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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Luís Antônio Rossi O guardião da Constituição: o Supremo Tribunal Federal como poder autônomo no julgamento da Lei da Ficha Limpa Doutorado em Direito São Paulo 2016

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Luís Antônio ......positivismo de Hans Kelsen, mas a amplitude da Constituição de 1988, o processo de constitucionalização do

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  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    Luís Antônio Rossi

    O guardião da Constituição: o Supremo Tribunal Federal como poder autônomo

    no julgamento da Lei da Ficha Limpa

    Doutorado em Direito

    São Paulo

    2016

  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    Luís Antônio Rossi

    O guardião da Constituição: o Supremo Tribunal Federal como poder autônomo

    no julgamento da Lei da Ficha Limpa

    Tese apresentada à Banca Examinadora da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

    como exigência parcial para obtenção do título

    de DOUTOR em Filosofia do Direito, sob

    orientação do Professor Doutor Antônio

    Carlos Mendes.

    São Paulo

    2016

  • Luís Antônio Rossi

    O guardião da Constituição: o Supremo Tribunal Federal como poder autônomo

    no julgamento da Lei da Ficha Limpa

    Tese apresentada à Banca Examinadora da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

    como exigência parcial para obtenção do título

    de Doutor em Filosofia do Direito, sob a

    orientação do Professor Doutor Antônio

    Carlos Mendes.

    Aprovado em: _____/____/____

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Antônio Carlos Mendes (Orientador).

    Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

    Assinatura_____________________________________________________________

    Julgamento: ___________________________________________________________

    Prof. Dr.______________________________________________________________

    Instituição: _______________________Assinatura____________________________

    Julgamento: ___________________________________________________________

    Prof. Dr.______________________________________________________________

    Instituição: ______________________Assinatura_____________________________

    Julgamento: ___________________________________________________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituição: _______________________Assinatura_____________________________

    Julgamento: ____________________________________________________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituição: ______________________Assinatura______________________________

    Julgamento: ____________________________________________________________

  • Ao meu orientador. Minha admiração,

    ampliada no desenrolar deste trabalho.

    Ao meu pai. Saudade.

  • RESUMO

    A presente tese, subsumindo a decisão diante do debate entre os juristas Hans Kelsen e

    Carl Schmitt sobre o controle de constitucionalidade pátrio, tem o escopo de analisar o

    comportamento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da constitucionalidade da

    Lei da Ficha Limpa. A tese, ao analisar e refletir sobre quem deve ser o “guardião da

    Constituição”, pretende demonstrar que o sistema constitucional brasileiro adotou o

    positivismo de Hans Kelsen, mas a amplitude da Constituição de 1988, o processo de

    constitucionalização do Direito, a ideologia dos direitos fundamentais e a inércia dos

    Poderes Executivo (falta de uma gestão pública eficiente) e Legislativo (inércia

    legislativa) transformaram a Corte Suprema brasileira num tribunal híbrido: ora um

    verdadeiro Tribunal Constitucional, na concepção formalista de Hans Kelsen

    (julgamento da Lei de Anistia, por exemplo), ora um verdadeiro Presidente do Reich ou

    Poder Moderador, na concepção de Carl Schmitt. Ao abordar e analisar o julgamento da

    Lei da Ficha Limpa, a tese quer demonstrar que o sistema jurídico pátrio passa por uma

    crise ocasionada pela constitucionalização em demasia do direito e, por conseguinte,

    pela transformação do Supremo Tribunal Federal em Poder autônomo: o Reich jurídico.

    Palavras-chave: Carl Schmitt. Hans Kelsen. Controle de constitucionalidade. Tribunal

    Constitucional. Direito e poder. Filosofia do Direito. Direito Constitucional.

  • ABSTRACT

    This thesis aims at analyzing the position of the Supreme Court when examining the

    constitutionality of the “Clean Record Law” subsuming the decision on the debate

    brought by jurists Hans Kelsen and Carl Schmitt on a country’s Judicial Review.

    Through analysis and reflection on who should be the "guardian of the Constitution",

    this investigation seeks to demonstrate that the Brazilian constitutional system has

    adopted Kelsen’s positivism.

    However, the amplitude of the 1988 Constitution, the process of Law

    constitutionalization , the ideology of fundamental rights and the idleness of both the

    Executive (lack of an efficient public administration) and the Legislative (legislative

    inertia) transformed Brazilian Supreme Court into a hybrid court: sometimes as a true

    Constitution Court in the formalistic conception of Kelsen (judgment of the Amnesty

    Law, for example) or as a true Reich President or a Moderator Power in Schmitt’s

    conception.

    By addressing and analyzing the judgement of the “Clean Record Law” this thesis

    claims that the Brazilian legal system has been going through a crisis caused by too

    much constitutionalization of law and has therefore caused the Supreme Court to change

    into an autonomous power: the Legal Reich.

    Keywords: Carl Schmitt. Hans Kelsen. Judicial Review. Constitutional Court. Law and

    Power. Philosophy of Law. Constitutional Law.

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO 8

    2 DIREITO E PODER NO CONTROLE DE

    CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA FICHA LIMPA 23

    2.1 O controle de constitucionalidade na Lei da Ficha Limpa:

    interpretação ou invenção 27

    2.2 Sistema: noções preliminares 32

    2.2.1 Direito e sistema 34

    2.3 Direito e sistema constitucional 36

    2.4 Controle de constitucionalidade 39

    2.5 Controle de constitucionalidade no Brasil: introdução 44

    2.6 A Lei da Ficha Limpa 46

    2.7 Histórico 49

    2.8 O controle de constitucionalidade na Lei da Ficha Limpa 50

    2.9 O Supremo Tribunal Federal: guardião da Constituição no

    julgamento da Lei da Ficha Limpa 54

    3 O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO 59

    3.1 Histórico de Hans Kelsen 61

    3.2 Teoria Pura do Direito para Hans Kelsen 64

    3.3 Controle de constitucionalidade para Hans Kelsen 67

    3.4 Sobre Carl Schmitt 71

    3.5 O debate sobre “O guardião da Constituição” 74

    3.6 Uma análise da dicotomia Kelsen-Schmitt 76

    3.7 O controle de constitucionalidade no caso da Ficha Limpa:

    o guardião da Constituição 78

    4 O GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO E O PRINCÍPIO DA

    PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ENQUANTO CLÁUSULA PÉTREA 87

    4.1 Princípio da presunção de inocência 90

    4.2 Princípio da presunção de inocência no Brasil 90

    4.3 Princípio da presunção de inocência como cláusula pétrea 93

    4.4 A violação da presunção de inocência na Lei da Ficha Limpa 94

    5 CRÍTICA AO JULGAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL

    FEDERAL NO CASO DA LEI DA FICHA LIMPA 100

    5.1 A constitucionalização do direito pátrio e o poder do

    Supremo Tribunal Federal 102

    5.2 O Supremo Tribunal Federal como legislador 104

    5.3 O Supremo Tribunal Federal como Poder Executivo 107

    5.4 O Supremo Tribunal Federal como Poder Moderador 113

    5.5 O Oráculo de Delfos 114

    6 CONCLUSÃO 117

    REFERÊNCIAS 120

  • ANEXOS 130

    ANEXO A – Lei Complementar nº135, de 4 de junho de 2010 . Altera a Lei

    Complementar nº64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o §9º do

    art.14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessão e determina

    outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a

    probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato

  • 8

    1 INTRODUÇÃO

    A dogmática constitucional consubstanciada na doutrina pátria atribui à Constituição

    Federal de 1988 o papel de democratização contemporânea do Brasil, conferindo-lhe,

    outrossim, a responsabilidade por instituir um processo de modernização e atualização do

    país, principalmente através do mandamento constitucional que acolheu a recepção dos

    Tratados de Direitos Humanos. O texto constitucional elenca como fundamento da República

    Federativa do Brasil o princípio da dignidade da pessoa humana, que impôs à agenda nacional

    a primazia dos direitos fundamentais.

    Além de eleger os direitos fundamentais como alicerces do direito pátrio, a

    Constituição Federal teria instaurado também instrumentos de efetivação desses direitos

    basilares, através de inúmeras garantias constitucionais e de mecanismos de democracia

    participativa, previstos em seu artigo 14, cujo teor garantiria o exercício da soberania popular

    através do sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.

    Segundo Rui Figueiredo Marcos, Carlos Fernando Mathias e Ibsen Noronha (2014,

    p.477), a Carta de 1988 recebeu influências de novos constitucionalismos como o português,

    o italiano, o alemão e o espanhol, e não tão só dos tradicionais como o francês e o norte-

    americano.

    Flávia Piovesan (2000, p.51-58) afirma que a Constituição Federal de 1988 é o

    documento histórico responsável pela transição ao regime democrático e que estabeleceu um

    novo pacto democrático para o Brasil, com cláusulas que expressam o desejo em afirmar e

    efetivar os direitos humanos:

    Preliminarmente, cabe considerar que a Carta de 1988, como marco jurídico da

    transição ao regime democrático, alargou significativamente o campo dos direitos e

    garantais fundamentais, estando dentre as Constituições mais avançadas do mundo

    no que diz respeito à matéria.

    Desde o seu preâmbulo, a Carta de 1988 projeta a construção de um Estado

    Democrático de Direito, “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e

    individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e

    a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

    preconceitos [...]”. Se no entender de José Joaquim Gomes Canotilho, a juridicidade,

    a constitucionalidade e os direitos fundamentais são as três dimensões fundamentais

    do princípio do Estado de Direito, perceber-se-á que o texto consagra amplamente

    essas dimensões, ao afirmar, em seus princípios que consagram os fundamentos e os

    objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro. (PIOVESAN, 2000, p.51-

    52).

