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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Carolina Fernandes da Silva Mandaji REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL. COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Carolina Fernandes da Silva Mandaji

REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL.

COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Carolina Fernandes da Silva Mandaji

REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL.

COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Comunicação e Semiótica (Área de concentração: Signo e Significação nas Mídias; Linha de Pesquisa: Análise das Mídias) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO 2011

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA

FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE SEJA CITADA A FONTE.

Mandaji, Carolina Fernandes da Silva

Regimes de sentido e de interação na era televisual. Cocoricó: sincretismo, estilo e formação social / Carolina Fernandes da Silva Mandaji. São Paulo, 2011.

257 p. Orientadora: Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação e

Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

1. Televisão 2. Programa Infantil Cocoricó 3. Regimes de sentido e de interação 4. Sincretismo 5. Estilo 6. Valores sociais

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CAROLINA FERNANDES DA SILVA MANDAJI

REGIMES DE SENTIDO E DE INTERAÇÃO NA ERA TELEVISUAL.

COCORICÓ: SINCRETISMO, ESTILO E FORMAÇÃO SOCIAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, aprovada pela Banca

Examinadora constituída pelos seguintes professores:

_____________________________________________

Profa. Dra. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira Orientadora e presidente da Banca Examinadora

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

_____________________________________________

_____________________________________________

_____________________________________________

_____________________________________________

São Paulo, ____ de _____________ de 2011.

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Dedico a tese aos meus pais pelo apoio em concretizar esta realização e em especial à minha mãe por cuidar das minhas preciosas joias.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu pai pela inspiração de ter me ensinado a importância do estudo; À minha mãe pelo aprendizado de uma vida inteira, de coisas que só aprenderia com ela; Ao Higino, por não entender nada de Semiótica, mas por compartilhar discussões sobre o assunto; Às minhas preciosas joias, Enzo & Camila, que sem dúvida tornaram tudo mais desafiador e que me ensinam diariamente sobre o amor incondicional; Aos meus sogros, meus irmãos, minhas cunhadas por darem o apoio necessário quando precisei e, em especial, ao meu cunhado, no apoio aos problemas de ordem tecnológica; Aos professores José Luiz Aidar Prado, Diana Barros Luz e Ricardo Monteiro, por todas as observações dadas no meu exame de qualificação; Aos professores do programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP; Aos amigos do Centro de Pesquisa Sociossemiótica (CPS) pelas inúmeras e incontáveis contribuições, palavras de tranquilidade e pelo compartilhar de angústias; Às minhas amigas Carol, Lorena, Milena e Nina pela ajuda com a revisão de última hora; Ao CNPQ pela bolsa concedida; Em especial à minha orientadora, Ana Claudia Mei Alves de Oliveira, por acreditar e me ajudar a desenvolver esse trabalho. Por me ensinar que sempre há tempo para fazer, e principalmente, por me apoiar e mostrar os caminhos a serem seguidos, nos momentos em que nem eu mesmo acreditei que seria possível;

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“A TV pode ser uma janela e uma ponte para vários campos da vida, não só transmitindo conteúdos de qualidade e valores éticos, mas também estimulando a criança a buscar novas formas de conhecimento. Ela deve ser instigante, despertar a curiosidade da criança, evitar que ela se torne uma espectadora passiva dos acontecimentos. Não podemos esquecer nunca que TV transmite modelos para a criança. E temos, portanto, que estar atentos aos modelos transmitidos”.

Beth Carmona, 2004

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objeto estudar os efeitos de sentido gerado pelo programa televisivo infantil Cocoricó, transmitido e produzido pela TV Cultura, investigando para isso, a relação construída entre o programa e seus telespectadores. Trata-se de compreender o objeto em sua natureza sincrética - pela homologação das linguagens verbais, visuais, sonoras, nos planos do conteúdo e expressão – e segundo os discursos de entretenimento e educativo encontrados no universo televisivo infantil da contemporaneidade. O programa soma cinco temporadas, entre episódios e clipes musicais, e apresenta uma construção discursiva fundada no sincretismo de linguagens pelos seus modos de apreensão: por um lado, o inteligível pautado no fazer performático, no poder/ saber cognitivo, no dever prescritivo e num querer volitivo; e por outro lado, o sensível, quer dizer, esses procedimentos do discurso que exploram a competência estésica da criança pelo fazer sentir. Identificou-se, pois, que o programa propõe ao seu público determinados efeitos de sentido que perpassam as interações entre eles, pelo: a) procedimento da manipulação baseado na intencionalidade e na criação do hábito de assistir Cocoricó; b) procedimento da programaç~o, na regulaç~o do “ser” criança fiel { marca e aos seus diferentes produtos; c) procedimento do ajustamento, nas quais as possibilidades de apreensão do sentido desse programa televisivo são dadas em suas próprias qualidades estéticas, no fazer sentido para a criança por meio da estesia, ou seja, do contágio reativo. Este estudo possibilitou-nos apresentar a TV Cultura em seu estilo de fazer televisão, como destinadora social: na construção dos valores: educativo, ecológico e ser paulista; de comportamentos sociais que vão da estereotipia ao viver social e; na formação do gosto para o consumo da marca da própria TV e de seus programas. Tem-se, pois, na relação entre destinador-enunciador e destinatário-enunciatário de Cocoricó uma formação identitária da criança, tanto sociocultural, quanto uma formação para ser telespectador, no apreender o sentido do que se vê na televisão. As investigações e propostas de análises seguiram o arcabouço teórico-metodológico da Semiótica desenvolvida por Algirdas Julien Greimas e os estudos de Eric Landowski com a Sociossemiótica, em especial os procedimentos de interação. Palavras-chave: televisão; programa infantil Cocoricó; regime de sentido e regime de interação; sincretismo; estilo; valores sociais

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ABSTRACT

The object of this research is to study the sense effects generated by the infant televised show Cocoricó, produced and broadcast by the TV Cultura. For that the relationship between the show and its viewers was investigated. It is about understanding the object in its syncretic nature – by approving the verbal, visual, and sound languages, both in content and expression plans - and according to entertainment and educative discourses, found in contemporary children's televised universe. The show consists of five seasons, among narratives and music clips, and presents a discursive construction based on linguistic syncretism for its apprehension modes: on one hand, the intelligible guided on theatrical performance, on the cognitive doing/knowing, on prescriptive duty and on volitional wanting; on the other hand, the sensitive, meaning these discourse procedures which explore the child’s aesthesia competence through making it feel. It was thus identified that the program presents to its public sense effects ranging from the manipulating procedure based on intentionality and creation of the habit of watching Cocoricó, passing through programming, in regulating the being a child, faithful to the trademark and its different products, and to adjusting, in which the sense apprehension possibilities of this show are given in its own aesthesia qualities, as it makes sense to the child by means of aesthesia, that is, the reactive contagion. This study allowed us to introduce the TV Culture in its style of doing TV, as a social determiner: 1) in the formation of values: educative, ecological and “being a paulista”; 2) of social behaviors ranging from the stereotype to social living and; 3) in the formation of the consumption taste of the trademark of the TV itself as well as its shows. Thus, what we have here in the relation between enunciator and enunciatee of Cocoricó is the child’s identity formation, not only sociocultural but also forming the child to become a viewer, as it apprehends the meaning of whatever it sees on TV. The investigations and analysis proposals have followed the theorical-methodological outline of the Semiotics developed by Algirdas Julien Greimas, and the studies of Eric Landowski’s with the Social Semiotics, especially the interaction methods. Keywords: television; infant TV show Cocoricó; sense and interaction methods; syncretism; style; social values

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS .................................................................................. 13

INTRODUÇÃO

O que quer a audiência com Cocoricó? .................................................. 16

Cocoricó em trajeto de pesquisa ............................................................ 20

Capítulo I

EDUCAÇÃO, TELEVISÃO E COCORICÓ ................................................... 28

1.1 Uma pitada da história da televisão ................................................. 30

1.2 Os primeiros programas infantis....................................................... 32

1.3 Alguns programas brasileiros infantis “de outrora” ....................... 41

1.4 TV Cultura como destinador: história e produção para crianças .... 48

1.5 “Puxa, puxa que puxa”... Cocoricó ................................................... 57

1.6 Cocoricó em outros meios ................................................................ 67

Capítulo II

A CONSTRUÇÃO DE MUNDO DE COCORICÓ ......................................... 73

2.1 As vinhetas de abertura ................................................................... 77

2.1.1 Cocoricó no campo .................................................................... 80

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2.1.2 Cocoricó na Cidade ..................................................................... 92

2.2 As vinhetas de continuidade e de encerramento ......................... 100

2.3 Curtinhas: Esfarrapado e Roto nos apresentam ao Beco ............. 102

2.4. O episódio “Pôr do sol” e as questões do sincretismo ................. 111

2.4.1 Análise dos procedimentos sincréticos ............................ 126

2.4.2 Plano da expressão: o que engloba o quê? ...................... 127

2.4.3 As figuras ........................................................................... 139

2.4.4 Clipe musical, significação e o sincretismo .................... 140

2.5 Articulações na construção do sentido .......................................... 146

Capítulo III

MODOS DE PRESENÇA DISCURSIVA ................................................... 151

3.1 Manifestações do narrador televisual ............................................ 154

3.2 É tempo de Cocoricó ....................................................................... 169

3.3 Cocoricolândia e a Cidade Grande .................................................. 179

3.4 Figurativização e Tematização ....................................................... 189

3.5 Gênero, estilo e criança .................................................................. 214

3.5.1 Uma discussão sobre os gêneros na televisão .............. 216

3.5.2 O estilo Cocoricó de fazer programa infantil .................. 219

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Capítulo IV

REGIMES DE SENTIDO E REGIMES DE INTERAÇÃO ........................... 228

4.1 Cocoricó, manipulação, hábito e consumo .................................... 229

4.2 A marca Cocoricó: uma programação ............................................ 238

4.3 O sentir Cocoricó ............................................................................. 245

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que quer Cocoricó com as crianças? ................................................. 258

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 266

ANEXO

Filmografia ............................................................................................ 278

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13

LISTA DE FIGURAS

CAPÍTULO 1

CAPÍTULO 2

Figura 1 - As diferentes temporadas de Cocoricó ............................................ 60

Figura 2 - O garoto Júlio e seus amigos ............................................................ 62

Figura 3 - Programa narrativo de base e programas narrativos de uso .......... 76

Figura 4 - Tomadas iniciais da vinheta de abertura .......................................... 81

Figura 5 - A utilização do recurso de aproximação da câmera ........................ 82

Figura 6 - Sequência final da vinheta com o nome do programa ................... 83

Figura 7 – A vinheta de abertura de Cocoricó na cidade .................................. 93

Figura 8 - Sequência final da vinheta de Cocoricó na cidade ........................... 96

Figura 9 - Os actantes do Beco de Cocoricó .................................................... 104

Figura 10 - A TV e o sincretismo ....................................................................... 117

Figura 11 - Tomadas da sequência 1 no apartamento de João ....................... 128

Figura 12 - Os bonecos e a diversidade étnica, diferentes caracterizações ... 134

Figura 13 – A continuidade e as descontinuidades no sonoro ....................... 137

Figura 14 - Categoria da expressão HORIZONTAL .......................................... 138

Figura 15 - Categoria da expressão VERTICAL ................................................ 138

Figura 16 - Passagens do clipe musical “Pôr do Sol” ...................................... 142

Figura 17 – Relações sociais discursivizadas em Cocoricó .............................. 145

Figura 18 – Articulando o sentido ................................................................... 148

Figura 19 – As articulações sincréticas no episódio analisado....................... 149

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CAPÍTULO 3

Figura 20 – Delegações de vozes .................................................................... 158

Figura 21 – Lilica conversa com o seu novo brinquedo .................................. 159

Figura 22 – Garotos são impedidos de brincar no beco ................................. 160

Figura 23 - Cenas do episódio “Desenho da Lilica” ........................................ 162

Figura 24 - Cenas do episódio “Pé-de-moleque” ........................................... 166

Figura 25 - Cenas do episódio “Pôr do sol”, com o dizer “a seguir” ............. 172

Figura 26 - Molduras e o efeito esfumaçado .................................................. 178

Figura 27 - As maquetes da fazenda ................................................................ 181

Figura 28 - Ambientes cenográficos internos da fazenda ............................. 184

Figura 29 - As maquetes da cidade .................................................................. 187

Figura 30 - Cocoricó conta a história pelo modo de vestir ............................. 193

Figura 31 – Cenas da gravação de Cocoricó no campo ................................... 200

Figura 32 - Galpão onde é gravado o Cocoricó na cidade ............................... 202

Figura 33 – Alípio entre as peruas ................................................................... 210

Figura 34 - Cocoricó e os torcedores de futebol ............................................ 212

Figura 35 – Gênero e formato configuram o estilo de Cocoricó .................... 220

CAPÍTULO 4

Figura 36 - Os detalhes da decoração dos ambientes cenográficos ............. 242

Figura 37 – Linguagem televisiva intertual: relação com outros gêneros .... 248

Figura 38 – Olhar direcionado e tela dividida ................................................. 249

Figura 39 - Os bonecos de Cocoricó em locações externas ........................... 250

Figura 40 – Perspectivas próximas dos bonecos ........................................... 252

Figura 41 – Relações interativas entre Cocoricó e enunciatário .................... 256

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INTRODUÇÃO

Em termos do processamento da análise

quer os objetos sejam enunciados

acabados, enunciados em situação, ou

enunciados em ato de construção, essa

direcionalidade do mais abstrato ao mais

concreto do percurso gerativo da produção

é invertida, pois parte-se do já construído

nos enunciados para daí reconstruir o seu

curso gerativo. A produção do sentido é,

pois, uma função semiótica.

Ana Claudia de Oliveira, 2009

O que quer a audiência com Cocoricó?

“As crianças n~o s~o um pequeno grupo minorit|rio { parte” (FEILITZEN,

2002, p.17). Apesar delas se distribuírem num segmento não uniforme pelos

diversos continentes, a UNICEF estima que os menores de 5 anos constituam cerca

de 10% da população1. Essas crianças são aquelas que cada vez e mais cedo entram

em contato com as novas tecnologias da comunicação, computador, televisão,

rádio, livro e os demais. Os pais cada vez mais atarefados e ausentes acabam por

permitir às crianças uma exposição maior a essas tecnologias e, principalmente à

televisão, mais disseminada e acessível. Essa presença da televisão e demais meios

de comunicação é tema de estudos para autores do mundo inteiro, seja na

1 Em capítulo intitulado “As crianças no mundo”, Cecilia Von Feilitizen (2002, p. 17-18) discorre sobre duas estatísticas: as crianças menores de 18 anos e, àquelas menores de 5 anos. Embora os dois aspectos sejam interessantes, essa pesquisa irá se basear no número de crianças com idade igual ou inferior a 5 anos, com dados da UNICEF.

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sociologia, antropologia, psicologia ou nas ciências sociais e humanas. Não só por

que os meios de comunicação estão presentes cada vez mais nas nossas casas, mas

também, pela delegação da responsabilidade que se recai sobre eles e ainda, dessa

maior exposição das crianças. Segundo Orozco Gomez (1997, p. 57), a presença

crescente e expansiva dos meios de comunicação de massa (MCM) na vida

cotidiana nos coloca um desafio múltiplo, tanto para as instituições sociais quanto

para todos os membros da sociedade. “Fala-se com certa familiaridade que os

MCM, e em particular a televisão (TV), são uma escola paralela”, diz o autor.

Uma parte da responsabilidade em educar as crianças foi delegada à

televisão, que, como que assumindo essa responsabilidade passou a disponibilizar

uma programação direcionada a elas. No texto desenvolvido por Ana Lúcia Rezende

(1998, p.80) sobre televisão e criança, a autora explica que considerar a TV apenas

como a bab| eletrônica é ingenuidade. “Atacar, como transgressão aceitável, pais

ocupados que se desafogam dos filhos, enquanto os pequenos absorvem, como

uma esponja, as mensagens televisivas, é uma visão linear e empobrecida da relação

da tele audiência”, diz a autora. Para Rezende, a TV constrói visões de mundo para

as crianças. É essa construção que aumenta ainda mais a importância dos

programas de televisão dirigidos a elas, principalmente àquelas com idade pré-

escolar (de 0 a 6 anos). O que nós, enquanto pais, gostaríamos que os nossos filhos

assistissem na TV? Quais programas podem ser considerados de qualidade? Quais

são os valores presentes nos programas que os nossos filhos diariamente assistem?

Talvez muitos pais se façam essas perguntas o tempo todo, mas com a vida tão

corrida e com tantas outras prioridades, acabam não parando para responder.

A associaç~o sem fins lucrativos “Midiativa” - que se propõe a identificar os

vários elementos que envolvem uma produção audiovisual para crianças e jovens -

em parceria com o instituto de pesquisas MultiFocus, realizou em 2004 uma

pesquisa que questionava justamente isso a pais das classes A, B e C. A pesquisa

denominou os 10 mandamentos (princípios) que um programa de TV de qualidade

na opinião dos pais entrevistados deveriam ter. São eles:

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1) Ser atraente

2) Gerar curiosidade

3) Confirmar valores

4) Ter fantasia

5) Não ser apelativo

6) Gerar identificação

7) Mostrar a realidade

8) Despertar o senso crítico

9) Incentivar a autoestima

10) Preparar para a vida

De acordo com a diretora do instituto de pesquisas MultiFocus em

entrevista à Folha de São Paulo (2006), essa pesquisa revelou que para os pais a

televisão é uma das grandes responsáveis pela formação de seus filhos.

(...) a pesquisa revela que os pais conferem grande responsabilidade à televisão na formação de seus filhos. Apesar de serem de diferentes níveis socioeconômicos e culturais, todos anseiam por uma TV de alto nível, que informe e divirta, mas que também os ajude a compreender o mundo em que vivem e gere valores positivos (...) ou seja, eles querem uma TV que estimule a curiosidade, a busca do conhecimento, o senso crítico da criança, e assim prepará-la para o futuro.

Von Feilitzen (2002, p. 29) lembra que nos países latino-americanos, as

produções televisivas estrangeiras s~o a grande maioria, entretanto “h| indícios de

uma crescente conscientização sobre como podem ser desenvolvidos programas

produzidos localmente que respeitem as crianças, atendam às suas necessidades e,

mesmo assim, façam sentido em termos comerciais”. Na Holanda (VON FEILITIZEN,

2002, p. 67) foi realizado estudo similar ao da Midiativa, sobre a qualidade dos

programas infantis, aplicado a quatro grupos: crianças de 9 a 12 anos, mães de

crianças de 3 a 12 anos (consumidores) e, realizadores e críticos (profissionais de

produção e avaliação). Na pesquisa deste país, assim como no Brasil, foram

encontrados diversos padrões de qualidade, com diferenças significativas entre o

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que os produtores e críticos esperavam e o que as crianças e mães almejavam. Se

mães e crianças desejavam que o programa fosse inteligível, os profissionais

priorizaram envolvimento e credibilidade. Feilitzen conclui que:

N~o h| fórmula pronta para o que seja um “bom” programa ou conteúdo de mídia. As crianças são ativas e curiosas, e elas se orientam no ambiente de maneira a construir significados. Elas querem aprender, se divertir, construir relações sociais e criar sua própria identidade – também por meio da mídia [...] O que as crianças precisam, então, não é apenas prazer e identificações imaginárias visando ao entretenimento. Elas também querem aprender e construir seu sentido de pertencer a uma sociedade [...]. (VON FEILITIZEN, 2002, p. 69).

Coincide essa conclusão da autora com o que os pais também esperam da

TV, ou seja, que divirta as crianças e que ao mesmo tempo permita-os compreender

o mundo com valores positivos. Como disse Dominique Wolton (2003, p. 61), “de

todas as maneiras a televisão fascina, pois ela ajuda milhões de indivíduos a viver, se

distrair e compreender o mundo”. Ciente da não ingenuidade do autor quando fala

de uma “ajuda” da TV enquanto meio de comunicação com finalidades lucrativas

compreendemos que: de um lado estão os pais que se preocupam com a ludicidade

dos programas de TV e com a qualidade, e do outro, estão às emissoras de televisão

que se preocupam com a qualidade, mas também com a lucratividade, com os

dividendos. Situadas no meio disso tudo, estão às crianças e o que elas entendem e

apreendem dos programas de televisão.

As crianças, cada vez mais cedo entram em contato com a TV e seu

conteúdo veiculado nos programas. Esse contato lhes permite criar uma forma de

apreensão do que está ao redor delas, do seu pertencimento no mundo, do que

têm a predisposição para gostar ou não, assim como os seus modos de apreciação

dos artefatos culturais parece desde então enformado por certa estética e

correspondente ética. Não tanto como pais, mas agora como pesquisadores,

voltamos a nos perguntar: é possível encontrar e descrever as características que

fazem um programa de televisão infantil ser tido como de qualidade e com grande

audiência? Essa qualidade debatida por críticos e pais é sinônima de uma formação

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apenas sociocultural ou também tange a econômica, intervindo na formação dos

modos de consumo? Será que o efeito de sentido proposto a essas crianças

perpassa sua formação enquanto público desse meio de comunicação TV?

Cocoricó em trajeto de pesquisa

Essas são algumas das dúvidas que tentaremos elucidar ao longo dessa

pesquisa. Trabalhos anteriores sobre programas infantis de televisão apontam para

duas direções: de um lado, programas infantis e seu teor educativo, por outro lado,

análises comparativas de programas infantis e seu conteúdo. É claro que ao longo

desta tese, estaremos nos reportando ao teor educativo presente nos programas

infantis, como também ao conteúdo deles, por ambos fazerem parte da

metodologia e corpus proposto. Entretanto, o enfoque primordial que estaremos

desenvolvendo pretende dar conta do efeito de sentido proposto ao destinatário, o

que envolve tratar o objeto de investigação, tanto como objeto da comunicação

como objeto da significação.

Isso quer dizer que, nos concentraremos nos procedimentos enunciativos

projetados na relação enunciador-enunciatário com o intuito de, ainda

hipoteticamente falando, encontrarmos a projeção identitária desse destinatário,

como ele é construído - pela natureza sincrética do próprio meio – para ser um

telespectador (ao longo dos anos) por e para a televisão. Para isso, iremos

percorrer um caminho que vai dessa relação entre os meios de comunicação com as

crianças até os regimes de interação e de sentido propostos por Eric Landowski,

entendendo de um lado a televisão como destinadora, e as crianças e

telespectadores como destinatários. Como corpus de análise foi escolhido o

programa Cocoricó, transmitido e criado pela TV Cultura de São Paulo. Num recorte

metodológico, foram analisadas a quarta e a quinta temporadas2 (essa última

intitulada Cocoricó na Cidade), veiculadas nos anos 2008, 2009 e 2010.

2 Embora o recorte da pesquisa seja a quarta e a quinta temporada do programa Cocoricó, durante toda a pesquisa, utilizaremos as temporadas anteriores, com o intuito de compreendermos melhor as histórias narradas e as temáticas reiteradas, etc. A partir da escolha do programa como objeto de

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Esse objeto televisual nos permitiu pensar numa tríade. Numa ponta, a TV

Cultura como um meio de comunicação e destinadora do programa; na outra, os

telespectadores como destinatários e; na última ponta, os efeitos de sentido frutos

dessa primeira relação comunicativa e interacional estabelecida. Essa triangulação

nos levará a apreensão de um estilo de fazer televisão da emissora TV Cultura:

programas de entretenimento que seguem moldes educacionais e se utilizam de

uma linguagem sincrética com determinada apreciação estética e que se pautam

segundo uma exploração das competências estésicas do telespectador.

O que colocamos aqui é que o Cocoricó propõe efeitos de sentido que vão da

ordem do inteligível, neste caso, cunhado no entretenimento-educativo, à ordem do

sensível, mais ligado à formação de hábitos e estruturação do gosto; com

elementos ora da atualidade, de uma cidade grande, da contemporaneidade com

valores do presente, ora de um ambiente rural com valores tradicionais. Um dos

intuitos desta pesquisa será então, apresentar uma análise desse programa

considerando o público ao qual se destina, observando: 1) a confirmação de um

hábito; 2) a configuração de um aprendizado sociocultural; 3) a formação da

audiência da TV.

Entendemos, assim, que Cocoricó estabelece uma relação de comunicação

entre a emissora e os telespectadores, mas que vai além, configura uma relação

com esse espectador que é dada pela formação de um gosto, que tanto pode ser

um gosto do aprender as normas e regras sociais e, enquanto fator de crescimento

e desenvolvimento da criança, quanto outro gosto, para o desfrute do aprendizado

de uma estética que produz hábitos de consumo. Essa formação se intensifica mais

ainda, quando o programa sai de um cenário do ambiente rural e entra no ambiente

da cidade, neste segundo caso, com aparelhos eletrônicos, mobiliários de última

geração e/ou objetos ligados à arte e cultura. A posse de bens culturais começa pelo

consumo de lugares da cidade, de modos de se ocupar, em especial de brincar,

divertir-se, de levar a vida.

nossa análise, a escolha das temporadas que iriam ser analisadas foi feita por um critério de diferenças e oposições entre essas temporadas, nesse caso, a ida de João da cidade para o campo (na temporada 2008/2009) e a ida de Júlio e seus amigos do campo para a cidade grande (na temporada 2009/2010), possibilitou-nos pensar nessas diferenças estabelecidas.

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Para tal análise, foram utilizados os episódios da quarta temporada

(2008/2009) Cocoricó, disponibilizados em DVD com os nomes Cocoricó Diversão,

Cocoricó Tecnologia e Cocoricó Pé na Cozinha, e a quinta temporada (2009/2010)

Cocoricó na cidade e Clipes musicais Cocoricó na Cidade, também em DVD, bem como

episódios gravados a partir da transmissão diária na TV Cultura. O objetivo, assim, é

o de contribuir para uma discussão e análise crítica dos programas de televisão

dirigidos à faixa etária infantil em idade pré-escolar, de crianças de 0 a 6 anos. Foi

ainda interesse desta pesquisa, investigar: como se constrói a dimensão plástica de

um programa de televisão dirigido às crianças? Como essa plasticidade pode

promover uma interação entre os sujeitos envolvidos no processo de

comunicação/produção do texto televisivo direcionado ao público infantil?

Na busca por essas respostas, este trabalho se propõe a: (1) descrever o

contexto sócio-histórico-econômico em que o programa se consolidou na televisão

brasileira, colocando-o em relação aos outros programas infantis de outrora, assim

como, com a própria história da TV Cultura; (2) examinar como através das

modalizações do ser e do fazer, o Cocoricó, um programa de TV trabalha as

modalidades do poder, do querer, do fazer e do dever, e discutindo, portanto,

valores cognitivos, volitivos, performáticos e prescritivos em seus diferentes

programas narrativos e percursos enunciativos, numa relação destinador-

destinatário; (3) identificar de que forma se estabelece a relação enunciador-

enunciatário de um programa de TV infantil, observando-se, para isso: em primeiro

lugar as características plásticas das figuras da expressão e de figuras do conteúdo,

bem como as projeções de pessoa, tempo e espaço presentes no texto audiovisual;

(4) relacionar o percurso gerativo de sentido dos episódios com os regimes de

interação e de sentido propostos por Eric Landowski pelos procedimentos de

programação, manipulação, ajustamento e acidente.

A semiótica discursiva nos servirá de aporte metodológico nas análises da

produção de sentido deste texto escolhido. “A semiótica tem por objeto o texto,

ou melhor, procura escrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o

que diz” (BARROS, 2007, p. 7); compreende o texto como um todo de sentido, para

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isso, propõe a análise do texto enquanto objeto de significação e comunicação. O

semioticista do audiovisual Bettetini (1986, p. 16) explica a relação entre o

destinatário e esse tipo de texto:

As fórmulas tradicionais da unidirecionalidade das mensagens audiovisuais de massa e da conseguinte impossibilidade de um diálogo entre destinador e destinatário estão, de fato, censuradas pelas novas tipologias de consumo, mas sua crise não se limita à contingência de uma nova prática de acesso ao significante e à diegese. A busca por novos modelos semióticos, capazes de interpretar os atuais intercâmbios da comunicação audiovisual, supera os limites de uma situação ainda não completamente interpretada, para surgir de maneira benéfica sobre toda a produção semiótica interessada nas noções do texto 3. (BETTETINI, 1986, p. 16).

Tentaremos, portanto, ao longo desta pesquisa, enquanto semioticista, “dar

conta das condições de apreensão e da produção do sentido, quaisquer que sejam

os lugares e as formas de sua manifestaç~o” (LANDOWSKI, 1992, p. 58). Quer dizer

que o objeto deve ser analisado: internamente, pelo estudo dos procedimentos e

mecanismos que o estruturam e o estabelecem como uma unidade significante e;

externamente, quando em relação com o contexto sociocultural no qual está

inserido (IDEM). O programa Cocoricó será analisado enquanto sua

heterogeneidade e diferentes linguagens de manifestação, sejam elas: verbal,

espacial, proxêmica, gestual, ou visual, como nos explica Oliveira (2004, p. 12). As

linguagens serão estudadas desde a descrição do arranjo da expressão –

considerando, para isso, as escolhas de quem enuncia dado texto – à identificação

dos traços figurativos, o que nos possibilitará descrever os indicativos de formação

social para a criança e de sua formação identitária enquanto destinatário deste meio

de comunicação televisão.

3

Tradução nossa para: “Las fórmulas tradicionales de la unidireccionalidad de los mensajes audiovisuales de masas y de la conseguiente imposibilidad de una “conversación” entre emissor y destinatario están de hecho impugnadas por las nuevas tipologías de consumo, pero su crisis no se limita a la contingencia de una nueva práctica de acceso al significante y a la diégesis. La búsqueda de nuevos modelos semióticos, capaces de interpretar los actuales intercambios de la comunicácion audiovisual, supera los límites de una situacións aún no completamente interpretada, para irrumpir saludablemente sobre toda la producción semiótica interessada en las nociones del texto”.

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A análise deste corpus, como acabamos de dizer, foi abordada também pela

relação com o contexto sociocultural em que está inserido o programa, sendo

assim, a significação deve ser compreendida pelas relações entre os atores sociais e

suas práticas. Esse ramo da semiótica, denominado de sociossemiótica, prevê a

investigação de três ordens de problemas:

[...] problemas de semântica, relativos ao estabelecimento e organização dos valores e dos objetos significantes que o discurso social manipula; problemas de sintaxe, relativos ao estabelecimento e às transformações das relações entre os sujeitos, condicionando ao mesmo tempo a circulação intersubjetiva dos valores; problemas de pragmática, relativo às condições de assunção dos elementos estruturais precedentes pelos atores “reais” no plano de suas pr|ticas “vividas” (ou ainda, “em contexto”). (LANDOWSKI, 1992, p. 11).

Trataremos, então, esse texto segundo a lógica sintáxica de junção entre o

sujeito e seu objeto de valor, uma vez que consideramos o programa de TV como

um discurso enunciado por um sujeito para outro sujeito, com este segundo,

buscando uma mudança de estado. É a busca pelos valores como entretenimento e

educação, que, determinam a constituição do sujeito criança por uma forma de ser e

gostar, portanto de sua formação identitária.

Pelo percurso gerativo de sentido, como perspectiva metodológica de

análise semiótica, iremos reconstruir o sentido do plano do conteúdo do Cocoricó.

Para isso, o primeiro nível de construção do sentido é o chamado nível fundamental

e compreende as categorias semânticas que ordenam os diferentes conteúdos do

texto. As categorias semânticas estabelecem-se por oposições, por relação de

contrários, exemplo: vida vs morte; identidade vs alteridade. O segundo nível do

percurso gerativo de sentido é denominado de nível narrativo e define-se pela

sequência de transformações de estado do sujeito, que é processado em:

manipulação, competência, performance e sanção. O terceiro nível do percurso

gerativo de sentido é o chamado de nível discursivo. É neste nível que as formas

abstratas do nível narrativo são concretizadas por meio de figuras e temas.

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Ainda sob a lógica da junção, trataremos das questões que permeiam o

contrato fiduciário, ou seja, o fazer crer do enunciador ao enunciatário no discurso

por ele enunciado. Entretanto, se esse programa de televisão para as crianças é uma

prática social, assim que vai ao ar são estabelecidos novos tipos de interação social?

A resposta positiva a essa pergunta nos permite pensá-lo a partir, também, da

lógica do regime da união, que além do contrato, mantém uma relação de contato

entre enunciador e enunciatário, num sentido que pode se dar em ato, na relação da

criança com o que está assistindo. De acordo com Landowski:

[...] ao lado da lógica da junção entre sujeitos e objetos, que fundamenta a abordagem dos fenômenos de interação pensados em termos de estratégias de persuasão e de fazer fazer, devemos prever uma problemática do fazer ser que ponha em jogo outro tipo de relações entre actantes, da ordem do contato, do sentir, e em geral daquilo que chamaremos de união. Esquematicamente, enquanto é próprio do regime da junção fazer circular entre os sujeitos, objetos que têm significação e um valor já definidos, segundo o regime de união, no qual os actantes entram estesicamente em contato dinâmico, é sua co-presença interativa que será reconhecida como apta a fazer sentido, no ato, e criar valores novos. (LANDOWSKI, 2005, p. 19).

No caminho para postular tais relações, iremos discorrer no primeiro capítulo

desta tese, intitulado “Educaç~o, Televisão e Cocoricó”, sobre o meio de

comunicação televisão, a história dos primeiros programas infantis no mundo e no

Brasil, além de fazermos uma contextualização da TV Cultura enquanto emissora

que transmite o Cocoricó. Falaremos como o programa surgiu e no que ele se

transformou ao longo de mais de uma década de existência. Este capítulo possibilita

justificar a escolha desse programa como objeto de pesquisa.

O segundo capítulo “A construção do mundo de Cocoricó” fala sobre as

vinhetas de abertura do programa, assim como as vinhetas de continuidade e

encerramento. Neste capítulo, trazemos a análise das cenas iniciais dos episódios da

temporada Cocoricó na Cidade, com os bonecos Esfarrapado e Roto, além da

estruturação de cada episódio do programa, com as análises das vinhetas, do

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episódio e do clipe musical “Pôr do sol”, priorizando a descrição dos procedimentos

sincréticos utilizados.

No terceiro capítulo da tese “Modos de presença discursiva” ser~o

apresentados os modos de presença em Cocoricó da delegação de vozes, da

temporalidade e espacialidade. Ressaltando a partir desses modos, como esse texto

audiovisual é construído e como ele é figurativizado e tematizado para que monte

um tipo de interação com o destinatário que se correlaciona ao tipo de construção

do sentido que ele é levado a processar. Além da construção enunciativa, esse

capítulo possibilita-nos entender o programa enquanto um gênero, portanto um

estilo de se fazer televisão para criança.

O último capítulo “Regimes de sentido e regimes de interação” propõe uma

discussão de Cocoricó tendo como base os regimes e procedimentos propostos pelo

semioticista Eric Landowski, destacando para isso, os conceitos de hábito, marca,

consumo e interação. A proposta que se estabelece aqui é a de estudar o Cocoricó

entendendo-o como um objeto semiótico construído como um todo de significação

que repercute no brasileiro adulto hoje, criança do amanhã.

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Capítulo I

EDUCAÇÃO, TELEVISÃO E COCORICÓ

O que é a televisão? Um meio de informação? Uma droga (contra o tédio), um remédio (contra a solidão)? Um instrumento de socialização? Um aparelho ideológico? Uma forma de arte? Um simples suporte publicitário? Um pouco de tudo isso, certamente – mas não somente isso.

Eric Landowski, 2008

A televisão - mais que o rádio e o jornal -conseguiu se tornar um dos meios

de comunicação de massa mais presente na vida das pessoas e, mesmo atualmente

quando se fala da grande ameaça da rede mundial de computadores – a internet – a

audiência das grandes emissoras de televisão consegue se manter estável. Mesmo

tendo escrito há mais de duas décadas sobre a TV, essa passagem de Pignatari ainda

é válida :

[...] no século passado, o livro, o jornal e a revista exerceram funções semelhantes às da televisão em nossos dias, a ponto de alguém haver dito que a leitura era um ‘vício impune’. A televisão é um veículo de veículos, assim como o computador é máquina de máquinas: todos os meios confluem para a televisão, assim como todas as informações confluem para o computador. (PIGNATARI, 1984, p. 103).

De fato, a televisão vem se adaptando às mudanças e propostas de novos

meios comunicação e assim como ela, seu público permanece firme. O sociólogo

francês Dominique Wolton estuda há mais de três décadas o tema da televisão no

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contexto europeu. Para o autor, pode-se comparar o espectador de TV ao cidadão,

{quele que pode ser “a fonte da legitimidade democr|tica” (1996, p. 15), a partir do

uso democrático e coletivo. Wolton se questiona sobre o caráter da televisão

enquanto uma possibilidade, e segundo ele, se por um lado, a TV reúne indivíduos e

políticos (que tudo tende a separar), por outro, se oferece a eles como uma

possiblidade de fazer parte de uma atividade coletiva. Trata-se de uma “aliança bem

particular entre o indivíduo e a comunidade que faz dessa técnica uma atividade

constitutiva da sociedade contemporânea” (Wolton, 1996, p.15).

Mas esse cenário não foi sempre assim. Esse mesmo veículo, que hoje pode

ser considerado como uma técnica constitutiva da sociedade, em meados da

década de 1960, foi tratado por uma corrente de pesquisa americana enquanto

parte de uma indústria cultural, com ideologia e crítica às imagens, numa

abordagem marxista, que ficou conhecida como Teoria Crítica4, do qual Theodor

Adorno foi um dos mais expressivos representantes. De um lado, o sucesso, e do

outro, o impacto desse sucesso contestado pelos estudiosos. Para Dominique

Wolton (1996, p. 23), “a televis~o permanece, meio século depois de seu

aparecimento, um objeto n~o pensado” e, segundo o autor pensado sob uma

“muralha de estereótipos, de ideias prévias e meias verdades”. O autor aponta três

ideias que suscitaram o aparecimento da TV pública na Europa. A primeira seria

justamente a configuração de uma resposta ao temor suscitado por esta nova mídia

que era a televisão (ainda mais inquietante que o rádio) e que por isso, deveriam ser

controladas pelo poder público, sendo esse controle apontado como segunda ideia.

E por fim, a televisão pública como uma possibilidade de ir contra o modelo de

4 Dominique Wolton (1996, p.48-50) discorre sobre a lógica do conhecimento que guia as pesquisas sobre televisão em dois parâmetros distintos, os dos discursos apaixonados versus dos discursos políticos. “Essa vis~o ‘naturalmente’ politizada da televis~o explica, talvez, o sucesso que tiveram, desde a década de 1950, todas as teses produzidas por intelectuais condenando o seu papel nefasto. Teses, que em sua esmagadora maioria, encontram eco favorável junto às elites, mesmo que elas, supondo-se que tenham se questionado a si mesmas, pudessem constatar um divórcio entre o seu comportamento como telespectador e o seu discurso [...] Os trabalhos empíricos de conclusões prudentes e argumentadas jamais tiveram influência comparável à dos inúmeros livros e estudos que denunciavam os perigos, os prejuízos e as maléficas estratégias da televis~o”. O autor diz ainda que as análises decorrentes dessa terceira corrente de pesquisa americana, representada por Adorno e Hebert Marcuse desempenharam papel essencial, pois basearam e influenciaram todo o pensamento europeu.

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organização privada da televisão americana, justificando assim o que o autor chama

de “nacionalizaç~o” da TV.

Dentro desse modelo de televisão pública existiram os países que optaram

por uma “lógica administrativa, política, centralizadora” (WOLTON, 1996, p. 26-33),

e outros que preferiram uma estrutura pública descentralizada. Desde os anos 50

até os dias atuais, a televisão pública passou de primeiro instrumento de diversão

popular, com sucessos de programas educativos e populares, para o abandono do

monopólio de produç~o. Esse abandono nas TV’s públicas aconteceu, de acordo

com o autor, devido à falta de renovação e, principalmente verba. Ainda mais

agravado pelo contexto atual, iniciado lá no final da década de 80, com a

“desordenada e tardia” lógica da concorrência com as televisões privadas. O autor

conclui que a televisão (em sua mostralidade de públicas e privadas) acabou vítima

de três limitações: a econômica, a de consumo e a tecnológica.

Será, então, que o desafio da televisão privada é apenas a audiência e o lucro

e, o da TV pública informar, entreter e educar? Neste capítulo, iremos: conhecer

mais sobre a história e o contexto sócio-cultural-político da implantação da TV

pública no Brasil até os dias atuais, principalmente da TV Cultura, destinador do

programa analisado; saber quais programas infantis fizeram história na TV brasileira

e qual a relação deles com o Cocoricó; mais ainda entender por qual momento a

televisão no Brasil passava quando o programa foi criado e quais suas

características.

1.1 Uma pitada da história da televisão

Em 1952, ocorre a primeira tentativa de implantar uma televisão educativa no

país, tentando seguir um rastro iniciado por outros países como o modelo de

veículo educativo no Reino Unido, a BBC5, e os vários canais de televisão dos

Estados Unidos, exclusivamente reservados à educação, criados ainda na década

5 O pesquisador brasileiro Laurindo Leal Filho publicou o livro A melhor TV Pública do Mundo, sobre a história da emissora britânica BBC.

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anterior. A TV Roquette-Pinto era um projeto coordenado por seu idealizador

Edgard Roquette-Pinto, cuja vida inteira foi dedicada à radiodifusão e televisão.

Entretanto, devido a fortes pressões políticas, mesmo já tendo conseguido a

concessão de uma estação de radiotelevisão, não foi nesse ano que o Brasil teve sua

emissora de TV pública. Já no ano de 1958, existiam programas educativos, como na

estação de TV Educativa de Santa Maria. Posteriormente, na década de 60,

começaram a se espalhar outras experiências pelo Brasil. “Fervilhava no Brasil e no

mundo a ideia de que a televisão seria a tábua de salvação, levando conteúdo de

qualidade mais r|pido e mais longe do que os métodos tradicionais” (LIMA, 2008, p.

32). Como São Paulo era o estado do país com maior desenvolvimento industrial

queria estar à frente do processo em 1961, a Secretaria de Educação criou o Curso de

Admissão pela TV, produzido pelo Estado e transmitido pela TV Cultura, ainda

comercial pertencente às Emissoras Associadas de Assis Chateaubriand. No ano

seguinte, em 1962, uma lei federal criava o Código Brasileiro de Telecomunicações e

era fundada a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), cujo

objetivo era representar os interesses da televisão comercial no Brasil. Em 1963, os

incentivos do governo paulista continuaram para a educação e formação pelo rádio

e televisão, com a TV Cultura ampliando a programação educativa veiculada, com

aulas de literatura, artes plásticas, educação musical, etc.

Em janeiro de 1967, foi promulgada a Lei 5.198, que autorizava a criação do

Centro Brasileiro de Televisão Educativa, cujo objetivo era o de produção, aquisição

e distribuição de material audiovisual para uso em televisão educativa, cujo estatuto

foi aprovado e passou a se chamar Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa.

Neste mesmo ano, o projeto pioneiro da TV Escolar, iniciado por Carvalho Pinto e

continuado por Adhemar de Barros, no estado de São Paulo, entra em crise. Lima

(2008, p. 38) conta que a revista Realidade produziu, na época, uma matéria

criticando o descaso do governo do Estado nesse projeto. Devido a esse relato, o

projeto teria sofrido sérios cortes em 66 e, passou a pregar uma televisão que, para

além de escolar, fosse também educativa e cultural. Ainda em 1967, o então

governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, apresenta um projeto de

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televisão pública, denominada televisão educativa no Brasil, com a utilização de um

canal próprio com programação diversificada. Era criada, assim, a TV Cultura

pública. Embora essa emissora não tenha sido a primeira educativa a entrar

efetivamente em operação, projeto desenvolvido pela TV Universitária de

Pernambuco, em novembro de 1968.

Entre os anos de 1967 e 1971, foram autorizadas várias concessões de

Televisão Educativa. Apenas em 1973, a emissora TVE6 passou a funcionar em

caráter experimental e só depois de três anos, se assumiu como uma televisão, com

seis horas de programação diária. Esse resgate histórico das televisões educativas e

públicos no Brasil nos faz ir de encontro aos programas veiculados ao público

infantil, claro, como parte da história da televisão brasileira pública.

1.2 Os primeiros programas infantis

O Brasil - mais do que em outros países desenvolvidos, subdesenvolvidos ou

em desenvolvimentos - é um dos países em que a televisão se fortaleceu e se

consolidou. Disse Jorge da Cunha Lima sobre a inauguração da televisão no Brasil:

“ao fim dos anos 40, o Brasil aparecia como um abonado país emergente, possuidor

de um alentado saldo comercial proporcionado pelas exportações maciças de

matérias-primas estratégicas” (LIMA, 2008, p.23-25). As duas metrópoles brasileiras,

Rio de Janeiro e São Paulo, exibiam notável vitalidade econômica e cultural e a sede

por modernidade era grande. O interesse dos brasileiros pela televisão então se

confirmou nesse cenário com a inauguração em 18 de dezembro de 1950, da

primeira emissora de televisão brasileira, a pioneira TV Tupi de São Paulo,

propriedade de Assis Chateaubriand, assim como as rádios e jornais conhecidos

como Diários Associados. No ano seguinte, em 1951, Chateaubriand inaugurou a TV

Tupi do Rio de Janeiro.

6 A TVE foi responsável por programas como A turma do Lambe-Lambe, com Daniel Azulay, Canta Conto com Bia Bedran e a série Patati-Patatá nos anos 1980, e outros mais recentes como A Turma do Pererê (2001) e Um Menino Muito Maluquinho (2006), os Curta Criança e Curta Criança Animação (2003).

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Se na época da inauguração da TV, o Brasil se apresentou como um país de

interesse por esse meio de comunicação, nos anos que se passaram até a atual

configuração da TV no país, esse interesse inicial apenas foi confirmado. O Brasil é

um dos países com o maior número de aparelhos televisores do mundo, um dos

mais audiovisuais do planeta: aproximadamente 98% dos lares brasileiros dispõem

de pelo menos um aparelho de televisão (DUARTE, 2008, p. 17). É correto afirmar

que a televisão faz parte da cultura brasileira e como tal toda a sua grade de

programação, que vem a cada ano se especializando e buscando novos caminhos a

partir de novas ferramentas.

Quando se fala em crianças e audiência televisiva infantil, a preocupação

aumenta ainda mais. Segundo Rosália Duarte (2008, p.17), as crianças compõem o

segmento mais significativo de espectadores de televisão7; são elas, que, portanto,

se relacionam de modo mais intenso com a televisão, apreendendo sentido e

construindo valores a partir do que assistem. Sabendo disso, é neste tópico

estaremos discorrendo sobre o surgimento dos primeiros programas infantis nos

Estados Unidos, país que influenciou diretamente a criação e forma da televisão

brasileira.

Naquela época e ainda hoje, a televisão foi acusada até de não respeitar a

condição física e emocional das crianças e colocar no ar programas que não

condizem com a faixa etária8, como explicitado pelo autor norte-americano Cy

7 No livro A televisão pelo olhar das crianças, a autora diz que cerca de 48% das crianças que participaram da pesquisa relatada afirmam ter em casa tevê por assinatura, a cabo ou por satélite. O livro traz o resultado da análise de uma pesquisa com crianças (de 8 a 12 anos) que fizeram desenhos ou textos a respeito da tevê: programação, programas prediletos, o que gostavam e o que não gostavam de ver. A análise foi desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa em Educação e Mídia (GRUPEM), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Rio. 8 O Diário Oficial da União trouxe a publicação da Portaria 264 em fevereiro de 2007. O documento determina que os programas sejam classificados por faixas etárias e horárias e também exige que a classificação seja informada pelas emissoras por meio de símbolos padronizados. A classificação indicativa é um dever do Estado, determinado pela Constituição Federal de 1988. Cabe ao poder público, por parte do Ministério da Justiça, indicar as faixas etárias para as quais não se recomendam determinado programa. A nova classificação foi resultado de mais de três anos de debate entre o Ministério da Justiça, emissoras de TV, produtores, exibidores e representantes da sociedade civil organizada. A portaria traz ainda importantes avanços no sistema de classificação indicativa de programas de televisão, como a não classificação de programas jornalísticos ou noticiosos e a possibilidade de que, em regra, a idade recomendada para os programas de televisão seja indicada

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Schneider, no livro Children´s Television. Apesar de ter sido publicado há mais de

vinte anos, naquela época, as críticas já apontavam para uma discussão sobre a

produção de programas de televisão direcionados para crianças, para a questão de

como esses programas poderiam afetar as crianças. O autor aproveita também para

escrever uma espécie de manual de como se comunicar com as crianças pela

televisão. Schneider (1989) fala sobre a grande quantidade de artigos sobre o tema

televisão e criança; segundo ele, na época já haviam sido escritos mais de três mil

publicações, principalmente críticas de cientistas sociais sobre os programas de

televisão para o público infantil. O autor afirma ainda que a literatura crítica sobre

esses programas é direcionada a problemas específicos pertencentes a uma falha

no sistema, como por exemplo, artigos que abordam reações de crianças ao

assistirem material violento, não direcionado especificamente para elas. O autor

enumera (1989, p. 161) os principais pontos que os críticos examinam na TV dirigida

às crianças, a saber: a violência gratuita; os estereótipos sexuais e raciais; o

conteúdo educativo e quantidade de programas para crianças e; comerciais

dirigidos às crianças (aspectos como quantidade excessiva, aqueles preocupados

com nutrição infantil, saúde bucal, e outros de brinquedos caros).

Schneider contrapõe tais pontos, afirmando que: em primeiro lugar, apesar

de alguns desenhos ou animações apresentarem histórias que chegam a conter

algum ato de violência, não existe comprovadamente relação entre esses atos de

violência presentes nos desenhos e o comportamento das crianças. O autor explica

que a animação é um meio que depende de velocidade, ação e certa dose de humor.

Nesses programas, os vilões são claramente punidos e a criança não encontra mais

violência na TV – no sentido de punição entre as forças do bem e do mal - do que

encontraria num livro, por exemplo. “Como terminaria a história dos ‘três

porquinhos’, se o Lobo Mal n~o entrasse na panela de |gua fervendo”9, questiona

Schneider (1989, p.165). Sobre os estereótipos presentes nos programas, o autor

confirma que a sociedade mostrada pela televisão é usualmente distorcida quando

pelas próprias emissoras (autoclassificação). Os critérios adotados seguem os padrões já aplicados em democracias consideradas consolidadas como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e Suécia. 9 Tradução nossa para: “How else would you end the story og ‘The Three Little Pigs’ if the Big Bad

Wolf didn’t fall into the pot of boiling water?”.

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tenta se aproximar da realidade, principalmente para as crianças de comunidades

homogeneamente brancas, sem familiaridade com negros, hispânicos ou

segmentos minoritários da sociedade. Mesmo afirmando que almeje isso, o que se

passa na TV não pode dar conta de ser uma cópia fiel da realidade. Até porque

muitos de seus programas podem ser pensados e escritos com o objetivo de

retratar os diferentes grupos de pessoas presentes na sociedade, com seus dramas,

sexos, etnias e idades, no entanto, um grupo sempre se sentirá insatisfeito em

relação ao outro. Concordamos com Schneider (1989, p.166-170), quando o autor diz

que minimizar essa relação se trata de uma difícil tarefa, quando temos dados

estatísticos que nos apontam a quantidade de horas que uma criança passa em

frente à televisão.

Para essas crianças, a TV se torna o seu mundo de referência, com os grupos

que ali são projetados. Além do conteúdo violento e dos estereótipos, restam ainda

duas questões da qualidade dos programas e, dos anúncios publicitários

direcionados para crianças. De acordo com Schneider, o programa “The Funny

Company” veiculado em 1963 na TV norte-americana, com financiamento da

empresa de brinquedos Mattel e direção de Ken Snyder, introduziu o conceito do

que o autor intitulou “edutainment” ou edutrenimento em português. Esse

programa voltou-se para a questão da qualidade, com pretensões educacionais e

um formato próprio, não mais baseado nos modelos escolares, repleto de

instruções, mas que tivesse um quê de entretenimento para as crianças.

O autor faz referência também a dois outros programas da TV pública norte-

americana, Mr. Rogers (1967) e Sesame Street (1969), direcionados ao público pré-

escolar, com essa proposta educacional. Diz Schneider sobre o Sesame Street: “este

programa foi realmente o primeiro a combinar as transformações rápidas por quais

passam a televisão comercial com um plano educacional atual”10 (SCHNEIDER, 1989,

P. 171). Com uma larga experiência em televisão e também na produção de

programas infantis, Cy Schneider defende a mídia televisiva com uma visão positiva

de sua influência na formação das crianças. O autor diz que:

10 Tradução nossa para: “This show was really the first to combine the fast pace of commercial television with an actual educacional plan”.

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Os que dizem que a televisão não está no interesse público, esquecem que a televisão é um meio de massa cuja intenção é projetar a maior audiência possível, não é um negócio que costuma planejar a programação em função de um grupo ou indivíduo. Já é o suficiente planejar a programação para crianças baseada em programas específicos para a faixa etária, ou raça, ou sexo, pelo nível de inteligência ou afluxo11. (SCHNEIDER, 1989, p. 5).

Por outro lado, a televisão ainda é a principal mídia direcionada ao público

infantil. Enquanto pesquisadores e pais, sentimos que essa audiência infantil da TV

nos impõe alguns questionamentos: os programas de televisão realmente

apresentam caráter educativo? E, os pais precisam se preocupar com o quê seus

filhos assistem na TV, só pelo fato do material ser direcionado para a faixa etária

infantil? A criança é capaz de apreender o sentido dado por um programa de tevê?

O semioticista italiano Francesco Marsciani examina a relação a respeito da

televisão e da audiência infantil. Para o autor existem algumas razões para essa

relação de proximidade e fidelidade entre a mídia televisiva e as crianças:

A primeira delas e a mais evidente é que se trata do meio de comunicação mais frequentado pelo público infantil em termos absolutos; a segunda é que a TV, quem sabe mais do que as outras mídias, inaugurou formas inéditas de construção da mensagem, uma linguagem própria de grande impacto e fascinação, com extensão no campo da informática; a terceira é que a TV já atingiu uma difus~o t~o ampla, que pode ser considerada ‘mídia obrigatória’, como a escola; uma quarta raz~o é que ela é transmitida através de um aparelho, o televisor que conquistou seu espaço específico e relevante dentro do ambiente cotidiano da criança. (MARSCIANI, 1998, p.65).

Meio de comunicação absoluto, linguagem própria, mídia obrigatória, espaço

relevante, são as razões que transformam a TV em parceira ideal para o público

infantil. São programas e canais especificamente voltados para crianças (Cartoon

11 Tradução nossa para: “Those who say television is not in the public interest forget that television is a mass medium that sets out to program to the largest possible audience, not a business which custom designs programming to fit every group and individual. It is enough that they design programming for children per se without specific shows for this age group or sex or race or level of intelligence or affluence”.

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Network, Fox Kids, Discovery Kids, Disney Chanel, Nick Jr., TV Rá-tim-bum, TV

Cultura, TV Futura, entre outros).

É válido ressaltar que, nos últimos anos, o mercado de mídia em geral se deu

conta da importância e do tamanho do público dos programas infantis e foi

justamente daí por diante que começaram a surgir inúmeros programas e produtos

direcionados especificamente para eles, incluindo canais exclusivos de TV por

assinatura. No livro Os jovens e a mídia, com textos organizados por Sharon

Mozzarella, o artigo “Como se desenvolveu a indústria da mídia” de J. Alison Bryant

trata sobre o desenvolvimento da indústria da mídia direcionada ao público infantil,

desde o cinema, passando pelo rádio, até chegar aos dias atuais no ambiente

multimídia.

Bryant fala de alguns momentos importantes e distintos sobre a

programação infantil na televisão americana. No cinema, em 1937, foi lançado pela

Disney o primeiro filme para a família, Branca de Neve e os Sete Anões. Naquela

década, o rádio também se firmou como uma mídia para as crianças, até mesmo

mais que o cinema, por ser mais caseira e acessível para as crianças. O modelo de

patrocínio dos programas, adotado posteriormente pelas emissoras de televisão

surgiu no rádio, mas apenas depois de 1950 os programas infantis de rádio foram

superados pela mais recente mídia: a televisão (BRYANT, 2009, p.28-29). Bryant

explica que na década de 1940 e no início de 1950, o propósito dos programas

televisivos para crianças “era criar no imaginário a visão deste veículo como novo

local de encontro da família e assim vender os aparelhos de televis~o aos pais”

(IDEM). Durante toda a década de 50 e 60 as emissoras de televisão americanas

ofereciam para crianças programas patrocinados por grandes companhias como

parte de sua grade de programação. Foi nesse período também que as grandes

fabricantes de brinquedo começaram a anunciar, durante os intervalos comerciais,

nos programas infantis de televisão e o retorno lucrativo foi imediato para a Mattel,

dentre outras fabricantes (SCHNEIDER apud BRYANT, 2009, p. 33 ).

O autor nos conta que mesmo ainda durante a década de 1970 a

programação da televisão infantil continuou a consistir em sua maioria de desenhos

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animados de baixo custo. Foi apenas na década de 1980 que as organizações que

criavam as animações infantis passaram por algumas mudanças. Segundo Bryant:

A atmosfera liberal da administração de Reagan, juntamente com as transformações no ambiente tecnológico da televisão (especificamente o acentuado crescimento dos canais a cabo), proporcionou um contexto em que pudesse surgir um novo modelo de programação e patrocínio para o conteúdo do entretenimento. Na década de 1980, os program-lenght commercials reapareceram e se transformaram em um padrão de televisão infantil. (BRYANT, 2009, p.34).

Os program-lenght commercials eram desenvolvidos com a consulta, e, em

alguns casos, com amparo financeiro dos fabricantes de brinquedos e agentes de

licenciamento (PECORA apud BRYANT, 2009, p. 35). Smurfs, Meu Pequeno Pônei, He-

Man, Thundercats e Transformers são exemplos de programas infantis cujo processo

de criação, financiamento, distribuição e licenciamento eram ações feitas em

parceria entre as emissoras de televisão e os fabricantes de brinquedos. Essas

animações também chegaram ao público brasileiro e também fizeram sucesso no

Brasil. A animação He-Man foi a que primeiro obteve um sucesso financeiro a partir

dessa parceria entre as emissoras e os fabricantes. Essa padronização na mídia

televisiva infantil minimiza a linha divisória estabelecida até então entre os

programas infantis da TV e seu o patrocínio:

[...] os produtores procurando diluir o risco dos custos de produção do programa, voltaram-se para os fabricantes de brinquedos e estes, querendo estabilizar-se em um mercado sujeito aos caprichos e gostos passageiros das crianças, voltaram-se para a mídia. Os programas eram desenvolvidos com a consulta, e, em alguns casos, amparo financeiro dos fabricantes de brinquedos e agentes de financiamento [...]. O custo do programa podia, assim, ser diluído entre os produtores do programa e o fabricante ou licenciado do produto, e o reconhecimento da propaganda do produto ou o programa aumentava as vendas e os lucros. (PECORA apud BRYANT, 2009, p. 34).

Acontece, dessa forma, uma inversão no modo de produção dos brinquedos.

Se antes os personagens eram criados para a televisão e depois licenciados para os

fabricantes de brinquedos até se tornarem "febre" entre as crianças, depois da

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nova padronização imposta pelos program-length commercials, muitos desses

personagens populares da década de 1980 foram criados pelas companhias de

brinquedos e depois transformados em programas de televisão. Também na década

de 1980, conta o autor, as emissoras de televisão a cabo se firmaram no mercado

televisivo norte-americano especificamente para o público infantil. Em 1983, 70% das

horas da televisão a cabo eram supridas pela programação infantil (PECORA, 1998

apud BRYANT, 2009, p. 36). O surgimento de canais de TV a cabo unicamente

direcionados para o público infantil foi apenas uma das consequências dessa

especificidade da grade de programação. Nickelodeon e Disney Channel foram duas

importantes organizações de TV a cabo a surgir no final dos anos 80 e foram

responsáveis por marcantes mudanças no que diz respeito à programação televisiva

infantil, a saber: em primeiro lugar, pelo fato do Nickelodeon ter sido o primeiro

sistema de canal a cabo a ser inteiramente direcionado para o público infantil – faixa

etária de 6 a 12 anos e; em segundo lugar, pela Disney que lançou o Disney Channel

com base nas suas megamarcas (PECORA, apud BRYANT, p. 37).

Foi depois de 1990 que realmente ocorreu uma mudança significativa e tão

importante que vem de encontro aos dias atuais e a atual configuração dos

programas infantis produzidos nos Estados Unidos, mas também ao redor do

mundo, como no caso do programa brasileiro Cocoricó. As emissoras norte-

americanas de televisão (incluindo a PBS e as de TV a cabo) começaram a investir

em programas para crianças em idade pré-escolar, causando impacto significativo

na grade de programação direcionada às crianças. Bryant lembra que, em 1991, a

PBS lançou programas de TV que respondiam a uma certa estagnação da grade de

programação, dentre eles, Barney e Seus Amigos12, Shining Time Station e Lamb

Chop´s Play Along. No ano seguinte, com o sucesso alcançado com os novos

programas, a PBS aprimorou sua meta de oferecer uma quantidade significativa de

programação educativa através do bloco de programas Ready-to-Learn (RTL).

Segundo Bryant:

12 Barney e Seus Amigos ainda hoje é transmitido no Brasil pela emissora de TV por assinatura Discovery Kids. Esse programa teve uma boa aceitação entre as crianças brasileiras desde os anos 90.

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O RTL da PBS combina 11 horas de programação educativa durante todo o dia, ampliando os recursos destes com a participação da comunidade e dos pais, dando atenção ao desenvolvimento social e emocional, bem-estar físico e desenvolvimento motor, abordagens de aprendizado, habilidades de linguagem, habilidades cognitivas e conhecimentos gerais para crianças de 2 a 8 anos. Para que um programa fizesse parte do RTL, este deveria ter metas curriculares e um plano de pesquisas que fosse formativo e de conteúdo, tanto interno quanto externo. (BRYANT, 2009, p. 38).

Segundo Bryant (2009, p. 39) em resposta ao RTL e ainda querendo

preencher uma brecha na grade de programação infantil direcionada às crianças em

idade pré-escolar, a Nickelodeon passou por uma mudança organizacional. Assim,

em 1994 a Nickelodeon lançou dentro do seu próprio canal, outro canal, o Nick Jr.

dedicado aos pré-escolares. Outras emissoras seguiram a tendência e em 1997 a TV

a cabo oferecia 40 % da programação ao público infantil.

A preocupação com a programação televisiva de qualidade voltada ao

público infantil também chegou às emissoras brasileiras e aos programas

produzidos no Brasil. As emissoras de TV a cabo retransmitem alguns dos

programas norte-americanos e de outros países direcionados ao público em idade

pré-escolar, como o Discovery Kids, Nick Jr., Cartoon, Disney Channel, e outros. Mas

existe ainda a TV Rá-tim-bum, canal pago disponibilizado pela TV Cultura com

programas nacionais como Cocoricó e Vila Sésamo, que continuam sendo

produzidos e gravados; e outros mais antigos, como Castelo Rá-tim-bum, Glub, Glub,

etc. As emissoras brasileiras percebendo o filão de mercado que se instaurava;

passou a lançar produtos decorrentes de seus programas: DVD’s, CD-ROM

multimídia, jogos de videogame, site de jogos, etc. O autor King comenta os lucros

advindos dessas vendas:

[...] os lucros realmente significativos do setor da televisão para crianças provêm do licenciamento e do merchandising, das vendas internacionais e dos vídeos domésticos. Por exemplo, o Pokémon, um programa independente de grande popularidade, cresceu até se transformar numa indústria internacional, que inclui figurinhas para troca, revistas infantis, bonequinhos de plástico, animais de estimação virtuais, brinquedos de saco-de-feijão, lancheiras,

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camisetas e CDs, tendo atingido em 1999, um total de vendas de quase 5 bilhões em seus curtos três anos de existência (KING, 1999 apud VON FEILITZEN).

Esta cifra significou muito para as emissoras, tanto da TV aberta quanto das

TV’s por assinatura que, passaram a investir mais na produção, qualidade e

quantidade de programas direcionados a esse público. Buckingham cita o exemplo

da TV a cabo no Reino Unido, que segundo o autor:

trouxe um grande número de canais especializados que competem para atrair a audiência infantil; e tanto nos canais transmitidos por cabo como nos transmitidos por ondas houve um aumento considerável na quantidade da programação oferecida às crianças, embora não necessariamente em sua qualidade e sua diversidade. (BUCKINGHAM, 2000, p. 127).

Cocoricó, neste sentido, nos possibilita pensar a relação estabelecida entre a

televisão e a criança, pressupondo ainda outras relações: emissora e telespectador,

programa e criança, e mais que isso, emissora e programa numa relação com os

pais, responsáveis pelo bem-estar físico, moral e intelectual das crianças. O intuito,

por ora, foi o de ponderar essas relações entre a televisão enquanto meio de

comunicação, as diferenças e semelhanças entre a televisão pública e a comercial,

assim como mostrar como os programas infantis brasileiros foram buscar, na época

do surgimento, um modo de fazer dos norte-americanos, na qual a televisão

brasileira se projetou. E no Brasil, como essa programação infantil se configurou ao

longo desses 60 anos de TV? É o que veremos nos itens seguintes.

