da justiça civil eram definitivas, sem o cabimento de qualquer tipo de recurso ou reclamação. Nada obstante, esse mesmo ato constitucional de 1793 previa apenas a cassação que, na verdade, não tinha o poder de reformar as decisões judiciais, mas tão-somente de revogá-las (art. 99), a fim de que, cassada a decisão, os autos fossem devolvidos para que o juiz de primeiro grau outra pronunciasse em seu lugar. Felizmente a rebeldia dos revolucionários, neste particular, ficou vencida pelo bom senso e pela Constituição francesa de 22.8.1795 (Constitution Du 5 Fructidor na III) (arts. 211, 218, 219), que restabeleceu o duplo grau de jurisdição vigente até o dias de hoje, tanto em França como na maioria dos países ocidentais80‖.

79

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 7. ed. São Paulo: Forense, 1975. p. 19. 80

NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 38.

50

Assim, embora no início da Revolução Francesa tenha ocorrido uma

tentativa de abolição do princípio do duplo grau de jurisdição, os debates em torno

dele e a decisão final de referendá-lo serviram para fortalecê-lo e consolidá-lo como

uma garantia fundamental do jurisdicionado em face dos abusos e das injustiças

eventuais das decisões em um primeiro momento.

Desde então, o conceito de duplo grau de jurisdição como um direito

fundamental do homem se firmou definitivamente no mundo ocidental, inclusive em

Portugal. O Brasil, de colonização portuguesa, até sua independência, regeu-se

pelas ordenações lusitanas, inicialmente submetendo a revisão das decisões

monocráticas às Casas de Suplicação em Portugal, e posteriormente contando com

Cortes de Justiça locais, responsáveis pela revisão das sentenças dos magistrados

de primeiro grau:

―Para diminuir os poderes dos ouvidores no Brasil, decidiu Filipe II, como

monarca da União Ibérica de Portugal e Espanha, dar à Justiça na colônia um órgão colegiado, instituindo, assim, um Tribunal de Relação no Brasil. Essa é a origem da Relação da Bahia, criada em 1587, mas instalada efetivamente apenas em 1609. Como a nova forma de administração colegiada da Justiça feria os interesses dos governadores-gerais, que tinham maior controle sobre os ouvidores, conseguiram estes a supressão da Relação em 1626. No entanto, a colegialidade já era uma conquista irreversível como elemento de segurança do jurisdicionado na revisão dos julgados singulares. Assim, em 1652 é reinstalada a Relação da Bahia, como Corte Superior Brasileira81‖.

Com a primeira Constituição Imperial do Brasil, de 25 de março de 1824,

o duplo grau de jurisdição foi incorporado definitivamente ao direito brasileiro como

direito fundamental dos cidadãos, conforme se verifica da leitura do artigo 158

daquela Constituição:

―Art. 158. Para julgar as causas em segunda e última instância haverá nas Províncias do Império as Relações que forem necessárias para comodidade dos Povos82‖.

81

MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Evolução Histórica da Estrutura Judiciária Brasileira. Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto. Brasília, vol. 1, n. 5, Setembro 1999. Acesso em 19/08/2013. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_05/evol_historica.htm 82

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm Acesso em 04/05/2013.

51

Desta forma, como se extrai do acima exposto, o Brasil conhece o duplo

grau de jurisdição desde os tempos de colônia e a incorporação desse princípio

como garantia fundamental se deu de forma natural logo na primeira constituição

pós-declaração de sua independência.

Não poderia ser diferente no sistema atual. O princípio do duplo grau de

jurisdição, na Constituição Brasileira de 1988, pode ser extraído do rol das garantias

fundamentais prescritas no artigo 5º, in verbis:

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (...) 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais83‖.

Além de ser decorrência natural do devido processo legal, do contraditório

e da ampla defesa, conforme entendimento da doutrina e jurisprudência dominantes,

o princípio do duplo grau de jurisdição foi expressamente referendado como um

direito fundamental pelo Brasil, quando da publicação do Decreto nº 678, de

06.11.1992, que incorporou à Constituição Brasileira, com natureza de emenda

constitucional, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José

da Costa Rica), de 22.11.1969, que assegura a toda pessoa o “direito de recorrer da

sentença para juiz ou tribunal superior84”.

83

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 04/05/2013 84

Pacto de São José da Costa Rica - ―Artigo 8º - Garantias Judiciais: 1)Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer

52

Nas lições de Carolina Alves de Souza Lima:

―O duplo grau de jurisdição é, no sistema jurídico brasileiro, uma garantia

constitucional. Ele decorre do princípio do devido processo legal, do princípio da ampla defesa e da própria organização constitucional dos tribunais brasileiros. A legislação infraconstitucional também trata o princípio do duplo grau de jurisdição. Os códigos de processo civil e de processo penal, a consolidação das leis do trabalho, as leis extravagantes e as leis que cuidam da organização judiciária preveem o referido princípio85‖.

O próprio Ministro Joaquim Barbosa reconheceu a hierarquia

constitucional do duplo grau de jurisdição, em voto proferido no AI 601.832 – AgR

/SP86, embora não tenha admitido que tal princípio seja absoluto, como não

reconhece que nenhuma garantia constitucional o seja, pois, segundo seu

entendimento, todas sofrem limitações impostas pelo próprio texto da Constituição.

De todo modo, vale transcrever os seguintes trechos de seu voto:

acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2)Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior‖. 85

LIMA, Carolina Alves de Souza. O princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. São Paulo: Manole, 2004. p. 5. 86

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ARTIGO 5°, PARÁGRAFOS 1° E 3°, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. EMENDA CONSTITUCIONAL 45/04. GARANTIA QUE NÃO É ABSOLUTA E DEVE SE COMPATIBILIZAR COM AS EXCEÇÕES PREVISTAS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL. PRECEDENTE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Agravo que pretende exame do recurso extraordinário no qual se busca viabilizar a interposição de recurso inominado, com efeito de apelação, de decisão condenatória proferida por Tribunal Regional Federal, em sede de competência criminal originária. 2. A Emenda Constitucional 45/04 atribuiu aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados na forma prevista no § 3º do art. 5º da Constituição Federal, hierarquia constitucional. 3. Contudo, não obstante o fato de que o princípio do duplo grau de jurisdição previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos tenha sido internalizado no direito doméstico brasileiro, isto não significa que esse princípio revista-se de natureza absoluta. 4. A própria Constituição Federal estabelece exceções ao princípio do duplo grau de jurisdição. Não procede, assim, a tese de que a Emenda Constitucional 45/04 introduziu na Constituição uma nova modalidade de recurso inominado, de modo a conferir eficácia ao duplo grau de jurisdição. 5. Alegação de violação ao princípio da igualdade que se repele porque o agravante, na condição de magistrado, possui foro por prerrogativa de função e, por conseguinte, não pode ser equiparado aos demais cidadãos. O agravante foi julgado por 14 Desembargadores Federais que integram a Corte Especial do Tribunal Regional Federal e fez uso de rito processual que oferece possibilidade de defesa preliminar ao recebimento da denúncia, o que não ocorre, de regra, no rito comum ordinário a que são submetidas as demais pessoas. 6. Agravo regimental improvido.(AI 601832 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 17/03/2009, DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC 03-04-2009 EMENT VOL-02355-06 PP-01129 RSJADV jun., 2009, p. 34-38 RT v. 98, n. 885, 2009, p. 518-524)

53

―Com efeito, após o advento da Emenda Constitucional 45/04, consoante redação dada ao §3º do artigo 5º da Constituição Federal, passou-se a atribuir às convenções internacionais sobre direitos humanos hierarquia constitucional (....) (...) É verdade que a estatura de Emenda Constitucional ora dada à Convenção torna o princípio do duplo grau de jurisdição uma garantia de julgamento do recurso por Tribunal Superior‖.

O posicionamento do Egrégio Supremo Tribunal Federal de flexibilizar o

instituto do duplo grau de jurisdição, no entanto, não é acompanhado por boa parte

dos respeitáveis juristas brasileiros quando se trata de processo penal, como se

pode extrair das reflexões de Nelson Nery Júnior acerca do tema:

“No processo penal, contudo, ocorre fenômeno diferente. O artigo 8º, n.2, letra h,

do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, de 22.11.1969) garante ao réu, no processo penal, um segundo julgamento em grau de recurso. O Brasil é signatário do Pacto, que entrou no direito interno brasileiro pela via do Decreto Legislativo 27, de 26.5.1992, e está em pleno vigor no país por força do Decreto 678, de 6.11.1992. Assim, o duplo grau de jurisdição, no processo penal, é irrestrito e será inconstitucional toda disposição de lei ordinária que restringir ou não permitir a recorribilidade das sentenças proferidas no processo penal87‖.

Não se pode olvidar, assim, que o duplo grau de jurisdição decorre do

próprio sistema constitucional, e é esse sistema que pressupõe que as causas

sejam decididas por mais de um grau de jurisdição. Para Vicente Greco Filho,

eventual supressão de graus de jurisdição somente seria admitida de forma

excepcional e desde que expressamente prevista no texto constitucional, posto que:

―O juiz único gera grave risco de decisão injusta, daí a necessidade do

sistema recursal; mas também é indispensável a participação do juiz de primeiro grau, dada sua imediatidade ao fato e a possibilidade de melhor aferição da prova. O sistema ideal, portanto, é o da dupla apreciação que, no Brasil, pode alcançar triplo ou quádruplo reexame, conforme a matéria, se surgir questão constitucional. Chiovenda, famoso mestre do Direito Processual, reconhece no duplo grau de jurisdição uma garantia para o cidadão em três aspectos: à medida que um julgamento reiterado torna, já por si, possível a correção dos erros; porque dois julgamentos são confiados a juízes diversos que apreciarão independentemente

87

NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 42.

54

a matéria; e uma vez que o segundo juiz se apresenta como mais autorizado que o primeiro88‖. (grifos nossos)

O duplo grau de jurisdição poderia destarte ser visto como uma garantia

fundamental de boa justiça, conforme observa o já citado processualista Nelson

Nery Júnior:

―Tendo em vista a falibilidade do ser humano, não seria razoável pretender-se fosse o juiz homem imune de falhas, capaz de decidir de modo definitivo sem que ninguém pudesse questioná-lo em sua fundamentação ao julgar. De outra parte, nosso subjetivismo nos coloca naturalmente contra decisão desfavorável, de sorte que o sentimento psicológico do ser humano faz com que tenha reação imediata à sentença desfavorável, impelindo-o a pretender, no mínimo, novo julgamento sobre a mesma questão. Além dessas circunstâncias, há ainda o fato de que o juiz único poderia tornar-se despótico, sabedor de que sobre as decisões não haveria controle algum, conforme sábia advertência de Montesquieu. Nesta linha de raciocínio, o princípio do duplo grau é, por assim dizer, garantia fundamental de boa justiça89‖.

Não é apenas no meio jurídico que a segunda reflexão sobre qualquer

problema conduz a uma solução mais correta. A revisão de trabalhos, de decisões,

de escolhas, é uma conduta que revela bom senso em todos os aspectos da vida

profissional e pessoal de qualquer ser humano. Porém, quando se trata do direito à

liberdade e à dignidade de um cidadão, como ocorre no processo penal, essa

segunda reflexão se torna imprescindível, eis porque protegida como direito

fundamental do homem.

É o que bem resume José Carlos Barbosa Moreira ao demonstrar que a

garantia da boa solução das lides é a sua submissão a exames sucessivos, ou seja,

ao duplo grau de jurisdição:

―A justificação política do princípio tem invocado a maior probabilidade de acerto

decorrente da sujeição dos pronunciamentos judiciais ao crivo da revisão. É dado da experiência comum que uma segunda reflexão acerca de qualquer problema frequentemente conduz a mais exata conclusão, já pela luz que projeta

88

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1988. Vol 1. p. 46. 89

NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 39.

55

sobre ângulos até então ignorados, já pela oportunidade que abre para a reavaliação de argumentos a que no primeiro momento talvez não se tenha atribuído o justo peso90‖.

Nesse mesmo sentido Moacyr Amaral Santos já destacou as vantagens

do duplo grau de jurisdição para a segurança da justiça, in verbis:

―Em primeiro lugar satisfaz a uma exigência humana. Ninguém se conforma com

uma única decisão, que lhe seja desfavorável. Em segundo lugar, não se pode olvidar a possibilidade de sentenças injustas ou ilegais, e até mesmo proferidas por juízes movidos pelo temor (coação) ou sentimentos menos dignos (peita). Daí a segurança da justiça aconselhar o reexame das causas por meio dos recursos. O princípio do duplo grau de jurisdição estabelece a regra pela qual o reexame da causa se faça por órgão jurisdicional de categoria superior ao que proferiu a sentença recorrida. A possibilidade do reexame recomenda ao juiz inferior maior cuidado na elaboração da sentença e o estímulo ao aprimoramento de suas aptidões funcionais, como título para sua ascensão nos quadros da magistratura. O órgão de grau superior, pela sua maior experiência, acha-se mais habilitado para reexaminar a causa e apreciar a sentença anterior, a qual, por sua vez, funciona como elemento e freio à nova decisão que se vier a proferir. Demais, o duplo grau de jurisdição, possibilitando e fomentando a organização da hierarquia dos órgãos judiciários, não só enseja a competição dos juízes no aperfeiçoamento das condições necessárias à reta administração da justiça e à consequente promoção dos mais capazes, como também facilita a distribuição das causas entre eles, de modo aos mais experimentados se atribuírem as de maior importância econômica ou social91‖.

Através do breve estudo aqui realizado sobre o princípio do duplo grau de

jurisdição, pudemos verificar que desde os tempos mais remotos da história da

humanidade, ou, pelo menos mais “recentemente”, desde o Império romano, a

revisão das decisões judiciais é tida como uma verdadeira garantia fundamental do

cidadão contra abusos, erros, falhas e suas pesadas consequências, que podem

redundar em irreversíveis injustiças.

Sob essa esteira, a competência originária do Supremo Tribunal Federal

para julgar infrações penais cometidas por pessoas detentoras de determinados

cargos ou funções já pode ser vista como uma violação a esse princípio, apesar de

90

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 5. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1993. v. 6. p. 211. 91

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2001a. v. 3. p. 82.

56

estar excepcionalmente prevista no artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da

Constituição Federal. Afinal, aqueles que gozam de prerrogativa de foro, ao serem

julgados originariamente pela Suprema Corte, ficam impossibilitados de recorrer a

uma instância diversa e tampouco superior.

Se por um lado é até admissível discutir a constitucionalidade da negativa

de segunda jurisdição às pessoas taxativamente previstas no artigo 102, inciso I, da

Constituição Federal, já que há previsão expressa no texto da Constituição de 1988

excepcionando-lhes o direito ao duplo grau; por outro lado, com relação àqueles que

não gozam de prerrogativa de foro, não há o que se discutir: fica muito clara a

impossibilidade de seu julgamento diretamente pela Corte Suprema, sob pena de

violação da garantia fundamental do duplo grau de jurisdição, amplamente protegida

pelo ordenamento jurídico brasileiro e internacional.

Em suma, a competência originária do Supremo Tribunal Federal para

julgar infrações penais, por ser uma derrogação da competência ordinária dos juízos

de primeiro grau e, portanto, uma exceção ao juiz natural com graves prejuízos ao

duplo grau de jurisdição, somente pode ser delimitada pela Constituição Federal,

não cabendo qualquer tipo de interpretação ampliativa dessa derrogação.

1.7. Princípio da Igualdade

O princípio da igualdade está presente na Constituição de 1988 logo na

abertura do capítulo que trata dos direitos individuais: “Art. 5º Todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e

aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)92‖.

A acepção mais difundida desse princípio é aquela concebida por

Aristóteles, que vincula a ideia de igualdade à ideia de justiça, sob a máxima de que

92

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 05/05/2013.

57

se deve dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa

desigualdade.

Esse conceito, embora válido, é insuficiente para expressar o conteúdo do

princípio da igualdade em toda a sua extensão, como bem explica Carmen Lúcia

Antunes Rocha:

―Igualdade constitucional é mais que uma expressão de Direito; é um modo justo

de se viver em sociedade. Por isso é princípio posto como pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental93‖.

Sendo assim, o princípio da igualdade se consubstancia não apenas

numa limitação ao legislador, mas também numa regra de interpretação para o juiz,

que sempre deverá dar à lei um entendimento que não crie distinções, conforme

leciona Alexandre de Moraes:

“O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social94‖. (grifos nossos)

Como bem explicita José Antonio Pimenta Bueno, ―a lei deve ser uma e a

mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e

unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá

ser uma tirania95”.

O princípio da igualdade, pela teoria de Celso Antonio Bandeira de Mello,

visa dois objetivos: de um lado propiciar garantia individual contra perseguições e,

93

ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Jurídicos Lê, 1991. p. 118. 94

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1999.p.62. 95

BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958. p. 424

58

de outro, tolher favoritismos. Por essa razão, dois requisitos devem ser seguidos

quando se quer traçar qualquer diferença no tratamento jurídico dado a um cidadão:

―a) a lei não pode erigir em critério diferencial um traço tão específico que singularize

no presente e definitivamente, de modo absoluto, um sujeito a ser colhido pelo

regime peculiar; b) o traço diferencial adotado, necessariamente há de residir na

pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; ou seja: elemento algum que não

exista nelas mesmas poderá servir de base para assujeitá-las a regimes

diferentes96‖.

Considerando-se ainda que o princípio da igualdade alberga, além da

igualdade perante a lei, também a igualdade perante o juiz, como garantia

constitucional indissoluvelmente ligada à democracia, relevante se faz a reflexão de

José Afonso da Silva de que onde qualquer das garantias da magistratura faltar, o

princípio da igualdade da justiça inexoravelmente estará sacrificado, em razão da

potencial parcialidade do juiz. Explica o citado autor:

―O princípio da igualdade jurisdicional ou perante o juiz apresenta-se, portanto,

sob dois prismas: (1) como interdição ao juiz de fazer distinção entre situações iguais, ao aplicar a lei; (2) como interdição ao legislador de editar leis que possibilitem tratamento desigual a situações iguais ou tratamento igual a situações desiguais por parte da Justiça. Sob o primeiro prisma, o princípio da igualdade da Justiça consiste na condenação de juízos ou tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII). (...) Afora os casos de foro privilegiado, expressamente estabelecidos na Constituição e situação correspondente nas constituições estaduais, será inconstitucional a previsão de outros. A vedação de juízo de exceção caracteriza o juiz natural, consubstanciado, hoje, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo art. 10 estabelece que todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele97‖.

Pelo exposto, pode-se dizer que a competência originária do Supremo

Tribunal Federal para julgar infrações penais é uma exceção expressa ao princípio

96

MELLO, Celso Antonio Bandeira. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 23. 97

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 218-219.

59

da igualdade, prevista na Constituição Federal apenas para derrogar o postulado do

juiz natural de algumas pessoas detentoras de certas funções na data do

julgamento, sendo inconstitucional o alargamento dessa exceção, também por violar

o princípio da igualdade:

E M E N T A: PRERROGATIVA DE FORO - EXCEPCIONALIDADE - MATÉRIA DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL - INAPLICABILIDADE A EX-OCUPANTES DE CARGOS PÚBLICOS E A EX-TITULARES DE MANDATOS ELETIVOS - CANCELAMENTO DA SÚMULA 394/STF - NÃO-INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA "PERPETUATIO JURISDICTIONIS" - POSTULADO REPUBLICANO E JUIZ NATURAL - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O postulado republicano - que repele privilégios e não tolera discriminações - impede que prevaleça a prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido durante o período de atividade funcional, se sobrevier a cessação da investidura do indiciado, denunciado ou réu no cargo, função ou mandato cuja titularidade (desde que subsistente) qualifica-se como o único fator de legitimação constitucional apto a fazer instaurar a competência penal originária da Suprema Corte (CF, art. 102, I, "b" e "c"). Cancelamento da Súmula 394/STF (RTJ 179/912-913). - Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. O reconhecimento da prerrogativa de foro, perante o Supremo Tribunal Federal, nos ilícitos penais comuns, em favor de ex-ocupantes de cargos públicos ou de ex-titulares de mandatos eletivos transgride valor fundamental à própria configuração da ideia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade. - A prerrogativa de foro é outorgada, constitucionalmente, "ratione muneris", a significar, portanto, que é deferida em razão de cargo ou de mandato ainda titularizado por aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado, sob pena de tal prerrogativa - descaracterizando-se em sua essência mesma - degradar-se à condição de inaceitável privilégio de caráter pessoal. Precedentes. (Inq 1376 AgR, Relator Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 15/02/2007, DJ 16-03-2007 PP-00021 EMENT VOL-02268-01 PP-00110 LEXSTF v. 29, n. 340, 2007, p. 484-493 RDDP n. 50, 2007, p. 145-148) (grifos nossos)

Numa análise mais profunda, se verificarmos os requisitos que o

conteúdo do princípio da igualdade permite para eventual discrímen, o próprio

instituto da competência originária do Supremo Tribunal Federal no julgamento de

infrações penais já consiste em uma ofensa ao nosso sistema constitucional,

embora contida no texto da Constituição.

O que não se pode admitir é que essa exceção taxativa ao princípio da

igualdade, estabelecida em razão da titularidade de uma função, seja

arbitrariamente estendida a terceiros, cujo direito ao juiz natural e ao duplo grau de

60

jurisdição estão constitucionalmente protegidos como cláusulas pétreas, tamanha

sua relevância em nosso sistema de direitos fundamentais.

Ademais, não se pode negar que, no caso específico da Ação Penal 470,

houve uma gritante ofensa ao princípio da igualdade, se comparado às demais

ações similares em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal.

Se a orientação jurisprudencial corrente vinha no sentido de se

desmembrar a ação penal para que as pessoas não titulares de mandato pudessem

ser julgadas em primeiro grau pelo juiz natural - inclusive assim ocorreu no

julgamento do “mensalão tucano mineiro” -, a negativa do desmembramento

especificamente para o “mensalão petista” nos parece injustificável, senão por

razões discriminatórias com influência política.

No peculiar julgamento da Ação Penal 470, houve violação ao princípio da

igualdade e também do seu decorrente postulado da proibição do arbítrio, bem nos

moldes do que já prenunciou Canotilho:

―Quando não houver motivo racional evidente, resultante da ‗natureza das coisas‘, para desigual regulação de situações de facto iguais ou igual regulação de situações de facto desiguais, pode considerar-se uma lei, que estabelece essa regulação, como arbitrária98‖.

Canotilho aplica o mesmo raciocínio quando se trata de uma decisão

judicial que dá um tratamento diferenciado a situações de fato iguais, posto que a

igualdade de todos perante a lei é uma exigência dirigida também ao Judiciário, “no

sentido de se assegurar formalmente uma igual aplicação da lei a todos os

cidadãos”.

98

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra, 1982, p. 381.

61

1.8. Importância dos princípios na resolução de conflitos entre normas

Os princípios constitucionais que destacamos até o momento, em

conjunto com os demais que compõem o nosso sistema constitucional, são dotados

de uma carga valorativa muito grande e representantes dos bens e valores jurídicos

mais prezados pela sociedade, sendo, portanto, aqueles que merecem maior

proteção.