    A autora defende que a Constituição é o catalisador do sistema jurídico pátrio:

    Considerando que toda a Constituição há de ser compreendida como uma unidade e

    como um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a

  • 9

    Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe

    dá unidade de sentido. Isto é, o valor de dignidade humana informa a ordem

    constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular.

    “Adotando-se a concepção de Ronald Dworkin, acredita-se que o ordenamento

    jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que

    incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem

    o suporte axiológico que confere coerência interna e estrutura harmônica a todo o

    sistema jurídico. O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou

    teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na

    medida em que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das normas

    constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo extraído do próprio

    sistema constitucional (grifo nosso). (PIOVESAN, 2000, p.54).

    Influenciada pelas Cartas do pós-guerra dos países europeus – que também passaram

    por processos correlatos de democratização –, a atual Constituição brasileira elegeu como

    centro do sistema constitucional e, por conseguinte, do sistema jurídico pátrio, os direitos

    fundamentais. A importância dos direitos fundamentais para o sistema jurídico é tamanha que

    estes passaram a ser parâmetro e medida para a própria interpretação do texto constitucional.

    A referendar essa assertiva, vale trazer as palavras de Flávia Piovesan (2000):

    Com efeito, a busca do texto em resguardar o valor da dignidade humana é

    redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temática dos direitos

    fundamentais. Constata-se, assim, uma nova topografia constitucional, na medida

    em que o texto de 1988, em seus primeiros capítulos, apresenta avançada Carta de

    direitos e garantias, elevando-os, inclusive, à cláusula pétrea, o que, mais uma vez,

    revela a vontade constitucional de priorizar os direitos e garantias fundamentais

    (grifos nossos)

    [...] Os direitos e garantias fundamentais são assim dotados de uma especial força

    expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério

    interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico. (grifo nosso).

    (PIOVESAN, 2000, p.55-56).

    Sob a ótica normativa, esta é, pois, a concepção dogmática extraída do direito

    constitucional.

    Quando examinada pela metodologia histórica, considera-se a Constituição fruto de

    um processo histórico global do pós-guerra; uma produção jurídica inserida no

    constitucionalismo contemporâneo fruto das mudanças de paradigmas na Europa.

    Nessa linha estão os estudos de Lenio Luiz Streck (2014):

    Já de início devemos atentar para a seguinte questão: o termo

    “neoconstitucionalismo’ pode ter-nos levado a equívocos. Em linhas gerais, é

    possível afirmar que, na trilha desse neoconstitucionalismo, percorremos um

    caminho que nos leva à jurisprudência da valoração e suas derivações axiologistas,

    temperada por elementos provenientes da ponderação alexyana.

    Esse belo epíteto – cunhado por um grupo de constitucionalistas espanhóis – embora

    tenha representado um importante passo para afirmação da força normativa da

    Constituição na Europa continental, no Brasil, acabou por

    incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da Jurisprudência dos Valores, da

    teoria da argumentação de Robert Alexy (que cunhou o procedimento da ponderação

  • 10

    como instrumento pretensamente racionalizador da decisão judicial) e do ativismo

    judicial norte-americano, problema que será abordado mais adiante, ainda nesta

    introdução.

    Nesse sentido, torna-se necessário afirmar que a adoção do nomen juris

    ‘neoconstitucionalismo’ certamente é motivo de ambiguidades teóricas e até de mal-

    entendidos. Explicando melhor: em um primeiro momento, foi de importância

    estratégica a importação do termo e de algumas das propostas trabalhadas pelos

    autores da Europa ibérica. Isso porque o Brasil ingressou tardiamente nesse “novo

    mundo constitucional”, fator que, aliás é, similar à realidade europeia, que, antes da

    segunda metade do século XX, não conhecia o conceito de constituição normativa,

    já consideravelmente decantada no ambiente constitucional estadunidense. Portanto,

    falar de neoconstitucionalismo implicava ir além de um constitucionalismo de

    feições liberais – que, no Brasil, sempre foi um simulacro de anos intercalados por

    regimes autoritários – em direção a um constitucionalismo compromissório, de

    feições dirigentes, que possibilitasse, em todos os níveis, a efetivação de um regime

    democrático em terrae brasilis.

    Destarte, passadas duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as

    especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características

    desse “neoconstitucionalismo” acabaram por provocar condições patológicas que,

    em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto da

    Constituição. (grifo nosso) Ora, sob a bandeira ‘neoconstitucionalista’ defendem-se,

    ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado

    pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma

    pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo

    e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, como: neoprocessualismo e

    neopositivismo. Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição

    responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores” que definem o direito justo

    (vide, nesse sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual).

    (grifos nossos). (STRECK, 2014, p.45-47).

    A primazia dos princípios acarretou a importância da jurisdição e a transformação dos

    tribunais em órgãos judicantes, legislativos e executivos na ordem neoconstitucional,

    conforme completa Lenio Luiz Streck (2014):

    Nessa medida, pode-se dizer que o Constitucionalismo Contemporâneo representa

    um redimensionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: no

    plano da teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático

    de Direito, e no plano da teoria do direito, no interior da qual se dá a reformulação

    da teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição);

    na teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) [...]. (STRECK, 2014,

    p.47).

    Numa perspectiva zetética, essa onipresença da Constituição brasileira tem significado

    a onipotência do Supremo Tribunal Federal, sobretudo no exercício do poder do controle de

    constitucionalidade. Nessa nova roupagem do direito constitucional, na qual a soberania da lei

    perde espaço à supremacia da Constituição, os limites de atuação do Supremo Tribunal

    Federal na interpretação e na aplicação dos direitos humanos esgarçam seus parâmetros. Já

    não há restrições para que o guardião da Constituição brasileira, o Supremo Tribunal Federal,

    crie argumentos e recrie o texto constitucional positivado, agindo como poder autônomo. Tal

  • 11

    é a proposta desta tese, que será demonstrada por meio da análise do julgamento da Lei da

    Ficha Limpa.

    Sob esta ótica, o Direito Constitucional brasileiro contemporâneo passa a aplicar-se

    por princípios, em consonância com os posicionamentos da Corte Suprema norte-americana,

    olvidando-se que a Constituição brasileira segue o modelo analítico francês e regulamenta

    detalhadamente as competências de cada Poder.

    Por meio da metodologia zetética, esta tese identifica a anomalia decorrente do

    crescente protagonismo do Supremo Tribunal Federal, Tribunal que tem imposto, através de

    suas decisões paradigmáticas, valores e comportamentos não só à sociedade civil, mas

    também em decorrência da fraqueza e das tergiversações do Poder Legislativo e Poder

    Executivo.

    Relativamente ao Poder Executivo, na realização de sua atividade típica

    constitucional, prevalecem no Brasil interesses políticos de natureza governamental e não a

    atividade administrativa, a verdadeira função típica de Estado. Essa conduta do Poder

    Executivo pátrio nas quatro esferas territoriais provoca, por conseguinte, uma contumaz crise

    de credibilidade e de instabilidade social e econômica.

    Distante de seu pacto com a sociedade, o Poder Executivo está relacionado, segundo a

    mídia, diretamente aos episódios de corrupção, que têm sido regra nos governos federais,

    estaduais, distrital e municipais. Eventos esportivos como a Copa do Mundo de 2014, grandes

    obras de infraestrutura (como o metrô) e contratos de limpeza pública, todos estão

    supostamente envolvidos com negociações políticas que comprometem o processo eleitoral,

    um projeto de gestão estatal e os preceitos constitucionais aplicados à administração pública.

    O Poder Executivo estabeleceu, para sua governabilidade, pactos com grupos sociais e

    econômicos, deixando de lado o mandamento constitucional de superação das desigualdades

    sociais. Conforme o artigo 3º da Constituição Federal de 1988, é fundamento da República

    Federativa do Brasil a superação da desigualdade social, função típica a ser cumprida pelo

    Poder Executivo:

    Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

    I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

    II – garantir o desenvolvimento nacional;

    III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e

    regionais;

    IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

    quaisquer outras formas de discriminação.

  • 12

    Já o Poder Legislativo, responsável pela estrutura legislativa infraconstitucional do

    país, permanece inerte e não promove a efetivação da Constituição ou a mudança legislativa

    demandada. As reformas são tímidas e movidas por interesses de algumas categorias ou o de

    lobby econômico. A inércia legislativa decorre, outrossim, de um sistema político pátrio

    arcaico, distante dos debates de ideias, ancorado no poder local, nos interesses pessoais e na

    negociação política com o Poder Executivo. O Poder Legislativo sofre um desgaste ainda

    maior, pois a população não se sente representada por maiorias ocasionais, que em muitos

    casos aprovam leis em contrariedade aos direitos humanos ou ao direito constitucional

    internacional.

    Essa inércia dos Poderes Executivo e Legislativo potencializou a constitucionalização

    do direito, robustecendo a primazia do Poder Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal

    Federal, pois a denominada Corte Constitucional, em nome da concretização da Constituição,

    passou a atuar como guardiã dos direitos fundamentais, da democracia e dos valores da

    Declaração Universal dos Direitos Humanos, signos abertos e imprecisos em nome dos quais

    a amplitude de caminhos se torna praticamente sem limites.