1.3 Alguns programas brasileiros infantis “de outrora”

Desde a estreia da televisão no Brasil, os produtores e diretores oriundos do

rádio pensaram em programas dirigidos ao público infantil, para isso, num primeiro

momento aproveitaram os desenhos animados importados dos Estados Unidos e

países da Europa, embora ainda nesta época tenham pensado na produção de

programas locais. Em depoimento ao livro escrito pelo diretor J. B. de Oliveira

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Sobrinho, o Boni, em homenagem aos 50 anos de TV no Brasil, Álvaro de Moya

então diretor artístico da TV Excelsior de São Paulo (Canal 9) comenta sobre os

primeiros programas infantis da emissora, os “did|ticos”, Nhô Totico palhaço e

Chicharrão. “Passavam também os desenhos animados de Norman McLaren e Lotte

Reiniger, além de Popeye e O gato Félix”, recorda.

No mesmo livro, outro depoimento chama atenção, o hoje famoso escritor

de novelas, Benedito Ruy Barbosa (apud BONI, 2000, p. 40-41) conta que foi

convidado pelo governador do estado de São Paulo, Laudo Natel a assumir o posto

de assessor especial do governo junto à presidência da TV Cultura. Aceitou, de

acordo com ele, o desafio o de escrever uma telenovela educativa. E assim, em 1971

estreou Meu pedacinho de chão. Exibida simultaneamente pela TV Cultura e pela

Rede Globo 13 , a novela se passava no ambiente rural e transmitia assuntos

importantes aos trabalhadores rurais, além de abordar assuntos como doenças,

desidratação, vacinação.

Benedito Ruy Barbosa escreveu ainda a primeira adaptação da Rede Globo

de O Sítio do Picapau Amarelo (1977-1986). O seriado já tinha tido outras adaptações

feitas por diferentes emissoras: a primeira adaptação foi feita pela TV Tupi de 1952

a1962, com direção de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky; em 1964, Lúcia Lambertini

resgatou o seriado pela TV Cultura, mas ficou apenas seis meses no ar; de 1967-1969,

novamente com a direção de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, O Sítio foi transmitido

pela Rede Bandeirantes de Televisão; e, em março de 1977, a adaptação estreou na

Rede Globo, com reprise na TVE. Geraldo Casé (apud BONI, 2000, p.97) recorda que

a primeira coprodução da TV Globo com a TV Educativa, da qual participou, foi a

série Pluft, o fantasminha (1970), baseado na obra de Maria Clara Machado.

Segundo o diretor, a adaptação de O Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato,

“implicou a elaboraç~o de um projeto voltado para um entretenimento com

adequaç~o e estímulos educacionais sem nenhum didatismo”. Ele explica:

13 A novela Meu pedacinho de chão que inaugurou o horário das 18 horas na Rede Globo, pode ter um remake em 2012 (disponível em http://www.teledramaturgia.com.br/meu.htm, acessado 21 de setembro de 2009).

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O objetivo só pôde ser alcançado pela integração de áreas ligadas à pedagogia e à dramaturgia, num esforço mútuo entre setores muitas vezes divergentes. A reunião de autores já consagrados, que deveriam obedecer a determinadas premissas originadas de currículos montados por um grupo de professores, psicólogos e alentados trabalhos recebidos de universidades e outras consultorias, foi tarefa árdua porém compensadora. O programa voltado para uma delicada faixa etária, deveria ter conteúdos e atrativos a ponto de ser um entretenimento que atingisse uma audiência mais ampla. A partir de uma estrutura consensual, fomos em busca dos elementos que pudessem sustentar tão arrojada meta. O elenco de atores foi estudado levando-se em conta, como é claro, o perfil dos personagens e o carisma dos protagonistas. Foi grande a dificuldade de encontrar as figuras representativas – Narizinho e Pedrinho – assim como as dos mágicos Emília e Visconde de Sabugosa. Para sustentar uma narrativa televisiva e compor o mundo lobatiano mantendo as características culturais brasileiras, alvo do qual não podíamos fugir, agregamos alguns personagens. A trilha musical, importantíssimo elemento, foi entregue a um dos maiores artistas brasileiros, Dori Caymmi, que cuidou de convidar os mais prestigiados compositores para preparar os temas de cada componente das histórias. Do prefixo ficou incumbido o nosso Gilberto Gil, que compôs uma obra-prima. Caetano, Chico Buarque, Dorival Caymmi, Ivan Lins, Sérgio Ricardo,

entre tantos famosos14. (CASÉ apud BONI, 2000, p.97-98).

Após 9 anos no ar, mais de 1.400 capítulos e prêmio de melhor programa

infantil de 1979 dado pela UNESCO, esta quarta adaptação de O Sítio do Picapau

Amarelo saiu do ar em 1986, também pelo fim do contrato entre a emissora e os

familiares de Monteiro Lobato. Em 2000, o contrato foi renovado por mais 10 anos

para divulgação da obra do autor em meios de comunicação atuais e no ano

seguinte a quinta adaptação da TV brasileira para esta obra de Monteiro Lobato

estreou, permanecendo no ar até 2007.

A primeira adaptação de O Sítio do Picapau Amarelo foi pensada baseada em

outro programa infantil de grande importância para a televisão do país. A versão

brasileira do Sesame Street, programa norte-americano criado há mais de 30 anos e

14 Geraldo Casé fala da importância de ter tido a colaboração da professora Maria Helena Silveira e da contribuição de universidades, como a Unicamp, que elaborou um estudo alentado sobre linguística para adequação dos textos (Apud BONI, p.98). A realização do programa contou ainda com equipes de ciência, educação, psicologia, sociologia, cuja seleção de conteúdo de cada capítulo era feita sob a supervisão dos autores e de uma equipe de apoio pedagógico (disponível em http://www.teledramaturgia.com.br sitio.htm, acessado em 21 de setembro de 2009).

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que teve forte impacto na programação televisiva infantil de países do mundo

inteiro. Atualmente, o programa continua sendo veiculado em TV’s de mais de 120

países.

De acordo com informações divulgadas pelo site da Rede Globo15, a primeira

fase da versão brasileira foi apresentada simultaneamente pela TV Cultura de São

Paulo e pela Rede Globo, de 1972 a 1974. Como inicialmente a Globo não tinha

estúdio para as gravações, estabeleceu-se uma coprodução entre as duas

emissoras. No entanto, só a Rede Globo continuou exibindo Vila Sésamo numa

segunda fase (de 1974 a 1975) e, posteriormente, numa terceira fase (de 1975

a 1977). A quarta fase do programa estreou novamente na TV Cultura no final de

2007, numa parceria com o canal de TV a cabo Discovery Kids e a empresa norte-

americana detentora dos direitos autorais do programa, a Sesame Street.

Desde as primeiras fases, o Vila Sésamo se tornou sucesso porque as

emissoras envolvidas investiam em pesquisas e observações junto a crianças de três

a cinco anos. Com o objetivo de atrair a atenção do público, foram desenvolvidos

aspectos diferenciais no programa16. O Site da Rede Globo explica:

Para atrair a atenção do público infantil e transmitir com eficácia mensagens educativas, a equipe do programa desenvolveu um processo pedagógico baseado na repetição. O cenário de Vila Sésamo representava uma vila, onde crianças conviviam com adultos e bonecos. Ali, eram apresentados pequenos esquetes com duração máxima de três minutos e a mesma informação era repetida mais de uma vez. Com tom de brincadeira, o programa ensinava, estimulando o raciocínio. Transmitia noções básicas do alfabeto, números e cores (2009).

A partir da versão de 1973, o programa passou a ser inteiramente nacional.

Nesta época, foram criadas as versões brasileiras dos famosos bonecos Garibaldo e

Gugu por Naum Alves de Souza. A partir dessa data, as músicas do programa

15 Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-249656,00.html, acessado em outubro de 2009. 16 Silvia Cavalli, uma das produtoras do infantil na época de sua implantação, conta que o programa Vila Sésamo foi adaptado para a realidade brasileira, do cotidiano da criança que aqui vive. Segundo ela, tinha um corpo de consultores, psicólogos, pedagogos, especialistas em educação e psicologia infantil, que estudava cada frase dita, com os requisitos de crescimento, de desenvolvimento cognitivo, motor e de percepção dessa criança (apud Lima, 2008, p.80).

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original também foram substituídas por outras, compostas por Marcos e Paulo

Sérgio Valle, e os textos foram entregues a escritores brasileiros como Dinah Silveira

de Queiroz, Ivan Lessa, Marcos Rey, Ronaldo Ciabrone e Carlos Alberto Seidl. Na

versão brasileira, a rua foi transformada em uma vila operária, onde viviam

personagens tipicamente brasileiros. O programa contava ainda com participações

de crianças carentes entre 3 e 10 anos, estudantes de escolas públicas.

Em 1974, o programa passou a ser produzido exclusivamente pela Rede

Globo. Nessa nova fase, tinha como foco ensinar noções de higiene,

comportamento no trânsito, alfabetização, agricultura, conflitos entre adultos e

crianças. Os cenários foram ampliados e, apesar de ser exibido em preto-e-branco,

novas cores foram usadas pela equipe de cenografia com a intenção de dar um

visual mais rico à atração. Em abril de 1975, tem inicio a terceira fase da Vila Sésamo,

empregando métodos educacionais brasileiros para maior integração com a nossa

realidade, foram incluídos 20 novos personagens, todos criados pela equipe do

programa, chefiada por Wilson Aguiar, diretor da Divisão de Educação da Rede

Globo.

Após mais de duas décadas, o programa transmitido pela TV Cultura

atualmente, mantém a característica de tentar adaptar o Sesame Street norte-

americano à realidade brasileira, embora os esquetes do programa brasileiro

tenham menos personagens e menor duração do que o americano. Existem dois

bonecos nacionais, Bel – uma criação especial para a versão atual - e o pássaro

Garibaldo - já conhecido do público e cujo nome é exclusivamente nacional - e

gravações com crianças em várias partes do Brasil, além de blocos dublados da

produção norte-americana. De acordo com o site da TV Cultura, “por meio da

convivência e das brincadeiras 17 na Vila Sésamo, essa dupla alia conteúdos

educativos ao entretenimento”.

17 São exibidas cenas de Garibaldo e Bel brincando e aprendendo. São quadros de pequena duração, em torno de 3 minutos, em que a personagem Bel dialoga com um narrador em off e precisa achar dentro de uma piscina de "dados coloridos", os objetos que o narrador lhe pede. Tem ainda o quadro em que Garibaldo aprende o nome de três objetos com uma letra também escolhida pelo mesmo narrador.

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Outros programas também da TV Cultura foram sucesso na televisão

brasileira, e até no mercado internacional. Os primeiros programas voltados ao

público infantil baseados na tríade educação, cultura e entretenimento foram: o

programa Bambalão, sucesso de público e crítica, que teve desdobramentos (Circo

Bambalão, Bambalalão e Silva e outros) e que tinha um caráter de entretenimento,

A Turma do Lambe-Lambe, ambos de 1978 e o Curumim18 considerado um dos

precursores do Rá-Tim-Bum (com os desdobramentos de Castelo Rá-tim-bum e a Ilha

Rá-tim-bum19). Esses programas inauguram a produção de infantis na Fundação

Padre Anchieta.

O seriado Rá-Tim-Bum foi transmitido de 1989 até 1992 dirigido por Fernando

Meirelles e com os atores Marcelo Tas e Carlos Moreno. O enredo contava o dia a

dia de uma família que liga a TV e, de repente, tudo se transformava, como numa

grande brincadeira, os personagens apresentavam as cores, a matemática e o

alfabeto20. O Castelo Rá-Tim-Bum21 seguiu também uma abordagem pedagógica

voltada para o público infanto-juvenil. A criação do dramaturgo Flávio de Souza e do

diretor Cao Hamburger estreou em 1994 e foi produzido até 1997. A produção fez

parte da parceria entre Fiesp e TV Cultura, caracterizada assim, pelo caráter

18 O coordenador do programa Curumim, Pedro Paulo de Martini, lembra que esse era um projeto entre a Secretaria Municipal de Educação do Estado de São Paulo e a TV Cultura, uma prática que poderemos comprovar utilizada ainda hoje com o Cocorico. “[...] a gente tinha uma equipe especializada em educação infantil, da Secretaria, que vinha aqui, uma ou duas vezes por semana, fazer reuniões e organizar o curso. E depois, programa a programa, discutia-se linha por linha [...] E essa série era utilizada nas Escolas Municipais de Educação Infantil [...] E também essa é uma experiência que fica assim meio termo entre a educação mais de curso e a educação geral. Porque a gente tentava fazer um programa que, se a criança, em casa, assistisse, ela aproveitaria alguma coisa. Se ela assistisse junto com o professor poderia trabalhar em cima e explorar. E havia manuais para o professora explorar uma metodologia (apud LIMA, 2008, p. 152). 19 O seriado Ilha-Rá-tim-bum teve apenas uma temporada e sua audiência não foi muito significativa. 20 O programa Rá-tim-bum ganhou a Medalha de Ouro no Festival de Nova York, no entanto, não alcançou audiência significatica, atingiu 4 pontos de audiência no IBOPE (http://www.estadao.com.br/arquivo/ arteelazer/2002/not20020718p6229.htm, acessado em dezembro de 2009). Segundo Almeida (p. 11), as estratégias utilizadas privilegiavam a aprendizagem para o prazer, e n~o o prazer da aprendizagem num programa dito educativo. “O fazer continuar querendo ver (assistir), logo, fazer querer ter prazer em viver, significa também fazer querer assistir aos próximos episódios”, explica. 21 O Castelo Rá-Tim-Bum foi considerado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) o melhor programa infantil de 1994. Em 1994 e 1995, recebeu a medalha de prata na categoria melhor programa infantil do Festival de Nova York. Em 1995 ganhou o Prêmio Sharp de Música para o melhor disco infantil (disponível em http://www.tvcultura.com.br/casteloratimbum, acessado em 3 de outubro de 2009).

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educativo, tal como outros programas infanto-educativos da emissora. A audiência

da série foi considerada um sucesso para a TV Cultura, com uma média de 12 pontos,

índice jamais alcançado por uma série educativa ou por um programa da emissora.

O enredo contava a história do menino Nino, de 300 anos de idade, que mora no

Castelo com seu tio o mágico Dr. Vítor e a tia Morgana. Nino é um aprendiz de

magia que vive grandes aventuras com as crianças Pedro, Biba e Zequinha,

convidados e frequentadores do Castelo e ao lado de outros animais estranhos,

como a Cobra falante Celeste e o Gato Malhado, entre outros. A série apresentava

noções de Ciências, História, Matemática, música, artes plásticas, ecologia,

cidadania e incentivo à leitura nos 27 quadros temáticos. Explica o autor Carlos

Magalhães (2007, p. 86-87) que o programa segue a vertente de projetos infanto-

juvenis para televisão com quadros e esquetes com conceitos pedagógicos dentro

de uma trama ambientada em um pequeno universo com personagens

permanentes, convivem harmoniosamente pessoas de carne e osso e bonecos

falantes. O autor relaciona os três programas: Castelo Rá-tim-bum, Vila Sésamo e O

Sítio do Picapau Amarelo.

Nos três casos, os programas se assemelham muito em sua estrutura dramática, com a presença de um adulto sábio e catalisador (Juca/Gabriela na Vila Sésamo, Dona Benta no Sítio do Picapau Amarelo, Dr. Vítor no Castelo Rá-tim-bum), um personagem central atrapalhado, mas valente e destemido (Garibaldo, Emília, Nino), uma figura caricatura o mal (Gugu, Saci, Mal), crianças coadjuvantes, bonecos falantes. Outra característica importante é a utilização de valores nacionais, além dos conceitos pedagógicos universais. Todos os projetos também são acompanhados, desde a produção dos roteiros, por pedagogos. (MAGALHÃES, 2007, p. 87)

E o autor permanece na comparação entre os programas, trazendo para o

grupo dos outros três, o Cocoricó.

Com exceção da presença de humanos, a estrutura se repete no atual sucesso da rede educativa paulista, o programa com bonecos manipuláveis Cocoricó. Júlio – a figura central e destemida da série

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– é um garoto de seis anos22 que mora no sítio com seus avós. Compartilha com seus amigos – entre eles, um cavalo, três galinhas, uma vaca e um papagaio – dúvidas próprias das crianças e defende a natureza. Episódios igualmente com tema centrais “educativos”, ainda dividem o espaço com videoclipes de músicas próprias e adaptadas de canções clássicas infantis e dicas de brincadeiras. (MAGALHÃES, 2007, p.87).

Todos esses programas que vimos até agora e outros que foram criados e\ou

transmitidos pela TV brasileira contribuíram para a história dos programas infantis e

para a atual configuração dos programas e principalmente, deles em relação ao

Cocoricó. Como veremos ainda neste capítulo, e já antecipado por Magalhães, esses

programas têm uma estrutura básica similar, as relações estabelecidas entre os

bonecos e inseridas em dada sociedade. No entanto, o Cocoricó e em especial, a

temporada Cocoricó na cidade, diferentemente dos anteriores, apresenta uma

temática rural e posteriormente (com a nova temporada) passa a contextualizar a

vida urbana, àquela da “cidade grande”, apresentada, mostrada e construída pelo

programa. Entretanto, antes ainda de falarmos sobre o Cocoricó, precisamos

conhecer a emissora responsável pela produção e veiculação, o destinador do

programa: a TV Cultura.

1.4 TV Cultura como destinador: história e produção para

crianças

A grade de programação das televisões vem a cada ano se especializando e

buscando novos caminhos a partir de novas ferramentas. Essa especialização, ou

melhor, segmentação de programação, dirigida a públicos específicos atingiu

também o telespectador mirim. Na televisão brasileira, podemos citar a TV Cultura

que vem ao longo dos últimos anos tentando atravessar uma fase financeira ruim,

mas que conseguiu manter uma programação televisiva dirigida a tal público e

22 Há uma certa controvérsia com relação à idade do boneco principal Júlio. Em determinadas fontes consultadas, a idade de Júlio é 6 anos, embora nos DVD’s da série Personagens, há um vídeo em que Júlio afirma ter 8 anos.

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considerada pelos críticos, teóricos e seus telespectadores, como de qualidade. Em

uma pesquisa realizada por Monica Fort (2005, p. 132) sobre os interesses da

audiência, quando o assunto é televisão educativa, 53, 47% dos entrevistados

conhece e assiste a programação da TV Cultura, e destacam o tema da Educação

(29,40%) abordado pela emissora. Apesar dos programas infantis transmitidos pela

emissora serem classificados no gênero entretenimento, eles possuem um grande

apelo ao pedagógico, cujo formato do programa têm o objetivo explícito de

‘ensinar’ algo ao telespectador. Embora, esses formatos por um lado estão

agregando informação e algum conteúdo de caráter pedagógico, por outro lado,

abre caminhos aos interesses de entretenimento ligados à fomentação de hábitos

de consumo para a criança. Nesse sentido, a autora Maria Thereza Rocco admite um

papel da televisão para agregar informação a entretenimento, no entanto para ela,

não se pode deixar unicamente às crianças a interpretação do que elas assistem e,

explica:

[...] a TV vem se constituindo em um poderoso instrumento de divulgação e integração de informações, conhecimentos, revelando-se como fonte de diálogo e interação. É preciso, hoje, "alfabetizar" crianças e aprofundar a competência dos jovens para a leitura e análise, em vários níveis, do texto televisual, como já se faz, de há muito, com o texto escrito que deve ser lido, analisado, compreendido e criticado também a partir da própria experiência de vida do estudante. (ROCCO, 1999, p.53).

Essa emissora é responsável pelo conteúdo que veicula e, portanto também

consciente das possibilidades que tal programa pode suscitar para ela mesma e,

cabe {s crianças seguir essas “pistas” deixadas. Esse sujeito emissora de TV, então,

será o sujeito destinador mantendo uma relação com o espectador, que por sua

vez, será o destinatário. Seria interessante, pois, relacionar a história dos programas

com a própria história da TV Cultura, entendendo-a como principal destinador do

programa em análise. Segundo o Dicionário de semiótica, organizado por A. J.

Greimas e J. Courtès (2008, p. 132-133), destinador-destinatário são termos que na

concepção do autor Roman Jakobson designam actantes da comunicação (emissor-

receptor na teoria da informação); como diz Bertrand (2003, p. 306) “o destinador

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definido pela relação com o destinatário, no eixo da comunicação: o primeiro

comunicando ao segundo os valores”. O destinador será o regulador, um papel

cristalizado fora do texto, definido em primeiro lugar, por seu papel factivo (faz-

fazer) em relação a outro sujeito, dotado de um saber, porque ele delega o poder de

agir e de um poder, porque ele sanciona, explica Bertrand (2003, p. 44); embora

esse seja apenas um dos estágios da realização dos seus percursos, esse destinador

se virtualiza e se atualiza por meio de outras configurações modais, como a do

fazer dever. O destinador será aquele também que faz crer, quando propõe valores

e suscita ao sujeito aceitar esses valores; depois, faz querer, faz saber, faz poder

esse sujeito (BERTRAND, p. 343-344).

Como será que a TV Cultura se atualiza enquanto destinadora? A emissora,

que atualmente, tem como slogan a frase: “Est| surgindo uma TV diferente” 23, foi

criada como uma televisão pertencente a Assis Chateaubriand, junto a outros canais

que formavam às Emissoras Associadas. No ano de 1967, o governador Roberto

Abreu Sodré viaja a Portugal e ao Canadá e conhece uma prática emergente da

televisão nesses dois países: a pedagogia de educação à distância e concebe um

projeto de televisão educativa pública com canal próprio e programação

diversificada, como também explicitado antes. Abreu Sodré age em duas frentes:

De um lado, criou a Fundação Padre Anchieta – FPA, entidade de direito privado que devia gerir as futuras emissoras de rádio e TV. De outro, adquiriu do grupo Assis Chateaubriand com alguma facilidade, mas não sem polêmica, a TV Cultura, canal 2. A venda do canal 2 para o Estado se explica tanto por determinação das novas medidas legais – a reforma do Código de Telecomunicações efetuada em fevereiro de 1967 -, que limitavam o tamanho das redes nacionais a um máximo de dez emissoras, quanto pela séria crise financeira pela qual passavam as Emissoras Associadas. (LIMA, 2008, p. 42-43).

Assim, a TV Cultura comercial encerrou suas atividades e nasce a TV Cultura

pública. Dois pontos nessa história são relevantes. Primeiro: com a preocupação de

23 Esse novo slogan faz parte de uma série de novidades que a TV Cultura vem trazendo, como o novo "Roda Viva" apresentado por Marília Gabriela, entre outras. O antigo slogan que dizia “A TV Que faz bem” era de 2008 e fez parte da campanha de comemoraç~o dos 40 anos da emissora. Disponível em http://www.portaladtv .com.br/?p=216938, acessado no dia 7 de setembro de 2010.

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implantar uma televisão de qualidade, o Governo de São Paulo opta por

reestruturar e atualizar tecnicamente a emissora, para só depois iniciar as

atividades24. Segundo: o fato de um governador endossado pela ditadura – que

governava o país na época – conceber e criar uma TV educativa com estrutura

política, intelectual e administrativa independentes, embora financeiramente

compromissada com o governo e dependente, assim, desse dinheiro. Para Lima

(2008, p.47) a proibição das TV's públicas brasileiras de receberem patrocínios e

doações, bem como o desinteresse do governo em incrementar uma televisão

pública que tivesse um mínimo de presença diante do que as televisões comerciais

têm, até hoje, lamentáveis consequências no seu desenvolvimento. Seja do ponto

de vista tecnológico, seja do de suas grades de programações, “as televisões

públicas, abertas e gratuitas não têm condições de enfrentar concorrência das

televisões comerciais”, acredita Lima.

Segundo o autor, o modelo brasileiro de televisão nasceu comercial, como

nos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceu em países da Europa e no

Japão. Nesses países as televisões nasceram públicas ou ligadas aos governos,

portanto detentoras de grande desenvolvimento, audiência e verbas, capazes de

manter uma quantidade de programação própria e de produtores independentes

por elas financiados. E mesmo nos Estados Unidos, com o objetivo de adotar um

sistema de diretrizes para manter uma boa programação e sobrevivência financeira

(oriundos de doações de pessoas físicas e de um fundo nacional para televisões

públicas) criou-se a PBS (Public Broadcasting Service), ou seja, a reunião das

televisões públicas estaduais.

Como emissora pública, a TV Cultura foi inaugurada em 15 de junho de 1969,

dois anos depois da aquisição pelo governo paulista. Existem algumas pesquisas

24 A Fundação optou por adquirir o que de mais moderno era oferecido no mercado: câmeras de última geração com lente única e zoom, modernas mesas seletoras de imagens com equipamentos para efeitos especiais, projetores de filmes de 16 mm, aparelhos de videoteipe com dispositivo de edição eletrônica programada, etc., além da troca de local da torre retransmissora, do antigo Banco do Estado (atual sede do Banespa-Santander) para o Pico do Jaraguá (LIMA, 2008, p. 55). No governo de Laudo Natel , a Fundação Padre Anchieta consolidou sua organização física com a construção de edifícios destinados a suas atividades administrativas, técnicas e de produção (LIMA, 2008, p. 96).

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que se aprofundaram na história da TV Cultura como a pesquisa de mestrado de

Cassia Regina Goncalves dos Santos intitulada “Uma TV educativa para o Brasil:

dimensões da trajetória da TV Cultura de São Paulo – 1969/1997”25. Neste texto, a

pesquisadora encontra relação entre o incêndio nos estúdios da emissora em 1986

com a proposta de mudança iniciada ainda nessa década.

A autora explica que, no Relatório de Atividades de 1987, um dos princípios

da emissora era atender em primeiro lugar à criança desde a pré-escola até o início

da adolescência. Para isso, os programas eram livres de influências comerciais

diretas ou indiretas e das fórmulas estrangeiras, nem sempre sadias para as crianças

e utilizadas em boa parte das emissoras comercias, o que seria um princípio

formulador para a configuração da emissora nos anos subsequentes. Outro

princípio formulador foi buscar inspiração de conteúdo junto às televisões

educativas de outros países, principalmente a BBC de Londres, a TV educativa

francesa, a espanhola e a norte-americana. A esta altura, essas emissoras já

produziam programas educativos com diferentes abordagens - da ecologia à

história das pirâmides, de aulas práticas para confecção de artesanato às dicas

psicologizantes sobre comportamento em todas as idades (SANTOS, 1998, p. 66-

68).

Nesse aspecto, uma nova visão de programa educativo começava a se

configurar, cujo novo papel procurava também além de entreter, auxiliar o Estado

complementando-o nas informações escolares. A TV, para isso, mantinha vínculos

com setores da Secretaria Estadual de Educação, e garantia os conteúdos de sua

programação organizados de acordo com o currículo proposto pela própria

Secretaria. A partir desses princípios formuladores, o estatuto da TV Cultura

buscava associar “os conceitos de cultura e educaç~o como complementares”

(SANTOS, 1998, p. 68). A autora continua discorrendo a respeito:

A síntese desse processo, e de toda a história vivida pela emissora até esse período e dentro deste contexto, pode ser entendida como tentativa de encontrar caminhos ou um projeto possível de

25 Título de Dissertação de Mestrado em História Social defendido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1998.

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funcionamento. As mudanças que ocorreram ligadas ao incêndio26 (1986), a nova diretoria e as novas diretrizes apontam para um momento na TV educativa de São Paulo em que o veículo será privilegiado, ou seja, percebemos claramente a tentativa de se investir numa nova forma de “fazer televis~o”, diferente do modelo anterior que vinha predominando. (SANTOS, 1998, p. 70).

Foi, então, que as mudanças estruturais da emissora vão redimensionar o

papel da TV Cultura dentro do cenário cultural brasileiro. O público-alvo, daquele

momento em diante, passou a ser o infanto-juvenil resultado de uma audiência

satisfatória de programas infantis em anos anteriores. Segundo Santos, (1998, p. 74-

75) neste momento, a emissora se deu conta de que educação e cultura, seria algo

muito mais próximo do entretenimento, visando à informação aliada à diversão e

com alto padrão de qualidade técnica, seria uma tentativa de diferenciar a TV

pública das outras televisões. Explica-se a TV Cultura é pública porque a origem de

seus proventos vem da sociedade, do cofre público estadual, o que pode sugerir a

ligação com estatal ou oficial. Mas como vimos essa dúvida ronda a sociedade

desde quando o governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, envia à

Assembleia Legislativa em outubro de 1967 um projeto de lei para a criação de uma

fundação à promoção da educação e da cultura através do rádio e da televisão.

“Entre uma programaç~o ‘culta’ e outra que atingisse o grande público, construiu-

se o grande conflito da TV Cultura”, diz Luiz Carlos Rondini (1996, p. 4-5), em sua

dissertação de Mestrado27 “Limites de uma proposta de entretenimento: A TV

Cultura de S~o Paulo”. O pesquisador explica que:

As características próprias da TV Cultura, de ser ao mesmo tempo meio privada, porque é efetivamente administrada por uma fundação de direito privado e, meio estatal, porque foi constituída e sobrevive de recursos estatais, faz confluir para a emissora tanto as questões relativas às tevês privadas, quanto às relativas às tevês estatais. (RONDINI, 1996, p. 5).

26 O incêndio de 1986 destruiu mais de 90% da capacidade de produção da emissora. Dois estúdios que eram utilizados para gravação e apresentação dos programas ficaram completamente destruídos. Três meses após o incêndio uma nova diretoria toma posse da Fundação Padre Anchieta, com Roberto Muylaert assumindo como novo diretor-presidente. (ROCHA, 2008, p. 13). 27 Título de Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais defendido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1996.

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Esses problemas com verbas e capitais, a disputa de audiência com as

emissoras comerciais e a possível preocupação com a qualidade da programação

colocam a TV Cultura como um destinador que busca na relação com o destinatário

um fazer crer em seus próprios valores. E quais seriam, então, esses valores? Por

ora, entendemos que TV Cultura irá construir seus valores a partir: do

entretenimento (ligado ao próprio ser da emissora em poder e querer obter lucros e

dividendos com os seus programas, abdicando, pois de ficar à mercê do capital

advindo da Fundação Padre Anchieta) e de uma preocupação com a qualidade

(ligada ao fazer da emissora e identificável pela administração da grade de

programação).

A TV Cultura é o destinador do Cocoricó enquanto que na relação de

pressuposição, o público telespectador é o destinatário do programa. Nesse

sentido, acreditamos que esse destinatário não é o mero receptor como pregado

pela teoria da Informaç~o, no entanto, “ele é também e, sobretudo um ‘centro do

discurso’, que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou rejeita as

significações” (BERTRAND, 2003, p. 24). A TV Cultura é um destinador ciente deste

destinatário e, também por isso, teve a preocupação em reformular suas bases e

firmar-se como um meio de comunicação que dissemina valores sociais e culturais,

isso possibilitou que sua identidade se fixasse em toda a sua grade de programação,

como também no programa Cocoricó criado anos mais tarde. Priorizou-se a

presença de um forte apelo da “cultura geral brasileira”, com os programas da

emissora atuando como produtores e difusores dessa cultura. E para isso,

atualizando o que dizia o estatuto de 1986 (no item b do artigo segundo) que coloca

a TV Cultura como respons|vel pela “valorizaç~o dos bens constitutivos e da

nacionalidade brasileira, no contexto da compreens~o dos valores universais”.

Entendemos, pois, a valorização da cultura brasileira como uma das

finalidades desse destinador, presente em seu estatuto. Isso nos indica que os

produtos decorrentes a partir dessa finalidade permitirá uma apreensão de sentido

do público fundada por essa relação. Além "de informar, se arvora também a educar

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o gosto e sensibilidade de seu público” (SANTOS, 1998, p. 75), complementando

formação, agregando novos conhecimentos e disseminando valores brasileiros. É

no que apoiamos nossa pesquisa, na formação de sociocultural dessa criança

pautado, dentre outros, nessa valorização dos aspectos culturais brasileiros.

Entretanto, anos mais tarde, o destinador TV Cultura une aos conceitos

preexistentes de educação e cultura dentre suas finalidades, ao de entretenimento.

De acordo com o Relatório de atividades de 1992 com o objetivo de “modernizar” o

conceito de educação, os conteúdos passam a ser tratados como informações.

Visando, com isso, a ampliação de conhecimentos e mantendo uma das

características básicas da tevê que é o entretenimento e ficou conhecido como a

nova filosofia do entretenimento que deveria apresentar um conteúdo diferenciado

envolvido por uma embalagem atraente, implantada e criada pelo então, diretor-

presidente da emissora, Roberto Muylaert (SANTOS, 1998, p. 108). Essa proposta

de entretenimento não foi inventada pelo presidente da emissora, Muylaert,

encontrava-se sistematizada há muitos anos nas emissoras de televisão comercial.

"A novidade, neste caso, seria sua implementação dentro de uma televisão

educativa e sem fins comerciais”, conta Rondini (1996, p. 54). Assim a emissora

enxergou os programas infantis como uma alternativa para essa filosofia, com a

disponibilização desses programas em horário nobre, o que não tinha em outras

emissoras, mas principalmente, priorizando os aspectos técnicos da imagem.

Dentro de uma relação entre os conteúdos e a imagem, a prioridade era reequipar

as instalações da emissora.

Pensamos então nas características que já conhecemos da TV Cultura e de

seus fazeres, enquanto destinador:

A TV Cultura não é estatal, nem oficial, embora receba verba dos

cofres estaduais, também não é comercial; trata-se assim, de um

dever-fazer da ordem da prescrição;

A TV Cultura propõe programas com conteúdo que aliam os conceitos

de educação e cultura, valorizando a cultura nacional brasileira;

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privilegia a formação de um sujeito destinatário competente; neste

caso, o fazer do destinador é atualizante ligado ao saber;

A TV Cultura adiciona a esses conceitos o de entretenimento, dando

mais atenção aos aspectos técnicos e de qualidade da imagem28;

unindo, portanto, o dever-fazer, ao saber-fazer para modalizar o

sujeito à modalidade do ser.

Relacionando esses fazeres do destinador de Cocoricó¸ outras duas

características da TV Cultura são importantíssimas, e também surgiram na gestão de

Muylaert. O valor da ecologia e o valor de ser paulista. A primeira delas, o uso do

discurso ecológico como uma maneira de ressaltar a riqueza da fauna e da flora

brasileira mostra-se presente em quase todos os programas educativos. Rondini

afirma que a utilização do termo ecologia pela emissora foi uma oportunidade que o

departamento de marketing soube aproveitar e que junto com os programas

dirigidos às crianças apresentou determinada imácula na imagem da emissora. Para

o autor:

[...] a aliança do nome da emissora às crianças e ao tema da ecologia foi uma jogada bem montada de marketing. Conferia a TV Cultura certa pureza e um ar nobre, além de ser coerente com as preocupações na faixa de público que a emissora alcança. (RONDINI, 1996, p.98).

A utilização desse valor o atualiza enquanto destinador, assim com o uso de

outra característica, à referência ao “paulista”, com a cidade de S~o Paulo tendo

especial destaque na produção. Santos (1998, p. 118) explica que em primeiro plano,

ganharam distinções os problemas do cotidiano de uma cidade do porte de São

28 A introdução dos modernos equipamentos da Ampex, adoção do sistema Betacam e, principalmente a instalação da nova antena no Sumaré (1992) possibilitaram que no ano seguinte a TV Cultura se transformasse em Rede Cultura, com a obtenção da concessão de um canal de transmissão no satélite Brasilsat. Com a transmissão via satélite, a programação da TV Cultura se impôs às demais televisões públicas estaduais que não tinham recursos técnicos nem financeiros para produzir uma programação completa nos horários disponíveis, passando assim, a adotar a programação da Cultura, constituindo uma rede nacional de televisão educativa e cultura (LIMA, 2008, p. 212).

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Paulo, que se transforma em palco e cenário para o desenvolvimento desses temas,

os quais se transformam em produções; como em Cocoricó na cidade29.

Eis que ao longo dos anos 90, a TV Cultura adquire audiência e credibilidade

de seus programas infantis e é nesse cenário que em 1996 é criado o infantil

Cocoricó.

1.5 “Puxa, puxa, que puxa”... Cocoricó

A palavra cocoricó no dicionário francês Le Petit Robert, no Dicionário Barsa e

no Houaiss de língua portuguesa tem o mesmo significado: onomatopeia criada por

imitação do canto do galo. Do verbo cocoricar que quer dizer soltar a voz, cantar;

possui algumas oscilações de grafia como cocoricô e cocorocó. O cocoricó é o canto

do galo em seu sentido figurado que avisa sobre o amanhecer do dia, ou da hora30

do dia (como diz a letra da música da vinheta de abertura “t| na hora do Cocoricó”).

O galo, ao cantar, está avisando que é aquele território. O canto do galo anuncia a

rotina do passar das horas, de um novo dia que está começando e junto dele: as

obrigações e deveres; bem como a diversão e o entretenimento. Cocoricó tanto é o

canto do galo que avisa dos deveres de cada um, como também aquele que traz o

entretenimento.

29 Embora nas outras temporadas do Cocoricó não existissem locações externas, como na temporada Na cidade, os personagens moradores da zona rural têm um forte sotaque característico do interior desse estado, com forte acentuaç~o dos “erres”. 30 Os galos, assim como outras espécies, possuem um controle sobre o seu território, que normalmente inclui uma população (galinhas, pintinhos) e o espaço físico (o galinheiro). Em um galinheiro normalmente, só existe um único galo, pois, a competição por domínio do território é tanta que dois ou mais galináceos machos já seria motivo para uma disputa até a morte em busca da liderança, até se restasse apenas um. Os galos impõem sua autoridade por meio de várias características, como inchação, maior coloração da crista e, é claro, o canto, que serve como alerta para assustar qualquer desafiante. Eles possuem hábitos diurnos, ou seja, estão acordados de dia e dormem durante a noite. Os galos despertam assim que os primeiros raios solares surgem. Assim que acorda, o galo precisa avisar para os concorrentes que ele continua vivo e que ele está no comando. O canto dos galos tem função de assustar eventuais desafiantes (disponível em http://diariodebiologia.com/2010/07/por-que-os-galos-cantam-ao-amanhecer/, acessado em outubro de 2009).

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Na poesia Tecendo a manhã, de João Cabral Melo Neto, “um galo sozinho

n~o tece a manh~”, precisa de outros galos cantando em outros galinheiros e os

gritos v~o se transformando num “entreter” para todos. O Cocoricó é o grito do

galo que vem entreter, mas também é a expressão cantar de galo que em nosso

idioma significa comandar e tem como antônimo obedecer. Se o canto do galo

servia como um relógio para o mundo antigo, temos em Cocoricó, um grito de

comando que anuncia e avisa que está na hora de assistir ao programa, o território

de Cocoricó. Tanto que na temporada 2009/2010 que se passa na cidade grande, o

nome do programa passou a ser Cocoricó na cidade, incorporando o território –

agora outro, o da cidade - ao próprio nome do programa. O nome já é o programa e

a história que será contada, pelo nome são dadas as relações do garoto Júlio e os

animais da fazenda.

Dentro do universo infantil, a palavra Cocoricó, significa:

- o nome do programa;

- marca de diferentes gêneros comunicacionais;

- marca de artigos de consumo;

- efeitos de sentido construídos na relação com o espectador, com a

possibilidade de criação de uma identidade sancionada positivamente .

Qualquer contato com o nome ou marca do programa produz no

enunciatário um sentimento de pertença àquele universo de Cocoricó, seja no

campo, na cidade, ou em qualquer outra cultura.

Essas observações sobre o nome Cocoricó nos permite entendê-lo nessa

contextualização histórica da televisão, dos programas infantis e da TV Cultura, para

então, conhecermos como foi criado. Cocoricó é uma produção brasileira criada em

1996 pelo canal de televisão – TV Cultura. A figura do boneco, o garoto Júlio foi

criado pelo artista Fernando Gomes, anos antes, em 1989, para um especial de Natal

chamado Um banho de aventura. Para integrar a turma do Cocoricó, Júlio passou

ainda por um quadro do Rá-Tim-Bum, Senta que lá vem história, para então no ano

de 1996, ganhar seu próprio programa, um menino vindo da cidade cujos melhores

amigos eram os animais da fazenda. O presidente da emissora, na época de criação

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do programa, lembra que sempre pensou em fazer um programa que revelasse às

crianças da cidade o mundo rural, das fazendas, “n~o como um suporte para o

conhecimento do universo, como fez Monteiro Lobato, mas, com mais humildade,

levar às crianças a pequena revelação de uma cocheira ou de um galinheiro, um

mundo que a criança citadina desconhece”. Conta o presidente que pensou sobre

um programa assim quando o amigo José Mindlin lhe contou uma história.

Num fim de semana ele levou seu neto menor a uma fazenda de um amigo. Num determinado momento, o neto viu uma galinha parada, completamente parada. E ent~o pediu ao avô: ‘vovô, d| corda na galinha que acabou a pilha’. Vejam só, para aquele menino, cheio de oportunidades, filho de uma importante família,

galinha era apenas um objeto de loja de brinquedos. (LIMA, 2008, p. 222).

De acordo com o site InfanTV, especializado em programas de televisão para

crianças, com o fim do programa Glub Glub, em meados de 1996, a TV Cultura estava

à procura de outro personagem para preencher sua grade de programação infantil.

A melhor proposta, que se encaixou com os ideais da época, foi um programa de

bonecos cujo ambiente seria rural, de uma criança se relacionando com seus

melhores amigos: os animais de uma fazenda. Assim, Júlio foi lembrado para

interpretar esta criança do Cocoricó. A partir daí, aconteceu o desenvolvimento do

perfil psicológico dos outros personagens e a definição de quem criaria e

confeccionaria os bonecos31. Com o programa idealizado, Fernando Gomes criou os

outros bonecos da fazenda e foi encarregado de atuar como Júlio. Na primeira

temporada do programa, eram apresentados desenhos animados comprados de

emissoras estrangeiras. Foi apenas em 2002, que o próprio Fernando Gomes foi

convidado pela emissora a também dirigir o programa32. A mudança na direção

transformou Cocoricó num programa sem a inserção de desenhos e, trouxe novos

cenários, bonecos e os clipes musicais.

31 Disponível em http://www.infantv.com.br/cocorico.htm, acessado em agosto de 2007. 32 Cocoricó que já vinha chamando atenção positivamente dos críticos de TV, teve sua aceitação pelo público, com aumento na audiência e sucesso com a venda de DVDs.

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Cocoricó pode ser considerado um dos carros-chefes da TV Cultura, como um

programa bem-sucedido e ganhador de prêmios. É dado pela crítica como um

programa que conseguiu aliar o entretenimento a conceitos pedagógicos. No ano

de estreia, Cocoricó foi considerado o melhor programa infantil pela APCA

(Associação Paulista de Críticos de Arte). Em 2004, ganhou o prêmio de melhor

programa infantil para crianças de zero a seis anos no Festival Prix Jeunesse

Iberoamericano, no Chile. O programa é ambientado numa fazenda, onde Júlio foi

morar com os avós. Na fazenda, ele conhece os animais que lá vivem: as galinhas

Lilica, Zazá e Lola, o cavalo Alípio, a vaca Mimosa, os arquinimigos Dito & Feito, o

papagaio Kiko e ainda a índia Oriba que mora numa reserva perto de Cocoricolândia,

cidade onde está localizada a fazenda. “Os personagens apresentam o cotidiano do

campo e a cultura do interior do país às crianças. Júlio é o neto dos donos de uma

fazenda, que deixa a cidade para morar com os avós e fica amigo dos animais que ali

vivem”, explica IAKI (2000, p.91), pesquisadora que também escreveu sobre o

Cocoricó alguns anos atrás.

FIGURA 1 – As diferentes temporadas de Cocoricó: cenário e bonecos antigos; a turma do Cocoricó

na temporada 2008; Alípio, Júlio e Zazá chegando à Cidade grande na temporada Cocoricó na Cidade

Através das histórias vividas por esses personagens e outros, Cocoricó

aborda temáticas que incentivam a criança a lidar com valores e situações comuns

da vida social, como, por exemplo, as obrigações e deveres, as amizades, as

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descobertas, etc. Esses valores são tematizados nas narrativas vividas pelos

personagens da fazenda. Nas primeiras temporadas – 2003 a 2007 - a temática

principal do programa era restrita ao dia-a-dia da fazenda. Mas nas duas últimas

temporadas, Júlio foi conhecendo cada vez mais os temas relacionados às cidades,

até finalmente na temporada de 201033, ser lançado o Cocoricó na cidade, quando

alguns dos bonecos saíram da fazenda e foram passar férias na Cidade Grande.

Além de ter recebido críticas positivas e uma audiência relevante, Cocoricó se

configurou como um dos principais produtos da Cultura Marcas, empresa

pertencente à TV Cultura. Atualmente, o programa conta com seis temporadas

somando mais de 90 episódios.

Outros temas como cidadania, cultura brasileira, ecologia, tecnologia são

utilizados nas narrativas. Essas temáticas perpassam os episódios e são

narrativizadas através das histórias vividas pelos personagens. No paiol, na fazenda

(no quarto do Júlio e na cozinha da vó), no riacho, arredores da fazenda – e outros

ambientes cenográficos – reúnem-se os personagens, animais antropomorfizados,

que possuem vida humana: galinhas, cavalo, vaca, porquinho, entre outros. Os

episódios apresentam ainda videoclipes com músicas próprias ou adaptadas de

canções clássicas infantis. O programa é composto por dois blocos, separados por

um intervalo comercial. Nos episódios há ainda um clipe musical com a temática

principal apresentada no dia34.

29 Antes de estrear na televisão, em agosto de 2009, foi lançado nos cinemas As aventuras na cidade. Cinco episódios da nova temporada foram lançados como filme. “N~o é um longa do Cocoricó. Este é um sonho que está cada vez mais próximo de ser realizado, mas pegamos cinco episódios da futura temporada e vamos exibir em primeira m~o no cinema”, explica o diretor Fernando Gomes em entrevista (disponível em http://www.bemparana.com.br/index.php?n=114628&t=cocorico-ate-a-alma, acessado em dezembro de 2009). 34 Os primeiros clipes do Cocoricó foram o carro chefe da atual audiência do programa e foram os primeiros a serem lançados em DVD. De acordo com ranking da Submarino, os DVD’s do Cocoricó ocuparam, em 2005, o quarto lugar entre os mais vendidos. (disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br /artigos.asp? cod=336ASP003, acessado em julho de 2007).

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FIGURA 2 - O garoto Júlio e seus amigos: com as galinhas, Zazá, Lilica e Lola; o cavalo Alípio; o lado

da índia Oriba; com seu primo João que veio da cidade passar as férias em Cocoricolândia

É certo que Cocoricó passou ao longo desses anos por inúmeras

transformações como troca dos bonecos, inovação de cenário e aberturas, dentre

outras, se tornou um dos programas de grande repercussão produzido atualmente

na TV brasileira. Vamos conhecer, então, algumas características dos principais

bonecos do programa.

JÚLIO: é um menino de 6 anos de idade, possui pele e olhos claros; toca um

instrumento musical: a gaita (a música) e se apresenta como aquele que canta rock rural no ‘cocoral’. Vive falando: “Puxa, puxa, que puxa”.

ALÍPIO: é um cavalo, de cor marrom, usa gravatas listradas; possui um sotaque interiorano ressaltado; é um amigo fiel, mas às vezes preguiçoso e comilão.

LILICA: é uma galinha, de rosa escuro, usa colares e fitas coloridos, é uma criança como Júlio e o papagaio Caco. É curiosa e estuda na mesma escola de Júlio.

LOLA: é uma galinha, de cor amarela, usa um lenço vermelho de bolinhas brancas na cabeça. É adulta. Gosta de ler, conversar e viajou muito trabalhando no circo como cantora e conta as histórias daqueles tempos.

ZAZÁ: também é uma galinha, é vermelha e usa óculos e laço de tule. É a galinha mais velha da turma e às vezes não tem a paciência necessária para lidar com os personagens crianças. Sempre aparece dando ordens e ditando regras e horários.

ASTOLFO: é um filhote de porco, usa fraldas. Sabe falar algumas palavras e está sempre tentando aprender alguma coisa ligada à infância na fase de 1 a 3 anos. Passa a maior parte do tempo no berço. De vez em quando chora para conseguir o que quer.

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MIMOSA: é quem fornece o leite da fazenda. É adulta e sempre tem calma e delicadeza pra explicar as coisas para os personagens-crianças.

DITO E FEITO: são dois seres (espécie de camundongos) que vivem tentando aprontar com a turma do paiol. Não se consideram amigos da turma, e por isso, estão sempre cochichando e preparando, às escondidas, as maiores confusões.

CACO: é um papagaio, criança e é o que mais apronta. Fala muito e é o melhor amigo da Lilica.

TOQUINHO: é um morcego, também criança, esperto e cheio de energia. Sempre acha que as coisas podem dar errado e vive falando “Isso n~o vai dar certo”.

AVÓS: são simpáticos, de idade, mas tomam conta dele como se fossem seus pais. Estão presentes nas brincadeiras e assistem aos espetáculos da turma. O Avô é gentil e prestativo e ajuda a Avó nas tarefas da fazenda. Ele está sempre pronto a atender as crianças quando elas pedem ajuda para alguma tarefa ou dúvida. A Avó é meiga e carinhosa, querida por todos os moradores da fazenda. Está sempre às voltas com as atividades da cozinha, onde prepara bolos, doces e lanches.

ORIBA: é a indiazinha que mora na tribo Tupi, na mata ao lado da Fazenda Cocoricó. Com suas visitas à fazenda, a turma sempre fica conhecendo um pouco mais sobre as histórias e os costumes dos índios. Tem a idade de Júlio e gosta de inventar situações e brincadeiras. Tem uma paixãozinha pelo Júlio.

PATO TORQUATO: O Pato Torquato não resiste a criar uma intriga. Ele tem o mau hábito de mentir, falar mal das pessoas e criar conflitos entre a turma do paiol.

PATA VINA: é a esposa do Pato Torquato, adora fofocar e fala pelos cotovelos. Juntos, tentam pregar peças nas crianças da Fazenda Cocoricó - mas acabam se desentendendo quando o plano dá errado. O casal mora próximo à fazenda, na beira de uma pequena lagoa.

JOÃO: é o primo do Júlio que mora na cidade e foi passar férias na fazenda. Carrega uma maleta cheia de equipamentos eletrônicos.

SAPO MARTELO: mora em um lago e vive querendo a atenção dos outros animais da fazenda. Está sempre perto de Pato Torquato e Pata Vina.

Esses actantes do enunciado de Cocoricó estão no programa desde o início

(com exceção de João, dos patos Torquato e Virna e do Sapo Martelo) e aparecem

em praticamente todas as histórias. Entretanto, com o lançamento da temporada

2009, e a ida de Júlio, Alípio, Zazá e Lilica para a cidade, houve a introdução de

outros actantes. Depois de um convite feito por João, Júlio e a turma vão visitá-lo na

cidade grande, assim se justifica a quinta temporada do programa intitulada

Cocoricó na cidade. Em geral, as temáticas dos episódios falam da diversidade da

população, valores e comportamento, opções de lazer e meios de transporte para

quem vive numa metrópole. João mora num edifício, localizado próximo de um

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beco; os valores sobre amizade e respeito ao outro continuam. Os temas

relacionados ao meio ambiente também permanecem, mas são tratados dentro do

universo urbano, abordando assuntos como reciclagem, poluição das águas, e o

trânsito. Os novos actantes que aparecem nesta temporada 2009/2010 são:

DORA: é a mãe do João. Ela é uma professora muito simpática e carinhosa

que ensina artes em uma escola pública. NOEL: é o pai do João. Ele é arquiteto, desenha casas e prédios, e trabalha

na sua mesa-prancheta. É jovem e cheio de ideias, adora aventuras e tem um fusca conversível que só usa nos finais de semana.

DORIVALDO: É um porteiro curioso, que gosta de ler notícias e opina em tudo. Vive com seu radinho de pilha para escutar a previsão do tempo e as notícias do trânsito.

RODOLFO: é o irmão menor do João. Ainda é um bebê, mas vive fazendo travessura: mexe no controle-remoto e escala o sofá.

VITÓRIA: é colega de classe do João. Esperta, cheia de ideias e gosta de jogar futebol. Adora passeios e está sempre propondo uma aventura diferente. Além disso, o Júlio fica encantado por ela.

ROTO: é um rato que mora no beco e não gosta muito de brincar com a turma. Vive mexendo em uma latona de lixo onde descobre as bugigangas mais esquisitas. Para ele, a calota velha de um carro serve de espelho pra se pentear.

ESFARRAPADO: é um cachorro vira-latas, amigo de Roto. Ao contrário do seu amigo rato, ele é bem social e conquista a molecada. Um verdadeiro GPS, ele sabe caminhos, conhece segredos da cidade e às vezes faz o papel de herói nas aventuras urbanas.

Em Cocoricó, os actantes são dispostos em vários ambientes cenográficos,

sendo esse também um dos pontos importantes a serem destacados e descritos.

Essa cenografia é vista a partir: das dimensões do estúdio de gravação e da

movimentação dos bonecos pela materialidade deles. O estúdio onde são feitas as

gravações do programa - portanto, os ambientes cenográficos da fazenda e da

cidade – foi confeccionado de modo a ficar suspenso e facilitar a movimentação dos

atores-bonecos, e dar maior profundidade às cenas. Essa maior movimentação, bem

como a profundidade das cenas aliada aos movimentos da própria câmera que

grava (até a temporada de 2010 era gravado com uma câmera de cinema 16 mm,

sendo a última temporada totalmente disponibilizada em sistema digital de alta

definição) trazem um efeito de sentido de subjetividade, de proximidade da criança

com o que está sendo assistido.

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Dessa configuração proxêmica faz parte à caracterização física dos bonecos:

dimensão corpórea, material com que são moldados, figurino, etc. Por se tratar da

linguagem televisiva, essa configuração é outro- ponto importante. Acreditamos

que essa especificidade plástica da aparência dos bonecos seja de extrema

importância, a qual iremos falar mais detalhadamente no decorrer das análises.

Em Cocoricó, os bonecos são filmados em posição próxima à câmera, dando

um efeito de sentido de que eles são grandes, ocupam praticamente a tela inteira

da TV, são sempre mostrados em plano americano ou close-up nos rostos ou nas

partes dos corpos explicitadas pelo verbal. A materialidade dos bonecos – que são

moldados em espuma – o que contribui para um “esparramar” deles na tela, que

parece ser ainda maior. Em bonecos que figurativizam humanos, como é caso de

Júlio, as mãos e pés são de uma pessoa adulta, como por exemplo, do próprio

diretor do programa, Fernando Gomes, que é quem dá vida a Júlio, e também ao

Garibaldo, do novo Vila Sésamo, dando um efeito de sentido de uma aparência

maximizada e de proximidade.

O manuseio e atuação35 dos bonecos ou fantoches requer técnica e domínio

em cena. A história dos bonecos inanimados, utilizados em cena, começa nas

cerimônias religiosas - assim como a utilização das máscaras; mais tarde os bonecos

passam a ser utilizados nas produções artísticas e nos palcos dos teatros. A relação

entre o ator e os bonecos é traçada por uma tênue linha divisória, mais ainda

quando a encenação é feita para ser assistida por crianças. A autora Ana Maria de

Abreu Amaral explica que:

A história dos bonecos é similar à das máscaras – de sua utilização religiosa a seu uso como signo plástico inanimado em cena -, podendo ser, nas mãos de um ator, a aparente e completa substituição de um personagem. Ator e boneco passam a constituir uma simbiose, uma unidade, enquanto compartilham a tarefa cênica que lhes cabe. Os bonecos, oriundos das mais diversas culturas, são muito diferentes entre si e essa diversidade os torna atraentes. Cada tipo de boneco, de acordo com o material de que é feito, com sua forma, os equipamentos técnicos adotados e a

35 O manuseio e atuação dos atores com os bonecos é chamada de manipulação, entretanto, como este termo também tem origem semiótica faremos o esforço de utilizar outras palavras ao nos remetermos a essa manipulação.

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função cênica, demanda um tratamento e habilidade de manipulação. (AMARAL, 2001, p. 12).

Amaral explica ainda que existem dois tipos de teatro de bonecos: um em

que os personagens são vistos apenas como objetos, sem vida; e outro em que eles

são vistos como dotados de vida. De acordo com a autora:

No primeiro caso predomina a percepção de sua materialidade e assim não os levamos muito a sério, pois, ao tentarem imitar a realidade, mais despertam o riso por serem grotescos; já no segundo caso, quando a percepção de vida é mais importante do que a percepção material, eles se tornam enigmáticos, são mistério, estranheza, vão além da realidade, despertam o poético. Enfim, quando se tenta copiar demais o real, o boneco tende ao clichê, é caricatura; quanto mais tenta ser real mais se deixa trair, fica falso. Mas quando renuncia à cópia e se afasta do real, aproxima-se da ideia genérica de homem, cria-se o tipo, é arquétipo, toca a essência. (AMARAL, 2001, p. 82).

Sabemos que os bonecos de Cocoricó têm suas peculiaridades, materiais com

os quais são elaborados, maneiras como são manuseados e como se comportam em

cena ou na tela da TV. Relacionando isso ao pensamento da autora, é como se os

bonecos fossem dotados de vida, como se eles tentassem despertar a imaginação

das crianças para aquele mundo ao qual pertencem. Para um adulto, a estranheza

pode ser o primeiro sentimento, mas as crianças são tocadas por um arquétipo, pela

ideia genérica do que vem a ser o homem, no que aqueles bonecos se assemelham

ou se diferenciam das pessoas que conhecem.

Como esses bonecos com forte apelo entre as crianças chegaram ao

universo televisivo e foram tão usualmente utilizados pelos programas de TV

infantis, como vemos atualmente nas emissoras brasileiras e de diversos países? Os

primeiros bonecos manipulados famosos da televisão foram os fantoches

americanos conhecidos como “Muppets”. Os fantoches foram criações do norte-

americano Jim Henson, que era ator-bonequeiro de alguns deles, como o próprio

Caco, o sapo e o Ênio do Vila Sésamo, dentre outros. Antes um pouco de Caco ou

Ênio, os bonecos criados por Henson estrelaram um show, na emissora de televisão

americana ABC, “Sam and Friends”, que ficou seis anos no ar. Em 1968, Henson foi

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convidado para outro projeto: integrar o elenco do infantil “Sesame Street”. Anos

mais tarde, em 1976, o personagem mais famoso dos “Muppets”, Caco, o sapo,

ganhou um programa próprio em que entrevistava pessoas públicas ao lado dos

seus outros amigos “Muppets”: o “The Muppet Show”. Além disso, os “Muppets”

estrelaram longas-metragens e foram assistidos no mundo inteiro. Na verdade, eles

além de ficarem famosos em diversos países, foram utilizados como exemplo a ser

seguido por equipes de produção de outros programas infantis de emissoras

diversas. Como por exemplo na utilização de bonecos e fantoches nesses

programas, como em Cocoricó, em Sítio do Picapau Amarelo, Vila Sésamo e na

maioria dos programas infantis brasileiros.

Entendemos, pois que os bonecos de Cocoricó produzem efeito de sentido

de identificação com as crianças, a partir de sua materialidade. Esse processo de

identificação será dado pelo uso da espuma ao moldá-los, pela cor com que são

pintadas essas espumas e que identificarão a raça (no caso de humanos) ou a

espécie (se é cavalo, galinha ou papagaio) de cada boneco. Além disso, esse efeito

de familiaridade com a criança é intensificado pelo uso da topologia televisual. O

movimento do boneco mais próximo ou não da câmera, instaura um efeito de

sentido de proximidade ou distanciamento, respectivamente, com a criança. Essa

identificação com o seu público destinatário fez de Cocoricó não apenas um

programa de TV, mas colocou-o na lista de brinquedos (bonecos, fantoches, mesas

infantis, jogos de mesa, etc.), de livros, DVD’s e até como personagens de apostilas

de material didático, como poderemos ver a seguir.

1.6 Cocoricó em outros meios

Desde sua criação até quase 15 anos depois, Cocoricó deixou de ser somente

um programa da TV Cultura e se transformou em diversos produtos

comunicacionais: de livros, álbuns, vídeos e DVD’s, que circulam no rádio, no teatro,

no cinema, na internet, até na escola. Tudo começou com o lançamento das

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canções dos episódios em CD, mais tarde vieram os vídeos e DVD’s com os clipes

musicais, seguidos dos episódios.

As aventuras do menino Júlio e de seus companheiros do sítio ganharam, em

2006 – em comemoração aos 10 anos do programa - a primeira versão em livro,

Cocoricó, um Amigo Especial, lançado pela Melhoramentos. "Quando começamos o

programa, pensamos em uma série de desdobramentos como teatro, cinema e

livro", diz com orgulho o diretor Fernando Gomes. Neste volume, com roteiro

assinado por Cristiane Pederiva, os leitores encontram a adaptação de uma história

que foi exibida no programa. "Na edição, respeitamos os personagens, optamos

por fotos e os bonecos são apresentados com o mesmo enquadramento da

televisão. Mesmo cenário e luz do programa original." Como tema central, foi

apresentada a questão da diferença, tema também recorrente nas histórias do

programa de televisão. O livro conta o dia em que Júlio escreveu em seu diário o

jeito especial de seu amigo Mauro. Um garoto que escreve em braile e usa bengala,

mas tem os outros sentidos bem apurados. "Optamos por fotografias no lugar de

ilustrações para que as crianças encontrem no livro os personagens que elas

conhecem", diz o diretor36. Esse foi apenas o primeiro de uma série de outros livros

com as histórias da televisão que foram lançados pela mesma editora. No ano

seguinte, Cocoricó ganhou o universo das histórias em quadrinhos, as HQ’s como

são chamadas, reuniram algumas das histórias da fazenda lançadas pela Editora

Globo.

Outro meio em que o programa se instalou foi o teatro. O espetáculo

Cocoricó, uma aventura no teatro ficou em cartaz em São Paulo, no segundo

semestre de 2008, e manteve os bonecos e vozes originais do programa veiculado

pela televisão. A história do teatro contava a aventura vivida pela turma do Paiol

quando um objeto estranho é visto nos ares de Cocoricolândia. Na tentativa de

descobrir exatamente o que andava sobrevoando a fazenda, a turma se envolve

numa aventura onde o respeito às diferenças e a solidariedade são os temas

principais. A adaptação destes personagens à linguagem teatral ficou por conta de

36 Disponível em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2006/not20060316p60729.htm, acessado em fevereiro de 2009.

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Fernando Gomes, confeccionador de os todos os bonecos e que assim como no

programa de TV, assina também a direção e concepção da peça37.

Gomes conta que o desejo de levar o Cocoricó aos palcos era um sonho

antigo, embora houvesse um grande desafio: o de transpor a atração para os palcos

respeitando os personagens o que eles s~o na televis~o. “Eu sempre me recusei em

utilizar o boneco-fantasia. Se colocássemos pessoas vestidas como os personagens,

muitas características se perderiam. Imagine, por exemplo, as galinhas – seria

impossível, para uma pessoa, ter o mesmo pescoço comprido de uma galinha”,

explica o diretor Fernando Gomes. A solução, então, foi se basear em técnicas que

permitissem a camuflagem dos atores, vestidos de preto e andando pelo palco,

movimentando os personagens. Outro cuidado de Gomes foi produzir um

espetáculo de teatro que não fosse uma reprodução do programa de TV no palco,

respeitando por assim dizer, o próprio meio e sua linguagem, neste caso: o teatro.

Essa utilização do próprio meio para dele desenvolver a linguagem a ser utilizada foi

recorrente nas adaptações de Cocoricó. Vimos primeiro no livro, agora no teatro e

também para o cinema. O cenário, então, não é exatamente o mesmo paiol do

Cocoricó. “H| uma alus~o ao paiol, mas nada t~o realístico quanto na TV. S~o

referências”, diz. O diretor também destaca que as músicas originais est~o

presentes, mas reforça que o espetáculo não podia ser caracterizado como um

musical38.

Em 2009, foi lançado o Cocoricó, uma aventura no cinema. A história conta

sobre a viagem de Júlio e os amigos da fazenda para visitar o primo João e passar as

férias na cidade grande. Gancho, explica o diretor, dado pela própria versão original

do programa. “Ser~o nossas primeiras gravações em HD, mas o mote é mesmo que

o programa mudou a cara e, por mais que a gente respeite o perfil dos personagens,

mudam os cenários, entram novas figuras e isso tudo dá outra cara para a produção.

O cinema vai pegar toda essa nova etapa”, comenta Gomes. N~o se trata de um

longa-metragem do Cocoricó, são apenas os primeiros cinco episódios da futura

37 Disponível em http://www.destaquesp.com/index.php/Cultura/Teatro/cocorico-em-uma-aventura-no-teatro.html, acessado em fevereiro de 2009. 38 Disponível em http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI12406-10527,00-TEATRO+COCORICO .html, acessado em julho de 2009.