Justamente por se revestirem dessa qualidade de valores ou verdadeiras

diretrizes dentro de uma sociedade democrática de direito, Oscar Vilhena Vieira

destaca o papel fundamental dos princípios na interpretação e aplicação coerente e

unitária das normas jurídicas, e principalmente sua importância para evitar que os

jurisdicionados fiquem reféns de um excesso de discricionariedade por parte do

julgador:

―Quando se diz que um princípio faz parte do Direito o que se pretende é que ele seja levado em conta por aquele que tem a responsabilidade de tomar a decisão. Ao julgador cabe avaliar o peso do princípio, de que forma ele pode cooperar na compreensão do sentido que deve ser dado a uma determinada norma e como, num caso concreto, princípios concorrentes devem ser harmonizados99‖.

Com relação à harmonização dos princípios, Vieira explica que, se no

conflito entre normas apenas uma delas deverá ser aplicada, pelo contrário, os

conflitos entre princípios devem ser resolvidos por intermédio de uma ponderação a

respeito da sua importância, do seu peso, para a solução do caso específico.

Sobre a diferenciação entre princípios das regras comuns, citamos as

breves, porém completas, considerações de Maria Elizabeth Queijo :

―a) os princípios têm elevado grau de abstração, enquanto nas regras ela é reduzida;

99

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 199.

62

b) os princípios são vagos e indeterminados, enquanto as regras têm aplicação direta; c) a generalidade dos princípios é diversa daquela das regras. Os princípios são gerais porque comportam uma série de aplicações. Já as regras são gerais porque estabelecidas para um número indeterminado de fatos; d) os princípios têm função de fundamento do ordenamento jurídico, inclusive das regras; e) os princípios são normas que objetivam a otimização de um direito ou de um bem jurídico e as regras, por sua vez, prescrevem um comportamento; f) o conteúdo dos princípios é mais próximo da ideia de valor e de direito, enquanto as regras têm conteúdo diversificado e não necessariamente moral; g) para sua aplicação, os princípios exigem maior atividade argumentativa. Nas regras, há aplicação meramente técnica; h) os princípios são universais, absolutos, objetivos e permanentes, já os conteúdos das regras são marcados pela contingência e relatividade, em função do tempo e lugar; i) os princípios apresentam efeitos indeterminados até certo ponto, contrariamente ao que se verifica com as regras, porque os meios para alcançar os efeitos pretendidos pelo princípio, mesmo que definidos, são múltiplos; j) havendo conflito de princípios ele resolve-se pela ponderação de bens e valores envolvidos. Nenhum deles é eliminado. Os princípios coexistem, enquanto as regras antinômicas excluem-se. Obedecem à lógica do ‗tudo ou nada‘, sendo aplicáveis ou não100‖.

De acordo com a mesma autora, a maior ou menor proteção dos

princípios do Direito Penal em determinado ordenamento “é um importante

termômetro de quanto se está mais próximo ou mais distante de um regime ditatorial

ou democrático101‖; e o Brasil, embora tenha contemplado diversos princípios de

direito processual penal102 em sua Constituição atual, tem privilegiado normas

infraconstitucionais em detrimento dos postulados mais valiosos ao Estado

Democrático de Direito. É o que se extrai do texto abaixo:

100

QUEIJO. Maria Elizabeth. “Hermenêutica e interpretação constitucional e o direito processual penal” in MOREIRA, Eduardo Ribeiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti; GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro. Hermenêutica constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 590 101

QUEIJO. Maria Elizabeth. ―Princípios constitucionais no direito penal” in FAYET JÚNIOR, Ney (Org.). Ensaios Penais em Homenagem ao Professor Alberto Rufino Rodrigues de Sousa. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2003. 102

―Destaca-se a riqueza de princípios constitucionais aplicáveis ao processo penal, que verte d adoção de extenso rol de direitos fundamentais, expressos e implícitos, e outros tantos oriundos de tratados e convenções internacionais de direitos humanos, aos quais o Brasil aderiu e que, mais recentemente, foram definitivamente guindados à hierarquia constitucional, em razão da Emenda nº 45, de dezembro de 2004. Tal Emenda também ampliou o rol de direitos fundamentais originariamente previstos no art. 5º do texto constitucional‖. (QUEIJO. Maria Elizabeth. “Hermenêutica e interpretação constitucional e o direito processual penal” in MOREIRA, Eduardo Ribeiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti; GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro. Hermenêutica constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 606).

63

―Na doutrina, Luís Roberto Barroso, com propriedade, salienta que toda interpretação deve partir dos princípios constitucionais porque eles constituem fundamento da ordem jurídica que instituem. Ou seja, ao mesmo tempo em que os princípios têm aplicação imediata, dada a normatividade que possuem, constituem eles critério de interpretação. Destaca o mesmo autor que se identificam três finalidades essenciais nos princípios: embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte, expressando os valores que inspiraram a organização de determinado Estado; conferir unidade ao sistema normativo e condicionar a atuação dos poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário), norteando a interpretação e aplicação das normas jurídicas. Porém, mesmo após mais de vinte anos da promulgação da Constituição Federal, no tocante ao direito processual penal, a criação e interpretação das normas ainda pouco se pautam pelo texto constitucional, apesar de sua riqueza em matéria de princípios processuais (inclusive penais). Registra-se grande apego à interpretação da legislação ordinária, sem consideração aos princípios constitucionais103‖.

Os princípios constitucionais assumem um papel protagonista quando nos

deparamos com colisões entre normas constitucionais, mas o intérprete precisa

estar preparado para aplicá-los corretamente e escolher, dentre as soluções

cabíveis, aquela mais razoável, como ensina Luís Roberto Barroso:

―A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidade de

ponderação. A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o problema, por não ser possível enquadrar o mesmo fato em normas antagônicas. Tampouco podem ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico, cronológico e da especialização – quando a colisão se dá entre disposições da Constituição originária. Neste cenário, a ponderação de normas, bens ou valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípio instrumental da razoabilidade104‖.

103

QUEIJO. Maria Elizabeth. “Hermenêutica e interpretação constitucional e o direito processual penal” in MOREIRA, Eduardo Ribeiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti; GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro. Hermenêutica constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 602. 104

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 15, n.° 58, jan.-mar./2007, Ed. Revista dos Tribunais. p. 140.

64

Na escolha do direito em concreto que irá prevalecer, se o conflito existir

entre norma-disposição e norma-princípio, por óbvio a norma-princípio deve ser a

escolhida.

De qualquer forma, a harmonização prática dos princípios constitucionais

e sua utilização como diretriz de interpretação das normas só pode ser colocada em

prática mediante a utilização dos instrumentos e também dos princípios

hermenêutico-constitucionais, que estudaremos no capítulo a seguir.

65

CAPÍTULO 2 – NOÇÕES DE HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Considerando que o principal objeto do presente trabalho é o estudo de

uma norma constitucional, mais precisamente o artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c”

da Constituição de 1988, mister se faz, em primeiro lugar, que se tenha uma noção

básica dos princípios da Hermenêutica Jurídica Constitucional e dos instrumentos de

interpretação disponíveis e recomendáveis a qualquer intérprete, para aplicação da

norma constitucional a um caso concreto.

A Hermenêutica Jurídica, conforme leciona Carlos Maximiliano105, é o

ramo da ciência dedicado ao estudo e determinação das regras que devem presidir

o processo interpretativo de busca do significado da lei (ou norma constitucional). A

interpretação, nesse contexto, nada mais é do que a própria aplicação da

Hermenêutica.

Enquanto a Hermenêutica, como ciência auxiliar do Direito, objetiva

“estabelecer princípios e regras tendentes a tornar possíveis a interpretação e a

explicação não só das leis como também do direito como sistema106”, a

interpretação é essencialmente concreta, pragmática, consistente na atribuição de

um sentido à norma para sua aplicação a um caso concreto.

Eis porque é à Hermenêutica e seus enunciados que se pretende recorrer

para concluir a pesquisa ora proposta, ou seja, extrair a melhor interpretação do

artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal, que dispõe sobre a

competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar

infrações penais.

105

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro, Forense, 1988. 106

Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras, Verbete hermenêutica jurídica, Forense Universitária, 1990, pp. 226-7.

66

Segundo o saudoso constitucionalista Celso Ribeiro Bastos107, interpretar

é uma arte e é sempre um pressuposto necessário para a aplicação da regra

jurídica, devendo o intérprete imprimir um significado válido à norma interpretada ao

aplicá-la ao caso concreto:

―Como as tintas que se apresentam ao pintor, os enunciados hermenêuticos são deixados ao tirocínio do intérprete. Assim como as tintas não dizem onde, como ou em que extensão deverão ser aplicadas na tela, o mesmo ocorre com os enunciados quando se enfrenta um caso concreto. Por isso, não é possível negar, da mesma forma, o caráter evidentemente artístico da atividade desenvolvida pelo intérprete‖.

No mesmo sentido, o jurista Luís Roberto Barroso108 acrescenta que a

interpretação jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente

mecânica, mas reflexo de uma interação entre o intérprete e o texto:

―A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a

necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do texto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto‖.

Verifica-se do exposto que toda norma constitucional precisa ser

interpretada, não existindo uma única interpretação possível, posto que o aplicador

do direito não é um autômato e o direito não é uma ciência exata, matemática. No

entanto, muitas vezes o intérprete busca a realização da justiça em detrimento da

107

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 22. 108

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

67

letra da lei, sem se utilizar dos instrumentos básicos de interpretação, o que leva à

inevitável tensão entre a lei e a realidade.

Konrad Hesse109 ensina que a missão da interpretação, longe de ser um

instrumento volitivo de se fazer justiça, é encontrar um resultado constitucionalmente

correto através de um procedimento racional e controlável, e fundamentar este

resultado de modo igualmente racional e controlável, criando, deste modo, certeza e

previsibilidade jurídicas. É evitar o acaso das decisões por decisões.

Celso Ribeiro Bastos110 é claro ao explicar como deve ser realizado o

processo de interpretação, quando pontua que a interpretação constitucional parte

da letra da Constituição até chegar ao caso concreto:

―O primeiro problema que se coloca é o de escolher, entre as múltiplas normas constitucionais, aquela que enquadra o fenômeno analisado. A partir daí, valendo-se das diretrizes hermenêuticas, vai-se procedendo a uma concreção crescente da norma, ao ponto de esta perder o seu caráter abstrato para converter-se numa norma específica, que é aplicada à espécie‖.

Para tanto, existem diversos métodos interpretativos à disposição do

intérprete, que deverá saber quais e como aplicá-los ao adaptar a norma ao caso

concreto.

Os métodos clássicos de interpretação remontam ao ano de 1840,

quando Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, distinguiu os métodos

gramatical (literal), sistemático, histórico e teleológico.

Nenhum desses métodos, como é consenso na jurisprudência e na

doutrina, devem ser absolutizados, mas antes, eles se complementam durante o

processo interpretativo. Savigny bem declarou, à época, que tais métodos não

109

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1992. 110

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª ed. IBDC Celso Bastos Editor: São Paulo, 1999. P.28.

68

constituíam formas de interpretação a serem escolhidas, mas diferentes atividades a

atuarem conjugadas, para se obter uma interpretação bem-sucedida.

Conforme Konrad Hesse111 esclarece, a interpretação se faz a partir do

texto da norma (interpretação gramatical), de sua conexão (interpretação

sistemática), de sua finalidade (interpretação teleológica) e de seu processo de

criação (interpretação histórica):

―Aunque la interpretación constitucional es una, no obstante existen diversos métodos para esclarecer el significado de las normas constitucionales. No hay una interpretación histórica de las normas constitucionales, otra gramatical y otra lógico-sistemática, y teleológica, sino una sola interpretación constitucional que analiza los precedentes históricos, examina los debates parlamentarios, fija el significado exacto de las palabras y realiza las operaciones necesarias para establecer el sentido de la norma constitucional como parte componente de un ordenamiento que apunta a una finalidad concreta‖.

Sendo assim, embora o intérprete deva conter-se pelo texto da

Constituição, não podendo desprezar de todo a interpretação gramatical, ao mesmo

tempo deve considerar mais uma série de fatores, como o fato da norma estar

situada dentro de um sistema, de ser provida de um fundamento racional e uma

finalidade própria, bem como deve observar a circunstância histórica que gerou o

nascimento daquela norma.

Konrad Hesse, jurista alemão não por coincidência já citado algumas

vezes desde o início do presente capítulo, em nossa opinião, foi um dos

doutrinadores que conseguiu orientar de forma mais simples o processo de

intepretação, pelo Tribunal Constitucional, da letra da Constituição, quando

desenvolveu o método interpretativo de concretização na aula inaugural que proferiu

na Universidade de Freiburg, ao criticar a teoria dos fatores reais de poder de

Lassale.

111

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983.

69

Ferdinand Lassale112, em conferência proferida em 1862, havia

proclamado que as questões constitucionais não são questões jurídicas e sim

políticas, e que a Constituição verdadeira reflete os fatores reais e efetivos de poder

que vigem em um determinado país. Portanto, as Constituições escritas, sob o ponto

de vista de Lassale, não têm valor nem são duráveis, a não ser que exprimam

fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social.

Hesse, pelo contrário, entende que, apesar do caráter político da

Constituição e dos agentes que a levam a efeito, sua interpretação é uma tarefa

jurídica e não política. Se a racionalidade total não é atingível no direito

constitucional, isso não significa que não se deva buscar pelo menos uma

racionalidade possível.

As normas constitucionais não devem apenas descrever relações fáticas,

mas sim prescrever condutas. Desta forma, embora a Corte Constitucional não

possa ser indiferente às consequências políticas de suas decisões, sob pena de

cometer graves injustiças, também não pode deixar de agir dentro dos limites e das

possibilidades previstas na Constituição. Em caso de conflito entre a norma e a

política, o juiz deve sempre escolher a norma.

É sabido que a Hermenêutica Constitucional, sendo uma ciência,

compõe-se de diversas escolas, teorias, princípios e métodos interpretativos. Como

não é o propósito do presente trabalho dissecar detalhadamente todos os aspectos

dessa ciência, mas, antes, utilizá-la como instrumento para estudar um dispositivo

constitucional específico (artigo 102, I, “b” e “c”), selecionamos os critérios e

princípios mais aceitos pela nossa doutrina e jurisprudência atual para ilustração nas

próximas páginas.

112

LASSALE, Ferdinand. Que es una constitución? Trad. De W. Roces. Buenos Aires, Ediciones Siglo Veinte, 1950.

70

2.1. Os Princípios Constitucionais Instrumentais

Estudamos os princípios constitucionais de forma mais detalhada em

capítulo próprio, de modo que o objeto deste capítulo serão apenas os princípios

instrumentais que devem nortear a ação do intérprete ao aplicar uma norma a um

caso concreto, sem prejuízo dos demais axiomas previstos em nosso ordenamento

jurídico.

Luiz Roberto Barroso113, ao abordar o papel prático dos princípios dentro

do ordenamento jurídico constitucional, ressalta que lhes cabe, em primeiro lugar,

embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e expressar

os valores superiores que inspiraram a criação ou reorganização de um dado

Estado, fincando os alicerces e traçando as linhas mestras das instituições, dando-

lhes o impulso vital inicial, bem como lhes cabe conferir unidade ao sistema

normativo, in verbis:

―Em segundo lugar, aos princípios se reserva a função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do Texto Constitucional, dando unidade ao sistema normativo. Um documento marcantemente político como a Constituição, fundado em compromissos entre correntes opostas de opinião, abriga normas à primeira vista contraditórias. Compete aos princípios compatibilizá-las, integrando-as à harmonia do sistema. E, por fim, na sua principal dimensão operativa, dirigem-se os princípios ao Executivo, Legislativo e Judiciário, condicionando a atuação dos poderes públicos e pautando a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes‖.

Ainda segundo Barroso, os mesmos princípios que permitem ao intérprete

buscar a solução mais justa dentre as múltiplas normas existentes no sistema, são

os que limitam sua atuação, evitando abusos voluntaristas por parte do intérprete:

―Ao intérprete constitucional caberá visualizá-los em cada caso e seguir-lhes as

prescrições. A generalidade, abstração e capacidade de expansão dos princípios permite ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar no próprio sistema a solução mais justa, superadora do summum jus, summa injuria. Mas são esses mesmos princípios que funcionam como limites

113

BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª ed. Saraiva: São Paulo, 1999.

71

interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento‖.

É sobre esses limites norteadores do intérprete que passaremos a tratar a

seguir.

2.1.1. Princípio da Supremacia da Constituição

Segundo Hans Kelsen114, o sistema jurídico é composto de forma

hierárquica, de maneira que cada norma retira seu fundamento de validade de uma

norma superior:

―A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo

plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental–pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora‖.

A Constituição Federal está no topo do nosso sistema normativo, ou seja,

todas as demais normas que não estejam previstas no texto constitucional são

hierarquicamente inferiores a ela e lhe devem obediência, conforme explicam os

juristas Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior:

―A Constituição, assim, é identificada como a fonte legitimadora de todo o ordenamento jurídico, decorrendo, de imediato, algumas consequências inarredáveis: (i) a revogação, dita hierárquica, de todas as normas anteriores que com ela se antagonizarem; (ii) a nulidade de todas as novas normas introduzidas no sistema que vierem a desrespeitar os seus preceitos; (iii) a imposição de que, dentre as interpretações hipoteticamente possíveis, só podem ser validamente esgrimidas aquelas conforme o texto constitucional115‖.

114

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 247. 115

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 84.

72

O princípio da supremacia da Constituição, tratado mesmo como um

postulado por Celso Ribeiro Bastos, repele qualquer tentativa de se interpretar a

Constituição a partir da lei, devendo-se, pelo contrário, proceder-se à interpretação

de todo o ordenamento jurídico partindo-se sempre da Constituição. Destarte, não

poderia uma norma infraconstitucional como o Código de Processo Penal, por

exemplo, restringir direitos e garantias expressamente previstos na Constituição

Federal.

Sob esse aspecto, importante se faz ressaltar que, assim como ocorre

com as demais áreas do direito, a interpretação penal deve guardar seus

fundamentos na própria Constituição Federal, que possui princípios fundamentais do

Direito Penal formalizados em seu texto de forma expressa, como o princípio da

legalidade, o princípio da humanidade, princípio da igualdade e princípio da

culpabilidade, além de outros princípios não expressos, mas extraídos de forma

sistemática de seu texto.

Ao explicar o pressuposto lógico-transcendental de Kelsen, Manoel

Gonçalves Ferreira Filho116 extrai bem a ideia da supremacia da Constituição:

―A Constituição se alicerça, portanto, num pressuposto lógico-transcendental, nessa norma fundamental: - devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve. É em função dela que se desdobra toda a ordem jurídica, porque é esse pressuposto que, uma vez aceito, estabelece a força, a obrigatoriedade da Constituição‖.

Nesse sentido, vale transcrever um trecho do voto do Ministro Celso de

Mello117, do Supremo Tribunal Federal, no RE 107869, de relatoria do Ministro Celio

Borja:

―O princípio da supremacia da ordem constitucional – consectário da rigidez

normativa que ostentam os preceitos de nossa Constituição – impõe ao Poder

116

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito Constitucional Comparado. São Paulo: Bushatsky, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1974. P. 66 117

RE 107869, Relator(a): Min. CELIO BORJA, Tribunal Pleno, julgado em 23/08/1989, DJ 21-08-1992 PP-12785 EMENT VOL-01671-03 PP-00426 RTJ VOL-00140-03 PP-00954.

73

Judiciário, qualquer que seja a sede processual, que se recuse a aplicar leis ou atos estatais reputados em conflito com a Carta Federal. A superioridade normativa da Constituição traz, ínsita em sua noção conceitual, a ideia de um estatuto fundamental, de uma fundamental law, cujo incontrastável valor jurídico atua como pressuposto de validade de toda a ordem positiva instituída pelo Estado. Dentro dessa concepção, reveste-se de nulidade o ato emanado do Poder Público que vulnerar os preceitos inscritos na Constituição. Uma lei inconstitucional é uma lei nula, desprovida, consequentemente, no plano jurídico, de qualquer conteúdo eficacial. Os Tribunais não estão vinculados, por isso mesmo, no desempenho de seu ofício jurisdicional, por leis que ofendam a Constituição. Incumbe-lhes a competência de exame, que assegura às Cortes Judiciárias o poder de fiscalizar a própria validade do ato legal, se questionada a sua desconformidade com o modelo jurídico plasmado na ordem constitucional. A convicção dos juízes e tribunais, de que uma lei ou ato do Poder Público é inconstitucional, só pode levá-los, no plano decisório, a uma única formulação: o reconhecimento de sua invalidez e a recusa de sua aplicabilidade‖. (grifos nossos)

O princípio da supremacia da Constituição Federal, assim, direciona o

trabalho do legislador, de modo que ele não crie leis infraconstitucionais que

ofendam os mandamentos constitucionais; e da mesma forma orienta o trabalho do

maior intérprete da Carta Magna, que é o Supremo Tribunal Federal, cujos

julgamentos deverão ser realizados sempre visando a proteção da Constituição.

Trata-se, na verdade, de uma garantia de segurança jurídica para todos

os cidadãos que vivem sob um ordenamento constitucional democrático, conforme

entende Maria Helena Diniz, segundo quem “a supremacia da Constituição se

justificaria para manter a estabilidade social, bem como a imutabilidade relativa de

seus preceitos118”.

2.1.2. Princípio da Unidade da Constituição

O princípio da unidade reza que as normas constitucionais devem ser

analisadas de forma integrada e não isoladamente, de tal maneira que se evitem

contradições com outras normas constitucionais. A relação e interdependência

118

DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 15.

74

existentes entre os distintos elementos da Constituição exigem que se tenha sempre

em conta o conjunto em que se situa a norma.

Canotilho119 explica que o princípio da unidade da Constituição obriga o

intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os

espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar:

―O princípio da unidade da Constituição ganha relevo autônomo como princípio

interpretativo quando com ele se quer significar que o Direito Constitucional deve ser interpretado de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas e, sobretudo, entre os princípios jurídicos-políticos constitucionalmente estruturantes. Como ‗ponto de orientação‘, ‗guia de discussão‘ e ‗factor hermenêutico de decisão‘ o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão [...] existentes entre as normas constitucionais a concretizar. Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais, não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios‖

Jorge Miranda120, na mesma esteira, entende como fundamental a

interpretação sistemática do Texto Fundamental:

―A Constituição deve ser tomada, a qualquer instante, como um todo, na busca

de uma unidade e harmonia de sentido. O apelo ao elemento sistemático consiste aqui em procurar recíprocas implicações de preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem em situá-los e defini-los na sua inter-relacionação e em tentar, assim, chegar a uma idônea síntese globalizantes, credível e dotada de energia normativa‖.