    Para Carlos Ayres Britto (2012), o Poder Judiciário é o garantidor da Constituição

    denominada dirigente:

    Acontece que a Constituição, por mais humanista que seja, por mais que ela

    prestigie a Democracia de três vértices, não pode fazer o milagre de atuar sem os

    seus humanos aplicadores. São eles – e somente eles – que particularizam por modo

    progressivo os comandos dela constantes. Particularização que obedece à seguinte e

    natural ordem cronológica: principia com os atos do Poder Legislativo, passa em

    imediata sequência pela atuação do Poder Executivo (ou dos particulares que atuam,

    ou deixam de atuar, após a edição do Direito-lei), para terminar nas decisões do

    Poder Judiciário. Donde a lógica enumeração que faz o artigo 2º da Constituição de

    1988, a saber: são três os Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o

    Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

    Se o Judiciário vem nominado por último, é por se constituir, não-propriamente num

    aplicador do Direito-lei em sentido material, mas numa instância que vai dizer se

    aquele que elaborou o Direito-lei e o outro que o aplicou empiricamente (ou deixou

    de aplicar) agiram ou não de modo válido. O que já pressupõe um terceiro momento

    lógico na vida do Estado e do Próprio Direito, que é o julgamento. Afinal, jurisdição

    em processos de índole subjetiva é exatamente isso: um aguardar a protagonização

    dos dois primeiros momentos lógicos da legislação e da execução para, e só então,

    aferir da sua englobada juridicidade.

    É nessa formatação institucional que o Poder Judiciário se revela como instância

    especificamente garantidora da efetividade dos comandos constitucionais [...] (grifos

    nossos). (BRITTO, 2012, p.107).

    Como instância especificamente garantidora da efetividade dos comandos

    constitucionais, conforme observou o ministro Carlos Ayres Britto, o Supremo Tribunal

    Federal no Brasil passou a ter um papel relevante no controle de constitucionalidade, pois em

  • 13

    face da desídia ou irresponsabilidade constitucional dos demais Poderes, suas decisões

    modificaram a postura do Poder Judiciário, implementando e efetivando os direitos humanos.

    Em relação ao Poder Executivo, o Supremo Tribunal Federal assumiu com o ativismo

    judicial a aceitação de adentrar no mérito do ato administrativo discricionário e determinar a

    efetivação dos direitos à saúde, à educação e à dignidade da pessoa humana. No que tange ao

    Poder Legislativo, o Supremo Tribunal Federal, para efetivar a Constituição e concretizar

    direitos fundamentais, passou a decidir diante da omissão legislativa.

    Nesta tese, o que se discute são os limites do Supremo Tribunal Federal diante desse

    novo papel: em que medida o discurso jurídico (Alexy, 2015, p.318), no controle de

    constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal, autoriza a Suprema Corte

    brasileira a invadir esferas de Poder afetas ao Executivo e ao Legislativo – é mote desta

    pesquisa.

    Sendo o Direito, nas palavras de Alexy (2015), “um meio necessário para a realização

    da razão prática”, deve ele amoldar-se aos limites da racionalidade jurídica discursiva, isto é:

    O modelo esboçado de um sistema jurídico racional demonstra que as fronteiras do

    discurso jurídico não são algo externo ou alheio à racionalidade prática. Do ponto de

    vista da racionalidade discursiva, ditas fronteiras não são admissíveis, mas são uma

    exigência dela mesma. É uma questão de alcance geral. O Direito é na realidade um

    meio necessário para a realização da razão prática. Para a tese do caso especial, isso

    significa que o discurso jurídico não se mostra apenas como uma variante especial

    do discurso prático que é necessário para preencher racionalmente as lacunas do

    sistema jurídico. Mais do que isso, é, na sua estrutura global, um elemento

    necessário da racionalidade discursiva realizada. (ALEXY, 2015, p.319).

    As decisões do Supremo Tribunal, levando-se em consideração a aplicação da teoria

    da argumentação jurídica, têm ultrapassado os limites constitucionais? Afinal, a decisão que

    supera a dogmática esboça a prática da decisão ou revela o exercício de um poder autônomo?

    Pelo exame aos últimos julgados do Supremo Tribunal Federal, como o da Lei da

    Ficha Limpa – motivo de investigação neste trabalho –, observa-se que a Suprema Corte

    brasileira tem ultrapassado o modelo constitucional proposto para o Judiciário, criando

    normas primárias e administrando o Estado.

    Na publicação das metas para o biênio do Poder Judiciário, o presidente do Supremo

    Tribunal Federal elencou objetivos que ultrapassam a legitimidade e a competência de uma

    Corte Constitucional: efetivação dos direitos fundamentais, participação social, celeridade,

    garantia da estabilidade das instituições republicanas, ou seja, propostas destacadamente

    políticas de um Tribunal com competência unívoca constitucional e jurídica:

  • 14

    Metas para o biênio 2015-2016 incluem prioridade para repercussão geral e novas

    súmulas vinculantes

    O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski,

    fixou um conjunto de nove diretrizes para orientar a atuação da Corte no biênio

    2015-2016. O ministro elencou como prioridades medidas que favorecem a

    celeridade e eficácia na promoção da Justiça, como ênfase no julgamento de

    recursos com repercussão geral e a aprovação de súmulas vinculantes.

    Também foi estabelecida pelo presidente do STF a visão estratégica adotada pela

    Corte. Ela consistirá em “Assegurar a concretização dos direitos fundamentais,

    consideradas as suas várias dimensões, e garantir a estabilidade das instituições

    republicanas”. As diretrizes e a visão estratégica da Corte constam no Diário da

    Justiça Eletrônico divulgado nesta segunda-feira (12) e com publicação amanhã.

    Celeridade e eficácia

    Entre as diretrizes fixadas pela Presidência consta a prioridade ao julgamento de

    processos com maior impacto social, como os recursos extraordinários com

    repercussão geral reconhecida e ações de efeito erga omnes – por exemplo, as Ações

    Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Também é assegurada a ênfase à edição de

    novas súmulas vinculantes, por representarem orientações objetivas aos operadores

    do direito.

    Foi destacada a necessidade da realização de diagnósticos de problemas e a

    identificação dos entraves à prestação jurisdicional célere e eficaz, bem como a

    realização de estudos empíricos de base estatística a respeito da produção

    jurisdicional da Corte. As ações do biênio 2015-2016 envolverão ainda a melhora da

    comunicação entre o Supremo e outros órgãos do Poder Judiciário, e a intensificação

    das relações entre a Corte e os demais Poderes, visando à convergência de esforços

    para a solução de problemas comuns.

    Participação social e valorização de servidores e magistrados

    Foi mencionado no documento o estímulo ao uso de instrumentos de participação

    social na solução de controvérsias submetidas ao Tribunal, tais como a realização de

    audiências públicas e a admissão do amicus curiae nos processos, como forma de

    reforçar a legitimidade das decisões proferidas. É destacada ainda a necessidade de

    valorização de magistrados e servidores da Corte e do Judiciário como um todo.

    A interlocução entre o STF, organismos internacionais e cortes de outros países é

    enfatizada, colocando em destaque o objetivo de fortalecer a proteção aos direitos

    fundamentais, dado tratarem-se de valores que integram o patrimônio comum da

    humanidade.

    Ênfase na repercussão geral e súmulas vinculantes

    Desde que assumiu a presidência da Corte, em agosto de 2014, o ministro Ricardo

    Lewandowski priorizou na pauta Plenário o julgamento dos recursos extraordinários

    com repercussão geral reconhecida. No semestre, foram julgados 50 casos com

    repercussão, que significaram a liberação de pelo menos 50 mil processos até então

    sobrestados na origem à espera de um desfecho do precedente no STF. No mesmo

    período, foram aprovadas quatro novas súmulas vinculantes, e há outras 57

    propostas de súmulas vinculantes prontas para apreciação do plenário.

    Direitos fundamentais na prática

    Já no início de 2015, durante o período de recesso, quando o presidente permanece

    de plantão e analisa as demandas urgentes que chegam à Corte, o ministro

    Lewandowski colocou em prática a nova visão estratégica de concretização dos

    direitos fundamentais. Primeiro, assegurou a uma mulher presa, grávida de nove

    meses, o direito de cumprir sua prisão provisória em casa, tendo em vista eventual

    deficiência no atendimento médico necessário ao parto e ao seu filho, devido à

    superlotação do presídio em que se encontrava, bem como o fundamento em normas

    constitucionais e internacionais que garantem condições mínimas às mulheres

    presas.

    Em outro caso, também analisado neste mês de janeiro, o presidente do STF

    suspendeu decisão judicial que determinava a quebra do sigilo telefônico de um

  • 15

    jornalista e da empresa jornalística para a qual trabalhava. A intenção do magistrado

    era descobrir a fonte que teria repassado ao jornalista informações de uma

    investigação sigilosa. Neste caso, Lewandowski citou a prevalência ao direito à

    informação e à garantia do sigilo da fonte, que são constitucionalmente

    reconhecidos1.

    A Corte Suprema no Brasil teria espaço de legitimidade para um discurso de

    convencimento político e a propositura de metas institucionais, em face inclusive do princípio

    constitucional da inércia do Poder Judiciário? O presidente da Corte, ao apontar metas ou

    impor políticas públicas ao Poder Executivo, estaria interpretando ou instaurando uma nova

    forma de atuação do Poder Judiciário? A Corte teria legitimidade para o exercício de funções

    de governo, em face de nossa enfraquecida democracia representativa? A interpretação aberta

    da Constituição (Häberle, 2002, p.19) permitiria decisões amplas do Poder Judiciário no

    Brasil?