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temporada que foram exibidos em primeira mão no cinema. Cícero Feltrin, diretor

de captação e marketing da Cultura, considera a ida de Cocoricó para o cinema uma

demanda do mercado: “a evolução tecnológica, com a gravação da série em HDTV,

permitiu essa ida para a tela grande”39.

No site da emissora em que é veiculado, da TV Cultura, Cocoricó está

presente. O site segue a programação visual do programa, mas principalmente das

capas dos DVD’s. Nele, encontra-se a descrição de cada boneco do programa, jogos

e espaço para as crianças deixarem um recado, além de vídeos e músicas.

Os bonecos de Cocoricó se aventuraram, por fim, às campanhas do Governo

Federal e da Prefeitura Municipal, já antevendo que além do destinador TV Cultura,

o programa também tem ainda um outro destinador, aquele ligado às raízes da

criação da emissora, o poder público. Os bonecos gravaram pequenos comerciais

que foram colocados durante intervalos da programação da TV Cultura sobre o

Estatuto da Criança e do Adolescente e sobre as precauções para evitar o contágio

da Influenza H1N1. Depois de março de 2010, eles entraram nas salas de aula através

do material didático, da 1a a 3a séries da rede municipal de ensino de São Paulo, em

vídeos e cadernos de atividades. Foram criados exercícios complementares à

atividade didática, com algumas sendo acompanhadas de vídeos40. O objetivo seria

o de reforçar a qualidade do ensino de língua portuguesa e matemática. O projeto

era uma parceria entre a prefeitura e a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da

TV Cultura.

39 Na época de lançamento Cocoricó: As Aventuras na Cidade estreou em 21 salas de nove cidades brasileiras, como um pré-lançamento da nova temporada. O diretor Fernando Gomes conta que apesar de estar no cinema, esse Cocoricó é televisivo porque foi produzido para TV, apesar de ter uma linguagem "de cinema". Os cinco episódios foram colados um ao outro, sem enredo, sem começo, meio e fim que amarre tudo. (disponível em http://imagememagia.blogspot.com/2009/07/agora-chegou-mesmo-nos-cinemas.html, acessado em 20 de agosto de 2009). 40O vice-presidente da Fundação Padre Anchieta e secretário de Educação no início da gestão Marta Suplicy (PT) Fernando Almeida disse que todo o material foi pensado levando em conta as dificuldades detectadas nas provas de avaliação das escolas. O projeto pode ser estendido para outros cidades e Estados, mas o material feito para São Paulo deve continuar de uso exclusivo. "Tem muitos exemplos de São Paulo: o Ibirapuera, o trânsito, as ruas. Não dá pra usar isso em outro lugar", afirmou Almeida. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/videocasts/ult10038u6906 83.shtml, acessado em março de 2010.

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Conhecemos a história do programa Cocoricó, bem como da TV Cultura e

todo o contexto em que o programa foi criado até hoje, quase 15 anos depois.

Cocoricó, atualmente, como vimos, não é apenas um programa de TV, é também

peça teatral, bonecos de variados tamanhos e tipos, decoração de festas de

aniversário, sessões de cinema, e também é um programa que veio buscando um

espaço próprio no cenário televisivo brasileiro e se afirmando como tal.

Entendemos até aqui, o quanto o Cocoricó significa na história da televisão brasileira

enquanto “fórmula” de um sucesso que deu certo, pelo menos para a emissora ao

qual está veiculado e para a equipe de criação. Além disso, o que queremos neste

trabalho, como especificado desde as primeiras páginas é conhecer os episódios,

suas narrativas, principalmente a enunciação que irá nos dizer e irá nos mostrar,

pelo conteúdo e pela expressão: os regimes de visibilidade do destinador e

destinatário e do social em que se inserem. A importância do ambiente midiático

que Cocoricó produz em sua expansão de programa televisual - para peças de

teatro, sessões de cinema, entre outros como apresentado – o coloca enquanto

destinador em um fazer sobre a audiência. É isso o que iremos examinar pelas

an|lises das vinhetas e do episódio “Pôr do sol” no capítulo a seguir, nos termos de

modalidades que desenvolvem as competências da criança espectadora para seu

atuar no social.

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Capítulo II

ACONSTRUÇÃO DE MUNDO DE COCORICÓ

Cabe ao analista descrever e explicar os mecanismos de construção do sentido, observando as relações dadas no plano do conteúdo e no plano da expressão dos textos, bem como as relações entre um plano e outro. Também compete ao analista observar as relações entre enunciado e enunciação, para recuperar não apenas o que o texto diz, mas porquê e o como do ato de dizer.

Norma Discini, 2005

Enquanto objeto semiótico televisual, Cocoricó tem um sentido, uma direção,

uma significação. Para Greimas (1976, p. 11-16) a significação define o mundo

humano, “só pode ser chamado ‘humano’ na medida em que significa alguma

coisa”, e, o que significa ser| situado por aquele que se interesse – o semioticista –

no nível da percepção, pela descrição das qualidades sensíveis de tal objeto dado

num determinado contexto. Temos, assim, um objeto semiótico entendido: pela sua

significação, dada num contexto, por um discurso ou por proposições organizadas

“cuja principal funç~o é ‘re-produzir’ e ‘re-criar’ (grifo do autor) a realidade”

(FONTANILLE, 2007, p. 16); e também por narrativa (s), cujo princípio é a

organização global desse discurso. Assim, o objeto semiótico enquanto discurso e

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narrativa identificará quais os efeitos de sentido gerados a partir de sua análise. De

acordo com o Dicionário de Semiótica, efeito de sentido significa:

1) “impressão de ‘realidade’ produzida pelos nossos sentidos, quando entram em contato com o sentido, isto é, com uma semiótica subjacente”; 2) “o termo ‘sentido’ entendido como ‘efeito de sentido’, única realidade apreensível, mas que não pode ser apreendida de maneira imediata”41; 3) o efeito de sentido corresponde à semiose, ato situado no nível da enunciação, e à sua manifestação que é o enunciado-discurso”. (GREIMAS & COURTÉS, 2008, p. 155-156).

Para, então, chegarmos aos efeitos de sentido de Cocoricó, nossa trajetória

de an|lise ser| construída a partir do percurso gerativo de sentido, “dispositivo

metodológico” segundo Bertrand (2003, p. 74) que guia os patamares de análise de

um texto na constituição de seu sentido e valores. Tais valores ao se formarem,

instalam uma visão de mundo, uma proposta de forma de vida, ou um estilo.

Greimas propõe com o percurso gerativo de sentido, três níveis de análise: o

fundamental, o narrativo e o discursivo, que se referem ao plano do conteúdo.

Entretanto, como diz Fiorin, quando se está falando em percurso de sentido:

A rigor se está falando de plano de conteúdo. No entanto, não há conteúdo linguístico sem expressão, pois um plano de conteúdo precisa ser veiculado por um plano da expressão, que pode ser de diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórico, etc. (FIORIN, 2000, p. 31).

Ou no caso do nosso objeto audiovisual, um objeto sincrético que tem mais

de uma linguagem na constituição do seu plano da expressão. Para o estudo da sua

expressão sincrética, vamos utilizar os conceitos da semiótica plástica examinando

as manifestações, em suas dimensões cromática, eidética, matérica e topológica,

que nos permitirá chegar à construção plástica do Cocoricó, das escolhas do

enunciador para plasmar em determinado arranjo plástico para o enunciatário. O

modo específico do enunciador de construir cada cena é uma dessas escolhas.

41 O Dicionário de Semiótica (2008, p. 155) explica que a semântica não é a descrição do sentido, mas a construção que, visando a produzir uma representação da significação, só será considerada validada na medida em que for capaz de provocar um efeito de sentido comparável.

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Observar cada angulação, postura dos bonecos, relações de proximidade e distância

dos interlocutores com a câmera, bem como o tratamento dado às temáticas nos

possibilitará perceber essas escolhas e o que elas irão gerar de efeito de sentido

para o enunciatário. As escolhas do enunciador dão-se pelo montar o enunciado que

só é veiculado pela organização do arranjo plástico. Oliveira define como

composição dessa manifestação as dimensões do arranjo plástico, definindo-os:

Como cor, constitui a dimensão cromática, enquanto forma a dimensão eidética. Essas dimensões são ambas constituídas a partir de matérias, materiais, técnicas e procedimentos que lhe dão uma corporeidade que, quando é apreendida por sua fisicalidade própria, constitui-se por si mesma uma dimensão distinta das demais, a matérica. Como tudo o que existe, essas três dimensões ocupam um espaço, tela, ou qualquer outro suporte, no qual são distribuídas e têm uma posição: assim uma outra dimensão, a topológica, concretiza-se pela combinatória das anteriores em um dado espaço. (OLIVEIRA, 2004, p. 119).

Dizemos, pois, que o percurso gerativo de sentido aliado à análise da

construção plástica de Cocoricó nos possibilita pensá-lo enquanto objeto semiótico.

Isso quer dizer que o Cocoricó é enunciado, é pensado, estruturado e produzido por

profissionais de sua equipe de produção e direção. São eles: psicólogos, pedagogos,

roteiristas, diretores musicais, cinegrafistas, atores-bonequeiros, entre outros. Esses

profissionais, por sua vez, são contratados pela emissora de televisão responsável

pela transmissão do programa e juntos configurando-se enquanto destinadores.

Completando esta relação, temos como destinatário o público telespectador deste

produto audiovisual. O que temos a partir disso seria um programa narrativo de

base, ou seja, o sujeito do fazer S1 (destinador-equipe Cocoricó) atribui como objeto

de valor o programa Cocoricó ao sujeito de estado S2 (destinatário-telespectador).

Relacionando o Cocoricó ao texto escrito por Greimas (1983, p. 157-159), “A

sopa au pistou como a construç~o de um objeto de valor”, compreendemos que o

programa e seu público agem de acordo com o volitivo, quer dizer, do querer-fazer,

ao contrário daquele que se propõe a seguir a receita da sopa, cuja dimensão é

cognitiva, da modalidade do saber-fazer. Para que o destinatário aceite esse

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contrato proposto de querer assistir ao programa, o destinador faz ele crer na

realização desse querer, convocando-o primeiramente, pelo uso do imperativo e o

enquadramento utilizado da câmera – em que o enunciatário é instaurado naquele

ponto fixo - na música da vinheta de abertura, por exemplo. O programa narrativo

de base – a construção do assistir Cocoricó como objeto de valor – dependerá,

assim, de outros programas narrativos dados numa articulação temporal, do

programa em si, e na relação dele com o horário inserido na grade de programação

(PN7). Temos então a seguinte hierarquização: PN1) a inserção da vinheta de

abertura; PN3) o desenvolvimento da narrativa; PN5) o desfecho da narrativa; PN6)

a vinheta de encerramento, como programas narrativos principais. Temos ainda:

PN2) as curtinhas sobre o trânsito e PN4) a inclusão do clipe musical, como

programas narrativos secundários que podem ou não ser inserido no programa.

Cada programa narrativo tem sua função enquanto programa narrativo de base ou

de uso, na duratividade de Cocoricó na programação da TV Cultura. Cada vinheta

dura em média 30 segundos; a narrativa dura 5 minutos; o clipe musical pode variar

de 1 minuto a 2 minutos e meio; e os curtinhas 30 segundos. Sendo assim, cada

episódio pode ter entre 6 minutos e 10 minutos. A emissora veicula na maioria dos

episódios um intervalo comercial entre o PN3 e o PN4.

FIGURA 3- O programa narrativo de base e os programas narrativos de uso do Cocoricó

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São esses programas narrativos que compõem cada episódio que irão

possibilitar ao destinatário apreender o efeito de sentido do Cocoricó enquanto um

produto televisual midiático. Consequentemente, o destinatário irá aderir ou não

ao contrato fiduciário, ou seja, na relação de comunicação estabelecida entre esses

dois sujeitos – destinador-destinatário a partir do objeto de valor considerado – o

próprio programa. Com o objetivo de nos aprofundarmos nesta relação, propomos

a descrição dos programas narrativos com o estabelecimento de relações entre: as

vinhetas diferentes das temporadas, Cocoricó e Cocoricó na cidade, bem como das

vinhetas de continuidade e de encerramento; a apresentação do novo lugar

instaurado pela temporada na cidade, que é o Beco, apresentados por Esfarrapado

e Roto no início de cada episódio; dos procedimentos sincréticos do episódio “Pôr

do sol” e do clipe musical; enfim, chegando às articulações e construções do

sentido. Começamos tentando estabelecer os programas narrativos como uma

maneira metodológica de construção do sentido de cada episódio do programa.

2.1 As vinhetas de abertura

A programação da TV, dos seus primórdios até o momento tecnológico que

vivemos atualmente, veio se transformando e se modificando. Se antes os

programas televisivos eram projetados a partir de sua mídia anterior - o rádio – hoje,

a Internet, as TV’s a cabo, dentre outros, continuam modificando a grade de

programação da TV, que se caracteriza pelo seu formato fragmentado, produzido

essencialmente pela edição e fragmentação de seus segmentos. A montagem

interna dos programas e a divisão estrutural deles - por meio das pausas e intervalos

comerciais ao longo de toda a programação (FREITAS, 2007, p. 78) – identificam-na

enquanto esse todo fragmentado. Por outro lado, as vinhetas e suas diferentes

funções ajudam o telespectador a entender essa estrutura fragmentada e a se situar

na programação, configurando-se assim, como um dos aspectos diferenciadores e

característicos da programação televisiva. De acordo com o Dicionário Houaiss,

vinheta significa: pequena música que se toca no início, encerramento ou reinício de

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um programa de rádio ou televisão, para identificar o programa, a estação ou o

patrocinador. Nilton Hernandes, então, lembra que as vinhetas impõem

descontinuidades na programação, dentro da estratégia de impedir qualquer

possibilidade de monotonia discursiva, “têm, portanto, a miss~o de arrebatar ou

manter a atenç~o dos ouvintes”, (HERNANDES, 2009, p. 275). A vinheta de televisão

se manifesta nos diferentes programas veiculados, novelas, infantis, telejornais,

especiais, programa de auditório, sessões de filmes, etc. Ela possui algumas funções

(portanto fazeres), cada uma com determinação própria, entre as quais: a vinheta

de identidade da emissora, a de chamada, a de passagem e a de abertura dos

programas. A vinheta é transmitida entre um programa e outro e/ou nos intervalos

comerciais. Vinheta televisiva, de acordo com Dornelles (1997, p. 44), é uma peça de

curta metragem, composta de elementos imagéticos, sonoros e mensagem de

expressão verbal, usada com fim informativo, decorativo, ilustrativo, de remate, de

chamada, de passagem, de identificação institucional e de organização do espaço

televisivo. A vinheta possui uma função pragmática: serve para chamar e avisar o

telespectador de que o programa a seguir vai começar, é um localizador da ordem

da programação televisual. Segundo Aznar:

A vinheta tornou-se um apelo decorativo imagético e sonoro, que além de identificar a emissora de forma característica, ainda tem a função de auxiliá-la a vender os seus produtos As imagens das vinhetas de abertura trazem consigo, sempre, um sistema de

imagens com narrativa específica para tal programa. (apud DORNELES, 1997, p. 44).

A vinheta possui outra função, de ordem prática e em sintonia com o próprio

programa que está iniciando. Podemos chamar de função identificadora, um

recurso enunciativo que indica o que será veiculado no fluxo televisual. A vinheta na

TV promove assim, uma relação de continuidade vs descontinuidade de duas formas:

sob a grade de programação da própria emissora; e sob o formato do programa e a

história a ser contada. Se primeiro, a vinheta comunica ao telespectador que é hora

daquele programa específico começar, depois a vinheta se responsabiliza de

novamente informar ao telespectador de que aquele programa está sendo

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interrompido seja por um intervalo comercial, seja para a marcação de uma

descontinuidade na história contada. A grande maioria dos programas infantis e

desenhos animados possuem vinheta de abertura. A vinheta está ali para emoldurar

o programa em questão, uma animação que apresenta ao telespectador o

programa (FREITAS, 2007, p. 77). Essa vinheta – como delegado do destinador -

apresenta os bonecos, o cenário, a música e ajuda a criar e fortificar um vínculo com

a criança espectadora, ou seja, ela reestrutura a descontinuidade na volta à

continuidade, tornando as passagens de um programa a outro bem identificáveis.

Por esse caráter indicador e, consequentemente, identificador, no momento em

que as primeiras batidas da música da vinheta de abertura começam, ao mesmo

tempo em que as primeiras tomadas aparecem, a criança já sabe o que virá. Elas

assimilam que a música e os bonecos ou desenhos são daquele programa X, bem

como o uso da marca que aparece ao final da vinheta é do desenho que vem a

seguir. Partindo dessa primeira relação entre o espectador e o programa, é que

entendemos que se trata da construção de um contrato fiduciário, ou seja, em que

“as duas partes sejam asseguradas do ‘valor’ do objeto a ser recebido” (GREIMAS &

COURTÉS, 2008, p.101). De um lado um fazer persuasivo do destinador e, do outro,

um fazer interpretativo do destinatário, manifestado no nível da enunciação como

um contrato de veridicção, uma relação de fidúcia entre enunciador e enunciatário.

Tal relação se baseia no dizer-verdadeiro, que instaura uma evidência, ou ainda, um

fazer-crer do enunciador (portanto um fazer persuasivo) que corresponderá ao crer

do enunciatário (um fazer interpretativo). O contrato de veridicção começa por

sensibilização do enunciatário para ver Cocoricó , esse ver o programa se

transformará num hábito e gosto pelo seguir Cocoricó e todos os seus produtos

derivados.

Por essas primeiras observações sobre a vinheta de abertura, percebemos

que pela semiótica é possível construir os sentidos de um objeto, seguindo as

marcas deixadas no que foi enunciado, pelo próprio enunciador. Então, se

voltarmos às possibilidades de análise desse objeto, veremos que as estruturas

narrativas irão guiar a relação entre sujeito e objeto de valor, enquanto que as

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estruturas discursivas irão permear a relação do sujeito enunciador e do sujeito

enunciatário. Está postulada, assim, mais uma relação semiótica pressuposta:

enunciação-enunciado. Landowski (1992, p. 222) diz que a enunciaç~o é o “ato pelo

qual o sujeito faz ser o sentido” e o enunciado, “o objeto cujo sentido faz ser o

sujeito”. São as marcas de pessoa, de tempo e de espaço, e as figuras

concretizadoras de temas que discursivizam o modo de dizer do enunciado. Assim,

o discurso n~o ser| nada mais que “a narrativa ‘enriquecida’ por todas essas opções

do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a

enunciaç~o se relaciona com o discurso que enuncia” (BARROS, 2002, p. 52). Por

isso, que voltamos a afirmar que refazendo essa “trilha” deixada pelo sujeito da

enunciação, é possível apreender o sentido do discurso.

Para adentrarmos nas estruturas discursivas desses textos audiovisuais

escolhidos, procuraremos analisar, inicialmente, as figuras do discurso utilizadas

pelo enunciador para levar o enunciatário a reconhecer “imagens do mundo”. Pela

vinheta de abertura de Cocoricó e de Cocoricó na cidade, o enunciador propõe ao

enunciatário: 1) fazer sentir que chegou a hora de Cocoricó; e, 2) fazê-lo entrar no

mundo de Cocoricó.

2.1.1 Cocoricó no campo

Comecemos pelas estruturas fundamentais, analisando primeiro a vinheta de

abertura de Cocoricó. São essas estruturas que abrigam as categorias semânticas

que estão na base da construção de um texto. Nesta vinheta de abertura, o texto se

constrói sobre a oposição semântica IDENTIDADE X ALTERIDADE, em que a

identidade do ser no campo é euforizada e a alteridade advinda com a cultura da

cidade é disforizada. A temática da vida no campo, dos animais, da natureza é

trazida pelo destinador por figuras emblemáticas do campo, das montanhas, do sol

que nasce. Enquanto que a temática do homem culturalizado, do conhecimento, é

dada pelo boneco humano Júlio, e pelos animais antropomórficos (com

características humanas), as galinhas, o cavalo Alípio e o porquinho Astolfo.

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FIGURA 4- Tomadas iniciais da vinheta de abertura: Início da vinheta com o amanhecer do dia;

as galinhas no campo à distância; as galinhas em close

As sequências de tomadas da vinheta de abertura operam pela relação fundo

e figura, ora desfocando o fundo sobre o qual as três actantes (as galinhas) são

privilegiadas pelo enquadramento e dinâmica que se dá a cena (pelo visual e pelo

sonoro), portanto são focalizadas pela câmera, ora o contrário. Além disso, os

actantes aparecem na vinheta sempre de três em três: primeiro são as três galinhas,

depois o Júlio, o Alípio e o Astolfo, as três letras ‘C’, as três letras ‘O’, e os três

actantes que aparecem na logomarca do programa ao final da vinheta. A vinheta de

abertura começa com o amanhecer de um dia. Por uma panorâmica geral, o

espectador vê a sombra das galinhas em segundo plano e um campo ainda escuro e

avermelhado que vai se clareando na medida em que amanhece o dia. A câmera

focaliza num plano geral as três galinhas, cada uma de uma cor diferente (vermelha,

rosa e amarela). A câmera se aproxima ainda mais das galinhas, que se levantam e

levantam os rostos, olhando para frente – lugar fora do texto televisual - para o

lugar do enunciatário . Através de um movimento de câmera de aproximação - o

close-up – são mostradas as galinhas focalizadas no ato de pôr os ovos, uma por

uma.

Nessas primeiras tomadas, o enunciador gera um efeito de sentido ora de

distanciamento (quando ainda não é possível ver as galinhas, o que elas estão

fazendo), ora de aproximação com o enunciatário (pelos movimentos de câmera

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que se aproxima das galinhas e elas passam a olhar diretamente de frente para a

câmera). A câmera faz ainda outro movimento, corre para a direita e logo depois se

aproxima. Esse movimento instaura a temporalidade da narrativa da própria vinheta

marcando o passar da noite para o dia e ato de pôr ovos das galinhas, ao

amanhecer. O galo que canta o Cocoricó não aparece na vinheta, no entanto, as

galinhas pondo ovos presentifica essa figura do galo.

FIGURA 5- A utilização do recurso de aproximação da câmera com os actantes: o close é utilizado em uma das galinhas; Júlio se dirige à câmera e apresenta sua gaita; Astolfo e Alípio aparecem na

vinheta de abertura

Na medida em que a vinheta avança e a música também, Júlio surge de

costas do lado esquerdo, atrás das palhas, e, logo em seguida, juntam-se a ele:

Astolfo e Alípio, que chegam pela direita da tela. Júlio sai andando com a gaita,

enquanto a letra da música em tom mais acelerado diz: “o Júlio na gaita e a

bicharada no vocal... cantando um rock rural”. Abre-se um plano americano no

campo. A câmera se volta, então, para as três galinhas que estão no campo, e cada

uma vem carregando consigo a letra “C”, que tipograficamente é uma letra cheia e

na cor verde. As letras aparecem unidas atuando como marca do programa e, um

ovo sai do primeiro ‘O’ do nome do programa e no vazamento da letra, dá lugar à

cabeça do Alípio. As galinhas aparecem com outras letras, carregando o ‘R’ e o ‘I’,

ou seja as letras que faltam no nome do programa. O segundo ‘O’/ovo do nome d|

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lugar ao personagem Júlio. E por fim, no último ‘O’ aparece a galinha Lola. A

narrativa do programa começa a ser dada para o destinatário-enunciatário pela

circularidade das letras, sem serifa, que saem da linha do horizonte entre o campo e

céu.

FIGURA 6- Sequência final da vinheta com o nome do programa:

identificação do nome do programa a partir dos ovos das galinhas; o foco é dado na marca

Durante toda a vinheta de abertura de Cocoricó, a tela do vídeo encontra-se

dividida ao meio (em segundo plano), na linha do horizonte, na parte de baixo o

verde do campo, da vegetação e na de cima o azul do céu (entre nuvens brancas). A

linha do horizonte perpassa toda a vinheta até o final dela, quando aparece a marca

do programa. Um movimento de câmera da esquerda para direita, instaura o sujeito

Cocoricó, o que indica ao enunciatário que vai começar o programa e qual programa.

Ao determinarmos os interlocutores das vinhetas de abertura - os mesmos

presentes nas histórias dos episódios dos programas - e o papel que eles

desempenham, pretendemos na verdade, identificar qual a organização narrativa

desse texto audiovisual. Barros define que:

A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever

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o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada. (BARROS, 2002, p. 16).

Pela organização narrativa, temos nos enunciados os papéis actanciais, ou

seja, os sujeitos em relação de conjunção ou disjunção com os objetos de valor e, os

sujeitos nas transformações de um estado a outro. A concepção de narrativa é,

assim, “uma sucessão de estados e de transformações nas relações entre sujeitos e

objetos” (BARROS, 2002, p. 20). Fiorin (2006, p. 27-29) fala em narrativa mínima:

“ocorre uma narrativa mínima quando se tem um estado inicial, uma transformaç~o

e um estado final”. H| dois enunciados elementares: os enunciados de estado e os

enunciados de fazer. Os enunciados de estado são os que estabelecem uma relação

de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto; enquanto que os

enunciados de fazer são os que mostram as transformações dos sujeitos de um

estado a outro. Entretanto, os textos não se caracterizam como narrativas mínimas,

ao contr|rio, s~o narrativas complexas, “em que uma série de enunciados de fazer e

de ser (de estado) estão organizados hierarquicamente”, explica o autor.

O sujeito do fazer na vinheta do Cocoricó é o Júlio, que através do ‘cocoral’

pode fazer um ‘rock rural’, como diz a canç~o, no plano verbal-sonoro, embora essa

relação também seja colocada pelo visual, quando Júlio vai acompanhando, como

que comandando as ações realizadas pelos outros personagens. É o Júlio quem

coloca os outros sujeitos a fazer: os animais antropomórficos. O Júlio é o neto dos

donos da fazenda, e sendo assim ele pode fazer, possui uma competência

pragmática em relação aos outros animais. O Júlio, apesar de morar no campo, é um

menino que já morou na cidade, então ele também possui uma competência ligada

ao conhecimento de um garoto urbano. As galinhas Lola, Zazá e os avôs de Júlio são

mais velhos que ele, e, portanto, são detentores de uma competência ligada à

experiência vivida, ao contrário de Oriba, Astolfo, Lilica que são crianças, assim

como Júlio.

Como um programa infantil, veiculado por um destinador maior a TV Cultura,

para crianças em idade pré-escolar, Cocoricó se apresenta como a busca de um

sujeito, o Júlio, pelo entretenimento, pela diversão e por um aprendizado cognitivo,

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de valores da boa conduta e de novos saberes, ligados a uma vida cotidiana no

campo. A transformação dos sujeitos é dada por esse aprendizado social do viver no

campo. Sendo assim, o enunciado de estado é dado pelo sujeito Júlio em relação de

disjunção com objeto de valor aprendizado de viver em sociedade, mas também ao

dia-a-dia de quem mora numa fazenda. Enquanto o enunciado de fazer é a

transformação empreendida pelo sujeito Júlio dessa relação de disjunção com o

aprendizado de valores sociais dado na cotidianidade através das vivências na

fazenda. A transformação do sujeito Júlio se dá pela ação de outros sujeitos, como

duas galinhas e da vaca que são adultas, bem como dos avós. Outros sujeitos, como

o porquinho Astolfo, também se encontram em disjunção com o aprendizado, neste

caso, ligados à rotina de um bebê, em temas como: o apego e dependência da mãe,

aspectos da saúde como vacinação, aspectos psicológicos como egoísmo, entre

outros. Em alguns episódios do programa existem personagens que são anti-

sujeitos, como o Dito e o Feito e também o Pato Torquato e a Pata Vina. Esses

sujeitos estão disfóricos com o objeto de valor de boa conduta e aprendizado.

Quando eles não participam do episódio, outro boneco faz o papel de anti-sujeito,

como por exemplo, no episódio em que a Lilica e o Caco passam o dia inteiro

brigando porque cada um quer brincar com um jogo diferente.

O actante Júlio está em busca de valores modais, de um poder e um querer-

fazer (aprender, respeitar); e vai ao encontro desses objetos de valor. Esse seria,

portanto, o programa de base para a aquisição de valores. Quando Júlio e os outros

sujeitos animais-crianças entram em contato com a vivência da fazenda no

ambiente rural, eles encontram a possibilidade de uma troca de experiência e

aquisição de saberes com outros sujeitos. Esse seria, portanto, o programa

narrativo de uso, resumido pela doação de valores modais do poder e querer fazer

dos sujeitos adultos para com Júlio e os outros e com a aquisição de competência

desses, sancionados positivamente quando conseguem cumprir a tarefa a ser

executada ou vencer alguma brincadeira.

Ao mesmo tempo em que os sujeitos estão em programas de busca de

competência, acreditamos que por meio desses programas narrativos se configura a

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principal relação entre destinador-destinatário, em que há uma valoração do

destinatário. Ele é considerado um sujeito competente, como diz a música da

abertura do Cocoricó, por exemplo: “quem conhece a gaita, já sabe quem está

tocando” (ver letra da música abaixo) e também quem está chegando. O

destinatário é possuidor de uma competência cognitiva de saber, ele pode-saber

quem é o sujeito Júlio e quem é a turma do “Cocoral” que está chegando.

Essa relação, portanto, potencializa uma ação proposta ao destinatário como

uma comunicação participativa, um compartilhamento de saberes. Para que isso

seja possível, os sujeitos dessa interação precisam de uma competência cognitiva,

para que possam exercer algum tipo de influência recíproca sobre suas respectivas

ações. Esses sujeitos competentes deverão assim, possuir competência modal,

como o querer-fazer, o poder-fazer e o saber-fazer. Para interagir, o sujeito tem que

compartilhar saberes. É o que acontece quando uma criança assiste ao Cocoricó. A

criança quer assistir ao programa, ela tem disponibilidade, pois os pais deixam e até

incentivam esse fazer assistir e adquirir produtos Cocoricó, então pode fazer e

conhece como fazê-lo, sabe fazer, ligar a TV ou mudar de canal.

Além dessas pontuações feitas, devemos considerar a vinheta enquanto

objeto sincrético e pelo seu verbal sonoro, temos a letra da música de abertura que

diz:

Quem conhece a gaita, já sabe quem tá chegando, Quem conhece a gaita, já sabe quem tá tocando, Júúúúlio... Patas de cavalo, dança de galinha, É o Júlio chacoalhando e Olha o cococó começando Tá na hora do Cocoricó Tá na hora da turma do Júlio O Júlio na gaita e a bicharada no vocal Cantando rock rural Cocoricó O Júlio na gaita e a bicharada no coral Cocoricó Cocoricóóóóóó....

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A melodia da música é calma, branda, indicativa do dia que acaba de

amanhecer. Na medida em que os actantes vão aparecendo e as imagens vão sendo

exibidas até se aproximar do final da vinheta, a música vai send0 acelerada até

terminar com o nome do programa, repetido por mais uma vez e com a entonação

da última sílaba estendida. Os verbos da letra da música de abertura estão no

gerúndio, determinando o acontecer da ações (ver letra, os verbos estão marcados

em negrito). Apenas no refrão, com a frase “t| na hora do Cocoricó...”, o verbo est|

no presente, indicando um imperativo que convoca o enunciatário. A primeira

estrofe da música dizia com certo suspense (antes de aparecer): “quem conhece a

gaita, j| sabe quem t| chegando, quem t| tocando”, o verbo tá (abreviação oral do

verbo estar na terceira pessoa do singular do presente do indicativo: está)

acompanha um verbo auxiliar no gerúndio. No refrão, o verbo tá acompanha o

substantivo hora, e é a hora de Cocoricó, quer dizer, pela letra da música (o uso do

começannndddooo intensifica mais ainda a extensão do verbo. Se pensarmos na

gramática narrativa, a espera pelo objeto de valor estar com o programa é

sancionado positivamente, ou seja, o sujeito é contemplado com o objeto e pela

convocação dos actantes que olham para o lugar do espectador - frente da tela - há

um efeito de sentido de proximidade e de convocação, que leva o espectador a um

fazer: assistir ao programa. Para que haja esse sentido, o enunciador instala um

narrador, é o narrador quem canta a música, quem faz essa convocação.

Entendemos que no compartilhar saberes entre destinador e destinatário, a

vinheta de abertura propõe uma relação de manipulação por sedução (assista, viva,

sinta o programa e tudo o que ele oferece para você “criança”, aqui você “pai ou

m~e” pode ficar tranquilo e seguro, porque apresentaremos uma visão de mundo e

juízos de valor socialmente legitimados nas histórias que os bonecos vivem). O

destinador oferece ao destinatário o entretenimento pelos seus delegados - a turma

do “Cocoral” – que organizam a narrativa de aquisição de novos saberes. O

destinatário que foi valorado, é convidado a fazer parte da turma e cantar o rock

rural. Estamos falando, assim, de um contrato comunicativo entre quem faz o

programa e quem assiste.

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A relação destinador (enunciador) e destinatário (enunciatário) pode ser

identificada neste texto audiovisual pelos procedimentos de colocação em discurso.

O enunciador (aquele que enuncia o discurso) exerce o papel de destinador-

manipulador, aquele responsável pelos valores e pela ideologia presente no texto.

Esses valores leva o enunciatário a se identificar e, portanto, a querer crer e querer

fazer, isto é, o percurso do destinador-manipulador é formado pela atribuição de

competência modal para que o destinatário creia nos valores comunicados pelo

destinador ao negociar o seu pôr em cena (MEDOLA, 2001, p.31). Esse contrato

prevê um efeito de sentido de compartilhamento desses saberes, isto é, o

destinador parece doar o objeto de valor, mas acaba por não se desfazer dele,

numa relação que se concretiza pela manipulação do destinador com um fazer

persuasivo e de um fazer interpretativo por parte do destinatário, que se estabelece

na relação comunicativa. Daí, que as ações promotoras dos tipos de interação

homologam essa estruturação dos tipos de sentido explorados para fazer ser o

destinatário criança.

Pensando ainda nesse contrato, podemos considerar que Júlio é sancionado

positivamente, pelo menos do ponto de vista dessa relação destinador-destinatário.

O Júlio é um “bom” menino e est| em busca do aprender, com uma carga valorada

positivamente. Existem actantes n~o t~o “bonzinhos”, no decorrer das narrativas,

sancionados negativamente por um destinador, e também pelo destinatário do

programa. Como dissemos anteriormente, o fazer dele está relacionado à aquisição

de competência em busca cognitiva sobre o campo, do aprender, e também do

entreter uma criança, distraindo-a e ensinando a ela valores de boa conduta. Júlio

quer, assim, ser uma pessoa correta, de acordo com as regras da boa conduta e

princípios sociais. Tudo isso possibilitado pelo estar do Júlio na fazenda, em contato

com a natureza, com os animais que são seus amigos, e na exemplaridade dos

valores cultivados na convivência com eles.

Vejamos quais são esses enunciados nas vinhetas. A vinheta de abertura do

programa Cocoricó apresenta seis actantes, são eles: Lola, Lilica e Zazá (as três

galinhas). As galinhas são as primeiras a aparecerem; elas possuem o fazer pôr ovos

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e o fazer carregar as letras do nome e, a cabeça da Lola aparece figurativizando a

última letra ‘O’ da logomarca do programa, que encerra a vinheta. S~o ainda

actantes da vinheta: o Júlio, o Astolfo (o porco que figurativiza um bebê) e o Alípio

(o cavalo). O Júlio e o Alípio também s~o os outros dois ‘O’ da marca do programa.

Como actante principal do programa, as narrativas giram em torno de Júlio e

de seu dia a dia na fazenda. Também na vinheta, temos essa narrativa proposta, são

as galinhas que fazem sua apresentação. Elas s~o o ‘nós’, que fazem parte da turma

do Júlio. O programa propõe (desde a vinheta de abertura) uma relação com o

espectador de estar junto, de fazer parte também da turma do Júlio em todos os

aspectos. O dia começa com o amanhecer; as galinhas pondo seus ovos, o Júlio com

a gaita e os outros amigos fazendo parte do “cocoral”, como se todo esse

acompanhamento fosse um convite para que o espectador também faça parte

desse conjunto; programado, assim como o dia que amanhece e as galinhas que

põem os ovos.

Na vinheta não existe diálogo entre os actantes, o verbal-sonoro é dado pela

letra e pela sonoridade da música. O que o destinatário vai escutando pela letra da

música, vai sendo visto pela imagem, simultaneamente num jogo discursivo entre as

linguagens visual e sonora. Então, por exemplo, pelas figuras dança de galinha,

chacoalhando, dado pela letra, pelo visual o enunciatário vê as galinhas

chacoalhando e dançando; o Júlio na gaita e a bicharada do Cocoricó também

presente na letra da música, pelo visual aparece o Júlio, a câmera se aproxima e

mostra a gaita dele e outros animais da fazenda. Essa reiteração entre o verbal

sonoro e o visual vai marcar toda essa vinheta e também o programa, indicando

através do sincretismo42 um ensinar por meio da linguagem televisual, que mostra e

repete, mostra e repete, buscando uma apreensão do sentido pelo enunciatário.

42Voltaremos a falar do sincretismo nas próximas páginas durante a análise do episódio Pôr do Sol e do clipe musical. De acordo com o verbete sincrético do Dicionário de semiótica (Greimas & Courtès, 1986, p. 217-219), Jean Marie-Floch diz que os objetos semióticos sincréticos se caracterizam pelas inúmeras linguagens de manifestação, como o filme publicitário, um jornal televisivo e outras manifestações culturais são exemplos de objetos sincréticos. A aproximação com esses objetos se mostrou como uma questão da tipologia das linguagens que implica no reconhecimento desta pluralidade definidora, precisamente como substância do plano da expressão, e como uma necessidade – e possibilidade – de abordagem desses objetos em um todo de significação.

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A figura do ovo que sai da galinha é focalizada no centro da tela em primeiro

plano e instaura a temática da natureza presente em todas as temporadas do

programa. O ovo figurativiza o mundo enquanto ele próprio e enquanto natureza, o

nascimento, a vida, a produção. A vinheta apresenta uma luminosidade em dois

momentos: primeiro, quando as galinhas aparecem e o dia amanhece, e tudo fica

claro, com as cores saturadas. E, depois, quando o nome do programa é formado e

salta aos olhos do enunciatário em contraste não mais com o escuro, mas com um

fundo figurativizado pelo campo e pelo céu que perde intensidade e brilha para que

apareça o nome do programa Cocoricó.

Os actantes do enunciado encaram a câmera da TV. Essa é outra

característica que aponta para o modo de construir esse texto discursivo por um

enunciador consciente de suas escolhas e de seu enunciatário, o público

telespectador. Como se estivesse frente a frente com esse público, o boneco inicia

uma intimidade com ele, que se confirma no decorrer do programa, quando a todo

o momento o enunciatário é instaurado e convidado a compartilhar os momentos

com a turma do Júlio.

Temos nesta vinheta a oposição semântica no plano do conteúdo

IDENTIDADE (o ser da criança) vs ALTERIDADE (fazer social do campo) reiterado

pelo plano da expressão CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE, presentificada

pelo:

a) formante cromático: a linha do horizonte que divide o verde do campo, e

também das letras “C” em oposiç~o ao azul do céu e das letras “O”. A letra “I” na

marca do programa que aparece no final da vinheta figurativiza o próprio programa

enquanto entretenimento, o vermelho da letra e o amarelo do pingo são as cores

das galinhas. Entre os opostos campo e cultura, trazidos pelo trabalho, pelo ato de

produção compartilhada no fazer das galinhas de pôr ovos e depois de carregar as

letras. O formante cromático opera sob a oposição colorido das galinhas, de Alípio e

de Júlio vs a única cor do porquinho bebê Astolfo, do lugar de produção de ovos e

da palha vs os actantes, detentores de determinados valores culturais ou sociais,

como o Júlio que sabe tocar gaita. Além desses dois primeiros, o cromático organiza

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o passar das horas, do escuro avermelhado da noite para o colorido iluminado do

amanhecer do dia. As oposições colorido vs neutro e claro vs escuro funda a

categoria CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE, reiterada também nos demais

formantes;

b) formante matérico: dado pela impressão de textura que se tem a partir das

imagens selecionadas para compor a vinheta, o mato dá uma textura rugosa, assim

como as nuvens que compõem o céu, ao contrário, o ovo e os bonecos,

confeccionados com espuma que aparentam uma textura mais lisa, mais

trabalhada;

c) formante eidético: as formas presentes na vinheta operam na circularidade

das montanhas, das letras, do ovo, e dos próprios actantes que são arredondados vs

a retidão da linha do horizonte que funciona de fundo para toda a vinheta. As

formas circulares traduzem a natureza e aquilo que provém dela, enquanto que a

linha do horizonte marca o cultural, provido pela ação do homem;

d) formante sonoro: tratando do audiovisual, nesta vinheta, o sonoro é

trazido pela canção (melodia e letra) da vinheta de abertura, que instaura uma

oposição entre a música cantada num tom e o prolongamento de algumas palavras,

como a entonação das palavras “começando”, “turma do Júlio” e da última palavra

da música, o nome do programa;

e) formante topológico: responsável por organizar os outros formantes na

tela da televisão a ser vista pelos espectadores. Nesta vinheta foram utilizados

recursos de movimentação da câmera que filma numa perspectiva centralizada para

gerar os efeitos de sentido desejados, a aproximação e o foco dos actantes

(galinhas, Júlio, ovo, letras, logomarca do programa) vs o distanciamento e

panorâmica da figura do campo (fundo).

Vimos que esses formantes promovem o sentido da vinheta de Cocoricó no

campo. Será que a oposição dada pelo plano da expressão e reiterada pelo plano do

conteúdo é novamente proposta pela vinheta de abertura de Cocoricó na cidade? O

enunciador manteve o efeito de sentido de compartilhamento de saberes? O Júlio

continua sendo o sujeito da transformação? Veremos no próximo tópico.

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2.1.2 Cocoricó na Cidade

A vinheta de abertura de Cocoricó na cidade – em seus momentos iniciais - já

instaura no enunciatário uma diferença: uma mudança de isotopia, tematizada pela

figura do trem que sai de Cocoricolândia para a Cidade grande, transportando

alguns dos bonecos principais – Júlio, Zazá, Alípio e Lilica – mas deixando os outros

na fazenda – como Lola, Caco, Astolfo, Oriba, etc. Assim, a vinheta instala um novo

lugar para os actantes do programa que saem de férias da zona rural onde está

localizada Cocoricolândia para a zona urbana, a Cidade Grande onde mora o primo

de Júlio, o João. Essa mudança pode ser observada em figuras como o trem, a

estação, as malas de viagem, etc. Todas essas figuras apresentam uma outra

característica são como papéis colados um a um que vão se unindo e mostrando o

que são: primeiro, as montanhas sobrepondo-se a elas, o paiol e a casa da fazenda,

os bonecos, a estação, o trem, a chegada à estação da cidade, a cidade, Cocoricó.

A zona rural aparece figurativizada por montanhas, um verde que vai

ocupando toda a tela, árvores e folhas, o paiol, a casa da fazenda e os bonecos que

lá permanecem na fazenda. Já a cidade é apresentada apenas no fim da vinheta

quando prédios coloridos vão aparecendo. A vinheta com o trem que sai da fazenda

com Júlio, Alípio, Lilica e Zazá. A linha do trem atravessa montanhas, e vai seguindo

em direção ascendente, por ora, simula um looping de uma montanha russa e logo

em seguida volta a subir, subir, subir, figurativizando a verticalidade dos prédios das

cidades grandes, em detrimento da horizontalidade da vida rural, no campo.

Inclusive as bases dessa linha de trem vão se formando gradativa e

ascendentemente. Uma seta de cor vermelha aponta para a direção contrária que o

trem segue, portanto, se o trem está indo em direção à cidade grande, a seta

aponta para a direção da fazenda. Se na narrativa da vinheta de Cocoricó tínhamos o

sujeito Júlio em conjunção com a cotidianidade da fazenda, portanto, com a

natureza, nesta vinheta a natureza continua sendo objeto de valor, assim como a

oposição semântica de base temos SIMILARIDADE vs DIVERSIDADE. O similar está

na natureza do campo, figurativizada pelos morros que aparecem nas primeiras

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imagens (seria o Pico do Jaraguá em São Paulo ou o Pão de Açúcar no Rio de

Janeiro?), nas palhas que voam, nos ambientes cenográficos da fazenda, já a

diversidade é dada pela cidade, seus prédios, carros, habitantes, ruídos, etc.

FIGURA 7 – A vinheta de abertura de Cocoricó na cidade: os que ficam na fazenda; a estação de trem de Cocoricolândia; Júlio encara o telespectador; seta aponta na direção contrária a que o trem vai; o trem que sobe marca a verticalidade que será encontrada na Cidade Grande; os personagens dentro da cabine do trem novamente encaram o telespectador

As cores da cidade são tonalidades de cinza, até que o universo de Cocoricó

se presentifica pelos actantes que chegam; o verde do campo se torna o colorido da

cidade. Os vagões do trem possuem luzes que piscam conforme os movimentos do

meio de transporte. Essa luz também aparece brilhante no centro da tela, quando

Júlio, Zazá e Alípio são focalizados dentro de um vagão, num ambiente compacto,

fechado (ao contrário dos ambientes abertos figurativizados pela vinheta anterior),

exemplificando uma situação que eles irão viver na cidade grande: os espaços

fechados dos apartamentos. A linha percorrida pelo trem dada na descontinuidade

das curvas é finalizada pelas figuras dos bonecos que caem de paraquedas na

estação (aparece escrito numa placa) da cidade que instaura a verticalidade numa

vista distante e a horizontalidade numa vista próxima, quer dizer, o conhecer é pela

experiência da urbanidade. Eles chegam à estação e encontram com João. Uma

primeira árvore ao fundo da estação traz o verde para a Cidade Grande, os prédios

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de cinza vão ficando coloridos, formando uma trilha cujo final é a marca do

programa que aparece no término da vinheta, em diagonal levemente ascendente,

por entre os telhados das casas.

O sujeito da transformação na sequência narrativa da vinheta é o trem, que

leva Júlio e alguns animais de Cocoricolândia para a Cidade Grande. O objeto de

valor passa a ser a possibilidade de estar na Cidade Grande, embora com o Cocoricó,

com a natureza. O sujeito Júlio continua em busca da aquisição de competência de

saberes da boa conduta social, mas esses saberes não são mais condizentes apenas

com a cotianidade da fazenda, mas com o cotidiano de uma grande cidade,

portanto, de um ambiente urbano. No episódio de Cocoricó na cidade, aqueles

animais da fazenda que não foram para a cidade, conversam com os que estão lá

pelo laptop; eles dialogam entre si, com as diferenças e semelhanças existentes e

marcadas pela narrativa. Nas narrativas de Cocoricó na cidade ganham espaço as

temáticas: do trânsito, da moradia, dos estádios de futebol, da imigração, da

poluição, entre outras que marcam esse ambiente.

O trem sai de Cocoricolândia ainda de dia com suas luzes já acesas. Indicando

o passar das horas, o dia se transforma em noite, marcada pelo escurecimento da

tela, com tons escuros de azuis contrastados às luzes amarelas do trem. Os actantes

que antes apareciam soltos nas janelas dos vagões, agora estão confinados nos

compartimentos internos do trem, embora a luz amarela continue dentro desse

compartimento na lâmpada que os ilumina. O trem vai subindo e aqueles que

saíram de Cocoricolândia finalmente chegam à Cidade Grande, eles caem na estação

de paraquedas. Esse ato de cair de paraquedas figurativiza a aventura e o

desconhecido que será sair do ambiente rural da fazenda para o ambiente urbano

da cidade grande. O movimento do campo para a cidade é, portanto, sancionado

positivamente.

A casa, o paiol, até mesmo o trem são feitos de madeira, enquanto que, nas

construções da Cidade Grande é destacado outro matérico, os tijolos, as telhas que

constroem os prédios. Os vagões dos trens são verde, azul e rosa, mas na sequência

final da vinheta, há um predomínio das cores azul e rosa, figurativizando os gêneros

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masculino e feminino que aparecerão nas histórias das narrativas vividas por Júlio e

seus amigos na Cidade Grande.

Outras figuras vão marcar outras diferenças e/ou semelhanças entre as duas

vinhetas. O relógio, ao fundo da estação que também se movimenta sincretiza o

que a música no verbal-sonoro diz: “t| na hora do Cocoricó, t| na hora da turma do

Júlio”. O relógio figurativiza a rotina das crianças, o passar das horas, como o

amanhecer do dia figurativizado na outra vinheta. O relógio da estação que marca

as horas do dia caracteriza o passar do tempo, é como o amanhecer que avisa as

galinhas de que chegou a hora de pôr os ovos, de trabalhar (carregar as letras), e

relaciona-se com o próprio dia a dia dos telespectadores, do tá na hora de assistir

Cocoricó.

Enquanto na vinheta do Cocoricó o ritmo sonoro era mais lento, na do

Cocoricó na cidade o ritmo é dado pela aceleração da melodia e pelo som da

guitarra, instaurando uma temporalidade do presente, do atual. Os movimentos

ascendentes e descendentes do trem dados pelo movimento de câmera para a

direita, mas principalmente nos recursos de fusão das imagens de maneira intensa e

rápida, marca a velocidade acelerada desta vinheta. O ritmo, então, marca a relação

de continuidade entre as tomadas (são mais rápidas com várias fusões) bem como

dos movimentos de câmera de aproximação e afastamento unidos ao sonoro dos

ruídos colocados como fundo ambiente da música (vagões nos trilhos, batidas nas

sinaletas, caindo de paraquedas, buzinas, motores de carro, turbinas de avião)

propõem esteticamente mudanças ao espectador. A melodia da música é

caracterizada por um instrumento de corda – a guitarra - que intensifica a

velocidade da música, finalizada com o nome do programa “Coocoooricóóó”’, ao

mesmo momento em que pelo visual é mostrado o nome do programa. Tais

disposições levam o enunciatário-criança para o “universo” do Cocoricó, para o

querer assistir o programa Cocoricó, objeto de valor, como realizado na vinheta

anterior. O enunciador narrador que canta a música, não com uma voz, mas em

coro vai colocando para o enunciatário um efeito de sentido de proximidade, dele

como co-presente, com o objetivo de fazê-lo cantar para acompanhar a música.

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Entretanto, ao mesmo tempo em que o enunciador projeta a “voz” do enunciat|rio

no texto, ele também imperativamente diz “olha, o Cococó t| começando”, numa

convocação por intimidação a fazer uma parada e assistir ao programa.

No nome do programa da vinheta de Cocoricó, a letra “O” figurativiza o ovo,

que aparece em toda a vinheta, em Cocoricó na cidade, a letra “O” é azul, mais

parecida com o planeta Terra. Os actantes que estão dentro da letra também

mudam, enquanto que na primeira vinheta as letras “O” eram ocupadas,

respectivamente, por Alípio, Júlio (ao centro) e Lola. Na vinheta de Cocoricó na

cidade, sai Lola (a galinha que conta as histórias vividas em viagens pelo mundo,

portanto do valor do lúdico) do último “O” e entra Zazá, como sujeito com papel

actancial de adulto (a galinha que figurativiza a autoridade, a mãe de todas as

galinhas) que acompanha os outros sujeitos crianças até a Cidade Grande.

FIGURA 8 – Sequência final da vinheta de Cocoricó na cidade com o nome do programa:

Júlio e sua turma estão na estação da Cidade Grande; depois, a Cidade Grande colorida e o nome do programa

Numa relação de complementaridade temos a configuração plástica da nova

vinheta com a seguinte oposição semântica do plano do conteúdo: SIMILARIDADE

(não-identidade; o ser humano em suas descobertas e vivências) vs DIVERSIDADE (a

vida numa Cidade Grande), reiterados no plano da expressão por CONTINUIDADE vs

DECONTINUIDADE. Comparando as duas vinhetas de Cocoricó, os actantes

apareciam nos mesmos ambientes cenográficos que seriam utilizados no decorrer

do programa, o campo, o paiol, a maquete da fazenda, já na vinheta de Cocoricó na

cidade, o enunciador opta por fazer uma colagem, como citado anteriormente. Ao

fazer isso, o enunciador já está dizendo ao enunciatário que essa temporada é

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marcada pela viagem deles a um outro espaço que não o da fazenda, que deve ser

vista como uma descoberta, uma brincadeira, no sentido do brincar de fazer

colagens exercido por qualquer criança. Os actantes não são os bonecos da primeira

vinheta, são pequenos recortes de papéis de Júlio, Zazá, Lilica, Alípio e João que se

movimentam aleatoriamente como um pedaço de papel. Temos a seguir a descrição

dos formantes do plano da expressão desta vinheta:

a) formante cromático: o uso das cores é marcado na Cidade Grande pelo

monocromático e depois pelo cromático, já com a presença de Cocoricó. A linha –

antes, na vinheta anterior, do horizonte, é substituída pela linha do trem que leva os

actantes da fazenda para a cidade, do verde da vegetação para o cinza dos prédios,

que só se transforma em colorido depois que Cocoricó passa. A linha do horizonte

era percebida pela sobreposição das paisagens do campo e da vegetação, já a linha

do trem tem como cor uma tonalidade de marrom, e vai se construindo do campo à

cidade;

b) formante matérico: a mesma impressão de textura presente na vinheta

anterior aparece nesta, que coloca a oposição rugoso vs liso, só que desta vez, a

lisura é trazida pelo campo vs o rugoso dos tijolos, telhados e madeira das

construções;

c) formante eidético: quando ainda está na estação de Cocoricolândia, o trem

mantém-se na mesma linha do horizonte da primeira vinheta, retilínea que marca a

divisão do campo e da cidade. Entretanto, na medida em que o trem vai se

distanciando da fazenda, a linha que segue se transforma em sinuosa, com looping,

curvas e até mesmo vertical, como os prédios da cidade;

d) formante sonoro: apesar de ser a mesma letra da vinheta anterior, pelos

efeitos sonoros ambientes colocados como fundo à canção, aliado ao som

sobressaltado e estridente da guitarra – ao contrário da anterior que eram os

instrumentos de sopro, mais graves – trazem nova significação à música, agora com

ruídos de automóveis, avião, etc, característicos de uma grande cidade.

e) formante topológico: a mesma relação distanciamento/panorâmica vs

aproximação/foco, instaurada na vinheta anterior, é apresentada nesta, os actantes

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nas janelas dentro das cabines vs os actantes que caem de paraquedas na estação

da cidade; assim como pelos compartimentos interno vs externo. Apesar de que a

dinamicidade – dada às fusões e sobreposições mais aceleradas entre uma cena e

outra – aliado ao ritmo da música - menos brando que a anterior – operam uma

significação mais abstrata, ou seja, não tão icônica como a anterior.

Da análise das duas vinhetas, apreendemos as seguintes relações:

Cocoricó

Cocoricó

CONTEÚDO EXPRESSÃO

Identidade

vs

Alteridade

Identidade

vs

Alteridade

CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE Formantes

Linha do horizonte

Verde do campo/letras “C” vs azul

do céu/letras “O” (a letra I – vermelha e amarela é Cocoricó)

Cromático

Figuras

policromatismo das galinhas,

Júlio, Alípio vs monocromatismo das cores de Astolfo, do ovo e da

palha

Impressão de textura

Rugosa do mato/ das nuvens vs lisa do ovo/ da espuma que os

bonecos são feitos

Matérico

Formas

Circularidade (montanhas, letras, ovo, actantes) vs retidão da linha

do horizonte (fundo)

Eidético

Canção (melodia e

letra)

Cantado música vs prolongado

das palavras (começando/turma/Cocoricó)

Ritmo

Sonoro

Distribuição na tela

da TV

Aproximação foco dos actantes /Distância panorâmica da figura

campo; Edição contínua; desacelerada

Ritmo

Topológico

CONTEÚDO EXPRESSÃO

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Cocoricó

na

cidade

Similaridade

vs

Diversidade

CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE Formantes

Linha do trem

Verdade da fazenda vs cinza dos

prédios

Cromático

Figuras

monocromatismo vs

policromatismo dos prédios (com Cocoricó)

Impressão de textura

A lisura do campo vs o rugoso das

telhas, tijolos, construções

Matérico

Formas

Linha do horizonte (trem na fazenda) vs Linha do trem com

looping, curvas e vertical Horizontalidade das retas vs

verticalidade das oblíquas

Eidético

Canção (melodia e

letra)

Cantado música vs ruídos

ambiente; som da guitarra

Ritmo

Sonoro

Cocoricó

na

cidade

Similaridade

vs

Diversidade

Distribuição na tela da TV

Actantes nas janelas dentro das cabines vs actantes caindo de

paraquedas na estação da cidade; interno (cidade/trem) vs externo

(campo) Distanciamento/panorâmica vs

aproximação/foco; Edição descontínua, acelerada

Ritmo Topológico

As vinhetas de Cocoricó presentificam o tema da identidade do ser do campo

e, ao mesmo tempo, por contrariedade o da alteridade, ou seja, o fazer social no

campo, o estar em descobertas, o viver as fases da vida (infância, adolescência,

adulto). Temos na relação identidade versus alteridade como oposição fundamental

semântica, portanto como contrários, teremos como contradição, alteridade e não-

alteridade; por subcontrários, não-alteridade e não-identidade; por

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complementaridade, não-alteridade e identidade, assim como não-identidade e

alteridade; por fim, na relação de hierarquia temos como conjunção de não-

alteridade e identidade o campo e do outro lado, o não-identidade e alteridade,

temos a cidade. Percebe-se, pois, que todas essas relações se dão pelo tempo e

espaço escolhido da narrativa, do ser criança, estar na infância, poder brincar, querer

conhecer, e estar no campo e depois passar à cidade. Nessa passagem da natureza

do ser criança no campo para o ser criança na cidade, temos a figurativização dos

gostos e estilos próprios de uma cidade grande. O ser da cidade só é pelo fazer

social no campo. Temos essa relação pela figuratividade do campo presente na

vinheta e nos episódios da nova temporada que remete ao que é dado na relação

com a cultura do campo, ou seja, no fazer sociocultural do campo. Por fim, esse

fazer social leva às descobertas, possibilitadas nos fazeres da cidade, quer dizer, no

fazer sociocultural da cidade, e do próprio desenvolvimento etário dos actantes,

que assim volta ao ser.

2.2 As vinhetas de continuidade e de encerramento

Além das vinhetas de abertura de Cocoricó e Cocoricó na cidade, analisadas

neste capítulo, aparecem ainda nos episódios as vinhetas de passagem de uma cena

a outra, dentro da narrativa do episódio e as vinhetas de encerramento.

As vinhetas de passagem se caracterizam pela concretização de uma

dimensão plástica diferenciada na imagem audiovisual. A partir de uma imagem

estática – respeitando a dinamicidade dos planos e tomadas da linguagem

audiovisual – é colocada a imagem ou do campo ou da cidade, dependendo do

espaço que irá se instaurar a cena seguinte. No episódio “Pôr do sol”, por exemplo,

Oriba e João estão conversando sobre ver o pôr do sol do alto do prédio na cidade

grande e da possibilidade de Oriba poder assistir a esse momento pelo computador,

a imagem de Oriba que está no paiol falando no computador fica congelada, e por

cima dessa imagem vai surgindo a imagem da cidade da vinheta de abertura,

construída e colorida com o nome do programa na parte central posterior. Ao

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mesmo tempo em que surge essa imagem ela vai se abrindo, como se fosse de

papel e estivesse rasgando e, novamente, vai surgindo outra coisa, desta vez a nova

cena, já na Cidade Grande, com Vitória e Júlio passeando no Beco.

Acreditamos, assim, que essa vinheta situa o telespectador no diferentes

ambientes cenográficos do programa, para que eles possam compreender pelo

audiovisual – assim, pelo que estão vendo e ouvindo. No momento em que a

vinheta é inserida, há uma quebra, ou seja, uma descontinuidade sonora que

instaura essa descontinuidade no tempo e no espaço, entretanto uma continuidade

da narrativa. Ao entender dessa forma, o efeito de sentido é de que os actantes

passaram para outro tempo e outro espaço. No exemplo citado, marca a passagem

de Oriba que está no campo, para Vitória e Júlio que estão na cidade, se dirigindo

para o alto de um prédio para verem o sol se pôr.

Observamos ainda a vinheta de encerramento e a vinheta de identidade da

emissora. Vamos falar sobre a vinheta de encerramento presente em todas as

temporadas que avisa o telespectador de que o programa acabou. A vinheta de

encerramento do Cocoricó e do Cocoricó na cidade são similares às vinhetas de

abertura. Pensando nas similaridades e diferenças entre elas, temos:

Enquanto a vinheta de abertura é durativa, a vinheta de

encerramento é não-durativa, marcada pela velocidade e aceleração

da música, que se propaga nos cortes secos das tomadas visuais,

sendo de menor duração;

A música da vinheta de abertura e de encerramento tem a mesma

melodia, no entanto, no fim do programa, as estrofes da letra foram

modificadas. A estrofe da abertura diz: “Patas de cavalo, dança de

galinha, o Júlio chacoalhando e olha Coococó começando/tá na hora

do Cocoricó/ t| na hora da turma do Júlio...” e no final “Cococo

Cocoricó” (repete), j| a letra da música da vinheta de encerramento

diz: “Patas de cavalo, dança de galinha, o Júlio chacoalhando e olha

só o Cocoricó acabando/tá acabando o Cocoricó/ tá na hora da turma

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parar, parar, parar...” e no final “tchau, tchau, tchau Cocoricó”

(repete).

A categoria da aspectualidade marca a desaceleração (do que vai começar) vs

aceleração (do que já acabou) somada às figuras trazidas pelo conteúdo verbal

começando, tá na hora em oposição acabando, parar, tchau, nos mostra o efeito de

“convite” { criança para usufruir dos momentos com a “turma do Júlio”, de forma

mais calma e; depois um “retorno” à rotina mais acelerada, quando o programa

termina.

2.3 Curtinhas: Esfarrapado e Roto nos apresentam ao Beco

Os episódios da quinta temporada do Cocoricó veiculados em 2009 e em 2010

trouxeram novidades para o destinatário do programa, começando pelo nome, que

como vimos acrescentou o na cidade, dessa forma, já deixando explícito ao público

que o Cocoricó não estava mais no campo, em Cocoricolândia, mas na cidade

grande. Outra novidade, como também já vimos, foram o aparecimento de novos

personagens que moram nessa cidade grande, dentre eles, um rato e um cachorro.

Trata-se, portanto, de mais um fazer crer ao enunciatário dos valores colocados

pelo enunciador deste programa.

Os episódios, nesta temporada, começam por um curto diálogo 43 de

aproximadamente 30 segundos entre esses dois bonecos. Começamos, assim,

pensando nesses trechos inicias dos episódios do programa Cocoricó na cidade pela

figuratividade, ou melhor, como o sentido pode ser dado a partir da apreensão

dessa figuratividade. Como diz Greimas: a figuratividade “é a tela do parecer”, é a

porta de entrada para a significação. E será pela figuratividade proposta pelo

enunciador que estaremos chegando aos efeitos de sentido dados pelo programa.

As figuras são apreendidas pelo plano da expressão e homologadas por figuras do

conteúdo. A análise plástica desse objeto significante se dará pela descrição

43 Esse diálogo é inserido antes da vinheta de abertura ir ao ar, portanto, trata-se de outro programa narrativo do episódio do dia.

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enquanto texto visual, portanto, de suas figuras significantes e verossímeis, no

estabelecimento de contratos de veridicção e de fidúcia entre os sujeitos da

comunicação (OLIVEIRA, 2004, p. 15). Mas também de seus formantes (cromático,

eidético, matérico, topológico, como na análise das vinhetas no item anterior),

enquanto possibilidade de chegarmos aos seus efeitos de sentido, como diz

Landowski àquelas constantes subjacentes articuladas em profundidade ( 2004, p.

103). Oliveira explica ainda que:

Entendemos que o adjetivo “pl|stica” pode abranger o estudo do plano da expressão das manifestações visuais distintas, quer as artísticas, quer as midiáticas, quer as do mundo natural. Considerando que um texto visual, qualquer que esse seja: arquitetura, escultura, paisagem natural ou pintada, desenhada, gravada, fotografia, é construído por um arranjo específico de sua plástica, organizada por mecanismos estruturais particulares de seu sistema com as suas regras, resultando em uma dada sintagmatização das unidades mínimas, optamos por denominar plástica a semiótica que se ocupa da descrição do arranjo do plano da expressão de todo e qualquer texto visual. (OLIVEIRA, 2004, p. 12).

Os formantes plásticos – matéricos, cromáticos, eidéticos e topológicos –

são unidades do plano da expressão que podem corresponder a uma ou mais

unidades do plano do conteúdo (OLIVEIRA, 2004, p. 120). Greimas (2004, p. 86-88)

diz que a articulação do dispositivo topológico garante a apreens~o das “unidades

mínimas do significante”, enquanto que as cores e as formas (cromático e eidético,

respectivamente) se dão numa apreensão relacional, quer dizer, na função em que

o enunciatário atribui a este ou aquele termo com relação ao demais. A partir dessas

colocações, faremos algumas observações sobre esse trecho do programa Cocoricó

na cidade.