O Ministro Luiz Fux, ao relatar a ADI 4078/DF121, tratou do princípio da

unidade da Constituição em seu voto, conforme trecho abaixo transcrito:

―(...) Na percuciente análise de Uadi Lammêgo Bulos, o ordenamento constitucional deve ser ―compreendido nos seus significados mais profundos, nas suas nuances, com uma visão de conjunto, quando a necessidade assim o

119

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 232. 120

MIRANDA, JORGE. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1983, v. 2, p. 228. 121

ADI 4078, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 10/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-072 DIVULG 12-04-2012 PUBLIC 13-04-2012.

75

exigir‖. Há de se levar também em conta o princípio da unidade da Constituição. É que o Direito Constitucional deve ser digerido evitando-se contradições entre suas normas. Na doutrina de Gilmar Mendes, Paulo Gonet e Inocêncio Mártires, o referido princípio é entrevisto da seguinte maneira: Segundo essa regra de interpretação, as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição. Em consequência, a Constituição só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque – relembre-se o círculo hermenêutico – o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes (...)‖. (grifos nossos)

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2650/DF122 nossa

Corte Constitucional também faz expressa menção ao princípio da unidade,

conforme se verifica de trecho da ementa in verbis, com nossos grifos:

―EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 7º da Lei 9.709/98. Alegada violação do art. 18, § 3º, da Constituição. Desmembramento de estado-membro e município. Plebiscito. Âmbito de consulta. Interpretação da expressão ―população diretamente interessada‖. População da área desmembrada e da área remanescente. Alteração da Emenda Constitucional nº 15/96: esclarecimento do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios. Interpretação sistemática. Aplicação de requisitos análogos para o desmembramento de estados. Ausência de violação dos princípios da soberania popular e da cidadania. Constitucionalidade do dispositivo legal. Improcedência do pedido. 1. Após a alteração promovida pela EC 15/96, a Constituição explicitou o alcance do âmbito de consulta para o caso de reformulação territorial de municípios e, portanto, o significado da expressão ―populações diretamente interessadas‖, contida na redação originária do § 4º do art. 18 da Constituição, no sentido de ser necessária a consulta a toda a população afetada pela modificação territorial, o que, no caso de desmembramento, deve envolver tanto a população do território a ser desmembrado, quanto a do território remanescente. Esse sempre foi o real sentido da exigência constitucional - a nova redação conferida pela emenda, do mesmo modo que o art. 7º da Lei 9.709/98, apenas tornou explícito um conteúdo já presente na norma originária. 2. A utilização de termos distintos para as hipóteses de desmembramento de estados-membros e de municípios não pode resultar na conclusão de que cada um teria um significado diverso, sob pena de se admitir maior facilidade para o desmembramento de um estado do que para o desmembramento de um município. Esse problema hermenêutico deve ser evitado por intermédio de interpretação que dê a mesma solução para ambos os casos, sob pena de, caso contrário, se ferir, inclusive, a isonomia entre os entes da federação.

122

ADI 2650, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/08/2011, DJe-218 DIVULG 16-11-2011 PUBLIC 17-11-2011 EMENT VOL-02627-01 PP-00001 RTJ VOL-00220- PP-00089 RT v. 101, n. 916, 2012, p. 465-508.

76

O presente caso exige, para além de uma interpretação gramatical, uma interpretação sistemática da Constituição, tal que se leve em conta a sua integralidade e a sua harmonia, sempre em busca da máxima da unidade constitucional, de modo que a interpretação das normas constitucionais seja realizada de maneira a evitar contradições entre elas. Esse objetivo será alcançado mediante interpretação que extraia do termo ―população diretamente interessada‖ o significado de que, para a hipótese de desmembramento, deve ser consultada, mediante plebiscito, toda a população do estado-membro ou do município, e não apenas a população da área a ser desmembrada. (...)‖

O que acontece é que algumas normas constitucionais carregam uma

força valorativa que se espraia por outras normas constitucionais, sem que com isso

possam ser consideradas a elas superiores, mas não deixam de complementá-las e

conferir-lhes um caráter sistemático. Assim, o princípio da unidade da Constituição

deve se aplicar através da utilização de outros princípios e regras de interpretação,

para otimizar a aplicação da norma ao caso concreto, sem que, com isso, contrarie a

Constituição:

―O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões - reais ou imaginárias - que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou "otimização" das normas, na medida em que se tem de produzir um equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas123‖.

Celso Ribeiro Bastos124 nos dá uma boa ideia de como se encontrar um

equilíbrio entre normas constitucionais aparentemente antagônicas, através de um

processo de cedência recíproca entre princípios, que não devem ser interpretados

de forma absoluta, como se depreende a seguir:

"Ele (o intérprete) terá de evitar as contradições, antagonismos e antinomias. As Constituições compromissórias, sobretudo, apresentam princípios que expressam ideologias diferentes. Se, portanto, do ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar verdadeiras contradições, do ponto de vista jurídico são sem dúvida passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias de direito. A simples letra da lei é superada mediante um processo de cedência recíproca. Dois princípios aparentemente contraditórios podem harmonizar-se desde que

123

BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª ed. Saraiva: São Paulo, 1999. 124

BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva, 1988. v. 1.

77

abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta. Prevalecerão, afinal, apenas até o ponto em que deverão renunciar à sua pretensão normativa em favor de um princípio que lhe é antagônico ou divergente".

Pelo exposto, verifica-se que a Constituição deve sempre ser interpretada

como um sistema coeso, e a sua supremacia sobre as demais normas

infraconstitucionais aplica-se em qualquer hipótese, sendo impossível invocar

eventuais contradições como escusa para descumprimento do texto constitucional.

2.1.3. Princípio do Efeito Integrador ou Critério de Eficácia Integradora

O princípio do efeito integrador é um desdobramento do princípio da

unidade e funda-se no raciocínio de que, se a Constituição se propõe à criação e

manutenção da unidade política, isso exige outorgar preferência na solução dos

problemas jurídicos constitucionais àqueles pontos de vista que promovam e

mantenham dita unidade e a integração política e social do sistema.

Canotilho125 discorre sobre o princípio do efeito integrador como tópico

argumentativo que “não assenta numa concepção integracionista de Estado e da

sociedade (conducente a reducionismos, autoritarismos e transpersonalismos

políticos), antes arranca da conflitualidade constitucionalmente racionalizada para

conduzir a soluções pluralisticamente integradoras‖.

Sobre o tema, Inocêncio Mártires Coelho126 ressalta, porém, que o

princípio do efeito integrador nunca pode se dissociar do princípio da Unidade da

Constituição, devendo-se considerar, na interpretação, outros valores tão ou mais

importantes que a integração política do país:

―Em que pese a indispensabilidade dessa integração para a normalidade

constitucional, nem por isso é dado aos intérpretes/aplicadores da Constituição subverter-lhe a letra e o espírito para alcançar, a qualquer custo, esse objetivo,

125

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 233. 126

MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 178.

78

até porque, à partida, a Lei Fundamental se mostra submissa a outros valores, desde logo reputados superiores – como a dignidade humana, a democracia e o pluralismo, por exemplo –, que precedem a sua elaboração, nela se incorporam e, afinal, seguem dirigindo a sua realização‖.

De visão semelhante, Paulo de Barros Carvalho127 diferencia os princípios

dos sobreprincípios, estes últimos como sendo os principais balizadores da

interpretação constitucional, como a segurança jurídica, a justiça e a certeza jurídica

e que, dentro de nosso estudo, quando respeitados, refletem o cumprimento do

princípio da unidade da Constituição:

―Há princípios e sobreprincípios, isto é, normas jurídicas que portam valores

importantes e outras que aparecem pela conjunção das primeiras. Vejamos como exemplo: a segurança jurídica não consta de regra explícita de qualquer ordenamento. Realiza-se, no entanto, pela atuação de outros princípios, tais como o da legalidade, o da irretroatividade, o da igualdade, o da universalidade de jurisdição etc. Na sua implicitude, é um autêntico sobreprincípio, produto da presença simultânea dos cânones que o realizam. (...) Diga-se o mesmo da justiça. Agora, há um princípio que sempre estará presente, ali onde houver direito. Trata-se do princípio da certeza jurídica. (...) Torna-se evidente que a certeza jurídica é também sobreprincípio, mas dotado de aspectos lógicos peculiares que lhe atribuam preeminência sintática sobre todos os demais‖.

Como se verifica, a segurança jurídica é demasiado importante no

cumprimento do mandamento constitucional em um Estado Democrático de Direito

como se pretende o nosso, de modo que os julgamentos do Supremo Tribunal

Federal, maior intérprete de nossa Constituição, não podem deixar de considerar

esse axioma.

2.1.4. Princípio da Concordância Prática, Harmonização ou Cedência Recíproca

Konrad Hesse128, ao idealizar o princípio da concordância prática, afirmou

a noção de que “os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou

concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o

sacrifício do outro, o que só se alcança na aplicação ou na prática do texto‖.

127

CARVALHO, Paulo de Barros. Sobre os princípios constitucionais tributários. Revista de Direito Tributário, São Paulo, ano 15, n. 55. p. 150, jan/mar 1991. 128

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983.

79

Assim, onde se produzem colisões não se deve, através de uma

precipitada ponderação de bens ou abstrata ponderação de valores, realizar um à

custa do outro. A fixação de limites deve responder em cada caso concreto ao

princípio de proporcionalidade.

Esse princípio de interpretação constitucional também é conhecido como

princípio da harmonização ou da cedência recíproca, posto que o intérprete deve

buscar, nos casos em que haja direitos em confronto, a cedência recíproca, de parte

a parte, para que se encontre um ponto de convivência entre esses direitos.

Nas lições de Canotilho129:

“(...) o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito ou em concorrência de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais e não uma diferença de hierarquia que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos, de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens."

Ingo W. Sarlet130 explica que, nesse processo de ponderação, embora

não se possa atribuir uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, na tentativa

de aplicação simultânea e compatibilizada das normas aparentemente conflitantes

sobre um caso concreto, é possível que ocorra a atenuação de uma delas, sempre

levando em conta os princípios constitucionais e, principalmente, garantias

fundamentais protegidos pela Constituição.

O princípio da concordância prática ou da harmonização está diretamente

relacionado com o princípio da unidade, pois, ao não admitir contradições entre as

129

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991. p. 234. 130

SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de Alçada e Limitação do Acesso ao Duplo Grau de Jurisdição.Revista Ajuris 66, 1996.

80

normas constitucionais, reflete a unidade do sistema formado pela Carta Magna e,

como diz Celso Bastos131, “o que é uno não é divisível, muito menos em partes

opostas‖.

Corroborando com o nosso objeto de estudo, no sentido de que o duplo

grau de jurisdição, o princípio da igualdade, o princípio da segurança jurídica e o

próprio texto da Constituição deveriam ter sido respeitados no julgamento da Ação

Penal 470, Celso Bastos132, no tópico do princípio da harmonização, esclarece:

―Acresça-se que a uma regra constitucional não se deve atribuir um significado que torne essa regra inconsistente com o sistema ou incoerente com um princípio constitucional (seja ele um princípio explícito, adotado textualmente pela Constituição ou um princípio implícito, que se revela pela leitura atenta da Constituição). Assim, à regra constitucional deverá ser atribuído um sentido pelo qual ela se torne o mais coerente possível com um princípio constitucional válido para a hipótese. Por fim, na Constituição a norma especial tem de harmonizar-se com a de caráter geral (ao passo que na legislação ordinária, prevaleceria a especial)‖.

Em outras palavras, o julgamento da Ação Penal 470 deveria ter sido

desmembrado de modo que a maioria maciça dos réus que não eram detentores de

mandato eletivo tivessem o direito ao juiz natural e ao duplo grau de jurisdição,

conferindo segurança jurídica a todos os cidadãos que vivem sob a égide da

Constituição de 1988, tendo em vista ainda que existe disposição expressa no texto

constitucional nesse sentido (artigo 102, inciso I, alíneas “b”, “c” e “d” da Constituição

Federal – dispõe taxativamente a competência por prerrogativa de função do

Supremo Tribunal Federal).

2.1.5. Princípio da conformidade funcional

O princípio da conformidade funcional está intimamente ligado à noção de

separação dos poderes e do limite de suas competências.

131

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª ed. IBDC Celso Bastos Editor: São Paulo, 1999. p. 106. 132

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª ed. IBDC Celso Bastos Editor: São Paulo, 1999. p. 107.

81

Assim, conforme Hesse133, ―se a Constituição regula de uma determinada

maneira o compromisso respectivo dos agentes das funções estatais, o órgão de

interpretação deve manter-se no marco das funções a ele encomendadas‖.

Esse princípio é aplicável em particular às relações entre legislador e

tribunal constitucional: posto que ao tribunal constitucional só corresponde, frente ao

legislador, uma função de controle, lhe está vedada uma interpretação que conduza

a uma restrição da liberdade do legislador.

O princípio da conformidade funcional, portanto, limita a atuação do

próprio Supremo Tribunal Federal. Neste sentido ensina Canotilho134 que:

―O princípio da conformidade funcional tem em vista impedir, em sede de

concretização da Constituição, a alteração da repartição das funções constitucionalmente estabelecida. O seu alcance primeiro é este: o órgão (ou órgãos) encarregado da interpretação da lei constitucional não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido‖.

O Supremo Tribunal Federal, porém, vez ou outra não apenas ofende o

princípio da conformidade funcional tentando restringir o direito do Poder Legislativo

de efetivamente legislar, como também adota posições que acabam por positivar o

direito, usurpando suas competências.

Pode-se também concluir que a usurpação do juiz natural pelo próprio

Supremo Tribunal Federal seria também uma violação, entre tantas outras, ao

princípio da conformidade funcional.

133

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1983. 134

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina, Coimbra, Portugal, 3ª ed., 1998, p. 1149. 1149.

82

2.1.6. Força normativa da Constituição e Princípio da Ótima Concretização da

Norma

Konrad Hesse desenvolveu o conceito de Força Normativa da

Constituição, ao afirmar que a Constituição jurídica está vinculada à realidade

histórica e seus condicionantes, não podendo ser elaborada apenas sobre base

abstrata e teórica. As normas constitucionais, destarte, necessitam de um mínimo de

eficácia para vigerem e, portanto, quanto melhor atenderem à realidade social e

política do país, mais eficazes serão.

Assim, Hesse135 recorreu aos pensamentos de Humboldt para ilustrar sua

teoria:

―As constituições, afirma, pertencem àquelas coisas da vida cuja realidade se

pode ver, mas cuja origem jamais poderá ser totalmente compreendida e, muito menos, reproduzida ou copiada. Toda Constituição, ainda que considerada como simples construção teórica, deve encontrar um germe material de sua força vital no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, necessitando apenas de desenvolvimento. Afigura-se altamente precário pretender concebê-la com base,

exclusivamente, nos princípios da razão e da experiência‖.

A Constituição, para ter força e eficácia na sociedade que pretende

regular, deve refletir as leis sociais, econômicas e políticas imperantes, ou seja, seu

conteúdo deve corresponder à natureza singular do presente. Porém, após

concebida, sua vontade deve ser respeitada, independentemente de clamores

momentâneos da sociedade.

Segundo Hesse136, “todos os interesses momentâneos – ainda quando

realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado

135

HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional; textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. Saraiva: São Paulo, 2009. p.131. 136

HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional; textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. Saraiva: São Paulo, 2009. p.135.

83

respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a sua

observância revela-se incômoda”. (grifos nossos)

Também perigosa para a Força Normativa da Constituição é a tendência

para a sua revisão sob a desculpa de necessidade política, o que abala a confiança

na sua inquebrantabilidade e debilita sua eficácia. Essa revisão constitucional,

infelizmente, muitas vezes ocorre inconstitucionalmente por parte do próprio

Supremo Tribunal Federal.

Eis porque a correta interpretação constitucional faz-se imprescindível

para a manutenção da força normativa da Constituição.

Considerando-se que a Constituição pretende ver-se atualizada, e que as

possibilidades e condicionamentos históricos de referida atualização vão mudando

conforme o progresso e o tempo, preciso será dar preferência na solução dos

problemas jurídicos constitucionais a aqueles pontos de vista que ajudem as normas

da Constituição a obter a máxima eficácia, com base nas circunstâncias de cada

caso. Deve-se buscar interpretar e atualizar a constituição de forma eficaz e com

máxima permanência:

―A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode - ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situação137‖.

Depreende-se do exposto, portanto, que o limite de qualquer

interpretação é sempre o texto da lei. Por mais que o juiz ou tribunal, no momento da

aplicação da norma ao caso concreto, procure dela extrair a interpretação mais justa

137

HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional; textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. Saraiva: São Paulo, 2009. p.136

84

e atual ao contexto presente, caso essa interpretação esbarre na letra expressa do

texto constitucional e na vontade da Constituição, o intérprete deverá recomeçar seu

trabalho.

Não se pode resolver a tensão entre norma e realidade com a supressão

do próprio direito, da mesma forma que não se pode recusar o direito ao duplo grau

de jurisdição a um cidadão, em função da pressão da mídia sobre um julgamento de

clamor popular, como aconteceu no excepcional julgamento da Ação Penal 470 pelo

Supremo Tribunal Federal.

2.1.6.1. Princípio da Máxima Eficiência

Da Força Normativa da Constituição, abordada por Hesse, pode-se extrair

o princípio que Canotilho chamou da máxima eficiência, segundo o qual deverá ser

concedido ao dispositivo constitucional o sentido que lhe atribua a maior eficiência

possível.

Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos138, ―o postulado da máxima

efetividade possível se traduz na preservação da carga material que cada norma

possui, e que deve prevalecer, não sendo aceitável sua nulificação, nem que

parcial‖. No entanto, adverte que esse axioma:

―(...) não é sinônimo do que se designa por interpretação ampliativa, nem mesmo se pense em convertê-lo em estímulo para, em casos duvidosos, fazer prevalecer sempre a interpretação mais lata. Isso seria, em muitos casos, subverter os fins para os quais existe a Constituição, dentre eles o da defesa do indivíduo‖.

Destarte, não se pode empobrecer a Constituição, todos os seus artigos

devem ter efeito e seu esvaziamento, mesmo que parcial, representaria uma forma

de violação da Constituição. O artigo 102, inciso I, alíneas “b”, “c” e “d” da

Constituição Federal dispõe taxativamente as pessoas que serão excepcionalmente

138

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 105.

85

julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, sendo que qualquer ampliação

infraconstitucional desse rol, cometida pelo intérprete constitucional, resultaria numa

grave ofensa ao princípio do juiz natural, da ampla defesa, do duplo grau de

jurisdição etc a que todos não excepcionados pela Carta Magna têm direito.

2.1.7. Princípio da Interpretação Conforme a Constituição

Segundo Inocêncio Mártires Coelho139, o princípio da interpretação

conforme a Constituição trata-se, de fato, de “instrumento situado no âmbito do

controle de constitucionalidade e não apenas uma simples regra de interpretação”,

uma vez que pode ser considerado como uma diretriz de prudência política

constitucional.

Este princípio não se trata de um princípio de interpretação das normas

constitucionais como os demais até aqui abordados, mas de um vetor de

interpretação das normas constitucionais: quando uma norma infraconstitucional der

margem a mais de uma intepretação quanto ao seu real significado, deve-se dar

prioridade àquela interpretação que esteja em conformidade com a Constituição,

afastando qualquer interpretação contrária. Se não for possível uma interpretação

conforme a Constituição, a lei deverá ser extirpada do sistema jurídico, pois com ele

incompatível.

É o que se extrai das lições de Jorge Miranda140:

―Tema próximo do da interpretação constitucional, embora dele distinto, vem a ser o da interpretação da lei em face da Constituição ou, num sentido muito amplo, da interpretação conforme a Constituição. (...) A chamada interpretação conforme a Constituição vem a ser mais do que a aplicação de uma regra de interpretação. É um procedimento ou regra própria da fiscalização da constitucionalidade, que se justifica em nome de um princípio de economia do ordenamento ou de máximo aproveitamento dos atos jurídicos – e não de uma presunção de constitucionalidade da norma‖.

139

MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.179-180. 140

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra Editora: Coimbra, 1987. p. 232-233.

86

Em suma, trata-se de um instrumento de controle de constitucionalidade,

pois, ou a lei infraconstitucional tem uma possibilidade de interpretação conforme a

Constituição, ou ela não terá eficácia, restando apenas a exclusão da regra do

ordenamento. E essa interpretação possível deve ater-se sempre ao texto da lei,

sendo vedado ao intérprete atribuir um significado à norma que seja totalmente

distante de sua redação, desprezando por completo o seu texto literal.

2.1.8. Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade exige que a norma tenha uma aplicação

razoável, devendo o intérprete fazer uma justa ponderação entre os meios utilizados

e os fins perseguidos, conforme bem explicam os professores Vidal Serrano Nunes

Junior e Luiz Alberto David Araujo141:

―O princípio da proporcionalidade é aquele que orienta o intérprete na busca da justa medida de cada instituto jurídico. Objetiva a ponderação entre os meios utilizados e os fins perseguidos, indicando que a interpretação deve pautar o menor sacrifício ao cidadão ao escolher dentre os vários possíveis significados da norma‖.

Na Constituição de Portugal, o princípio da proporcionalidade vem

expressamente contemplado em seu artigo 18, n. 2:

―A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos‖.

Talvez se esse mesmo dispositivo estivesse presente no texto da

Constituição Brasileira de 1988, o Supremo Tribunal Federal tivesse respeitado

adequadamente o princípio da proporcionalidade no julgamento da Ação Penal 470,

ao invés de restringir inconstitucionalmente o direito ao duplo grau de jurisdição da

maioria dos réus que foram diretamente julgados pelo Tribunal incompetente.

141

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. P. 89.

87

No Direito Brasileiro, conforme explica Celso Ribeiro Bastos142, o princípio

da proporcionalidade e, em consequência, o princípio da razoabilidade, estão

presentes no texto constitucional como princípios constitucionais não escritos, mas

também podem ser extraídos da cláusula do devido processo legal:

―Nesse sentido, em concessão de medida liminar em sede de ação direta de constitucionalidade, em que foi relator o Ministro José Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o critério da razoabilidade atua enquanto projeção concretizadora da cláusula do ‗substantive due process of law‘, como insuperável limitação ao poder normativo do Estado (DJ de 12.6.95, p. 15154)‖.

Da mesma forma, no Direito Constitucional Alemão, o princípio da

proporcionalidade ou o princípio da proibição de excesso goza de status de norma

constitucional não escrita, derivada do Estado de Direito, conforme explica Gilmar

Mendes143: ―(...) Cuida-se, fundamentalmente, de aferir a compatibilidade entre

meios e fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os

direitos fundamentais‖.

O princípio da proporcionalidade, assim, presta-se a defender os direitos

fundamentais, como a liberdade, a igualdade, o devido processo legal, diante de

abusos principalmente do poder estatal. É o que corrobora Maria Luiza Schäfer

Streck:

―O princípio da proporcionalidade tem sua principal área de atuação no âmbito dos direitos fundamentais, isso porque é o responsável por determinar os limites – máximos e mínimos – de intervenções estatais nas esferas individuais e coletivas, sempre tendo em vista as funções e os fins buscados pelo Estado Democrático de Direito. Essa característica se mostra mais visível quando falamos no Direito Penal, uma vez que, responsável por tutelar os bens jurídicos constitucionais, esse ramo do direito deverá zelar, ao mesmo tempo, pela proibição de abusos – arbitrariedades – estatais, bem como efetivar as necessidades fundamentais do indivíduo e da sociedade conforme estabelecido nas diretrizes constitucionais144‖.