    Para Peter Häberle (2002), a tentativa de se fazer uma apresentação sistemática dos

    participantes da interpretação sugere o seguinte catálogo provisório:

    (1) as funções estatais:

    a) na decisão vinculante (da Corte Constitucional): decisão vinculante que é relativizada mediante o instituto do voto vencido;

    b) nos órgãos estatais com poder de decisão vinculante, submetidos, todavia, a um processo de revisão: jurisdição, órgão legislativo (submetido a controle em

    consonância com o objeto de atividade): órgão do Executivo, especialmente na (pré)

    formulação do interesse público;

    c) os participantes do processo de decisão nos casos que não são, necessariamente, órgãos do Estado, isto é:

    d) o requerente ou recorrente e o requerido ou recorrido, no recurso constitucional (Verfassungsbeschewerd), autor e réu, em suma, aqueles que

    justificam a sua pretensão e obrigam o Tribunal a tomar uma posição ou a assumir

    um “diálogo jurídico” (Rechtsgerpräch);

    e) outros participantes do processo, ou seja, aqueles que têm direito de manifestação ou integração à lide, nos termos da Lei Orgânica da Corte

    Constitucional (v.g., §77, 85, nº2, 94, n 1 a 4, §§ 65, 82, n 2, 83, nº2, 94, nº5), ou

    que são, eventualmente, convocados pela própria Corte Constitucional (v.g. §82,

    nº4, da Lei do Bundesverfassungsgerichet);

    f) pareceristas ou experts, tal como se verifica nas Comissões Especiais de Estudos ou de Investigação (§73, do Regimento Interno do Parlamento Federal);

    g) peritos e representantes de interesses nas audiências públicas do Parlamento (§73, nº3, do Regimento Interno do Parlamento Federal alemão), peritos nos

    Tribunais, associações, partidos políticos (frações parlamentares), que atuam,

    sobretudo, mediante a “longa manus” da eleição de juízes (NT 2);

    h) os grupos de pressão organizados (§10, do Regimento Interno do Governo Federal);

    i) os requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo; [...]

    (3) a opinião pública democrática e pluralista e o processo político como grandes

    estimuladores: media (imprensa, rádio, televisão, que, em sentido, estrito, não são

    1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias. Disponível em:

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=283300&tip=UPublicado em: 12 jan. 2015. Acesso em:

    13 jan.2015, 15h. Grifos nossos.

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=283300&tip=UPublicado

  • 16

    participantes do processo, o jornalismo profissional, de um lado, a expectativa de

    leitores, as cartas de leitores, as iniciativas dos cidadãos, as associações, os partidos

    políticos fora do seu âmbito de atuação organizada, igrejas, teatros, editoras, as

    escolas da comunidade, os pedagogos, as associações de pais;

    (4) cumpre esclarecer, ainda, o papel da doutrina constitucional nos nºs1, 2 e 3; ela

    tem um papel especial por tematizar a participação de outras forças e, ao mesmo

    tempo, participar nos diversos níveis. (HÄBERLE, 2002, p.20).

    A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, segundo Peter Häberle, exige uma

    República consolidada, ou seja, a responsabilidade dos poderes com a função pública, a

    democracia participativa e a sociedade civil plural e organizada.

    Mas as premissas que permitiriam uma interpretação aberta não estão consolidadas no

    Brasil. As discussões com a sociedade civil são fomentadas principalmente pela Ordem dos

    Advogados do Brasil (OAB) e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

    Portanto, a opinião pública raramente é instada a se manifestar através de referendo e/ou

    plebiscitos. Ademais, as faculdades de Direito, através de seus programas de pesquisas, não

    são chamadas a apontar artigos ou pareceres sobre temas de interpretação constitucional. As

    audiências públicas realizadas pela Corte são concentradas no Distrito Federal e não permitem

    uma participação plural da sociedade.

    Ademais, os Poderes Executivo e Legislativo estão inertes em realizar programas e

    reformas para consolidar os mandamentos constitucionais e efetivar a democracia

    participativa.

    A interpretação aberta da Constituição deveria ser limitada pelo sistema constitucional

    pátrio atualizado constantemente pela participação de uma sociedade plural, representada por

    inúmeras entidades de classes e não apenas por setores organizados da sociedade.

    Destarte, o Supremo Tribunal Federal, diante da fragilidade republicana e

    democrática, ao interpretar a Constituição de forma aberta, superando a dogmática de forma

    ampla e subestimando o sistema jurídico, não realiza uma construção hermenêutica e

    democrática da decisão, mas sim, assume um papel de Poder Moderador, mediador e

    autônomo dos conflitos sociais, econômicos e entre os poderes constitucionais, a sociedade

    civil e o Estado.

    O comportamento do Supremo Tribunal Federal como gestor da justiça brasileira e da

    República, interferindo inclusive na escolha política (como na análise da Lei da Ficha Limpa),

    transcende o princípio da inércia da jurisdição. Esse é um exemplo pragmático

    contemporâneo, que comunga com a presente argumentação e fundamenta esta tese. Além

    disso, o presidente da Corte, por exemplo, percorre o país inaugurando polos de conciliação,

    promovendo a justiça como um ato político:

  • 17

    O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça

    (CNJ), ministro Ricardo Lewandowski, inaugurou na sexta-feira (4), o primeiro polo

    de conciliação indígena de um Centro Judiciário de Solução de Conflitos e

    Cidadania (Cejusc) no país, localizado na Comunidade Maturuca, dentro da reserva

    indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. “É um avanço muito importante para o

    Judiciário brasileiro”, disse o ministro, ressaltando o caráter inédito dessa iniciativa.

    Segundo Lewandowski, o Poder Judiciário “está convencido de que deve assegurar

    os direitos indígenas sem quaisquer restrições”.

    Para o lançamento desse polo, 16 índios foram treinados e poderão atuar nas

    mediações de conflitos que surjam dentro da própria reserva, com o intuito de

    resolver os casos antes que cheguem aos tribunais.

    O polo indígena do Cejusc é subordinado à comarca de Pacaraima, município

    próximo à Comunidade Maturuca2.

    Em recente julgamento, a Corte impôs ao Poder Executivo, como obrigação de fazer, a

    construção de presídios como efetivação dos direitos fundamentais.

    Ao assim proceder, ao impor a adoção de posturas governamentais para essa

    finalidade, a fidelidade do texto constitucional estaria sendo ultrapassada, conforme ensina

    Karl Engisch (1996):

    Em certo sentido a interpretação extensiva e a interpretação restritiva podem já ser

    consideradas como uma espécie de complementação da lei. Mais um passo e

    encontramo-nos com a chamada heurística jurídica (descoberta do Direito) “praeter

    legem”, cujo principal exemplo é a analogia, e com heurística jurídica “contra

    legem”, que em sentido estrito significa uma “correção” da lei, ao passo que a

    verdadeira interpretação se apresenta como via de uma descoberta (heurística) do

    Direito “secundum legem”, de acordo com o princípio da fidelidade do texto legal.

    (grifo nosso). (ENGISCH, 1996, p.197).

    Essa tensão entre o político e o jurídico é recorrente no Supremo Tribunal Federal,

    inclusive com a possibilidade da Corte, em face de suas decisões, incorporar as atribuições do

    Poder Executivo, assumindo tarefas governamentais, conforme o debate exposto na decisão

    que determinou a construção dos presídios anteriormente mencionada:

    Assim, contrariamente ao sustentado pelo acórdão recorrido, penso que não se está

    diante de normas meramente programáticas. Tampouco é possível cogitar de

    hipótese na qual o Judiciário estaria ingressando indevidamente em seara reservada à

    Administração Pública.

    Nesse contexto, não há que se falar em indevida implementação, por parte do

    Judiciário, de políticas públicas na seara carcerária, circunstância que sempre enseja

    discussão complexa e casuística acerca dos limites de sua atuação, à luz da teoria da

    separação dos poderes.

    Assim, mostra-se no mínimo paradoxal a assertiva que consta do acórdão proferido

    pelo TJRS abaixo reproduzida:

    [...] fundado no princípio da discricionariedade, o Estado tem liberdade de dispor

    das verbas orçamentárias, de escolher onde devem ser aplicadas e quais obras deve

    realizar. E ao Poder Judiciário, pergunto, cabe intrometer-se nas questões de

    governo, de programa de governo, de gestão, e impor ao Poder Executivo obrigação

    de fazer que importe gastos sem previsão orçamentária?

    Respondo pela negativa.

    2Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299145. Acesso em: 06 set. 2015.

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299145

  • 18

    Ora, salta aos olhos que, ao contrário do que conclui o mencionado aresto, existe

    todo um complexo normativo de índole interna e internacional, que exige a pronta

    ação do Judiciário para recompor a ordem jurídica violada, em especial para fazer

    valer os direitos fundamentais – de eficácia plena e aplicabilidade imediata –

    daqueles que se encontram, temporariamente, repita-se, sob a custódia do Estado.

    A hipótese aqui examinada não cuida, insisto, de implementação direta, pelo

    Judiciário, de políticas públicas, amparadas em normas programáticas, supostamente

    abrigadas na Carta Magna, em alegada ofensa ao princípio da reserva do possível.

    Ao revés, trata-se do cumprimento da obrigação mais elementar deste Poder que é

    justamente a de dar concreção aos direitos fundamentais, abrigados em normas

    constitucionais, ordinárias, regulamentares e internacionais.

    A reiterada omissão do Estado brasileiro em oferecer condições de vida

    minimamente digna aos detentos exige uma intervenção enérgica do Judiciário para

    que, pelo menos, o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana lhes seja

    assegurado, não havendo margem para qualquer discricionariedade por parte das

    autoridades prisionais no tocante a esse tema.