Trata-se de uma conversa entre dois animais antropomórficos, não mais os

animais da fazenda como a galinha e o cavalo, mas animais da cidade, um cachorro

e um rato. Há, inicialmente, uma distinção de cores entre esses dois animais: o

branco do cachorro e o cinza do rato. Essas figuras se encontram dispostas no

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centro da tela em plano americano - do tronco para cima - enquanto que fazem

fundo a eles, duas figuras grafitadas em um muro44.

Trata-se de uma figura masculina identificada figurativizando o “Calvin” das

histórias em quadrinhos e de uma figura feminina baseada nas chamadas animées45.

Os dois observam a cena protagonizada pelos bonecos através de um olhar dirigido

e atento. Nesta cena, podemos ressaltar a presença de animais e ausência dos seres

humanos, que na verdade aparecem figurativizados pelos carros que passam na rua

onde os animais conversam e nas casas que aparecem também ao fundo da cena,

numa cidade com horizonte, embora térrea. Num primeiro plano além dos

personagens e dos carros que atravessam a cena, vê-se um sinal de trânsito

indicativo para os pedestres que vai do vermelho ao verde, do início ao término da

cena.

Figura 9 – Os actantes do Beco do Cocoricó: as figuras pichadas no muro e

Esfarrapado à esquerda e, Roto à direita

Podemos citar como tema principal da cena o universo adulto e o universo

infantil e as relações entre um e outro. Esse tema perpassa os desenhos pichados 44 Os grafites do Beco do Cocoricó na cidade foram pintados pelos artistas-plásticos Nina Pandolfo e Finok, a pedido da direção do programa, configura-se como um dos ambientes cenográficos desta temporada. Nascida em São Paulo, Nina começou a grafitar em 1990 e é uma das pioneiras no Brasil. “Suas figuras que geralmente representam animais, insetos ou outras formas da natureza, têm um elemento infantil intencional, que ela usa para salientar a beleza e o valor dos objetos que pinta” (GANZ, 2008, p. 83). “O enunciado do grafite manifesta através de sua figuratividade os percursos de manipulação que seu enunciador propõe, e o fazer querer-ser-visto é o tipo de manipulação que decorre desse texto” (ZUIN, 2003, p. 175). Relacionando ao nosso objeto, apreendemos que a TV Cultura tem um fazer querer-ver, dotado de significado e valor. A pichação não é dada como anárquica ou subversiva – pois “estabelece o elo de profunda identidade entre espaço e público”. (ZUIN, 2003, p. 179-180). 45 Animée é um dos estilos de desenhos animados japoneses. As personagens são caracterizadas pelos olhos grandes e pelas roupas.

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no muro, como dito anteriormente; à esquerda, o actante Calvin, um garoto de seis

anos, hiperativo que vive aprontando ao lado do urso Harold. Esse Calvin, no

entanto, apenas figurativiza àquele criado por Bill Paterson; o Calvin do Cocoricó

possui uma pele azul, como dos personagens das Histórias em Quadrinhos que

tratam do mundo dos mutantes ou algo parecido. O cabelo e a fisionomia

transtornada e agitada se assemelham ao Calvin das histórias norte-americanas. A

figura dele está disposta na parte central do muro e as cores que dominam o

desenho é o azul e vermelho. Mesmo azul e vermelho do vestido do outro actante

que se encontra no lado oposto do muro: a figura de um desenho no estilo japonês

animée. Trata-se de uma garota, com cabelos longos e olhos exagerados,

expressivos, em posição inclinada para baixo, com as mãos sobre os joelhos,

ocupando o muro também da metade para baixo. Topologicamente as duas figuras

estão dispostas na mesma altura. Ao mesmo tempo, em que as temáticas do

feminino e do masculino são instaladas pelos actantes, o mundo infantil de Calvin,

da criança e o mundo adolescente, ou melhor, adulto da animée, reiteram o diálogo,

portanto, as figuras da expressão reiteram o conteúdo verbal, dado pelo diálogo do

cachorro e do rato.

O cachorro e o rato conversam nos diferentes curtinhas sobre: ser grande e

criança e/ou pequeno e adulto, lugares de passar férias ou de dormir, o clima

(objetos inanimados) e o medo. Acompanhe os diálogos entre o cachorro que se

chama Esfarrapado e Roto, o rato, é o seguinte:

DIÁLOGO CURTINHA 1 BECO DO COCORICÓ ESFARRAPADO: O que é que você quer ser quando crescer? ROTO: Eu já cresci, Esfarrapado. ESFARRAPADO: Já... mas não parece ROTO: Ah, eu sou um rato adulto enoorme! ESFARRAPADO: E eu sou um cachorro criança. Cachorro criança. Pausa. RATO: E pequenininho. Continua: O sinal abriu e rato atravessa a rua. ESFARRAPADO: Quando eu crescer eu quero ficar pequenininho como você, tá? Dá risada, numa posição de frente para a câmera.

DIÁLOGO CURTINHA 2

Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo)

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ESFARRAPADO: Roto, a gente vai passar as férias na praia ou na montanha?

ROTO: Nenhum dos dois.

ESFARRAPADO: Ah, é, então onde é que a gente vai passar as férias.

ROTO: do outro lado da rua. Opa, abriu.

ESFARRAPADO: ai, ai, ai,. Todo ano a mesma coisa. Au, au, au.

DIÁLOGO CURTINHA 3

Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo).

ROTO: ai, que frio.

ESFARRAPADO: você acha é? Tá tão gostoso hoje.

ROTO: gostoso porque você tem esse cobertor de pelos.

ESFARRAPADO: uhh?

ROTO: tá quentinho aí, tá.

ESFARRAPADO: Aqui? Tá gostoso. (O rato se aninha no cachorro).

ROTO: gostoooso.

ESFARRAPADO: abriu.

ROTO: quem será que teve a ideia de colocar pernas no meu cobertor? Ou, ou volta aqui.

DIÁLOGO CURTINHA 4 Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo).

ESFARRAPADO: Roto eu sou um vira-lata e você?

ROTO: um rato, ué.

ESFARRAPADO: um rato vira-lata?

ROTO: claro que não.

ESFARRAPADO: ué mas você dorme numa lata.

ROTO: mas a minha lata não vira.

ESFARRAPADO: uh, faz sentido. Já sei, você é um rato abre-latas. Você dorme numa lata e

tem que abri-la todos os dias.

ROTO: abriu.

ESFARRAPADO: a lata?

ROTO: não, o sinal.

DIÁLOGO CURTINHA 5 Opa, fechou! (Os dois falam ao mesmo tempo).

ESFARRAPADO: Roto você tem medo de alguma coisa?

ROTO: eu, de nada. Ãnh.(treme) Eu quero dizer uma coisa. Eu tenho medo sim eu tenho

medo de uma coisa que eu não abro pra ninguém.

ESFARRAPADO: eu já sei. Você tem medo de trovão.

ROTO: não, não. Eu tenho medo que as pessoas saibam que eu tenho medo de trovão.

ESFARRAPADO: abriu.

ROTO: eu me abri mesmo com você.

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ESFARRAPADO: não. O sinal.

O que seria então ser criança ou ser adulto no diálogo 1? O parecer e o ser

podem ser citados como a dêixis desta cena. O cachorro parece adulto mas é

criança e, o rato parece criança, mas é adulto. Qual a diferença entre eles? Trata-se

do parecer fisicamente, do parecer grande da garota animée que ainda é criança, ou

do parecer criança Calvin que possui comportamentos e ações de um adulto?

Ao mesmo tempo, a temática do adulto vs criança está acompanhada da

temática secundária do trânsito, figurativizada pelos carros que passam pela rua e

pela sinaleira para pedestre. Uma figura do mundo natural ligada à modalidade de

ordem prescritiva (do dever), do dever respeitar os sinais de trânsito, regras que

existem para os motoristas (adultos) e para os pedestres (crianças e adultos) e que,

portanto, novamente, remete à temática principal da cena.

Tentando refazer o percurso de apreensão do sentido, partimos para o nível

narrativo. Se primeiro, começamos a entender nosso corpus, a partir do plano da

expressão e das figuras que nele encontramos. Cabe-nos, agora, perceber as

relações entre essas figuras identificadas no plano da expressão com os sujeitos

instalados por um enunciador para o fazer sentido deste corpus. Nossa primeira

preocupação foi identificar a relação entre os actantes: o sujeito e o objeto. Barros

(2002, p. 17) diz que a relação que define os actantes; é essa relação transitiva entre

sujeito e objeto que lhes dá existência, ou seja, o sujeito é o actante que se relaciona

transitivamente com o objeto, o objeto aquele que mantém laços com o sujeito.

Havendo duas relações possíveis: a junção e a transformação. Na organização

narrativa em que existe uma relação de junção entre o sujeito e o objeto de valor,

essa relação é chamada de enunciado de estado pode ser assim, de dois modos, a

conjunção quando o sujeito está conjunto com o objeto de valor, e de disjunção,

quando ele está disjunto. A outra relação possível é a transformação, chamada de

enunciado de fazer, quando há uma transformação da relação de junção. A

organizaç~o narrativa se d|, assim, a partir de uma “sucess~o de estados e

transformações”, como nos diz Barros (2002, p. 20), definindo-se como um

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programa narrativo. A cena entre o cachorro e o rato nos mostra os programas

narrativos a seguir:

a) O rato é adulto (o sujeito do fazer é o tempo; a transformação é o de

ser grande; o sujeito de estado é o rato);

b) O rato é pequeno (o sujeito do fazer é a espécie animal; a

transformação é o de não crescer; o sujeito de estado é o rato);

c) O cachorro é grande (o sujeito do fazer é a espécie animal; a

transformação é o de crescer; o sujeito de estado é o cachorro);

d) O cachorro recebe do rato a experiência e atenção, adquiridos pela

vida adulta (o sujeito do fazer é o rato; a transformação é a atenção,

diálogo; o sujeito de estado é o cachorro);

e) O rato atravessa a rua (o sujeito do fazer é o semáforo; a

transformação é ficar na cor verde; o sujeito de estado é o rato).

A partir desses programas narrativos, podemos dizer que:

1) Enquanto o cachorro está em busca da aquisição de uma competência

que não tem que é a experiência da idade, o ser adulto; o rato já se

considera adulto e não quer crescer, por que segundo ele é já enorme;

2) Para poder ser adulto o cachorro tem que estar conjunto com o

objeto de valor idade e, não apenas com o objeto de valor tamanho, o

inverso para o rato também é válido;

3) A performance do sujeito rato é convencer o cachorro de que é

adulto e enorme;

4) O sujeito rato faz fazer o cachorro, manipulando-o a achar que é

criança e pequeno;

5) A sanção é negativa, já que o cachorro sabe que é grande e criança, e

que o rato é pequeno e adulto.

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A cena possui um narrador implícito, o ator da enunciação, ou melhor, o

próprio enunciador que delega a voz aos interlocutários, os sujeitos Esfarrapado e

Roto. Considerando Esfarrapado, o sujeito 1 e Roto, o sujeito 2, o objeto de valor

seria o ser adulto. Esfarrapado pode ter o tamanho de um adulto, mas é criança.

Roto, por sua vez, pode ser adulto, mas tem o tamanho de criança. O rato,

ironicamente, não aceita o seu papel de adulto pequeno no tamanho e, faz fazer o

cachorro ser pequeno, através de sua fala e da gestualidade das mãos.

“Pequenininho”, diz Roto para Esfarrapado. J| o cachorro pode ser adulto, a

competência dele virá com o tempo, com o passar dos anos. Entretanto, o tamanho

não é objeto de valor para o cachorro, o objeto é o ser adulto e não ser grande ou

pequeno. O rato manipula o cachorro para o saber ser criança e querer ser

pequeno, pela provocação irônica e ele responde que sabe que não é. A sanção é,

portanto, positiva. Entretanto, o cachorro diz que quer ser adulto e pequeno,

configurando aí o contrato entre o destinador - que sabe e pode fazer crer - e o

destinatário do valor de ser criança, mesmo sendo adulto.

Se no nível narrativo, o enunciador nos coloca através do diálogo dos

personagens no ser adulto ou ser criança, no nível discursivo, mesmo já tendo

apreendido as figuras plásticas, o conteúdo também nos apresenta pistas. Podemos

começar pelas pistas dadas pelos sujeitos, no tempo e no espaço da enunciação. Os

sujeitos da enunciação são aqueles que identificamos na plástica da cena, mas são

ainda, a própria linguagem da cena videográfica e os planos em que os bonecos

foram enquadrados. O enquadramento da cena é fixo, não há movimentações de

câmera, nem distanciamento ou aproximações, mesmo por que os personagens

encontram-se parados aguardando o sinal de trânsito ficar verde. Os outros

actantes compõem apenas o fundo para o desenvolvimento da cena principal entre

o cachorro e o rato. Essa opção do enunciador nos mostra que a própria figura dos

personagens e, do diálogo entre eles, foi privilegiada em detrimento das outras

categorias de espaço e tempo.

Como nos é apresentada a espacialidade da cena? Pelas figuras que

compõem aquele espaço onde a cena foi feita. Vemos, portanto, que a cena foi

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realizada num beco com muros pintados, localizado num bairro arborizado, com

casas térreas46 onde há uma rua movimentada com trânsito intenso de carros, com

necessidade de um semáforo para os pedestres poderem atravessar a rua. Trata-se

de um beco reconhecido pelo enunciatário como um lugar da cidade, com ruas,

muros, casas, árvores, etc. E a temporalidade? O tempo da cena é o nosso tempo,

atual, das histórias em quadrinhos, dos desenhos japoneses, dos animais de

estimação, ou dos ratos vindos com os lixos que sujam as cidades. O enunciador nos

coloca próximo da cena, um eu-aqui-agora dos dias atuais, num discurso com efeito

de realidade, onde nas grandes cidades, sobraram apenas os becos e os

condomínios fechados para as crianças brincarem, poderem ser crianças, mas

também aprenderem a ser adultos, respeitando as regras e normas da sociedade.

Nesta relação podemos dizer que está configurado o contrato comunicativo, de um

lado o enunciador, que enuncia o dizer veridictório, enquanto que o enunciatário

precisa encontrar e interpretar essas marcas deixadas, crendo ou não nesse dizer.

O conteúdo fundamental da cena em questão encontra-se fundado na

valorização do ser criança, em detrimento do ser adulto. Primeiro, na cena de

fundo, o olhar do enunciatário é direcionado para Calvin ao invés da garota animée,

é ele quem se encontra na parte de cima da tela em posição ascendente ao

contrário dela que como dito encontra-se inclinada para baixo. Valoriza-se então

quem é a criança, portanto, Calvin. O cachorro que é criança também está no

mesmo lado da tela que Calvin, enquanto o rato adulto fica do mesmo lado que a

garota animéé. O contraste das cores também já diz: de um lado o branco do

cachorro, a cor que absorve que ainda pode conter as outras cores, assim como a

criança apta pelo aprendizado; do outro, o cinza do rato, quase um preto, a mistura

de todas as cores, um adulto experiente. Para representar as estruturas

elementares, poderíamos afirmar que a cena começa pela afirmação da experiência

(Já cresci, sou adulto, sou enorme) para em seguida negá-la, (sou criança, pequeno)

e afirmar o aprendizado (quando crescer quero ficar pequenininho):

46 Entretanto, essa espacialidade é dada pela cena entre os animais, por que na abertura do DVD – foto tirada de uma cena do episódio Cidade Grande – mostra uma foto dos personagens vendo o beco e ele é apresentado de forma diferente. A cidade não é térrea, horizontal, mas sim, vertical.

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Experiência não-aprendizado aprendizado

A partir da análise dos cinco trechos iniciais dos episódios, temos a criança e

o adulto colocado em diferentes temáticas: crianças e adultos com sonhos

realizáveis ou não; diferenças entre as raças, reafirmando a não superioridade, mas

sim a possibilidade de ajuda entre elas; o não domínio do significado das palavras

pelas crianças em idade pré-escolar, que confundem o significado denotativo das

palavras com os diferentes significados conotados; e, a confidência de um segredo

contado pelo personagem Roto a Esfarrapado que como uma criança é indiferente

ao descontentamento do rato.

Assim, identificamos a isotopia temática do mundo infantil vs mundo adulto,

marcada pelas figuras do rato grande vs cachorro pequeno (como falado antes),

férias sonhadas (como descanso) vs férias possíveis, raças diferentes (ter ou não

pelos) vs possibilidade de ajuda, significado das palavras vs duplo significado,

confidência vs indiferença. Essas figuras foram tematizadas diferentemente como:

1) o rato que quer ser grande; 2) o rato que tira férias todo o ano no mesmo lugar,

do outro lado da rua; 3) a diferença entre as raças, tendo ou não pelos, mas que

podem se ajudar; 4) as palavras que tem um e outro significado; e por fim, 5) a

confidência do rato e a indiferença do cachorro.

Como categoria semântica fundamental desses trechos iniciais temos:

IDENTIDADE vs ALTERIDADE. A afirmação da identidade de uma criança, do ser

criança e o outro, seria o adulto e a vida diferente do ser adulto. Essa categoria

também ser| encontrada no episódio “Pôr do sol” e do clipe musical.

2.4. O episódio “Pôr do sol” e as questões do sincretismo

Na medida em que avançamos nas análises das vinhetas e dos trechos iniciais

dos episódios pelo percurso gerativo de sentido foi se intensificando a necessidade

de pensarmos em Cocoricó como um programa de televisão que é e como objeto

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sincrético. Embora já tenhamos nos referido as questões do sincretismo de

linguagens nas primeiras análises da dimensão plástica do programa. Nas análises

das vinhetas e, principalmente na análise do plano da expressão dos curtas, o

sincretismo de linguagens nos foi sendo, cada vez mais, mostrado e presentificado

pelo enunciador destinador do programa. O enunciador de Cocoricó, nos faz ver

pela visualidade (movimentação, caracterização e figurino) dos bonecos e cenário,

como a história é contada por meio dos movimentos, planos e enquadramentos de

câmera; e pela sonoridade, por meio dos ruídos, falas e músicas. Todos esses

elementos articulados irão constituir a significação.

Seguindo Hjelmslev, a função semiótica é, em si mesma, uma solidariedade:

expressão e conteúdo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro. Diz

o autor que “uma express~o só é express~o porque é a expressão de um conteúdo,

e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma express~o” (1975, p. 53).

Floch (2001, p. 9) define o sentido como resultante desses dois planos: o plano da

expressão e o plano do conteúdo. Ele explica que:

O plano da expressão (grifos do autor) é o plano onde as qualidades sensíveis que possui uma linguagem para se manifestar são selecionadas e articuladas entre elas por variações diferenciais. O plano do conteúdo é o plano onde a significação nasce das variações diferenciais graças as quais cada cultura, para pensar o mundo, ordena e encadeia ideias e discurso. (FLOCH, 2001, p. 9).

No Dicionário de semiótica (Greimas & Courtès, 2008, p. 467) encontramos a

definição para semióticas sincréticas como àquelas que acionam várias linguagens

de manifestação; àquelas que associam o texto e a imagem, apontando a existência

de correspondências formais mais complexas que agem não só entre um plano e

outro de uma mesma linguagem, mas também entre os respectivos de duas

linguagens em aç~o “entre a organizaç~o do significante visual e organizaç~o dos

significados assumidos na dimens~o linguística” (IDEM), vinculados assim “{

problemática dos sistemas semi-simbólicos” (LANDOWSKI, 1992, p. 146). No

Dicionário de semiótica 2, Jean Marie-Floch define que:

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[...] as semióticas sincréticas (no sentido de semióticas-objeto, isto é, das grandezas das manifestações que são dadas ao sentido) são caracterizadas pela organização do texto em várias linguagens de manifestação [...] dizemos que as semióticas sincréticas constituem seu plano de expressão – com os elementos relevantes de muitas semióticas heterogêneas. Afirma-se, assim, a necessidade – e a possibilidade – de abordar esses objetos como um todo de significação e, de recorrer, num primeiro momento, à

análise de seu plano do conteúdo [...]. (p. 217-218).

Nos textos sincréticos, as diferentes substâncias da expressão, como já

falamos, vão constituir esse todo de significação, recorrendo para isso, a uma

pluralidade de linguagens de manifestação para se constituir enquanto semiose. Ou

seja, como operação que, ao instaurar uma relação de pressuposição recíproca

entre a forma da expressão e a do conteúdo, ou entre o significante e o significado

(Saussure) produz signos47, a reunião de um plano e outro que permite explicar a

existência do discurso provido de sentido. Oliveira afirma que:

Os formantes (grifos do autor), unidades aquém dos signos, reúnem-se pela sua atuação sintagmática em um número de figuras da expressão: unidades oriundas das combinações de formantes que ainda são não-signos. Por sua vez, as figuras da expressão são reunidas pelo modo articulatório de seu agir, que reúne as figuras em categoria elementar do plano da expressão. Num plano do conteúdo, cada uma das figuras que formam a categoria da expressão corresponde isomorficamente a um conjunto igual de figuras do conteúdo que se reunido na categoria do conteúdo. Uma rede relacional rege, pois, a totalidade de sentido, mantida pela relação de semiose entre o que é denominado por L. Hjelmslev de plano da expressão e plano do conteúdo, no desenvolvimento que o teórico empreendeu da relação entre significante e significado postulada por Ferdinand Saussure. (OLIVEIRA, 2005, p. 112).

Para entender nosso objeto enquanto sincrético será necessário, então,

identificar nele “o ir e o vir entre express~o e conteúdo” (OLIVEIRA, 2009, p. 80)

como compreensão dos efeitos de sentido produzidos por ele por relações

convencionais ou arbitrárias. As relações convencionais que “seguem convenções

no interior do grupo social, sendo aprendidas e repertoriadas” s~o as simbólicas; as

relações arbitr|rias “processadas em cada uso específico do arranjo textual” s~o, 47 Verbetes semiose e conteúdo do Dicionário de Semiótica (2008, p. 448 e p. 95, respectivamente).

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portanto, as semi-simbólicas (OLIVEIRA, 2005, p. 112). Para Floch (2001, p. 28), ainda

“na esteira de L. Hjelmslev”, devem ser distinguidos os sistemas simbólicos, dos

semióticos e de um terceiro, o semi-simbólico. O autor explica que os sistemas

simbólicos são as linguagens cujos dois planos – conteúdo e expressão - estão em

conformidade total (por exemplo, o semáforo). Já os sistemas semióticos são as

linguagens nos quais os planos do conteúdo e da expressão não estão em

conformidade e devem ser distinguidos e estudados separadamente (por exemplo,

as línguas naturais e os sistemas visuais). Como terceiro sistema, o autor define o

semi-simbólico como “a conformidade n~o entre os elementos isolados dos dois

planos, mas entre categorias da express~o e categorias do conteúdo”, como por

exemplo, na relação entre a categoria visual espacial direita e esquerda nos painéis

medievais que representam o Julgamento Final, uma categoria semântica

recompensa vs punição (FLOCH , 2001, p. 29).

Assim, os diferentes elementos de uma ou de mais de uma linguagem se

articulam nas figuras da expressão e reiteradas vão definir as categorias da

expressão, que por sua vez serão homologadas às categorias do conteúdo. Medola

explica que não basta simplesmente entender express~o como ‘matéria’ para

determinar se uma semiótica é ou n~o sincrética, “e sim a subst}ncia assumida pela

forma semiótica com vistas à significação, ou seja, enquanto matéria recortada pela

forma” (2003, p. 486). Se estamos tratando de um programa audiovisual, as

linguagens sonoras e visuais estão intrinsecamente condicionadas e articuladas ao

seu todo de significação, pela totalidade.

Considerando que a totalidade do sentido de um objeto sincrético é processada pelo arranjo global de formantes de distintos sistemas, assim como de suas regras de distribuição e ordenação, assumimos que essa integração caracteriza-se por procedimentos de sincretização. Somos levados a tratar esse tipo de constituição sincrética do plano da expressão pelo agir relacional integrador de suas partes em uma só totalidade, uma vez que também é assim que a sua apreensão sensível é processada. (OLIVEIRA, 2009, p. 80).

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Consideramos como pressuposto que o programa de televisão é um objeto

sincrético que diz respeito “a escolhas de um sujeito enunciador, direcionado a

mostrar ao enunciatário, por meio de efeitos de sentido, o plano do conteúdo”

(OLIVEIRA, 2005, p. 111). Trata-se de uma “totalidade complexa articulada e n~o

apenas somatória de partes por processos de fus~o” (OLIVEIRA, 2009, p. 84). O

sincretismo se dará na atuação particular de cada elemento nesta totalidade

partitiva, por meio da neutralização. Oliveira (2009, p. 81) define neutralizar como

suspender, graduar, “as distinções entre os traços para que atuem juntos quer na

composição dos formantes de mais de um sistema, quer no arranjo da reunião

destes pelos mecanismos e regras de ordenaç~o dos v|rios sistemas”. A

neutralização opera “espécies de suspensão das diferenças distintivas na atuação

dos mecanismos” que por essas diferenças graduam “as distinções entre os termos

em coeficientes de maior ou menor atenuação” (2009, p. 85), operando assim, os

diferentes tipos de procedimentos de sincretização:

1) Por união: dos traços intersistêmicos, em que estes operam em

reciprocidade por meio da atuação em sequência de encadeamentos das ordens sensoriais; um após outro, os sentidos se enlaçam em cadeias completando-se um pelo outro;

2) Por separação: dos traços intersistêmicos, quando há uma atuação dos sentidos nas ocorrências em paralelismo, justaposições; os sentidos vão agir por rupturas marcadas entre um e outro, em relação multilateral; no processamento das apreensões, um sentido passa a agir com o outro em co-presença e simultaneidade, montando relações multissensoriais par a par, traço a traço, que balanceiam a operação coordenativa articulada em que há um sentido mas também outro;

3) Por contração: a atuação de uma ordem vai se sobrepor a uma outra, formando um mecanismo de condensação das ordens que são encaixadas gerando um adensamento sintético que atua associativamente por sinestesias;

4) Por difusão: ocorre uma múltipla convocação das ordens sensoriais que, em co-presença, operam a pluralidade de traços significantes, uma ordem se estende em outra e se alarga em ecos, reverberações de traços múltiplos numa polissesensorialidade. (Oliveira, 2009, p. 95).

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Por meio desses procedimentos de sincretização é possível pensar o estudo

do efeito de sentido de Cocoricó, pois a significação define-se pela articulação entre

os sistemas áudio e visual, “seus processamentos expressivos” em articulações

intra e intersistêmicas, em que o resultado advém certamente desse processar,

“caracterizado por mecanismos de reunião das partes heterogêneas em um

totalidade significante” (OLIVEIRA, 2009, p. 81). Analisar o sincretismo no

programa, então, parte da consideração desses quatro mecanismos postulados por

Oliveira.

O episódio “Pôr do sol” nos possibilitou refletir sobre as relações entre as

linguagens e enquanto do sincretismo. Nesse episódio, da temporada 2009/2010,

Júlio e João estão à procura de uma atividade para fazer: querem brincar, tentam

mini game, dominó, leitura, jogo de futebol até conhecerem a amiga Vitória que lhes

convida para assistir o pôr do sol do alto de um prédio na Cidade Grande. Júlio conta

a índia Oriba (que está na fazenda) por meio do computador que vai ver o pôr de sol

com a nova amiga e também por meio dele, a índia assiste ao pôr do sol da cidade.

Os amigos de Cocoricolândia chegam à conclusão que o fato de estarem juntos, faz

o pôr do sol do campo ser melhor que o da cidade. Antes das sequências, pensemos

sobre a linguagem audiovisual. Medola (2000, p. 202) acredita que existem os

sistemas semióticos na visualidade da televisão (ou sistemas visuais que

englobariam a imagética, o verbal-escrito, o gestual, a proxêmica, a moda) e os

sistemas semióticos na sonoridade da televisão (ou sistemas sonoros em que são

postos em significação o verbal oral, o musical e os ruídos). Utilizando as definições

de Greimas, Medola classifica as linguagens da televisão, não mais enquanto

sistemas, sobretudo enquanto termos linguístico, paralinguístico e não-

linguístico48. Sabemos, no entanto, que desde a categorização feita por Medola, a

teoria semiótica sincrética vem desenvolvendo cada vez mais novos estudos que

48 No Dicion|rio de Semiótica, Greimas traz as definições: “o termo paralinguístico representa um” termo estritamente linguístico que, ao mesmo tempo em que reconhece a existência de outras práticas semióticas, considera-as secundárias, ou acessórias (2008, p. 360); as estruturas não linguísticas s~o, de acordo com o autor, “índices dispersos, n~o estrutur|veis, que remetem a outra coisa que n~o a língua considerada: a uma linguagem de conotaç~o social” (2008, p.481).

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englobariam além dessas categorias e linguagens, os procedimentos pelos quais

essas linguagens fazem aparecer o sentido (no audiovisual). Essas categorias, assim,

serão necessárias em nossa análise para pensarmos em como elas fazem aparecer o

sentido, nas homologações as quais se relacionam (ver Figura 10) .

Figura 10 – A TV e o sincretismo: os sistemas semióticos na televisão propostos por MEDOLA e os procedimentos de sincretização propostos por OLIVEIRA

Essa classificação nos diz que a forma única do texto audiovisual é dada pela

linguagem audiovisual. Isso quer dizer que é a linguagem audiovisual que:

[...] abriga, que possibilita a formatação de todos os modos de articulação das substâncias visual e sonora que virão a constituir as diferentes linguagens. Vejamos: na substância visual é a organização do sistema num eixo sintagmático onde podemos identificar o recorte da edição que associa planos, movimentos, ângulos de câmera com seus efeitos ópticos, eletrônicos, mecânicos, digitais. Associação realizada a partir da seleção desses mesmos elementos de linguagem, sempre associados à substância sonora, invariavelmente “enformada” na linguagem verbal sonora, nos sons ambientes, nos ruídos ou mesmo sob forma de silêncio. (MEDOLA, 2003, p. 486-487).

Entretanto, a partir do objeto estudado entendemos que a forma do texto

audiovisual é dada para além dessas substâncias pelo sincretizar delas. Essa

linguagem audiovisual, então, possibilita a articulação entre essas duas substâncias.

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Quando estamos falando em substância visual, significa falar da unidade básica

dessa linguagem que é a tomada. É a partir da tomada que as sequências de um

programa de televisão vão sendo construídas, uma após a outra, não pela somatória

de suas partes isoladas, mas pelo todo unificado. “O que é uma tomada? É o que

aparece na tela da TV num dado instante [...] é o que é visto no vídeo desde o

momento em que uma câmera seja posta no ar, até que seja substituída por outra”

(STASHEFF, 1978, p. 18).

O autor classifica as tomadas mais usadas por seis modos diferentes: (1)

campo de visão; (2) área do objeto visível; (3) número de sujeitos incluídos; (4)

ângulo de câmera; (5) movimento de câmera; (6) objetivo ou função da tomada.

Estaremos considerando na análise principalmente os modos 1, 2, 4 e 5. No

campo de visão, o principal objetivo do plano geral (PG) é familiarizar o espectador

com a aparência global do sujeito ou da cena e com as suas diversas partes; o close-

up busca criar o intimismo e levar o telespectador a ver claramente o que é

relevante, por isso mesmo cria um efeito de sentido de subjetividade tanto pelo que

está sendo mostrado quanto pelo que não está. Já o termo grande close-up ou

superdetalhe é usado para descrever uma tomada que inclua uma área ainda mais

limitada do que a do close-up. Na televisão, é comum combinar o close-up e o plano

geral, quando uma pessoa está próxima à câmera, enquanto uma outra é vista mais

ao fundo, a uma certa distância. Esse tipo de enquadramento ou tomada permite

uma composição interessante, pois há profundidade na cena e as figuras das

pessoas estão em tamanhos e alturas diferentes (STASHEFF, 1978, p. 25-26).

Se estamos falando na área do que é visível significa que estamos

identificando uma tomada em termos da figura enquadrada: a tomada de corpo

inteiro é o plano geral; a tomada pelo joelho é o plano Americano; a tomada pelo

colo é o plano médio aberto; a tomada pela cintura é plano médio; a tomada pelo

peito é o plano médio fechado; a tomada pela cabeça é o médio close-up; e por fim,

a tomada só do rosto é o close up.

A tomada considerando o ângulo de câmera é dada quando a câmera

focaliza de cima para baixo, conhecida como plongée, ou o inverso quando a

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imagem mostra um olhar de baixo para cima, chamada de contra-plongée. Já o

movimento de câmera, podemos classificá-lo em: panorâmica ou movimento

apenas da câmera em horizontal sobre seu pedestal, seja para a esquerda ou para a

direita; dolly que é o movimento total da câmera em direção ao sujeito focalizado

ou afastando-se dele; travelling cujo movimento da câmera é completo e em

qualquer direção que não seja de aproximação ou afastamento em relação ao

objeto de cena, significa que a tomada é feita com um “passeio” de c}mera; e zoom

se refere mais comumente ao efeito criado pela lente zoom, que permite a variação

da distância focal, quer dizer a distância entre o centro óptico da lente e a face

frontal de tubo de imagem, determinando o ângulo de visão (STASHEFF, 1978, p. 34-

36).

As tomadas são, por assim, dizer como unidades mínimas da televisão

fundadas no movimento. De acordo com Férres (1996, p. 16) “o movimento é,

então, um dos grandes atrativos da televisão como recurso para a captação da

atenção e como elemento gratificador para mantê-la”. O autor explica ainda que

esse movimento diz respeito tanto ao movimento dos elementos dentro da tela

como um movimento da câmara ou à aquele que provém da mudança constante de

cenas por meio da montagem. Isso quer dizer que o movimento e as tomadas que

são feitas a partir dele pressupõe o sentido que a cena terá e a relação que se dará

da cena com o telespectador. Agora, ciente disso, vejamos às sequências a serem

analisadas:

Sequência 1: A primeira tomada mostra uma pirâmide de latas de alumínio caindo do alto

de uma prateleira. Outros brinquedos – como bolas, carrinhos, blocos de montar -

estão espalhados nos móveis da sala de estar do apartamento de João e é mostrado

por um travelling da câmera. João mostra-se entediado com as brincadeiras

disponíveis enquanto Júlio tenta não ficar também. O diálogo inicial ressalta a

temática da leitura enquanto uma brincadeira infantil, como ler clássicos da

literatura inglesa, como afirma Júlio: “Os três mosqueteiros, A ilha do tesouro, As

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viagens de Gulliver49. A câmera procura quem está falando pela casa, ao mesmo

tempo em que apresenta ao enunciatário o espaço da narrativa: o apartamento de

João. No mesmo momento em que Júlio grita gol, a câmera o “acha” em segundo

plano e mostra a insatisfação e impaciência de João que jogava bola mas diz ter

enjoado da brincadeira. Quando Júlio olha para a c}mera e diz “só se....”, uma

música instrumental cria uma certa tensão ou suspensão no tempo da narrativa que

logo acaba em uma sobreposição de duas tomadas, onde a primeira desaparece

suave ou rapidamente à medida em que vai aparecendo a segunda, com uma ligeira

descontinuidade de tempo ou lugar. (STASHEFF, 1978, p. 51).

DIÁLOGO

SALA DO APARTAMENTO DO JOÃO Júlio: Vamos, vamos, pela esquerda. Vai, chuta, chuta. Ai, caramba. Não, Agora, não. Ah, ah, roubei a bola, muito bem indo pelo ataque. Preparando, atenção, atenção, eu vou chutar. Chutou... gooooollll! [panorâmica na sala/Júlio fala, mas aparece apenas no momento da comemoração] João: quer saber enjoei dessa brincadeira. [plano geral+médio close up/insatisfação] Júlio: ô, João, puxa, puxa, que puxa João. Você não quer mais brincar de caminhão, você não quer mais brincar de dominó. Ah! Assim não dá, né, João. [plano médio /reclama] João: e sabe, porque eu não quero mais brincar de caminhão, nem dominó, por que você só quer jogar mini game. [plano médio/gesticula] Júlio: hã! Só se... [plano médio/suspense] Júlio: ah! Ah! Puxa, puxa, que puxa, João. Olha só que legal, João: esse aqui eu já li sete vezes, esse daqui eu já li cinco vezes, esse daqui eu só li três vezes, João. E você? [médio close up/está em frente a uma pilha de revistas e segura as que está contando] João: ah! Não quero brincar de contar quantas vezes eu já li um livro, né, Júlio. É chato! [plano geral/mão no queixo/tédio] Júlio: ah! João. Chato não é a brincadeira. Chato é não ter o que fazer. João: ah! Tá bom. Tá bom. Já li, já li, já li e já li. Acho que também já li isso muitas vezes. [resolve contar e vai contando uma a uma as revistas da pilha] Júlio: puxa, puxa, que puxa, João. Tem certeza que todos os seus livros estão aqui? [plano geral] João: você pegou aqueles que estavam no baú? Júlio: aquele baú lá no quarto da sua mãe?

49 Os livros citados no diálogo entre os actantes são, na verdade, revistas em quadrinhos da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, mostradas pela linguagem visual.

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João: isso, isso. Está cheio de livros lá. [excitação] Júlio: eu peguei sim. Estão todos aqui, ó: aqui tem deixe-me ver “Os três mosqueteiros”, “A ilha do Tesouro”, “As viagens de Gulliver”. Eu j| li todos e você João? João: também. (vinheta de passagem) Júlio: ah! Puxa, puxa, que puxa. O paiol continua vazio. [plano médio/mão no queixo] João: eles estão desconectados, Júlio. [respira fundo] E nós dois sem nada pra fazer. Júlio: bem que alguém podia aparecer por essa porta e falar assim, né... [plano geral/aponta na direção da porta] Vitória: pessoal, pessoal, vamos bater uma bolinha. [abrindo a porta do apartamento de João] Júlio: demorou, demorou. João: ô, demorou.

Sequência 2: Enquanto Roto e Esfarrapado narram, Júlio, João e Vitória chutam a bola no

gol numa partida de futebol. João consegue marcar os dois gols em Vitória que é a

goleira, embora não tenha tanta atenção e chega até a lixar as unhas. Júlio, por

outro lado, não acerta a cobrança e elogia o fato de Vitória jogar bem futebol.

Vitória fala sobre a tarde e convida Júlio e João para assistirem ao pôr do sol do alto

de um prédio.

DIÁLOGO

“BECO DO COCORICÓ”

Esfarrapado: e começa a disputa de pênaltis e é João quem vai bater primeiro. A goleira Vitória parece tranquila. Atenção, João corre, vai bater. E é goooollll! [plano geral/mesma tomada de câmera, aparece à direita os pés que chutam a bola] Júlio: puxa, Vitória. Que salto lindo. [plano médio] João: [risos] lindo foi meu golaço, Júlio [eufórico]. A goleira aqui nem viu a cor da bola. [risos] Rato: olha só a cara de pau dessa goleira parece que nem dá bola pra bola. Garotinha, ô garotinha você tem que agarrar a bola. [plano geral] Vitória: Ah! [plano médio/olha na direção do rato e reclama] Esfarrapado: [rosna] Roto, deixe-me narrar o jogo. Bola na marca, Júlio se prepara pra cobrança e a Vitória está ligada no lance. Lá vai o Júlio, bateu. Defeeeende, Vitória. [médio close up]

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João: ah, Júlio, qual é? Você bateu muito fraquinho. [plano médio] Júlio: ah, João! Que nada, a Vitória é que é uma goleira maravilhosa. Vitória: é, foi sorte, eu só saltei pro lado certo. [close up/gira a bola com as mãos] João: ah, é, Vitória, então vamos ver se você está com sorte mesmo, pega essa. Vitória: nem vi. João: aí, viu, Júlio. Cadê a goleira maravilhosa? [irônico] Vitória: maravilhosa está a tarde. Olha que céu. [plano geral/olha para cima] Ei que tal a gente ver um lindo pôr do sol, hein? Assim a gente se acalma um pouquinho. João: eu prefiro pôr no gol e não pôr do sol. [discorda] Júlio: ô Vitória, que ótima ideia. E você sabe onde que podemos ver um pôr do sol? Vitória: ah, do alto de um prédio aqui pertinho. Vamos. João: ei, Júlio. Júlio: vamos, vamos. [que estava acompanhando o andar de Vitória]

Sequência 3:

João e Júlio precisam da autorização de um adulto para irem ao alto de um

prédio, por isso voltam para o apartamento de João e pedem para Zazá. Ela

questiona se todos os que vão são crianças. Alípio se oferece para ir também, no

entanto, Zazá o lembra que ele só tem tamanho, e se oferece para ir junto, antes

procura a máquina fotográfica.

DIÁLOGO

APARTAMENTO DE JOÃO

Zazá: nem pensar. Vocês dois sozinhos no alto de um prédio. Não, não, não. [plano geral/vai de um lado para outro] Júlio/João: não. A Vitória vai também. Zazá: outra criança. Não, não. É, quem mais? Alípio: eu posso ir com eles, Zazá. Zazá: você só tem tamanho, Alípio. [olha de baixo pra cima, como que avaliando, depois dá um olhar dirigido à câmera] Alípio: é mesmo, ó. [risos] Júlio/João: ãnnn. [abaixam a cabeça, em descontentamento] Zazá: tá bom, tá bom. Mas, eu vou com vocês. Eu quero ver se tem diferença do pôr do sol da cidade e do campo. Minha máquina fotográfica? Onde eu coloquei minha máquina fotográfica? [sai apressada] Júlio/João: máquina fotográfica? [olham para a câmera]

Sequência 4:

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Depois que Zazá autoriza a ida ao alto de um prédio, Júlio pergunta para

João se a camisa que veste está legal. O devaneio de Júlio indica sua preocupação

em agradar, principalmente Vitória, mas é Oriba quem elogia. Oriba e João

conversam pelo computador sobre o pôr do sol na cidade. Para João o futebol seria

mais interessante do que ver o pôr do sol, mas mesmo assim se oferece para levar o

computador para que Oriba também possa assistir.

DIÁLOGO

FAZENDA COCORICÓ/QUARTO DE JOÃO

Oriba: ai, que saudade do Júlio. É, quer dizer, do Júlio, do João, da Lilica, do Alípio e até da Zazá. [plano médio/de frente para o computador] Júlio: e aí, João, será que essa camisa tá legal? [plano geral+close up/olha-se no espelho] João: ei, Júlio, a Oriba tá on line. Júlio: oi, Oriba. [close-up/acena] Oriba: puxa, Júlio, que camisa bonita bacana. Júlio: você achou? Olha, é porque eu vou sair com a Vitória, quer dizer, com a Vitória e com o João... Zazá: e com a Zazá.[plano geral] Oriba: quem é essa Vitória? [plano médio depois close-up/enciumada] Júlio: a Vitória é uma garota muito legal, sabe, ela vai levar a gente pra ver o pôr do sol. Oriba: que bela novidade, o pôr do sol. Por acaso você nunca viu um aqui na fazenda? [enruga e leva às mãos à boca enquanto ouve Júlio falar de Vitória] Júlio: mas é que esse a gente vai ver do alto de um prédio. Zazá: vamos ou não vamos? Júlio: vamos Zazá. [Júlio e Zazá saem do quarto] João: podem ir pessoal eu já alcanço vocês. Pôr do sol, grande coisa, prefiro futebol. [ressalta suas preferências] Oriba: deve ser bem legal ver o pôr do sol do alto de um prédio com o Júlio... e essa, essa... como é mesmo o nome da menina? [aumenta o tom de voz] João: é Vitória. Oriba: com essa tal de Vitória. [enciumada] João: você gostaria mesmo, Oriba? Oriba: acho que sim. [baixinho] João: eu vou dar um jeito nisso, continue conectada.

(vinheta de passagem) Sequência 6:

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Vitória apresenta a cidade para Júlio, mostra-lhe a parada de ônibus, aparece

a placa da padaria, as pessoas circulam na rua. Júlio continua a elogiar tudo o que

Vitória diz, primeiro foi o adjetivo maravilhosa na sequência 2, agora fala linda, linda,

quando ela lhe mostra a parada de Ônibus. Zazá e João pedem para que eles

esperem os dois. A cena termina com a chegada de Júlio e Vitória no elevador.

DIÁLOGO

RUA CIDADE GRANDE/ELEVADOR

Vitória: olha Júlio aqui é a parada de ônibus que me leva pra escola. Júlio: puxa, linda, Vitória. Linda, linda, linda. [plano geral/anda atrás de Vitória] João: ei pessoal, esperem por mim. Ei Zazá, cadê eles? Zazá: eles já foram, vamos, João, vamos. [pressa] João: ah, eu tenho uma coisa maneira pra mostrar. Zazá: ah, então vamos. (muda cena) Vitória: e aqui é a porta para o nosso pôr do sol. [plano médio/eufórica] João: ah, perdemos. Já subiu. [descontente]

Sequência 6:

A música do clipe musical é cantada por Vitória e Júlio, com a participação de

outros dois actantes, dois pássaros, um verde e outro amarelo.

LETRA MÚSICA

Sol, pôr do sol (repete) [plano médio + close up/passarinhos/vozes] [plano geral/Vitória e Júlio no alto de um prédio] [plano médio/ Vitória e Júlio de costas no alto de um prédio] Daqui do alto a vista é tão bonita [plano médio/Vitória canta] Bonita mesmo, linda [plano médio/Júlio canta/entonação no linda] Que faz bater mais forte o meu coração [plano médio/Vitória canta] O meu também, viu, Vitória [plano médio/Júlio canta/gestualidade/vergonha] Parece até que a gente tá voando [plano médio/Vitória canta] Puxa, puxa, que puxa, eu tô [plano médio/Júlio canta] Sem precisar de asa ou avião [plano médio/Vitória canta] O pôr do sol desta cidade me traz tanta felicidade

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Que dá vontade de cantar até anoitecer Pro Sol ficar feliz também e adormecer [juntos] [plano médio + close up/passarinhos/vozes] [plano geral/Vitória e Júlio no alto de um prédio] [plano médio/ Vitória e Júlio de costas no alto de um prédio] [médio close up/os dois juntos] Sol, pôr do sol (repete) [plano médio/Júlio, Vitória e os passarinhos /vozes] E lá embaixo todo mundo é formiguinha [/Júlio canta] É parece uma cidade de brinquedo [Vitória canta] E eu aqui feliz com minha amiguinha [Júlio canta] Como você canta bonito, Júlio [Vitória canta] [plano geral/Júlio e Vitória no alto de um prédio] O Sol é uma estrela grande pra nos iluminar [médio close up acima dos prédios/Vitória canta] Uma bola de fogo gigante, uma super lâmpada [Júlio canta] De dia acende e à noite ele tem que descansar [Vitória canta] O pôr do sol desta cidade me traz tanta felicidade Que dá vontade de cantar até anoitecer Pro Sol ficar feliz também e adormecer [juntos] Sol, pôr do sol (repete) [passarinhos /vozes] [plano geral/Júlio abraça Vitória de costas/ passarinhos completam a cena]

Sequência 7: João levou o computador para que Oriba também assistisse o pôr do sol. Ao

final do clipe musical, Júlio e Vitória se surpreendem com a voz de Oriba falando,

que demonstra toda a sua insatisfação no fato de Júlio e Vitória estarem juntos

assistindo o pôr do sol.

DIÁLOGO

ALTO DO PRÉDIO

Oriba: não achei tudo isso não. [descontentamento] Júlio: Oriba! Vitória: oi, Oriba, o Júlio fala muito de você, viu. [simpatia] Oriba: é, eu fiquei sabendo de você só hoje. Muito prazer, tchau. [antipatia] [conversam pela tela do computador]

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(vinheta de passagem) Sequência 8:

Na fazenda de Cocoricolândia, Oriba, Caco e Toquinho assistem ao pôr do sol

e falam sobre o fato de não precisar de computador para assistir o pôr do sol na

fazenda e também sobre ter a companhia um do outro. Caco e Toquinho percebem

que Oriba não gosta do fato deles usarem a palavra vitória, embora estejam usando

no sentido da palavra daquele que vence.

DIÁLOGO

FAZENDA COCORICÓ

Oriba: o pôr do sol aqui tá muito mais legal que o da cidade. [plano médio/ Oriba, Caco e Toquinho estão de costas para ver o pôr do sol, abraçada a Toquinho] Caco: ah é, e qual é a diferença, Oriba? Oriba: é que aqui eu tenho a companhia de vocês e nem precisa de computador. [respira fundo] Toquinho: nossa, até pôr do sol na cidade é por computador. Estranho né. Caco: um pôr do sol, ao vivo, como esse é uma Vitória. [filmados de frente] Oriba: não me fale em Vitória. [descontentamento] Caco/ Toquinho: ué, o que deu nela? [dúvida]

2.4.1 Análise dos procedimentos sincréticos

Foi possível verificar que os procedimentos de articulação entre linguagens

permite pensar no objeto programa de televisão segundo o sincretismo, quer dizer,

as escolhas enunciativas que põem em circulação os distintos sistemas de

linguagens no episódio. Estaremos considerando assim: o cenário (enquanto sua

composição e materialidade), a iluminação, a movimentação dos bonecos, a

caracterização (figurino e acessórios), a música (de faz fundo para a fala dos

bonecos), os sons e ruídos (da fazenda e da cidade), as falas (dos bonecos e suas

inúmeras interjeições), os movimentos, planos e enquadramentos de câmera, além

da edição de imagens. Estudaremos esses sistemas pelas correspondências entre a

plástica e o conteúdo, possibilitando-nos chegar ao todo de sentido: a forma de

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articulação das linguagens na construção do sentido desse objeto sincrético a partir

desse episódio selecionado.

2.4.2 Plano da expressão: o que engloba o quê?

O enunciador de Cocoricó nos faz ver como a história é contada pelo sistema

visual no seu uso articulado: da proxêmica50, da gestualidade51, do figurino dos

bonecos, tomadas de câmera (planos e enquadramentos, cortes), iluminação e

cenário. Esse enunciador também nos faz ouvir pelo sistema sonoro, ou seja, uso

das falas entre os actantes, ruídos e músicas. Todos esses elementos se encadeiam

por uma operaç~o de “difusão”, na qual “pode haver uma manutenç~o de traços

reiterativos dos vários sistemas atuando numa “grandeza semiótica sincrética”52

que vai assim, constituir a significação.

Iniciemos nossas análises pelo formante cromático. Encontramos nas cenas

analisadas uma variação que leva o enunciatário a apreensão pela tela da TV de uma

única cor para outra de uma variação cromática, dependendo do sentido que se

quer dar. Nas sete sequências em que dividimos para a análise, em todas elas,

encontramos a oposição semântica /monocromatismo/versus/policromatismo. É

válido lembrarmos que ainda na análise dos curtas, chamávamos a atenção para o

monocromatismo de Roto e Esfarrapado, em oposição à diversidade das cores dos

actantes dos grafites no muro atrás deles. Na sequência 1 e 3, os tons nas cores

marrom, vermelho escuro e palha do apartamento fazem oposição ao colorido dos

50 No Dicionário de semiótica (2008, p. 395), o verbete proxêmica é um projeto de disciplina semiótica que visa a analisar a disposição sujeitos e dos objetos no espaço e, mais particularmente, o uso que os sujeitos fazem do espaço para fins de significação. 51 O verbete gestualidade diz que ela foi introduzida na reflexão semiótica progressivamente e maneira incerta, analisável como um domínio de significação circunscrito e autônomo, ultrapassando por todos os lados nas fronteiras ainda indecisivas das semióticas particulares em via de constituição (2008, p. 236). 52 Os termos difusão e grandeza semiótica são utilizados por Oliveira (2009) na teorização dos procedimentos de sincretização. A autora chama de grandeza semiótica sincrética a reunião de traços e regras operados em articulação para montar uma totalidade partitiva pela reunião estruturada. “As particularidades do arranjo da express~o sincrética est~o, pois, na diferenciaç~o dos traços e regras para que os sistemas articulados coatuem em regimes de coexistência, co-presença” (2009, p. 81).

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brinquedos, de alguns móveis como a escrivaninha verde limão e o sofá vermelho e

do figurino de Júlio. Na sequência 2, os grafites coloridos do beco e as casas, fazem

oposição ao cinza das calçadas e às figuras dos animais. A sequência 4 apresenta o

quarto de João, bem decorado e colorido com quadros, bonecos, brinquedos, que

se opõe às cores em tons de marrom do paiol. Na sequência 5, um passeio pela

cidade nos apresenta à diversidade cromática presente em Cocoricó, enquanto que

o elevador nos instaura novamente uma tonalidade de cinza. Na sequência 6, o

colorido das roupas de Júlio e Vitória reitera o colorido de alguns prédios na

paisagem cinza da Cidade Grande. Na sequência 7, volta-se a uma conversa entre

cidade e campo pelo computador, então os tons de marrom do paiol se opõem ao

colorido da tela do computador. Enfim, na última sequência, a cromaticidade é dada

pelos próprios actantes da fazenda (um papagaio verde, um morcego cor de vinho e

o amarelo do sol que se põe) contrastando com as cores do anoitecer e das

sombras das árvores com seus galhos. Desse modo, o formante cromático é usado

para dar as qualidades das pessoas, lugares e especificar a passagem do tempo.

Pelo formante topológico, temos os ambientes cenográficos do episódio se

construindo na medida em que a narrativa vai sendo contada pela câmera. A história

começa no apartamento de João, por um movimento de câmera conhecido como

panorâmica. O telespectador começa a conhecer o lugar ali instaurado, que não é

mais no campo, mas na cidade. Os objetos dispostos são contemporâneos, novos,

são eles: utensílios de cozinha (acessórios, balcão, artigos decorativos); móveis

(sofá, estante, mesa elementos decorativos da estante, quadros, almofadas, etc.);

eletrodomésticos (geladeira, televisão, videogame, hometheater, computador,

etc.). Existe ainda a disposição de plantas ornamentais nos cômodos da casa, assim

como de livros e porta-retratos identificando o ambiente como pertencente à

família de João e demonstrando tanto o apreço pela natureza, quanto a

demarcação dos espaços de estar da criança e dos adultos. O final desta cena é

marcado pela abertura de uma porta e pela chegada de Vitória convidando os

meninos para jogar futebol no beco.

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Figura 11 – Tomadas da sequência 1 no apartamento de João: a cozinha com fogão e mesa; a sala

com escrivaninha, estante de livros; e, os brinquedos (meios de transporte) dispostos em cima dos móveis

No apartamento, temos na sequência 4, a apresentação do quarto de João,

onde ele, Júlio e Zazá conversam com Oriba pelo computador. O quarto é colorido,

embora predominantemente azul (a parede é pintada com listras de tonalidades

diferentes dessa cor), com gravuras e espelhos pendurados na parede, brinquedos,

lápis, peixinhos de pelúcia, janelas redondas por onde a luz do sol entra,

instaurando pela plasticidade do ambiente a figura de um grande submarino. A

porta tem um espelho na parte de atrás onde Júlio avalia se sua camisa está propícia

para a ocasião e companhia (assistir o pôr do sol com Vitória). É essa mesma porta

que se abre para que ele e Zazá saiam e, que logo após se fecha, enquanto João e

Oriba continuam conversando. Esses elementos que configuram o cenário da casa

de João formam a imagem de um lugar habitado e lúdico.

O paiol na fazenda de Cocoricolândia também é mostrado nessa mesma

sequência, em que ao contrário da cena anterior, há um predomínio das cores

orgânicas, da terra: como na pele e roupa de Oriba, nas madeiras da estrutura física,

nas latas de leite, na estante, nas telhas e na mesa onde se encontra o computador.

Esse cromatismo dominado pela tonalidade dessas cores da terra – bege, ocre,

laranja, vermelho, - é quebrado pelos brincos verde e amarelo da índia, por uma

planta que ultrapassa a parede de madeira, mas principalmente pelo brilho amarelo

da luz do sol que entra por essas frestas das paredes e do telhado que mais uma

vez, faz oposição à claridade do ambiente interno visto na cena anterior do quarto

de João.

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A rua onde João mora é outro cenário mostrado, onde os bonecos transitam

para chegar ao prédio onde irão ver o pôr do sol na sequência 6. Vitória aponta a

parada sinalizada por uma placa onde pega o ônibus pra ir à escola. Diferente do

campo, há uma concentração e circulação de pessoas na rua, pode-se observar a

fachada do prédio de João cujo número é 91, por onde eles acabam de sair. Existem

placas sinalizando a rua, o comércio, como a da padaria em que se lê “P~o com

p~o”. Mais uma porta se abre e se fecha. Desta vez a do elevador, e Vitória diz: “a

porta para o nosso pôr do sol”. As portas são de diferentes materialidades, a do

apartamento é de madeira, a do quarto de João é pintada de branco, a do prédio é

aberta para a rua e a do elevador é de metal. O uso dessas portas instauram a

oposição englobante vs englobado, ou melhor, separação entre aquilo que está

dentro e o que está fora, bem como a necessidade de segurança que se deve ter

numa grande cidade. Ao contrário, nas cenas no campo, essa oposição é dada pelas

janelas que dão a ver os bonecos que estão fora. Quer dizer, há uma integração

entre o exterior e o interior.

A vista do alto de um prédio é o outro ambiente cenográfico que nos é

mostrado. São várias tomadas diferentes: dos passarinhos, de Júlio e Vitória de

costas, de Júlio e Vitória de frente passeando de um lado para o outro da câmera e

de Júlio e Vitória vistos de cima na varanda do prédio e, também na diagonal sem o

céu. Essa vista do alto nos leva à verticalidade dos prédios, em oposição à

horizontalidade das casas, do beco, da fazenda.

Júlio, João, Oriba e Vitória são humanos, por isso, apresentam figurinos e até

trocam de roupa durante o episódio, como é caso de Júlio que falamos

anteriormente, que veste uma outra camiseta para ver o pôr do sol com Vitória e

isso chama a atenção de Oriba. No entanto, o que mais nos interessa são as roupas

vestidas por eles e como elas se caracterizam. Eles se vestem como garotos e

garotas da idade deles, em média 8 anos. Apesar da roupa da índia Oriba marcar

uma diferença no modo de se vestir que estamos acostumados a ver nas mídias em

geral da cultura indígena brasileira, trata-se de um figurino que não sofre alterações

e é sempre o mesmo, uma espécie de bata na cor palha e uma calça comprida, em

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tonalidade mais escura. Ela usa acessórios como o brinco de pena verde e amarelo e

colar de penas. Ao contrário de Oriba que possui um figurino permanente, Vitória

aparece com diferentes roupas nos episódios, neste especificamente, ele veste um

macacão amarelo e uma blusa azul clara com flores rosa que realçam uma

feminilidade e preocupação com a beleza, ao contrário das cores neutras usadas

pela índia. Essa oposição entre as roupas de Vitória e Oriba marca ainda uma

diferenciação, enquanto as roupas da índia caracteriza uma vestimenta com função

de cobrir o corpo, a menina da cidade, se veste de acordo com a moda. A roupa de

João é uma camiseta branca com o desenho de um elefante verde e outra camiseta

laranja por baixo de manga comprida, simples como a primeira roupa de Júlio, uma

camiseta azul listrada de preto com uma letra “H” em branco e negrito e boné

amarelo. Os dois vestem calça jeans e tênis que aparece apenas quando eles chutam

a bola. Júlio troca a camiseta por uma pólo, nas cores da roupa de Vitória (azul clara

de listras amarelas) e por um boné vermelho, figurino que vai marcar traços

reiterativos na sequência do clipe no alto do prédio.

Os bonecos também marcam topologicamente a posição que ocupam no

cenário pela proxêmica. Eles ora circulam em frente à câmera em tomadas

contínuas, ora estão em médio close, com apenas um deles diante da câmera e cujos

cortes de uma tomada caracterizam o diálogo. Vê-se que a continuidade das cenas

pode ser marcada por continuidades sonoras, como na sequência 1 na qual pelo

verbal Júlio dá a deixa para que Vitória entre em cena. Ou com a continuidade sendo

dada pelo musical, com uma trilha, como na sequência 5, em que Oriba e Júlio

conversam pelo computador e a música do clipe musical é tocada.

Podemos, então, pela dinâmica deste episódio, observar os sentidos dados

pelo ritmo audiovisual, segundo definiç~o de Fechine “participam da construç~o

geral de um ritmo audiovisual, ou seja, uma sensorialidade rítmica geral

proporcionada pela relaç~o entre um tempo musical e um movimento visual” (2009,

p. 348). Estas palavras, nos fazem muito oportunas, diante da relação que se

apresenta em Cocoricó, não apenas no visual e no verbal, nem somente no sonoro,

mas na relação que se dá entre eles. Fechine propõe uma categorização para a

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determinação do ritmo audiovisual, de acordo com o modo como operam: com a

duração, com a frequência e com a combinação no tempo de elementos sintáticos

dos dois sistemas: musical e visual. A autora enumera:

São eles: 1) extensidade vs intensidade (categorias que participam do ritmo operando com a duração de intervalos e sequências); 2) continuidade vs descontinuidade (categorias que participam do ritmo operando com a regularidade e irregularidade dos intervalos e sequências; 3) segmentação vs acumulação (categorias que participam do ritmo operando com a combinação dos elementos sonoros e visuais no tempo, explorando-os com base na simultaneidade ou sucessividade). (FECHINE, 2009, p. 349).

O episódio de Cocoricó apresenta um ritmo audiovisual marcado por uma

duração extensa, no áudio (ampliando para o musical, verbal e ou ruídos) mantidos

no aspectual, quer dizer, na duratividade, com batidas esparsas e, no vídeo com o

emprego de planos-sequências e tomadas panorâmicas com movimentação suave e

contínua na cena. Caracteriza-se, pois, por uma frequência contínua, no áudio dado

pela regularidade (do musical, verbal e ruídos) e, no vídeo por orientação de

decupagem cl|ssica, na “decomposiç~o linear e gradual das cenas dos planos mais

abertos aos mais fechados” (FECHINE, 2009, p. 352), com efeito de continuidade da

cena; e ainda com a utilização dos dois procedimentos descritos pela autora. São

eles: os enquadramentos (plano geral, plano médio, primeiro plano, detalhe, close),

e os movimentos de câmera (zoom in, aproximação e zoom out, distanciamento). Na

categoria da combinação dos elementos visuais e sonoros, temos a acumulação com

a superposição de sons distintos no áudio, e no vídeo, uma combinação de

elementos plásticos dentro dos planos, pela exploração da simultaneidade e pela

acumulação de informações e estímulos visuais. Chamemos a atenção para o efeito

de sentido deste ritmo televisual dado na ênfase ao raciocínio ininterrupto, com o

uso das figuras de sintaxe, como a aliteração, o apoio rítmico que consiste em

repetir fonemas em palavras (BECHARA, 2009, p. 643), caracterizando uma

continuidade, regular e durativa. Embora seja utilizado também o paralelismo, que

significa a repetição de ideias mediante expressões aproximadas (IDEM, p. 644) e

que é dado pelo uso de ruídos, vinhetas, diálogo e música, marcando também as

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descontinuidades. O que acarreta a possibilidade da construção do sentido em uma

dada continuidade, mas marcada pelas descontinuidades, tanto no áudio como no

visual. Já que no visual, temos as repetições de enquadramentos de cena e também

prolongamentos de tomadas, com o intuito de permanecer no contínuo,

entretanto, a descontinuidade é trazida pelos efeitos de fusão das imagens, que

também operam no paralelismo.

Além de gesticularem o tempo todo, chamando a atenção para as suas

mãos, humanas e grandes, os bonecos também pela materialidade da espuma,

possuem expressão facial que permite mostrar seus afetos, paixões e estados de

ânimo. Como na sequência 5, em que Oriba enruga a boca, assinalando estar

enciumada pelo fato de Júlio ir ver o pôr do sol com Vitória na Cidade Grande.

Embora, logo, pelas suas feições, temos o sentido de que ela se tranquiliza, quando

João lhe propõe estar junto de Júlio por meio do computador. Na sequência 1, João

respira fundo e na sequência 8 Oriba também respira fundo, mas pela proxêmica,

quer dizer, como eles se dispõem em cena e pela gestualidade, os dois “respirar

fundo” têm conotações diferentes. Enquanto o primeiro apresenta a insatisfação, o

segundo mostra o quanto Oriba está sensibilizada em ver o pôr do sol no campo.

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FIGURA 12 –Os bonecos e a diversidade étnica e diferentes caracterizações: Júlio de camisa azul com listras pretas e boné amarelo; João de camiseta branca com o desenho de um elefante verde;

Júlio e Vitória no alto do prédio para ver o pôr do sol, roupas azul e amarelo e Júlio de boné vermelho; Oriba veste bata cor de palha, brincos verde e amarelo e colar de pena

Identificamos três principais movimentos de câmera e enquadramentos no

episódio analisado, as tomadas contínuas vs cortes; os planos abertos vs fechados e

o primeiro plano (médio close up) vs outros planos. Já mencionamos as tomadas

contínuas vs cortes. Os planos abertos (médio/geral) foram identificados

principalmente quando havia mais de um boneco em cena e os planos fechados

foram utilizados para mostrar os detalhes das cenas ou dos bonecos, quando por

exemplo, no close de Vitória (sequência 2) girando a bola, como sujeito competente,

apesar de João pelo discurso verbal tentar convencer Júlio do contrário. Quanto à

utilização do primeiro plano, em oposição a dos outros planos, identificamos seu

uso principalmente no clipe musical, para dar o detalhe da cena aérea, filmada do

alto que cria um efeito de sentido de envolvimento com o enunciatário. Num jogo

enunciativo de figura e fundo, temos uma aproximação com o interlocutor, o

boneco, que está no alto, próximo, ao que ele vê, à paisagem da Cidade Grande, ao

fundo.