142

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 184 143

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 43. 144

STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição: a face oculta da proteção dos direitos

fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 65.

88

Trata-se de um importante instrumento a ser utilizado na aplicação das

normas constitucionais aos casos concretos, principalmente se considerarmos, como

Dworkin, que os juízes não possuem discricionariedade, devendo recorrer à força

normativa dos princípios constitucionais sempre que se depararem com “casos

difíceis”.

Segundo a melhor doutrina, o princípio da proporcionalidade também se

expressa pela proibição de excesso das decisões judiciais, o que ganha maior

relevância quando se trata de direito penal, em que o que está em jogo é a liberdade

do acusado. Nesse sentido, citamos novamente Streck:

―Observe-se que a proporcionalidade está ligada a diversos princípios, especialmente aos do devido processo legal, o contraditório e a igualdade. Uma lei ou decisão deixa de ser proporcional quando viola esses princípios. E, ressalte-se: ou a violação se dá porque a lei (ou a decisão) foi além, ou porque ficou aquém da Constituição. Ora, se isso é correto, toda a proporcionalidade ou será pela via da proibição de excesso, ou pela proibição de proteção deficiente145‖.

Sobre o princípio da proporcionalidade na sua forma de proibição do

excesso, Canotilho esclarece que “proibir o excesso não é só proibir o arbítrio; é

impor, positivamente, a exigibilidade, adequação e proporcionalidade dos atos dos

poderes públicos em relação aos fins que eles prosseguem. Trata-se, pois de um

princípio jurídico-material de justa medida146‖.

A razoabilidade, também expressão do princípio da proporcionalidade,

nos dizeres de Roberto Dromi, “engloba a prudência, a proporção, a indiscriminação,

a proteção, a proporcionalidade, a causalidade, em suma, a não-arbitrariedade147”.

Ao negar o desmembramento da Ação Penal 470, para que os cidadãos

comuns, não detentores de mandato parlamentar, pudessem ser julgados pelo seu

juiz natural, o Supremo Tribunal Federal agiu com arbítrio e em visível ofensa ao

145

STRECK, Maria Luiza Schäfer. Direito Penal e Constituição: a face oculta da proteção dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 87. 146

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1991. 147

DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 6 ed. Buenos Aires: Ciudade Argentina, 1997, p. 36.

89

princípio da proporcionalidade, uma vez que, ao ampliar sua competência originária,

invadindo a competência absoluta do juiz de primeiro grau e usurpando o juiz natural

dos acusados, sacrificou direitos e garantias individuais em prol de uma simples

praticidade ou comodidade processual, para não se falar em eventuais motivações

obscuras, já que a posição dominante em processos semelhantes vinha sendo e

continua sendo no sentido do desmembramento.

Considerando, assim, que o entendimento pacífico do Supremo Tribunal

Federal firma-se pela inconstitucionalidade da ampliação de suas competências

originárias, uma vez que o artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” é de interpretação

estrita e enumera taxativamente essas competências, a especial adoção de

entendimento diverso apenas no julgamento da Ação Penal 470, além de

desproporcional, é completamente irracional.

Quando se reflete sobre a desproporcionalidade, inadequação e

arbitrariedade da usurpação do juiz natural da maioria dos réus da Ação Penal 470,

mais visível o prejuízo sofrido pela ausência do duplo grau de jurisdição, posto que,

se houvesse possibilidade de recurso a qualquer tribunal diverso, certamente a

decisão de ampliação da competência originária do Supremo Tribunal Federal teria

sido reformada.

O mais grave é que, in casu, não haveria nem necessidade de aplicação

do princípio da proporcionalidade, se a Corte Suprema se restringisse apenas a

seguir literalmente o texto da Constituição, já que o artigo 102, inciso I, alíneas “b” e

“c” é claro e taxativo quanto às competências originárias daquele tribunal, não dando

vazão a dúvidas em sua aplicação.

De qualquer forma, independente da postura peculiar do Supremo

Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal 470, o princípio da proporcionalidade

é contemplado e adotado pela nossa Constituição de 1988 e já foi evocado em

diversas decisões desse mesmo tribunal como um princípio vetor da interpretação

constitucional.

90

2.2. Métodos de Interpretação Constitucional

A doutrina e a jurisprudência desenvolveram e evoluíram alguns métodos

para a interpretação da Constituição Federal, dentre os quais podemos citar o

método clássico, o método tópico e o hermenêutico-concretizador.

Este último, idealizado por Hesse e adotado por Canotilho, é o que na

atualidade possui maior aceitação em nossa comunidade jurídica e, portanto,

merece um estudo mais detalhado.

Antes de mais nada, porém, vale aqui relembrar os métodos clássicos de

interpretação idealizados por Savigny, todos eles adotados pelo método

hermenêutico-concretizador de forma conjunta, e que podemos nominar de critérios

de interpretação, quais sejam: (i) literal ou gramatical; (ii) histórico; (iii) teleológico; e

(iv) sistemático.

O critério gramatical ou literal de interpretação dá ênfase ao conteúdo

semântico das palavras expressas no texto constitucional, ou seja, o intérprete se

atém ao que está escrito no texto da lei de modo expresso.

Sob esse aspecto, a doutrina dominante recomenda que ao interpretar a

Constituição extraia-se de seus termos o significado que eles têm na linguagem

comum, já que a Constituição é dirigida à coletividade ou povo e não a especialistas

ou cientistas restritos, e por isso mesmo sua expressão é comum. Dessa forma, as

palavras devem ser tomadas em sua acepção natural, evitando-se o indevido

alargamento ou restrição de seu significado.

O critério ou método histórico privilegia a noção inicial que se imprimiu à

norma quando de sua elaboração, considerando o contexto político e social de sua

criação, o processo legislativo, de modo que a interpretação seja efetuada tendo

como fator importante o tempo em que a norma foi editada e seu processo de

91

elaboração. À regra constitucional, sob esse critério, deve ser atribuído o significado

que estiver de acordo com o que desejou lhe imprimir o legislador constituinte:

seriam objeto de estudos os projetos e emendas apresentados, discursos, matérias

da época etc.

O critério teleológico de interpretação consiste em atribuir à norma um

significado de acordo com a sua finalidade, de acordo com a vontade legal,

privilegiando o bem jurídico que se pretendeu proteger quando de sua criação.

Sobre a aplicação desses critérios, existem diversos posicionamentos do

Supremo Tribunal Federal, conforme se verifica dos exemplos a seguir:

―Porém, muito embora a teoria do Direito Constitucional aponte para a presunção de correção dos termos pousados nas constituições, ante o alto grau de elaboração e análise a que foi submetido o texto, não se haverá olvidar que o nosso processo constituinte foi feito de maneira bastante insatisfatória e atravancada, apesar do longo período elaborativo, legando à Norma Suprema o infeliz apelido de ‗colcha de retalhos‘. Deve ser visto com a devida cautela o critério interpretativo de conceder muita importância ao uso dos termos, haja vista a freqüência com que usou-se um termo por outro na Constituição Federal‖. (RTJ, 143:27, 1993, ADIn 378-DF, rel. Min. Sydney Sanches). ―Recusando-se a caminhar com a interpretação literal, gramatical, do art. 33 do ADCT, o Tribunal a quo decidiu de conformidade com o contexto constitucional. Recuso-me, também, a aplicar, na hipótese, a interpretação simplesmente gramatical, literal, do art. 33 do ADCT. Por isso, incluo, na palavra atualização, que está inscrita no art. 33 do ADCT, os juros moratórios e compensatórios, os juros que são devidos. Repito: o acórdão do Tribunal paulista decidiu de conformidade com o espírito da Constituição, de acordo com o contexto constitucional. É a regra velha de interpretação, que vem dos romanos, que ‗lex non est textus sed contextus‘‖. (STF, AI 487.968/SP, rel. Min. Carlos Velloso, decisão monocrática, DJ 05/05/04). ―O argumento histórico, no processo de interpretação constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto, como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição, permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a acolher ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. O registro histórico dos debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na Emenda Constitucional nº 20/98, revela-se extremamente importante na constatação de que a única base constitucional que poderia viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da União, da contribuição de seguridade social foi conscientemente excluída do texto, por iniciativa dos próprios Líderes dos Partidos Políticos (...) O destaque supressivo, patrocinado por esses líderes partidários, excluiu, do substitutivo

92

aprovado pelo Senado Federal (PEC 33/95), a cláusula destinada a introduzir, no texto da Constituição, a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos servidores inativos, da contribuição de seguridade social‖. (STF, ADIn-MC 2.010-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/04/02). ―É o que em seguida será demonstrado pela interpretação sistemática, a mais racional e científica, e a que mais se harmoniza com o método do Direito Constitucional, exatamente a que aproxima da realidade o intérprete‖. (Rep. 846-RJ, Min. Antonio Neder, Representações por inconstitucionalidade: dispositivos de Constituições estaduais, 93, 1976, p. 107). ―Versando a controvérsia sobre o ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República – o Supremo Tribunal Federal – descabe o deslocamento previsto pelo artigo 97 do referido diploma maior. O julgamento de plano pelo órgão fracionado homenageia não só a racionalidade, como também implica interpretação teleológica do artigo 97 em comento, evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade. A razão de ser do preceito está na necessidade de evitar-se que órgãos fracionados apreciem, pela vez primeira, a pecha de inconstitucionalidade argüida em relação a um certo ato normativo‖. (STF, AI-AgR 170.162-SC, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 17/11/95).

Os métodos teleológico e sistemático, segundo a maioria dos

doutrinadores, seriam os mais importantes na interpretação constitucional,

principalmente se considerarmos os princípios da unidade da Constituição e da força

normativa da Constituição.

Bem lembra o já acima citado jurista Luis Roberto Barroso que, o

legislador brasileiro, em uma das raras exceções em que editou uma lei de cunho

interpretativo, agiu, precisamente, para consagrar o método teleológico, ao dispor,

no artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que na aplicação da lei o juiz

atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. O

intérprete deve sempre voltar-se às finalidades mais elevadas do Estado, que são a

justiça, a segurança jurídica e o bem estar social.

E para descobrir quais são as finalidades do Estado o intérprete deve

valer-se também da interpretação sistemática, visualizando o ordenamento jurídico

como um todo, se não apenas no texto constitucional, principalmente também nos

princípios que ele carrega.

93

2.2.1. Método Hermenêutico-Concretizador.

Existem diversos métodos de interpretação disponíveis na moderna

Hermenêutica, como o já aqui citado método clássico, o método tópico-problemático,

o método científico-espiritual, o método normativo-estruturante, e o método

hermenêutico-concretizador, que é aquele adotado por Hesse e que pretendemos

esmiuçar um pouco mais no presente trabalho.

Konrad Hesse desenvolveu o método interpretativo de concretização na

aula inaugural que proferiu na Universidade de Freiburg, ao criticar a teoria dos

fatores reais de poder de Lassale.

Ferdinand Lassale, em conferência proferida em 1862, havia proclamado

que as questões constitucionais não seriam questões jurídicas, mas sim políticas, e

que a Constituição verdadeira seria somente aquela que reflete os fatores reais e

efetivos de poder que vigem em um determinado país. Portanto, as Constituições

escritas não teriam valor nem seriam duráveis, a não ser que expressassem

fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social.

Hesse, em contraposição a Lassale, defendeu que, apesar do caráter

político da Constituição e dos agentes que a levam a efeito, sua interpretação é uma

tarefa jurídica e não política. Se a racionalidade total não é atingível no direito

constitucional, isso não significa que não se deva buscar pelo menos uma

racionalidade possível.

As normas constitucionais não devem apenas descrever relações fáticas,

mas sim prescrever condutas. Desta forma, embora a Corte Constitucional não

possa ser indiferente às consequências políticas de suas decisões, sob pena de

cometer graves injustiças, também não pode deixar de agir dentro dos limites e das

possibilidades previstas na Constituição. Em caso de conflito entre a norma e a

política, na visão de Hesse, o juiz deve escolher a norma.

94

Além disso, reza a teoria concretista que a compreensão e a aplicação da

norma geral e abstrata constitucional a um caso concreto consistem em um

processo único148 que forma a interpretação e, consequentemente, a concretização

da norma.

Segundo Hesse, não há interpretação da Constituição independente de

problemas concretos, pois onde não há dúvidas não se interpreta:

―A concretização pressupõe a compreensão do conteúdo da norma a concretizar, não podendo desvincular-se nem da pré-compreensão do intérprete e nem do problema concreto a resolver‖. (...) ―Destarte, a ‗concretização‘ do conteúdo de uma norma constitucional, assim como a sua realização, só se tornam possíveis incorporando as circunstâncias da ‗realidade‘ que essa norma é chamada a regular. As singularidades dessas circunstâncias, não raro já conformadas juridicamente, integram o ‗âmbito normativo‘, o qual – a partir do conjunto dos dados do mundo social afetados por um preceito jurídico e através do mandato contido, sobretudo, no texto da norma, o ‗programa normativo‘ – é alçado à condição de parte integrante do conteúdo normativo‖. (...) ―A interpretação constitucional, no sentido estrito que aqui nos interessa, faz-se necessária e se põe como problema toda vez que temos que resolver uma questão constitucional que a Constituição não nos permite responder de modo conclusivo. Onde não se suscitam dúvidas não se interpreta e, com frequência, não faz falta interpretação alguma149‖.

Como se depreende do exposto, Hesse faz uma distinção entre mera

atuação/realização da Constituição (cumprimento inconsciente dos mandamentos da

Constituição), mera compreensão (cumprimento da norma constitucional quando

148

―(...) ´compreender´ e, com isto, ´concretizar´ só é possível em face de um problema concreto. O intérprete tem que relacionar a esse problema a norma que pretende entender, se quiser determinar seu conteúdo correto aqui e agora. Esta determinação, assim como a ‗aplicação‘ da norma ao caso concreto, constituem um processo único, e não a aplicação subsequente, a uma determinada hipótese, de algo preexistente, geral, compreensível em si mesmo. Não existe interpretação constitucional desvinculada de problemas concretos‖. (in HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 110). 149

HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 98-102

95

esta é clara e precisa) e interpretação propriamente dita (tarefa de se revelar o

sentido da norma quando a Constituição não oferece uma resposta concludente).

Portanto, para a interpretação constitucional (ou concretização da norma

constitucional), todas as situações que não estiverem expressamente previstas na

Constituição deverão ser interpretadas mediante a incorporação da realidade ao

dispositivo legal em questão, porém, sempre limitado ao texto expresso da

Constituição.

Temos então que, para a interpretação (concretização da norma), são

necessárias as seguintes premissas: (i) a norma que vai se concretizar, (ii) a

compreensão prévia do intérprete e (iii) o problema concreto a resolver.

Com essas premissas em perspectiva, pode-se delinear mais ou menos o

trabalho do intérprete através de três etapas que se inter-relacionam, sempre

limitadas, em último plano, pelo texto da Constituição: (i) pré-compreensão150 do

sentido da norma através do intérprete: adoção de um primeiro projeto, que será

submetido posteriormente à comprovação, correção e revisão, através de uma

análise mais profunda, até que a unidade de sentido seja fixada; (ii) operação de

mediações entre o texto e a situação a que se aplica; (iii) correlação entre o

problema e a norma: concretização.

O intérprete, através de uma atuação tópica orientada e limitada pela

norma, só poderá utilizar os pontos de vista que se correlacionarem com o problema

e compará-los tanto com o programa (texto da norma) como com o âmbito normativo

contidos na Constituição:

150

“O intérprete compreende o conteúdo da norma a partir de uma pré-compreensão, que lhe enseja contemplar a norma sob certas perspectivas, fazer uma ideia do conjunto e esboçar um primeiro projeto ainda carente de comprovação, correção e revisão, por meio de uma análise mais profunda, até que, como resultado da progressiva aproximação da ´coisa´nos projetos sucessivamente revistos, a unidade de sentido se fixe claramente”. (in HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 109).

96

―Pois bem, através de uma atuação ‗tópica‘ orientada e limitada pela norma (o

que significa dizer vinculada pela norma), haverão de encontrar-se e provar-se pontos de vista que, buscados pela via da ‗inventio‘, sejam submetidos ao jogo das opiniões favoráveis e contrárias e fundamentem a decisão da maneira mais esclarecedora e convincente possível (topoi). Sempre que estes pontos de vista contenham premissas objetivamente adequadas e fecundas terão consequências que levam à solução do problema, ou, ao menos, colaborem para isso. Neste sentido, não ficam entregues à discrição os ‗topoi‘ que devam ser trazidos à colação na multiplicidade dos pontos de vista. De um lado, o intérprete só pode utilizar na tarefa de concretização aqueles pontos de vista que tenham relação com o problema; a vinculação ao problema exclui ‗topoi‘ estranhos à questão. De outro lado, está obrigado a incluir no seu ‗programa normativo‘ e no seu ‗âmbito normativo‘ os elementos de concretização que lhe ministra a própria norma constitucional, assim como as diretrizes contidas na Constituição, em ordem à aplicação, coordenação e valoração desses elementos no curso da solução do problema‖. (...) ―Este procedimento tópico vinculado, em coerência com o caráter da Constituição, ao problema concreto, mas sempre guiado e orientado pela norma, terá o máximo de possibilidades para chegar a resultados sólidos, racionalmente explicáveis e controláveis151‖.

Enfim, esse método de interpretação constitucional, aliado aos demais

métodos modernos, pode ser de grande utilidade na aplicação da norma ao caso

concreto, sempre considerando os princípios hermenêuticos e a primazia do texto

normativo.

151

HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 111 e 116.

97

CAPÍTULO 3 – O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO MAIOR INTÉRPRETE

DA CONSTITUIÇÃO

Após análise dos principais elementos da Hermenêutica Constitucional no

Capítulo 2, não se pode olvidar um estudo um pouco mais detalhado sobre um dos

principais intérpretes da Constituição, o Poder Judiciário, representado, em sua

instância máxima, pelo Supremo Tribunal Federal, nossa Corte Constitucional.

Em primeiro lugar, procederemos a uma breve reflexão sobre o postulado

da Separação dos Poderes, consagrado em nosso ordenamento como cláusula

pétrea, conforme adiantamos no Capítulo 1 do presente trabalho. Em verdade, até

poderíamos ter abordado esse assunto naquele capítulo que tratava dos princípios

constitucionais. Porém, entendemos que seria mais interessante tratar da Separação

dos Poderes como uma introdução a este capítulo, para o desenvolvimento do

raciocínio lógico que pretendemos construir sobre a necessidade de freios e limites à

atuação do Poder Judiciário como intérprete da Constituição.

Também deveremos estudar no presente capítulo o controle repressivo

de constitucionalidade, uma vez que se trata da principal função do Supremo

Tribunal Federal, em detrimento do julgamento originário de infrações penais

comuns.

3.1. Separação de Poderes e Poder Judiciário

A Constituição Federal de 1988 prestigia a Separação de Poderes como

um verdadeiro princípio, protegido por cláusula pétrea, como se observa da leitura

dos artigos 2º e 60, §4º, III, in verbis:

―Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário‖. ―Art. 60. (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

98

(...) III - a separação dos Poderes; (...)‖.

Esse princípio geral de direito constitucional foi concebido pela primeira

vez por Aristóteles, depois detalhado por John Locke e finalmente aperfeiçoado por

Montesquieu, na obra ―O Espírito das Leis‖:

―Mas é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a

abusar dele. Vai até encontrar os limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites. Para que não possam abusar do poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder‖. (...) ―Em cada Estado há três espécies de poderes: o Legislativo, o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes; e o Executivo da que dependem do Direito Civil‖. (....) ―Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares152‖.

Em razão dos fundamentos acima traçados, de que todo homem que tem

poder é levado a abusar dele e que por isso é necessário que o poder freie o poder,

foi que em 1789 a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão

incorporou a separação de poderes como um dogma constitucional: ―Art. 16. A

sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a

separação dos poderes não tem Constituição153‖.

Celso Bastos destaca, considerando que a divisão entre poderes já havia

sido pensada por Aristóteles, que o grande sucesso da teoria de Montesquieu se

deu em razão da introdução da ideia de equilíbrio entre os poderes pelo sistema de

“freios e contrapesos”:

―O traço importante da teoria elaborada por Montesquieu não foi o de identificar

estas três funções, pois elas já haviam sido abordadas por Aristóteles, mas o de demonstrar que tal divisão possibilitaria um maior controle do poder que se

152

MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do Espírito das Leis – in Coleção Os Pensadores - Montesquieu. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.163-165. 153

http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/dec1789.htm Acesso em 20/08/2013.

99

encontra nas mãos do Estado. A ideia de um sistema de ‗freios e contrapesos‘, onde cada órgão exerça as suas competências e também controle o outro, é que garantiu o sucesso da teoria de Montesquieu154‖.

Na mesma esteira, José Afonso da Silva pontua que os poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário devem se subordinar ao princípio da harmonia,

que não significa nem o domínio de um pelo outro e nem a usurpação de

atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver colaboração

consciente e controle recíproco, nos seguintes termos:

―De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do

poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados155‖.

Na visão de Vidal Serrano Nunes Júnior e Luiz Alberto David Araujo, a

“ideia que se deve ter por consolidada é a de que, atribuindo-se as funções do poder

a mãos diferentes, uma controlaria a outra, evitando o arbítrio e, por conseguinte,

fornecendo condições objetivas para o respeito aos direitos individuais156”.

Aliás, é uníssona na doutrina constitucionalista a posição de que a

independência e harmonia entre os poderes se trata de mais uma proteção aos

direitos e garantias fundamentais do homem e, portanto, condição de existência de

um Estado Democrático de Direito:

―A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito

aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado Democrático de Direito‖.

154

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. P. 159. 155

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 110. 156

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 229.

100

(...) ―Não existirá, pois, um Estado Democrático de Direito, sem que haja Poderes de Estado e Instituições, independentes e harmônicos entre si, bem como previsão de direitos fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade desses requisitos. Todos estes temas são de tal modo ligados que a derrocada de um, fatalmente, acarretará a supressão dos demais, com o retorno do arbítrio e da ditadura157‖.

Dessarte, cada poder possui sua função típica: ao Poder Executivo cabe

a função administrativa, ao Poder Legislativo cabe a função legislativa, e ao Poder

Judiciário cabe a função judicante (ou jurisdicional)158. Excepcionalmente, porém,

esses órgãos estatais podem desempenhar funções atípicas, como, por exemplo, o

Poder Judiciário que: (i) ao administrar serviços internos, acaba por desempenhar

funções atipicamente administrativas apenas para manter sua autonomia em face do

Poder Executivo; e (ii) ao editar normas regimentais acaba desempenhando funções

atipicamente legislativas apenas para manter sua independência em face do Poder

Legislativo.