    Sim, porque, como já assentou o Ministro Celso de Mello, não pode o Judiciário

    omitir-se “se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os

    encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal

    comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos

    impregnados de estatura constitucional”. (ADPF nº45-MC/DF, Rel. Min. Celso de

    Mello. Confira-se, a propósito, a ementa dessa decisão monocrática:

    ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A

    QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA

    INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO

    DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE

    ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA

    JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL

    FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO

    DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER

    RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR.

    CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO

    POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS

    INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO

    CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE

    INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO

    DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS

    CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO)’.

    Ante o exposto e o mais que consta dos autos, sobretudo tendo em conta o princípio

    da inafastabilidade da jurisdição, dou provimento ao recurso extraordinário para

    cassar o acórdão recorrido, a fim de que se mantenha a decisão proferida pelo juízo

    de primeiro grau.

    A tese de repercussão geral que proponho seja afirmada por esta Suprema Corte é a

    seguinte:

    É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente

    na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em

    estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa

    humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos

    termos do que preceitua o artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo

    oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação

    dos poderes”. (grifo nosso)3.

    No exercício deste novo papel de onipotência sem quaisquer amarras limitadoras,

    potencializado pela inércia dos Poderes Executivos e Legislativo, o Supremo Tribunal Federal

    3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 592.581. Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário. Publicado em: 13

    ago.2015.

  • 19

    deixou-se plastificar pela mídia; passou a importar-se com sua maquiagem e a imagem a ser

    transmitida à população. E por ter conquistado um grande espaço na mídia é que as críticas

    científicas à Corte aumentaram, assim como as tensões e as disputas envolvendo os outros

    dois poderes da República, além da preocupação com a opinião pública. Os julgamentos têm

    ultrapassado os limites do sistema jurídico e do próprio discurso jurídico. O relatório dos

    votos se transformou em cenário teatral; os dispositivos das decisões ultrapassaram o texto

    constitucional e se embasaram em tragédias de Ésquilo.

    Ao assumir a Presidência da República, o então ministro do Supremo Tribunal

    Federal, Marco Aurélio de Mello, inaugurou uma nova fase das decisões constitucionais da

    Corte: a fase das decisões e das argumentações midiáticas.

    Com sede no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, a TV Justiça iniciou

    suas atividades em 11 de agosto de 2002. Como emissora pública, transmitida pelo

    sistema a cabo, satélite (DHT), antenas parabólicas e internet, foi a primeira a

    transmitir ao vivo os julgamentos do Plenário da Suprema Corte brasileira.

    A TV Justiça tem como foco preencher lacunas deixadas por emissoras comerciais

    em relação a notícias sobre questões judiciárias, a fim de possibilitar que o público

    acompanhe o dia a dia do Poder Judiciário e suas principais decisões, favorecendo o

    conhecimento do cidadão sobre seus direitos e deveres.

    Trabalha na perspectiva de informar, esclarecer e ampliar o acesso à Justiça,

    buscando tornar transparentes suas ações e decisões. Este é o maior propósito da

    emissora do Judiciário.

    Com programação que emprega linguagem clara, ágil, confiável, contextualizada e

    caráter didático, a TV Justiça notabilizou-se pela transmissão de julgamentos,

    programas de debates, seminários e conferências ao longo dos seus 10 anos de

    história, realizando uma cobertura jornalística prolongada, profunda e variada.

    A administração da TV Justiça está sob a responsabilidade da Secretaria de

    Comunicação Social do Supremo Tribunal Federal com o auxílio de um Conselho

    Consultivo.

    A Lei 10.461/2002, que prevê sua criação, foi sancionada por um integrante do STF,

    o ministro Marco Aurélio, quando exerceu interinamente a Presidência da República

    durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em maio de 20024.

    Foi o que ocorreu com o julgamento da constitucionalidade da Lei Complementar

    nº35, conhecida como Lei da Ficha Limpa. O impacto da iniciativa popular do projeto e a

    cobertura da mídia sobre o assunto transformaram a Corte Suprema brasileira numa instância

    executora de um papel político, pois passou a ser o centro das atenções: um poder autônomo

    ou o Poder Judiciário?

    A questão faz ressurgir o debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre o papel e os

    limites do guardião da Constituição.

    4 Disponível em: http://www.tvjustica.jus.br/index/conheca. Acesso em: 11 jul. 2015.

    http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2010.461-2002?OpenDocumenthttp://www.tvjustica.jus.br/index/conheca

  • 20

    Para Carl Schmitt, o conceito de decisionismo está essencialmente ligado ao conceito

    de soberania. O primeiro grande precursor do decisionismo jurídico foi Jean Bodin: “Bodin

    não apenas tem o mérito de ter fundamentado o conceito de soberania do direito político

    moderno, como também revelou a sua conexão com a ditadura e deu uma definição que ainda

    hoje deve-se reconhecer como fundamental”. (MACEDO JÚNIOR, 2011, p.35).

    Para Macedo Júnior, ao analisar o decisionismo jurídico, Carl Schmitt observa que,

    juridicamente, pode-se encontrar o último fundamento jurídico de todas e quaisquer validades

    e valores de direito em um processo volitivo, uma decisão que enquanto tal cria o direito e

    cuja força jurídica (Rechtskraft) não deve ser derivada da força jurídica de regras de decisão,

    pois mesmo uma decisão que não corresponde à regra cria direito. Essa forma jurídica de

    decisões contrária às normas pertence a todo e qualquer “ordenamento jurídico”.

    Thomas Hobbes, de acordo com Macedo Júnior, teria sido o primeiro a apresentar um

    exemplo puro de pensamento decisionista no século XVII:

    A decisão soberana não é, portanto, explicada a partir de uma norma nem a partir de

    um ordenamento concreto, porque, muito pelo contrário, somente a decisão

    fundamentada é para o decisionista tanto a norma quanto o ordenamento. A decisão

    soberana é o início absoluto (também no sentido de arché), não é outra coisa senão

    decisão soberana. Ela nasce de um Nada, a estrutura lógica do decisionismo puro

    pressupõe uma “desordem” que vem mudada em “ordem” somente pelo fato de que

    é tomada uma decisão. Para Hobbes, o representante do tipo decisionista de

    pensamento jurídico é o “ditador”, que acaba com a desordem da bellum omnium

    contra omnes (guerra de todos contra todos) do Estado de Natureza e funda as leis e

    o ordenamento. (MACEDO JÚNIOR, 2011, p.36).

    Já Hans Kelsen defenderá que a Constituição é a base, o fundamento primário de

    validade das normas jurídicas reguladoras não só da conduta dos membros da sociedade, mas

    também dos órgãos encarregados de editar, interpretar, aplicar e impor essas normas. Nessa

    perspectiva, para ele a essência da democracia residiria não na onipotência da maioria, mas

    sim no compromisso permanente do parlamento – legítimo representante das maiorias e das

    minorias – com a justiça constitucional.

    Destarte, ao confrontar o debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt acerca do controle

    da Constituição, serão elucidados os motivos para a elaboração da presente tese: o embate

    político e jurídico em torno da Lei da Ficha Limpa e o atual papel do Supremo Tribunal

    Federal no cenário republicano brasileiro.

    Em face da desorganização dos Poderes Legislativo e Executivo, o Supremo Tribunal

    Federal instaura a ordem e sua decisão impõe uma interpretação política do sistema

    constitucional, substituindo o texto (norma) pela vontade dos julgadores e sem a legitimidade

  • 21

    do Poder Constituinte Originário que teceu limites à atuação dos poderes e às possibilidades

    de decisão dentro do sistema constitucional.

    O presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ricardo

    Lewandowski, em artigo publicado recentemente pela imprensa, assumindo uma postura que

    agora se aproxima da jurídica, argumentou:

    O protagonismo extramuros, criticável em qualquer circunstância, torna-se ainda

    mais de fato quando tem o potencial de cercear direitos fundamentais, favorecer

    correntes políticas, provocar abalos na economia ou desestabilizar as instituições,

    ainda que inspirado na melhor das intenções. Por isso, posturas extravagantes ou

    ideologicamente matizadas são repudiadas pela comunidade jurídica, bem assim

    pela opinião pública esclarecida, que enxerga nelas um grave risco à democracia5.

    A tese proposta demonstra que há uma invasão da política no exercício da jurisdição

    constitucional, aproximando o Supremo Tribunal Federal de um poder autônomo com funções

    de direção e configuração política. As premissas que sustentam tal pensamento estão

    amparadas no debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, assim como na concepção do Direito

    como sistema, desenvolvida por Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Sua demonstração está

    fundamentada na análise do julgamento da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa.

    Após a Introdução, no capítulo 2 desta pesquisa serão identificadas a metodologia

    (zetética) e a delimitação do tema (o poder de controle de constitucionalidade no caso da Lei

    da Ficha Limpa foi deliberado a partir de uma perspectiva normativa ou política? Há

    intervenção externa no sistema? Sob o ponto de vista normativo, viola cláusula pétrea da

    Constituição? Sob o ponto de vista zetético, tolhe o direito de liberdade de escolha? Sob o

    ponto de vista sociológico, detém eficácia plena ou meramente ideológica?)

    No terceiro capítulo discute-se o poder de controle de constitucionalidade (o guardião

    da Constituição – Carl Schmitt versus Hans Kelsen); no quarto, o debate é dedicado ao

    princípio da presunção de inocência como cláusula pétrea.