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Estabelecendo essas conexões do uso da linguagem sonoro e visual,

afirmamos que esse sonoro que raramente se silencia e o visual nessa

sequencialidade dos cortes e fusões, ou seja, a composição do ritmo televisual do

programa são indicativos da relação que se quer estabelecer com o enunciatário na

ênfase, como já dissemos, no raciocínio sem interrupções, que busca manter em

processamento a interação com o enunciatário. Explica-se: como um procedimento

que torna o texto sincrético, essa relação do sonoro atuando com o visual

configura-se como parte do contrato com o enunciatário, com aquela criança que

está disposta a assistir, mas também a ouvir esse programa e, sobretudo, a sentir o

que está vendo e ouvindo; só possível pelo ritmo audiovisual projetado e pela

difusão entre um sistema e outro, nos e pelos procedimentos de sincretização, do

plano da expressão. Ao pensar, essas apreensões, Oliveira afirma:

Concretizados em uma expressão, esses procedimentos enunciativos vão além da dimensão do enunciador fazer o enunciatário construir a significação. Englobam o modo como esse enunciador dispõe o enunciatário para sentir o sentido, abrindo-o a percursos de experiência do sentido sentido, quer os mais sistematizados e regulados por contratos, quer aqueles das surpresas e dos acidentes em que não há estabelecimento de nenhum tipo de contrato prévio. Correlacionamos que esse envolvimento é sensível tanto nas semioses semissimbólicas entre plano da expressão e plano do conteúdo, mas que também ocorrer envolvimento por um uso de estereotipias nas semioses do tipo simbólica. Os estados impressivos estão correlacionados aos tipos de sincretismo das ordens sensoriais e aos tipos de semioses que se articulam em percursos sensíveis do sentir o sentido. (OLIVEIRA, 2009, p. 136).

Como por exemplo, pelos sistemas sonoros, temos cenas com diálogos que

se sobrepõem a uma trilha musical, ou ruídos - como os da fazenda (sons de

animais) nas sequências 4 e 8 ou como os da cidade (sons de buzina) na sequência 5

versus o silêncio – mesmo que instantâneo - presente em praticamente todas as

sequências. Identificamos, também, as interjeições e entonações nas falas dos

actantes que assim como a gestualidade e proxêmica nos instauram como sujeitos

dotados de sentidos, trazendo assim, um efeito de proximidade na atividade de

reconhecimento dos actantes. O jeito de falar de Júlio “puxa, puxa, que puxa!” já

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conhecido do público, a voz estridente do papagaio Caco, o sotaque paulistano com

gírias de João, além das interjeições ahs! Hums! hãs! eis! aís! permeiam os diálogos e

os ouvidos dos telespectadores, além de intensificar os sentimentos, os estados

d’alma (alegria, tristeza, medo, impaciência, etc.) mostrados pelos bonecos.

Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa interjeição significa:

Palavra invariável ou sintagma que formam, por si sós, frases que exprimem uma emoção, uma sensação, uma ordem, um apelo ou descrevem um ruído; há interjeições de vários tipos ou níveis vocabulares: 1) aquelas que ocorrem de modo mais ou menos espontâneo e que não derivam de outras palavras, podendo subdividir-se em: a) as que praticamente não apresentam caráter vocabular, assemelhando-se a elementos não-linguísticos ou supra-linguísticos como os gestos, a entonação etc. (podendo ou não receber representação gráfica mais ou menos padronizada: ó (vocativo); oh (espanto); ha (desprezo, riso etc.); hã (interrogação, surpresa); b) aquelas que representam sons articulados, com fonemas que fazem parte do sistema da língua (ai, eba, ei, epa, oba, opa, ui etc.) e cujo caráter vocabular é mais definido, tendo uso bastante generalizado e convencionado, embora algumas guardem espontaneidade e expressividade bastante marcadas, como ai e ui (gritos de dor, de excitação); 2) aquelas que se originam de um uso interjetivo (exclamativo, emocional, expressivo) de palavras ou expressões previamente existentes; estas podem estar divididas em: a) palavras (às vezes desenvolvidas em sintagmas) empregadas sobretudo em exclamações expressivas e que têm um significado mais ou menos definido, mas cuja relação semântica ou morfológica com o étimo ou expressão originária fica consideravelmente obscurecida (puxa/poxa: puxa vida/poxa vida; bolas/ora bolas); tais unidades léxicas são classificadas neste dicionário como interjeições, e os sintagmas deste tipo são também registrados; b) palavras cujo uso interjetivo é um desenvolvimento ou derivação do conteúdo semântico e da função sintática da palavra ou expressão de origem (por exemplo, tomara

vem de tomar; que significa oxalá). (DICIONÁRIO HOUAISS, 2009, p. 1097).

A partir desse uso das interjeições, temos novamente no programa a

demarcação da continuidade entre os diálogos, caracterizando, portanto, também a

duratividade do sonoro do ritmo televisual como destacamos. E também do visual,

já que o uso dessas interjeições propicia a continuidade do enquadramento no

boneco.

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Identificamos, ainda, a utilização dos efeitos sonoros nas passagens entre

uma cena e outra, para trazer um efeito de suspense, como na sequência 1 quando

Júlio diz “Só se...” e entra um efeito sonoro, ou ainda para criar um efeito de ironia,

como na sequência 3, quando Zazá diz que Alípio só tem tamanho. No episódio,

temos na passagem entre as cenas, um sonoro – seja com diálogos ou ruídos – que

permite o encadeamento da passagem da descontinuidade à continuidade de uma

cena à outra, produzindo tanto um efeito de sentido de conexão quanto de

interação pelos sentidos da criança que assiste. A continuidade sonora dada pelos

diálogos (com fundo musical ou não) é a todo instante marcada por

descontinuidades, advindas dos ruídos, das vinhetas de passagem ou da música

cantada no clipe musical, conforme mostra o gráfico abaixo:

FIGURA 13 – A continuidade e descontinuidades do sonoro

Por meio da análise do plano da expressão, identificamos a reiteração dos

formantes da visualidade e da sonoridade nas sequências, pelas seguintes

oposições: policromático vs monocromático (colorido vs cinza; colorido vs

tonalidades marrons); englobante vs englobado (ambientes externos vs internos;

decorado vs natural; opacidade vs brilho; sentado vs em pé; verticalidade vs

horizontalidade); contínuo vs descontínuo (tomadas contínuas vs cortes; planos

abertos vs fechados; primeiros planos vs outros planos; intercalante vs intercalado

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(diálogo vs música; ruídos vs silêncio). Essas oposições fundam no plano da

expressão a categoria /CONTINUIDADE/ versus/ DESCONTINUIDADE.

FIGURA 14 – Categoria da expressão HORIZONTAL em cena do clipe musical

FIGURA 15 – Categoria da expressão VERTICAL em cena do clipe musical

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2.4.3 As figuras

Neste episódio enquanto Júlio e João não encontram uma brincadeira

dentro do apartamento são tomados pelo tédio de não ter nada para fazer. A amiga

Vitória lhes convida primeiro para jogar futebol no beco e depois para assistir o pôr

do sol do alto de um prédio, instaurando dois tipos de ação: a primeira como uma

ação participativa e a segunda, uma ação de observação. O programa narrativo de

base é a busca dos sujeitos pelo objeto de valor sociabilidade, de alguém para fazer

algo junto, seja brincar, seja, contar quantas vezes já leu uma revista, jogar mini

game, jogar futebol ou assistir o pôr do sol. Para que essa transformação aconteça e

os sujeitos do enunciado saiam da posição de disjunção com esse objeto de valor,

eles precisam ir em busca do doador de competência.

Existe o querer e o saber, Júlio sabe que “chato n~o é a brincadeira, é n~o ter

nada para fazer”, explica para Jo~o. O fazer algo vai sendo construído também

como objeto de valor. O dever seria a possibilidade de rotina da criança, em que um

tempo para brincar faz parte desse programar o seu dia. Mas o sujeito não pode, e

vai em busca dessa competência, ao trocar de camisa, pede autorização para Zazá e

segue as coordenadas de Vitória, que já é o sujeito competente, aquele que quer,

pode e sabe. Assistir o pôr do sol com Vitória, torna Júlio um sujeito atualizado,

dotado de competência, assim como Oriba ao lado dos amigos da fazenda que

assiste o pôr do sol lá. O ciúme de Oriba, por Júlio estar em companhia de Vitória e

não dela, explicita o “encantamento” de Júlio pela nova amiga da Cidade Grande.

As oposições identificadas foram: homogêneo vs heterogêneo; público vs

privado, artificial vs natural; conforto vs desconforto, grupo vs indivíduo,

objetividade vs subjetividade, que fundam a categoria /SOCIEDADE/versus/

INDIVIDUALIDADE.

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2.4.4 Clipe musical, significação e o sincretismo

Pensando nas linguagens presentes em Cocoricó, especificamente no sistema

sonoro, chegamos ao clipe musical. Ricardo Monteiro Castro (2000, p.293-321) em

sua an|lise do videoclipe “A minha alma” do grupo O Rappa nos aproxima da análise

sincrética de um objeto televisual. Para o autor, o maior problema dos estudos do

sincretismo seria a busca pelo “efeito de sentido de uma enunciaç~o única em um

texto cuja substância apresenta instâncias de naturezas múltiplas – no caso,

cancional, visual, verbal” (p. 294). O autor ressalta a import}ncia em considerar a

enunciação sincrética como uma enunciação múltipla, ponto de vista que vai de

encontro às nossas análises iniciais e, aos pensamentos já expostos aqui de Medola

e Oliveira. Para definir essas instâncias de naturezas múltiplas, Monteiro busca em

Greimas & Courtès o conceito de instância da substância:

Entende-se por instâncias de substância os modos de presença, para o sujeito cognoscente – e de apreensão por ele -, da substância enquanto objeto de conhecimento. Assim, para a substância fônica, se reconhecem três instâncias: a instância articulatória, de ordem fisiológica, em que a substância é como uma espécie de gestualidade muscular; a instância acústica, de ordem física, em que ela é apreendida sob forma ondulatória. Enfim, a instância auditiva, de ordem psicofisiológica [...] Não se deve confundir instância e substância: é uma mesma substância que se apresenta de modos diferentes, mesmo se a correlação entre as diferentes instâncias – entre as análises articulatórias e acústicas, por exemplo – for difícil de ser estabelecida. (DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA, 2008, p. 266).

Pontuamos, aqui, que a instância da substância, é o que vínhamos até agora,

chamando de usos das linguagens. A nomenclatura tão pouco importa se o que

devemos chamar a atenção aqui é novamente para o todo de significação advindo

de uma mesma enunciação, que no entanto, relaciona unidades diferentes, sejam

elas chamadas de instâncias, sistemas ou processos de linguagens. Mas

relacionando, sim, o ponto de vista de aplicação de uma teoria sincrética baseada

nas concepções de Floch (1985) e Hjelmslev (1975), e, sobretudo, considerando os

procedimentos, como já apresentados aqui de neutralização entre as substâncias da

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expressão, como o esboçou Oliveira (2009, p. 93), de que “a plástica sincrética é

significante justamente porque as suas qualidades sensíveis têm um atuar que as

mostra observ|veis e vivenci|veis { medida que s~o propostas como experiências”,

ou seja:

O ato de processamento do sentido sincrético pelos sentidos promove espécies de vivências significantes, experiências sensíveis, que têm marcado as explorações da mídia e o seu lançar-se na criação de objeto midiáticos sincréticos como experiências de ressignificação do cotidiano repetitivo, do eu anônimo, do eu massivo. (OLIVEIRA, 2009, p. 98).

A partir dessas considerações é que começaremos a análise do clipe musical

“Pôr do sol”, que faz parte do episódio de mesmo nome. Como já vimos

anteriormente, na análise do episódio, a sequência 653 traz os bonecos Júlio e

Vitória que vão até o alto de um prédio da cidade grande assistir o pôr do sol.

No nível profundo, pode-se identificar a oposição fundamental realidade vs

sonho, cujas oposições temáticas se dão no nível discursivo por tristeza vs

felicidade, cantar vs adormecer, dia vs noite, brincar vs brinquedo. Esses elementos

explicitam o tema pôr do sol do alto do prédio na cidade, que juntamente com as

figuras do verbal retirada de frases das sequências anteriores, como “maravilhosa”,

“alto”, “lindo”, remetem a um efeito se sentido eufórico desse objeto de valor, que

é ter aquela vista da cidade do alto de um prédio, portanto possível apenas na

Cidade Grande. Essas oposições acabam por instaurar também essa espacialidade,

um aqui do alto do prédio, em oposiç~o ao l| embaixo, “onde todo mundo é

formiguinha”, “uma cidade de brinquedo”. Essa espacialidade - dada pela figura do

alto do prédio onde é possível ver o pôr do sol (“daqui do alto a vista é t~o bonita”)

– marca a intencionalidade dos sujeitos que ali estão, eles querem, poder ver aquele

momento, naquele lugar, portanto, trata-se do sujeito atualizado discursivizado.

No nível discursivo, esse sujeito virtualizado que é convertido em ator da

enunciação, se assume numa debreagem enunciativa de pessoa, tempo e espaço,

53 Quando nos remetemos ao clipe musical “Pôr do sol” vamos cham|-lo de sequência 6, que é a sequência intitulada durante a análise do episódio.

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um eu (Júlio e Vitória), num aqui (alto de um prédio) e num agora (fim do dia). Por

embreagem enunciativa de espaço, Júlio e Vitória instauram um não-aqui

enunciativo explicitado pelo “l| embaixo”.

FIGURA 16 –Passagens do clipe musical “Pôr do Sol”: os passarinhos cantam para a chegada do pôr do sol; Júlio sozinho e a cidade no fundo; Vitória sozinha e a cidade no fundo; Júlio e Vitória numa cena de cima para baixo; novamente os personagens filmados na diagonal de cima para baixo, e

perto um do outro; Júlio e Vitória assistem “juntos” ao pôr do sol

No nível narrativo, o sujeito Júlio quer estar em conjunção com seu objeto

de valor assistir o pôr do sol “com” Vitória, sendo esse o programa narrativo de

base. Para isso, antes, ele que já tem esse querer precisa adquirir competência e

cumprir a performance, então pelo programa narrativo de uso. É assim que nas

sequências anteriores a essa: 1o) Júlio pede autorização para Zazá (sujeito

competente, adulto, aquele sujeito que pode); 2o) troca a camisa que está vestido

por outra “bacana” e “legal”. Na sequência 6, Júlio torna-se um sujeito atualizado,

(sabe, quer, pode e deve fazer) estar junto com Vitória no alto do prédio para assistir

o pôr do sol. “E eu aqui feliz com minha amiguinha”, diz. Esse estar junto com

Vitória é dado no plano da expressão pela proxêmica e gestualidade dos bonecos

que estão dispostos bem próximos na varanda de um prédio, ora se entreolham, se

tocam e se abraçam ao final da sequência. E pela linguagem musical, ou seja, “o que

está dizendo (o texto) e a sua maneira de dizer (a melodia)” (TATIT, 1997, p. 89),

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instaura essa proximidade entre os actantes da enunciação. Segundo a semiótica da

canção teorizada por Luiz Tatit (1999, p. 249) o componente melódico (melodia) e o

componente linguístico (letra) são responsáveis por um sentido homogêneo que,

“exibem, entretanto, sintaxes próprias, a primeira assegurando a presença física da

matéria sonora e a segunda encarregando-se, sobretudo, do conteúdo abstrato”. O

autor afirma que:

A ritualização da fala corresponde a um processo de ritualização de uma sonoridade que, a princípio, teria função totalmente passageira. Ao adquirir leis próprias de funcionamento, que se manifestam sobretudo na ordenação melódica, a canção impõe uma desaceleração às manifestações linguísticos-entoativas um pouco de sua intervenção ligeira e descontínua. No mesmo ato, deposita, ao lado das oposições intelectivas, as emoções contínuas que só a melodia pode trazer [...] se a presença da fala é marca de rapidez, imediatismo e eficácia do instante enunciativo e, por outro lado, a presença da música significa estabilização da matéria sonora, ritualização e conservação estética, podemos instituir a categoria andamento como parâmetro temporal de análise e dela depreender uma tensão entre aceleração e desaceleração respondendo, respectivamente, pelos valores descontínuos e pelos valores contínuos. (TATIT, 1997, p. 89-90).

O intuito desse trabalho não é o de semiotizar a melodia e a letra da canção

presentes na sequência 6, entretanto, baseando-nos na teoria deste autor, faremos

algumas pontuações a respeito:

I. Identificamos na canção uma extensão passional, ou seja, a

desaceleração na melodia ou passionalização melódica; como nos

explica Tatit:

[...] tempo de espera ou de lembrança (cuja definição depende da letra), essa duração que permite ao sujeito refletir sobre os seus sentimentos de falta e viver a tensão da circunstância que o coloca em disjunção imediata com o objeto e em conjunção à distância com o valor do objeto. (TATIT,1999, p. 99).

II. A canção tem início pelo refrão, que vai acompanhá-la nas outras

estrofes. Esse refrão caracteriza uma repetição, uma duração,

portanto, uma parada com uma aceleração gradativa. Temos

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depois um segundo refrão, a parada da parada, em relação às

estrofes subsequentes que seriam a continuação dessa parada. É

como se o programa melódico de uma canção se caracterizasse

por uma “levada instrumental”, nos moldes de Tatit (1999, p. 195).

O autor diz que essa levada liga sujeito e objeto num fazer “que

tende a neutralizar as diferenças, devorando os sintomas da

parada (os pequenos contrastes) e, quando esta é inevitável,

interrompendo-a tão logo quanto possível” (IDEM, p. 200).

III. Ao observarmos a canção, foi possível perceber variações na

melodia, que ora se pareciam mais com uma fala dos sujeitos, ora

como letra de música. Tatit nos explica que a presença da fala na

canção popular é uma fonte de ruído54 regida pelas instabilidades

entoativas e/ou imprecisões rítmicas. “[...] se por um lado repugna

aos cancionistas, por outro, os atrai [...] que como signo de

presentificação enunciativa, apresenta alto rendimento semântico

no momento da execuç~o do cantor” (1997, p. 92). Neste caso, dá

um ritmo reiterativo à canção: que ora um canta, e o outro

explica, depois um explica e o outro canta.

No momento em que o refrão é cantado, que Júlio e Vitória ficam mais

próximos, na desaceleração, na espera do que vai acontecer: a espera do sol que irá

se pôr e do final de mais um dia. Essa figurativização nos indica o tipo de

relacionamento entre essas crianças que estão prestes a entrar na puberdade,

selando o belo momento do assistir ao pôr do sol juntos com um contato corpóreo.

Um abraço entre os dois actantes encerra o pôr do sol na cidade, interrompido pela

índia Oriba, irritada e enciumada gritando no laptop, instaurando, pois, a oposição

discórdia vs amizade. Temos aqui, na expressão do plano musical, a oposição

54 Segundo o autor, os ruídos “s~o aqueles que provocam rupturas no programa do sujeito exigindo condutas de salto repentinas que aceleram bruscamente o percurso”. Ele explica que nesse sentido, o ruído equivale à descontinuidade, produzindo no plano do sujeito, uma sensação disfórica, de interrupç~o do fluxo fórico. “O som, por sua vez, corresponde à retomada da continuidade e à produç~o subjetiva da sensaç~o eufórica (reintegraç~o ao fluxo)” (TATIT, 1999, p. 91).

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aceleração das estrofes da música (pelas quais os actantes cantam separados) vs

desaceleração do refrão (que eles cantam juntos), reiterado no conteúdo pelo

contato físico entre eles. Além disso, as falas cadenciadas e rimadas no refrão

(cidade/felicidade, anoitecer/adormecer) como também nas estrofes

(coração/avião, formiguinha/amiguinha) e a não-presença dessas rimas em

determinadas partes no refrão (cantar/feliz) e nas estrofes (bonita/linda) implicam

nesse encontro - e participação compartilhada - vs desencontro e participação por

adesão, entre os actantes no plano do conteúdo.

Pela linguagem audiovisual apreendemos tomadas feitas em planos médios:

em que os sujeitos aparecem sozinhos (principalmente na primeira estrofe da

canção, quando primeiro Vitória aparece e depois Júlio, em tomadas diferentes) e

dos passarinhos sozinhos ou com Júlio e Vitória assistindo o pôr do sol ou

contemplando a cidade no aqui (alto do prédio) e agora (fim do dia). As cenas são

feitas também em plongée, quer dizer filmadas de cima para baixo, quando a cidade

é aquele lá enuncivo que falamos, quando a cidade est| “l| embaixo”, e mesmo

assim Júlio e Vitória continuem juntos. Novamente, é dada a categoria correlata do

conteúdo ser social vs fazer social.

Temos assim pela análise desta cena um quadrado semiótico que já

estabelece as primeiras relações sociais discursivizadas em Cocoricó:

FIGURA 17 – Relações sociais discursivizadas em Cocoricó

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Retornando aos procedimentos de neutralização, identificamos nesta

sequência o sincretismo por concentração ou encaixe, com “a convocação dos

sentidos em uma reuni~o íntima entre si”, a partir de “alianças sinestésicas” as

quais operam sínteses perceptivas nas apreensões, habilitando assim, uma

aderência de ajuste e de sinergia “ao objeto sincrético enquanto totalidade

sensorial global que é experienciada pelo ir de um traço a outro por encaixes de

uma semiose existencial” (OLIVEIRA, 2009, p. 102). Os sentidos convocados são

distintos, a visão (da cena/o sol se pondo com toda sua luminosidade e abrangência

na cidade grande), o tato (no relacionamento entre os dois actantes, da

gestualidade à cumplicidade, conforme já descrito), a audição (o cantar dos

passarinhos é a música para o enunciatário), mas continuam mantendo entre si e o

todo de significação uma aliança momentânea, embora “existencial”.

2.5 Articulações e construção do sentido em Cocoricó

Vimos, neste capítulo, como o programa Cocoricó se apresenta ao público

telespectador, começando pelas vinhetas de abertura em suas duas versões, os

curtinhas que iniciam o programa na última temporada, os procedimentos

sincréticos utilizados para dar sentido a cada episódio, seja para a narrativa, seja

para o clipe musical. Notamos que cada episódio possui uma estrutura de vinheta

de abertura, narrativa, vinhetas de continuidade (que permite a ligação entre cenas

diferentes), clipe musical, continuação da narrativa e vinheta de encerramento.

A partir dessa estrutura, podemos já concluir segundo esse episódio

analisado que a temática principal é a descoberta da identidade social da criança. O

que a criança gosta mais de fazer? Brincar. O episódio vai - tomada a tomada -

construindo o sentido do brincar socializado de uma criança, desde bola, carrinho,

leitura, videogame, futebol na rua, até ver um pôr do sol do alto de um prédio.

Relaciona-se assim, esse objeto de valor de ver o pôr do sol na cidade como um

fazer junto. O pôr do sol ganha um horizonte imposto pela verticalidade dos

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prédios, possíveis apenas na cidade grande. Esse pôr do sol possibilita também a

Júlio, a descoberta de sua identidade enquanto uma criança prestes a entrar na

puberdade, com a sua nova amiga Vitória. O episódio de Cocoricó presentifica o tema da identidade do ser criança e, por

contrariedade o da alteridade, ou seja, o não-ser criança, ser um adulto. Nesse

episódio, que faz parte da mais recente temporada, Cocoricó introduz uma temática

mais infanto-juvenil a partir da relação de Júlio e Vitória55, mas também com a

introdução de temas sobre as profissões, por exemplo. Se temos, pois, identidade

versus alteridade como oposição fundamental do episódio, portanto como

contrários, teremos como contradição, alteridade e não-alteridade; por

subcontrários, não-alteridade e não-identidade; por complementaridade, não-

alteridade e identidade, assim como não-identidade e alteridade; por fim, na relação

de hierarquia temos como conjunção de não-alteridade e identidade a vivência e

pelo outro lado, o não-identidade e alteridade, temos a aprendizagem. Percebe-se,

pois, que todas essas relações se dão pelo tempo escolhido da narrativa, do ser

criança, infantil e querer brincar, passando pelo brincar na companhia do(a) amiga,

com enfoque na relação de proximidade que marca o início de uma outra fase da

nossa vida, a adolescência, cheia de descobertas – da própria vivência - como

também do ser criança, querer aprender, conhecer, entender, com a possibilidade

de ir aprendendo com o outro; sendo cuidado ainda por alguém, por aquele que não

é criança, que é o adulto, que já passou pela infância, pela fase das descobertas,

pelo aprendizado cuidado e agora pode e é maduro.

55 Em entrevista ao site da UOL, o diretor do programa Fernando Gomes afirma que foi intuito nesta temporada inserir uma tem|tica sobre a puberdade. “Tem um quê de dar uma crescidinha na faixa etária do público, por que o Júlio começa a ficar encantada com uma menina que é amiga do João e começa a surgir até um romance infantil no programa”, diz. (disponível em http://criancas.uol.com.br/ultnot/ multi/2009/10/01/04023172D8914366.jhtm?nova-temporada-de-cocorico--makingof04023172D8914366, acessad04/05/2010).

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FIGURA 18 – Articulando o sentido: identidade vs alteridade

A explicitação dessa oposição de base do episódio, possibilita-nos retomar a

análise dos procedimentos sincréticos e a partir daí, compreender as relações

propostas por um enunciador para fundamentar tal significação. Lembremo-nos

que pelo plano da expressão, temos as seguintes relações: monocromatismo vs

policromatismo, englobado vs englobante, intercalante vs intercalado que fundam a

categoria CONTINUIDADE vs DESCONTINUIDADE. Temos, ainda, pelo plano do

conteúdo: ocupação vs tédio, cumplicidade vs individualidade, fundando a oposição

SOCIEDADE vs INDIVIDUALIDADE. Todas essas relações reafirmam a oposição

fundamental do episódio: IDENTIDADE vs ALTERIDADE; que será recolocada por

outras narratividades em diferentes episódios, colocando o Cocoricó como um

programa que tem como significação a formação da criança que o assiste, portanto

a formação de uma identidade, proposta pois, pelo destinador TV Cultura. Veremos,

assim, no próximo capítulo como são dados os modos de presença discursiva em

Cocoricó.

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Figura 19 – As articulações sincréticas do episódio analisado: expressão e conteúdo,

baseado em articulações desenvolvidas por Luiggi Oliveira (2010)

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Capítulo III

MODOS DE PRESENÇA DISCURSIVA

As sociedades pós-modernas reservam um lugar cada vez mais importante à procura de sentido, à construção de projetos de vida que as ajudem a dar uma orientação e um significado a sua experiência cotidiana, em um contexto social cada vez mais complexo e fragmentado.

Andrea Semprini, 2006

Nos capítulos anteriores apresentamos os programas de televisão infantis

como decorrentes de um ambiente midiático - que é a própria TV – e que propõem

uma relação entre um destinador (a própria emissora que veicula os programas) e

um destinatário (o público espectador do programa). Ao analisarmos as vinhetas,

demos início ao processo de análise das estruturas discursivas, àquelas pelas quais o

destinador coloca em jogo valores dispostos para a produção de um discurso, pela

delegação a outro sujeito: o sujeito da enunciação. Lembremos, novamente, do que

nos ensina Fiorin: “o primeiro sentido de enunciação é o de ato produtor do

enunciado” (2005, p. 31). Os teóricos Greimas & Courtès no Dicionário de Semiótica

(p.147-148) 56 explicam que a enunciação é o lugar da geração do discurso; é o lugar

56 Nos verbetes enunciação e enunciado do Dicionário de Semiótica (2008, p.166-170).

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onde se d| a “colocaç~o em discurso”, onde h| uma retomada das estruturas

narrativas que se transformam em estruturas discursivas. Nas palavras de Fiorin:

A enunciação define-se como a instância de um eu-aqui-agora. Com efeito, o sujeito da enunciação é sempre um eu, que opera, ao realizar a produção discursiva, no espaço do aqui e no tempo do agora. Por isso, a sintaxe do discurso, ao estudar as marcas da enunciação no enunciado, analisa três procedimentos de discursivização, a actorialização, a espacialização e a temporalização, ou seja, a constituição das pessoas, do espaço e do tempo do enunciado. (FIORIN, 2000, p. 40).

Considera-se, portanto, o discurso como sinônimo de um texto, instaurado

por duas instâncias: o enunciador e o enunciatário. O autor se utiliza ainda dos

verbetes de Greimas e Courtès para concluir que se a enunciação “é a instância

constitutiva do enunciado; o enunciado, por oposição à enunciação, deve ser

concebido como o estado que dela resulta” (FIORIN, 2005, p.36). Assim, afirmamos

a necessidade de analisar o Cocoricó pela instância discursiva do enunciado, pelo ato

por meio do qual o sujeito da enunciação faz ser o sentido:

Para que o uso de linguagens se torne discurso, a primeira instância a ser

observada na enunciação é a categoria de pessoa. A condição constitutiva dessa

categoria é construída pelo diálogo, na reversibilidade dos papéis eu/tu. “O eu é o

indivíduo que enuncia um discurso; o tu é o indivíduo a quem o eu se dirige; o aqui é

o lugar do eu” (FIORIN, 2005, p. 55). Soma-se à instância produtora do discurso, o

eu que enuncia, em dada espacialidade e correlata temporalidade. Fiorin explica:

Assim, espaço e tempo estão na dependência do eu, que neles se enuncia. O aqui é o espaço do eu e o presente é o tempo em que coincidem o momento do evento descrito e o ato de enunciação que o descreve [...] Porque a enunciação é o lugar da instauração do sujeito e este é o ponto de referência das relações espaço-temporais, ela é lugar do ego, hic et nunc. (FIORIN, 2005, p. 42).

Ao sujeito da enunciação cabe uma orientação transitiva, continua Fiorin

(FIORIN, 2005, p. 42), “um ato de mirar o mundo”, ao que Greimas chama de

intencionalidade fundadora da enunciação. Trata-se de perceber a enunciação como

um enunciado-discurso, cuja função é a intencionalidade. Essa intenção configura-se

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na relação entre os actantes da comunicação, o eu, de um lado o enunciador, e o tu,

instaurado por ele no discurso, o enunciatário. Do ponto de vista semiótico, é

possível reconstruir a enunciação a partir da reconstrução, ou seja, do ato gerador

do enunciado por operações de cat|lise. “A cat|lise é a explicitaç~o, efetuada

graças às relações de pressuposição que os elementos manifestos no discurso

mantêm com os que estão implícitos” (FIORIN, 2005, p. 32).

Esses elementos implícitos ao lado dos traços explícitos são as marcas

deixadas no discurso que nos permitem reconstituir o percurso traçado pelo

enunciador, para o fazer interpretativo do enunciatário ser processado. Considera-

se para isso: as competências necessárias para a produção do enunciado (sejam elas

linguísticas, discursivas e interdiscursivas, textuais e intertextuais, pragmáticas e

situacionais)57, a ética da informação (com leis discursivas que pregam a troca verbal

honesta58 entre os parceiros do ato comunicativo) e, o acordo fiduciário entre

enunciador e enunciatário. Fiorin esclarece que “o enunciador e o enunciatário são

o autor e o leitor, mas não o autor e o leitor reais, em carne e osso, mas sim o autor

e o leitor implícitos, ou seja, uma imagem do autor e do leitor construída pelo

texto” (FIORIN, 2008, p.138).

Antes de explorar as análises dos episódios de Cocoricó, pelas imagens do

enunciador e do enunciatário cravadas no enunciado, convém dizer que a

convocação do enunciatário para ler e interpretar o discurso-enunciado proposto

pelo enunciador (destinador) fica evidente somente quando são analisadas as

estruturas discursivas. Pelo conhecimento das instâncias de instauração do sujeito,

com as pessoas, espaços e tempos, é que estaremos conhecendo esse discurso-

57 A competência linguística é a competência básica do enunciado, o falante deve conhecer a gramática. A competência discursiva diz respeito às transformações de estado presentes em todo o texto, questões relacionadas à tematização, figurativização, aspectualização, modos de argumentação, efeitos de sentido, dentre outros e; a competência interdiscursiva relaciona-se com a heterogeneidade do discurso, em suas diferentes linguagens. Enquanto a competência textual leva em consideração o discurso veiculado nos diferentes veículos e suas peculiaridades, a competência intertextual refere-se às relações contratuais ou polêmicas de um texto. Por fim, temos a competência pragmática que concerne aos valores ilocutários dos enunciados e a competência situacional diz respeito ao conhecimento que cada parceiro tem do outro no ato comunicativo (FIORIN, 2005, p.32-33). 58 Fiorin fala nas leis discursivas mais evidentes segundo KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. 1980. L´enonciation. De La subjectivité dans le langage. Paris, Armand Colin. p. 210-214.

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enunciado. O contexto de recepção está inserido na construção enunciativa e sua

depreensão é fundamental em termos de apreensão do sentido posto pelo

enunciador ao enunciatário. É sobre o processar do sentido e as imagens dos

sujeitos projetadas que iremos discorrer nesse capítulo.

3.1 Manifestações do narrador televisual

Será, assim, na relação enunciador-enunciatário dada pelo enunciado que

identificaremos “marcas” que nos levar~o { inst}ncia da enunciação. Essa relação

entre enunciador-enunciatário nos aproxima também dos mecanismos de fazer

(crer) o enunciatário telespectador-criança daquilo que está sendo dito. O

enunciador, assim, será o delegado do destinador - TV Cultura - que irá manipular o

enunciatário para fazer crer em seus valores. Mas como esse enunciador se faz ver?

Como em qualquer programa de televisão, a responsabilidade do que é

enunciado é da equipe responsável. Em Cocoricó, essa equipe, então, é composta:

desde a equipe de produção, reunindo aí, produtores, diretores, atores que

manuseiam os bonecos, roteiristas, até a equipe de pedagogos e psicólogos que

auxiliam na produção final do texto. Os nomes dessas pessoas aparecem

diariamente na vinheta de encerramento do programa, portanto, podem ser

conhecidos pelo enunciatário, pelo público. Soma-se a essa equipe, à própria

emissora que veicula o programa, onde ele é produzido, feito e transmitido, que já

citamos anteriormente como destinador e agora, enunciador pressuposto, que é a

TV Cultura.

Além da configuração desse destinador-enunciador descrito no primeiro

capítulo, que é a emissora na qual Cocoricó é transmitido, temos também outros

destinadores, os quais podemos citar: Fernando Gomes, o diretor do programa,

criador e bonequeiro responsável por Júlio, além de Hélio Ziskind e Fernando Salém.

O primeiro que é diretor musical de Cocoricó , e o segundo, roteirista e diretor

musical da temporada na cidade. O diretor Fernando Gomes é conhecido pela

criação e manuseio dos bonecos, seja em Cocoricó, ou em outros programas da

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emissora (como em Vila Sésamo), ou ainda em comerciais de televisão. Assim como

Gomes, os diretores musicais são importantes referências de qualidade artística no

que diz respeito aos aspectos plásticos da linguagem televisual de Cocoricó, isto é,

tanto no visual quanto no sonoro.

No que diz respeito à qualidade musical, seguimos Felipe Trota,

considerando que existe um conjunto de critérios para classificá-la como de

qualidade, que vai: desde a conjugação de características estéticas específicas (alto

grau de elaboração harmônico-melódica), condições de experiência (audição

silenciosa), consumo elitizado (nobreza e classes abastadas), até a personalização

do criador (TROTTA, 2007, p.3). Ainda, segundo o autor, no universo da canção

popular, a legitimidade de categorias musicais tende a aumentar quando são

empregados alto teor de individualização do autor, grande complexidade

harmônico-melódica, sofisticação poética e sonoridade de arranjo rica em

contrapontos e variações de texturas instrumentais; ou seja, adotam critérios de

valoração musical emprestados dos critérios norteadores de qualidade derivados da

obra dos autores referenciais, “eruditos” (IDEM). São esses arranjos, como vimos

na canção “Pôr do Sol” que apontarão para determinada qualidade estética e, neste

caso, na atuação do autor enquanto destinador.

Entender essa relação entre a canção e os autores delas, nos é importante na

medida em que é por essa relação que são estabelecidas conexões entre a criação

autoral das músicas de Cocoricó, a linguagem televisiva utilizada e a apreensão que

se terá pelo uso de tais linguagens. A criança, baseado em Gonzalo Brenes (apud

SEKEFF, 2007, p. 105), tem o desenvolvimento musical processado em quatro

etapas. São elas: 1ª.) o ritmo, quando a criança percebe e reage ao ritmo musical

por meio da dança; 2ª.) a melodia, em que a criança já se mostra sensível à beleza da

linha melódica, podendo emitir uma série de sons em intervalos pequenos e

inventar músicas; 3ª.) a harmonia; a criança se interessa também pelos efeitos

gerados pela harmonia, pela combinação simultânea dos sons; e por fim a 4ª.) a

forma, quando a percepção se amplia, o que possibilita a recepção de estruturas e

formas musicais elementares. Portanto, a apreensão do sentido da música dos

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clipes musicais será dada a partir da etapa em que se encontra cada criança. Isso

quer dizer que:

Compreender a linguagem que se lê e se escuta, vivenciar seus múltiplos sentidos, integrar seus aspectos sensoriais, afetivos, intelectuais, estéticos e contrapontá-los com outras matrizes de conhecimento, esse é o objetivo básico do que entendemos da música em termos de ferrramenta auxiliar da educação, pois sua “vivência” é atributo essencial humano. (SEKEFF, 2007, p. 105).

Além da possibilidade de um desenvolvimento cognitivo perceptivo dado

pela musicalidade, as letras são tematizadas não apenas no lúdico, como também

no pedagógico, no sentido de trazer prescrições das ações cotidianas do dia a dia de

uma criança, dos valores sociais, em seus aspectos identitário e comunitário, da

consciência ecológica, do aprendizado através da experiência em grupo e pelas

diferenças, entre outros. Pela música “Acampar”, de Hélio Ziskind, que tem um clipe

musical e cujo refrão diz: “acampar, ficar pertinho da terra, tomar banho de

cachoeira e à noite tocar violão em volta da fogueira”, esses destinadores estão

dando valores eufóricos para o contato com a natureza59, como em outras músicas

da temporada na cidade. Em “Esse rio n~o tem peixe”, de Fernando Salém60,

também temos o desenvolvimento da temática ecológica dos rios poluídos das

cidades grandes ou na utilização de um discurso intertextual de músicas emblemas

da cidade de São Paulo, como no clipe musical “Cadê a mala do Júlio”, com

referência à música Trem das Onze, de Adoniram Barbosa que ficou conhecida pelo

grupo Demônios da Garoa.

São as qualificações, primeiro individual e depois coletivamente que farão

esses sujeitos também destinadores no seu fazer Cocoricó. Nesse primeiro nível da

59

A música do mesmo CD, “A História do Incêndio do Jequitib| de Carangola” conta a história de um jequitib| que foi vítima de um incêndio, a letra da música diz: “Os amigos, inconformados, perguntavam por quê? Por quê? Por causa de um gigante, um homem do mal, com arma de fogo lutou com os homens do bem e suas espadas de |gua. O fogo morreu. Talvez o gigante também”, que tematiza, portanto, a ação do homem sobre a natureza, nas figuratividades do homem mau e do gigante da floresta. 60

Assim como Hélio Ziskind, Fernando Salem também possui uma biografia associada à criança, tanto canções infantis, quanto roteiros para programas e animações infantis, além de ser um músico referência na cidade de São Paulo, figurativizada nesta última temporada de Cocoricó. Disponível em http://www.fernandosalem.com.br (acessado em julho de 2010).

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enunciação, então, é que temos o enunciador como destinador implícito e o

enunciatário como destinatário implícito. Por uma hierarquia enunciativa, temos

neste primeiro nível, uma debreagem um não eu, um não-tu, um não-agora. Define o

semioticista, “a debreagem consiste, num primeiro momento, em disjungir do

sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um não-

eu, um não aqui e um não-agora” (FIORIN, 2005, p. 43); por meio do qual o

enunciador delega à voz a outro sujeito: ao narrador. Na linguagem televisual, essa

delegação de voz é dada pelo ato de filmar os objetos mostrados pela imagem, que

constituem um conjunto de elementos significantes, mas que também indicam uma

ausência, a da instância da enunciação (BETTETINI, 1986, p. 31).

Pela análise dos episódios, identificamos que se trata de um narrador

implícito, ou seja, é como se o programa fosse narrado por si só, sem a intervenção

do papel de contar do narrador. Neste primeiro momento de contato com Cocoricó,

é como se n~o existissem “marcas de enunciação-enunciada em que o sujeito que

diz eu, denomina-se narrador, e o tu, por esse sujeito instalado, se configura

narrat|rio”, diz Medola (2001, p.77) ao analisar uma telenovela, gênero identific|vel

ao programa em análise.

Logo o narrador é dotado de um dever e poder fazer qualificado pelo

enunciador que por meio do narrador conduz o enunciado e realiza as delegações

de vozes aos actantes. No entanto, se temos em Cocoricó um narrador implícito que

não se mostra, não se apresenta, por outro lado, temos em outras sequências um

narrador explícito. Trata-se da câmera, que ora se esconde enquanto ferramenta de

mediação, entre o que está sendo narrado e para quem está se narrando, ora

“ganha vida” e passa a contar a história { sua própria maneira. E isso se dá pela

plástica da cena, isto é, pelos movimentos de câmera e pela edição. Como por

exemplo, no episódio “Pôr do sol”, no qual pela fus~o da imagem do boneco Júlio

com a vinheta de passagem é o que dá continuidade à cena, no privilegiar de um

actante em detrimento de outro, nessa fusão entre as cenas, ou por um close, como

outro exemplo. Nessas configurações, o sujeito da enunciação está delegando à

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câmera o papel de narrador. Esse narrador se confunde com a própria câmera que

capta o narrado.

O que, então, estamos falando é que, a construção da delegação de vozes

nas sequências analisadas, ora é dada por um narrador (câmera) explícito numa

debreagem de 1º grau, ora por um narrador implícito numa debreagem de 2º grau

em que os interlocutores são postos em diálogo. Em Cocoricó, as cenas se dão nessa

passagem entre uma debreagem enunciva actorial de 1º grau com um narrador ora

explícito, ora implícito e uma debreagem de 2º grau caracterizada por uma

delegação de voz aos interlocutores, que estão explicitamente no enunciado

(aqueles que no nível narrativo chamamos de actantes). O esquema montado por

Diana Barros (1988, p. 75) para indicar esses sujeitos é

elucidativo:

FIGURA 20 – As delegações de vozes: debreagens de 1º e 2º graus

Embora esse narrador implícito não seja expresso no conteúdo verbal, não

diga eu, não tenha voz; ele se mostra, dando a ver o que pretende. O que pode ser

acompanhado no episódio “Os caçadores da galinha perdida”, numa referência

intertextual ao filme de Steven Spielberg “Os caçadores da arca perdida”. Neste

episódio, Lilica ganha um novo brinquedo, uma galinha chamada Loloca, enquanto

Júlio e Jo~o fazem um curso de consertos em geral pela internet e criam o “Cocó

conserta tudo”. Os caminhos de Lilica e Loloca se cruzam com os de João e Júlio e

os dois têm que provar que podem realmente consertar tudo. Na primeira

sequência Lilica brinca com seu novo brinquedo, a sua galinha Loloca que pela

posição em que é colocada põe ovo. A cena se desenrola numa debreagem

enunciva, em que Lilica interage com o brinquedo. No entanto, a mesma câmera

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que filma em plano médio Lilica brincando, numa tomada posterior faz uma

panorâmica e logo depois dá um close na galinha de brinquedo com o intuito de

mostrar, dar visibilidade às funções práticas do brinquedo, que posteriormente será

quebrado. Ao fazer um movimento de câmera que por si só já mostra o que virá, a

câmera está narrando também a história e, sendo assim, passa a ser nesse instante

um narrador explícito numa debreagem de 1º grau.

FIGURA 21 – Lilica conversa com seu novo brinquedo: a galinha Loloca

Temos outro exemplo, no episódio da temporada na cidade “O Homem

Sapo”, o Beco onde as crianças costumam brincar está interditado para as

filmagens do filme “O Homem Sapo 4”. Eles s~o impedidos de assistirem às

filmagens, no entanto, ganham ingressos de cinema para a estreia mundial do filme.

Júlio, João, Lilica e Alípio descem do elevador do prédio e tentam brincar no Beco,

num plano médio a câmera mostra todos os actantes, no entanto, quando Júlio e

João se dirigem ao Beco, um dos produtores do filme os impede de entrar. Antes

dele (interlocutor) se dirigir aos interlocutários para avisá-los de que não poderão

passar, a câmera já mostrava num plano geral, toda a “parafern|lia” necess|ria para

gravar a cena de um filme e uma fita de sinalização (daquelas preta e amarela que

impedem a passagem) que o produtor segurava. No próprio ato de filmar, a câmera

narrava a cena, antes mesmo, de o conteúdo verbal manifestar o mesmo significado

do que estava sendo mostrado por ela.

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FIGURA 22 – Garotos são impedidos de brincar no Beco devido às gravações do filme “O Homem Sapo”

Foi possível observar, portanto, que o programa apresenta uma debreagem

enunciva, com os actantes da enunciação não projetados no enunciado, com uma

narração implícita em alguns momentos e explícita, em outros, quando é atribuído à

câmera que filma o papel de narradora da história, como se dá frequentemente em

filmes cinematográficos. O que chamamos atenção, neste momento, é que ao

contrário, de outros programas infantis, Cocoricó possui uma autonomia de

linguagem televisiva, que possibilita ao enunciatário também apreender e aprender

essa forma de discurso enunciado. Em Cocoricó, os movimentos de câmera

antecipam a cena, buscando o melhor ângulo, se distancia, se aproxima, permite ao

enunciatário uma visão mais ampla do ambiente cenográfico, que acaba, por fim,

criando um efeito de proximidade. Será, então, que temos um enunciatário próximo

cada vez mais do que se enuncia? Sendo educado para o audiovisual?

Por ora, podemos responder a primeira pergunta positivamente. A câmera-

narrador delegado do enunciador pode assumir, segundo Arlindo Machado, o ponto

de vista de um “sujeito narrador onividente e tomar todas as imagens e sons

considerados importantes para a plena visualizaç~o e audiç~o da história”

(MACHADO, 2000, p. 101). Esse narrador apreende o que se passa - como um

observador com focalização total -, ele é onisciente e onipresente, sabe mais que os

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actantes, conhece os sentimentos e os pensamentos de cada um deles e os

apresenta pelas suas escolhas. Essa posição de narrador explícito assumido pela

câmera carrega consigo um efeito de sentido de subjetividade, amplificado pela

categoria plástica da cena colocada pelo dizer dos interlocutores em face a face

com o interlocutário, telespectador, que trará então um discurso embreado. Vamos

explicar melhor.

O enunciador delega a voz do discurso a um segundo narrador: atores da

enunciação, que não dizem eu, mas se referem ao tu. Os atores dialogam com o

telespectador, narratário que está fora do texto. Por um efeito de subjetividade, o

telespectador é trazido para o enunciado e passa a fazer parte da cena enunciativa.

Trata-se de uma debreagem enunciativa de segundo grau. É aquela pela qual “se

instalam no enunciado actantes da enunciação (eu-tu), o espaço da enunciação

(aqui) e o tempo da enunciação (agora)”¸explica Fiorin (2005, p. 45). O enunciador

delega a voz ao narrador, que por sua vez, delega aos interlocutores e que, desta

vez, dizem “eu”, e se dirigem ao “tu”, criança, fora do texto. Não é como numa

entrevista jornalística em que o entrevistado se dirige para falar com aquele que

está atrás da câmera. Neste caso, é como se o atrás da câmera que enuncia fosse

ocupado pela criança, que apesar de estar fora do discurso, compõe a cena

enunciativa. Esse posicionamento é marcado pela corporeidade dos bonecos, que

se posicionam frontalmente à câmera na maioria das cenas, mas principalmente,

pelo assumir dessa corporeidade que vai de encontro à câmera numa proximidade

unida a um olhar face a face, como se realmente pudesse falar com aquele que

assiste ao programa.

No episódio “Desenho da Lilica”, da temporada 2008/2009, as crianças

fazem desenhos para participar de uma exposição em Cocoricolândia. Mas Pato

Torquato e Pata Vina aproveitam que Lilica não quer participar da exposição e se

inscrevem com um desenho seu, que é um dos premiados e faz Pata Vina ser a

celebridade que tanto queria. Selecionamos a sequência do diálogo inicial entre os

interlocutores.

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FIGURA 23 –Cenas do episódio “Desenho da Lilica”: Pata Virna confidencia a Pato Torquato que deseja ser uma celebridade; Caco se olha no espelho enquanto faz um desenho de si mesmo; João, Caco, Lilica e Júlio observam a exposição; a indignação de Lilica (dada pelo manuseio da cabeça do

boneco) ao descobrir que Pata Vina se inscreveu na exposição com um de seus desenhos.

Sequência 1

DIÁLOGO GRUTA Pato Torquato: (hhuummm) o que é que você tem quuérida? [preocupado] Pata Vina: (hhuummm) Torquato, eu queria, sabe, fazer alguma coisa diferente [os dois se aproximam da câmera], ficar famosa, ah sei lá, virar celebridade? [suspira] AH! Torquato, você me ajuda, querido? Pato Torquato: Claro. Vou pensar em alguma coisa, meu bijuzinho. Quá! Vou pensar! [Se aproxima e olha para a câmera]

Sequência 2

DIÁLOGO PAIOL

Primeira tomada mostra Caco cantarolando e desenhando, enquanto outra tomada mostra Lilica desenhando [plano médio] Lilica: ah! Acabei, Caco. Caco: Lilica não esqueça de assinar, viu?

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Lilica: já assinei. Venha ver o retrato que eu fiz de você, Caquinho. Caco: essa gerigonça aqui sou eu, é? Lilica: gerigonça, Caco? Caco: ainda bem que você avisou porque não dá pra entender nada [ênfase]. Lilica: ah, Caco, você não gosta dos desenhos que eu faço de você, né? [continua cantarolando e pintando] Lilica: [amassa os desenhos e joga na cabeça de Caco/surpresa] Astolfo, nossa, você está fazendo uma coleção dos meus desenhos. Viu, Caco, o Astolfinho gosta dos meus desenhos. Astolfo: bonito [risadas] Caco: ele não entende nada, né, Lilica. Júlio: ei pessoal vocês já estão sabendo da exposição. Caco e Lilica [juntos]: hhum, que exposição? Júlio: a grande exposição de desenhos de Cocoricolândia, qualquer um pode participar. João: é parece que eles v~o dar um prêmio para o desenho mais “manero”. Eu e o Júlio já fizemos os nossos. Caco e Lilica : nossa que bacana. Astolfo: dá, dá, dá. Júlio: ah, não dá, Astolfo, esse aqui vai pra exposição. Pato Torquato: uma exposição de desenhos, quá, quá, quá, e com prêmios, quá, quá. É disso que a Vina precisa para ficar famosa, quá, quá, quá. [olhando para a câmera] Caco: a gente também tem alguns desenhos, né, Lilica. Lilica: você, né, Caco. Eu só tenho gerigonça. Caco: Júlio, vem cá ver. Olhe, Júlio, olhe todos. Júlio: Ô, Lilica, não liga pro Caco, não. João: faça outro desenho pra participar com a gente da exposição. Lilica: eu não vou fazer nada. Minha exposição vai ser no bercinho do Astolfo. O único que gosta dos meus desenhos. João: ei, Lilica, espero um pouco. Júlio: você não quer nem saber qual é o prêmio. Caco: eu quero, qual é Júlio?

Neste episódio, temos os interlocutores Lilica, Caco, Pato Torquato, Júlio,

João e Astolfo que interagem entre si nestas duas sequências. Na primeira

sequência participam Pato Torquato e Pata Vina que conversam na gruta que

figurativiza a casa61 deles. Durante as cenas em que conversam, os olhares são

61 Não há um lugar onde os patos moram, e sim, a figurativização de uma casa de humanos, com sala de estar, cozinha, acessórios, piano, móveis, etc. Nesta cena, Pata Vina está sentada e tocando seu piano.

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trocados entre um e outro interlocutor, numa debreagem enunciva de 2º. grau, com

o narrador implícito. Entretanto, conforme o desenrolar da sequência, os

interlocutores vão se dirigindo para mais próximo da câmera. Eles se aproximam e

os olhares passam a ser dirigidos não mais um ao outro, mas em direção à câmera.

Isso produz uma inclusão de quem assiste também como interlocutário, de fora do

texto e, portanto, numa debreagem enunciativa. Essa relação se torna ainda mais

próxima quando o Pato Torquato diz : “Ah, vou pensar, qu|”, bem próximo {

câmera e em tom de voz mais baixo, íntimo, que intensifica um efeito de sentido de

subjetividade e consequentemente, proximidade entre esses atores.

Na segunda sequência. Caco e Lilica estão desenhando. Caco pinta um

autorretrato, seu desenho está num cavalete, a câmera num plano aberto filma

Caco pintando e um espelho que também mostra a imagem dele no ato de pintar,

mas também se olhando. Já Lilica desenha e colore com lápis sob uma mesa, é

filmada num plano médio. Astolfo também participa da cena num jogo de olhares,

não fala, porém, olha para o desenho, olha para a câmera e observa quando Lilica

amassa um de seus desenhos e acerta Caco com ele, expressando sua irritação com

o comentário que ele fez. Júlio e João chegam no paiol contando sobre a exposição

de Cocoricolândia e, nesta cena, a câmera filma Pato Torquato que, de fora do paiol,

através da janela observa o diálogo entre os outros actantes. O narrador nesta cena

é delegado do enunciador e faz ver por Pato Torquato, o diálogo que transcorre

entre os interlocutores, numa debreagem enunciva actancial de 2º grau, com um

efeito de sentido de objetividade. Neste diálogo, o enunciatário não está como

interlocutário, como na cena enunciativa da primeira sequência, lhe caberá observar

o que se desenrola em frente à TV, como Pato Torquato faz. Quando Júlio e João

chegam no paiol, os olhares são dirigidos para Caco e Lilica e não para frente da

câmera como Pata Virna e Pato Torquato fizeram na sequência anterior .

Entretanto, após observá-los, novamente, o olhar é dirigido para a câmera, desta

vez por Pato Torquato, na continuidade da sequência, que numa imagem

centralizada e em close, diz em tom de confidência: “é disso que a Vina precisa para

ficar famosa, qu|, qu|, qu|...”. O efeito de sentido, novamente, é de subjetividade,

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de proximidade com o telespectador, como se estivesse num diálogo com esse

interlocutário que assiste.

No episódio “Pé-de-moleque”, Júlio est| feliz, contente, porque é dia de pé-

de-moleque; ele aprende sobre o amendoim, sobre as serventias desta leguminosa,

sobre o significado do nome. O episódio possui uma temática pedagógica. Fazemos

aqui uma distinção entre os termos educativo e pedagógico, acreditando que o

Cocoricó apresenta-se como um programa pedagógico. De acordo com o Dicionário

Houaiss, o primeiro significado da palavra é referente à educacional, ou seja,

relativo à educação. Educação quer dizer:

1. Ato ou processo de educar(-se) 1.1 qualquer estágio desse processo 2 aplicação dos métodos próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral de um ser humano; pedagogia, didática, ensino 3 o conjunto desses métodos 4 desenvolvimento metódico de uma faculdade, de um sentido, de um órgão 5 conhecimento e observação dos costumes da vida social; civilidade, polidez, cortesia. (DICIONÁRIO HOUAISS , 2009, p. 722).

Já a palavra pedagógico é relativo à pedagogia:

1 ciência que trata da educação dos jovens, que estuda os problemas relacionados com o seu desenvolvimento como um todo 2 conjunto de métodos que asseguram a adaptação recíproca do conteúdo informativo aos indivíduos que deseja formar 3 tratamento de crianças ou adolescentes com dificuldades escolares 4 ciência que trata da educação e da instrução das crianças e adolescentes inadaptados 5 método pedagógico utilizado na reeducação, educação especializada e na educação de adultos. (DICIONÁRIO HOUAISS, p. 1455)

É proposto pelo enunciador de Cocoricó uma temática pedagógica, que quer

não necessariamente educar, mas ensinar algo, sobre o amendoim (como no

episódio que falaremos a seguir), sobre consciência ecológica ou respeito ao

próprio, assim como sobre o modo de viver em sociedade e de apreender o sentido

da linguagem televisual. No episódio citado, Júlio aprende que, apesar do

amendoim parecer pedra, serve para comer, para fazer doce. Pela utilização de Júlio

da palavra pé de moleque, configura-se uma figura de linguagem, ou seja, a

metonímia, o uso de uma palavra que usualmente significa outra coisa. Alípio pensa

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que Júlio quer comer o pé de algum moleque, mas no final eles descobrem que tudo

“foi só um mal entendido”, como diz Lola. É ela quem explica que o amendoim vem

de uma planta que cresce embaixo da terra e que serve para fazer óleo para

máquinas e carros e para comer.

FIGURA 24 –Cenas do episódio “Pé-de-moleque”: a avó ensina a receita do pé de moleque para Júlio; close na espuma indicando a resultante do fazer em um dos passos da receita; a câmera

focaliza a plantação de amendoins da fazenda

No episódio tem o clipe com o mesmo nome “Pé de moleque”. A letra da

música diz assim:

É hoje62, é hoje [Júlio] É hoje o dia de comer pé de moleque [repete] pé de moleque, pé de moleque hhumm, mas por que se chama assim, hein? O que que tem a ver doce com pé Doce é na barriga vou perguntar pra minha amiga

62 As palavras em negrito são aquelas tônicas, ou seja, cantadas/faladas em um tom mais forte, presente, e que cria um efeito de sentido que ressalta e chama mais atenção para o que está sendo cantado.

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Oriba! Que cê qué? [Oriba] Pé de moleque, por que se chama assim? Porque parece o pé de alguém que andou com pé no chão [Oriba] Pé sujo? Parece na cor, mas não no sabor [Oriba] Agora, tchau, que eu vou nadar que tá calor Hum, amiga sabida [Júlio] Sabida pra chuchu [Oriba] É hoje, é hoje [Júlio] Nem que chova canivete, eu vou comer pé de moleque Nem que chova canivete, eu vou comer pé de moleque Peraí, como se faz pé de moleque? Vou perguntar pra minha vó É hoje, é hoje [Júlio] Nem que chova canivete, eu vou comer pé de moleque É hoje, é hoje O vó, como se faz um pé de moleque, hein? Algo assim, vem ver, [Vó/prolonga a frase] a sopa no fogo Com água, mel e margarina Deixa esquentar até o melado ficar dourado e fazer bolotinhas plop, plop põe o amendoim e uma colherinha assim de bicarbonato mexe, mexe e mistura bem mexe, mexe e mistura bem tira da panela [Vó] tira da panela [Oriba e Júlio] despeja numa pedra [Vó] despeja numa pedra [Oriba e Júlio] deixa até esfriar [Vó] corta um tijolinho e pode cantar tem pé de moleque quem quer provar duro como pedra, doce como mel [todos] pede moleque já dizia a baiana no tempo da princesa Isabel [repete] croc, croc, huhm

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O narrador explícito delegado do enunciador se faz presente,

principalmente, nos clipes musicais dos episódios, isso porque, os interlocutores

cantam e se dirigem exclusivamente nesta relação descrita anteriormente no olhar

para “fora do texto”. No clipe, pela letra da música, temos um narrador explícito

que é o próprio Júlio, ele n~o diz eu, mas diz “minha amiga” e “minha vó”, e é o

Júlio que vai explicar ao narratário que é hoje o dia de comer pé de moleque.

Enquanto Júlio vai andando pela fazenda, a câmera vai seguindo-o, até que

finalmente ele questiona por que o doce se chama assim, quem vai responder é a

“amiga sabida”. Júlio pergunta sobre o significado do nome, desse doce

genuinamente brasileiro e quem responde é Oriba, depois de sua resposta, ele

ainda chama a atenção para o fato de a amiga ser sabida, o valor de o próprio saber

da amiga é euforizado.

Na continuação de se narrar sobre o “pé de moleque”, como chama o nome

da canção, Júlio novamente pergunta “peraí”, como se faz pé-de-moleque?”

Dirigindo-se à câmera, num close em seu rosto, chamando ainda mais a atenção para

o que será respondido e quem responde, ele diz: “vou perguntar pra minha vó”.

Júlio continua andando e vai para a casa da fazenda na cozinha, onde a avó vai

responder a pergunta do neto, ensinando-o como se faz o pé de moleque. A avó

prepara (enquanto canta) o doce, o passo a passo dos ingredientes, de como se

deve fazer. Por closes no passo a passo – como por exemplo, na panela para

acrescentar o amendoim e o bicarbonato ou na pedra para cortar o doce – o

interlocutário é levado a participar do fazer aquela receita. É a avó quem responde

como se faz pé-de-moleque, já que ela é quem tem o saber fazer, a competência

para. A avó vai ensinando como se faz e, seu olhar - em primeiro plano, assim como

o de Júlio, que está atrás dela num segundo plano, ambos de frente – se dirigem

para a câmera. A avó até dança (gesticula com as mãos de um lado para o outro)

quando diz: “pede moleque, j| dizia a baiana no tempo da princesa Isabel” e olha

para a câmera. Esse olhar que dialoga com esse sujeito interlocutário-telespectador

persiste por todo o enunciado do programa e, ao final a letra da música diz: “tem pé

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de moleque, quem quer provar?”, incitando o espectador a depreender que ele

também pode provar o doce que, “é duro como pedra, mas doce como mel”, como

diz a letra, portanto, sancionado positivamente”.

Na verdade, comprovamos pelas análises que justamente esse movimento

de câmera com efeito de continuidade - como tratado na an|lise do episódio “Pôr

do sol” – mas, principalmente, por esse diálogo dado pelo olhar dirigido à câmera

dos actantes do enunciado criam um efeito de subjetividade. Por esse efeito com o

interlocutário que assiste, é como se ele mesmo pudesse estar ali conversando ou

participando do fazer daquela receita, do estar junto do Júlio no passeio e na

descoberta do que é e de como se faz o pé de moleque.

Essa característica convoca esse interlocutário a estar junto com a televisão,

respondendo, interagindo dialogalmente com ela, por se tratar de criar uma

interação de proximidade. Essa determinada interação com o interlocutário-criança

prevê determinada resposta aos estímulos visuais e sonoros dados pela enunciação.

Esse modo de organização escolhido por este enunciador faz crer esse enunciatário

de que o programa instala um diálogo com ele, mesmo sem a existência a priori

dessa possibilidade de interação, por se tratar de um meio de comunicação de

massa. Afinal, a TV permanece sendo um instrumento de mediação.

O enunciador de Cocoricó organiza e delega vozes no interior do discurso.

Sabemos que ele organiza, também, a temporalidade em que o discurso será

construído, ou seja, o tempo da enunciação. Qual seria esse tempo neste programa

de televisão? Para responder a essa pergunta, precisaremos fazer algumas

considerações.

3.2 É tempo de Cocoricó

Em primeiro lugar, o programa está inserido dentro da grade de

programação da televisão, um “agora” de transmiss~o do próprio programa.

Fechine fala em três etapas constitutivas de qualquer produto televisual, são elas:

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1) a produção do programa, o registro ou a realização de um evento pela televis~o, ou seja, a sua ‘colocaç~o’ em um formato televisual; 2) a transmissão, através da qual o programa é inserido na grade de programação e levado ao ar; 3) a recepção, o momento em que se dá a fruição do programa transmitido pelo

público. (FECHINE, 2008, p. 28).

Sabemos que Cocoricó não é ao vivo, não é transmitido no mesmo instante

em que é gravado, não é uma transmissão direta. Neste mesmo trabalho, a autora

explica as transmissões diretas:

Toda transmissão direta é enquanto dura. O que significa dizer, em outras palavras, que a existência da transmissão direta está condicionada, tecnicamente, à extensão temporal do ato no qual se dá a operação que lhe dá lugar, e, semioticamente, ao presente mesmo da sua enunciação. Essa duração, que a própria operação técnica de transmissão estabelece, corresponde, num outro nível de análise, ao agora da enunciação de uma sequência direta

(duração da transmissão agora enunciativo). Se, numa sequência direta, o que está sendo transmitido para o telespectador está se fazendo no momento mesmo em que está se dando sua transmissão, há então uma temporalidade comum reunindo aqui enunciado e enunciação e determinando, consequentemente, a instauração de um mesmo agora nas duas instâncias enunciativas. (FECHINE, 2008, p. 121).