Sobre as funções típicas e atípicas de cada Poder estatal, vale mais uma

vez nos socorrermos dos ensinamentos de Vidal Serrano Nunes Júnior e Luiz

Alberto David Araujo:

―Funções típicas são as que guardam uma relação de identidade com o Poder

por que são desempenhadas. Atípicas, contrariamente, são aquelas que não guardam nota de identidade e, por isso mesmo, são originariamente desincumbidas pelos outros órgãos de poder. (...) O que se conclui, em resumo, é que a mera opção pela separação dos poderes, consagrada pelo artigo 2º de nossa Lex Major, prenuncia a adoção de um regime em que a cada Poder ficam atribuídas as funções que lhe são típicas e as atípicas necessárias à manutenção de sua independência. Fora disso, é necessária a existência de normas constitucionais expressas159‖.

157

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 340-345. 158

A jurisdição é monopólio do Poder Judiciário, conforme dispõe o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que assim dispõe: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm ) 159

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 231-232.

101

Nesse sentido, Arruda Alvim esclarece:

―Podemos, assim, afirmar que função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder

Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal, coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a atividade e vontade das partes. Evidentemente tem-se que distinguir a atividade jurisdicional da administrativa e da legislativa. As duas últimas, especialmente a administrativa, consistem em atuação em conformidade com a lei, mas são nitidamente diversas da atividade jurisdicional, pois esta é atividade secundária ou substitutiva, ao passo que a

administrativa é primária160‖.

Portanto, a função típica do Poder Judiciário161 é judicante ou

jurisdicional, cabendo-lhe aplicar a lei a um caso concreto e impor a força coativa do

Estado para validar o ordenamento jurídico sempre que houver necessidade, ou

seja, sempre que houver conflito de interesses.

Em verdade, a função jurisdicional do Poder Judiciário não pode ser

dissociada da ideia de proteção do ordenamento jurídico como um todo e,

principalmente, de proteção da Constituição Federal, pois, como lembra Alexandre

de Moraes, “sua função não consiste somente em administrar a Justiça, sendo mais,

pois seu mister é ser o verdadeiro guardião da constituição, com a finalidade de

preservar, basicamente, os princípios da legalidade e igualdade, sem os quais os

demais tornariam-se vazios162”.

O mesmo autor defende que, para ser o guardião da constituição, o Poder

Judiciário necessita de certas garantias que possibilitem a proteção dos direitos

individuais e a aplicação dos princípios basilares do Direito. Dentre essas garantias,

destaca-se a garantia de imparcialidade, que pode ser extraída, dentre outros

dispositivos, do artigo 95, parágrafo único, incisos I, II, III, IV e V da Constituição

160

ALVIM, Eduardo Arruda. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.149. 161

Nossa Constituição Federal estabelece os órgãos do Poder Judiciário nos incisos de seu artigo 92, a saber: I - o Supremo Tribunal Federal; I-A o Conselho Nacional de Justiça; II - o Superior Tribunal de Justiça; III - os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV - os Tribunais e Juízes do Trabalho; V - os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI - os Tribunais e Juízes Militares; VII - os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. 162

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 406.

102

Federal, que veda aos juízes (i) exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo

ou função, salvo uma de magistério; (ii) receber, a qualquer título ou pretexto, custas

ou participação em processo; (iii) dedicar-se à atividade político-partidária; (IV)

receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas,

entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; (V)

exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três

anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

A imparcialidade das decisões judiciais é inerente e essencial à divisão e

equilíbrio de poderes como um sistema de freios e contrapesos, como se depreende

das lições de José Afonso da Silva:

―Divididas as funções da soberania nacional por três Poderes distintos,

Legislativo, Executivo e Judiciário, os órgãos deste (juízes e tribunais) devem, evidentemente, decidir atuando o direito objetivo; não podem estabelecer critérios particulares, privados ou próprios, para, de acordo com eles, compor conflitos de interesses, ao distribuírem justiça. Salvo o juízo de equidade, excepcionalmente admitido, como referimos ao tratar do mandado de injunção, normalmente o juiz, no Brasil, pura e simplesmente aplica os critérios que foram editados pelo legislador163‖.

A Constituição de 1988 possui outros mecanismos que buscam coibir a

parcialidade dos juízes, como se verifica no artigo 93, inciso IX, que exige a

fundamentação de todas as decisões judiciais, inclusive emitidas pelos tribunais, in

verbis:

―Art. 93. (...) IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão

públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação164‖.

163

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 554. 164

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 20/08/2013

103

Nesse sentido, Antonio Scarance Fernandes explica que a

obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais é uma garantia que propicia a

fiscalização da imparcialidade da atuação judicante:

“Agora, fala-se em garantia da ordem política, em garantia da própria jurisdição.

Os destinatários da motivação não são mais somente as partes e os juízes de segundo grau, mas também a comunidade que, com a motivação, tem condições de verificar se o juiz, e por consequência a própria Justiça, decide com imparcialidade e com conhecimento de causa. É através da motivação que se avalia o exercício da atividade jurisdicional. Ainda, às partes interessa verificar na motivação se as suas razões foram objeto de exame pelo juiz. A este também importa a motivação, pois, através dela, evidencia a sua atuação imparcial e justa165‖.

Ao contrário dos demais poderes, os membros do Poder Judiciário não

são investidos por critérios eletivos, mas são selecionados com base no mérito e

conhecimento específico, para que estejam, na medida do possível, preservados de

paixões e compromissos políticos ou de dívidas com determinada classe de um

eleitorado. Isso não significa que o poder do juiz não seja exercido em nome do

povo ou que o magistrado não deva prestar contas de seus atos à sociedade.

A verificação da imparcialidade e da correção da atuação do Poder

Judiciário, de toda sorte, é possível de forma muito objetiva: basta que a decisão

judicial submeta o caso concreto, em primeiro lugar, sob a égide constitucional e, em

segundo plano, sob a esfera legal.

No que concerne à jurisdição constitucional, sua atuação envolve a

interpretação e aplicação da Constituição, que sempre deve prevalecer sobre as leis

infraconstitucionais, como leciona Luís Roberto Barroso:

―Ao longo dos últimos dois séculos, impuseram-se doutrinariamente duas

grandes linhas de justificação desse papel das supremas cortes/tribunais constitucionais. A primeira, mais tradicional, assenta raízes na soberania popular e na separação de Poderes: a Constituição, expressão maior da vontade do povo, deve prevalecer sobre as leis, manifestações das maiorias parlamentares. Cabe assim ao Judiciário, no desempenho de sua função de aplicar o Direito,

165

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 3ª ed. São Paulo: RT, 2002. p. 119.

104

afirmar com a realidade mais complexa da nova interpretação jurídica, procurar legitimar o desempenho do controle de constitucionalidade em outro fundamento: a preservação das condições essenciais de funcionamento do Estado democrático. Ao juiz constitucional cabe assegurar determinados valores substantivos e a observância dos procedimentos adequados de participação e deliberação166‖.

Assim, Barroso conclui que o papel do Poder Judiciário, superando o

déficit de legitimidade dos demais Poderes, quando seja o caso, deve ser o de

resguardar o processo democrático e promover os valores constitucionais “sem,

contudo, desqualificar sua própria atuação, o que ocorrerá se atuar abusivamente,

exercendo preferências politicas em lugar de realizar princípios constitucionais”.

Conforme demonstraremos no próximo tópico, no Brasil, o Supremo

Tribunal Federal, em sendo nossa Corte Constitucional, é o intérprete último e o

maior responsável pela efetivação da Constituição Federal de 1988, o que não

impede que alguns de seus julgamentos sejam baseados em aspectos políticos ou

sociais, apesar de todos os institutos hermenêuticos e constitucionais existentes no

sentido de garantir a imparcialidade e tecnicidade das decisões judiciais.

Para Raul Canosa Usera, a forma de escolha dos ministros da corte

constitucional facilita que algumas de suas decisões se revistam de caráter político,

apesar da sua atuação preferentemente jurisdicional:

―En general, las magistraturas constitucionales son reclutadas, em su mayor

parte, por métodos de elección que incluyen la participación del Parlamento y en ocasiones, como nuestro caso, de otras instituciones. Ello supone una necessária e inevitable politización que puede darnos la clave a la hora de considerar los rasgos definitivos de su naturaliza. No debemos, evidentemente, pasar por alto quiénes son y por quiénes son elegidos. Frente a las criticas de sua absoluta politización podemos, no obstante, oponer la exigência de mayorías muy cualificadas en lo que, al limite, convertiría esa pretendida

politización em consensuada167‖.

166

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 15, n.° 58, jan.-mar./2007, Ed. Revista dos Tribunais. p. 168. 167

USERA, Raúl Canosa. Interpretación Constitucional. Buenos Aires, Abeledo-Perrot.

105

No entanto, se a Constituição estabeleceu normas jurídicas e princípios

dotados de superioridade hierárquica e de centralidade no sistema, dentre os quais

destacamos a divisão de poderes, como bem alerta Ana Paula de Barcellos, ―em um

Estado democrático, não se pode pretender que a Constituição invada o espaço da

política em uma versão de substancialismo radical e elitista, em que as decisões

políticas são transferidas, do povo e de seus representantes, para os reis filósofos

da atualidade: os juristas e operadores do direito em geral168‖.

A recente posição do Supremo Tribunal Federal, de usurpar o juiz natural

de cidadãos não titulares de prerrogativas de foro, especificamente na Ação Penal

470, em contrariedade à jurisprudência reinante e em explícita ofensa a tantos

direitos fundamentais, como o direito à igualdade, tem todo o aspecto de um

julgamento político e parcial:

―Daí a necessidade duma Constituição desenvolvida e complexa: pois quando o

poder é mero atributo do Rei e os indivíduos não são cidadãos, mas sim súditos, não há grande necessidade de estabelecer em pormenor regras do poder; mas, quando o poder é decomposto em várias funções apelidadas de poderes do Estado, então é mister estabelecer certas regras para dizer quais são os órgãos a que competem essas funções, quais são as relações entre esses órgãos, qual

o regime dos titulares dos órgãos etc169‖.

In casu, nossa Constituição delimitou muito bem os poderes do Judiciário

e sua organização interna, bem como relacionou taxativamente as competências

originárias do Supremo Tribunal Federal, segundo explica Uadi Lammêgo Bulos:

“As competências do Supremo Tribunal Federal foram enunciadas taxativamente

no Texto de 1988, motivo pelo qual nem o Poder Legislativo, mediante edição de leis ou atos normativos, nem o Poder Executivo, por meio de medidas provisórias, poderão ampliá-las ou restringi-las. (...) Todas essas considerações alicerçam-se no princípio da taxatividade constitucional das competências do Supremo Tribunal Federal. (...)

168

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, n. 240, abril/jun 2005, pp. 83-103. 169

MIRANDA, JORGE. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 1983, v. 2, p. 17.

106

É o caso da Constituição Federal de 1988. À luz de sua sistemática, o Congresso Nacional encontra-se impossibilitado de estender ou diminuir o rol de atribuições taxativas do Supremo Tribunal Federal (art. 102) ou do Superior Tribunal de Justiça (art. 105). Ambos só podem processar e julgar os temas delimitados constitucionalmente, porque o juízo natural a que se vinculam inadmite alargamento ou diminuição de competências170‖

Porém, o que o cidadão pode fazer quando é a Suprema Corte que viola

a Constituição, abusa de seu poder e usurpa competências? A impressão que fica é

que os réus da Ação Penal 470 foram tratados muito mais como súditos do que

como cidadãos por alguns dos julgadores constitucionais, e a impossibilidade de se

recorrer a um tribunal superior, com julgamento em instância única, pode resultar

numa das maiores injustiças cometidas pelo Supremo Tribunal Federal, conforme

constataremos mais adiante.

3.2. Controle de Constitucionalidade

Como bem lembra Celso Ribeiro Bastos, praticamente todos os indivíduos

acabam interpretando o Texto Supremo, mas é certo que a interpretação mais

relevante é aquela efetuada pelo Poder Judiciário, seja na adequação, a cada caso

concreto, da norma abstrata, seja na verificação em abstrato da constitucionalidade

de determinada regra:

―O Poder Judiciário deve ser provocado, não lhe cabendo a iniciativa processual. Por outro lado, uma vez proposta a ação, o julgador tem de necessariamente oferecer a resolução do problema apresentado, para o que ele desfruta, sem dúvida de um amplo instrumental jurídico, a começar pela própria Constituição, bem como pelas leis, excluídas estas só nos casos de serem ofensivas à primeira. A esta atividade de analisar a própria lei, a partir da ótica constitucional, dá-se o nome de controle de constitucionalidade171‖.

A interpretação das normas infraconstitucionais e sua adequação à

Constituição Federal é também conhecida, destarte, como “controle de

constitucionalidade”, que pode ser exercido tanto em sua forma preventiva (pelo

170

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1293. 171

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 65 e 70.

107

Poder Executivo e pelo Poder Legislativo), como também em sua forma repressiva

(pelo Poder Judiciário).

Em realidade, o processo constitucional de controle das normas vem

como um verdadeiro garantidor da própria supremacia da Constituição: o controle de

constitucionalidade nada mais é do que a verificação da adequação de uma norma

ou ato normativo perante a Constituição, através da análise de seus requisitos

formais e materiais. Através desse controle, é possível expurgar a norma

inconstitucional do ordenamento jurídico – ou sequer deixar que ela venha a surtir

efeitos, se o controle for preventivo.

O controle preventivo172 de constitucionalidade é exercido pelos Poderes

Legislativo e Executivo e visa impedir que uma norma incompatível com a

Constituição passe a ter vigência e eficácia no ordenamento jurídico, em momento

anterior à própria aprovação da norma inconstitucional. Já o controle repressivo, que

no Brasil é exercido basicamente pelo Poder Judiciário173, atua sobre normas já

editadas, com plena vigência e eficácia, retirando-as do ordenamento jurídico se as

julgar eivadas de vícios de inconstitucionalidade.

Sobre o controle repressivo de constitucionalidade, Barroso174 nos ensina

que se trata de um mecanismo de proteção da Constituição:

―Saindo do plano da teoria geral e das considerações metajurídicas, a supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando

172

Como exemplos de controle preventivo de constitucionalidade presentes na Constituição de 1988 podem-se citar: (i) as comissões de constituição e justiça (Poder Legislativo) e (ii) o veto jurídico (Poder Executivo). 173

Vale observar que há na Constituição de 1988 duas hipóteses de controle repressivo exercido pelo Poder Legislativo: (i) o artigo 49, inciso V, da Constituição Federal, possibilita ao Poder Legislativo sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; e (ii) o artigo 62 permite que o Poder Legislativo rejeite medida provisória editada pelo Presidente da República, com base em inconstitucionalidade apontada pela comissão temporária mista. 174

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

108

competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de "controle de constitucionalidade".

No ordenamento jurídico brasileiro atual, o controle repressivo de

constitucionalidade pode se dar através de um critério concentrado (determinando-

se a validade ou invalidade da lei em tese no ordenamento perante a Constituição)

ou através de um critério difuso (baseado em um caso concreto, muitas vezes

colocado diretamente sob a aplicação do texto constitucional):

―Em suma, à vista da Constituição vigente, temos a inconstitucionalidade por ação ou por omissão, e o controle de constitucionalidade é o jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo

Tribunal Federal175‖.

―(...) impõe-se a distinção entre o controle difuso da constitucionalidade das leis do controle concentrado, embora nosso sistema seja um misto dessas duas espécies. Naquele primeiro, como ficou observado, o juiz, dentro do processo, dispõe de liberdade para analisar a compatibilidade da norma a ser aplicada com os preceitos da Carta Magna. Já no controle concentrado da constitucionalidade das leis, exercido perante a Corte Suprema, o objeto da ação é a própria análise

da constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo176‖.

O Supremo Tribunal Federal, regra geral, é responsável por julgar em

última instância a constitucionalidade de atos ou leis infraconstitucionais, bem como

questões constitucionais em casos concretos; ou, nas palavras utilizadas pela

própria Constituição de 1988: ―Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,

precipuamente, a guarda da Constituição (...)‖.

É o que nos explicam os professores Vidal Serrano Nunes Júnior e Luiz

Alberto David Araujo:

175

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 51. 176

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p.71.

109

―A competência do Supremo Tribunal Federal é ditada pelo artigo 102 da Constituição da República. O principal objetivo do constituinte foi caracterizar o Supremo Tribunal Federal como órgão guardião da Constituição da República. Assim foi que lhe outorgou as competências necessárias para que ficasse investido da prerrogativa de dizer a última palavra em matéria constitucional. Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal é o destinatário da ação direta de inconstitucionalidade – meio de controle concentrado de constitucionalidade dos atos normativos -, bem como do recurso extraordinário, meio pelo qual foi transformado na última instância de jurisdição quando a questão constitucional é

suscitada pela via difusa177‖.

Desde 11 de outubro de 1890, quando instituído pelo Decreto 848, o

Supremo Tribunal Federal reside em nosso ordenamento jurídico como órgão

máximo no Poder Judiciário, como se pode observar também pela leitura do artigo

55 da Constituição de 1891:

―Art 55 - O Poder Judiciário, da União terá por órgãos um Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da República e tantos Juízes e Tribunais Federais,

distribuídos pelo País, quantos o Congresso criar178‖.

Porém, naquela Constituição do Império já havia previsão de competência

originária do Supremo Tribunal Federal para julgar infrações penais cometidas pelo

Presidente da República e pelos Ministros de Estado (artigo 59, I, “a” e “b”), o que

demonstra que a competência por prerrogativa de função se trata de um instituto

arcaico no direito brasileiro.

Em nosso entender, nos casos em que lhe é atribuída competência

originária para julgar infrações penais apenas em razão do cargo ocupado pelo

acusado no momento do julgamento, nos parece que sua função de “guarda da

Constituição” fica em segundo plano179.

177

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 295. 178

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm Acesso em 05/07/2013 179

―Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: (...) b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;

110

A competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar

infrações penais comuns, assim, além de se tratar de uma derrogação do princípio

do juiz natural e do duplo grau de jurisdição, trata-se de uma exceção do próprio

conceito e finalidade de sua existência como Corte Constitucional.

As razões alegadas para se extrair do juiz natural a competência para

julgar infrações penais comuns supostamente cometidas por certas autoridades

públicas e delegá-las ao Supremo Tribunal Federal não se justificam por qualquer

matéria de ordem constitucional, mas sim no fato de que o Supremo Tribunal

Federal, por ser a Corte mais alta de nosso país, seria composto apenas por

magistrados dotados de elevado conhecimento jurídico e notoriedade180, portanto

teoricamente imunes a eventuais pressões políticas e midiáticas.

Mister se faz para concluir o raciocínio do presente trabalho, destarte,

estudar de forma mais detalhada a função do intérprete, principalmente dos

ministros do Supremo Tribunal Federal, nos casos de competência originária para

julgamento de infrações penais.

3.3. O papel do intérprete da Constituição

Já abordamos no capítulo 2 do presente trabalho a importância do

intérprete manter-se atualizado sobre as diretrizes hermenêuticas disponíveis para

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; d) o "habeas-corpus", sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o "habeas-data" contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal;‖ http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 20/08/2013 180

O Supremo Tribunal Federal é composto por onze ministros nomeados pelo presidente após aprovação do Senado (onde são sabatinados), sendo que o critério para escolha é que tenham notável saber jurídico e reputação ilibada, bem como sejam cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos.

111

que possa escolher objetivamente, dentre as múltiplas normas e princípios

constitucionais, aqueles que se aplicarão ao caso concreto.

No entender de Limongi França, o intérprete precisa saber “aplicar as

regras que a hermenêutica perquire e ordena, para o bom entendimento dos textos

legais181”.

A interpretação de um texto normativo e principalmente sua aplicação a

um caso concreto não são atividades matemáticas e exatas, mas envolvem uma

tomada de decisão sobre o sentido a ser extraído do texto. Da mesma forma,

sabemos que o intérprete não é um autômato, mas um ser humano dotado de pré-

conceitos, experiências e bagagens culturais que podem influenciar sua tomada de

decisão182.

Por essa razão, as decisões judiciais devem ser fundamentadas em

postulados, instrumentais e diretrizes interpretativas, bem como orientadas pelos

princípios, e, principalmente, limitadas pelo texto literal da Constituição Federal, para

afastar o máximo possível que as contaminações subjetivas da pessoa do intérprete

se sobreponham ao cumprimento da norma.

Portanto, e de acordo com Celso Bastos, ―não se quer que o intérprete

coloque sua opinião, mas sim que ele seja capaz de oferecer o conteúdo da norma

jurídica de acordo com enunciados ou formas de raciocínio explícitos, previamente

181

FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 4. 182

―A interpretação no campo jurídico é, concluindo, indispensável e será tanto mais necessária quanto maior for o grau de abstratividade ou tanto mais esteja a norma voltada apenas a fins (como as normas constitucionais programáticas). E o intérprete nunca será absolutamente neutro. Aquele vazio a que se referiu acima é preenchido em grande parte com preconceitos, valores e visões pessoais do aplicador da lei. O Direito é essencialmente voluntarista, vale dizer, necessita da vontade do intérprete. Mas só esta não legitima o seu uso. Na verdade, o mundo jurídico só aceita a legitimação que lhe é própria e que envolve a utilização do discurso jurídico-normativo. O certo é que, em havendo o exercício da personalidade no ato interpretativo, não se pode desdenhar o alto grau de possibilidade de chegar a resultados diversos‖. (BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 33).

112

traçados e aceitos de maneira mais ou menos geral, advindos de determinada

ciência183‖.

Porém, até mesmo o Supremo Tribunal Federal, formado por membros

altamente qualificados e de notório saber jurídico, não consegue escapar das forças

ocultas que por vezes atuam nas disposições mentais do julgador quando este se

depara diante de um caso concreto carecedor de solução definitiva.

Os eminentes ministros, que não são autômatos, mas humanos, com

suas distintas visões de mundo e carga subjetiva, muitas vezes não conseguem

ignorar os efeitos que a decisão pode gerar na sociedade, e o processo

interpretativo acaba se contaminando por fatores externos ao processo e à

Constituição – o intérprete se vê influenciado pela repercussão que sua decisão

surtirá na opinião pública, na imprensa ou na economia do país, entre outros fatores

externos que nada condizem com sua atuação jurisdicional.

Nesse sentido, vale citar as lições de Oscar Vilhena Vieira ao lembrar a

teoria de Jerome Frank sobre as obscuras razões que podem levar a uma decisão

judicial:

―Jerome Frank, o mais radical dos primeiros realistas, enfrentou o formalismo reinante, alertando que ‗o processo de julgamento, assim nos dizem os psicólogos, dificilmente começa com a premissa da qual a conclusão é posteriormente retirada. O ato de julgar começa, ao invés, do outro lado – com uma conclusão mais ou menos vaga formada; o homem começa ordinariamente com essa conclusão e depois busca encontrar premissas que fundamentem

(...)184‘. A partir daí montam suas decisões oficiais, que são divididas em

premissa maior – regras e princípios – e premissa menor – fatos e conclusão. Esse silogismo, no entanto, é pura ilusão, utilizada para encobrir os verdadeiros e muitas vezes inconscientes mecanismos que levam a uma decisão (...) Frank cita pesquisas empíricas que demonstram a grande diferença com que juízes tratam casos iguais e conclui que ‗justiça é uma coisa muito pessoal, refletindo o temperamento, a personalidade, a educação, ambiente e características pessoais do magistrado‘. Para ele, apenas o juiz, ou um psicólogo em contato

183

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2ª Ed.São Paulo: Celso Bastos Editora, 1999, p. 22. 184

FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind. Glaucester, Peter Smith, 1970. p. 108.