    No quinto capítulo apresenta-se a crítica ao julgamento: a violação ao princípio da

    presunção de inocência, a violação à liberdade de escolha e a intervenção do poder político do

    Supremo Tribunal Federal no sistema.

    Ao final, na conclusão deste estudo, a pesquisa comprovará que o poder de controle de

    constitucionalidade exercitado pelo Supremo Tribunal Federal no caso da Lei da Ficha Limpa

    pautou-se principalmente pela opinião pública e não pelas previsões normativas

    constitucionais. E ademais, o Supremo Tribunal Federal, neste caso paradigmático para o

    5 FOLHA DE S.PAULO. Tendências e Debates, p.A-3. Publicado em: 13 set.2015.

  • 22

    sistema jurídico, comportou-se como poder autônomo e impositivo de premissas externas ao

    próprio texto constitucional.

  • 23

    2 DIREITO E PODER NO CONTROLE DE

    CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA FICHA LIMPA

    No positivismo, o Direito (conhecimento ou ciência) é conjugado como força

    coercitiva e impositiva da ordem social. É um poder legitimado pela lei emanada do

    parlamento. A sanção determina a obediência social e delimita os direitos subjetivos dos

    indivíduos. E o Poder Judiciário, destinatário constitucional do direito subjetivo à ação,

    resolve a lide, esclarecendo o mandamento geral, a lei, ao criar na decisão uma norma

    individual.

    A relação entre o direito e o poder é estabelecida pelo Poder Judiciário, que garante,

    de forma democrática e legítima, a aplicação das normas gerais e abstratas criadas pelo Poder

    Legislativo (Parlamento) e pelo Poder Executivo (Administração Pública), com a edição de

    normas concretas e individuais (sentenças). Essas normas concretas atendem ao requisito do

    Estado Democrático de Direito na medida em que asseguram aos litigantes atingidos pela

    decisão o direito constitucional de petição (acesso ao Poder Judiciário), o direito à ampla

    defesa (conforme os ditames constitucionais e processuais) e o direito ao contraditório.

    A sentença de mérito, no sistema constitucional democrático, somente será válida se

    permitir a participação das partes envolvidas no seu processo de produção e de

    fundamentação. Se, por um lado, autoriza-se a produção de leis gerais e abstratas que criam

    obrigações para toda a sociedade com a eleição de representantes ao Poder Legislativo

    (deputados e senadores), por outro, permite-se ao Poder Judiciário a aplicação das leis ao caso

    concreto com a condição de vasta participação no processo de elaboração das sentenças

    através da ampla defesa e do contraditório. Dessa forma, garante-se a democracia não só na

    produção de normas gerais e abstratas (leis em sentido amplo) como também na elaboração de

    normas individuais, aplicadas ao caso concreto.

    O Poder Judiciário é o pêndulo que regula a dosimetria entre o Direito (libertação) e o

    Poder (autoridade), ora revelando e efetivando direitos fundamentais (direitos coletivos) ou

    direitos subjetivos (direitos individuais), ora impondo e aplicando a sanção impositiva de uma

    ordem.

    Essa relação entre o direito e o poder é amplamente discutida por Norberto Bobbio

    (2008):

    Enquanto a doutrina do positivismo jurídico considera o direito do ponto de vista do

    poder, a doutrina do Estado de Direito considera o poder do ponto de vista do

    Direito. Aí se correspondem, conforme vimos, duas máximas fundamentais, que

    representam exemplarmente o dilema que se propagou por séculos nos cursos de

    filosofia jurídica e política: Auctoritas facit legem ou Lex facit regem? O contraste

    nasceu e se perpetuou por causa da perspectiva diferente em que os escritores

  • 24

    políticos, interessados de modo particular no problema do Direito, se colocam

    perante o problema do poder. Para os primeiros, o direito, sempre entendido como

    direito positivo, não pode deixar de lado o poder; para os segundos, o poder, sempre

    entendido como domínio ou senhorio (Herrschaft, segundo Max Weber), não pode

    deixar de lado o Direito. As duas perspectivas dependem do fato de que uns e outros

    tratam de responder a duas questões (essencialmente práticas) diferentes: os

    primeiros, à pergunta sobre a efetividade de um sistema normativo; os segundos, à

    pergunta acerca da legitimidade ou legalidade do poder supremo. A resposta à

    primeira pergunta serve para distinguir o direito positivo do direito natural e,

    enquanto tal, está na base de uma doutrina do direito, como é a doutrina do

    positivismo jurídico; a resposta à segunda permite distinguir o poder legítimo do

    poder de fato, e, como tal, fundamenta uma doutrina do poder político, como é a do

    Estado de direito.

    Os dois conceitos-limite, respectivamente do positivismo jurídico e da doutrina do

    Estado de direito, são a potestas suprema, ou soberania, e a norma fundamental.

    (BOBBIO, 2008, p.209-212).

    Para concretizar o princípio do Estado Democrático de Direito e corresponder ao

    sistema constitucional, a edição de normas individuais e concretas deve respeitar os

    parâmetros e os limites impostos pelas normas gerais e abstratas. Os Tribunais são os

    aplicadores do Direito e não a própria potestas suprema.

    Essa visão clássica imposta ao Poder Judiciário como aplicador do Direito nos limites

    extremos da legalidade foi transformada no Pós-Guerra, em face de demandas que

    transcenderam o direito individual. A visão liberal primaz no século XIX foi substituída pela

    visão social do Pós-Guerra, na metade do século XX. As lides centradas no direito de

    propriedade foram substituídas por lides centradas no direito difuso, porquanto o próprio

    conceito de propriedade transcendeu do direito civil (particular) para o direito público

    (social). A coletividade passou a exigir do Judiciário, através do direito à ação, agora coletivo,

    decisões que implicariam também mudanças sociais e do próprio sistema jurídico.

    Atrelado aos direitos humanos, o direito social transformou o clássico direito positivo

    centrado no direito individual subjetivo e na propriedade material privada. Essa transformação

    transcendeu o sistema jurídico e acometeu ao Poder Judiciário um novo comportamento. E, no

    Brasil, pela Constituição Federal de 1998, essa transformação ganhou proporção tamanha que

    o Poder Judiciário acabou por se tornar um superpoder, especialmente ao exercitar o controle

    de constitucionalidade.

    No controle de constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, o Supremo Tribunal

    Federal deveria se comportar e fundamentar sua decisão nos limites do sistema constitucional,

    porquanto a interpretação constitucional segue parâmetros lógicos e jurídicos atrelados ao

    próprio texto constitucional, espécie de moldura para o resultado da hermenêutica. Isso

    porque a arte ou a técnica de interpretar não é uma invenção abstrata ou um argumento de

  • 25

    autoridade ou a própria autoridade. A interpretação limita-se ao próprio texto, ou seja, parte-

    se do texto para definir os limites do próprio texto.

    O argumento de autoridade utilizado e popularizado na Idade Média não se coaduna

    com a democracia contemporânea e nem com o Estado Constitucional Moderno. O Supremo

    Tribunal Federal, ao ampliar o texto constitucional, transforma-se em poder e autoridade

    suprema sobre o sistema jurídico, ora substituindo a competência do Poder Legislativo, ora

    assumindo a postura do Poder Executivo: uma Corte Constitucional que passa a recriar o

    próprio texto constitucional, um verdadeiro poder autônomo.

    O pêndulo transforma-se em guilhotina, a competência em poder, os limites

    constitucionais em argumentos de autoridade. O Supremo Tribunal Federal no controle de

    constitucionalidade exerce-o ora como uma decisão política (Carl Schmitt), ora como uma

    decisão jurídica (Hans Kelsen).

    Importante, a esse respeito, a reflexão de José Rodrigo Rodriguez (2013):

    Na concepção ocidental do termo, estado de direito significa a imposição de limites

    ao poder soberano e ao poder privado. Ninguém pode agir licitamente sem

    fundamento em uma norma jurídica ou em uma norma social que autorize

    diretamente uma determinada conduta ou crie um espaço de autonomia dentro de

    limites impostos pelo direito de determinado ente soberano. Pode-se dizer que haja

    um estado de direito quando toda a ação possa ser justificada a partir de uma norma

    criada ou não pelo Estado e, neste último caso, reconhecida por ele. (RODRIGUEZ,

    2013, p.69).

    Para o autor, a expressão “zona de autarquia” significa espaço em que as decisões não

    estão fundadas em um padrão de racionalidade:

    Denomino zona de autarquia o espaço institucional em que as decisões não estão

    fundadas em um padrão de racionalidade qualquer, ou seja, em que as decisões são

    tomadas sem fundamentação. Uma observação importante: será rara a ocasião em

    que os organismos de poder afirmem simplesmente “Decido assim porque eu quero”

    ou ‘Decido desta forma porque é a melhor coisa a fazer”. É de se esperar esteja

    presente alguma forma de falsa fundamentação cujo objetivo seja conferir aparência

    racional a decisões puramente arbitrárias. (RODRIGUEZ, 2013, p.69).

    [...]

    Uma zona de autarquia, portanto, existe na ausência de fundamentação, ou seja, de

    uma justificação em que a autoridade levanta pretensões de validade fundada em

    normas jurídicas, as quais, quando necessário, podem ser sustentadas sem

    contradição. Não se pode sustentar racionalmente A e não A ao mesmo tempo; não

    se pode recusar, racionalmente, a justificar uma asserção proferida quando alguém

    se põe a questioná-la; também não se pode, racionalmente, desqualificar o

    interlocutor que demanda por minhas razões ou impedir que outro faça o mesmo,

    desde que cumpra os requisitos dos procedimentos que preveem oportunidades em

    que é possível falar diante de autoridade.