Nos programas gravados, como é o Cocoricó63 - seguindo ainda Fechine – a

produção e a transmissão não acontecem simultaneamente, entretanto, a

transmissão e a recepção, sim, são simultâneas e, portanto, concomitantes. Não

temos no programa essa temporalidade comum entre enunciado e enunciação.

Entretanto, nesta primeira consideração feita sobre a própria transmissão do

programa, inserido na grade de programação, temos a duração do programa

previamente gravado. E temos também a continuidade do programa dentro dessa

grade. Então, apesar de estarmos falando de dois tempos diferentes, o de

transmissão e o de aspectualização do programa, temos um e outro agindo na

63 Cocoricó é gravado durante o período de um mês, ininterruptamente e, só após todas as fases (roteirização, ensaios, gravação e finalização) é que a temporada estreia, seguindo a lógica de gravação dos seriados.

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totalidade do discurso. Temos no Dicionário de Semiótica, o verbete

aspectualização:

[...] o aspecto é introduzido na linguística como “ponto de vista sobre a ação”, suscetível de se manifestar sob a forma de morfemas gramaticais autônomos. Tentando explicitar a estrutura actancial subjacente { manifestaç~o dos diferentes “aspectos”, fomos levados a introduzir nessa configuração discursiva um actante observador para quem a ação realizada por um sujeito instalado no discurso aparece como um processo, ou seja, como uma “marcha”, um “desenvolvimento”. Sob esse ponto de vista, a aspectualização de um enunciado (frase, sequência ou discurso) corresponde a uma dupla debreagem: o enunciador que se delega no discurso, por um lado num actante sujeito do fazer e, por outro, num sujeito cognitivo que observa e decompõe esse fazer, transformando-o em processo [...]. (DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA, 2008, p.39).

Tentemos a partir da definição do conceito relacioná-lo com o programa.

Cocoricó é transmitido, diariamente, em dois ou três horários64 predefinidos na

grade de programação da TV Cultura. Essa transmissão - e incluímos também a

parada para o intervalo comercial – obedecerá sequencialmente essa grade

predefinida. No entanto, e não só o Cocoricó, nem a TV Cultura, mas a televisão em

geral, especialmente as emissoras com público segmentado como é o caso dos

canais de TV por assinatura dirigido às crianças, tentam fidelizar o telespectador,

quer dizer, no próprio enunciado televisual (na tela da TV) aparece (além da

logomarca da emissora) o programa que virá a seguir na grade de programação. O

enunciador, ao fazer isso, instaura um tempo aspectualizado, não só do enunciado

do Cocoricó, mas de um enunciado maior, que seria a própria grade da emissora e

sua programação, chamando a atenção para os outros programas da emissora. A

aspectualização do tempo aqui não é do programa que está se fazendo, mas da

programação que vai se constituindo enquanto um conjunto, uma totalidade, em

64 O horário que Cocoricó é transmitido depende da programação da TV Cultura. Por exemplo, durante a programação de férias da emissora, no período de janeiro de 2011, o programa foi veiculado em três horários. Mesmo com essa adequação à programação da emissora, durante o período da pesquisa (2007-2011), o programa teve diferentes horários, mas permaneceu sendo transmitido diariamente de segunda à sexta-feira, no período da manhã e da tarde.

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que o enunciatário-telespectador possivelmente é convidado e manipulado a fazer

parte.

FIGURA 25 – Cena do episódio “Pôr do sol”, com o

dizer “a seguir” e a logomarca do programa Caillou

Outra consideração a ser feita é sobre o tempo nos episódios de Cocoricó. Se

temos na televisão, os programas de transmissão direta os quais falamos a pouco -

como as transmissões de futebol, os telejornais, os programas de auditório, entre

outros – temos também os programas previamente gravados, como as telenovelas,

minisséries, seriados e infantis etc. Como em qualquer outro discurso, Cocoricó se

instaura por um agora, momento da enunciação, gerado pelo ato de linguagem

ordenado pela categoria topológica da concomitância vs não-concomitância, que,

segundo Fiorin (2005, p. 142), por sua vez se articula em anterioridade vs

posterioridade . O autor continua :

O momento que indica a concomitância entre a narração e o narrado permanece ao longo do discurso e, por isso, é um olhar do narrador sobre o transcurso. A partir dessa coincidência, criam-se duas não-coincidências: a anterioridade do acontecimento em relação ao discurso, quando aquele já não é mais e, por conseguinte, deve ser evocado pela memória, e sua posterioridade, ou seja, quando ainda não é e, portanto, surge como expectativa. Assim, anterioridade e posterioridade são pontos de vista para trás e para frente em relação ao momento do fazer enunciativo. O eixo ordenador do tempo é, pois, sempre o momento da enunciação. (FIORIN, 2005, p. 143).

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Fiorin explica que o tempo irá obedecer à seguinte constituição: momento

da enunciação, momento da referência e momento do acontecimento (2005, p .

146). Como esses momentos aparecem nos episódios? O episódio “Apressadinhos”,

por exemplo, tem início com a sequência que mostra o amanhecer na fazenda.

Lembramos que aí, acontece uma reiteração da própria vinheta de abertura que

traz no verbal: (“T| na hora de Cocoricó”) e no visual (o amanhecer do dia e a

aparição de Júlio). Essa presentificação é do passar das horas, dos momentos em

sua duratividade, assim como do ato de assistir ao programa. Voltemos ao episódio:

a maquete da fazenda é mostrada visualmente por um travelling da câmera,

enquanto são ouvidos ruídos de pássaros e uma música suave, batidas leves, que

remetem ao assobio cantarolado de Júlio que passeia pela fazenda e encontra seu

avô, que diz: “hoje vai ter milho verde para todo mundo, eu acabei de colher,

sabe?”. Após receber essa informação, Júlio sai avisando todos os seus amigos que

terá milho verde. Temos então uma debreagem temporal enunciativa, “quando se

projetam no enunciado os tempos do sistema enunciativo” (FIORIN, 2005, p. 147).

Os tempos da fala, tanto do avô quanto de Júlio são os do “hoje” e estão

relacionados a um momento de referência presente, o mesmo da enunciação, que

indica concomitância em relação ao momento da enunciação. Mas observa-se

também o tempo de posterioridade ao momento do acontecimento, como por

exemplo, os usos de “vai ter”, “ter|”. Ainda nesse episódio, Júlio conta para Lilica,

Lola e Zazá que Dito e Feito queimaram a boca após pegarem as espigas de milho

que tinham acabado de cozinhar. Lola diz: “eu até me lembrei de uma coisa que o

diretor do meu circo sempre dizia sobre gente apressada. Apressadinho ou come

cru ou queima a boca”. Temos, ent~o uma debreagem enunciva, que está

relacionada a um momento de referência pretérito (“lembrei”), não-concomitante

com o momento da enunciação, numa anterioridade durativa e não-limitada

(“sempre”, “dizia”).

A temporalidade do enunciado em Cocoricó apresenta o dia a dia das crianças

como um tempo durativo das obrigações e deveres, sobretudo, das brincadeiras e

recreações. Nas primeiras temporadas, esse tempo aspectualizado era marcado

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pelo Júlio que, no final de cada episódio, escrevia em seu diário o que tinha feito

durante o dia ou que tinha aprendido, quem tinha conhecido. Embora, nas últimas

temporadas, os episódios não tenham mais essa sequência narrativa que marcava o

“final do dia”, como se o tempo de um dia fosse o tempo da enunciação, o

enunciatário não fica sem essa referência. Os episódios trazem marcas verbais

(hoje, amanhã, depois, mais tarde, à noite, datas comemorativas) e visuais

(luminosidade do sol ou falta de luminosidade nos ambientes cenográficos, que

marcam o dia ou a noite e mesmo a caracterização dos bonecos com pijamas,

fantasias ou acessórios cenográficos que lembrem essas datas) que remetem à

própria rotina vivida pelo enunciatário, criando assim, um efeito de verossimilhança,

com o aquilo que ele vive no seu dia a dia. Esse efeito é demarcado ainda nas

vinhetas de abertura, com o nascer do sol (vinheta antiga) e no relógio da cidade

(vinheta atual). Por esses efeitos de sentido criados pela temporalidade no

programa “serem semelhantes {s experiências de temporalidade experimentadas

no mundo natural, promovem um maior envolvimento do enunciatário pelo

mecanismo de identificaç~o” (MÉDOLA, 2001, p. 84).

Essas marcas verbais e visuais de temporalidade existem no Cocoricó e mais

que isso, existem também os actantes do enunciado que se transformam em

interlocutores de outros enunciados, tornando possível, intervenções que vão além

do começo e do término do programa. Vimos que o Júlio, antes mesmo de ser do

Cocoricó, participou de outro programa da TV Cultura, chamado Um banho de

Aventura. As narrativas de Cocoricó giram em torno das experiências dele enquanto

um interlocutor deste enunciado. Júlio, porém, além de se divertir e conhecer a

rotina da fazenda de uma cidade do interior, como Cocoricolândia, nas últimas

temporadas, também se arriscou a ser interlocutor de outros enunciados e, não

apenas, do programa Cocoricó. Ele participou de campanhas publicitárias

institucionais (ou seja, da TV Cultura) que eram veiculadas durante os intervalos

comerciais da emissora. São elas: os direitos da criança e do adolescente 65

(veiculada em 2008), precauções do vírus H1N1 (veiculada em 2009), promoção do

65 Essa campanha fez parte do DVD “Divers~o”, lançado em 2008 pela Cultura Marcas. Falaremos no tópico das temáticas sobre essa campanha.

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Dia das crianças e campanha de Natal da emissora (ambas veiculadas em 2010).

Essas campanhas apresentam tanto um enunciador que se faz ver engajado

socialmente – mas também extremamente interessado numa relação cada vez mais

próxima do enunciatário - como também instaura a temporalidade do Cocoricó que

mesmo essas campanhas sendo transmitidas durante os comerciais, o enunciatário

delas provavelmente é o mesmo do programa. Assim, a temporalidade na qual

Cocoricó é produzido e realizado, portanto, do enunciado, parece ser a mesma do

enunciatário, daquele que sabe dos seus direitos, vê todos os jornais, revistas,

televis~o, internet, falando sobre um “novo” vírus de gripe, sabe que o Dia das

crianças se aproxima e pode participar de uma promoção e ganhar um boneco do

programa.

Duarte (2004, p. 35) explica que enquanto atores sociais, os actantes do

percurso narrativo e no discurso representam e desempenham um papel temático

como ator discursivo, nesse caso, como ator discursivo delegado da voz do

destinador-enunciador TV Cultura. Ela explica ainda que nesta situação a própria

televisão monta uma estratégia: convoca atores sociais para papéis discursivos, nos

quais eles não podem nem devem perder sua identidade enquanto atores sociais,

pois “dela dependem os efeitos de sentido a serem produzidos” (IDEM). Fazendo

isso, é como se o enunciador estivesse transformando esses interlocutores em co-

enunciadores: em nosso objeto de estudo, é o Júlio quem avisa sobre as precauções

a serem tomadas contra o vírus da nova gripe ou sobre os direitos das crianças.

Voltemos em Cocoricó, o boneco Júlio ganha “seus cinco minutos de fama”, passa a

ator social e ator discursivo, num programa narrativo diferente, não aquele do

enunciado de Cocoricó, mas o de delegado da TV Cultura que exerce durante os

intervalos comerciais. O que mostra um reconhecimento do destinador que torna

Júlio um de seus porta-vozes. Nesse fazer depreende-se a relevância do público

infantil para a emissora.

A última consideração a ser feita sobre a temporalidade no programa diz

respeito às elipses temporais, enquanto “pulos” de tempo entre as sequências. A

elipse é uma figura de sintaxe que se configura como “ a omiss~o de um termo que

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o contexto ou a situaç~o permitem facilmente suprir” (CUNHA, 2001, p. 619-623).

Gramaticalmente, a elipse de um termo deve ser invocada apenas quando manifesta

e mesmo assim com determinada prudência, como na omissão do sujeito, do verbo,

da preposição ou da conjunção nas orações. Mas a elipse pode também ser utilizada

como recurso condensador da expressão, caracterizando-se assim, como um efeito

estilístico que caracteriza concisão e rapidez. Em seu uso gramatical, esse tipo de

elipse pode ser de: descrição esquemática de ambientes, estados de alma, perfis;

em anotações rápidas; em na construção de frase que expressem pensamentos

condensados, provérbios; nas enumerações, onde a inexistência do artigo, costuma

sugerir as ideias de acumulação, de dispersão. Temos ainda, a figura de sintaxe

zeugma, uma das formas de elipse que consiste em fazer participar de dois ou mais

enunciados um termo expresso apenas em um deles (CUNHA, 2001, p. 621-623).

Tentamos construir a relação entre as elipses gramaticais e as elipses neste

produto televisual. O Cocoricó traz consigo uma propensa construção de efeito de

sentido que resgata outros programas infantis, como, por exemplo do Vila Sésamo

que inseriu o conceito de programas feitos para crianças a partir de quadros curtos

de no máximo 3 minutos para dificultar a perda de atenção, mas também de Rá-tim-

bum, com a introdução de novas estéticas (vinhetas, molduras, musicalidade etc.)

para o programa infantil. Mas, que, sobretudo, cria uma maneira particular de dar

indicações ao enunciatário do tempo do programa, ou seja, para fazer entender de

que o tempo - mesmo que fragmentado na própria especificidade televisa é

contínuo. Essas indicações seguem os mesmos parâmetros de linguagem das ficções

televisivas seriadas brasileiras, como novelas, minisséries e seriados.

São utilizadas: as vinhetas de passagem, conforme descrevemos no capítulo

anterior, como também molduras e fusões entre as cenas. Tais utilizações têm

como intuito explicitar ao enunciatário de que não se trata do tempo presente,

àquele vivido pela narrativa, mas que se trata de um tempo anterior ou de um

tempo futuro66 (um tempo enuncivo, do então), o primeiro um flashback, o

66 O flashback é o deslocamento da narrativa para o tempo passado e o farword é o deslocamento da narrativa para o tempo futuro. Esses são recursos clássicos de temporalidade do cinema, cujo

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segundo um farwords (MEDOLA, 2001, p. 84) ou ainda de um clipe musical, como se

este remetesse a um desses dois tempos. Se temos, portanto, pela imagem visual

uma descontinuidade na cena com a inserção de vinheta e utilização de molduras,

temos ainda uma continuidade narrativa que permite ao enunciatário apreender o

sentido do passar das horas ou do espaço da narrativa, dando-lhe uma marcação da

duração e do espaço. O tempo passa, mas não na temporalidade em que é

expresso, mas em sua aspectualidade dada pelos procedimentos durativos

paradigmáticos do televisual. Embora também, sintagmático, na medida em que se

apresenta enquanto um zeugma televisual, ou seja, na fusão entre uma cena e outra

que permite ao enunciatário apreender os dois enunciados (dados por

temporalidades e espacialidades diferentes na narrativa) que são expressos por

essa fusão. Nessa apreensão, o enunciatário é levado a apreender tanto de forma

linear, quanto não-linear.

No episódio “Cocoricó no Jap~o”, os actantes estão em outro tempo que

não o da narrativa principal, sendo assim como vimos, a plasticidade da cena sofre

uma variação67. O episódio começa com um deslocamento para um tempo passado,

num flashback de Astolfinho para uma lembrança do clipe musical “Quem tem

amigo”. Nesta sequência, a imagem do programa ganha uma moldura, nas partes

superior e inferior da tela, que esfumaça (pela utilização do zoom que dá uma

imagem desfocada na linguagem televisual) as cores da imagem inicial, que estava

instaurada no tempo presente da narrativa do episódio. Na passagem para a

sequência seguinte, em que Astolfinho est| dormindo em seu “berço” no paiol,

esse esfumaçado toma conta da tela por completo e depois vai se desfazendo com

a imagem do paiol, o esfumaçado é dado novamente pelo desfocado a imagem e

reiterado na fusão entre as cenas. Por uma referência plástica é que se constrói o

objetivo é organizar a sequência dos planos “de modo a minimizar a percepç~o dos cortes, criando no espectador a sensaç~o de harmonia em um fluir temporal” (MEDOLA, 2001, p.84). 67 A sonoridade também sofre alteração, efeitos são introduzidos no processo de pós-edição. O som da música, as vozes dos actantes ou os efeitos sonoros (ruídos) podem ganhar elementos graves e em tom mais baixo ou agudos e em tom mais alto. No primeiro caso, o efeito de sentido que se tem é de quase como um cochicho; no segundo caso temos um grito, um aviso, são construções que indicam a temporalidade outra em que se dá a cena.

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sentido de um outro tempo de duração da ação68 – o tempo enuncivo - que não o

do enunciado presente - enunciativo. Essa moldura é dada em seus aspectos

plásticos como: formante cromático que esfumaça as cores, fazendo-as quase que

perder o volume preenchido por elas; formante eidético, que por outro lado,

destacam as cores da moldura da imagem e seu volume que não são tomadas por

esse efeito esfumaçado e; formante topológico, já que a moldura passa a organizar

a imagem. A maioria dos clipes musicais apresenta essa característica, já que eles

são incluídos como uma narrativa secundária e, que por si, acabam instaurando

outra temporalidade e, às vezes, outra espacialidade69 que não a da narrativa

principal.

FIGURA 26 – Molduras e efeito esfumaçado referencia outro tempo, que não é o do episódio

68 Para Fiorin (2005, p. 235), ocorre uma debreagem enunciva do enunciado quando os “acontecimentos s~o narrados nos tempos enuncivos”, como acabamos de descrever que acontece neste episódio de Cocoricó. “Como h| dois subsistemas enuncivos, temos narrativas de antecipação, que se organizam ao redor de um marco temporal futuro, e de retrospectiva, que se articulam ao redor de um marco temporal pretérito”, como nas narrativas escritas sob a forma de di|rio que criam um efeito de simultaneidade. 69

Como em Cocoricó na cidade, que os clipes musicais apresentavam as cenas externas feitas em espaços urbanos com os bonecos, ao contrário do espaço mostrado pela narrativa que era do beco, ou do apartamento de João, portanto, em locações internas, do cenário.

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Essas análises dos episódios nos possibilitou entender o modo de presença

discursiva da temporalidade em Cocoricó. O que vimos é que, a instauração do

tempo, assim como das delegações de vozes (conforme descrevemos no tópico

anterior), são dadas de modo singular pelo programa. Se a delegação de vozes é

marcada pelos movimentos e enquadramentos da câmera e do modo de olhar dos

actantes, a instauração do tempo é dada nos modos verbais temporais, e

principalmente, na utilização de linguagem televisual. Essa utilização pontua as

relações de continuidade e descontinuidade do modo de contar a narrativa

visualmente em seu tempo e, claro, em seu espaço como estaremos discorrendo a

seguir.

3.3 Cocoricolândia e a Cidade Grande

Em termos semióticos, de acordo com o Dicionário, espaço70 pode ser

entendido pelo ponto de vista geométrico, psicofisiológico ou sociocultural,

definindo-se ainda, de acordo com suas propriedades visuais (2008, p. 176-178).

Tomamos então o conceito de espacialização e localização para analisar Cocoricó. Se

a espacializaç~o é “um dos componentes da discursivizaç~o que possibilita aplicar

no discurso-enunciado uma organizaç~o temporal” (IDEM, p. 176), a localizaç~o

seria um dos procedimentos dessa espacialização, definida com o auxílio de uma

debreagem, ou seja, “a debreagem instala, no discurso-enunciado, um espaço

alhures (ou espaço enuncivo) e um espaço aqui (espaço enunciativo), que podem

manter entre si relações estabelecidas pelos procedimentos de embreagem”

(IDEM, p. 295).

Assim, a espacialidade pode ser articulada em categorias como interioridade

vs exterioridade, fechamento vs abertura, fixidez vs mobilidade, entre outras. Se

tomarmos a literatura, segundo Coelho (2000, p. 77), os espaços podem ter função

estética como aqueles ambientes que servem de cenário à ação e que, embora

descritos com riqueza de pormenores, não atuam nela, ou função pragmática,

70 Os seguintes verbetes: espacialização, espaço, localização espaço-temporal e proxêmica foram pesquisados no Dicionário de Semiótica (2008).

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quando os elementos que servem de instrumento para o desenvolvimento da ação

narrativa, por exemplo, para provocar, acelerar, reatar ou alterar a ação dos

actantes; ajudam a caracterizá-los, descrevendo o ambiente em que eles vivem; ou

criando uma atmosfera propícia ao desenrolar da ação.

Dadas essas definições, voltemos ao Cocoricó. Dissemos antes, que o

programa em seus primórdios tinha uma curta duração com pequenos diálogos

para que os interlocutores apresentassem os desenhos animados. Nesta época,

Júlio e seus amigos ocupavam um determinado lugar cenográfico que era o do

paiol. Com a renovação do programa, em 2002, Cocoricó não precisava mais dividir o

seu tempo de duração do programa com os desenhos animados, ampliando esses

lugares cenográficos, que do paiol, passou à casa e o campo da fazenda, além de

lugares como posto de saúde e escola na cidade fictícia de Cocoricolândia, onde a

fazenda se localiza.

A fazenda é apresentada ao enunciatário por painel fotográfico e por

maquete. O painel encontra-se na vinheta de abertura fazendo imagem de fundo

para a própria marca do programa e nos episódios também como cenário de fundo

para a fazenda. O painel é uma fotografia de um ambiente rural e se divide,

principalmente, em duas cores diferentes: o azul do céu e o verde do campo. O azul

é contínuo, enquanto que o verde é marcado pela descontinuidade das montanhas,

cobertas de vegetação, não uma floresta, mas um descampado. A temporada na

cidade também possui um painel fotográfico que figurativiza prédios da região

central da Cidade Grande, uma infinidade de “arranha-céus”. Os painéis - tanto o do

campo quanto o da cidade - funcionam como pano de fundo para os actantes que

estão sendo filmados em primeiro plano. Ao mesmo tempo em que a utilização de

painel fotográfico mostra a criança uma ambientação do lugar que está sendo

construído pelo programa, ao mesmo tempo, esse uso pode transformar esse lugar

construído enquanto uma figuratividade estereotipada do lugar original, o campo

ou a cidade.

A maquete da fazenda (com o paiol, a casa, o campo) aparece como vinheta

de continuidade entre uma cena e outra, figurativizando o passar de um tempo para

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outro ou de um dado lugar para outro, nessa passagem da cena anterior para a

seguinte. Essa maquete 71 está presente em praticamente todos os episódios,

mesmo porque é responsabilidade dela situar o enunciatário no tempo e no espaço

em que está se dando a narrativa. Vamos a um exemplo, no episódio “Programa de

índia”, Oriba vai conhecer a Cidade Grande e aprende sobre as diferentes tribos. Ao

voltar para a fazenda, é a maquete que orienta o enunciatário de que o espaço da

cena seguinte é a fazenda, a câmera faz um movimento de zoom in (que se

aproxima) e depois vai para a direita. O aparecer da figura da fazenda somada ao

movimento instaurado pela câmera, constrói assim, um efeito de sentido explicado

plasticamente ao enunciatário, ao mesmo tempo, em que instaura o tempo e o

lugar da narrativa, que Oriba não está mais na cidade, que voltou à fazenda.

FIGURA 27 : As maquetes da fazenda: em três tomadas diferentes: o paiol,

a fazenda na montanha (painel ao fundo) e a lateral da casa.

O outro espaço instaurado em Cocoricó é o da cidade. Ainda nas primeiras

temporadas, esse espaço da cidade foi trazido por Júlio, um menino que até então

não fora criado na zona rural. Entretanto, foi apenas com a entrada do primo João,

que veio visitá-lo na fazenda que a cidade começou a se apresentar para o

71

Na temporada de Cocoricó na cidade, a maquete do campo passou a ser ainda mais utilizada. O motivo é a construção do sentido do que é o campo e do que é a cidade para a criança telespectadora. Falaremos ainda da maquete da cidade nas próximas páginas.

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enunciatário do programa. Pelas narrativas, é que o enunciatário o conhece: o que

ele gosta de fazer, como se veste, o jeito que fala, os esportes que pratica, etc.

Além disso, a cidade passa a ser trazida pelo discurso verbal de João: ele tem uma

forma própria de falar utilizando-se principalmente de gírias; ele é negro (a

diversidade étnica brasileira é tematizada pela distinção entre as raças, Júlio é

branco e Oriba é uma índia); em sua ida para a fazenda, João traz seu computador e

celular, aparatos midiáticos e tecnológicos, que nas narrativas do programa, ainda

não fazem parte da cotidianidade rural.

Na temporada 2008/2009, quando João chega na fazenda Cocoricó, traz

consigo o espaço da cidade, numa debreagem enunciva espacial. A cidade que está

alhures pode ser conhecida pelo aqui de Cocoricolândia. É assim que Júlio e os

amigos da fazenda tem acesso pela primeira vez ao laptop e celular, eles descobrem

que computador também pode ser contaminado por vírus, que para funcionar o

celular precisa de sinal, que pode-se fazer um curso ou treinamento através do

computador, entre outras coisas. Além disso, João que veio da cidade faz

descobertas do ambiente rural instalado como esse espaço do aqui: ele participa de

uma cavalgada (e aprende a andar de cavalo, quando antes só sabia andar de

bicicleta), acompanha Júlio na retirada de mel (ambos vestidos de apicultor), deixa

o mini game de lado para brincar com os amigos nos arredores da fazenda. O

enunciador vai mostrando as possibilidades de formas de vida com e sem o uso da

tecnologia, ao mesmo tempo em que dá ao enunciatário a competência para

identificar essas formas de vida, no diferenciar de um e outro.

O mostrar mais da cidade de Cocoricolândia significa que o enunciado

apresenta a fazenda e seus arredores – o como a vida é no interior – e, reafirma

ainda pelas diferenças, esse lá espacial, ou seja, a Cidade Grande. Citemos os

ambientes cenográficos da fazenda, cujo número aumentou no decorrer das

temporadas, são eles: paiol, arredores, cozinha72, sala, quarto do Júlio, lago do Sapo

72 No Natal de 2006, uma parceria entre a TV Cultura e o Shopping Metrô Tatuapé, em São Paulo, possibilitou A montagem da Fazenda Cocoricó na praça de eventos do shopping. Os ambientes cenográficos da fazenda: o quarto do Júlio, o paiol, o chiqueirinho e a cozinha ficaram expostos à visitação durante todo o mês de dezembro, com direito a show de apresentação dos bonecos do programa.

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Martelo e gruta dos patos. A forma de construção desses ambientes e o ato de

filmar utilizando tomadas longas promovem uma circulação dos atores-que

manuseiam os bonecos, que é apreendida pelo enunciatário como um efeito de

verossimilhança com o mundo natural. Esse espaço da fazenda remete a uma

decoração rústica, móveis de madeira maciça, muita palha, detalhes decorativos

que lembram as fazendas coloniais, as paredes de madeira são pintadas e decoradas

com border numa composição composta pelo uso de cores vibrantes do amarelo,

verde e azul. Os eletrodomésticos como liquidificador, batedeira, geladeira,

televisão, aparelho de rádio são todos antigos, embora bem conservados e também

compõem as distâncias e posições assumidas na proxêmica interativa. Esse uso da

madeira e da palha, nos remete ao natural, entretanto, a preocupação com os

elementos cenográficos do quarto, cozinha e sala nos levam, novamente, a um

espaço figurativizado como culturalizado, ambientado pelo homem. A cidade de

Cocoricolândia é referencializada em alguns episódios, como em “Desenho da

Lilica” e em “Homem sapo”. Ambos os episódios retomam uma temática cultural, o

primeiro com a exposição e o segundo, com a ida dos actantes ao cinema 73.

73 Nesse episódio, inclusive, os espaços foram construídos cenograficamente diferentes, o cinema de cidade e o cinema de Cocoricolândia. No primeiro, as cadeiras de espuma grossa, designer mais moderno e com uma tela bem grande, enquanto que no segundo, os interlocutores se acomodavam nas cadeiras com encosto de madeira e assistiam numa tela menor. Na caracterização da entrada do cinema da cidade, foi priorizado mostrar a bilheteria, primeiro com um close up para direita mostrando o letreiro desse espaço, depois com a compra do ingresso do cinema pelo tio de Júlio. Destaque para o quadro atrás do rapaz que vende o ingresso, com as regras do estabelecimento e ainda, para as placas indicativas que podem ser vistas logo acima da cabeça dos actantes. Em Cocoricol}ndia, primeiro é mostrado o letreiro onde se pode ver apenas as letras “Cinema de Coco...” e logo abaixo "Homem Sapo”, indicando ser esse o cinema da cidade, e logo após, a atenç~o é desviada para o sonoro: a voz do locutor que pede para que todos desliguem os celulares.

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FIGURA 28 : Ambientes cenográficos internos da fazenda: o quarto do Júlio, a cozinha, a sala e o

paiol

Nos episódios analisados da temporada 2008/2009 foram observadas as

seguintes relações orgânico vs não-orgânico, interno vs externo. Os actantes

transitam pelos espaços cenográficos, como se estivessem no mundo natural, no

nosso mundo fora da televisão em que andamos, por exemplo, dentro de casa de

um cômodo para outro – é do quarto que vai para o corredor ou para o banheiro,

como no episódio “Caco na casa”; ou que o cavalo Alípio está na janela do lado de

fora e conversa com quem está dentro do quarto de Júlio ou pela janela da gruta. O

orgânico é trazido principalmente pelos espaços externos, seriam as figuras que

remetem à natureza, ao natural: os campos da fazenda, os arredores da casa, as

plantas, flores e frutas, madeira, palha, já o não orgânico são os construídos,

culturalizados, aparecem como os ambientes internos, figurativizados pelos:

cômodos da casa da fazenda (quarto de Júlio, sala, cozinha), sala de exposição,

gruta dos patos, chiqueirinho de Astolfo, paiol, em que esses ambientes

figurativizam construções por intervenção humana. Teríamos, então, em Cocoricó

versão campo, grande parte das cenas figurativizando um espaço externo, e

quando temos cenas que figurativizam um espaço interno, esse espaço conflui para

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o espaço externo, como por exemplo, as luzes naturais que adentram às janelas,

aquelas que permitem o diálogo entre os actantes dentro e fora dos espaços

figurativizados.

Ainda na apresentação dos episódios da temporada 2009/2010 em salas

cinematográficas, o enunciatário foi apresentado ao novo espaço figurativizado do

programa: a cidade. Não era apenas a cidade como na temporada anterior, como

temos pelo diálogo entre Júlio e Toquinho, em que Toquinho diz: “João deve tá

correndo tanto perigo naquela cidade grande” e, Júlio responde: “a cidade grande

também é legal, Toquinho”. Nessa temporada, os interlocutores do enunciado,

como mostramos na análise da vinheta de abertura estão em outro espaço:

primeiro no trem, depois na estação e, finalmente na Cidade Grande.

Vaca Mimosa é quem dá a boa nova: “O Tio Noel convidou todas as crianças

pra passar um fim de semana na cidade. Só que tem uma coisa, eu vou levar um de

cada vez. Cada uma num fim de semana. É que lá no apartamento não cabe todo

mundo, sabe. Quem quer ir comigo?” Os actantes e o enunciatário são informados

sobre aquele outro lugar da ação narrativa e sobre suas características similares e

diferentes. Pela vinheta de abertura o enunciatário é convidado a fazer parte das

ambientações espaciais da cidade. Os cenários, sejam eles internos ou externos, vão

se caracterizando e se construindo ao longo dos episódios da temporada. O diretor

Fernando Gomes ressalta em entrevista ao site da UOL74 que o principal caráter

distintivo desta temporada sob as demais é o fato dos clipes musicais dos episódios

terem sido gravados não em estúdio, mas em externas75. Ele conta que:

Quando o Cocó nasceu, e nasceu situado na fazenda, a gente sentia a necessidade de um programa que falasse do interior e era legal mostrar essa situação. Mas a gente pegou uma proporção tão grande, tão bacana, que começou a sentir necessidade do contrário [...]. É engraçado, porque a gente já tinha um público muito grande das crianças que moram na cidade e que assistem o Cocó fazenda, e do pessoal do interior também. (GOMES, 2009).

74 Entrevista concedida ao site UOL, disponível em http://criancas.uol.com.br/ultnot/multi/2009/10/01 /04023172D8914366.jhtm?novatemporada-de-cocorico--making-of-04023172D8914366, acessado 04/05/2010. 75 Na linguagem televisual, a gravação externa pressupõe que as cenas foram feitas em ambientes externos ao estúdio de gravação.

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Será mesmo, que as aventuras vividas por Júlio e os animais da fazenda são

completamente diferentes das que eles viviam no campo, ou essas aventuras

estariam mais ligadas aos valores sociais, culturais e de rotina das crianças tanto do

campo quanto da cidade? O que o diretor do programa nos adianta é que o Cocoricó

da cidade traz outro espaço enunciativo para o enunciatário, além disso, amplia o

leque de temáticas oferecidas. Ao levar os actantes da fazenda para a cidade, o

enunciador não só muda o espaço da narrativa, como também permite acrescentar

novos temas e figurativizações possibilitados justamente por essa mudança. A

cidade na qual João vive e Júlio e os animais da fazenda vão passar férias é chamada

de cidade grande. A chegada oficial deles na Cidade Grande se dá pela estação de

trem, quando eles descobrem que Lilica veio escondida dentro da mala. Essa

narrativa é apresentada no primeiro episódio da temporada e pelo efeito de sentido

de referencialidade, temos a estação da Luz, em São Paulo. Nesse episódio, é

apresentado: o Beco e o prédio onde João mora. Júlio e seus amigos animais vão

descobrindo que: o trem é o transporte que leva as pessoas da cidade grande para o

interior; que as moradias não são térreas como na fazenda; que são apartamentos

em prédios e que para chegar neles é necessário utilizar o elevador; que na Cidade

Grande existem pessoas vindas de outros países e pessoas de diferentes tribos, e

outras temáticas que vão sendo abordadas no decorrer dos episódios.

As relações identificadas nos episódios da temporada anterior: orgânico vs

não-orgânico, interno vs externo também são trabalhadas em Cocoricó na cidade. A

relação de oposição entre o campo e a cidade é marcada, sobretudo: pelos actantes

que vão pra cidade e os que ficam na fazenda, pela continuidade da narrativa

possibilitada pelos frequentes diálogos dos actantes por meio das redes sociais da

internet (uns estão na cidade, outros no campo, mas podem estar juntos mediado

pelo computador que demarcam características do que é viver num e noutro lugar.

O ambiente cenográfico do campo não sofreu alterações para esta

temporada. Apenas surgiu um outro ambiente, o da cidade, marcado, então: pelo

bairro onde João mora, chamado de Beco (bem como o que o compõe enquanto

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cenário: padaria, ponto de ônibus, revistaria, etc.), pelo prédio (hall de entrada,

elevador) e o apartamento de João (cômodos, quarto de João, quarto dos pais,

cozinha, sala), e pelos ambientes externos que referencializam o mundo natural,

aquele no qual vivemos, com a gravação dos episódios feita em pontos turísticos da

cidade de São Paulo: Estação da Luz, vista aérea do centro, bairro da Liberdade,

Mercado Municipal, Museu do Ipiranga, Sala São Paulo, Kartódromo da Granja

Viana, Parque do Ibirapuera, Rio Pinheiros, parque de diversão, estádio de futebol,

cinema e livraria.

FIGURA 29 : As maquetes da cidade: em três tomadas diferentes: os prédios, casas e quadras; um

detalhe das casas térreas, como as do beco e; à noite na cidade grande, os prédios e suas luzes acesas.

O Cocoricó na cidade, assim como nas temporadas anteriores, utiliza-se de

uma maquete para fazer a passagem de uma cena a outra, e dar sentido à narrativa,

como já dissemos. Se os actantes estão dialogando no campo, aparece a maquete

da fazenda, se eles estão na cidade, aparece a maquete da cidade grande. Os dois

lugares são, assim, figurativizados, tanto de Cocoricolândia como o da Cidade

Grande, em que os actantes dialogam e trocam as experiências vividas em cada

lugar. O técnico em efeitos especiais do programa, Flávio Fabiano, explica o objetivo

da maquete:

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Ela está sendo elaborada para várias fases do Cocó. Tem tudo que uma cidade precisa ter de infraestrutura de bairro de uma cidade. Temos todas as sinalizações, inclusive as de trânsito. A gente tentou seguir o mais próximo possível da questão de lógica e estrutura de uma cidade. (FABIANO, 2009).

A configuração de ambientes cenográficos externos, como o Beco e interno,

como o prédio e apartamento onde João mora, demostram novamente como nas

observações feitas a partir da delegação de vozes e da temporalidade, que o

enunciador do programa quer construir um sentido de verossimilhança com o

mundo no qual a criança telespectadora vive. “O cen|rio foi construído numa escala

de 50% da escala normal”, ressalta o respons|vel pela cenografia de Cocoricó, Gert

Seewald, em entrevista ao site UOL. O Beco de Cocoricó na cidade possui uma rua

principal, sobrados, alguns tipos de comércio como a padaria e a revistaria e prédios

residenciais, além de um muro grafitado (o qual discorremos no capítulo 2). O

apartamento de João configura-se como um apartamento de classe média,

decorado com fotos, gravuras e quadros nas paredes, o que dá um sentido estético

mais contemporâneo para essa moradia da cidade grande. As janelas da cidade não

são tão exploradas como as janelas da fazenda. A janela aparece enquanto actante

em apenas um episódio, “A estrelinha do Alípio”, no qual Alípio deseja ver sua

estrela de estimação e não consegue fazê-lo pela janela do apartamento de João. As

janelas aparecem nos outros episódios da temporada na cidade apenas como uma

entrada de luminosidade nas cenas.

A construção de lugares que se faz em Cocoricó, nas diferentes temporadas,

é de um espaço de descobertas, de aventura para a criança, seja no campo, na

cidade, em outro país. O programa tenta construir uma narrativa cujo lugar

possibilita algum aprendizado novo para o enunciatário, de ordem social ou cultural,

possível numa grande cidade. Tanto que apesar de referenciar visualmente a cidade

de São Paulo, oralmente seu nome não é desvendado, o que não acarreta prejuízo

para o sentido que se quer dar, por que a cidade grande figurativizada por São

Paulo é tomada como uma parte que significa o todo, ou seja, todas as cidades

grandes são como essa que está lá .

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Foi possível identificar nos modos de presença discursiva, dado pela

delegação de vozes, temporalidade e espacialidade que o enunciador de Cocoricó

instaura no enunciado oposições como orgânico vs não-orgânico e interno vs

externo, que serão homologadas na categoria da expressão CONTINUIDADE vs

DESCONTINUIDADE. Na categoria do conteúdo SOCIEDADE vs INDIVIDUALIDADE

foram observados os modos de organização dos sujeitos em suas relações de

tempo e espaço. A construção do sentido do programa Cocoricó é dada, pois, pela

oposição IDENTIDADE vs ALTERIDADE. A construção dos sujeitos no programa é

tomada a partir da relação em sociedade, do viver e conhecer do outro, como já

antecipada pela análise do episódio “Pôr do sol” e que teremos a seguir, dada pelas

figuras e temas narrativizados a partir do campo ou dessa cidade apresentada.

3.4 Figurativização e Tematização

Se a preocupação anterior foi analisar as marcas da enunciação deixadas no

enunciado, agora, nossa intenção é a de buscar em nosso objeto as figuras e temas

subjacentes, identificando-os pela plástica figurativa (eidético, topológico,

cromático e matérico) e pela própria linguagem televisiva (ritmo e sonoridade)

enquanto objeto sincrético. Para isso nos apoiaremos e tentaremos seguir as

proposições de Greimas e, de outro autores, a partir da publicação do livro “Da

Imperfeição” (GREIMAS, 2002). Segundo Landowski, depois deste livro, a postura

de um semioticista, é o de ser: “mais ‘completo’, ou simplesmente mais humano, ao

mesmo tempo ‘inteligente’ e ‘sensível’, tanto implicado na experiência vivida do

mundo sensorialmente perceptível, quanto engajado na busca reflexiva do sentido

daquilo que est| vivendo” (LANDOWSKI, 2005, p. 101), enquanto em relação com o

seu próprio objeto de pesquisa.

Mediante tais palavras, iremos priorizar uma an|lise que permita “a

mediação do sensível e, portanto, do estético ou, mais fundamentalmente, da

estesia” (LANDOWSKI,2005, p.94). Como explica o autor, o último livro escrito por

Greimas abriu uma via de investigações complementares que:

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[...] abordam uma outra forma de encontro entre o homem e o mundo, o encontro estético. Nesse plano, não é mais uma distância objetivante, mas uma proximidade imediata ou, até mesmo, alguma forma de intimidade efusiva que se estabelece entre os dois pólos da relação, entre um sujeito para quem o conhecer não se separa do sentir, e um objeto, ou um outro sujeito, também cognoscíveis mediante o sentir. (LANDOWSKI,2005, p. 94).

Um dos caminhos propostos, portanto, desde “Da Imperfeiç~o” pelos

principais semioticistas76, se baseia “no acesso { significaç~o do visível”, como

também no “tratamento do percurso perceptivo do sujeito, da sua trajetória pelas

figuras elementares da percepç~o” (OLIVEIRA, 2004, p. 13). Por esse caminho, são

apontados, portanto, uma relação entre o semioticista e o objeto de pesquisa pela

semiótica plástica, como nos explica Oliveira, segundo articulações intrínsecas:

Entre as pesquisas da semiótica geral sobre os problemas da figuratividade nos níveis de descrição dos objetos visuais. Destacam-se nela a problemática do iconismo e a dos efeitos de sentido desse tipo de estruturação da linguagem que objetiva uma proximidade mimética com as unidades da semiótica do mundo natural. Resultante desse procedimento, a verossimilhança leva ao estabelecimento de contratos de veridicção e de fidúcia entre os sujeitos da comunicação. (OLIVEIRA, 2004, p. 15).

Será pela articulação dos elementos figurativizados, ou seja, pelo modo de

expressão do objeto, que poderemos delimitar seus sistemas de valores e ideias,

implicando assim, operações cognitivas, bem como utilização das competências

sensíveis do sujeito. Se “o ver pressupõe um saber ver que só se operacionaliza na

medida em que adentra na teia de significados” (IDEM), o que o enunciatário de

Cocoricó é chamado a apreender sensivelmente pela organização figurativa? É a

tentativa de encontrar tais respostas que nos possibilitará ir de encontro às formas

de apreensões do sujeito enunciatário e de sua relação com o programa em análise.

76

Ver OLIVEIRA, Ana Cláudia (Semiótica Plástica, São Paulo: Hacker Editores, 2004); FLOCH, Jean-Marie (Une lecture de Tintin au Tibet, Paris: Presses Universitaires de France, 1997; Semiotique, marketing et communication: sous les signes, les strategies, Paris: Presses Universitaires de France, 1995); LANDOWSKI, Eric (Presenças do Outro, S~o Paulo: Perspectiva, 2002; “De L’Imperfection, o livro do qual se fala”, in: Da Imperfeição, São Paulo: Hacker Editores, 2002).

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Para isso, voltaremos às vinhetas e aos episódios. Na vinheta de Cocoricó, o

verde e o azul foram cores predominantes na tela dividida entre o céu e o campo,

que contrastava com as cores das galinhas, do cavalo e de Júlio. Na vinheta de

Cocoricó na cidade, bem como vimos, houve uma recorrência monocromática vs

policromática dos bonecos e suas roupas. Nos episódios das primeiras temporadas,

a cor verde é mais utilizada que na versão Cocoricó na cidade, essa cor está presente:

seja nas plantas, na mata, no paiol ou no quarto de Júlio, nas próprias roupas ou

acessórios dos bonecos. Essa cor figurativiza o campo e tudo o que se tem a partir

dele. Mesmo quando os bonecos estão em ambientes internos, seja dentro da casa

da fazenda ou na gruta dos patos, no paiol, o verde está presente. É a partir do

verde que se tem o céu marcando a linha do horizonte na primeira vinheta de

abertura, com o amarelo e a vermelho do sol que se põe, indicando o passar das

horas, dia após dia. Agora na cidade, o verde é apenas mais uma cor, as cenas

apresentam uma exploração cromática maior, o apartamento de João é

predominantemente vermelho, enquanto que o quarto é azul, a cidade colorida

com suas cenas ao ar livre e seus habitantes transitando e, assim por diante. Na

vinheta de abertura desta temporada, embora o verde esteja presente, a linha do

horizonte dá lugar às curvas que o trem realiza, ainda no campo, para então entrar

na escuridão e depois na cidade, com seus telhados e prédios coloridos. As cores

marcam tanto as linhas do horizonte em oposição à circularidade das letras da

marca do programa existentes na primeira vinheta, quanto às linhas retas dos

prédios em oposição às curvas do trem trazidos na segunda vinheta.

Além disso, as cores criam efeitos de sentido também nos bonecos e em

suas roupas. Os bonecos que figurativizam os seres humanos não são construídos

com pela mesma cor: Júlio é ruivo, seus avós têm a pele bem clara, como sua tia e

Vitória; o seu primo João é negro, como o pai dele, o tio Noel; Oriba é morena e tem

os cabelos lisos. As galinhas, cada uma tem uma cor: Zazá é vermelha, Lola é

amarela e Lilica é rosa. O cavalo Alípio é laranja. O papagaio Caco e o Sapo Martelo

são verdes. Os patos são marrons, como os camundongos. Toquinho, o morcego, é

vermelho. Identificamos uma paleta de cores que praticamente se completa, vai dos

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tons mais claros para os mais escuros. Do branco do cachorro Esfarrapado que vive

na cidade ao marrom dos camundongos, a variação cromática define os papéis dos

sujeitos das narrativas. O branco é usado no cachorro que é criança, que está

aprendendo, enquanto que o marrom é a cor dos camundongos, e o cinza escuro é

a cor dos patos, ambos são os anti-heróis nas narrativas, que tentam atrapalhar as

crianças em suas brincadeiras. O preto é uma cor que praticamente só aparece nos

episódios para indicar a noite. E na cidade, esse escuro da noite aparece

acompanhado das luzes brilhantes dos prédios.

As cores dos bonecos humanos vão marcar a distinção das raças. Oriba é

índia. João e o irmão bebê são negros como o pai; a mãe de João, Júlio, os avós, são

ruivos/brancos, o porteiro tem a pele morena. Os aspectos plásticos da distinção de

raças são mostrados, então, pelas cores: do marrom da pele ao preto do rastafári

do cabelo de João, dos cabelos lisos, olhos puxados e pele clara de Oriba à pele

rosada, cabelos ruivos e sardas de Júlio. Além dos cabelos grisalhos dos avós que

são idosos, do porteiro Antenor que possui pele marrom em tons mais claros e

cabelos escuros (e tem uma fala nordestina). Os bonecos humanos vestem roupas e

uniformes, sempre cobrindo os braços e vestindo luvas, com o intuito de camuflar o

ator bonequeiro. Os bonecos estarão se vestindo dependendo da história a ser

contada.

Vamos aos exemplos. No episódio “Os caçadores da galinha perdida”, Lilica

ganha um novo brinquedo - a galinha Loloca – e Júlio e João fazem um curso de

consertos em geral pela internet e criam o “Cocó conserta tudo”, no decorrer da

história eles precisam provar que realmente podem consertar tudo. Júlio e João

figurativizam os trabalhadores autônomos que fazem consertos a domicílio através:

o mostrar da cena pela utilização de um plano aproximado dos dois bonecos que

apresentam as ferramentas que eles seguram e os uniformes que eles vestem (pelo

visual, o boné azul e a camisa cinza com o mesmo dizer: “Cocó Conserta tudo”),

além do verbal sonoro, os bonecos cantam o seguinte verso: “se o bagulho tá

quebrado/ chega de preocupação/ a solução tá do seu lado/ chame o Júlio e o

Jo~o”, ao se apresentarem para os outros actantes no paiol. Nesse mesmo

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episódio, Caco procura o brinquedo de Lilica que sumiu e se veste como um

detetive, um investigador, novamente apresentado pela proximidade do boneco

com a câmera, suas roupas são marrons, ele usa chapéu e lupa e, vai pista a pista,

desvendando a charada. Essa mesma “fantasia” de investigador é utilizada por Júlio

no episódio “Lola na TV”, indicando que, independe se os actantes são humanos ou

animais, eles figurativizam situações sociais humanas.

Em outro episódio “Desenho da Lilica”, Pata Vina quer se transformar em

uma celebridade instantânea e usa os desenhos de Lilica para se inscrever numa

exposição e acaba ganhando o prêmio. A pata Vina aparece com vestido de festa,

bordado com paetês, e entre luzes de flashes, como Júlio e Jo~o, no episódio “Os

abelhudos”, que vestem roupas de apicultores – àquelas brancas, com proteção da

cabeça aos pés e luvas - para retirarem mel e se protegerem das abelhas.

FIGURA 30 –Cocoricó conta a história pelo modo de vestir dos bonecos: Júlio e João caracterizados

como consertadores; João, Vitória e Júlio são os “Três Porquinhos”; Júlio e João estão retirando mel como apicultores; Júlio e Caco como detetives investigadores; Pata Vina como uma celebridade

No clipe musical da temporada na cidade, “Uma aventura sem fim”, eles

estão em busca de um fim para a história e para isso precisam encontrar outro

exemplar do livro. Na livraria, João, Vitória e Júlio e Lilica descobrem sobre os

clássicos da literatura infantil, Lilica aparece vestida de Emília e Cinderela, Júlio é

Peter Pan, Vitória Rapunzel e João, Júlio e Vitória vestem máscaras dos Três

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Porquinhos, cantando a letra da música: “tem personagem pra dedéu/ Emília, Peter

Pan, Lobo Mau e Rapunzel/ tem a Cinderela, tem a Narizinho/ tem a Bela e a Fera e

os Três Porquinhos”.

Como vimos, tanto os bonecos humanos quanto os animais vestem roupas e

acessórios figurativizando determinada temática. Os animais vestem acessórios que

figurativizam sua própria situação – antropomórficos - quer dizer, animais com

características humanas como o laço e colares de Lilica, a gravata de Alípio, os

óculos de Zazá e pata Vina, a roupa de Caco (que remete a um uniforme de

marinheiro77) e o lenço de Lola, entre outros. Vale ressaltar que os bonecos

utilizados em Cocoricó são confeccionados com espuma, podendo-se utilizar ainda

pelúcia (cachorro e camundongo) ou material aveludado (patos). Essa característica

confere aos bonecos determinada unicidade própria, leveza e dinamicidade ao ator

que os interpreta, permitindo ainda movimentação facial dependendo do que se

quer transmitir de humor (triste, alegre, choro) promovendo uma maior interação

entre os interlocutores e aqueles que estão assistindo.

Os olhos dos bonecos não se mexem, são estáticos, entretanto, são grandes

e expressivos, e pelo fato dos bonecos quase sempre estarem dispostos

fisicamente de frente e próximos à câmera possibilita ao enunciatário apreender a

movimentação, deixando de ser relevante essa estaticidade. Assim como os olhos,

as outras partes do rosto são bem demarcadas e grandes: as orelhas, o nariz, a

boca, o bico (no caso das galinhas e do papagaio). O movimento das partes da

cabeça unido à leveza da espuma dá um efeito de realidade e verossimilhança às

pessoas e animais; apesar dos animais serem antropomórficos, marcando o uso da

imaginação infantil. O corpo dos bonecos se caracteriza ainda pela dinamicidade da

cabeça e mãos (partes do corpo que aparecem no vídeo) em oposição à

estaticidade do tronco e membros inferiores ocupados pelos atores (partes que não

aparecem no vídeo). As fisionomias dos bonecos é dada, assim pelo preenchimento

de material (espuma) ao redor dos olhos, no formato das orelhas, nariz e boca,

77 Pela roupa e animal que figurativiza, o boneco Caco cria uma figuratividade com outra figura importante da cultura brasileiro, que é o Zé Carioca. Ele também é um papagaio e suas roupas são parecidas.

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dando um efeito de tridimensionalidade aos próprios bonecos. As cores dos olhos

também muda de acordo com as características físicas dos bonecos humanos ou

animais.

Se os animais antropomorfizados é uma técnica constante nos produtos

televisuais dirigidos principalmente ao público infantil, isso já é corrente na

literatura, na utilização da narrativa simbólica “como instrumento de transmissão

de valores, para transmitir padrões de pensamento ou de conduta às diferentes

comunidades” (COELHO, 2000, p.43). A autora explica que:

Uma vez que tais valores ou padrões (de natureza social, ética, política, artística, econômica, religiosa, etc.) são essencialmente abstratos, dificilmente poderiam ser compreendidos ou assimilados por mentes que vivem muito próximas da natureza sensorial, do concreto e, como tal, propensas a conhecerem as coisas através das emoções e da experiência concreta. (COELHO, 2000, p. 43).

Também sobre as narrativas, a autora Vânia Carneiro diz:

[...] as narrativas constituem a tradição educativa mais milenar da espécie humana. Transmitem conhecimentos e ensinamentos. Ensinamentos que se referem a saber sobre si, sua ação, seu ser; sobre sua comunidade: origem, desenvolvimento e organização; sobre o mundo. Visam à integração do indivíduo na sociedade adulta ou numa comunidade, cujos valores e costumes devem ser assimilados. (CARNEIRO, 1999, p. 69).

Somente a utilização da figuratividade terá o poder de concretizar o

abstrato, mediando para isso o encontro das “mentes imaturas com sua prec|ria

capacidade de percepção intelectiva e o amadurecimento da inteligência reflexiva

(a que preside ao desenvolvimento do pensamento lógico-abstrato, característico

da mente culta)” (COELHO, 2000, p.43). Essa mediação é que permite a transmissão

de valores do saber, conhecer, aprender, como também os processos de apreensão

sobre o mundo. Segundo Landowski, a narrativa de um texto se manifestará de

maneira explícita no sentido próprio de contar “histórias” e também no papel de

“componente organizador subjacente que estrutura os processos de produç~o e

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leitura” (1992, p. 105). Estamos, pois, na compreens~o desses processos de

produção e leitura.

Coelho (2000, p.83) explica que a narrativa simbólica se expressa por

diferentes processos: a) pelas fábulas: utilização de animais que representam ideias,

intenções, conceitos e vivem situações exemplares; b) pelos apólogos: utilização de

seres inanimados (elementos dos reinos vegetal ou mineral, fenômenos

atmosféricos ou objetos fabricados pelo homem) que adquirem vida e falam ou

agem como humanos; c) pelas parábolas: alusão ou analogia que permite que uma

situação comum, cotidiana, seja compreendida de imediato, amplia um “cotidiano”

particular para um sentido amplo. A autora explica ainda que “a fábula

(lat.fari=falar e gr.=dizer, contar algo) é a narrativa (de natureza simbólica) de uma

situação vivida por animais que alude a uma situação humana e tem por objetivo

transmitir certa moralidade” (2000, p. 165). Nesse sentido, podemos transpor as

fábulas na literatura e pensarmos em como essa certa moralidade pode ser

transmitida pela linguagem televisual? Os programas infantis, como Cocoricó,

acabaram por assumir para si essa necessidade de fabular as narrativas

simbolicamente com o mesmo objetivo, de transmitir valores, ideias, etc. Essa

opção é justificável:

[...] nessa ordem de ideias, compreende-se a atração que a linguagem poético-musical de natureza popular exerce sobre a criança. É o caso das cantigas de roda, parlendas, provérbios, etc., cuja estrutura formal (versos breves, ritmos repetitivos em sucessão ágil, aliterações onomatopeicas, etc.) e natureza coletiva são idênticas às primeiras manifestações dos povos primitivos: poesia identificada com os cantos, com as fórmulas proféticas e de encantação mágica, que eram proferidas pelos celebrantes dos rituais sagrados ou mágicos. (COELHO, 2000, p. 232).

A predileção das crianças pelas fábulas foi identificada pelos teóricos da

literatura. Tal conhecimento possibilitou que a grande maioria dos programas de

televisão direcionados ao público infantil criassem suas narrativas, suas histórias,

seu discurso, baseando-se nesse conhecimento e para isso, explorando os recursos

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visuais (cores, ambientação, materialidade, tridimensionalidade, ritmo) oferecidos

pela própria linguagem televisual.

Em Cocoricó, por exemplo, temos um enunciador que explora a alternância

das cores – amarelo, avermelhado e preto - em diferentes episódios para

figurativizar o dia e a noite, como vimos. Também é o enunciador que, prioriza o uso

das imagens das maquetes e os movimentos de câmera, de aproximação e

distanciamento. Como antecipamos na análise da vinheta de abertura, o

movimento de câmera para a direita sinaliza o passar das horas. Os movimentos de

câmera são utilizados por esse enunciador para intensificar os efeitos de sentido na

apreensão do enunciatário. O movimento de “correr” para um lado e para o outro e

progredir para um close-up nos bonecos dado pela câmera, somado aos recursos de

edição como a fusão ou sobreposição de imagens, instaura mais próximo ou mais

distante dos actantes, a figura do próprio enunciatário, promovendo assim uma

interação, uma troca de olhares com os bonecos.

Quando os bonecos olham diretamente para a câmera, é como se o

enunciador trouxesse para o programa o simulacro do enunciatário. Landowski

(2002, p. 147) nos ensina que “o mundo das imagens é mais ou menos como o

mundo propriamente dito”, no qual somos expostos a “presenças plenas” ou

“figuras instigadoras”. As primeiras, segundo o autor, bastam a si mesmas e nos

deixam livres para ignorá-las ou nos aproximarmos; as segundas não nos deixam

passar sem parar diante delas. Para o autor:

As imagens pertencentes à primeira categoria são, propriamente falando, formas estéticas cujo valor coincide exatamente com aquilo que elas significam em sua identidade presente, hic et nunc, ao passo que as da segunda, quer dizer, as imagens do tipo que nos ocupa aqui, longe de atualizar o que quer que seja, virtualizam a conjunção com o valor (ou a fusão com o objeto), remetendo-nos indefinidamente a uma outra coisa, a um gozo diferido, e, afinal, a algum Outro cujo simulacro promissor elas constroem e com o qual fingem nos pôr em comunicação. (LANDOWSKI, 2002, p. 147-148).

Esses actantes que olham para a câmera e, portanto, para aquela criança que

sentada na sala de sua casa assiste ao programa, simula uma situação de encontro

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entre eles e essa criança. A partir da análise de fotografias publicitárias (que

também utilizam a instauração desse olhar), Landowski diferencia os dois tipos de

relaç~o entre os actantes, “debreada”, tentando relacionar ao Cocoricó, quando os

actantes dialogam entre eles; e “embreada”, quando ocorre o que o autor chama

de simulacro de embreagem, em que os actantes se dirigem visualmente e

verbalmente ao espectador. Sobre a fotografia publicitária, diz o autor:

Toda a habilidade do fotógrafo reside na maneira como ele articula entre si essas duas reversões que, porém, a priori remeteriam a dois planos distintos e autônomos. De fato, enquanto a primeira transformação afeta apenas as disposições do sujeito inscrito no enunciado – de início apreendido num estado “sonhador”, vemo-lo em seguida “acordar”-, a segunda produz seus efeitos no plano da enunciação, ao nos obrigar, a nós, espectadores, a modificar o olhar que lançamos àquilo que nos é dado a ver, porque não podemos olhar da mesma maneira uma silhueta agradável que se apresenta de perfil e um par de olhos que se fixam em nós. A chave do dispositivo está em que – como na física contemporânea, guardadas as proporções – a própria presença do sujeito da enunciação (a do observador, a nossa) tem o efeito de modificar os estados do sujeito do enunciado, do “objeto”: basta que o olhemos para que ele se transforme e, no caso, para que ele no mesmo instante se torne um “sujeito” que, por sua vez, nos olha e nos interpela. (LANDOWSKI, 1998, p.19)

Em muitas cenas dos episódios, os bonecos são filmados em primeiro plano,

cada boneco por tomada, numa relação proporcionalmente superior ao

fundo/cenário em que se encontram. Quando eles dialogam entre si, quando existe

mais de um boneco em cena (em debreagem de segundo grau) a disposição frontal

deles permanece simulando essa embreagem.

Além dessa disposição topológica dos bonecos em cena ser marcada pelo

movimento e aproximação da câmera, configura-se de outra forma, pela

quantidade dos bonecos em cada cena. Por um lado, existe somente um boneco

que dirige seu olhar para a câmera ou em determinados casos, em oblíqua,

caracterizando o lugar de conversa do interlocutário (seja outro actante do discurso

ou o próprio enunciatário). Por outro lado, temos cenas em que são dois, três ou

até quatro bonecos que são filmados frontalmente ou de costas para a câmera (em

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plano aberto) embora de frente para algo a ser destacado – como no episódio “Pôr

do sol” em que Júlio e Vitória contemplam o sol se pôr ou no episódio “Cocoricó no

Jap~o” no qual eles olham para a tela da TV. Ambas situações podem gerar um

efeito de sentido de inclusão do enunciatário no discurso, um olhar “dirigido

insistentemente para o contra campo no qual se encontra o telespectador”

(FECHINE, 2008, p. 139). Yvana Fechine descreve a instauração do espaço de

interlocução como correspondente às próprias estratégias enunciativas

responsáveis pela interlocução proposta pela programação televisual da emissora.

Isso nos permite identificar seu ponto de vista em relação ao nosso objeto

analisado: o olhar do boneco em Cocoricó para a criança espectadora. A autora

afirma que “tentam, com esse mecanismo enunciativo, colocar a si mesmo, ao

entrevistado e ao telespectador numa mesma situação ou num mesmo lugar, social

e psicologicamente, demarcado pela própria transmiss~o” (IDEM). Ainda segundo a

autora:

Toda essa alternância de olhares dos sujeitos enunciadores entre si e destes com o enunciatário configura o que se poderia chamar de um “campo de inclus~o” visual, ou seja, um espaço de outra natureza definido por posições abstratas postas em relação. Esse “campo de inclus~o” pode, no entanto, assumir outras formas de expressão, manifestando-se através de qualquer sistema semiótico por meio do qual seja figurativizado o “estar aqui e agora junto com” (FECHINE, 2008, p. 140).

Discini comenta a utilização desse recurso retórico no discurso verbal:

[...] constitui um modo indireto de dizer; por meio dele, pergunta-se, não para obter resposta, mas para conduzir o leitor a fazer determinadas asserções; contém em si, implicitamente, a resposta, misturando vozes: a que pergunta e a que responde. Advém do narrador, que é quem faz a pergunta e quem manipula o narratário-leitor, para determinada conclusão. Institui um sujeito como presença mais próxima: em relação ao narratário-leitor e em relação ao próprio enunciado. Traz em si a voz respondente, viabilizando nos textos: a heterogeneidade mostrada; o efeito de polifonia. Faz com que o narrador se aproxime do narratário, para

que este se veja obrigado a seguir a orientação dada. (DISCINI, 2005, p. 175).

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O “estar aqui e agora junto com” é figurativizado pelo olhar dirigido e pelo

falar em tom de intimidade, e também na composição cenográfica e movimentação

da câmera, cujo efeito de sentido que se tem é a tridimensionalidade desse espaço.

Os diálogos entre os interlocutores no ambiente cenográfico do campo são

materializados pela madeira que se configura como o material figurativo da

fazenda, do paiol e da casa. Já o cenário da cidade é marcado por construções, na

aparência de tijolos de cor cinza. Essa diferença dos materiais está figurativizada na

capa dos DVD’s das temporadas e é ressaltada nas paredes do apartamento e da

casa da Fazenda.

FIGURA 31 – Cenas da gravação de Cocoricó no campo, cena externa na fazenda, quarto de Júlio e

paiol

O cenário de Cocoricó - como explicitado antes - é suspenso o que possibilita

a movimentação dos atores bonequeiros em cena. A captação da imagem pela

câmera é feita tanto utilizando-se de uma grua quanto de um pedestal, ambos

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devem permitir ao bonequeiro estar em uma altura necessária, que de fato os

esconda. Essa característica do cenário ajuda a criar o efeito de sentido de

profundidade (volume) da cena em que os bonecos dialogam entre eles e também

na relação frente/fundo com um painel (de um céu azul com nuvens brancas em

Cocoricó no campo e dos prédios em Cocoricó na cidade) em primeiro plano e

segundo plano. A possível estaticidade dos bonecos acaba sendo anulada pela

profundidade do cenário que permite o deslocamento deles. O perto e longe, o

frente e fundo da câmera, bem como os primeiros planos são possibilitados a partir

da construção do cenário: tanto no campo - paiol, casa da fazenda (cômodos sala,

cozinha e quarto de Júlio) - como na cidade - beco, apartamento de João e cenários

externos da cidade. Os bonecos possuem, assim, mobilidade e dinamicidade nas

cenas que eles figurativizam com efeitos veridictórios para o enunciatário que

assume esse dizer verdadeiro.