113

muito próximo a ele, poderia descobrir as verdadeiras e muitas vezes ‗obscuras‘

razões que levam a uma decisão185‖.

O objetivo de Frank é alertar e permitir que os juízes se conscientizem do

processo pelo qual decidem os conflitos de interesses e que tenham um maior

controle sobre os motivos obscuros que orientam sua interpretação, para que façam

um esforço no sentido de ater-se aos princípios hermenêuticos e constitucionais e,

principalmente, ao texto da norma.

Depreende-se do exposto, contudo, que não são incomuns as decisões

maculadas por um processo interpretativo direcionado pela realidade política do

País, o que, quando resulta em violação a direitos fundamentais, acaba se tornando

altamente temerário.

Sobre o perigo do voluntarismo das decisões judiciais, já alertava

Montesquieu:

―Mas, se os tribunais não devem ser fixos, devem-nos os julgamentos. A tal ponto que não sejam estes jamais senão um texto preciso da lei. Fossem eles a opinião particular dos juízes, e viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos assumidos. Precisa, mesmo, sejam os juízes da condição do acusado, ou seus pares, para

que ele não vá supor caiu nas mãos de gente disposta a fazer-lhe violência186‖.

O que se tem visto já há algum tempo é que o Supremo Tribunal Federal,

investido de poderes decisórios extremamente dilatados, profere decisões muito

mais políticas do que jurisdicionais, desviando-se de todas as técnicas

hermenêuticas à sua disposição, como bem critica Paulo Bonavides:

―Observa-se, por outra parte, que a moderna interpretação facilita o comportamento autoritário dos poderes governantes que comodamente se divorciam, por essa via evasiva, da rigidez dos cânones constitucionais. Muitos têm visto na hermenêutica dos tribunais que se valem desses métodos, uma volta pura e simples a uma interpretação subjetivista, aquela preferida dos

185

VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 188. 186

MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do Espírito das Leis – in Coleção Os Pensadores - Montesquieu. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p.168.

114

sistemas autoritários ou das formas políticas que emergem de um espasmo revolucionário e fazem do novo direito a base constitutiva do ordenamento social reformado, com assento numa Constituição que lhe serve apenas de respaldo formal187‖.

Obviamente que essa tendência verificada em algumas decisões

proferidas pela Suprema Corte e por outros órgãos do Poder Judiciário deve ser

rigidamente combatida, posto que injustificável diante de tantos instrumentos

hermenêuticos, princípios e métodos de interpretação construídos pelo Direito

Constitucional, alguns deles demonstrados no presente trabalho.

Cabe ao intérprete evitar arbitrariedades e limitações decorrentes de seus

hábitos mentais inconscientes, como diz Heidegger:

―O círculo (hermenêutico) não deve degradar-se à condição de círculo vicioso e, tampouco, deve ser considerado um inconveniente insuperável. Nele se oculta uma possibilidade positiva do conhecer mais originário, possibilidade que só se realiza de modo genuíno se a interpretação compreende que sua tarefa primeira, permanente e última consiste em não deixar que se imponham, nunca, previsões, preconceitos ou predisponibilidades por parte do acaso ou das opiniões comuns, mas em fazer com que exsurjam das próprias coisas, garantindo dessarte a cientificação do tema específico188‖.

A fim de se evitar interpretações discricionárias com objetivos além da

Constituição, Lenio Streck invoca a necessidade de que a interpretação siga uma

reconstrução integrativa do direito e da legislação:

―(...) o princípio da proporcionalidade é (apenas) um modo de explicar que cada interpretação – que nunca pode ser solipsista – deve ser razoável, isto é, deve obedecer a uma reconstrução integrativa do direito (e da legislação), para evitar interpretações discricionárias/arbitrárias sustentadas em uma espécie de ‗grau

187

BONAVIDES, Paulo. “A interpretação da Constituição” in MOREIRA, Eduardo Ribeiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti; GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro. Hermenêutica constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 732. 188

PUGLIESE, Márcio. “Hermenêutica Constitucional” in MOREIRA, Eduardo Ribeiro; BETTINI, Lucia Helena Polleti; GONÇALVES JUNIOR, Jerson Carneiro. Hermenêutica constitucional: homenagem aos 22 anos do grupo de estudos Maria Garcia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 535.

115

zero de sentido‘, que, sob o manto do caso concreto, venha a estabelecer

sentidos para aquém ou para além da Constituição (...)189‖.

Ao magistrado não cabe decidir livremente a partir de valores externos ao

Direito, mas deve sempre, no mínimo, se orientar pelos princípios190 que integram

esse mesmo direito, ou, nos dizeres de Eros Grau, “intérprete e autoridade judiciária

estão vinculados pelos princípios; não se interpreta a Constituição em tiras, aos

pedaços191‖.

No julgamento da Ação Penal 470, contudo, há fortes indícios de que

pressões externas da mídia e da opinião pública influenciaram de tal forma a nossa

Corte Suprema, que a levou a simplesmente usurpar a competência do juiz natural

de primeiro grau, chamando para si a responsabilidade pelo julgamento de cidadãos

a que não lhe competia, para satisfazer a sanha condenatória de parte de alguns

setores da sociedade.

Essa, aliás, é a conclusão a que nos conduz Ricardo Lewandowski, como

ministro revisor daquela ação penal, ao se manifestar sobre questão de ordem em

que um dos réus solicita o desmembramento da ação para que aqueles não

detentores de prerrogativa de função pudessem ser julgados pelo juiz natural:

―Constata-se, pois, que esta Suprema Corte, na grande maioria das vezes em que foi chamada a pronunciar-se sobre o tema, tem autorizado o desmembramento, sendo essa prática, hoje, repito, aplicada rotineiramente e de forma monocrática. Tais decisões, ademais, vêm sendo sistematicamente confirmadas pelo Plenário, nos raros agravos regimentais contra elas manejados.

189

STRECK, Lenio Luiz. O sentido hermenêutico-constitucional da ação penal nos crimes sexuais: os influxos da Lei dos Crimes Hediondos e da Lei Maria da Penha. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direitos fundamentais e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 11. 190

―Nesse sentido, os juízes não decidem casos difíceis de forma discricionária, pois, apesar de a lei (regra) muitas vezes não conter todos os elementos para a tomada de decisão, o Direito oferece outros critérios que também compelem o magistrado. Não há uma liberdade total, onde o magistrado decide a partir de valores externos ao Direito, que, na maioria das vezes, são os seus próprios, mas uma esfera carregada de princípios (que pertencem ao sistema jurídico) que limitam e impõem determinado sentido às decisões judiciais. É dentro dessa esfera que se deve decidir‖. (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 200). 191

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 189.

116

Ainda em 01/05/2012, deferi pedido do Procurador-Geral da República para remeter o Inquérito 3.430/DF, que investigava o ex-Senador Demóstenes Torres, o qual teve o mandato cassado, para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Não posso deixar de registrar, nesse passo, que é objeto da maior perplexidade, por parte daqueles que acompanham os trabalhos desta Suprema Corte, o fato de que, nalgumas situações em tudo semelhantes à presente, tenha ela deferido o desmembramento dos feitos, contrariamente ao que ocorreu no presente processo. Um dos casos mais emblemáticos nesse sentido ocorreu no citado Inq 2.280/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa, instaurado para apurar o que a imprensa cunhou de ‗mensalão tucano‘, nos quais os envolvidos foram acusados de atuar com um modus operandi muito parecido com aquele descrito na inicial da presente ação, na qual estão envolvidos apenas três réus com foro especial. Naquele feito deferiu-se o pedido de desmembramento‖. (grifos nossos)

Como se vê, o próprio Procurador-Geral da República solicitou que um

ex-senador pertencente a um partido da atual oposição ao governo fosse julgado

pelo juiz de primeiro grau, o que foi deferido, assim como foi deferido pela Suprema

Corte o desmembramento do inquérito que apura o chamado “mensalão tucano”,

cujos acusados também são vinculados a um partido de oposição ao atual governo.

Esse último processo, aliás, em tudo se assemelha ao teor da Ação Penal nº

470/MG.

No julgamento da acima referida questão de ordem, o ministro Marco

Aurélio acompanhou o ministro revisor em seu voto pelo desmembramento da ação

e, pela leitura de seu voto, percebe-se sua preocupação com as injustificadas

variações das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre matéria idêntica, como

se verifica no trecho a seguir transcrito:

―Neste julgamento, gravado por muitos com características emblemáticas ou históricas, a destoar da minha óptica no sentido de não lhe conferir o relevo maior do empregado às demais ações penais em curso no Supremo, novamente é suscitado o texto constitucional, buscando não emprestar maior envergadura a preceitos da legislação ordinária, inaplicáveis, repito, à competência estrita do Tribunal prevista na Carta. Cumpre salientar, mais, que é inerente à cidadania o princípio do juiz natural. Os acusados não detentores de tal prerrogativa têm o direito ao devido processo legal e este há de fazer-se presente com a atuação da primeira instância e a recorribilidade cabível. O cidadão tem o direito de saber quem o acusará em nome do Estado e quem, também em nome deste, o julgará, premissa conducente à existência das duas figuras, a do promotor natural e a do juiz

117

natural, definidas, sob o ângulo da individualização, pelo arcabouço normativo. Não me impressiona a argumentação concernente à possibilidade de decisões conflitantes em relação a corréus, pois estas são próprias ao sistema e podem ser corrigidas, podem ser afastadas, mediante o manejo do sistema recursal previsto no ordenamento jurídico. As decisões do Colegiado vêm variando e isso tem provocado insegurança jurídica. Em alguns casos, implementa o desmembramento e, em outros, procede de forma diametralmente oposta. Sendo a matéria processual-constitucional, tudo recomenda a estabilidade dos pronunciamentos. Sobrepõe-se não só a definição da competência do Supremo, em face da prerrogativa de foro, como também o que articulado quanto ao princípio do juiz natural. O cidadão comum não pode ter alcançado, automaticamente, o direito de ver-se julgado pelo órgão competente – mais uma garantia constitucional, direito fundamental por excelência – ante o simples fato de ser coautor de certo crime, considerado aquele que detém a prerrogativa de foro. Ultimamente, o Colegiado tem-se inclinado mais a reconhecer o direito ao desmembramento. Por tais razões – salientando a necessidade de este Tribunal mostrar-se rigoroso com a preservação de princípios, porquanto, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele, principalmente quando em jogo o juiz natural, ou seja, aquele adrede constituído para julgamento da ação –, acolho a questão de ordem suscitada para determinar o desmembramento da Ação Penal nº 470/MG em relação aos réus não detentores da prerrogativa de foro, observando-se o aproveitamento dos atos processuais até aqui realizados. Vale dizer, o processo irá à primeira instância aparelhado para apreciação.‖.

Como já dito, os ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio foram

votos vencidos e todos os quarenta réus foram julgados pelo Supremo Tribunal

Federal, embora na época apenas dois deles gozassem de prerrogativa de foro e

portanto sujeitos à competência originária excepcional daquela corte.

Fica muito difícil concluir que não tenha havido qualquer influência política

na negativa de desmembramento da Ação Penal nº 470/MG, para que trinta e oito

dos quarenta réus pudessem ser julgados pelo juiz natural de primeiro grau,

podendo gozar plenamente do direito ao devido processo legal, ampla defesa e

duplo grau de jurisdição. O texto constitucional lhes garantia expressamente esse

direito, mas o intérprete e suposto guardião da Constituição preferiu se socorrer de

mecanismos infraconstitucionais para justificar mantê-los todos sob seu julgamento.

E essa usurpação direcionada de competência, quando se verifica o

resultado final do julgamento da Ação Penal 470, com praticamente todos os réus

condenados e sem possibilidade de recurso, demonstra qual era a intenção desde o

início do julgador constitucional.

118

Alexandre de Moraes, em parecer encomendado pelo corréu José

Roberto Salgado, acostado à questão de ordem em comento, ainda durante o

julgamento da Ação Penal 470, conseguiu demonstrar que a negativa de

desmembramento poderia estar anunciando o que viria a ser um verdadeiro tribunal

de exceção:

―A necessidade de análise, pelo PLENÁRIO DA CORTE, da inconstitucionalidade de ampliação das competências constitucionais da CORTE SUPREMA por norma legal (conexão e continência) se torna imprescindível quando vários pronunciamentos posteriores da CORTE demonstram que 8 (oito) dos atuais Ministros (MINISTROS CELSO DE MELLO, MARCO AURÉLIO, GILMAR MENDES, CEZAR PELUSO, CARLOS BRITTO, JOAQUIM BARBOSA, RICARDO LEWANDOWISKI e CARMEM LÚCIA) já se manifestaram, EM DECISÕES POSTERIORES A QUESTÃO DE ORDEM DO INQUÉRITO 2245-QO/MG, pelo desmembramento de inquérito, em casos semelhantes, em face da taxatividade constitucional das competências originárias do STF e os 2 (dois) outros Ministros (MINISTROS DIAS TOFFOLI e LUIZ FUX), ainda não tiveram possibilidade de se manifestar sobre o assunto, conforme verificamos abaixo. (...) 71. A presente hipótese, portanto, apresenta-se substancialmente análoga aos vários pronunciamentos do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, em especial de 8 de seus atuais MINISTROS, e, – como ressaltado por EDWARD H. LEVI, devem levar A CORTE ao apreciar comparativamente os argumentos principais dos casos concretos, bem como seus motivos, afastando eventuais distinções consideradas razoáveis e idôneas para a conservação de ambos (The Nature of Judicial Reasoning, In: The University of Chicago Law Review, v. 32, n. 3, spring 1965, p. 400); e, escolhendo os fatos determinantes e convertendo-os em hipótese abstrata e geral (FREDERICK F. SCHAEUR, Playing by the rules: a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life, Oxford- New York, Clarendon, p. 183; A. SIMPSON, The ratio decidendi of a case and the doctrine of binding precedent, p. 156-159), para, então, concluir pela plena inconstitucionalidade de ampliação das competências constitucionais originárias (foro privilegiado) do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL por norma legal (conexão e continência); bem como, por fiel observância ao Princípio da Razoabilidade‖.

Não houve, assim, uma mudança objetiva baseada em construção

jurídico-constitucional no sentido de se estender a competência originária do

Supremo Tribunal Federal para o julgamento de todos os corréus em ações em que

apenas alguns deles gozassem de prerrogativa de foro. Essa posição se deu

especialmente para o julgamento da Ação Penal 470, pois, posteriormente e ainda

119

durante seu julgamento, outros casos análogos foram remetidos aos seus juízos

naturais.

Verifica-se, assim, um gritante direcionamento político do Supremo

Tribunal Federal, denunciado por seus próprios membros, uma vez que a decisão

sobre a Questão de Ordem suscitada na Ação Penal 470 fundamentou-se tão-

somente naquelas temidas razões obscuras anunciadas por Jerome Frank, fugindo

completamente dos princípios constitucionais, vetores hermenêuticos e,

principalmente, do texto literal da Constituição Federal, tão claro no que diz respeito

à competência originária taxativa do Supremo Tribunal Federal.

Quando o intérprete da Constituição não age com responsabilidade e não

respeita as diretrizes hermenêuticas, as consequências podem ser catastróficas

para os direitos fundamentais dos cidadãos que ficam subjugados ao arbítrio e à

força imponente de seu julgador, que passa a assumir, ao mesmo tempo, também a

posição de algoz.

Nos próximos capítulos adentraremos de forma mais aprofundada na

interpretação da competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar

infrações penais e suas consequências.

120

CAPÍTULO 4 – INCONSTITUCIONALIDADE DO ALARGAMENTO DA

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA

PROCESSAR E JULGAR INFRAÇÕES PENAIS

Na introdução e no decorrer dos capítulos anteriores, já tratamos um

pouco do instituto da competência originária, por prerrogativa de função, do

Supremo Tribunal Federal, para julgar infrações penais, sempre fazendo um paralelo

aos princípios constitucionais e hermenêuticos disponíveis ao aplicador do direito na

interpretação do texto constitucional.

Cabe-nos agora utilizar-nos de todos os institutos até aqui estudados,

para alcançarmos o objetivo que desde o começo vinha sendo traçado: demonstrar

a inconstitucionalidade do alargamento dessa competência originária e excepcional

do Supremo Tribunal Federal para julgamento de infrações penais, posto que o

artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal, aceita apenas uma

interpretação estrita.

Uma vez conhecedores dos instrumentos hermenêuticos necessários à

interpretação constitucional, passaremos então à aplicação da norma ao caso

concreto.

4.1. Legislação e Jurisprudência Precedente Aplicável

Em primeiro lugar, vale destacar que a competência originária por

prerrogativa de função, ou por prerrogativa de foro, ou ratione personae, está

excepcionalmente e taxativamente prevista no texto da Constituição de 1988.

Dentre as possibilidades de processamento e julgamento de ações

diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, sem que haja uma instância inferior,

existem alguns casos que a Constituição Federal designou à Suprema Corte pela

qualidade das pessoas que estão sendo julgadas, conforme se verifica na redação

do artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal:

121

―Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: (...) b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter

permanente; 192;(...)‖.

São os dispositivos constitucionais acima transcritos que tratam

taxativamente e excepcionalmente da competência por prerrogativa de função, que

se justificaria, nas palavras de Vicente Greco, da seguinte forma:

―Certas autoridades são julgadas diretamente pelos tribunais superiores e de segundo grau, suprimindo o primeiro grau. Essa supressão justifica-se em virtude da proteção especial que devem merecer certas funções públicas, cuja hierarquia corresponde, também, à hierarquia dos tribunais, daí a competência originária193‖.

O Ministro Revisor da Ação Penal 470, Ricardo Lewandowski, ao revisitar

a Questão de Ordem no Inq 2.245/MG, utilizando-se da mesma citação acima

transcrita, ponderou, in verbis:

―Isso é assim porque o julgamento desses agentes públicos por juízos singulares ou por órgãos colegiados de instâncias inferiores, mais vulneráveis, teoricamente, a pressões populares, políticas ou midiáticas poderia resultar em decisões que, no limite, teriam o condão de comprometer a própria ordem democrática. (...) Seja como for, trata-se de uma competência excepcional e, como tal, só pode ser admitida em situações igualmente excepcionais. Nessas hipóteses aplica-se o vetusto brocardo jurídico de acordo com o qual ―excepciones sunt strictissimae interpretationis‖, ou seja, ―as exceções interpretam-se de modo estrito‖. Em outras palavras, a competência por prerrogativa de função só pode ser reconhecida nos casos taxativamente enumerados na Constituição, cujo rol não permite exegese ampliativa‖. (grifos nossos)

192

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 20/08/2013 193

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 1º vol. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 46.

122

Do pouco que até aqui foi exposto, já se faz muito claro que a

Constituição Federal é explícita e taxativa quanto às pessoas que serão julgadas

originariamente pelo Supremo Tribunal Federal quando forem acusadas de infrações

penais comuns ou crimes de responsabilidade, não sendo permitido que cidadãos

não detentores dos mandatos ou cargos ali discriminados sejam submetidos à

mesma regra.

Nesse sentido, a Súmula 451 do Supremo Tribunal Federal: ―A

competência especial por prerrogativa de função não se estende ao crime cometido

após a cessação definitiva do exercício funcional‖.

Antes de publicar a supracitada Súmula 451, a Egrégia Suprema Corte

havia publicado a Súmula nº 394, nos idos de 1964, anteriormente à Constituição de

1988, com o seguinte conteúdo: “Cometido o crime durante o exercício funcional,

prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito

ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Esta Súmula

394, porém, ao contrário da súmula 451, foi CANCELADA, pois o Egrégio Supremo

Tribunal Federal entendeu que a tese nela consubstanciada não se refletiu na

Constituição de 1988.

É o que se extrai da ementa abaixo transcrita:

―EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. PROCESSO CRIMINAL CONTRA EX-DEPUTADO FEDERAL. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. INEXISTÊNCIA DE FORO PRIVILEGIADO. COMPETÊNCIA DE JUÍZO DE 1º GRAU. NÃO MAIS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CANCELAMENTO DA SÚMULA 394. 1. Interpretando ampliativamente normas da Constituição Federal de 1946 e das Leis nºs 1.079/50 e 3.528/59, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência, consolidada na Súmula 394, segunda a qual, "cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício". 2. A tese consubstanciada nessa Súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, "b", estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar "os membros do Congresso Nacional", nos crimes comuns. Continua a norma constitucional não contemplando os ex-membros do Congresso Nacional, assim como não contempla o ex-

123

Presidente, o ex-Vice-Presidente, o ex-Procurador-Geral da República, nem os ex-Ministros de Estado (art. 102, I, "b" e "c"). Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato. Dir-se-á que a tese da Súmula 394 permanece válida, pois, com ela, ao menos de forma indireta, também se protege o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito foi praticado e o acusado não mais o exerce. Não se pode negar a relevância dessa argumentação, que, por tantos anos, foi aceita pelo Tribunal. Mas também não se pode, por outro lado, deixar de admitir que a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Aliás, a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontram no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional Comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos. 3. Questão de Ordem suscitada pelo Relator, propondo cancelamento da Súmula 394 e o reconhecimento, no caso, da competência do Juízo de 1º grau para o processo e julgamento de ação penal contra ex-Deputado Federal. Acolhimento de ambas as propostas, por decisão unânime do Plenário. 4. Ressalva, também unânime, de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394, enquanto vigorou‖. (Inq 687 QO, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 25/08/1999, DJ 09-11-2001 PP-00044 EMENT VOL-02051-02 PP-00217 RTJ VOL-00179-03 PP-00912) (grifos nossos)

Assim sendo, se a Constituição Federal não permite a ampliação da

competência original do Supremo Tribunal Federal para o processo e julgamento de

ex-detentor de prerrogativa de foro, fica mais óbvia ainda a inconstitucionalidade da

ampliação dessa competência para os cidadãos comuns que nunca exerceram

quaisquer das funções descritas no artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição Federal.

4.2. Excepcionalidade na Negativa de desmembramento da Ação Penal nº

470/MG

Impossível não notar, no caso peculiar da Ação Penal 470, como a

Constituição Federal e toda a construção jurisprudencial que vem evoluindo desde a

sua promulgação foram ignoradas em favor de uma legislação infraconstitucional,

mais especificamente os incisos I e III do artigo 76, o inciso I do artigo 77 e o artigo

80 do Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41):

124

―Art. 76. A competência será determinada pela conexão: I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras; (...) III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração‖. ―Art. 77. A competência será determinada pela continência quando: I - duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração; (...)‖ ―Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação‖.