    A existência de zonas de autarquia no interior de uma ordem jurídica, cujo discurso

    de legitimação seja marcado pelo conceito de estado de direito, ajuda a evidenciar os

    setores, os espaços em que tal discurso funciona como instrumento de dominação.

    Sob a aparência de direito, portanto, podem ser tomadas decisões meramente

  • 26

    arbitrárias, ou seja, que não se pode reconstruir racionalmente. Cabe à pesquisa

    vigiar as autoridades para que isto não ocorra. (RODRIGUEZ, 2013, p.69 – grifo

    nosso).

    Na proposta desta pesquisa, o Supremo Tribunal Federal agiu como poder autárquico

    (autônomo), realizando e concretizando uma zona de autarquia, postura, aliás, que lhe tem

    sido recorrente, notadamente pelas inúmeras decisões autônomas por si adotadas, em

    destaque, para este trabalho, a atuação do Supremo Tribunal Federal como guardião da

    Constituição no julgamento da Lei da Ficha Limpa.

    Analisando, à luz da obra de Carla Faralli (2005), a atuação do Supremo Tribunal

    Federal como guardião da Constituição no caso da Lei da Ficha Limpa, percebe-se que a

    interpretação da Corte, face à crise do positivismo jurídico, estabeleceu-se na perspectiva

    ético-política, conforme afirma a autora:

    [...] a crise do positivismo jurídico levou à superação da rígida distinção entre direito

    e moral e à consequente abertura do debate filosófico-jurídico contemporâneo aos

    valores ético-políticos. Essa abertura teve vários resultados, dentre os quais os mais

    significativos parecem ser as chamadas teorias constitucionais ou

    neoconstitucionalistas e a nova teoria do direito natural. (FARALLI, 2005, p.11).

    Em outras palavras, no caso da Lei de Ficha Limpa, o Supremo Tribunal Federal

    julgou através de valores concebidos pela teoria de Carl Schmitt, ou seja, a entidade

    estabilizadora do Estado, dos valores éticos, e responsável pela segurança política. Essa

    conclusão analítica ganha reforço especial quando contrastada com o teor dos votos vencidos

    proferidos naquele julgamento, todos alinhados à teoria de Hans Kelsen e centrados na lógica

    jurídica, aprimorada, segundo Carla Faralli, no direito contemporâneo:

    a crise do positivismo jurídico formalista das últimas décadas não envolveu a

    abordagem analítica. Ao contrário, esta aprimorou seus próprios instrumentos lógicos

    e metodológicos e assim continuou a orientar numerosos estudiosos, que preservaram

    o interesse pelos estudos de lógica jurídica. (FARALLI, 2005, p.11).

    No julgamento da Lei da Ficha Limpa, pois, o Supremo Tribunal Federal apartou-se

    no sentido lógico-jurídico (votos vencidos), decidindo conforme valores éticos e políticos

    (voto do relator e votos vencedores), pelo que atuou como poder autônomo (em relação ao

    sistema jurídico), na medida em que não se vinculou ao texto constitucional, mas conduziu

    politicamente suas deliberações.

  • 27

    2.1 O controle de constitucionalidade na Lei da Ficha Limpa: interpretação ou

    invenção

    De onde as coisas têm seu nascimento, para lá também devem afundar-se na

    perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua

    injustiça, segundo a ordem do tempo. (Anaximandro de Mileto 546 a. C.).

    Para Celso Campilongo (2011):

    quando se diz que o sistema jurídico, como todos os demais, é cognitivamente

    aberto e estruturalmente acoplado a outros sistemas parciais, evidentemente não se

    exclui o sistema político desse circuito.

    [...]

    se a politização do Poder Judiciário for descrita como o resultado dessas aberturas e

    acoplamentos, os tribunais são, inegavelmente, políticos.

    [...]

    A lei é ferramenta do sistema jurídico, mas também, simultaneamente, instrumento

    para estratégias políticas, dado para o cálculo econômico e medida para a aferição da

    escolaridade. Entretanto, para o sistema jurídico, a lei é operacionalizada, descrita e

    aplicada de modo diverso daqueles dos demais sistemas. Para a democracia,

    identificar essas barreiras e estruturar a manutenção das diferenças entre os sistemas

    parciais – particularmente o direito e a política – é fundamental. (CAMPILONGO,

    2011, p.182).

    Esta tese, ao analisar o silogismo dos votos e o dispositivo da decisão, quer revelar o

    entulho que encobre a vontade política ou a afirmação de um poder, provar e demonstrar que

    a dogmática positivista e o sistema escalonado-formal de Hans Kelsen foram substituídos no

    sistema de controle de constitucionalidade pátrio por um sistema amórfico que tem como

    ápice valores éticos e políticos de caráter aberto, cristalizados em princípios igualmente

    esgarçados, que no caso brasileiro referendam-se, essencialmente, no princípio da dignidade

    da pessoa humana, transformado em premissa dispositiva ou pretexto de várias decisões

    judiciais.

    As interpretações recentes da Corte Suprema embasadas em premissas sociais,

    políticas e sentimentais comprometem o alicerce do sistema jurídico e da própria democracia,

    pois acarretam imprecisão jurídica e insegurança nas decisões. Os ministros transformaram-se

    em Oráculos de Delfos e passaram a decidir segundo a vontade dos deuses (direitos da

    dignidade da pessoa humana, imprensa, sociedade).

    A par da insegurança e imprecisão que disso decorrem, esse novo agir, essa forma

    inusitada de interpretação das normas jurídicas, representa também a desconstrução dos

    sólidos avanços conquistados pela ciência do direito.

    Quando designa a si própria como “pura”, a Teoria do Direito significa que se propõe

    a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito, excluindo de seu objeto tudo quanto

    não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isto quer dizer que ela pretende libertar a

  • 28

    ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio

    metodológico fundamental. (KELSEN, 2010, p.291).

    Hans Kelsen (2010) esclarece:

    A teoria pura do Direito limita-se a uma análise estrutural do Direito positivo,

    baseado em um estudo comparativo das ordens sociais que efetivamente existem e

    existiram historicamente sob o nome de Direito. Portanto, o problema da origem do

    Direito – o Direito em geral ou uma ordem jurídica particular – isto é, das causas da

    existência do Direito em geral ou de uma ordem jurídica particular, com seu

    conteúdo específico, ultrapassa o escopo desta teoria. São problemas da sociologia e

    da história e, como tais, exigem métodos totalmente diferentes dos de uma análise

    estrutural de ordens jurídicas dadas. (KELSEN, 2010, p.291).

    E completa:

    A “pureza” de uma teoria do Direito que se propõe uma análise estrutural de ordens

    jurídicas positivas consiste em nada mais que eliminar de sua esfera problemas que

    exijam métodos diferentes do que é adequado ao seu problema específico. O

    postulado da pureza é a exigência indispensável de evitar o sincretismo de métodos,

    um postulado que a jurisprudência tradicional não respeita ou não respeita

    suficientemente. (KELSEN, 2010, p.291).

    Em face dessa premissa, a atividade de interpretar está limitada ao texto ou à vontade

    do legislador. Para Norberto Bobbio (1999),

    O positivismo jurídico põe um limite intransponível à atividade interpretativa: a

    interpretação é geralmente textual e, em certas circunstâncias (quando ocorre

    integrar a lei), pode ser extratextual; mas nunca será antitextual, isto é, nunca se

    colocará contra a vontade que o legislador expressou na lei. (BOBBIO, 1999,

    p.214).

    Segundo Luís Sérgio Soares Mamari Filho (2005),

    é inquestionável que, sendo uma espécie do gênero “Lei”, merece a Constituição ser

    interpretada. Contudo, é igualmente indiscutível que a Constituição é dotada de

    algumas peculiaridades que devem ser consideradas quando da sua interpretação.

    (MAMARI FILHO, 2005, p.31).

    De acordo com o autor, “a interpretação da Constituição é orientada por um conjunto

    de métodos, ora desenvolvidos pela doutrina, ora pela jurisprudência, que embora baseados

    em premissas distintas, em sua maioria, são complementares.” (MAMARI FILHO, 2005,

    p.53). E, por fim, destaca:

    [...] o objetivo da interpretação é achar o resultado constitucionalmente correto

    através de um processo racional e controlável, e fundamentar esse resultado de modo

    igualmente racional e controlável, possibilitando a instauração de um clima de

    certeza e de previsibilidade jurídica, evitando a perpetuação de sistemas que

    consagram a “decisão pela decisão”. (MAMARI FILHO, 2005, p.60).

  • 29

    Importante, nesta mesma linha, a observação do jurista Karl Engisch (1996):

    Para impedir que esta ideia de “justiça pessoal” se não desvirtue bastará, num Estado

    de Direito, que exista uma ciência jurídica evoluída e existam funcionários e

    magistrados educados na imparcialidade, na objetividade e na incorruptabilidade. E

    não podem naturalmente esquecer-se todas as garantias contra o arbítrio assegurados

    pela obrigação de fundamentar objectivamente a decisão tomada, pela discussão nos

    órgãos colegiais e pela possibilidade de revisão da decisão na instância superior.

    (ENGISCH, 1996, p.255).