Pelo plano da expressão podemos reconstituir a construção dos espaços do

campo e da cidade pelo programa Cocoricó. Para exemplificar o que estamos

falando, quando a câmera mostra a maquete que figurativiza a fazenda, o

enunciatário é chamado a apreender que vê uma montanha delineando um espaço

rural. Essa apreensão gera um efeito de sentido de realidade, de estar diante de

uma fazenda e suas construções, como o paiol, a casa, as plantações. Em cenas no

campo, as ambientações externas são marcadas pelo passeio (panorâmica) da

câmera pela maquete e pelo movimento de aproximação do espaço onde a próxima

cena acontecerá. Na temporada na cidade, esse recurso de utilização da maquete é

recorrente, embora nesta temporada exista um efeito de sentido de

referencialidade à cidade de São Paulo, pelas locações externas em locais da cidade,

do qual falamos antes. Em Cocoricó na cidade, a cenografia reconstitui um bairro da

cidade, intitulado Beco, com avenidas, postes, sinalizações de trânsito, casarões

geminados, prédios, grafites em muros, etc., além dos ambientes internos, como o

apartamento de João (cômodos sala, quarto, cozinha), portaria/hall de entrada do

prédio, elevador.

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FIGURA 32 – Galpão onde é gravado o Cocoricó na cidade, cenário do programa da temporada

2009/201078

Uma vez que os bonecos e o cenário são construídos pelo enunciador

ressaltando o arranjo plástico, isso faz com que essas figuras do discurso se

transformem em temas a serem desenvolvidos pela estrutura narrativa. Assistindo

aos episódios de Cocoricó percebemos a reiteração de temas pertencentes ao

cotidiano das crianças que são figurativizados de diferentes formas. Esses temas e

figuras revelam qual criança é figurativizado pelo enunciador e depreende-se como

ela deve ser, do que deve brincar, do que deve gostar, o que deve comer etc.

As práticas cotidianas da vida dos adultos como também das crianças

perpassa como temática os episódios analisados de Cocoricó. No episódio “O mini

game”, a avó e o avô est~o brincando com o mini game de João quando são

surpreendidos e a avó lembra que precisa preparar o jantar de todos. Em outro

episódio “Isso pega” traz a tem|tica da Campanha de Vacinaç~o como uma pr|tica

cotidiana das crianças, assim como o tempo para fazer a lição de casa no episódio

“A cavalgada”. Lilica quer brincar, mas Caco explica que precisa fazer a lição de

casa, figurativizando pela utilização de um acessório, uma mochila nas costas, que

está voltando do colégio, da aula.

A discussão sobre as raças e as diferenças culturais entre as crianças aparece

como outro tema do programa, como já explorado anteriormente, dado pela

caracterização cênica e figurativa de Júlio, Oriba e João e os outros. Júlio ora se

veste como uma criança que mora numa fazenda, como por exemplo, quando está

78 Imagens disponíveis em http://blogdolele.blog.uol.com.br, acessado em dezembro de 2010.

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vestido de macacão jeans, remetendo a todo um estereótipo do homem rural, ora

se veste como qualquer garoto da sua idade, que adora bonés diferentes e

coloridos. Seu primo João, vem da cidade passar as férias na fazenda, é negro,

possui cabelo rastafári, e se veste como um garoto da cidade, calças jeans, camisas,

gorros, roupas folgadas. A índia Oriba tem pele morena, cabelos escuros, olhos

puxados e suas vestimentas caracterizam a cultura indígena brasileira da qual faz

parte, seus brincos possuem as cores da bandeira do Brasil. É válido ressaltar que

essas vestimentas figurativizam estereótipos do homem do campo, do garoto

negro da cidade e de uma índia. Férres explica que os estereótipos:

São representações sociais, institucionalizadas, reiteradas e reducionistas. São representações sociais porque pressupõem uma visão compartilhada que um coletivo social possui sobre outro coletivo social. São reiteradas porque são citadas com base na repetiç~o”. (FÉRRES, 1998, p. 135).

Os estereótipos, então, são representações sociais que nessa visão

compartilhada passam a ser reiterados e cuja função de representação acaba se

perdendo frente ao desgaste da repetição e a possível perda de seu sentido. São

por esses estereótipos citados que são dadas muitas das relações no programa,

como a temática de como se vive com o outro, em sociedade, como pela figura da

família unida e feliz, que se configura como uma estereotipia das interações e

relações familiares. Júlio é o menino que foi morar com os avós na fazenda não

possui pais, embora o programa não faça em nenhum episódio referência. Apesar

disso, as bases da família continuam as mesmas, ele tem um pai e uma mãe, que são

figurativizados pelo avô e pela avó. O avô cuida dos fazeres da fazenda, enquanto a

avó toma conta dos fazeres das crianças e da rotina da casa, aparecendo em muitos

dos episódios cozinhando diferentes receitas. Entre os animais, também existem as

relações de parentesco figurativizadas: Lilica é a galinha criança, Lola e Zazá são

adultas, embora uma seja caracterizada por suas histórias e aventuras e a outra por

sua autoridade perante as crianças; Caco, Toquinho e até Alípio (assim como Júlio e

João) obedecem Zazá e a vaca Mimosa, também figurativizada como uma pessoa

madura, adulta, que pode ajudar as crianças em seu processo de aprendizagem. O

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leitão Astolfo é o bebê do paiol, dorme num berço, usa chupeta, toma mamadeira,

usa banheira para tomar banho, toma vacinas e choraminga em vários episódios,

mas é sempre tratado com carinho e atenção por todos. Apesar de em nenhum dos

episódios ter aparecido o boneco porca figurativizando a mãe do porquinho

(somente os braços apareciam), na temporada Na cidade, no clipe musical do

episódio “Astolfo e Rodolfo”, a m~e de Astolfo, uma porca, vestida como uma

mulher, os leva para passear no parque, em carrinho de bebê.

Por esses papéis temáticos da criança e do adulto, nas figuras seja do animal

ou do humano, é depreendido pelo enunciatário o fazer social rural e urbano. É por

essas relações e interações que o programa coloca um saber prescritivo, da forma

do viver da hierarquia familiar, a quem se deve o comando e a quem se deve o

respeito. A problematização do valor hierárquico com apelo pedagógico coloca ao

enunciatário um fazer interpretativo de fidúcia, ou seja, de crer nesse dizer como

verdadeiro.

Outra figura dessa temática a ser ressaltada seria, então, as similaridades e

diferenças entre o modo de ser e viver no campo e na cidade, o que existe no

campo e o que existe na cidade, o que as palavras significam no campo e o

significado delas na cidade. No episódio “Isso Pega”, como citado anteriormente,

acontece uma campanha de vacinação em Cocoricolândia e, Lilica acha que o laptop

de João está com algum vírus e tenta vaciná-lo, a história se desenrola nesse jogo

enunciativo entre o tipo de vírus que atinge o laptop e o vírus que “pega” o humano

ou um animal. Os clipes musicais também ressaltam essa temática, como por

exemplo no clipe “Esse Rio n~o tem peixe”, da temporada Cocoricó na cidade. Zazá

e Lilica chegam ao rio da Cidade Grande para pescar, achando que lá vão encontrar

“peix~o”, embora logo percebam que o rio é diferente. Para elas, no rio da Cidade

Grande “tudo boia/nada afunda/a água não é transparente/ele é feio/a paisagem é

um horror/ o rio fede/não tem bicho/só tem lixo”. Descobrem, portanto, que o rio

da cidade é poluído, sancionado negativamente pelo enunciador, que sobre o rio da

fazenda diz o contrário.

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O clipe “Parc~o” aborda essa oposição entre o campo e a cidade, ora

euforizando o campo e disforizando a cidade, ora o contrário. Os bonecos

conhecem um parque de diversões que não é um parque, é um “parc~o”, e todas as

experiências que eles têm lá são euforizadas partindo dessa mesma relação do

aumentativo. O parque da cidade grande é “grand~o”, tem o “trenz~o”, o “frioz~o”

na barriga, o “med~o” da emoç~o. Eles cantam que o parque de diversões não é

“um parquinho, é um parcão, na cidade grande para o pequeno cidad~o”, fazendo

ver o enunciatário que o brincar e se divertir também é um direito à cidadania. Os

contrapontos entre a Cidade Grande e o campo aparecem nas descrições dos

actantes ao cantar a música do clipe, pelas figuras: da montanha russa, que não é a

mesma montanha do campo aquela que não tem carrinho na subida; do carrossel

que não é a carroça do campo; e, do cavalo que não se cansa porque não carrega

carga, apenas criança. Uma característica eufórica é a vista dita “mais interessante e

bonita” de cima da roda gigante, recorrendo a tem|tica da vista de cima da cidade,

abordada pelo episódio do “Pôr-do-sol”.

A figura das brincadeiras também nos remete à temática do modo de viver

em sociedade como uma forma de fazer ações e atividade conjuntas ou separadas.

No episódio “O mini game”, Júlio, Oriba, Caco e Lilica chamam Jo~o para brincar, no

entanto, o amigo está mais interessado em brincar com o seu mini game. Eles

brincam de esconde-esconde, futebol de campo e futebol de mesa. Neste episódio,

é ressaltada a importância de ter companhia para brincar, do brincar coletivo, a

relação entre brincar sozinho e brincar com os amigos, se cansar ou não se cansar

brincando, além do brincar mesmo quando se é adulto, quando o avô pára o que

está fazendo para assistir a partida de futebol entre as crianças e os animais da

fazenda. A partir desta temporada 2009, os personagens passaram a descobrir

brincadeiras possibilitadas pelos aparatos tecnológicos, como o celular, o

computador, as web cam’s. Como no episódio “T| ligado” em que Jo~o precisa

“achar” o sinal para o seu celular, e a turma do paiol se disponibiliza a ajud|-lo e a

brincadeira é justamente “procurar” o sinal. Ou ainda no episódio “Web ovo” que

João já de volta à cidade grande manda pelo correio uma web cam em formato de

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ovo que vai parar no ninho de Zazá, Júlio e os outros precisam convencê-la de que

se trata de uma câmera e não de seu pintinho que está prestes a nascer.

No episódio “Férias na cidade grande”, eles brincam de procurar a mala de

Júlio que eles descobrem que foi esquecida na estaç~o. No episódio “Cocoricó no

Jap~o”, volta-se à figura da brincadeira. Os actantes brincam de cantar no videokê.

O aparelho eletrônico inventado no Japão, o videokê, aproxima os actantes da

cultura deste país pelo interesse em conhecê-la melhor, para isso, eles visitam o

bairro japonês da cidade grande. Encontra-se, assim, também o tema das diferenças

entre as culturas e da imigração.

No episódio “Pôr do sol”, os brinquedos e brincadeiras s~o mostrados pela

composição plástica da cenografia da cena e também pelo diálogo deles. Os

brinquedos encontram-se espalhados pelos cômodos do apartamento, e o diálogo

entre João e Júlio mostram a tentativa de ambos de fugir da monotonia de estar

dentro de casa. Chama atenção, uma oposição entre o verbal dito pelos

personagens sobre os livros que já leram e o visual mostrando ao invés de livros,

revistas em quadrinhos da Turma Mônica. Além disso, este diálogo ressalta a leitura

enquanto uma brincadeira infantil inclusive de clássicos da literatura inglesa, como

afirma Júlio: “Os três mosqueteiros, A ilha do tesouro, As viagens de Gulliver. Eu já li

todos e você, João?”. Assim como a própria importância da leitura, a falta de

possibilidades para brincar dentro de um apartamento aparece como temática na

fadiga de João e na espera de Júlio por alguém, seja pelo computador ou por

alguém que o chame para brincar, como indica o diálogo final em que Júlio diz:

“bem que alguém podia aparecer por essa porta e falar assim, né...”, quando Vitória

aparece para convidá-los para jogar futebol no beco, que além de esporte também

é uma brincadeira para as crianças. Neste episódio, a brincadeira também é assistir

o pôr-do-sol da Cidade Grande e poder compartilhar deste contato diferenciado

com a cidade.

Em outro episódio “TV Paiol”, a brincadeira é gravar programas com uma

câmera para o que eles chamaram de TV Paiol. Os actantes fazem desenhos que

viram vinhetas de abertura para os programas; o computador de João é o

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responsável por editar para que eles possam assistir à programação da emissora.

Ressalta-se como tema a utilização e a maneira de utilizar esses aparatos

tecnológicos, bem como a importância dos meios de comunicação, como no

episódio “A cavalgada” em que Alípio iria participar da cavalgada de Cocoricol}ndia

com Júlio que às vésperas da competição quebra o pé. João em seu lugar compete

com Alípio e ganha, mas os animais e moradores da Fazenda Cocoricó que não vão

pessoalmente à cavalgada só ficam sabendo do campeão através do rádio. Lilica,

Lola e Zazá escutam o rádio no paiol, a avó e Caco escutam a narração da cavalgada

através de um rádio na cozinha da fazenda, Pato Torquato e Pata Vina escutam na

gruta. Características do rádio, como o tom da narração é ressaltada por Lilica

quando ela diz “esse homem est| me deixando nervosa”.

Desde as primeiras temporadas, a relação das crianças com os meios de

comunicação eram figurativizadas. Nessas temporadas, o Júlio e as outras crianças

da fazenda assistiam a programas de culinária e atividades infantis numa televisão

no quarto do garoto. Quando João veio passar férias na fazenda, essa relação pôde

ser explorada por outros aparatos, câmeras, máquinas fotográficas, computadores

para edição e, as crianças brincando com esses aparatos, inventando programas

(como no episódio citado da “TV Paiol”) e, utilizando a própria linguagem do meio

televisivo ou cinematográfico para mostrar a possível relação da criança com o

meio, mais uma vez como brincadeira, como o brincar de fazer TV ou de estar na TV.

No episódio, “Lola na TV”, da temporada na cidade, os reality shows musicais são

figurativizados: o apresentador apresenta em um palco, vai a casa dos candidatos

para conhecer os cantores, onde moram, do que gostam, etc. Nesses episódios, é

utilizada para figurativizar a gravação por uma câmera de vídeo: uma moldura, além

da marcação do tempo de gravação que aparece na tela. Pela figuratividade do

brincar a partir das mídias, o programa constrói um sentido eufórico do uso das

mídias, pelo discurso, mas também pelo uso de sua própria linguagem, quando dá a

ver pela tela os marcadores de material bruto, sem ser editado. Ao fazer isso, está

postulando como o enunciatário também pode fazê-lo, dando-lhes competência

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para um fazer. Além disso, está naturalizando esses equipamentos, como se eles

perdessem a função enquanto mediadores.

As profissões também são dadas como um fazer, uma ocupação, um modo

pelo qual se vive e se aprende, portanto, como uma temática do aprendizado. A

figura do fazer culinário é colocada por meio da rotina da avó de Júlio que faz os

quitutes da fazenda. É tão forte a presença desse fazer culinário da fazenda nos

episódios de Cocoricó que, em 2009, foi lançado um DVD com o título “Pé na

cozinha”, express~o utilizada quando queremos fazer ou aprender alguma receita.

Foi lançado um livro com as receitas da fazenda79. A culinária da fazenda aparece

nas figuras do pão de mel, da goiabinha da vovó, das pamonhas, da torta de maçã,

do pé de moleque. Essas figuras colocam em evidência o fazer do trabalhador rural

que colhe as frutas, verduras, hortaliças, entre outros, e os utilizam no preparo dos

produtos, além de também comercializarem. No episódio “Goiabinha da vovó”, a

goiabinha da vovó é objeto de valor de todos os que estão na cidade e saem em

busca do produto, disponível apenas no mercado municipal da cidade grande. Esses

objetos da fazenda também são valorados pela sua utilidade, como já falamos sobre

o episódio “Pé de moleque”, em que s~o apresentadas as diversas utilidades do

amendoim. As figuras do profissional vão aparecer pelas vendas de Pata Vina, na

figura da cantora de reality show como Lola, por um atuar numa obra e ser arquiteto

como o pai de João, do fazer jornalístico, quando eles aprendem como as notícias

chegam aos jornais, do fazer do porteiro do prédio de João, etc.

Também como temática do aprendizado, o episódio “O desenho da Lilica”

figurativiza a alfabetização, pelos actantes em seu aprender a ler, quando Lilica pára

em frente a placa e soletra a palavra que está escrita em uma placa amarela com as

letras maiúsculas “NOVOS TALENTOS”. No episódio “Os caçadores da galinha

perdida”, Caco e Lilica acham pistas escritas com letras maiúsculas, mostradas em

close-up através da lupa de Caco, para deixar ver o que está escrito possibilitando a

criança que assiste ler a charada que é dita pelo verbal por Caco.

79 A Editora Melhoramentos lançou em 2008 o livro Cocoricó: receitas da fazenda, com as receitas preparadas na fazenda Cocoricó.

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Essa temática aparece ainda como o aprendizado dos modos de falar, a

utilização de gírias, principalmente, gírias da cidade grande como as que João fala:

“mano, não vai rolar, parece uma geleca, ô galera, que animal”, entre outras. Muitas

vezes o significado da gíria é explicado, como no episódio “A Perua”. João explica

que quando diz na cidade grande que alguma coisa “é animal!”, é porque é muito

legal. Outras vezes, o programa se utiliza de metáforas, como nesse mesmo

episódio, quando a palavra perua é utilizada para designar o animal, mas também

como aquela que gosta de se arrumar exageradamente. Nesse episódio, usam-se

metáforas sobre os vendedores a domicílio, a Pata Vina diz: “deixe-me fechar a mala

e a conta”, fechar a conta significa somar os valores da mercadoria adquirida. Para

falar de Zazá que está usando vários acessórios (colares, brincos, chapéus), os

actantes dizem: “galinha com cara de perua”, isto é, uma galinha que se veste como

uma perua. No episódio, a perua “da Fazenda das Duduas”, é dada como a “mulher

do Sr. Peru, o melhor cliente” de Pata Vina, embora exista um boato de que há

outra perua na Fazenda Cocoricó. A perua “bonita, elegante e chiquérrima, que usa

colares e brincos de palha dourada80” que mora na fazenda Cocoricó, é a galinha

Zazá que fez compras de Pata Vina, assim como a perua da outra fazenda, com o

pagamento todo feito em milhos, ou “milhões” como diz Pata Vina, quer dizer,

milhos grandes, metaforicamente remetendo à moeda.

Nesse episódio também é feita referência ao uso de apelidos. João explica

que os apelidos não são dados por maldade. Mano cebola é o apelido do João, por

causa da cabeça e do cabelo. “E aí, batata?” O apelido do amigo de João, quando

falava ao telefone. O uso de metáforas aparece em outros episódios, em “A

cavalgada” João diz: “me amarro numa cavalgada”, a expressão é utilizada com o

significado de que ele gosta muito de cavalgada, entretanto ele está amarrado a

80 Referência ao capim dourado, existente apenas no Brasil, nos estados de Tocantins, Bahia, Goiás, Maranhão e Piauí, que foi descoberto pelos Índios no norte de Goiás, onde hoje é o estado do Tocantins. Eles trançavam e costuravam o capim usando espinhos como agulha. Faziam seus utensílios domésticos, como gamelas, cestos, bacias, tigelas, potes, etc. Esses índios transmitiram a técnica para os Quilombolas remanescentes dos escravos, que também faziam suas peças e vários outros utensílios domésticos usando o Capim Dourado. Assim, a técnica foi passada de geração em geração desde a época dos índios até hoje, sempre em família. Disponível em http://www.capimdourado.net , acessado em janeiro de 2010.

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Alípio. Nesse mesmo episódio, Lilica acha que João sabe montar pois ele conta que

ganhou v|rios prêmios montando a “égua magrela”, referindo-se à sua bicicleta.

Expressões do campo são utilizadas por Alípio, como “foi pras cucuias”, “êta sô”,

“aiaiai diacho”, a figura do peão da zona rural, com forte sotaque, entonação do

“r”, bem como a voz estridente que marca a fala do papagaio Caco.

FIGURA 33 - Alípio entre as peruas: uma da Fazenda das

Dudas e outra “perua” da Fazenda Cocoricó

Essa temática é dada também pelo aprendizado cultural, ou seja, como

prática de leitura, visita às exposições e museus. No clipe musical “Aventura sem

fim”, os actantes conhecem o livro Aventura sem fim81, mas o final do livro é

roubado pela Pata Vina e para lerem o final da estória eles precisam achar outro

exemplar. Assim, eles conhecem uma livraria e os diferentes tipos de livros que

podem encontrar - livro grosso, livro fino, diferentes tipos de histórias, clássicos da

literatura infantil como “Peter Pan”, “Lobo Mal” e “Rapunzel”, “Cinderela”,

“Narizinho”, “Bela e a Fera” e os “Os três porquinhos”-, a quantidade de prateleiras

com livros de literatura brasileira e literatura estrangeira; os diferentes gêneros,

conto de fadas, romance, poesia, história em quadrinhos, fotografia; mas também

81 Obra de literatura infanto-juvenil, da autora Lucilia Junqueira de Almeida Prado.

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conhecem o sebo, os livros antigos e os livros usados. E é no sebo que eles

encontram o livro que estavam procurando.

A prática de visita às exposições é usada como figura do aprendizado

cultural no episódio “O desenho da Lilica”. Lilica gosta de desenhar, mas Caco est|

sempre falando que seus desenhos são como uma “gerigonça”. Pelas críticas, Lilica

decide não participar da exposição, mas Pato Torquato e Pata Vina pegam o

desenho de Lilica e apresentam à exposição como sendo de Pata Vina que quer

fazer “alguma coisa diferente, como ficar famosa, virar celebridade”, como diz. Os

desenhos s~o enviados para a “Grande exposiç~o de desenhos de Cocoricol}ndia” e

os que ganham o prêmio são os desenhos de Caco e o de Lilica, enviado por Pata

Vina, que toma todas as glórias da vitória. Até que os amigos de Lilica conseguem

provar através da assinatura do desenho, trazendo assim, a temática da autoria,

quem é a verdadeira campeã. No final, Caco prepara uma surpresa para Lilica, uma

exposição apenas com seus desenhos lá no paiol e Caco diz que está apresentando

o estilo da artista Lilica: “de ser gerigonça”. Na Cidade Grande, os bonecos

conhecem ainda um planetário, um museu e uma sala de óperas. Nesses episódios,

foram realizadas gravações em externa com os bonecos, em locais da cidade de São

Paulo: Parque do Ibirapuera, Museu do Ipiranga e Sala São Paulo, respectivamente.

A visita a esses locais: exposições, parques, museus, é dada como objetos de valor.

O enunciador constrói essas figurativizações buscando gerar um efeito de sentido

convocatório, sancionando positivamente esses locais.

Os esportes aparecem tanto como uma brincadeira, quanto como um

aprender, pelas regras de um para outro e o aprendizado que se tem a partir desse

fazer coletivo. Em especial, o futebol aparece em três dos cinco episódios que

compõem o DVD Cocoricó na cidade, já mostrando a importância desse esporte para

uma grande cidade, e para o Brasil, como país oficial da próxima competição

mundial, em 2014. No episódio “Cocoricó Futebol Clube”, essa é o tema principal.

Neste episódio, Júlio e João têm a oportunidade de conhecer um estádio de futebol

e assistem à partida entre os dois clubes rivais, “Avenida Esporte Clube” e o

“Cocoricó Futebol Clube”. Os jogadores e os torcedores s~o bonecos mostrados em

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corpo inteiro, em câmera aberta (como numa transmissão pela TV de uma partida

de futebol) fazendo uma contraposição com os bonecos de Cocoricó que quase

sempre aparecem da cintura para cima. Ainda neste episódio, aparece como tema

as regras do futebol e do esporte enquanto disseminador do respeito e amizade,

como na pescaria que aparece no clipe musical “Esse rio n~o tem peixe”, como um

fazer esportivo que possibilita a prática da paciência e do saber esperar.

FIGURA 34 – Cocoricó e os torcedores de futebol: João e seu pai torcem para o time Avenida e Júlio

e o avô torcem para o Cocoricó, que estão em campo jogando

Bater uma bola é um lazer, lembrado ainda, no episódio “Direito das

crianças” que fala sobre o Estatuto da criança e do adolescente. Segundo Cocoricó,

as crianças possuem seis principais direitos que, por esta pesquisa, foram

relacionados aos juízos de valor e figurativizações recebidas:

- Direito 1: “de dizer o que pensa, toda criança tem direito a dar sua opinião,

de dizer o que gosta e o que não gosta”. Esse direito é figurativizado pela temática

dos modos de viver nas figuras das relações familiares.

- Direito 2: “ao lazer, quer dizer brincar, ir a parques, museus, se divertir e de

passear”. Esse direito também é figurativizado pela temática dos modos de viver,

mas pela figura das brincadeiras compartilhadas ou individuais.

- Direito 3: “de perguntar o que quiser, qualquer coisa, porque perguntar é o

melhor jeito de saber as coisas que a gente ainda não sabe”. Esse direito é

figurativizado pela temática do aprendizado, na busca pelas informações, pelos

passeios e perguntando.

- Direito 4: “à saúde. Quando a criança fica doente ou se machuca tem de ter

um bom atendimento e ser cuidada por médicos atenciosos”. Esse direito também é

tematizado pelos modos de ser e viver.

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- Direito 5: “de sonhar com o futuro legal e pensar o que vai fazer da vida

depois de adulto”, tematizado pelas figuras das profissões.

- Direito 6: “a se enturmar, formar a turma que bem entender e brincar com

quem quiser”. Esse direito reúne as figurativizações e tematizações, dos modos de

ser e de viver e do aprendizado que se dará em sociedade, na relação e interação

com o outro.

Relacionando esses direitos às figuras e temas discursivizados em Cocoricó,

possibilitou-nos perceber os julgamentos sobre o mundo desse destinador-

enunciador de Cocoricó, e consequentemente, quais as crianças figurativizadas e

tematizadas por esse destinador. As análises nos possibilitou, identificar que essas

crianças:

a) gosta de brincar e praticar esportes e possuem maneiras de;

b) não fazem distinção entre as raças (mesmo que se utilize, para isso, os

estereótipos);

c) desfrutam as diferenças entre a vida no campo e a vida na cidade, dos

bairros imigrantes às exposições, livrarias e cinemas, e;

d) Estudam, gostam de ler, estão sendo alfabetizadas e, aprendendo o

significado das palavras e gírias;

Por essas figuratividades de crianças que Cocoricó apresenta, temos a

relação que a emissora destinadora do programa pretende estabelecer com seu

telespectador. Para isso, antes ainda dos episódios de Cocoricó serem feitos –

planejados, escritos, gravados, editados – eles obedecem à uma dinâmica da própria

emissora que o transmite. Nessa relação, o programa contextualiza os propósitos

da emissora enquanto destinadora desse objeto. Falamos isso, porque, falta um

aspecto a ressaltar os modos de presença discursiva em Cocoricó. Trata-se do

formato audiovisual do programa.

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3.5 Gênero, estilo e criança

Os conteúdos dos programas transmitidos pela televisão, sejam eles em

canal aberto, TV por assinatura, ou pelo cabo, obedecem a uma lógica interna da

própria mídia em que são veiculados: cada programa será disponibilizado para que

possa chegar até a televisão do espectador. É o que chamamos de grade de

programação82, quer dizer, o horário em que cada programa será transmitido

dentro de uma grade para quem vai assistir. Dominique Wolton (1996, p. 69)

entende programação segundo três fenômenos diferentes. O primeiro deles seria a

funç~o de calend|rio, de estruturaç~o, “funç~o importante porque, vimos a

televis~o como uma espécie de relógio da vida cotidiana”, diz o autor. O segundo

seria a distinção entre a informaç~o e o conteúdo dos outros programas, pois “a

informação é aquilo que obriga o espectador a ver o mundo e a se interessar, pela

marcha da história da qual ele est|”, continua o autor. O terceiro fenômeno seria o

de respeitar os grandes gêneros da programação, como portas de entrada ou pré-

grade de interpretaç~o para os programas, “em outras palavras, imagem e

organização – quer dizer, programação – ligam-se para não deixar o espectador

sozinho diante da descontinuidade de imagens”, conclui Wolton. A grade de

programação, então, organiza aquilo que o espectador irá assistir na televisão, ou

seja, desempenha função similar à clepsidra de Robinson83, de ordenação, indicativo

das etapas a serem seguidas.

É dentro da rotina familiar, espaço das relações estreitas e da proximidade,

que a televisão se instala na ordem familiar de modo a poder representá-la como

um dos espaços fundamentais de leitura e codificação dela própria (MARTÍN-

BARBERO, 2003, p. 305). Segundo Martín-Barbero, a televisão se assume e se

molda, a partir da família por meio de dois dispositivos: a simulação do contato e a

82 Segundo José Carlos Aronchi, “programação (grifo do autor) é o conjunto de programas transmitidos por uma rede de televisão. O principal elemento da programação é o horário de transmiss~o de cada programa” (2004, p. 54). Para o autor, com a criaç~o da horizontalidade da programação, baseada em índices de audiência, as emissoras conseguiram estipular um horário fixo para cada gênero todos os dias da semana, criando no telespectador o hábito de assistir ao mesmo programa no horário estipulado. 83 Referência à primeira fratura trabalhada por A.J. Greimas, no livro “Da Imperfeição”.

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retórica do direito. Enquanto a simulaç~o do contato fala sobre “os mecanismos

mediante os quais a televisão especifica seu modo de comunicação organizando-a

sobre o eixo da função fática, isto é, sobre a manutenção do contato (IDEM), a

retórica do direito “organiza o espaço da televis~o sobre o eixo da proximidade e da

magia de ver” (IDEM, p. 306). Esses dispositivos ao mesmo tempo em que instalam

à televisão nessa ordem familiar, pautando sua grade de programação e seus

programas, faz isso, com o consentimento do destinatário enunciatário que está na

busca dessa proximidade e magia do ver, na continuidade de manter esse contato.

Por um lado, temos a simulação do contato, em que a TV se utiliza de um

tom coloquial que simula um diálogo com o espectador, fundado por um discurso

que se baseia numa lógica verbal e visual, dada em nosso objeto pela enunciação

enunciada com o olhar e conversar dos actantes dirigido ao enunciatário. Por outro

lado, pela retórica do direito, o espaço da televisão está fundamentado numa

proximidade que se constrói com o telespectador. A montagem na TV não precisa

ser expressiva como no cinema, mas sim, funcional, que se sustenta “na base da

‘gravação ao vivo’, real ou simulada”, explica Barbero (2003, p.307). O autor explica

ainda que o discurso televisivo se baseia na proximidade das histórias contadas por

um discurso que familiariza tudo. Essa relação entre a TV e a família funda também

uma relação entre o tempo do capital, portanto, produtivo, e o tempo cotidiano,

repetitivo; que se organiza na grade de programação através do cruzamento de

gêneros. Para Barbero, o gênero “pertence a uma família de textos que se replicam

e se reenviam uns aos outros nos diferentes hor|rios do dia e da semana” (IDEM).

Diante de tais colocações, entendemos que tanto a programação televisiva

quanto os gêneros que a televisão disponibiliza servem para ordenar e organizar o

que os telespectadores irão assistir, como também o que os sujeitos irão ser e fazer

no mundo.

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3.5.1 Uma discussão sobre os gêneros na televisão

Qual a necessidade de falarmos em gêneros, se a priori, a programação

infantil se caracteriza como programa de entretenimento e o que isso tem a ver

com a enunciação em Cocoricó? Ou seriam narrativas educativas ou ainda narrativas

seriadas? Por perguntas como essas, podemos perceber que falar em gêneros,

principalmente após a instituição do pensamento pós-moderno, é um assunto

controverso. Arlindo Machado afirma que “a ideia de gênero tem sofrido um

questionamento esmagador” (2001, p. 67) e diversos autores, de acordo com o

autor, ajudam a pensar a definição de gênero. O autor diz que para Barthes (1988),

o gênero deve ser pensado enquanto um texto em si capaz de dissolver qualquer

classificação e para Derrida (1980) a identificação de uma obra com um gênero,

acaba modificando o segundo. Para complicar ainda mais a noção de gênero,

Machado diz que:

[...] as obras realmente fundantes produzidas em nosso século não se encaixam nas rubricas velhas e canônicas e quanto mais avançamos na direção do futuro, mas o hibridismo84 se mostra como a própria condição estrutural dos produtos culturais (MACHADO, 2001, p. 67).

Concordamos com o autor quando diz que as primeiras definições para

gênero foram dadas pela literatura e não se encaixam em outros meios de

comunicação, como o cinema, a televisão, etc. ; a não ser que utilizemos a definição

de Bakhtin.

Para o pensador russo, gênero uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de um determinada linguagem, um certo modo de organizar as ideias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades. Num certo sentido, é o gênero que orienta todo o uso da linguagem no âmbito de um determinado meio, pois é nele

84 Autores como Peter Burke (Hibridismo Cultural, 2003), Omar Calabrese (A idade neobarroca, 1998), Stuart Hall (A identidade cultura na pós-modernidade, 2003), Frederic Jameson (Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, 1996), dentre outros abordam o tema do hibridismo.

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que se manifestam as tendências expressivas e mais organizadas da evolução de um meio, acumuladas ao longo de várias gerações. (MACHADO, 2001, p. 68).

Novamente a continuidade perpassa a ideia de gênero, como afirmara antes

Wolton e também Barbero, mesmo que o segundo tenha enfatizado a ordenação da

TV como um prolongamento da rotina familiar. Entendemos que o termo gênero

não é tratado de forma unânime pelos teóricos do campo da Comunicação85. Por

isso, traremos mais algumas definições propostas para o termo gênero no universo

televisivo. Sílvia Borelli afirma que o gênero é um princípio de coerência textual e

uma forma de classificação, construído como uma categoria abrangente (1996, p.

180). O gênero então seria capaz de classificar uma série bastante significativa de

elementos. Como Machado, a autora também explica que, a base de sustentação

dos gêneros na TV, encontra-se no campo literário.

Os gêneros – dos clássicos aos reeditados na atualidade – parecem

ser eternos na historia da literatura e da cultura. Ainda que se deva

assumir com cautela eventuais transposições e adaptações de

matrizes literárias tão antigas e tradicionais como a lírica, a epopeia

e o drama, é possível afirmar que os gêneros ficcionais estão

presentes desde os gregos, reencontram-se – reciclados e

transmutados – no campo literário e transformam-se,

fundamentalmente, em base de sustentação para a produção da

ficcionalidade nos meios audiovisuais. (BORELLI, 1996, p.177).

Enquanto Borelli e Machado nos colocam que os gêneros encontrados na

literatura, foram transpostos para a produção encontrada no meio televisivo, as

pesquisadoras Vera França e Yvana Fechine lembram da relação entre os gêneros e

o público espectador, discussão citada anteriormente por Barbero (2003). França

fala dos gêneros por duas perspectivas: “tanto do ponto de vista da construç~o de

sentido (regras semânticas), quanto do estabelecimento de um contrato de

interlocuç~o com o outro (regras pragm|ticas)” (2006, p. 29). Fechine também fala 85 Maria Immacolata V. Lopes (Revista Famecos, nº30, 2006) traz uma discussão interessante sobre o campo estudos da Comunicação, problematizando conceitos de campo acadêmico, disciplinarização das Ciências Sociais e dos estudos da Comunicação; e, sociedade da comunicação como consequência da globalização.

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nessa perspectiva dos gêneros televisuais considerando as expectativas do público

telespectador:

Unidades da programação definidas por particularidades organizativas que surgem do modo como se coloca em relação o apelo a determinadas matrizes culturais (o que inclui toda a “tradiç~o dos gêneros” das mídias anteriores), a exploraç~o dos recursos técnico expressivos do meio (dos códigos próprios à imagem videográfica) e a sua própria inserção na grade de programação em função de um conjunto de expectativas do e sobre o público. (FECHINE, 2001, p. 18).

Pensando mais especificamente na definição de Fechine (2001, p.14),

entendemos que os gêneros como categorias norteiam a própria relação da

indústria do audiovisual com o seu público, a partir dos quais se decide o que se

quer ver na TV e até o controle institucional da grade de programação sob os

sujeitos telespectadores e a ordenação de suas atividades diárias.

Essa reflexão sobre os gêneros na televisão nos coloca em posição de

pensarmos a partir de agora sobre o objeto desta pesquisa: o Cocoricó enquanto um

programa de TV infantil. Como pensá-lo de acordo com uma forma organizativa da

própria programação da televisão e com relação ao público telespectador? Nesta

perspectiva, constantes características presentes nos enunciados (elementos

narrativos, sintáticos ou semânticos, bem como elementos de linguagem

audiovisual) dos programas de televisão – e, aqui, não entendendo apenas os

programas infantis – nos dizem que determinado programa pode pertencer a um

formato ou outro, dentro da narrativa organizadora do programa, ou seja, o gênero.

Os formatos, assim, indicam variações dos gêneros. Por exemplo, telenovela

e minissérie são formatos diferentes do gênero narrativa seriada. Se os gêneros são

uma tentativa de organizar as unidades de programação das grades das emissoras

televisivas decorrentes de matrizes culturais, segundo Fechine (2001, p. 19), o

formato é a matriz organizativa das mensagens televisuais, que sendo assim,

incorpora toda a dinâmica de produção e recepção da televisão .

A autora identifica 12 tipos de formatos televisuais, fundados: no diálogo; no

folhetim; no filme; na performance; no jogo; na propaganda/publicidade; na

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paródia; no jornalismo; na transmissão direta; nas histórias em quadrinhos; no

voyerismo e, por fim, o que mais interessa a este trabalho, no apelo pedagógico.

Esse formato seria aquele que tem o objetivo explícito de ‘ensinar’ algo ao

telespectador.

Conforme tais definições de gênero e formato, afirmamos que o programa

infantil analisado pertence ao gênero narrativa seriada, em que cada episódio é uma

história completa e autônoma, com começo, meio e fim, e o que se repete são

apenas os mesmos personagens principais e uma mesma situação narrativa

(MACHADO, 2001, p.84). Tal configuraç~o “supõe regras comunicacionais, que não

se restringem ao que é dito, mas que remetem a um modo próprio de dizer”

(DISCINI, 2005, p. 15), fundado por um “apelo pedagógico”, próprio da emissora

que o transmite – sendo ela educativa - pelo qual será proposto o entretenimento,

mas também a transmissão de valores pedagógicos sociais e culturais. Além disso, o

clipe musical faz parte dos programas narrativos do episódio, possibilitando ao

telespectador criança, também, essa articulação sincrética entre música e imagem.

A proposta do Cocoricó, como bem identificamos no primeiro capítulo, vem

sendo desenvolvida ao longo de tantos anos de televisão no Brasil, por outros

programas infantis. Entretanto, seu foco não está no aprendizado escolar, mas em

transmitir valores, ideais, gostos, para um sujeito com identidade ainda em

formação, que conduza num saber viver (ideologicamente falando) em sociedade,

nos moldes previstos pelo enunciador. Utilizando, para isso, um estilo de fazer

televisão para o público infantil.

3.5.2 O estilo Cocoricó de fazer programa infantil

Como dito ainda no primeiro capítulo da tese, a TV Cultura veio ao longo dos

anos, se propondo e se especializando em criar, produzir e veicular programas

dirigidos ao público infantil. Da parceria com outras emissoras – Vila Sésamo com a

Rede Globo – à inspiração em outros programas como Sítio do Picapau Amarelo e

todos os Rá-tim-bum, a TV Cultura enquanto emissora de televisão pública criou o

Cocoricó e consolidou seu estilo de fazer programa infantil. Podemos ressaltar até

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aqui o quão importante é considerar nosso objeto enquanto situação de

comunicação, o que supõe enunciado em relação à enunciação. “A enunciação,

sempre pressuposta ao enunciado, compreende o sujeito do dizer, que se biparte

entre enunciador, projeção do autor, e enunciatário, projeção do leitor”, diz DISCINI

(2005, p.29).

A autora relaciona o termo gênero: às crenças fincadas na sociedade e

representativas de diferentes segmentos sociais e às coerções de gênero:

Os gêneros são formas relativamente estáveis de enunciados, estáveis tanto em relação ao conteúdo temático-figurativo, quanto em relação à estrutura textual. Os gêneros, supondo famílias de textos que partilham características comuns, embora heterogêneas, estão disponíveis nas culturas. A noção de gênero, constitutiva do texto, confirma o fato de que não pode haver texto absolutamente original. O sujeito, então, não-soberano, firma-se entretanto como um modo próprio de ser no mundo pela maneira como responde às coerções; sejam coerções dadas como regras genéricas (do gênero), sejam coerções dadas como valorização dos

valores. (DISCINI, 2005, p. 34).

FIGURA 35 – Gênero e formato configuram o estilo de ser Cocoricó

Baseado nas análises dos episódios de Cocoricó, observamos o programa

tanto enquanto modo de ser– gênero - quanto pela colocação de seus valores –

formato -, sendo assim, identificamos as seguintes características:

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1) apresenta-se como fábula televisiva;

2) configura-se plasticamente pela relação entre a visualidade/sonoridade e a

continuidade narrativa, utilizando-se, para isso, de: a) ausência de voz em off, ou

seja, narração delegada à própria câmera e aos movimentos; b) delegação de voz e

posição marcados na colocação em discurso na relação enunciador-enunciatário,

observados pelo olhar dirigido e tridimensionalidade do cenário; c) verbal/sonoro

intensificado pelas músicas (aspectualidade durativa do ritmo e rimas) e interjeições

na fala dos actantes; d) além dos efeitos de saturação de cor, uso de molduras, de

vinhetas de passagens na edição final da imagem.

3) como os outros programas infantis criados pela emissora, possui

características de um programa de entretenimento - mas apoiando-se no próprio

lema da emissora – permanece aliado ao educativo, que para isso, privilegia em suas

narrativas às temáticas socioculturais;

Como produto da televisão brasileira, Cocoricó traz consigo características do

próprio meio no qual surgiu. Mattelart fala sobre essas características, embora das

novelas brasileiras ou narrativas seriadas como vínhamos chamando até agora:

As novelas brasileiras apresentam um misto de memória narrativa popular tradicional e de modernidade. Poderia parecer que esta associação define corretamente as necessidades da parte de nossos sistemas simbólicos gerenciada pelas grandes indústrias culturais. Elas podem surgir como o tempo da paixão, o tempo dos sentimentos, o tempo da libido familiar, contrastando com o tempo elíptico, fragmentado e ao mesmo tempo instintivo e abstrato, que explode por exemplo no videoclipe, na era da pós-modernidade. Com efeito, a originalidade da novela é combinar uma maneira de narrar fragmentada no plano da forma televisiva com uma estrutura narrativa de longa duração. A rítmica do fragmento corresponde à nossa imersão visual no mundo tecnológico moderno e satisfaz às modalidades contemporâneas

da percepção estética. (MATTELART, 1998, p. 81).

Afirmamos, portanto, que o programa se alimenta de outros formatos, como

a maneira de narrar fragmentada de outras ficções televisivas brasileiras – como as

novelas, citadas por Mattelart, quanto outros infantis - para configurar a partir daí,

uma expressão e conteúdo próprios de ser Cocoricó. Diz Carneiro sobre o programa

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infantil Vila Sésamo: “contra as perspectivas de recusa do divertimento

desenvolveu-se, a partir do Vila Sésamo, o uso educativo do aprendizado da criança

com a televisão-entretenimento (1999, p. 212). Assim como em Castelo, um dos

modos de ser Cocoricó é dado no apelo pedagógico. Além disso, a utilização do clipe

musical como um dos programas narrativos permitiu ao Cocoricó uma relação com

seu público, dada pelo estar junto do programa pelos modos de articular plástico e

sincrético.

Esses modos de ser Cocoricó encontram-se em suas convenções do quê dizer

e do como dizer, que configuram coerções genéricas e em certo sentido, genéticas,

pois estão no cerne do programa. O discurso de Cocoricó se utiliza dessas

convenções enquanto formação ideológica num fazer saber, fazer crer, fazer fazer

(fazer consumir) a partir da exploração do sistema sincrético enquanto produto

televisual. Discini explica que as formações ideológicas dominantes se apoiam em

instituições como escola, família, religião, e meios de comunicação de massa,

procurando não só explicar a realidade como regular o comportamento. E a autora

continua:

A propósito, ao ser designada a formação ideológica, fala-se em formação porque é considerado um conjunto sistemático de ideias e valores; porque é pensado um corpo lógico e coerente de representações; porque é reconhecido um sistema estável de interpretações; porque são lembradas regularidades de procedimentos; porque é concebido um conjunto organizados de prescrições e normas, conjunto que dita deveres, quereres,

poderes e saberes a indivíduos.(DISCINI, 2005, p. 60).

O ponto de vista de Discini nos permite compreender que essas formações

passam a refletir visões de mundo de classes sociais dominantes, reunidas por

estilos de vida, reprodutores de gostos e hábitos que dizem respeito ao poder

econômico e que perpetuam o aparato simbólico, e acabam por se configurarem

como a única forma de pensar dominante. Em Cocoricó na cidade temos

figurativizado - conforme citado no decorrer deste capítulo - como é dada essa

reprodução de gostos e hábitos, do que a criança deve fazer, brincar, ler, conhecer,

etc.

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Fiorin fala de algumas definições para essas representações, as quais ele

aponta, também, como ideologia:

“esse conjunto de ideias, a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens é o que comumente se chama de ideologia”. “ a ideologia é uma ‘vis~o de mundo’, ou seja, o ponto de vista de uma classe social a respeito da realidade, a maneira como uma classe ordena, justifica e explica a ordem social. “a ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade”. (FIORIN, 1998, p. 28-30)

E o autor vai além, segundo ele, o “discurso transmitido contém em si, como

parte da visão de mundo que veicula, um sistema de valores, isto é, estereótipos

dos comportamentos humanos que são valorizados positiva ou negativamente” e j|

condensados como prática social (FIORIN,1998, p. 55), como bem explica Chauí:

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes a partir das

divisões na esfera de produção. (CHAUÍ, 2008, p.113).

Chauí diz que existe uma ideologia, chamada por ela de competência, capaz

de realizar dominação pelo próprio prestígio e poder das ideias, consideradas como

científicas e tecnológicas. A autora explica que o discurso competente é aquele

proferido por especialistas; de um lado a Organização, que manipula, do outro lado,

sujeitos despojados de sua condição social, política e histórica; e por último uma

Organização que tenta revalidar esses sujeitos tornando-os privados.

O discurso da competência privatizada é aquele que ensina a cada um de nós, enquanto indivíduos privados (e não enquanto sujeitos sociais), como nos relacionarmos com o mundo e com os outros.

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Esse ensino é feito por especialistas que nos ensinam a viver. Assim, cada um de nós aprende a relacionar-se com o desejo da mediação do discurso da sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela mediação do discurso da dietética ou nutricionista, a relacionar-se com a criança por meio do discurso da pediatria, da psicologia e da pedagogia. (CHAUÍ, 2008, p. 112).

Identificamos, portanto, que essa mídia televisiva para crianças pauta-se,

sobretudo, na modalidade cognitiva, do saber, do conhecer, como também, na

prescritiva. Observado isso, fazemos as seguintes pontuações, baseadas em Discini

(2005, p. 192-193):

reunião de orientações que transmitem um saber fazer ao espectador,

também manipulado para querer e dever agir segundo estabelecido;

discurso que doa deveres e saberes, investidos pela crença em uma

imagem ideal;

discurso que legitima aspirações vinculadas a épocas e classes sociais;

discurso que, enquanto construção de significado pelo espectador,

supõe um manipulador, o enunciador, que manipula o enunciatário-

telespectador, para que este entre em conjunção com um

determinado valor, como, por exemplo, a aceitação social;

discurso do qual se depreende a cena enunciativa de aconselhamento

e, portanto, voltada primordialmente para o sujeito deôntico (do

dever ser e fazer); a modalidade deôntica se organiza segundo o

dever fazer (prescrição) e o dever não fazer (interdição) e suas

variações; assim pelo: comprometimento (crer dever fazer) e

indiferença (não crer dever fazer), certeza (crer dever ser) e incerteza

(não crer dever ser), competência (crer poder fazer) e incompetência

(não crer poder fazer), verossímil (crer poder ser) e inverossímil (não

crer poder ser).

Por meio das modalidades, o estilo de Cocoricó é afirmado como um modelo

confirmador de hábitos e gostos de determinado grupo social, como um estilo para

categorizar o mundo. “A formação de tipos é um outro nome para categorização.

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Identificação de traços comuns, rede de semelhanças do que é apreendido”

(FONTANILLE, 2007, p. 50). Por outro lado, o estilo de Cocoricó também se

configura- como um modelo de aprendizado televisual, pela exploração das

presenças discursivas de delegação de vozes, temporalidade e espacialidade dadas

pelo uso do sistema televisual. Nessa utilização da linguagem televisiva, Bettetini

afirma que a presença do sujeito enunciador, delegado do destinador, deve ser:

Entendido como aparato simbólico que é o princípio ordenador de todos os processos semióticos e um texto e que regula também as modalidades de aproximação ao texto pelo espectador: um aparato ausente, produtor e produto do texto, que deixa marcas

de sua passagem ordenadora sobre seus materiais significantes 86. (BETTETINI,1986, p. 13).

Ou seja, mesmo que o enunciador tente apagar marcas, para que o suporte

se torne ausente, tudo faz parte do que será apreendido como significado.

[...] sugerindo a hipótese de que justamente a investigação sobre o que está acontecendo neste simulacro escondido no texto, neste fantasma carregado de intenção comunicativa, pode ajudar a compreender o novo panorama tecnológico, antropológico e cultural do cinema e da televisão. Dedicar-se ao sujeito enunciador significa, no fundo, dedicar-se a compreender quem verdadeiramente “fala” através da tela audiovisual, quem é o fio condutor da mudança discursiva que se fecha no circuito entre a

imagem e o espectador87. (BETTETINI, 1986, p. 13-14).

O que tentamos neste capítulo foi perceber os modos de se colocar desse

sujeito enunciador de Cocoricó e suas proposições, dentre elas os usos estilísticos do

discurso e da linguagem televisiva. Esse uso estilístico, como Coelho pontua na

86 Tradução nossa para: “entendido como el aparato simbólico que es el principio ordenador de todos los processos semioticos e un texto y que regula también las modalidades de aproximación al texto por parte del espectador: un aparato ausente, productor y producto del texto, que deja huellas de su paso ordenador sobre sus materiales significantes” 87 Tradução nossa para: “[...] sugeriendo la hipótesis de que justamente la investigación de cuanto está sucediendo en este simulacro escondido en el texto, en este fantasma cargado de intencionalidad comunicativa, puede ayudar a comprender el nuevo panorama tecnológico, antropológico y cultural del cine e de la televisión. Ocuparse del sujeto enunciador significa, en el fondo, ocuparse de quien verdaderamente “habla” a través de la pantalla audiovisual, de quien rige los hilos del cambio discursivo que se cierra en el circuito entre la imagen y el espectador.”

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literatura (pelas rimas e alternâncias de um poema) têm um papel diferencial na

apreensão da significação para um programa de televisão. Para a autora:

Claro que o pequeno leitor ou ouvinte não perceberá esses pequenos/grandes detalhes estilísticos (e nem lhe interessará!), mas a nós, adultos, cabe saber que é devido a tais detalhes que a sua leitura, recitação ou cantarolar seduzem os leitores e propõem

uma experiência vital diferente. (COELHO, 2000,p. 245).

Compreender essas marcas estilísticas como uma “experiência diferente”

significa que a apreensão delas será dada pela ordem da experiência sentida pelo

enunciatário, sensorial e cognitivamente. Merleau-Ponty diz que (1999, p. 126-128)

que nosso corpo é ao mesmo tempo liberto e servo de nossa existência, liberto por

que esse corpo e seu circuito sensorimotor dá sentido aos nossos reflexos e servo

por que apenas renunciando a “uma parte de sua espontaneidade, engajando-se no

mundo por órgãos estáveis e circuitos preestabelecidos que o homem pode adquirir

o espaço mental e pr|tico que em princípio o libertar| de seu meio”. O autor nos

chama atenção para a discussão entre o que apreendemos sensivelmente ou

cognitivamente, e nos permite pensar nesse sujeito enunciador-destinador de

Cocoricó que pelo uso da linguagem televisual e de suas marcas estilísticas convoca

o enunciatário-destinatário na apreensão sensível e cognitiva para os efeitos de

sentido e de interação desejados.

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Capítulo IV

REGIMES DE SENTIDO E REGIMES DE INTERAÇÃO

“Presença”, “situação”, “interação”: estas são,

com efeito, algumas das principais noções que

é preciso reter se se deseja abordar a

especificidade do “fazer” semiótico, pelo

menos naquilo que ele oferece hoje de mais

vivo. Tendo como objetivo a captação do

sentido enquanto dimensão provada de nosso

ser no mundo e desejando manter um contato

direto com o cotidiano, o social e o “vivido”, a

pesquisa semiótica atual se orienta cada vez

mais explicitamente para a constituição de uma

semiótica da experiência, em particular sob a

forma de uma sociossemiótica.

Eric Landowski, 2002

Cada análise dos episódios e clipes musicais de Cocoricó foi nos mostrando

como é construída a relação interativa entre esse programa e audiência. Essa

abordagem deu-se pelo estudo do sujeito complexo da enunciação, explorando

nesse processo, o relacionar do enunciador e enunciatário no como enunciar a

produção do sentido. Entender essa relação, nos possibilitou compreender que a

apreensão do sentido posto por esse produto televisual é responsável pela

construção de verdades, saberes e visões de mundo em seu plano de conteúdo que

são encadeados pelo uso da articulação dos formantes plásticos na linguagem

sincrética do televisual. Por essa construção do sentido torna-se necessário refazê-

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la, pontuando para isso, os procedimentos de interação baseados nos pressupostos

teóricos de Eric Landowski: manipulação, programação88, ajustamento e acidente.

Discorrer sobre esses regimes de sentido e de interação, nos leva de volta ao

modo como os sujeitos enunciador e enunciatário são instaurados pelo discurso de

Cocoricó. Os procedimentos enunciativos dos discursos midiáticos são definidos

pela instauração dos sujeitos envolvidos no ato enunciativo - quer dizer, o eu que

fala e o tu para quem se fala - na medida em que esse ato é o de processamento do

discurso que lhe foi enunciado. Esses procedimentos formam um sistema de

possibilidades no processar do sentido. Ao alargar os procedimentos sintáxicos do

regime de junção com os do regime de união, Landowski nos propõe regimes de

sentido que se estruturam pelos mecanismos interacionais instaurados nos

discursos para fazer o seu sentido. Explicita-se a semiótica como uma teoria da ação

humana de construção da significação. Como é colocada, então, essa dinâmica de

interação dos sujeitos em Cocoricó?

4.1 Cocoricó, manipulação, hábito e consumo

No capítulo anterior, já falávamos sobre um fazer estilístico do enunciador e

sobre a competência modal dos sujeitos, configurando assim, a intencionalidade

mediadora dos sujeitos enunciativos deste programa infantil. Afirma Landowski que

um sujeito de “vontade”, ou seja, com uma intencionalidade, tem por finalidade agir

sobre o outro, um procedimento que a semiótica largamente define como

manipulação. Esse fazer fazer o outro que se instaura por um sujeito fazer um outro

sujeito querer fazer. Para que esse segundo sujeito queira fazer, “[...] é preciso pelo

menos, antes de qualquer coisa, fazê-lo crer, ou fazê-lo saber que há vantagem no

querer, de um ponto de vista ou de outro”89, diz o autor (LANDOWSKI, 2005, p.21).

88 Pontuamos que, até momento, ao nos referirmos à programação, significava grade de programação das emissoras de televisão. Entretanto, neste capítulo estaremos tratando a programação enquanto um procedimento de interação na emergência do sentido. 89

Traduç~o nossa para: “Mais pour faire qu’un sujet ‘veuille’ faire quelque chose, il n’en faut pas moins, d’abord, lui faire croire, ou lui faire savoir qu’il a avantage { le vouloir, d’un point de vue ou d’un autre”.

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O que mostra as negociações discursivas que animam esse tipo de interação social.

De um lado, temos a TV Cultura e seu programa Cocoricó como um sujeito de

intencionalidade constituído por um querer fazer crer a criança telespectadora de

valores sociais e visões de mundo na presentificação de lugares, descoberta de

novas brincadeiras e atividades a fazer e aprendizado das formas de viver em

sociedade. É instaurado, então, um contrato de fidúcia entre esses dois sujeitos,

conforme desenvolvido pelas análises das vinhetas, dos episódios e dos clipes

musicais. O fazer crer do sujeito emissora e programa remete ao fazer

interpretativo do telespectador, em crer nesse dizer como verdade. Por esse

contrato mediado nas formas de apreensões desse enunciatário pela linguagem

televisual, o sujeito (emissora e programa) vai se constituindo pelo seu fazer crer em

sua disseminação enquanto marca Cocoricó.

O enunciador de Cocoricó propõe a audiência relações pautadas: por um lado

na fidelidade à marca, e por outro, na instauração do sujeito enunciatário na

construção do sentido do discurso por um fazer sentir. Esses sujeitos que se

constroem marcam a passagem de uma semiótica das situações a uma semiótica da

experiência sensível. É priorizada, assim, a noção de um fazer do outro, por meio

dos seus sentidos, de sua competência estésica para apreender o sentido que nas

palavras de Landowski:

trata-se, afinal, de abordar as condições básicas do fazer sentido inerente ao nosso estar-no-mundo – um mundo feito de qualidades sensíveis cujos modos de significar pouco a pouco começamos a entender, ou seja, a descrever um pouco melhor. (LANDOWSKI, 2002, p. 150).

A emissora anima o sujeito a querer por si mesmo e na busca dessa

competência se tornar um auto destinador de sua trajetória, na constante de

diversificar suas condições para leitura do seu sentir o mundo com os seres, as

coisas e a si próprio. Nesta perspectiva do fazer sentido, Landowski introduz no

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procedimento de manipulação a noção de hábito90. Para ele, o hábito é a repetição

de um fazer, de um modo de agir. Uma prática que produz um tipo de contato entre

o sujeito e aquilo o que ele faz, pela repetição a cada vez de um sentido singular,

como por exemplo, no ato de dançar ou no ato de montar a cavalo. No texto

escolhido para esta tese, esse tipo de construção do sentido se processa na

experiência da prática de um estar junto, um estar mediado, mas que atua na

fisicalidade corpórea do sujeito que assiste o programa e é afetado somaticamente

durante esse ato.

Nos dias atuais, a rotina diária de uma criança – desde quando nasce até

entrar na escola - é composta principalmente pelas horas que passam em frente à

tela da televisão. Já falamos em dupla jornada das mulheres, quantidade e

qualidade da programação, entre outros motivos, fazem com que as crianças se

relacionem de modo cada vez mais intenso com esse conteúdo televisivo. Esse

sentir no momento de lazer e entretenimento da criança ao assistir TV pode ser

comparado ao sujeito que lê um jornal, num fazer significante da própria leitura do

jornal, como abordou Ana Claudia de Oliveira no artigo “Jornal e h|bito de leitura na

construç~o da identidade”. De acordo com a autora, “acostumando-se ao sentir

desencadeado pelo mesmo tipo de arranjo, o sujeito se familiariza com ele e o seu

querer senti-lo, de novo, é a única volição que o faz praticá-lo uma outra vez e de

modo igual” (Oliveira, 2002). Quer dizer, na leitura diária de um jornal está prevista a

relação intersubjetal: de um lado o leitor, do outro o jornal e toda a equipe de sua

elaboração. O segundo proporciona ao primeiro, o que Oliveira chamou de

“mesmidade estrutural” que se processa pela identidade visual criada pelos

arranjos estéticos dos recursos tipográficos e design gráfico e propicia ao leitor no

seu encontro com o jornal, reconhecê-lo como um sujeito credível estabilizado que

propicia, sobretudo, um sentir-se sujeito no ato de leitura. Daí o instaurar na

continuidade uma vivência enquanto hábito no ato de ler o jornal.

90 O autor trata a conceituação de h|bito em diferentes artigos: “Pour l´habitude”, in Caderno do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, Nº 4, 1998, São Paulo, CPS, pp. 155-164; “Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa”, in Documentos de Estudo do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, S~o Paulo, Edições CPS, 2005; “Da Imperfeiç~o, o livro do qual se fala”, in Da Imperfeição, trad. para o português A.C. de Oliveira, São Paulo, Hacker, 2002, pp. 125-150.

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Em Cocoricó, identificamos essas mesmas práticas entre sujeitos que se

relacionam para a configuração de um hábito. Ao assistir o programa, a criança sabe

quais bonecos encontrará, o espaço tópico onde se dará as histórias, o horário de

transmissão, além dos aspectos televisuais ressaltados neste trabalho como a

sonoridade, ritmicidade, exploração cromática, modo de filmar, etc. Esse produto

televisual garante ao telespectador essa manutenção da identidade do programa

que é percebida e diferenciada pelos sentidos da criança. A enunciação enunciada

em primeira pessoa, que convoca esse espectador a todo instante, a solicitação dos

sentidos dos telespectadores e, com isso, novamente a instauraç~o do “di|logo”, o

uso da intertextualidade com outros produtos audiovisuais ou da literatura e a

ritmicidade na musicalidade das canções são aspectos que propiciam esse estar

presente de Cocoricó na interação. Tais aspectos configuram a noção de hábito de

assistir Cocoricó pela experiência vivida da criança.

As escolhas e práticas são, assim, como rituais no plano coletivo por um

determinado uso. São costumes e regras instaurados no dia a dia das pessoas. Em

nosso objeto de estudo, temos as crianças que assistem os programas de TV

dirigidos a elas que seus pais ou responsáveis aprovam e propiciam essa ocasião.

Trata-se de uma prática comum que se torna ritualizada, pelo seguir uma rotina que

a torna previsível. Assistir televisão para as crianças deve ser entendido, assim,

como um uso, um costume, cuja frequência configura-se num hábito programado.

O hábito de assistir um ou outro programa se relaciona ainda com a própria

motivação que propõe estrategicamente as emissoras de TV durante a grade de

programação. Enquanto procedimento de interação, a estratégia dessa emissora no

exercício de seu papel actancial de destinador é um fazer para ganhar audiência e

conseguir assumir um comando da relação com a criança. Esse telespectador é , a

todo instante, informado durante os intervalos comerciais do programa que está

passando, do que virá a seguir e, assim sucessivamente. Além da informação dessa

grade de programação via intervalos comerciais, durante a exibição de determinado

programa, a emissora coloca, no canto superior ou inferior da tela, a logomarca de

outro programa, com o dizer: “a seguir”, como destacamos anteriormente. Por

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essas duas maneiras, a criança sabe o que virá a seguir – quais os programas

disponibilizadas pela emissora – e motivada por essa grade de programação acha

que pode decidir assistir ao programa e usufruir das histórias, participando do

sentido proposto. Entretanto, na verdade, a criança está inserida dentro dessa

estratégia de manipulação, baseada na intencionalidade de um destinador maior –

que é a emissora de TV - para fazer crer em seus valores , visões de mundo e formas

de apreensão.

Essa criança motivada por seu próprio fazer diário – do hábito de assistir - e

estrategicamente manipulada pela emissora, assiste aos episódios de Cocoricó. Por

isso, que a cada temporada, o programa irá acrescentar novos cenários, actantes,

figurativizações diferentes (embora com a mesma temática), para que para o

destinatário-enunciatário estar com Cocoricó não seja uma rotina dessemantizada,

mas recoberta de semantismo que são descobertos e fazem com que permaneça

como um hábito, ou seja, como algo que faça sentido para quem o faz no modo do

próprio de fazer. Segundo nos explica Landowski:

[...] trata-se de uma necessidade de ordem simbólica. Regulando as condutas individuais ou coletivas enquanto como significantes, ou seja programando-as de um modo propriamente sociossemiótico, esse gênero de concretudes socioculturais – ritos, usos, hábitos , etc. – introduz um coeficiente de previsibilidade nos comportamentos e fornece por isso, também a eles, uma base que permite definir a respeito dos atores sociais os procedimentos interativos eficazes, seus próprios percursos entre manobras fundadas sobre o conhecimento de determinações restritas, de ordem causal, e manipulações estratégicas fazendo apelo direto à competência modal das pessoas-sujeitos.91 (LANDOWSKI, 2005, p. 15).

91 Traduç~o nossa para: “[...] c’est d’une nécessité d’ordre symbolique qu’il s’agit. En régulante les conduites individuelles ou collectives en tant que conduites signifiantes, c’est-à-dire en les programmant sur un mode proprement sócio-semiotique, ce genre de concrétions socio-culturelles – rites, usages, habitudes, etc. – introduit un coefficient de prévisibilité dans les comportements et fournit par l{, lui aussi, une base permettant de définir { l’égard des acteurs sociaux des procédures interactives efficaces, à mi-chemin entre manoueuvres fondées sur la connaissance de déterminantions strictes, d’ordre causal, et manipulations stratégiques faisant directement appel { la compétence modale des personnes-sujets.”

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Mediante tais palavras, afirmamos que não se trata, neste objeto, de um

hábito estabelecido em assistir ao programa regido apenas pelo procedimento de

programação, no qual os sujeitos envolvidos desenvolvem uma relação baseada na

regularidade do fazer do outro. Landowski (2005, p. 15) nos questiona: “[...] por que

não admitir que esses comportamentos, a despeito de seu aparente automatismo,

s~o motivados, e n~o, ou n~o somente, programados?” e, ele mesmo responde:

[...] é porque nós já os justificamos por tal ou tal razão, nós podemos os ressemantizar e, se são tão triviais, transformá-los em práticas organizadas: lavar as mãos, fazer a cama, arrumar seus pertences como todo mundo, é certo, mas, sobretudo, fazê-lo da mesma maneira: à sua maneira de ser, redefinindo-as, remotivando cada detalhe de suas operações, um pouco como um músico que além de somente seguir ao pé da letra o enunciado de uma partitura dará à sua execução o valor de um novo ato de enunciação. 92 (LANDOWSKI, 2005, p. 16).