Em dezembro de 2006, os ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal,

ao deliberar sobre a questão de ordem suscitada para o desmembramento do

Inquérito 2.245-4 MG, do qual decorreu a Ação Penal 470, tendo em vista que a

maioria dos investigados não gozava de foro privilegiado (40 denunciados, apenas 6

com prerrogativa de foro à época), se limitaram a analisar apenas as

infraconstitucionais normas de processo penal acima transcritas e sua aplicação ao

caso concreto:

―EMENTA: QUESTÃO DE ORDEM. INQUÉRITO. DESMEMBRAMENTO. ARTIGO 80 DO CPP. CRITÉRIO SUBJETIVO AFASTADO. CRITÉRIO OBJETIVO. INADEQUAÇÃO AO CASO CONCRETO. MANUTENÇÃO INTEGRAL DO INQUÉRITO SOB JULGAMENTO DA CORTE. Rejeitada a proposta de adoção do critério subjetivo para o desmembramento do inquérito, nos termos do artigo 80 do CPP, resta o critério objetivo, que, por sua vez, é desprovido de utilidade no caso concreto, em face da complexidade do feito. Inquérito não desmembrado. Questão de ordem resolvida no sentido da permanência, sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, de todas as pessoas denunciadas. (Inq 2245 QO-QO, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 06/12/2006, DJe-139 DIVULG 08-11-2007 PUBLIC 09-11-2007 DJ 09-11-2007 PP-00043 EMENT VOL-02298-02 PP-01287 RTJ VOL-00203-01 PP-00034)‖.

Em se tratando de uma Corte Constitucional, porém, era de se esperar

que fosse debatida e analisada a impossibilidade de alargamento da competência

originária do Supremo Tribunal Federal não apenas por razões de conveniência e

oportunidade, mas, sobretudo, pela falta de preceito constitucional expresso e para

125

não alargar, em consequência, a subtração do direito constitucional ao duplo grau de

jurisdição.

O interessante é que mais ou menos na mesma época do julgamento da

questão de ordem acima relatada, em que por razões práticas usurpou-se o direito

ao duplo grau de jurisdição de mais de três dezenas de cidadãos em detrimento de

seis detentores de foro privilegiado (que quando da propositura da Ação Penal 470

já estavam reduzidos a dois), foi publicado o acórdão do julgamento conjunto das

Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.797-2/DF e 2.860-0/DF, que haviam sido

propostas contra os §§1º e 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal, incluídos

pela Lei nº 10.628/2002.

A ementa desse acórdão demonstra que, in casu, ao contrário do ocorrido

no inquérito que originou a Ação Penal 470, a prerrogativa de foro foi analisada sob

o âmbito estritamente constitucional. Atente-se aos nossos grifos:

―EMENTA: I. ADIn: legitimidade ativa: "entidade de classe de âmbito nacional" (art. 103, IX, CF): Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP 1. Ao julgar, a ADIn 3153-AgR, 12.08.04, Pertence, Inf STF 356, o plenário do Supremo Tribunal abandonou o entendimento que excluía as entidades de classe de segundo grau - as chamadas "associações de associações" - do rol dos legitimados à ação direta. 2. De qualquer sorte, no novo estatuto da CONAMP - agora Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - a qualidade de "associados efetivos" ficou adstrita às pessoas físicas integrantes da categoria, - o que basta a satisfazer a jurisprudência restritiva-, ainda que o estatuto reserve às associações afiliadas papel relevante na gestão da entidade nacional. II. ADIn: pertinência temática. Presença da relação de pertinência temática entre a finalidade institucional das duas entidades requerentes e os dispositivos legais impugnados: as normas legais questionadas se refletem na distribuição vertical de competência funcional entre os órgãos do Poder Judiciário - e, em consequência, entre os do Ministério Público . III. Foro especial por prerrogativa de função: extensão, no tempo, ao momento posterior à cessação da investidura na função dele determinante. Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal). Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada. 1. O novo § 1º do art. 84 CPrPen constitui evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394 por decisão tomada pelo Supremo Tribunal no Inq 687-QO, 25.8.97, rel. o em. Ministro Sydney Sanches (RTJ 179/912), cujos fundamentos a lei nova contraria inequivocamente. 2. Tanto a Súmula 394, como a decisão do Supremo Tribunal, que a cancelou, derivaram de interpretação direta e

126

exclusiva da Constituição Federal. 3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior. 4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal - guarda da Constituição -, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição - como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames. 5. Inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 C.Pr.Penal, acrescido pela lei questionada e, por arrastamento, da regra final do § 2º do mesmo artigo, que manda estender a regra à ação de improbidade administrativa. IV. Ação de improbidade administrativa: extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2º do art. 84 do C Pr Penal introduzido pela L. 10.628/2002): declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação. 2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal -salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X e 96, III -, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária. V. Ação de improbidade administrativa e competência constitucional para o julgamento dos crimes de responsabilidade. 1. O eventual acolhimento da tese de que a competência constitucional para julgar os crimes de responsabilidade haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação de improbidade, agitada na Rcl 2138, ora pendente de julgamento no Supremo Tribunal, não prejudica nem é prejudicada pela inconstitucionalidade do novo § 2º do art. 84 do C.Pr.Penal. 2. A competência originária dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é

127

bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo - cujo impeachment é da competência dos órgãos políticos - a cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer por integração analógica, os membros do Congresso Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes de responsabilidade. 3. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o termo da investidura do dignitário acusado. (ADI 2797, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-02 PP-00250)

Extrai-se do acima transcrito que o entendimento da jurisprudência

constitucional do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a competência

originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos

juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição,

só a própria Constituição a pode excetuar e, portanto, não pode a lei ordinária

pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação ampliativa da letra da

Constituição.

A despeito da clareza da excepcionalidade com que se negou o

desmembramento da Ação Penal 470 e, com isso, negou-se também à maioria

maciça dos réus o direito de serem processados em primeira e segunda instância

com todos os recursos possíveis, alguns poderiam invocar como fundamento a

Súmula nº 704 do Supremo Tribunal Federal, que contém a seguinte redação: “não

viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a

atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa

de função de um dos denunciados”.

Ocorre que a Súmula nº 704 foi editada com base em quatro julgamentos

precedentes: RE 170125, DJ 9/6/1995; HC 68846 DJ 16/6/1995, RTJ 157/563; HC

75841, DJ 6/2/1998; HC 74573 DJ 30/4/1998, todos eles relacionados à

competência do Tribunal de Justiça para julgar ação penal em que figure juiz de

direito como um dos acusados. Ou seja, referida súmula não trata dos casos de

competência originária do Supremo Tribunal Federal.

128

Embora, em nosso entender, a atração por continência ou conexão do

corréu à competência originária do Tribunal de Justiça viole sim o direito à ampla

defesa daquele que não detém prerrogativa de função, há que se convir que ainda

assim o cidadão poderá recorrer a outra instância, à corte federal. A primeira

instância lhe foi negada, mas a segunda e terceira permanecem ao seu alcance.

Nos casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal, os

julgamentos se dão em uma única instância, inexistindo uma instância superior de

recurso. Ou seja, eventuais recursos cabíveis serão julgados pela mesma corte que

já condenou o cidadão não detentor de prerrogativa de foro.

Se o Supremo Tribunal Federal entende que a supressão extraordinária

dos postulados da igualdade, do juiz natural e do duplo grau de jurisdição não se

aplica nem mesmo àqueles que já ocuparam e não mais ocupam os cargos públicos

listados no artigo 102 da Constituição Federal, não há sentido algum em se aceitar

tal restrição àqueles que nunca exerceram tais funções, simplesmente para atender

fins práticos de continência ou conexão. A economia processual não pode ser

justificativa para se restringir direitos constitucionais, garantias e princípios

fundamentais.

4.3. Julgamento de Exceção

Em sintética análise da legislação e jurisprudência aplicáveis à

competência originária do Supremo Tribunal Federal, defendemos até aqui que a

Constituição Federal é explícita e taxativa quanto àqueles que em tese devem ser

julgados diretamente pela última instância, principalmente porque disso resulta a

supressão de direitos e garantias fundamentais, como o juiz natural, ampla defesa e

duplo grau de jurisdição, estes em hipótese alguma suplantáveis por razões de

conveniência ou praticidade processual.

O Supremo Tribunal Federal assim vinha decidindo de forma majoritária

desde o cancelamento da Súmula 394, poucos anos após a promulgação da

129

Constituição de 1988. No entanto, ao julgar o caso do que a imprensa conservadora

apelidou de “Mensalão”, houve um corte nesse entendimento e, por razão de

conveniência e oportunidade, trinta e quatro réus tiveram suprimidos seus direitos à

primeira e segunda instância, quando apenas três gozavam da prerrogativa de foro

no julgamento da Ação Penal 470194.

A impressão de que o julgamento da Ação Penal 470 não alterará a

jurisprudência consolidada, tendo se tratado de um caso excepcional, fica mais forte

à medida que localizamos recente decisão monocrática, publicada em 08/03/2013,

portanto posteriormente ao julgamento da Ação Penal 470, em que foi determinado

o desmembramento da ação penal para que quinze réus fossem julgados pelo juiz

natural, mantendo-se apenas o réu detentor do mandato de deputado federal sob o

julgamento originário do Supremo Tribunal Federal. Segue trecho da ementa:

COMPETÊNCIA – PRERROGATIVA DE FORO – PROCESSO – DESMEMBRAMENTO. AÇÃO PENAL – DILIGÊNCIAS – COMPLEMENTAÇÃO. 1. O Gabinete prestou as seguintes informações: (...) 2. A competência do Supremo é de direito estrito. As balizas que a revelam estão na Constituição Federal. Normas instrumentais comuns, como são as relativas à conexão probatória e à continência, não a elastecem. No mais, cumpre concluir as diligências requeridas pelo Ministério Público Federal. 3. Providenciem: 3.1. O desmembramento do processo, formando-se autos para remessa ao Juízo da 2ª Vara Federal Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e Crimes de Lavagem de Valores da Seção Judiciária de São Paulo, visando a sequência da ação penal no tocante àqueles que não detêm a prerrogativa de serem julgados pelo Supremo. Neste, deve permanecer a ação quanto ao Deputado Federal; 3.2. A complementação das diligências, tal como preconizado pelo Ministério Público Federal. 4. Publiquem. Brasília, residência, 02 de março de 2013, às 13h. Ministro MARCO AURÉLIO Relator (AP 600/SP, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 02/03/2013, publicado em DJe-08/03/2013) (grifos nossos)

194

A Ação Penal 470 começou com 40 réus, mas, ao final, na ocasião do julgamento, restaram 37, dos quais apenas 3 titulares de prerrogativas de função.

130

Interessante notar que a justificativa para a própria existência da

competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar alguns agentes

públicos é justamente a de evitar pressões políticas externas que comprometam a

imparcialidade do julgamento, seja para absolver, seja para condenar, considerando-

se que a formação profissional e experiência dos integrantes da Corte Suprema lhes

daria idoneidade suficiente para resistir inclusive à opinião pública, permitindo

atenção aos autos, às provas e, estritamente, à Constituição.

Ao negar o desmembramento da Ação Penal 470, contrariando a

jurisprudência dominante até então, a Corte adotou um comportamento no mínimo

antagônico com a própria razão de ser de sua competência originária.

A tese da existência de um tribunal de exceção para julgar os réus da

Ação Penal 470, alguns deles ligados ao Partido dos Trabalhadores, não fica mais

forte apenas pela recente decisão democrática acima citada, mas também quando

verificamos que no Inq 2.280/MG, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa,

instaurado para apurar o “Mensalão Tucano”, o desmembramento do feito foi

deferido sem qualquer estardalhaço ou atenção dos setores conservadores da

imprensa que, desde sempre, detêm maior poder sobre os meios de comunicação

no país.

Ora, segundo o Ministro Marco Aurélio, em voto prolatado no julgamento

do Inquérito 2.462-7/RO, de Relatoria do Ministro Cesar Peluzo, a prerrogativa de

foro deve ser vista como uma exceção estritamente prevista na Constituição e que

não pode ser alargada por normas instrumentais comuns, sob pena de ferir de morte

garantias constitucionais. Segue um trecho do voto:

―Há mais, verifica-se o envolvimento de cidadãos que teriam, constitucionalmente, direito a certos juízos naturais. E a atração do processo para esta corte, sem norma constitucional que a preveja, acaba por ferir de morte – é o meu convencimento – o princípio do juiz natural, o princípio do devido processo legal, até porque ocorrerá o julgamento em penada única, aspecto negativo da própria prerrogativa de foro, quando normalmente existe a possibilidade de revisão de possível decreto condenatório. O Supremo também pode errar quer na arte de proceder, quer na de julgar e, decidindo, não há a quem recorrer‖. (Inq 2462, Relator Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno,

131

julgado em 05/06/2008, DJe-162 DIVULG 28-08-2008 PUBLIC 29-08-2008 EMENT VOL-02330-01 PP-00098) (grifos nossos)

Assim, supressão das garantias constitucionais dos réus da Ação Penal

470 em detrimento da preservação das garantias constitucionais dos acusados do

“Mensalão Tucano” nos faz refletir sobre mais uma garantia constitucional violada: o

princípio da igualdade, como já havíamos demonstrado no capítulo 1.7. do presente

trabalho. A igualdade aqui, está visivelmente ofendida em sua concepção mais

primitiva, aquela de Aristóteles, segundo quem se deve tratar igualmente os iguais e

desigualmente os desiquais, na medida de sua desigualdade. O Supremo Tribunal

Federal, aqui, utilizou-se de dois pesos e duas medidas.

O ministro revisor Ricardo Lewandowski, ao apreciar a questão de ordem

apresentada para o desmembramento da Ação Penal 470, alertou pela falta de

objetividade do Supremo Tribunal Federal com relação ao tema, in verbis:

―Como se percebe, pelos diversos precedentes antes mencionados, as raras decisões no sentido do não desmembramento dos feitos são, em geral, de natureza casuística, repousando, quase sempre, em argumentos de ordem pragmática, quando não baseados em uma ótica eminentemente subjetiva. Tal constatação impede que se delimite conceitualmente os casos em que o desmembramento deve ou não ocorrer, levando a um indesejável casuísmo ou reprovável voluntarismo decisório‖.

Depreende-se do exposto, e conforme já adiantamos no capítulo 3, que o

Supremo Tribunal Federal pode sofrer, por vezes, de um exagerado voluntarismo e

ativismo político com relação a determinados temas, numa verdadeira extrapolação

de seus poderes, sem sequer se preocupar em fundamentar suas decisões com

base na Constituição Federal.

Nesse sentido, vale refletir sobre os ensinamentos de Luís Roberto

Barroso:

―Portanto, a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma garantia para a democracia do que um risco. Impõe-se, todavia, uma observação final. A importância da Constituição — e do Judiciário como seu intérprete maior — não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. Observados os valores e fins

132

constitucionais, cabe à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo presidente, fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios — como ninguém deve, aliás, nessa vida — impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na Constituição. (...) Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser deferente para com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que exerce é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do possível. Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populistas e, em certos casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia195‖.

Os magistrados, portanto, não podem se furtar “aos cânones de

racionalidade, objetividade e motivação das decisões judiciais, devendo reverência à

dogmática jurídica, aos princípios de interpretação e aos precedentes”, sob pena de

produzir decisões injustas, parciais e desiguais, como de fato ocorreu na negativa de

desmemebramento da Ação Penal nº 470. O processo justo não dá margem ao

autoritarismo judicial.

4.4. Interpretação constitucional da competência originária por prerrogativa de

função do Supremo Tribunal Federal

O artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal possui um

texto de clara linguagem, sem dar qualquer vazão a eventuais interpretações dúbias,

já que simplesmente enumera os casos em que os julgamentos de infrações penais

195

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista

Consultor Jurídico, publicado em 22/12/2008, http://www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica, acesso em 20/07/2013.

133

comuns excepcionalmente se darão originariamente perante o Supremo Tribunal

Federal.

Mesmo assim, diante de eventual dúvida na aplicação do texto normativo

ao caso concreto, basta que o intérprete seja conhecedor minimamente dos

seguintes princípios básicos: juiz natural, devido processo legal e duplo grau de

jurisdição. Aliado a isso tudo, não deve perder de vista os princípios constitucionais

instrumentais que servem à hermenêutica jurídica, principalmente o Princípio da

Supremacia da Constituição:

―Ora, firmada a premissa de que definidora da competência do Supremo Tribunal Federal é a Constituição Federal, tem-se que lei ordinária que venha alterá-la, para elastecer ou diminuir o âmbito de atuação, surge manifestamente inconstitucional196‖.

Para introduzir esse raciocínio, valemo-nos do auxílio de Eugênio Pacelli

de Oliveira:

―Em outra via, atendendo a outro critério que não o da especialização e, por isso, não mais em relação à matéria, mas já ao próprio agente do crime, é prevista a jurisdição colegiada, ou competência originária dos Tribunais, estabelecidas em razão das relevantes funções públicas exercidas pelo autor – ou acusado da infração penal, ou seja, foros privativos ratione personae. Em todas estas situações impõe-se o relevante princípio do juiz natural, a ser entendido como o órgão da jurisdição cuja competência, estabelecida anteriormente ao cometimento do fato, derive de fontes constitucionais, legitimando a partir da vedação, imposta ao legislador infraconstitucional da instituição do juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, CF). Legitimado ainda pela exigência de julgamento da causa pelo juiz ou tribunal ali indicados (órgão ou juiz especializado em razão da matéria e órgão ou tribunal colegiado em razão da função do imputado). Em uma e outra hipótese, estaremos diante de competências absolutas, cuja determinação independe da vontade das partes processuais, acusação e defesa, diante da rigidez e da estatura da fonte normativa de uma e de outra espécie, qual seja, a Constituição da República197‖.

Assim sendo, a competência originária do Supremo Tribunal Federal

prevista no artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal, trata-se de

196

Questão de Ordem proposta no Inquérito 2.010-9/SP, Relatoria do Ministro Marco Aurélio. STF.

Julgamento em 23/05/2007, publicação em 06/06/2008. 197

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 196.

134

uma derrogação extraordinária da competência ordinária dos juízos de primeiro

grau, ou do juiz natural, prerrogativa de ordem estritamente funcional daqueles que

se encontrem no desempenho de determinados cargos ou funções públicos. Tão

logo afastada da função, a pessoa recupera o direito ao gozo de seu juiz natural, o

que significa um julgamento em primeiro grau com todos os recursos a ele inerentes.

A competência por prerrogativa de função, destarte, por ser especial, só

se aplica aos casos expressamente previstos nas alíneas “b” e “c” do inciso I do

artigo 102 da Carta Magna, já que as exceções somente se interpretam de modo

estrito, principalmente quando se trata de julgamento por foro especial, que restringe

o direito ao devido processo legal e ao duplo grau de jurisdição do jurisdicionado,

conforme leciona Carlos Maximiliano:

―Interpreta-se estritamente a norma que determina os casos submetidos ao veredictum de tribunais especiais, como o juízo político, o conselho de guerra, o tribunal marcial, etc. Na dúvida, opta-se pelo foro comum e pelo processo em que a defesa dispõe de mais tempo e pode ser mais ampla. (...) Em geral, a competência é de Direito estrito, não se presume. Entretanto, na dúvida entre a comum e a especial, prevalece a primeira198‖.

No caso do artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c”, não há margem para

qualquer dúvida quanto à taxatividade daquela competência especial, mas, mesmo

que houvesse, a hermenêutica jurídica pode socorrer o intérprete com princípios

básicos como o acima citado: na dúvida entre o foro comum e o especial, prevalece

o comum.

Portanto, segundo o postulado do juiz natural, amplamente estudado no

capítulo 1.5. do presente trabalho, ninguém será processado nem sentenciado

senão pela autoridade competente (art. 5º, inciso LIII, CF), sendo inconstitucional o

julgamento de forma originária pelo Supremo Tribunal Federal de cidadãos comuns,

que não desempenhem nenhuma das funções taxativamente previstas no artigo

102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal.

198

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro, Forense, 1979, p.

230.

135

Ademais, uma interpretação razoável da competência ratione personae

do Supremo Tribunal Federal deve considerar também o princípio da igualdade,

posto que ―as prerrogativas de foro, pelo privilégio que, de certa forma, conferem,

não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende

tratar igualmente os cidadãos comuns, como o são, também, os ex-exercentes de

tais cargos ou mandatos199‖.

Em verdade, apesar da intenção do Poder Constituinte ao criar esse

instituto, não se pode considerar realmente um privilégio a submissão à competência

originária do Supremo Tribunal Federal, pois, nesse caso excepcional, o julgamento

se dá em instância única, o que suprime do acusado o direito fundamental ao duplo

grau de jurisdição, sobre o qual já tratamos no capítulo 1.6.

O julgamento da infração penal diretamente pelo Supremo Tribunal

Federal, em instância única, acaba sujeitando o réu ao possível arbítrio e abuso do

voluntarismo judicial, posto que não haverá revisão ou controle de instância superior;

enquanto que a competência comum, o juiz natural, presume o julgamento em até

três instâncias, com o exame, re-exame e re-re-exame das decisões judiciais, de

modo a evitar quaisquer erros ou injustiças.

Por todo o exposto, a correta interpretação do artigo 102, inciso I, alíneas

“b” e “c” da Constituição Federal é a literal, que entende a competência por

prerrogativa de função como excepcional e estrita taxativamente para os titulares de

funções ou mandatos previstos na letra da Constituição, sem qualquer possibilidade

de ampliação dessa competência.

199

Inq 1.376 – AgR/MG, j. 15/02/2007. DJ 16/03/2007.

136

CAPÍTULO 5 – A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA POR PRERROGATIVA DE

FUNÇÃO PERANTE O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

O direito fundamental ao duplo grau de jurisdição, que já foi conceituado,

estudado e detalhado em capítulo próprio do presente trabalho (1.6.), merece aqui

uma nova abordagem diante da competência originária por prerrogativa de função

do Supremo Tribunal Federal, com a qual tentaremos responder a algumas

perguntas: o julgamento diretamente pelo Supremo Tribunal Federal deve ocorrer

em instância única, afastando completamente o duplo grau de jurisdição? Ou o

direito ao duplo grau de jurisdição é inafastável também àqueles titulares de

prerrogativas de foro?

O duplo grau de jurisdição, direito fundamental do homem de recorrer a

jurisdição superior para revisão de decisão de primeira instância que lhe tenha sido

desfavorável, integra o sistema de direitos e garantias fundamentais do cidadão,

podendo ser deduzido, inicialmente, da simples leitura do artigo 5º, incisos LIV e LV

da Constituição Federal, in verbis:

―Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Esse direito fundamental decorre não apenas dos dispositivos

constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, acima

transcritos, como também de previsões expressas em tratados internacionais de

direitos humanos dos quais o Brasil é parte.

Afinal, o próprio artigo 5º, §2º e §3º, da nossa Carta Magna, prevê a

adoção, pelo Brasil, dos direitos e garantias expressos nos tratados internacionais, e

137

mais, prevê que esses tratados, quando forem aprovados na forma do §3º, valerão

com força de Emenda Constitucional:

―Art. 5º (...) 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais200‖.