    Destarte, esta pesquisa parte da seguinte premissa: a decisão do Tribunal é uma

    compreensão e resulta da percepção imediata, que permitiu aos julgadores decidirem diante

    das possibilidades a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. Como protagonistas da

    interpretação, os ministros conduziram a decisão para a prática política e teceram

    fundamentações distantes do sistema formal jurídico, lançando o direito pátrio para uma

    nebulosa possibilidade e certa insegurança: o controle na decisão da Corte estabeleceu novos

    parâmetros não previstos no texto constitucional.

    O comportamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal ao fundamentarem suas

    decisões no sistema constitucional, mas superando as barreiras do sistema jurídico, provocou

    a ruptura da competência do pacto entre os poderes e, como esta tese pretende comprovar, a

    acessão de um poder autônomo, moderador ou promotor de regras assistemáticas e inovadoras

    à norma fundamental, ou a escolha de uma nova norma-origem6.

    Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em sua obra Introdução ao Estudo do Direito, adverte:

    [...] a opinião na doutrina dogmática é de que a norma jurídica é uma espécie de

    imperativo despsicologizado, isto é, um comando no qual não se identifica nem o

    comandante nem o comandado. A ideia, portanto, é que a figura do legislador ou do

    aplicador da norma desaparecem depois da norma posta, e ademais, os destinatários

    da norma também não são identificados, pois os comandos das normas são genéricos

    e universais. (FERRAZ JÚNIOR, 2013, p.91).

    Na decisão proferida no caso da Lei de Ficha Limpa, o Supremo Tribunal Federal, ao

    se distanciar da lógica para assumir o papel de poder moderador, relegando o julgamento a

    valores éticos e políticos subjetivamente cooptados pelo tribunal junto à opinião pública,

    distanciou-se dos elementares ensinamentos de Heidegger (2009):

    6 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júior (2013, p.98) “Quanto à subordinação, podemos distinguir entre normas-

    origem e normas derivadas. Normas-origem, por definição, são as primeiras de uma série. As demais normas da

    série, que remontam à norma-origem, são derivadas”.

  • 30

    Porque se fala contra a “lógica”, crê-se que se pretenda renunciar ao rigor do

    pensamento, para entronizar em seu lugar a arbitrariedade dos impulsos e

    sentimentos, e, assim, proclamar, como o verdadeiro, o “irracionalismo”. Pois o que

    é “mais lógico” do que isto: quem fala contra o lógico, defende o ilógico?

    (HEIDEGGER, 2009, p.44).

    Importante consignar que o questionamento acerca do atual papel do Supremo

    Tribunal Federal não representa, de forma alguma, sua negação, mas, pelo contrário, a

    compreensão do fenômeno jurídico contemporâneo e a proposta de aperfeiçoá-lo,

    aproximando-o das suas premissas fundantes, da segurança jurídica e da justiça. A esse

    respeito, oportuno invocar recente artigo escrito por Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

    Há alguns anos, um tema importante da literatura jurídica cuidava da teoria da

    interpretação. Hoje, a expressão quase se substitui pela teoria da argumentação

    jurídica. O STF (Supremo Tribunal Federal) ocupa as páginas dos jornais com

    decisões sobre temas candentes na sociedade, como união homoafetiva, ficha limpa,

    mensalão, correção monetária da poupança etc.

    Argumentos jurídicos são debatidos pela opinião pública, não apenas por

    profissionais do direito. A impressão é a de que mudou o significado e a importância

    do problema da aplicação do direito. A presença midiática da jurisdição

    constitucional dá visibilidade a isso.7

    Destacam-se também as lições de Eros Roberto Grau (2013), assinalando que “o

    intérprete está vinculado pela objetividade do Direito. Não a minha ou a sua justiça, porém o

    Direito. Não ao que grita a multidão enfurecida, porretes nas mãos, mas ao Direito”. O autor

    ainda ressalta:

    [...] apenas na afirmação da legalidade e do direito positivo a sociedade encontrará

    segurança, e os humildes, a proteção e a garantia de seus direitos no modo de

    produção social dominante. Repito-o: vamos à Faculdade de Direito aprender

    direito; justiça é com a religião, a filosofia, a história. (GRAU, 2013, p.20).

    A Corte Suprema, ao julgar a matéria supostamente embasada no sistema

    constitucional, comportou-se como um poder autônomo e político, envolvido com a massa e a

    opinião pública, transformando a arte hermenêutica em arte sem molduras.

    Sobre o ato de julgar, expõe Antoine Garapon (1997):

    [...] o acto de julgar aproxima-se assim do escrúpulo, definido por Ricoeur como

    “uma ritualização da vida moral ou uma moralização do rito [...]. A ritualização da

    ética é assim o corolário da sua heteronomia: a consciência escrupulosa quer ser

    exacta na sua dependência aceita. O escrúpulo é o novo nome do rito quando se

    aplica a uma consciência preocupada com a alteridade em relação a si mesma. O

    esforço de um bem julgar exige que o juiz se faça terceiro em relação a si mesmo. E

    que, para isso, tire proveito das mesmas instâncias que o construíram terceiro em

    relação aos demais, a começar pelo rito. Mas trata-se, como se antevê, de uma tarefa

    impossível, de um desprendimento que nunca consegue ser total. Ao fazê-lo, o juiz

    7 FOLHA DE S.PAULO. Tendências e Debates, p.A-3. Tércio Sampaio Ferraz Junior. Publicado em: 29 set.

    2014.

  • 31

    experimenta a divisão que é própria de toda a ideia democrática: necessidade de um

    terceiro, impossibilidade de um terceiro. O juiz só atingirá o estatuto de terceiro

    graças a uma ascese pessoal, a uma ética. (GARAPON, 1997, p.319).

    A ética ao julgar exige da magistratura uma justificativa jurídica extraída do sistema

    constitucional. Entretanto, a despeito da constitucionalização do direito pátrio, o Supremo

    Tribunal Federal passou a desempenhar um papel político movido pela mídia e pela massa.8

    O Supremo Tribunal Federal, seguindo a ânsia de destruição da massa, comportou-se

    como um poder autônomo, lançando-se para fora do sistema constitucional e do próprio texto,

    criando e não interpretando, legislando e não julgando. Um comportamento embasado na

    massa e no poder. (CANETTI, 1995, p.17).

    Para Eros Grau,

    [...] os juízes constitucionais têm lançado mão da técnica da ponderação entre

    princípios diante do que a doutrina qualifica como conflito entre direitos

    fundamentais, como no caso em tela. [...] como, porém, inexiste no sistema jurídico

    qualquer regra a orientá-lo sobre qual dos princípios, no conflito entre eles, deve ser

    privilegiado, essa técnica é praticada à margem do sistema de maneira subjetiva,

    discricionária e perigosa. (GRAU, 2013, p.117).

    Eros Grau (2013, p.121) argumenta ainda que “a submissão de todos nós a essa tirania

    é tanto mais grave quando se perceba a promiscuidade dos valores que, por força de

    ponderações que os revalorizam, ocorre no plano da aplicação do Direito.”

    8 Expressão pesquisada em Elias Canetti (Canetti, 1995, p.14-15), do seguinte fragmento: “Um fenômeno tão enigmático

    quanto universal pessoas se juntam – cinco ou doze, no máximo. Nada foi anunciado; nada aguardado. De repente, o local

    preteja de gente. As pessoas afluem, provindas de todos os lados, e é como se as ruas tivessem uma única direção. Muitos não

    sabem o que aconteceu e, se perguntados, nada têm a responder; no entanto, têm pressa de estar onde a maioria está. Em seu

    movimento, há uma determinação que difere inteiramente da expressão da curiosidade habitual. O movimento de uns – pode-

    se pensar – comunica-se aos outros; mas não é só isso: as pessoas têm uma meta. E ela é o ponto mais negro – o local onde a

    maioria encontra-se reunida. Haverá muito a dizer acerca dessa forma extrema da massa espontânea. No local onde ela surge,

    em seu verdadeiro cerne, ela não é tão espontânea quanto parece. No mais, porém – excetuando-se aquelas cinco, dez ou doze

    pessoas que lhe deram origem –, ela de fato o é. Tão logo adquire existência, seu desejo é consistir mais. A ânsia de crescer

    constitui a primeira e suprema qualidade da massa. Ela deseja abarcar todo aquele que esteja ao seu alcance. Quem quer que

    ostente a forma humana pode juntar-se a ela. A massa natural é a massa aberta: fronteira alguma impõe-se ao seu

    crescimento. Ela não reconhece casas, portas ou fechaduras, aqueles que se fecham a ela são-lhe suspeitos. A palavra aberta

    deve ser entendida aqui em todos os sentidos: tal massa o é em toda parte e em todas as direções. A massa aberta existe tão-

    somente enquanto cresce. Sua desintegração principia assim que ela para de crescer. Sim, pois tão subitamente quanto nasce

    a massa também se desintegra. Nessa sua forma espontânea, ela é uma construção delicada. Seu caráter aberto, que lhe

    possibilita o crescimento, representa-lhe também um perigo. A massa traz sempre vivo em si um pressentimento de

    desintegração que a ameaça e da qual busca escapar através do rápido crescimento. Enquanto pode, ela absorve tudo; uma

    vez, porém, que tudo absorve, tem ela também de, necessariamente, desintegrar-se. Em contraposição à massa aberta – que é

    capaz de crescer até o infinito, está em toda a parte e, por isso mesmo, reclama um interesse universal – tem-se a massa

    fechada. Esta renuncia ao crescimento, visando, sobretudo a durabilidade. O que nela salta aos olhos é, em primeiro lugar,

    sua fronteira. A massa fechada se fixa. Ela cria um lugar para si na medida em que se limita; o espaço que vai preencher foi-

    lhe destinado. Tal espaço