Seguindo o autor (2005, p. 9), os atos da rotina se transformam em um

hábito pelo jeito particular de fazê-los pelo modo como cada criança realiza as suas

ações durante a infância. Para isso, é necessário que o sujeito da produção

discursiva tenha uma imagem daquele o qual irá interagir. Isso se passa de modo

similar a mãe que conhece o filho e o que precisa fazer para levá-lo a fazer algo que

ela deseje, na maioria das vezes, valorando positivamente (por sedução) esse objeto

de valor. Nesse sentido, pensemos novamente no cotidiano da criança. O bebê

quando ainda está na barriga da mãe, se alimenta dela e sente tudo aquilo o que a

mãe sente. Quando o bebê nasce, esse forte vínculo com a mãe permanece até pelo

menos durante o período da amamentação. Entretanto, mesmo após esse período,

na fase da infância, a criança permanece com uma rotina fixada: hora de acordar,

hora de brincar, hora do lanche, hora do almoço, hora do jantar e, assim,

sucessivamente. Apenas, quando começa a vida escolar é que essa rotina sofre

92 Traduç~o nossa para: “[...] c’est parce qu’on les trouve justifiés pour telle ou telle raison, on peut resémantiser et, si triviaux soient-ils, les transformer en pratiques concertées: se laver les mains, faire son lit, ranger ses affaires comme tout le monde, certes, mais pas tout à fait de la même manière: à sa manière à soi, en redéfinissant, en remotivant chaque détail de ces opérations, un peu comme un musicien qui plutÔt que de seulement suivre au pied de la lettre d’enoncé d’une partition donnerait { son exécution la valeur d’un nouvel acte d’énonciation”.

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mudanças que precisam ser incorporadas. O que é impossível imaginar, é essa

rotina da criança ser tomada como dessemantizada e sem qualquer aprendizado.

Todos os dias as crianças “reinventam” esse cotidiano, como explica Landowski

(2005, p. 17), “o sujeito preocupado em questionar a cada instante e eventualmente

redefinir o sentido que ele dá aos objetos que o envolvem [...] reconstrói cada dia

seu próprio mundo como universo significante”. Se estamos falando em crianças,

como poderíamos defini-las? David Buckingham afirma que:

As crianças são definidas como um categoria particular, com características e limitações particulares, tanto por si mesmas como pelos outros – pais, professores, pesquisadores, políticos, planejadores, agência de bem-estar social e (claro) meios de comunicação. Essas definições são codificadas em leis e políticas, e se materializam em formas particulares de práticas sociais e institucionais, que por sua vez ajudam a produzir as formas de comportamento vistas como tipicamente “infantis” – ao mesmo tempo em que geram formas de resistência a elas. (BUCKINGHAM, 2000, p. 19-20).

Ao mesmo tempo em que Buckingham destaca essa categorização do

momento da vida conhecido como infância como uma codificação e materialização

de formas sociais, por outro lado, principalmente os meios de comunicação se

esforçam em promover e produzir textos que expressem essas formas de

comportamentos sociais com motivações pedagógicas. Esses textos “se

caracterizam muitas vezes pela tentativa de educar, de dar lições de moral ou

‘imagens positivas’, e assim fornecer modelos de comportamentos vistos como

socialmente desejáveis” (BUCKINGHAM, 2000, p. 27).

Desde seu nascimento, portanto, a criança tem seus primeiros contatos com

os meios de comunicação e com esses modelos de comportamentos sociais, o que

se configura como uma descoberta. Sendo um programa televisivo, Cocoricó

promove essa descoberta e interação por suas visões de mundo, dadas pelas

formas de sua articulação do discurso no conteúdo e na expressão. A ida dos

actantes para a cidade modifica a exploração do hábito em assisti-lo, no sentido de

que propõe a criança outras figuratividades de viver socialmente. Determinados

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elementos figurativos (destacados no capítulo anterior) criarão outras temáticas,

mas que não apagarão as anteriores. Ou seja, a criança ainda terá os elementos

necessários para fazer daquele assistir Cocoricó um hábito. A apreensão do sentido

por essa criança será tomada por essas mudanças dadas pelo estar na cidade, como

por exemplo: no relacionamento de Júlio com Vitória, nas descobertas culturais

dessa cidade, das profissões e, principalmente dos modos de viver e conhecer a

cidade apresentados pelos clipes musicais. Assim, a rotina euforizada será a de

assistir Cocoricó, seja no campo ou na cidade, já que o que será essencial para a

apreensão do sentido é dada por essa interação no encontro com o programa e

seus actantes, que permanecem com uma mesmidade identitária que os torna

reconhecível no estar junto com Cocoricó, seus discursos e motivações desejadas.

Tanto a relação entre sujeito mãe e sujeito filho, por exemplo, ou mais ainda

entre sujeito programa Cocoricó e sujeito criança, terá uma motivação subjetiva, que

dependerá das qualidades e competências de um e de outro e o que um faz do

outro.

Sob essa segunda forma, a interação estratégica não se desenvolve mais sobre um plano “horizontal”, em que os parceiros podem trocar entre eles os valores objetivos, mas sobre um eixo “vertical”, em outras palavras, hier|rquico, no qual sua confrontação tem por implicação o reconhecimento de um dos agentes pelo outro. E se, no primeiro caso, as razões para se submeter à vontade do manipulador são de ordem econômica, no segundo as motivações que o conduzem a se curvar são, em contrapartida, essencialmente de ordem identitária. 93 (LANDOWSKI, 2005, p.9).

Essa relação dependerá, portanto, também do que tornará esse sujeito

manipulador, um sujeito competente, que faz uso de sua racionalidade, com seus

próprios julgamentos e seus sistemas de valores. Desse modo, o autor apresenta a

interação desses sujeitos como a lógica da manipulação:

93 Tradução nossa para: “Sous cette seconde forme, l’interaction stratégique ne se déroule donc plus sur un plan ‘horizontal’ où des partinaires peuvent échanger entre eux des valeurs objectives mais sur un axe ‘vertical’, c’est-à-dire hiérarchique, où leur confrontation a pour enjeu la reconnaissance de l’un des agents par l’autre. Et si dans le premier cas les raisons de déférer { la volonté du manipulateur sont fondamentalement d’ordre économique, dans le second, les motivations qui conduisent { s’y plier sont en revanche essentiellement d’ordre identitaire”.

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A manipulação – e mais amplamente a estratégia, que estende em uma maior escala a mesma lógica do fazer fazer – constitui, ela, em seu princípio, a instância das sociedades civis fundada sobre a interdependência entre os sujeitos. A atividade de base aí toma a forma do trabalho político entendido essencialmente como trabalho de persuasão visando o acordo entre as vontades, que esse acordo seja explicitamente consagrado, ou não, sob a forma de contrato. Interagir desse modo é em primeiro lugar atribuir ou reconhecer no outro uma vontade e, a partir daí, procurar pesar suas motivações e suas razões de agir: é tentar fazê-lo querer isso mais que aquilo, de forma que – de sua plena vontade ou ao contr|rio, como dizemos, “a morte do espírito” – ele não pudesse não querer executar o que nós projetamos para ele. Quer dizer que aqui o reconhecimento do outro como fonte de vontade não equivale a propriamente falar em reconhecer o outro como um outro enquanto tal, por ele mesmo, como finalidade. Pois se a estratégia se propõe a reconhecer o querer do outro e mesmo, melhor que isso, se ocupa em conhecê-lo profundamente, a torná-lo tão transparente quando possível, a notar suas determinações (estando entendido que o querer funda o sujeito, ele não pressupõe necessariamente sua autonomia), é unicamente em vista de melhor poder manipulá-lo, de tomar posse mais seguramente sobre seu agir, sobre suas motivações e suas razões, eventualmente as mais secretas.94 (LANDOWSKI, 2005, p.12).

Podemos dizer que, o destinador “emissora” age de duas formas: pela

interdependência entre os sujeitos e pelo uso da estratégia. Na primeira delas, o

destinador é delegado dos pais na funções de entreter e, muitas vezes, de educar as

crianças e, com isso, tem sua audiência garantida com a ressemantização do hábito

de assistir TV. Já, a estratégia, irá possibilitar a esse sujeito destinador manipular 94 Traduç~o nossa para: “La manipulation – et plus largement la stratégie, qui déploie sur une plus grande échelle la même logique du faire faire – constitue, elle, dans son principe, le ressort des sociétés civiles fondées sur l’interdépendance entre sujets. L’activité de base y prend la forme du travail politique entendu essentiellement comme travail de persuasion visant l’accord entre les volontés, que cet accord soit explicitement consacré, ou non, sous la forme du contrat. Interagir sur ce mode, c’est donc en premier lieu attribuer, ou reconnaître { l’autre une ‘volonté’ et, { partir de l{, chercher { peser sur ses motivations et ses raisons d’agir: c’est essayer de le faire vouloir ceci, plutôt que cela, de façon à ce que – de son plein gré ou au contraire, comme on dit, ‘la mort dans l’}me’ – il ne puisse pas ne pas vouloir exécuter ce qu’on projette pour son compte. C’est dire qu’ici la reconnaissance d’autrui en tant que source de volonté n’équivaut pas { propement parler à reconnaître l’autre comme autre en tant que tel, pour lui même, en tant que finalité. Car si le stratégie s’astreint { reconnaître le voulouir d’autrui et même, mieux que cela, s’emploie { le connaître en profondeur, à se le rendre aussi transparent que possible, à en repérer les déterminations (étant entendu que si le vouloir fonde le sujet, il ne présuppose pas nécessairement son autonomie), c’est uniquement en vue de mieux pouvoir le manipuler, de prendre plus sûrement prise sur lui en agissant sur ses motivations et ses raisons, éventuellement les plus secrètes.”

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pelo modo de articular o seu fazer o outro sujeito. Toda a relação proveniente dessa

estratégia será para um fim manipulatório, mesmo que para isso, a estratégia seja a

de regressar ao procedimento da programação, como a TV Cultura faz com

Cocoricó, ao torná-lo um de seus selos, sua própria marca. Se o procedimento de

manipulação coloca em relação os sujeitos em seus percursos de possibilidades, por

outro lado, o procedimento de programação trará os actantes em papéis temáticos

estáveis, que podem ser alterados apenas pelo procedimento do ajustamento e

uma nova busca pelo sentido. Segundo nos diz Landowski:

Por isso Greimas inventa, ou reinventa a estesia, a sensibilidade, o corpo, enfim as condições mesmas do que chamamos por nosso lado o ajustamento: em favor de algum acidente que permitirá a negação ou a ultrapassagem dos programas fixados com antecedência, isso será a passagem de uma cotidianidade marcada pelo máximo de segurança possível, e correlativamente pela insignific}ncia e o tédio, para uma vida “outra” em que as relações entre actantes não terão nada mais de seguro, mas em que, em contrapartida, elas farão sentido.95 (LANDOWSKI,2005, p. 33).

Antes disso, porém, os actantes como dissemos estarão sujeitos aos papéis

temáticos estáveis e inalteráveis, como mostraremos a seguir.

4.2 A marca Cocoricó: uma programação

Durante todo o decorrer desta tese, viemos pontuando a relação

estabelecida entre Cocoricó e o público telespectador deste programa: a criança.

Afirmamos ainda no primeiro capítulo que o principal destinador de Cocoricó era a

TV Cultura, emissora responsável pela criação e transmissão do infantil. Quando

criou o programa, a TV Cultura utilizou um actante já conhecido do público da

emissora – o Júlio - e foi em busca de profissionais com experiência para dirigir e

95 Traduç~o nossa para: “Ce pourquoi Greimas invente, ou réinvente l’esthésie, la sentibilité, le corps, bref les conditions mêmes de ce que nous appelons pour notre part l’ajustement: à la faveur de quelque accident qui permettra la négation ou le dépassement des programmes fixés { l’avance, ce sera le passage d’une quotidienneté marquée par le maximum de sécurité possible, et corrélativement par l’insignifiance et l’ennui, { une vie ‘autre’ où les relations entre actants n’auront plus rien de très sûr mais où, en contrepartir, elles feront sens.”

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coordenar o projeto. Foi, então, que em 2002, Cocoricó passou a ser um programa

de boa audiência, público garantido e ganhador de prêmios de crítica. O programa

virou uma das marcas da emissora segundo a acepção de marca dada por Andrea

Semprini (2006, p. 143), segundo três aspectos: 1) a dimensão semiótica como modo

fundamental de existência da marca; 2) a distinção entre os planos de conteúdo e

expressão, e, finalmente; 3) a necessidade de integrar as noções de dinâmica e de

evolução. Ao mesmo tempo em que a marca estabelece uma relação comunicativa

com o público, ela dissemina sua identidade e seus valores, a partir da dinâmica

própria de sua história. O autor explica que:

[...] a marca é uma entidade que instala e propõe um projeto de sentido a seus consumidores. O produto ou os serviços são manifestações que permitem exprimir e introduzir este projeto de forma concreta na vida dos indivíduos. O produto não é nem oposto, nem complementar, nem suplementar à marca, ele é sua manifestação. (SEMPRINI, 2006, p. 153).

De acordo com Semprini (2006, p. 164-169) as manifestações da marca, seu

significado e sua apreensão, ou seja, como ela se tornará perceptível aos

destinat|rios, depende do contexto geral no qual ela é manifestada, “o contexto

sociocultural, os debates de opinião, o contexto histórico e também político, o

contexto de consumo, as ações da concorrência, os conhecimentos e as

informações”, diz o autor. A marca enquanto sujeito propõe, assim, um contrato

aos outros sujeitos destinatários, contrato esse, pautado nas construções de

manifestações significantes plásticas ou paradigma estético, que se reverte na

disseminação social da própria marca. Embora a finalidade das marcas sejam ligadas

ao consumo, elas passam a ser vistas também pelo forte vínculo ligado ao social que

tem a força de transformar essa marca e parte da vida do destinatário que a ela está

ligado em relação de dependência. Semprini conta sobre a saga do filme Star Wars:

[...] a ideia de fundo de Star Wars foi tratada não com um cenário de filme, mas como um projeto de marca, cuja manifestação principal, e com certeza a mais importante, aquela sem a qual o sistema de marca não poderia constituir-se, era o próprio filme. Os produtos derivados não foram concebidos como simples gadgets

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promocionais, mas como verdadeiras manifestações de marca, que permitiam exprimir este projeto, concretizá-lo, e torná-lo presente na vida cotidiana dos fãs da saga [...] esta estratégia foi, particularmente, explorada em filmes infantis (O Rei Leão, a Pequena Sereia, Pocahontas), pois o setor permite lançar um grande número de produtos derivados. (SEMPRINI, 2006, p. 263).

Pelas análises do programa, entendemos que os produtos tornam-se apenas

um: o da marca Cocoricó. Ao resgatar a história dos programas infantis lançados

pela TV Cultura, além disso, ao apresentar a diversidade de produtos Cocoricó,

tentamos ressaltar essa relação que desde a criação do programa procurou

estabelecer com o seu público. Cocoricó DVD’s, CD’s, livros, quadrinhos, sites,

bonecos (de diferentes tamanhos, cores e materialidades) compõem o projeto da

marca Cocoricó, seu significado, identidade e valores.

Essa marca, como descrito anteriormente, tematiza a vida social de uma

criança, seja no campo ou na cidade, quer dizer, pela figurativização de situações

cotidianas da vida das crianças, o destinador “emissora” postula para seu

destinatário telespectador a sua ação de fazer ser aquelas crianças de Cocoricó, que

gostam de brincar, cantar, dançar, conhecer pessoas e lugares novos, que

respeitam as diferenças e a natureza. As crianças de Cocoricó estão aprendendo

sobre seus direitos e deveres durante a duração do programa; assim como o que é

certo e o que é errado, as diferenças entre ser criança e ser adulto; sobre as

profissões e, principalmente, seu modo de se relacionar com os meios de

comunicação. O simulacro de criança construído em Cocoricó é o estereótipo da

criança feliz, em busca do aprendizado que se faz por suas descobertas. Landowski

postula duas acepções para o verbete simulacro no Diccionario Razonado de La

Teoría del Lenguaje:

[...] se emprega o termo simulacro em semiótica narrativa e discursiva para designar o tipo de figuras de componente modal e temático, com ajuda dos quais os actantes da enunciação se deixam apreender mutuamente, uma vez projetados no marco do discurso enunciado. Do ponto de vista de seu conteúdo, essas figuras podem ser consideradas como representativas das competências respectivas que se atribuem, reciprocamente, os

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actantes da comunicação. Por isso, intervém, necessariamente de antemão, em todo programa de manipulação intersubjetiva, a construção de tais simulacros na dimensão cognitiva. [...] quase como sinônimo de modelo, o que permite, então, destacar explicitamente o caráter não-referencial das construções com ajuda das quais a semiótica se esforça por dar conta dos fenômenos de produção e apreensão do sentido. (1991, p. 232).

Esse modelo construído pelo destinador-enunciador para “dar conta” da

produção e apreensão do sentido pelo destinatário-enunciatário, portanto, na

relação entre os actantes da comunicação, nos remete novamente à marca Cocoricó

e nessa apreensão que é dada no contexto de sua própria criação e história.

Cocoricó constrói o simulacro de criança que a TV Cultura quer disseminar, enquanto

marca que se preocupa e cuida da relação com o destinatário para realizar a

transmissão de sua identidade, a de uma emissora pública, mas que recebe verba de

instituição privada, cujos valores defendidos são da ordem de ser pedagógico,

ecológico, do ser paulista e de formar estética e eticamente a audiência em um

fazer significante de sentir estar no mundo.

Para isso, Cocoricó sustenta uma regularidade capaz de se fazer reconhecível

pelas crianças, que se baseia:

- nas ambientações da fazenda e características dos bonecos (fisicalidade,

materialidade, vozes, modo de falar) e;

- na articulação dos recursos televisuais (pelos modos de filmar,

enquadramentos e movimentos de câmera, ritmicidade, efeitos de edição e pós-

edição).

Essa regularidade é dada a partir de e com Cocoricó pelo programar das

ações cotidianas das crianças, enquadradas em seu uso, costume e regras do viver,

como: do que brincar, se alimentar, conversar, conhecer, do que gostar, como se

vestir, do que é importante, etc. O programa assume sua intencionalidade nesse

programar quando cria os simulacros sociais das crianças, como elas devem ser

socialmente. Ao fazer isso, propicia a construção da subjetividade desses sujeitos

simulacrados, de acordo com as bases da semiótica do gosto postulada por

Landowski (1997, p. 129) de duas formas: a) por sua interioridade, em função do que

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o sujeito sente, como é “estimulado pelas qualidades sensíveis do mundo exterior”;

e b) por exterioridade, como a partir de referências exteriores, o sujeito se constrói

pelos gostos, normas e usos do outro. Na proposição desse arranjo, o destinador-

enunciador de Cocoricó promove um estilo de ser e de viver, pelo sentir “o gosto

que o outro sente”96 a partir do discurso televisual.

A relação que se estabelece entre as formas de vida e os gostos é descrita da seguinte maneira: a reiteração de um gosto produz uma forma de vida e a reiteração de formas de vida criam um estereótipo [...]. É por meio do cultivo de uma dada presença que (re) atualiza que temos o gosto e, então, o estereótipo é o regime ou a forma de vida, como o criador de um estilo. O gosto exerce um papel fundamental que é o de preservar esse estilo criado. (RODRIGUES, 2008, p. 102).

FIGURA 36 - Os detalhes da decoração do quarto de Júlio e da cozinha da vovó possibilitam a

apreensão do gosto pelo decorar, ou pelas tecnologias, como Oriba utilizando um laptop no paiol da fazenda.

A formação identitária dessa criança telespectadora de Cocoricó será

pautada por esse estilo de ser do programa, no assumir um fazer pelo consumo dos 96 A dissertaç~o “Os gostos de Superbonita e Contemporâneo do GNT na formação de identidades no feminino e masculino brasileiros”, de Carlos Augusto Alfeld Rodrigues, defendida em 2008, no Curso de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, fala sobre o consumo televisionado a partir dos gostos e estilos de vida de programas de televisão.

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produtos da marca. A criança – com o apoio e incentivo dos pais - passa de

telespectadora do programa a consumidora de DVD’s e livros e demais produtos

(brinquedos, produtos de higiene pessoal, festas temáticas, etc.). A autora Patricia

Greenfield que escreveu um trabalho sobre o desenvolvimento cognitivo da criança

na relação com os aparelhos eletrônicos diz que a criança irá desenvolver um papel

social também enquanto consumidor e que a televisão tem importante destaque

nesse desenvolvimento. Afirma a autora “as imagens transmitidas pela televisão

para descrever a identidade de uma pessoa e seu estilo de vida destacam bens

materiais relacionadas ao consumo” (GREENFIELD, 1988, p. 52). Esses bens

materiais são descritos por Landowski como produtos manufaturados para fazer

efeito, com objetivo de um maior controle possível sobre as transformações de

estado que se quer provocar no consumidor. O autor explica:

Trata-se de produtos manufaturados concebidos para fazer sentido. Que a natureza de seus princípios ativos seja, de modo geral pouco conhecida, não impede que seus fabricantes dosifiquem com muito cuidado sua composição, dado que também, neste caso, o objetivo consiste em ter o maior controle possível das transformações de estado que se quer provocar no consumidor. Porque um texto bem construído se põe para o estado de ânimo do mesmo modo que um remédio tem de eficácia para os estados do corpo - sem considerar que tudo ocorre como se os respectivos princípios de ação se entrecruzassem 97 . (LANDOWSKI, 1999, p. 269).

A criança é tomada pelo estar junto de Cocoricó, ou seja, pelos estados de

ânimo que esse estar lhe provoca. São esses efeitos de estado que podem ser

comparados à eficácia para o estado da ciência. Ao aderir à marca e aos seus

produtos, nesse descobrir contínuo, a criança estará tomada por esses efeitos de

estado. E dessa forma torna-se uma criança fiel à qualquer que seja o produto da

marca Cocoricó. Estar junto dos bonecos e de toda a significância que isso lhe

97 Traduç~o nossa para: “[...] se trata de productos manufacturados concebidos para hacer efecto. Que la naturaleza de sus principios activos sea en general mal conocida no impide a sus fabricantes dosificar con gran cuidado su composición, puesto que también en este caso el objetivo consiste en tener el mayor control posible sobre las transformaciones de estado que se quieren provocar en el consumidor. Porque un texto bien construido es a los estado del ánimo lo que un medicamento eficaz es a los estados del cuerpo, - sin considerar que todo ocurre como si los respectivos principios de acción se entrecruzaran”.

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permite independe do produto os quais a marca se apresente, o que importa é o

tipo de interação e de comunicação estabelecido e baseado nessa competência

estésica do destinatário-enunciatário.

Como afirma Landowski (1999, p. 271) se de um lado temos o discurso

manifesto, atualizado, reconhecido, com intenção comunicativa de um enunciador

conhecido ou não, por outro lado, temos determinados textos como resultado dos

próprios efeitos produzidos no sujeito enunciatário, pela captação do sentido

sentido. O autor complementa que esse sentido sentido “se constrói, se define e se

apreende apenas “em situaç~o” – em ato -, isto é, na singularidade das

circunstâncias próprias a cada encontro específico entre o mundo e um sujeito

dado, ou entre determinados sujeitos” (LANDOWSKI, 1996, p. 26). O que estamos

postulando é que, para a criança (destinatária-enunciatária), esse encontro com a

marca Cocoricó é a cada vez e pela linguagem em que se apresenta um encontro

único que se dá com uma singularidade da circunstância desse encontro e do

sentido que se apreende dele.

Nesse aspecto, a dimensão plástica dos episódios e clipes musicais de

Cocoricó descritos ao longo do trabalho é fundamental para entendermos as

din}micas de articulaç~o do que Landowski chama de “co-presença”. O autor

explica que pela análise da obra de Corot, Souvenir de Mortefontaine (1864, Museu

do Louvre) fica exposto que o modo de se articular dinamicamente a co-presença

“corporalmente vivida, entre um certo sujeito e o ambiente que o circunda,

consegue fazer-nos sentir o sentir do outro, in situ, quase como se nós também

estivéssemos aí” (LANDOWSKI, 1996, p. 35). Compreender e descrever a dimensão

plástica de nosso objeto nos possibilitou, portanto, a compreensão e conhecimento

das competências estésicas convocadas do enunciatário: da criança destinatária de

Cocoricó e, consequentemente como essas competências são convocadas em prol

do destinador-enunciador do programa para fazer crer em seu discurso.

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4.3 O sentir Cocoricó

Seguindo, assim, essa metodologia desenvolvida por Landowski,

entendemos que a compreensão e apreensão dos efeitos de sentido de nosso

objeto passa por um outro processo interativo, não apenas pelos procedimentos de

manipulação e de programação, mas por outro, cujas relações com o mundo natural

nos dão cotidianamente a experiência. Estamos nos referindo ao procedimento de

ajustamento, cuja interação entre os sujeitos envolvidos não é dada somente pela

comunicação – seja persuasiva por mensagens, valores modais ou objetos de valor –

mas, sobretudo pelo contato. Landowski (2005, p. 21-22) explica que nesta

interação, a competência modal não é mais o que guia os interactantes, trata-se de

uma interação entre iguais, na qual as partes co-ordenam suas dinâmicas

respectivas sobre o modo de um fazer junto, e completa que se trata de uma

interação de se sentir reciprocamente, diferente da competência dita modal, e

batizada pelo autor de competência estésica. A interação que, antes estava fundada

num fazer crer – baseada na persuasão, entre as inteligências - se fundará agora, no

fazer sentir baseada no contágio, entre sensibilidades. O autor pontua como essas

sensibilidades podem ser:

Primeiramente uma sensibilidade no sentido mais usual do termo: a sensibilidade perceptiva, que nos permite não somente experimentar pelos sentidos as variações perceptíveis do mundo exterior (ligadas à presença de outros corpos-sujeitos ou aos elementos do mundo-objeto) e de tornar a sentir as modulações internas afetando os estados do corpo especificamente, mas também interpretar o conjunto dessas soluções de continuidade em termos de sensações diferenciadas fazendo elas mesmas sentido. Em seguida, uma sensibilidade que nós chamamos de sensibilidade reativa: é aquela que nós atribuímos, por exemplo, aos toques de um teclado de computador ou a um pedal de acelerador quando dizemos que eles são muito, algumas vezes por demais, “sensíveis”98. (LANDOWSKI, 2005, p. 22).

98 Traduç~o nossa para: “D’abord un sensibilité au sens le plus usuel du terme: la sensibilité perceptive qui nous permet non seulement d’éprouver par les sens les variations perceptibles du monde extérieur (liées { la presence d’autres corps-sujets on aux élements du monde-objet) et de ressentir les modulations internes affectant les états du corps propre, mais aussi d’interpréter l’essemble de ces solutions de continuité en termes de sensations différenciées faisant elles-mêmes

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Sabemos que a relação entre a criança e a televisão prevê um caráter

volitivo, principalmente no que tange à criança decidir se assistirá ou não

determinado programa, ainda mais em tempos de zapping televisivo. É a criança

quem vai parar em frente a tela da TV para prestar atenção e participar na relação

interativa proposta no programa, baseada numa convocação dessa criança no ato

contado, e sendo assim, também vivido. Antes da relação com o programa em si, a

criança primeiro se relaciona com a própria televisão, disposta ali na sala ou no

quarto, como parte do ambiente doméstico conhecido por ela. Essa relação,

portanto, é dada entre a criança (ser humano) e a TV (objeto inanimado).

É possível pensarmos essa relação nos princípios em que propomos aqui, de

um efeito de sentido baseado em uma relação de ajustamento entre o ser humano

e um objeto inanimado? Para Landowski, existem objetos que nos fazem conhecê-

los a partir da prática deles, como um piano ou um automóvel de qualidade. Assim

também pode ocorrer com a televisão. Interagimos com esses objetos com

frequência pelo prazer de uma realização mútua, uma sensibilidade reativa que

possibilita dentro dessa relação a geração de sentido e de valor.

Hoje, muitos aparelhos eletrônicos utilizados como parceiros de jogos ou com fins de simulação destinados à aprendizagem (por exemplo, para os pilotos de avião) são tão sofisticados, tão determinados em suas mais discretas e sutis reações aos movimentos do utilizador, que dão a impressão de que a máquina “sente” o seu parceiro. N~o é evidentemente mais que uma ilus~o, mas que mostra que entre a programação, quando ela é colocada em um estado de refinamento muito avançado, e o ajustamento “sensível”, a passagem n~o é absolutamente intransponível. 99 (LANDOWSKI, 2005, p. 23).

sens. Ensuite, un sensibilité que nous appellerons la sensibilité réactive: c’est celle que nous attribuons par exemple aux touches d’un clavier d’ordinateur ou { une pédale d’accélérateur lorsque nous disons qu’elles sont très, quelquefois trop, ‘sensibles’.” 99 Traduç~o nossa para: “Aujourd’hui, beaucoup d’appareils électroniques utilisés comme partenaires de jeux ou { desf ins de simulation destinée { l’apprentissage (par exemple pour les pilotes d’avions) sont si sophistiques, si fins dans leurs réactions aux motions les plus discrètes et subtiles de l’utilisateur qu’ils donnet l’impression que la machine ‘sent’ son partenaire. Ce n’est évidemment qu’une illusion, mais qui montre qu’entre la programmation, lorsqu’elle est portée { un stade de raffinement très poussé, et l’ajustement ‘sensible’, le pas n’est pas absolument infranchissable.”

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Concordamos com o autor, portanto, nessa geração de efeitos de sentido e

de valor entre nós seres humanos e objetos inanimados, entretanto conhecidos por

nós pelas suas práticas, como é o caso da TV. Se nosso objeto é mediado pela

televisão, então, afirmamos que a geração de sentido e valor possibilitado pela

interação por ajustamento será esse da sensibilidade reativa. Pensemos em nosso

corpus. Citamos no capítulo anterior, o episódio Apressadinhos, no qual Júlio e sua

turma aprendem sobre o milho. Este episódio possui o clipe musical “Isso me

lembra”. Como primeira característica a ser ressaltada dos clipes musicais de

Cocoricó e, já dita quando vínhamos discorrendo sobre a discursividade do

programa, é a enunciação enunciada. Já sabemos que a construção dos sujeitos no

ato enunciativo se dá por um eu que fala e o tu para quem se fala . A instância de

produção do discurso nos programas de TV, ou seja, o eu, é a equipe de produção

do programa, assim como a emissora na qual o programa é transmitido, enquanto

que a instância de recepção do discurso, o tu, é representada pelos

telespectadores, as crianças. Já vimos também que pelo texto audiovisual, Cocoricó

instaura a figura do enunciador no próprio texto, ao colocar a criança-enunciatária

no discurso.

Essa instauração que prevê a interação se dá no espaço da tela da TV. A tela

e o programa que ali está sendo transmitido se transformam num sujeito que

interage com a criança, num diálogo interativo dado pela plasticidade e pelo

conteúdo do programa. Esse diálogo é construído pelas posições corpóreas dos

bonecos, olhares e palavras dirigidos à tela ou ritmicidade da música, por exemplo,

dentre outros já comentados. Parte-se do pressuposto de uma atuação do

espectador com o ambiente imagético (sua atuação) correspondente ao próprio

projeto de significação instaurado (atualizado) pela situação proposta entre o

actante e quem assiste. Fechine explica que o sujeito é o responsável pela

transformaç~o de seu estado, “ao ligar a televisão para colocar-se em contato com

o fluxo televisual, operaç~o na qual se produz um prazer ou uma forma de ‘gosto’

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identificados aqui à própria experiência de fruir a mesma programaç~o” (FECHINE,

2003, p. 105).

FIGURA 37 – Linguagem televisiva que propõe uma intertextualidade

com outros gêneros: com os desenhos animados e as transmissões esportivas

É a possibilidade de ganho dessa familiaridade com esse outro sujeito, que é

passada no olhar de Júlio para o espaço instaurado fora de Cocoricó. Trata-se da

enunciação enunciada, configurada no visual pelo olhar de Júlio, de Alípio, de Oriba,

das galinhas e assim por diante, de todos os bonecos que cantam a música do clipe

citado e olham diretamente para o espaço que está fora do ato enunciativo. Na

medida em que cada boneco diz o que para ele o milho lembra, o olhar se dirige

para este espaço fora, o da sala ou do quarto da criança que está assistindo ao

programa. É com essa criança que o texto dialoga e que, portanto, está interagindo.

Primeiro, por um procedimento de manipulação por sedução (entre o sujeito

programa e o sujeito criança), numa espécie de “participe também você que est|

assistindo, o que o milho o faz lembrar?”. Entretanto, para que a manipulação se

concretize é necessário fazer crer essa criança dessa interação com o programa,

possibilitada por um sentir pelo programa, na convocação de sua competência

estésica, principalmente pela visão e audição, como objeto televisual.

Neste clipe musical, temos pelo verbal sonoro a competência estésica da

criança sendo convocada pela audição, nas palavras: vamos brincar e você. O vamos

brincar é convidativo, é um “nós vamos”, quer dizer como se a criança também

estivesse incluída nesse “nós”, que pode brincar. E o você, apesar de se dirigir aos

outros actantes que cantam a música e intercalam a vez de falar sobre o que o milho

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o fazem lembrar, no visual, o apontar dos bonecos ao dizer você é para fora da tela.

O você é o telespectador, a criança que assiste o programa.

FIGURA 38 – Olhar direcionado para a câmera e tela dividida com as diferentes cenas

Compreendemos, assim, que o jogo interativo entre o actante e quem

assiste, colocado pela figura do enunciador, faz crer um enunciatário de que ele

participa da própria construção do sentido do texto. Um sentido, então, que se faz

no ato e em situação. Mesmo que os sujeitos estejam em espaço e tempo

diferentes, o efeito de sentido que se tem é que eles partilham de um mesmo

espaço e tempo: o da história. Para a criança, trata-se de um fazer compartilhado.

De acordo com Merleau-Ponty, a criança é capaz de ver o mundo em termos de

ponto de vista:

[...] o espaço e o tempo objetivos são aqueles em que eu estou inserido. Sou livre com respeito a eles. Se a criança ainda não tem esse pensamento objetivo, o de um espaço-limite vazio, também não estará na sua experiência. (MERLEAU-PONTY, 1990, 260-261).

O autor explica que é como se a criança não se encontrasse num “mundo

m|gico”, intransponível e impermeável ao adulto: ela precisa, como diz o autor:

“compreender e positivar seus modos de ser e estar, seu modo de operar e de

experienciar o mundo” (1990, 261). Ela precisa, então, aprender a apreender o seu

modo de estar no mundo.

Encontramos a necessidade de ressaltar ainda mais, que, o compartilhar

entre o sujeito enunciador e o sujeito enunciatário é dado na interação por um

sentir por meio da instauração dos sentidos do enunciatário. Esse é processado

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nessa interação que é dada pelo “di|logo” com o telespectador obtido a partir da

exploração da linguagem televisual sincrética do próprio meio televisivo. Seja no

clipe musical do milho, por exemplo, ou nos clipes musicais que referencializam a

cidade de São Paulo, a competência estésica da criança é solicitada pela plasticidade

da cena: divisão da tela em quatro cenas diferentes, uso de vinhetas, saturação

cromática, disposição topológica dos bonecos no centro e de frente para a câmera,

dimensão do cenário e movimento da câmera de aproximação e distanciamento.

FIGURA 39 – Os bonecos de Cocoricó são filmados em locações externas: no bairro da Liberdade; no

Planetário do Parque Ibirapuera; nas margens do Rio Pinheiros; no beco da Vila Madalena

A temática do milho, no primeiro exemplo, já convoca e ensina a criança

sobre o sentido do paladar. Explica-se: o milho é um produto alimentício, logo, a

criança já começa a partilhar do sabor dessa comida e, se ainda não o conhece, irá

querer conhecê-lo. Quando esse clipe musical começa e os actantes passam a falar

sobre o que o milho lembra pra eles, quem primeiro fala é a índia Oriba. Ela canta:

“Milho me lembra pipoca, pipoca em tupi quer dizer, pele que estoura. Pipoca é o

milho que explodiu. Pa100”. A panela com o milho é mostrada na imagem visual. Já

100 Oriba imita o barulho da pipoca estourando na panela.

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na canção, pelo verbal sonoro, os actantes continuam falando a palavra “pipoca”,

enquanto num som de fundo pode-se escutar o barulhinho da pipoca estourando.

Essa cena configura o aguçar dos sentidos da criança, que produzirá uma

determinada reação ao que está assistindo. A visão (pela imagem) e a audição (pela

canção) instauram os outros sentidos o olfato, o tato e o paladar que são

convocados a partir dos primeiros. A brincadeira do me lembra convida a criança

que por sua vez quer continuar assistindo e compartilhando daquele sentir.

O outro exemplo citado são os clipes musicais da última temporada do

programa, gravados em diferentes pontos da cidade de São Paulo. As locações ditas

externas criam um efeito de referencialidade pelas imagens mostradas. Nas cenas

gravadas em ambientes abertos, como no bairro japonês da Liberdade, no campo

de futebol do Pacaembu, nas margens do rio Pinheiros ou da vista aérea do centro,

a perspectiva utilizada prioriza uma visão macro dessa parte da cidade. Por outro

lado, as cenas em ambientes internos, como no Museu do Ipiranga, Mercadão

Municipal ou Sala São Paulo, foi utilizada uma perspectiva próxima, quer dizer, que

prioriza e mostra os detalhes de cada lugar. Para ambas perspectivas, é convocada a

competência da criança para sentir esses lugares por sua apreensão (pela visão e

audição, primeiramente, que poderão instaurar os outros sentidos) na relação com

a linguagem televisual que é aspectualizada em sua duratividade, do movimento de

câmera de aproximar-se mais ou menos do lugar da cidade, bem como, pelos

efeitos sonoros da canção do clipe, dado no verbal pela letra da música que

descreve cada modo de ser e estar na cidade e no sonoro pelos ruídos e ritmicidade.

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FIGURA 40 – Perspectiva próxima dos bonecos nos ambientes internos: Júlio e Lilica no Museu

do Ipiranga; Alípio na Sala São Paulo; João, Alípio e Júlio na Mercadão Municipal

É, ent~o, pela enunciaç~o enunciada e o “di|logo” pelos sentidos, que

Cocoricó apresenta a possibilidade de uma apreensão da criança pelo procedimento

de ajustamento. Afirmamos que a construção da significação do programa passa

por esse jogo discursivo dado a partir dos procedimentos de interação: uma

programação, que faz ser a criança, uma manipulação que faz crer a criança, e um

ajustamento que faz sentir essa criança. Nessa interação, existe um programar o

enunciatário para querer estar fiel e participar sempre desse jogo discursivo na

constituição de um fazer, que seria o hábito de assistir o Cocoricó. Trata-se de um

fazer ser, estrategicamente pensado por meio de um fazer crer, concretizado pelo

fazer sentir.

Sobre essas interações discursivas que são processadas nos enunciados da

mídia em geral, Oliveira nos ensina que eles:

[...] podem ser pensados no processamento da estruturação enunciativa que os significa no e pelo ato de instaurar os sujeitos na experiência de produtores do sentido. Assumindo que o sentido não lhes é jamais inteiramente dado, cabendo-lhes sempre um tipo de participação na sua construção, repousaria nas diferenças participativas a sua definição. Explorando esses tipos de

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participação no ato interacional de fazer ser o sentido, buscamos arrolar na definição dessas interações discursivas os tipos de construção cognitiva que se desenrolam entre enunciador e enunciatário. (OLIVEIRA, 2010, p.4).

Levando em consideração essa construção, procuramos identificar em nosso

objeto, como sua plástica é dada e a partir dela como seria a sua apreensão pelo

enunciatário. Quer dizer, a figuratividade dada pela expressão de Cocoricó nos

permitiu identificar os modos de apreensão plasmados entre enunciador e

enunciatário. Oliveira explica que (2010, p. 8), é o “apreender e plasmar em uma

dada organização expressiva num todo de sentido” que o torna sensível e

possibilita ao enunciatário a apreensão da constituição plástica no seu ato interativo

de articular o sentido das formações do arranjo que fazem ser o conteúdo.

No discursivo, o enunciador e enunciatário, enquanto instâncias produtoras do discurso, são perceptíveis pelas imagens que os mostram em seus atos, com uma postura e uma maneira de ser concretizada pela sua maneira de fazer que montam os modos como ele processa sensível e inteligivelmente os fatos e as coisas do mundo. No nível semio-narrativo, esse sujeito é apreendido ainda pela série de escolhas de seus delegados, que alargam a visibilidade de sua formação discursiva a partir de outros de seus simulacros, os de seus delegados no enunciado: o narrador-narratário, locutor-locutário, interlocutor-interlocutário, que ele projeta e que vão deixar os seus traços justamente marcando os seus percursos que assinalam e deixam apreensíveis as suas ações enquanto instâncias postas em ação pelo enunciador que se põe assim em exposição, deixando de estar escondido, camuflado. Esse sujeito da enunciação tem então um corpo que se manifesta para além e aquém de suas ações discursivas (e não narrativas), que não são marcadas só pelo verbal no enunciado, mas também por todo conjunto de marcas paralinguísticas atualizadas pelo seu corpo com os seus sentidos espalhados; pelo seu gesticular dêitico, avaliativo; pelo seu modo de movimentar-se que é aspectualizado nos seus enquadramentos e tomadas de posição e de distância, para assumir uma postura na interação. (OLIVEIRA, 2010, p.11).

O arranjo dessas estruturas discursivas e os modos de presença do narrador,

da temporalidade e espacialidade que configuram o estilo de ser Cocoricó, nos

possibilitou conhecer a identidade desse sujeito, bem como do sujeito enunciatário

na apreensão dessas estruturas. Isso significa que a identificação das formas

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estabilizadas e mutantes da construção identitária dos sujeitos envolvidos no jogo

discursivo é dada pela prática interacional instalada nos discursos, como coloca

Oliveira, que podem ser do tipo: unilateral, bilateral e multilateral. Compreendemos

que o sentido e a construção de valor e saber em Cocoricó estão pautados em

determinadas semantizações dos atos de rotina e criação de hábito, embora

também na fantasia e exploração da competência em sentir da criança

telespectadora.

Essas opções são disponibilizadas pelo destinador de Cocoricó como uma das

maneiras para manipular pelo (fazer fazer), mesmo que seja necessária a exploração

sensível das qualidades do sujeito e do objeto. Não podemos deixar de afirmar que

a experiência estésica esteja lá, presente, mas delegada a um segundo plano, já que

estamos tratando de um produto midiático como um programa de televisão.

Enquanto tal, o intuito de Cocoricó perpassa a ordenação do programar a rotina da

criança na configuração de um hábito de ressemantizar essa rotina a partir da

vivência apreendida em assistir o programa. Essa vivência é possibilitada pelas

articulações sincréticas nas continuidades e descontinuidades da linguagem

televisiva. No entanto, essas descontinuidades não permitem uma quebra dessa

rotina de assistir, permanecendo aquém de um acidente estético.

Relacionando os regimes de sentido e de interação de Landowski (2004,

2005) com as interações discursivas descritas por Oliveira (2010), temos os

seguintes procedimentos:

1) a manipulação: Cocoricó (S1) e a criança (S2) estão no regime do

fazer fazer, em que S1 pelo fazer persuasivo transforma a

competência modal de S2, numa relação transitiva bilateral. Cria-

se a configuração de um hábito, S1 faz assistir S2 pela

ressemantização da rotina de S2.

2) a programação: S1 e S2 estão em relação de unilateralidade, e,

desta vez, intransitiva, na qual será possível uma interação entre

os sujeitos dada apenas pela distância e separação total entre

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eles. S1 é uma marca construída pelo destinador TV Cultura para a

transmissão de seus valores de mundo e disseminação de seus

produtos.

3) o ajustamento: na qual a interação discursiva se dá numa

transitividade bilateral entre S1 e S2 com a possibilidade de troca

de posições, na construção do saber, em co-presença pela

apreensão, ou melhor, pelo fazer interpretativo de S2. Cocoricó faz

uso desse procedimento em prol de um fazer crer a criança para

fidelizá-la a continuar nesse jogo discursivo.

4) o acidente: os sujeitos de Cocoricó, na construção do sentido não

perpassam esse procedimento de interação, em que S1 e S2 são

co-enunciadores, numa interação multilateral e numa

transitividade reflexiva e reversível, isto é, numa construção

interativa de experiência interpretativa dada no fazer de S2.

Diz Landowski que no procedimento do acidente, o sujeito pode retomar a

iniciativa:

Em vez de continuar a fazer como ele faz somente porque um dia, um outro, ou ele mesmo, há muito tempo estipulou que seria assim que se faria daí em diante, ele pode de repente – em favor sem dúvida de algum acidente – ser levado a parar um instante de cumprir maquinalmente e em toda confiança o mesmo sintagma, levantar o olhar, ver-se realizando-o, se questionar por uma vez sobre as razões de sua “necessidade”, e de súbito, perceber que ele poderia proceder diferentemente. E mesmo, finalmente decidir, sim, fazer doravante de outra forma – com bons motivos também, mas evidentemente diferentes, ao mesmo tempo em substância e por seu estatuto, daquela que motivavam até então sua fidelidade ao uso instituído.101 (LANDOWSKI, 2005, p. 18).

101 Traduç~o nossa para: “Au lieu de continuer de faire comme il fait seulement parce qu’un jour, un autrem ou lui-même il y a très longtemps, a stipulé que ce serait ainsi qu’on ferait désormais, il peut tout à coup – à la faveur sans doute de quelque accident – être amené à cesser un instant d’accomplir machinalement et en toute confiance le même syntagme, élever le regard, se voir l’accomplissant, s’interroger pour une fois sur les raisons de sa ‘necessité’, et du coup, peut-être, s’apercevoir qu’il pourrait procéder différemment. Et même, en fin de compte décider, oui, de faire dorénavant autrement – avec de bons motifs aussi, mais évidemment différents, à la fois en substance et par leus statut, de ceux qui motivaient jusque l{ sa fidélité { l’usage institué.”

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Por esta última consideração, entendemos que na medida em que Cocoricó

se realiza pela ordem da rotina, do hábito e da experiência vivida presentifica uma

possibilidade de experiência estética no simples ato de desligar a TV e voltar ao

sentido sentido no mundo, como por exemplo num simples pedido ao pai: “Vamos

conhecer o Museu do Ipiranga”? Nesse caso, a criança perderia sua motivação

instituída em conhecer um museu da Cidade grande pela figuratividade de Cocoricó,

para construir o sentido por meio da figuratividade do museu em sua própria

apreensão, sem a utilização do objeto inanimado TV. E mais, com a possibilidade de

que um acidente possa romper com a normalidade desta apreensão e fazer surgir

um novo sentido para ela, “o instant}neo estabelecimento de um novo ‘estado de

coisas’”, como afirma Greimas (2002, p.73).

Propor tais relações entre o sujeito Cocoricó e o sujeito criança, nos permitiu

criar o seguinte esquema da construção do sentido, na constituição do saber e

formação identitária social do enunciatário:

FIGURA 41 – Relações interativas entre Cocoricó e enunciatário

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seja como for, mais que pretender “dizer o sentido” (tarefa impossível), tratar-se-á agora de observar as condições de sua presença numa série de contextos intersubjetivos, e, portanto, interativos, precisos. Não mais que em outra parte, o sentido não é dado aí. Como se sabe, ele está sempre a se construir. Ou melhor, a se conquistar: a que figuras, a que dispositivos, a que linguagens recorremos para que pela mediação do Outro, um pouco de sentido, de vez em quando, nos faça subitamente presentes a nós mesmos?

Eric Landowski, 2002

O que quer Cocoricó com as crianças?

Os simulacros de crianças figurativizados pelos bonecos da fazenda e animais

de Cocoricolândia ou da Cidade Grande estão aprendendo sobre essas comunidades

diferentes e similares e a partir deles a criança é instalada no discurso do programa.

A criança telespectadora de Cocoricó apreende como sentido deste programa

infantil o que é e como se vive em um meio social, seja ele o campo ou a cidade.

Nosso trabalho preocupou-se com as estruturas plásticas, figurativas, temáticas

e enunciativas de Cocoricó o que nos possibilitou compreender que a mídia

televisiva atual se redescobre na busca por possibilidades de sua grade de

programação e demanda de mercado. A partir disso, configura-se uma opção à

disponibilização de faixas de horários e até canais específicos produzidos para o

público infantil. A TV Cultura, que em meados dos anos 2000, atravessou uma forte

crise financeira, percebeu que a transformação do programa Cocoricó em uma

marca, poderia ajudá-la a superar seus problemas. Temos, assim, emissora conjunta

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ao programa Cocoricó, e temos também o público, aquele que consome a marca,

absorvendo e produzindo sentidos vários a partir de tudo o que lhe propõem. Sobre

esse estado conjuntivo, salienta o semioticista italiano Francesco Marsciani:

O público não absorve passivamente conteúdos e valores propostos pela TV, mas com esses conteúdos e valores ele faz algo, ele constrói cognições e “visões do mundo”, quase nunca totalmente correspondentes aos conteúdos e valores que lhes foram veiculados, mas dentro de uma dinâmica geral evolutiva e transformativa em que as mensagens estão envolvidas. (MARSCIANI, 1998, p. 70).

Diante dessa dinâmica ressaltada pelo autor, Cocoricó se destaca dentre os

programas televisivos infantis disponíveis ao público brasileiro pelos modos

discursivos que nele fazem presentes seu destinador e sua intencionalidade que

examinamos, principalmente, no que tange à significação relacionada ao contexto

histórico em que foi criado e que é veiculado. Identificarmos a estrutura narrativa

do programa, suas vinhetas, episódios e clipes musicais, nos possibilitou descrever

os procedimentos sincréticos explorados para entendê-los enquanto modos de

presença discursiva que organizam pelas escolhas figurativas plásticas e temáticas

as escolhas enunciativas que fazem Cocoricó agir e ser.

Concluímos que as categorias de pessoa, tempo e espaço figurativizadas e

tematizadas na construção de sentido para o enunciatário é dada por um estilo de

ser Cocoricó, consequentemente num estilo de fazer televisão para criança. Esse

estilo se caracteriza, em primeiro lugar por um modo de ser e colocar seus valores,

por meio da fábula televisual, privilegiando nessas narrativas as temáticas

socioculturais. Contudo, esse estilo se caracteriza também plasticamente, pela:

orientação estética no intercâmbio entre o sincretismo de linguagens dado entre a

visualidade e a sonoridade; na particular continuidade narrativa, dada pelo verbal

sonoro das músicas e sua aspectualidade durativa de ritmo e rimas e interjeições

nas falas dos actantes; além dos efeitos de saturação de cor, uso de molduras e de

vinhetas de passagens na edição final da imagem. Abre-se assim, pelo exercício da

experiência que se vê, que se escuta, que se sente, “a possibilidade de entrada em

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outros mundos, resultantes desta interpretação”, como nos ensina Oliveira (2005,

p. 117).

Essas caracterizações nos permitem afirmar que a criança telespectadora de

Cocoricó está, por um lado, adquirindo uma competência dita televisiva, numa

formação que lhe tornará audiência, e, por outro lado, está construindo visões de

mundo. Sobre o primeiro ponto, Marsciani (1998, p. 73) nos diz que “não deve ser

ocultado o fato de que isto significa aceitar que a contribuição da TV para a

formação da criança consiste essencialmente em prepará-la para vir a ser um bom

telespectador”. Quer dizer, que essa criança telespectadora de Cocoricó está

apreendendo o sentido pelas impressões que processam na apreensão do arranjo

televisual e pelo saber e poder que a habilita a homologar os planos de conteúdo e

expressão. No segundo ponto, afirmamos que esse destinatário criança está se

formando enquanto sujeito sociocultural no mundo, cuja intencionalidade

pedagógica que se faz presente é importante na transmissão dos valores (COELHO,

2000, p. 47). Semprini também nos ajuda a entender essa intencionalidade, de

acordo com ele:

O discurso pedagógico constrói uma relação disssimétrica, onde os parceiros da comunicação, o enunciador e o enunciatário, não se situam em um mesmo plano de igualdade. Ressaltamos que na estratégia pedagógica, o receptor é definido como um ser necessitado, em busca do saber, mas que não é necessariamente consciente de sua “ignorância” de sua necessidade explícita dessas

informações. 102 (1996, p. 183).

É esse destinatário, ainda em desenvolvimento cognitivo no âmbito

perceptivo e racional de seu meio sociocultural, que Cocoricó terá possibilidade de

atingir como público. Enquanto um programa de televisão criado por uma emissora

pública educativa, Cocoricó constrói um discurso pedagógico cujo conteúdo é

figurativo, temático e sincrético. Essa opção realizada pelo destinador acarreta 102 Traduç~o nossa para: “le discours pédagogique construit une relation dissymétrique, où les partenaires de la communication, l’énonciateur et l’énonciataire, ne se situent pas sur un plan d’égalité. On remarquera que dans la stratégie pédagogique, le récepteur est défini comme un être besigneux, en quê\te de savoir, mais pas nécessairement comme quelqu’un qui est conscient de son “ignorance”ou qui demande explicitement ces informations”.

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determinadas consequências. Temos como exemplo a iniciativa da emissora e da

produção e direção do programa em não abdicar de uma possível qualidade estética

– e consequentemente ética - no que diz respeito à variação de produtos da marca

Cocoricó. O desenvolvimento de outros produtos em outros meios de comunicação,

além do programa de televisão e as parcerias feitas para a utilização da marca,

foram ações tratadas com determinada cautela. Tanto as adaptações do programa

no cinema, no teatro, em livros, como os diversos produtos são, sobretudo, outras

manifestações da marca, com o poder de concretizar e tornar essa marca presente

na vida dos telespectadores, conforme disse Semprini (2006, p.63). Essa forma de

se manifestar por esses produtos é determinada como uma preocupação com o

que deve ser Cocoricó, primeiro a partir do programa de televisão que deu certo,

que tem audiência, que vende milhões de DVD's, etc.

Identificamos ainda no programa, a iniciativa de pensar práticas de produção

televisual com propósitos educativos que pressuponham a capacidade do

telespectador de selecionar e interagir, como afirmou Carneiro (1999, p. 211). Longe

de serem tomadas como vítimas passivas das mídias, as crianças passam a ser vistas

como dotadas de uma aptidão para a alfabetização dos meios audiovisuais,

incentivada por Cocoricó, na medida em que possibilita à criança a apreensão da

fábula televisiva pelas continuidades e descontinuidades do plano da expressão que

serão homologadas no contínuo vs descontínuo da vida social, do passar das horas,

do passar da vida, isto é, do aprender da criança no período da infância. Cocoricó

propõe uma apreensão do sujeito pela familiaridade que ele adquire na

decodificação da linguagem proposta e, consequente desenvolvimento de sua

habilidade audiovisual. Essa decodificação da linguagem é dada pela formação

dessa habilidade no se pôr em relação, e, na medida em que esse sujeito consegue

apreender a significação por esse contato com os modos enunciativos do programa

televisivo. Oliveira (2005, p. 119) diz que o sujeito é um eterno construtor de sentido

e sua experiência de apreensão se transforma “em objeto de valor para o próprio

viver dele” e seu estar no mundo social.

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O programa procura a disseminação do uso das novas mídias como capazes

de oferecer às crianças novas oportunidades para a criatividade, comunidade

midiática e auto realização, e procura também, a disseminação das atividades

lúdicas e práticas sociais coerentes com tal idade, como uma das poucas

possibilidades para a criança da dita da Cidade Grande. Ao utilizar o tema das

brincadeiras por figurativizações diferentes, que vão desde jogar futebol de botão

ou pular amarelinha ao uso do computador e das câmeras de vídeo, Cocoricó está

incentivando o uso dessas novas tecnologias midiáticas por meio do uso de sua

própria linguagem. Para Greenfield, o domínio da linguagem televisiva será

alcançado pela criança por meio da:

[...] exposição à televisão, e em parte pelo desenvolvimento da criança, que torna possível o uso da televisão para lhe transmitir conhecimentos e habilidades cognitivas [...] existe uma diferença, contudo: as crianças precisam ser ensinadas a ler e escrever, mas aprendem a linguagem televisiva sozinhas, simplesmente assistindo à televisão. (GREENFIELD,1998, p. 28).

Acreditamos no uso da televisão para a transmissão de conhecimento e

habilidades cognitivas, entretanto, ao contrário do que a autora diz, as crianças irão

aprender a linguagem televisiva não apenas assistindo televisão, mas, sobretudo,

no aprender a apreender o que ela assiste, dado pelo uso estético da própria

linguagem. Ao mesmo tempo em que se opera esse aprendizado, diante de tal

experiência de contato com o programa televisivo, a criança está tomando essa

forma de expressão midiática como um sentido para ela própria, conforme afirma

Férres:

[...] o espectador vive o que vê como expressão simbólica de suas próprias necessidades e desejos. Verte seus desejos sobre as imagens, conferindo-lhes um sentido, e ao mesmo tempo, recebendo um sentido delas. (FÉRRES, 1998, p. 94).

Segundo o autor, é pelas narrativas que, as crianças primeiro, e os adultos

depois, aprendem sobre si mesmos, sobre homens e mulheres, sobre a história e a

vida. É no contato com esses produtos midiáticos que o sujeito irá formar sua

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identidade, reforçando comportamentos, mediado por esses produtos: “a pessoa

aprende quem é, como são os demais, que valores têm importância, o que deve

desejar e o que deve temer, quais s~o os recursos eficazes para triunfar”, afirma

Férres (1998, p. 105). Ao lado das narrativas, a configuração estética do programa

também irá fornecer subsídios para essa formação social na transformação da

criança em audiência televisual.

Esta tese buscou fornecer uma base de compreensão sobre a experiência

das crianças que crescem na era das mídias eletrônicas, principalmente no que diz

respeito à televisão e seus programas infantis. Seguindo Buckingham (2007, p. 34),

afirmamos que precisaremos dessa compreensão se quisermos ajudar as crianças

com os desafios do presente e os do futuro.

Entendemos assim, que, ao refazer o percurso da significação em sua

projeção dialógica enunciador-enunciatário, Cocoricó foi tomado enquanto um

texto, e também enquanto um objeto de valor do destinador TV Cultura para o

destinatário telespectador. Esse destinador cria significações que irão perpassar as

formas de emergência do sentido na busca da criança desse objeto de valor.

Segundo Landowski (2005, p.102), o sentido pode emergir segundo um modelo

construtivista configurado pelo “h|bito”, caracterizado como o não-descontínuo,

regido pelo não-aleatório e pela ordem, cujo efeito de sentido é o harmonioso. Ou

na “fantasia”, sucess~o n~o-monótona, regida pela não-necessidade e pelas

escolhas, cujo efeito de sentido é o melódico. Ou ainda, segundo o autor, existem

duas formas para a existência do não-sentido: o insignificante, “a rotina”, do

contínuo, uma sucessão monótona, cujo efeito de sentido seria o excesso de

coesão; e o insensato, “os acidentes”, do descontínuo, uma sucessão caótica, regida

pelo acaso, cujo efeito de sentido é o excesso de dispersão.

Esses modelos de emergência do sentido ou do não-sentido nos colocam a

pensar sobre os sujeitos TV Cultura e Cocoricó como destinadores e, pelo

pressuposto na relação, destinatário telespectador. Nessa construção, precisamos

nos remeter à vida da criança que assiste o programa. A criança desde seu

nascimento e durante toda a infância é naturalmente regida por uma não-

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ordenação, dada em seu total ou parcial desconhecimento das condições de viver.

Sabendo disso, esse destinador ressemantiza a rotina dessa criança através da

configuração do hábito de assisti-lo, pelo sentir o sentido da apreensão, não pela

repetição, mas na emergência de um sentido novo. Entretanto, inevitavelmente,

essa ordenação fará emergir outro sentido, o da fidelização de sua marca,

independente do produto o qual se manifesta. Essas opções do destinador de

Cocoricó propõem diferentes interações para fazer sentido, possibilitadas somente

pela exploração sensível, ou seja, pela competência estésica do sujeito destinatário.

O trabalho de investigar o programa televisivo infantil Cocoricó na

construção de sua significação pode contribuir para uma discussão sobre as

apreensões midiáticas vividas na cotidianidade da infância que irão configurar a

formação social do adulto. A autora Patricia Greenfield explica que:

Todos os meios de comunicação, sem exceção, podem fornecer oportunidades para a aprendizagem e o desenvolvimento humanos. Deve-se determinar, agora, de que forma, cada meio pode ser melhor utilizado, para que possa contribuir para um sistema criativo da multimídia educacional. (GREENFIELD, 1988, p. 19)

Por tudo o que conhecemos de Cocoricó, talvez uma característica que salte

aos nossos olhos, seja a de instaurar a noção de descontinuidade pela linguagem

televisual, que poderá ser apreendida pelo destinatário que ainda está no pleno

aprendizado da ordenação e regularidade de suas vidas. Essa apreensão cognitiva

que é dada como competência estésica permite ao destinatário entender que o

sentido pode ser dado tanto pelas formas plásticas da descontinuidade e retomada

da continuidade, quanto pelas figuratividades e temáticas desenvolvidas pela

modalização de um saber viver em sociedade, ambos contribuindo na formação de

suas individualidades. Entretanto, sobre a interação e a construção do sentido pelos

sujeitos apontados no decorrer desta tese – programa infantil Cocoricó e criança -,

nos inquieta a retomada da individualidade pela criança em desenvolvimento social,

como nos questiona Landowski:

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Será preciso conceder ao sujeito individuado a consistência e a autonomia de uma instância primeira –de um primitivo, no sentido lógico do termo – cuja socialização teria como efeito desnaturar, ou será preciso ver nele apenas uma instância segunda, derivada, refletindo na superfície estruturas sociais que tornam possível sua emergência e determinam também, conjunturalmente, sua forma? (LANDOWSKI, 2002, p. 42).

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VON FEILITZEN, Cecilia. Perspectivas sobre a criança e a mídia. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho. Brasília: UNESCO, SEDH/ Ministério da Justiça, 2002. WILLIAMS, Raymond. Technology and Cultural Form. Glasgow: Fontana/Collins, 1979. WOLTON, Dominique. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. Trad. José Rubens Siqueira.São Paulo: Ática, 1996. __________. Internet, e depois? Uma teoria crítica das novas mídias. Trad. Isabel Crossetti. Porto Alegre: Sulina, 2003. ZUIN, Aparecida Luzia A. A identidade da Vila Madalena e os textos do grafite. IN: Caderno de discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas. São Paulo: Editora CPS, 2003. p. 171-180. OUTRAS FONTES http://www.tvcultura.com.br http://www.revistamidiaeducacao.com.br http://www.wikipedia.com http://www.midiativa.tv/ http://multirio.rio.rj.gov.br/portal/ http://imagememagia.blogspot.com/

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ANEXO

Filmografia

A seguir a lista dos episódios e clipes musicais utilizados nas análises:

TÍTULO DVD

EPISÓDIOS

COCORICÓ DIVERSÃO

Caco na Casa O Desenho da Lilica A Cavalgada Os Caçadores da Galinha Perdida A Perua

COCORICÓ TECNOLOGIA O mini game

Isso pega!

Tá ligado?

TV Paiol Web Ovo

COCORICÓ PÉ NA COZINHA Pé-de-moleque

Os Abelhudos Apressadinhos Pamonhas, pamonhas, pamonhas Turma na cozinha

COCORICÓ PÉ NA COZINHA – clipe musical Pé-de-moleque

Isso me lembra Canção dos morcegos

COCORICÓ PÉ NA COZINHA - extras Cocoricó – Direitos das crianças

COCORICÓ JÚLIO NA CIDADE 1 Férias na cidade grande

Pôr do sol Cocoricó no Japão

Goiabinha da Vovó

Cocoricó Futebol Clube

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COCORICÓ JÚLIO NA CIDADE 2 Toda Coisa tem um nome

Astolfo e Rodolfo

Programa de Índia

Bagunça no Apê

O Sumiço do Roto

COCORICÓ A ESTRELINHA DO ALÍPIO O Homem-Sapo

O Primeiro

Os Antepassados

A Estrelinha do Alípio

A Caveira do Caco

COCORICÓ CLIPES MUSICAIS NA CIDADE Cadê a mala do Júlio?

Pôr do sol

Cocoricó no Japão

Goiabinha da Vovó

Embolada Bolada pro Futebol

Aventura sem fim

Esse rio não tem peixe

Tô dentro

O Museu

COCORICÓ CLIPES MUSICAIS NA CIDADE Qué passiá, qué dá rolê!

Toda coisa tem um nome

Lixo no capricho

Lilica logo ali

A Estrelinha do Alípio

Tchec tchec! Piuí! Fom fom! Bi bi!

Homem Sapo

Sala de Concertos

A Obra

O Gato

O Jornal

Eu canto porque gosto de cantar

O medo é nosso amigão

O Primeiro

Noite na cidade