O Pacto de São José da Costa Rica, que foi incorporado à Constituição

Brasileira com natureza de emenda constitucional com a publicação do Decreto nº

678/1992, estabelece expressamente o direito de se recorrer da sentença a juiz ou

tribunal superior, ou seja, o direito ao duplo grau de jurisdição, conforme se

depreende do artigo 8º, 2, h, abaixo transcrito:

―Artigo 8º - Garantias Judiciais 1.Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2.Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior201‖.

No processo penal, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,

incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto nº 592/1992202, também

garantiu ao acusado o direito de recurso a autoridade judiciária superior, como se lê

no dispositivo infra transcrito:

200

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 04/05/2013 201

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, Acesso em

07/07/2013. 202

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm , Acesso em 05/08/2013

138

Artigo 14. (...) 5. Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.

Da simples leitura dos tratados internacionais acima referidos, e pelo

material até agora pesquisado, depreende-se que o direito de recorrer a juiz ou

tribunal superior é uma garantia fundamental que poderia até mesmo revogar a

competência penal originária do Supremo Tribunal Federal, já que esta está prevista

em uma norma-disposição e o duplo grau de jurisdição, norma-princípio, foi

expressamente incorporado à Constituição Federal como Emenda Constitucional.

Por outro lado, ainda que a incorporação dos referidos tratados

internacionais ao nosso sistema constitucional não consiga afastar completamente a

existência da especialíssima competência originária ratione personae, pelo menos é

certo que esses tratados eliminam quaisquer dúvidas quanto à eventual

possibilidade de continência ou conexão para atrair cidadãos comuns à competência

originária do Supremo Tribunal Federal, pois “o status normativo supralegal (ou

constitucional) dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil

torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior

ou posterior ao ato de adesão203”.

Nesse sentido posicionou-se o ministro revisor Ricardo Lewandowski no

julgamento da Questão de Ordem da Ação Penal nº 470/MG em que foi solicitado o

desmembramento do processo:

―Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram o Código de Processo Penal – instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência constitucional estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela, quando aderiu sem reservas ao Pacto de San José da Costa. (...) Não se diga, de resto, que o princípio do duplo grau pode ser validamente desconsiderado nos casos em que se apura infrações penais conexas

203

RE 349.703/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE 05.06.2009.

139

praticadas por agentes com prerrogativa de foro em concurso com outros que ostentam situação processual distinta. É que, como visto, o afastamento do duplo grau de jurisdição se dá sempre em caráter excepcional e em situações restritas, ou seja, apenas nos casos em que a própria Constituição abre uma brecha na regra geral. Mais especificamente, só em relação aos ocupantes de cargos públicos sujeitos à competência penal originária da Suprema Corte é que o julgamento é único e irrecorrível, por opção dos próprios constituintes‖.

O excerto de voto supra aludido reflete bem qual tem sido o entendimento

do Supremo Tribunal Federal sobre a competência originária por prerrogativa de

função: instituto especialíssimo, que afasta excepcionalmente o duplo grau de

jurisdição apenas em relação aos ocupantes de cargos públicos sujeitos à

competência penal originária da Suprema Corte. O julgamento único e irrecorrível

seria possível, sob esse ponto de vista, somente e restritamente nos casos em que a

própria Constituição tenha literalmente excepcionado.

Entretanto, ousamos discordar do posicionamento da Corte Suprema de

que a garantia do duplo grau de jurisdição das autoridades sujeitas ao foro por

prerrogativa de função deva ser sacrificada, pois entendemos que o direito

fundamental de recorrer a instância superior é estendido a todos os acusados em

processo penal, desde que seja para beneficiá-los, pela interpretação correta dos

tratados internacionais e da Constituição que os recepcionou.

5.1. A Hierarquia Constitucional dos Tratados Internacionais de Direitos

Humanos e o Duplo Grau de Jurisdição

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI

Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e

incorporado ao direito brasileiro por meio do Decreto nº 592/1992204, estabeleceu em

seu artigo 5º, 2, a vedação a qualquer interpretação restritiva dos direitos humanos

fundamentais, conforme se verifica da transcrição abaixo:

―Art. 5 (...) 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do

204

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm , Acesso em 05/08/2013

140

presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau‖.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São

José da Costa Rica), incorporada ao direito brasileiro por meio do Decreto nº

678/1992, também estabeleceu diretrizes para a interpretação dos direitos humanos,

principalmente aqueles expressamente discriminados na convenção, como foi o

caso do duplo grau de jurisdição (art. 8º, 2, h). É o que se extrai da leitura do artigo

29, in verbis:

―Artigo 29 - Normas de interpretação Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados; c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza205.‖

De acordo com Carolina Alves de Souza Lima, as convenções

internacionais acima referidas garantiram a aplicação plena do duplo grau de

jurisdição no processo penal, inclusive às autoridades sujeitas ao foro por

prerrogativa de função, sempre no sentido de beneficiar o acusado:

―Tanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos quanto o Pacto de São José da Costa Rica, ao tratarem da garantia do duplo grau de jurisdição, ampliaram a aplicação dessa garantia na órbita do Direito Constitucional Brasileiro, porquanto estabeleceram a sua aplicação incondicional no processo penal, desde que seja em benefício do acusado, uma vez que os Direitos e as Garantias Fundamentais têm sempre o escopo de proteger o ser humano, nunca de prejudica-lo. Segundo tais tratados, o duplo grau de jurisdição é uma garantia jurídico processual mínima e não deve ter nenhum tipo de interpretação que o

205

http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, Acesso em

07/07/2013.

141

restrinja. Ao contrário, a sua aplicação diz respeito a todos, inclusive as autoridades sujeitas ao foro por prerrogativa de função206‖.

Assim, os tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição

Brasileira, que os incorporou com natureza de emenda constitucional207,

reconhecem como garantia plena do acusado o recurso a uma autoridade judiciária

superior, com o objetivo de ver reexaminada uma decisão condenatória.

Todavia, atualmente, o Supremo Tribunal Federal se divide entre

reconhecer essa (i) hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos

humanos no ordenamento jurídico brasileiro, ou a sua (ii) supralegalidade, que os

situaria em um espaço hierarquicamente superior às leis infraconstitucionais, mas

inferior à Constituição Federal.

Nesse sentido, transcrevemos ementa do acórdão do HC 90450, de

Relatoria do Ministro Celso de Mello:

E M E N T A: "HABEAS CORPUS" - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO JUDICIAL - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS - PEDIDO DEFERIDO. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. - Não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Precedentes. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: AS SUAS RELAÇÕES COM O DIREITO INTERNO BRASILEIRO E A QUESTÃO DE SUA POSIÇÃO HIERÁRQUICA. - A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, n. 7). Caráter subordinante dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos e o sistema de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. - Relações entre o direito interno brasileiro e as convenções internacionais de direitos humanos (CF, art. 5º e §§ 2º e 3º). Precedentes. - Posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento positivo interno do Brasil: natureza constitucional ou caráter de supralegalidade? - Entendimento do Relator,

206

LIMA, Carolina Alves de Souza. O princípio constitucional do duplo grau de jurisdição. São Paulo:

Manole, 2004. p. 120. 207

Constituição Federal, artigo 5º: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais‖.

142

Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos. A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. - Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano. (HC 90450, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/09/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-02 PP-00354 RTJ VOL-00208-02 PP-00549 LEXSTF v. 31, n. 361, 2009, p. 316-355)

Em nosso entender, o posicionamento do ministro Celso de Mello acima

exposto é o mais adequado: aceitação do tratado internacional de direitos humanos

como norma de hierarquia constitucional e interpretação ampliativa da norma que se

revele mais favorável à pessoa humana.

É o que leciona Flavia Piovesan, sustentando-se no que preconiza o

§2º208 do artigo 5º da Constituição Federal:

208

Constituição Federal, Art. 5º: “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

143

―Ora, ao prescrever que os ‗direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais‘, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Este processo de inclusão implica a incorporação pelo texto constitucional destes direitos. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a hierarquia de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. Esta conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional209‖.

Afinal, o §2º do artigo 5º da Constituição Federal prescreve que os direitos

e garantias fundamentais expressos na Constituição não excluem outros direitos

decorrentes dos tratados internacionais, atribuindo-lhes hierarquia de norma

constitucional.

Nessa esteira, Celso Mello chegou a apontar até mesmo para uma

supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos:

―Inicialmente queremos lembrar que o Estado não existe sem um contexto internacional. Não há Estado isolado. A própria noção de Estado depende da existência de uma sociedade internacional. Ora, só há Constituição onde há Estado. Assim sendo a Constituição depende também da sociedade internacional. Ao se falar da soberania do Poder Constituinte se está falando em uma soberania relativa e quer dizer que tal poder não se encontra subordinado a qualquer norma de Direito Interno, mas ele se encontra subordinado ao Direito Internacional Público de onde advém a própria noção de soberania do Estado210‖.

O autor supra citado defende a primazia dos direitos humanos

internacionais sobre o direito interno, acompanhando a tendência majoritária no

direito comparado. Segundo Mello, norma interna, seja ordinária ou constitucional,

209

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max

Limonad, 2002, p. 90-93. 210

MELLO, Celso A. O parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Lobo. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 20.

144

não pode ser utilizada como justificativa para o descumprimento de obrigação

assumida em tratado, e comenta a posição de Flavia Piovesan:

―A Constituição de 1988 no parágrafo 2º do artigo 5º, constitucionalizou as normas de direitos humanos consagradas nos tratados. Significando isto que as referidas normas são normas constitucionais, como diz Flávia Piovesan. Considero esta posição como um grande avanço. Contudo sou ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada. A nossa posição é a que está consagrada na jurisprudência e tratado internacional europeu de que se deve aplicar a norma mais benéfica ao ser humano, seja ela interna ou internacional211‖.

A posição de Mello não é muito distinta da de Flávia Piovesan, que

entende que, a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda norma

preexistente que seja com ele incompatível perde automaticamente a vigência:

―A incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Direito brasileiro – sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para a sua exigibilidade e implementação – traduz relevantes consequências no plano jurídico. De um lado, permite ao particular a invocação direta dos direitos e liberdades internacionalmente assegurados e, por outro, proíbe condutas e atos violadores a estes mesmos direitos, sob pena de invalidação. Consequentemente, a partir da entrada em vigor do tratado internacional, toda norma preexistente que seja com ele incompatível perde automaticamente a vigência. Ademais, passa a ser recorrível qualquer decisão judicial que violar as prescrições do tratado – eis aqui uma das sanções aplicáveis na hipótese de inobservância dos tratados212‖.

Alguns doutrinadores sustentam que os tratados internacionais de direitos

humanos apenas teriam adquirido a hierarquia constitucional após a introdução, pela

Emenda Constitucional nº 45/2004, do §3º213 ao artigo 5º da Constituição Federal, e

desde que fossem incorporados ao direito interno por meio do procedimento nele

previsto, similar àquele necessário para aprovação de emenda constitucional.

Porém, admitem a recepção dos tratados internacionais de direitos humanos

211

MELLO, Celso A. O parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Lobo.

Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 27. 212

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 99. 213

Constituição Federal, artigo 5º: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos

humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais‖.

145

anteriores à EC 45/2004, para que adquiram hierarquia constitucional, também com

base no §2º do artigo 5º.

O próprio Supremo Tribunal Federal já se posicionou nesse sentido,

inclusive sobre o Pacto de São José da Costa Rica:

―Constitucional. Processual penal. Recurso Ordinário em habeas corpus. Execução fiscal. Depositário infiel. Penhora sobre o faturamento da empresa. Constrangimento ilegal. Emenda Constitucional nº 45/2004. Pacto de São José da Costa Rica. Aplicação Imediata. Ordem concedida. Precedentes. [...] c) o § 3º do art. 5º da CF/88, acrescido pela EC nº 45, é taxativo ao enunciar que ―os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais‖. Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quorum de lei ordinária, é de se ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais. De acordo com o citado § 3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional; d) não se pode escantear que o § 1º supra determina, peremptoriamente, que ―as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata‖. Na espécie, devem ser aplicados, imediatamente, os tratados internacionais em que o Brasil seja parte; e) o Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado pela nova disposição constitucional (art. 5º, § 3º), a qual possui eficácia retroativa. 8. Recurso em habeas corpus provido para conceder a ordem.; [...]‖ (RHC 18799 / RS - Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2005/0211458-7, Rel. o Ministro José Delgado, publicado em 09 de maio de 2006).

Destarte, confere-se a merecida estatura constitucional aos tratados

internacionais de direitos humanos que foram internalizados antes do advento da EC

n°. 45/04, que a partir da sua promulgação e por uma adequada interpretação do

dispositivo constitucional do art. 5°, § 3°, considerar-se-iam recepcionados com

hierarquia equivalente as emendas constitucionais.

Sendo assim, o duplo grau de jurisdição, direito fundamental que já era

contemplado pela Constituição Federal e foi reforçado pela interiorização dos

tratados internacionais de direitos humanos, deve ter sua interpretação ampliada,

nunca restringida, e, portanto, deve ser estendido também aos titulares prerrogativas

146

de foro sujeitas à competência originária do Supremo Tribunal Federal. Estamos

diante, aqui, de um direito fundamental expressamente previsto em nossa

constituição, e de uma norma-dispositivo que trata de competência processual. Há

que se encontrar um equilíbrio dando-se maior primazia, obviamente, ao direito

fundamental em risco.

5.2. Incorporação do Duplo Grau de Jurisdição nos Processos de Competência

Originária do Supremo Tribunal Federal

Uma vez entendido o princípio do duplo grau de jurisdição como um

direito fundamental do homem, contemplado pelo sistema constitucional interno e

por tratados internacionais incorporados ao nosso ordenamento com hierarquia

constitucional, chega-se a uma anomalia existente no texto constitucional: a

competência originária do Supremo Tribunal Federal ratione personae para julgar

infrações penais.

O cidadão comum, sem dúvida, tem direito ao duplo grau de jurisdição,

sendo completamente inconstitucional interpretação que alargue o rol taxativo do

artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal, ou que avoque para o

Supremo Tribunal Federal, com base em legislação infraconstitucional, a

competência para julgar originariamente pessoas estranhas a esse dispositivo

excepcional da competência por prerrogativa de função.

As autoridades públicas sujeitas ao foro por prerrogativa de função, por

outro lado, se não conseguem escapar da excepcional competência originária do

Supremo Tribunal Federal, por força do disposto taxativamente no artigo 102, inciso

I, alíneas “b” e “c”, também não podem, por conta disso, terem violado o seu direito

ao duplo grau de jurisdição.

Trata-se de um direito fundamental que, se já era admitido anteriormente

como decorrência do devido processo legal, ampla defesa e contraditório, ganhou

ainda mais força normativa e constitucional, com a ratificação do Pacto Internacional

147

sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da Costa Rica, conjugados

com o §2º do artigo 5º da Constituição Federal.

Ademais, por força do §1º do artigo 5º da Constituição Federal, “as

normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”,

de modo que o duplo grau de jurisdição é um direito pleno que permite ao acusado a

invocação direta de seu direito a recorrer a tribunal superior.

No caso da competência originária do Supremo Tribunal Federal, porém,

o acusado fica diante de um impasse, pois não existe, na organização judiciária

brasileira, nenhuma instância acima do Supremo Tribunal Federal.

Fernando da Costa Tourinho faz uma sugestão que não atende

completamente ao princípio do duplo grau de jurisdição em sua concepção plena, de

se recorrer a tribunal diverso, de jurisdição superior, mas que permite alguma

espécie de recurso:

―A crítica maior que se faz ao foro pela prerrogativa de função repousa na circunstancia de se omitir o duplo grau, princípio de valor relevantíssimo. Mas o problema pode ser perfeita e facilmente contornável; basta que a competência para esses casos fique afeta à Câmara ou Turma, com recurso para o Pleno ou Órgão Especial. Observe-se que nos Estados de São Paulo e Paraná compete à Câmara, por força do Regimento Interno, processar e julgar prefeitos. Assim os regimentos dos tribunais podem fazer o mesmo em relação às pessoas que gozam de foro especial, dando-se recurso ao Pleno214‖.

Em nosso ponto de vista, principalmente no caso da Ação Penal nº

470/MG, em que sequer a sugestão mediana de Tourinho foi adotada, sendo que

todos os acusados, inclusive os cidadãos comuns, tiveram seu direito ao duplo grau

de jurisdição completamente sufragado, não resta outra solução que não a de

recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme permite o artigo 33

do Pacto de São José da Costa Rica, in verbis:

214

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. V. II. p. 225

148

―Artigo 33 - São competentes para conhecer de assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados-partes nesta Convenção: a) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Comissão; e b) a Corte Interamericana de Direitos Humanos, doravante denominada a Corte‖.

Sobre essa possibilidade, encontramos brilhantes reflexões do jurista Luiz

Flávio Gomes, que resgatou um caso similar ao sofrido pelos condenados na Ação

Penal nº 470/MG, julgado pela Corte Interamericana, que fez valer em toda a

integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição:

―A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF, ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Pacta sunt servanda: ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos. (...) No caso Barreto Leiva contra Venezuela a Corte, em sua decisão de 17.11.09, apresentou duas surpresas: a primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa. Esse precedente da Corte Interamericana encaixa-se como luva ao processo do mensalão. Mais detalhadamente, o que a Corte decidiu foi o seguinte: ―Se o interessado requerer, o Estado (Venezuela no caso) deve conceder o direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade. No segundo julgamento, caso se verifique que o anterior foi adequado ao Direito, nada há a determinar. Se decidir que o réu é inocente ou que a sentença não está adequada ao Direito, disporá sobre as medidas de reparação em favor do réu.‖ A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função. A parte mais enfática da decisão foi a seguinte: ‗A Corte, tendo em conta que a reparação do dano ocasionado pela infração de uma obrigação internacional requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento da situação

149

anterior, decide ordenar ao Estado que brinde o senhor Barreto Leiva com a possibilidade de recorrer da sentença citada215‘‖.

Assim, com base no precedente acima citado, já sabemos que o mínimo

que a Corte Interamericana poderá fazer é determinar ao Poder Judiciário Brasileiro

a realização de novo julgamento, para conceder o direito ao duplo grau de jurisdição

injustamente e inconstitucionalmente negado aos condenados na Ação Penal 470.

215

GOMES, Luiz Flávio. Mensalão e reclamação para a Corte Internacional. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3393, 15 out. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22814>. Acesso em: 20 ago. 2013.

150

CAPÍTULO 6 – CONCLUSÕES

O presente estudo demonstrou que a competência por prerrogativa de

função, prevista excepcionalmente no artigo 102, inciso I, alíneas “b” e “c” da

Constituição Federal, por ser excepcional derrogação do juiz natural, deve ser

interpretada restritivamente, de forma que apenas sejam julgados originariamente

pelo Supremo Tribunal Federal os titulares de prerrogativa de função, não sendo

possível nem a aplicação dos institutos de conexão ou continência a corréus que

nunca foram titulares de qualquer prerrogativa de função, nem a permanência de ex-

detentores dessas prerrogativas sob o julgamento originário da Corte Suprema.

Revelamos também que o entendimento majoritário do Supremo Tribunal

Federal tem sido no sentido de se desmembrar os processos com múltiplos corréus,

remetendo os cidadãos comuns ao crivo do juiz natural, e mantendo apenas as

autoridades titulares de prerrogativas de foro sob o julgamento direto da Corte

Suprema.

Tal cuidado se dá em respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos

não sujeitos à competência originária excepcional do Supremo Tribunal Federal, já

que o texto da Constituição não previu a derrogação de seus direitos ao devido

processo legal, ampla defesa, juiz natural e duplo grau de jurisdição e, segundo a

melhor hermenêutica, os direitos fundamentais constitucionalmente protegidos não

poderiam ser restringidos em razão de legislação infraconstitucional, como aquela

que prevê a conexão ou a continência.

Afinal, a competência originária ratione personae do Supremo Tribunal

Federal para julgar infrações penais tem gerado consequências gravíssimas àqueles

que a ela se submetem: a negativa de vigência do seu direito fundamental do duplo

grau de jurisdição.

O Supremo Tribunal Federal vem entendendo que essa sua competência

excepcional prevista no artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição Federal autoriza a

151

supressão do duplo grau de jurisdição para as autoridades com prerrogativas de

foro.

Tal postura ignora, porém, o fato de que o duplo grau de jurisdição é um

direito fundamental caríssimo ao nosso sistema constitucional: além de ser

decorrência natural do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa,

garantindo a toda pessoa o “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal

superior”, o direito a recurso a superior instância está expressamente previsto em

nossa hierarquia constitucional via tratados internacionais de direitos humanos

(Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da

Costa Rica).

Portanto, inconstitucional a negativa do duplo grau de jurisdição àquelas

autoridades titulares das funções previstas no artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição

Federal.

Com a incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos ao

nosso bloco constitucional, a competência originária por prerrogativa de função do

Supremo Tribunal Federal, nos moldes em que vem sendo aplicada, não deve

prosperar.

Ou o corpo jurídico brasileiro constrói rapidamente uma solução

alternativa que viabilize a possibilidade de recursos em primeira e segunda instância

mesmo quando o julgamento seja de competência originária da Corte Suprema, ou

podemos entender, desde já, que os tratados que concederam ao duplo grau de

jurisdição o valor de norma constitucional, ao emendar nossa Constituição, também

expurgaram definitivamente do sistema o peculiar instituto da competência por

prerrogativa de função.

Afinal, os direitos humanos fundamentais acolhidos por tratados

internacionais de direitos humanos, conforme a melhor doutrina, possuem eficácia e

aplicação imediata e devem ser interpretados ampliativamente, ao contrário das

152

normas que, pelo contrário, restringem direitos fundamentais, como é o caso

daquela esculpida no artigo 102, I, “b” e “c” da Constituição Federal, cuja

interpretação deve ser sempre restrita.

Caso o Supremo Tribunal Federal tivesse considerado esses aspectos,

sempre se valendo dos princípios constitucionais e instrumentais hermenêuticos tão

exaltados no decorrer da presente pesquisa, certamente não teria emitido decisões

tão excepcionais, desiguais, injustas e arbitrárias como aconteceu nos julgamentos

das duas questões de ordem apresentadas no Inquérito 2245 e posteriormente na

Ação Penal 470, em que era solicitado o desmembramento da ação.

O que se conclui, pela leitura da jurisprudência anterior e posterior ao

julgamento, é que ocorreu um verdadeiro tribunal de exceção, em que os acusados

foram escolhidos pelos seus julgadores, premeditadamente determinados a

condená-los. Em verdade, a mídia e a opinião publicada já havia condenado a todos,

antes mesmo da instauração do inquérito.

O instituto da competência originária por prerrogativa de função, in casu,

não surtiu o efeito perseguido pelo Poder Constituinte Originário de preservar as

autoridades e políticos de um julgamento influenciado por fatores externos. O que

não faltou no julgamento da Ação Penal 470 foram influências e pressões externas,

com acompanhamento ostensivo da mídia, bate-boca entre os ministros,

comentários, entrevistas, exceções, voluntarismos, enfim, a politização da justiça de

forma escancarada.

É uma pena que o maior prejudicado nessa história toda foi o Estado

Democrático de Direito.

153

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