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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Comunicação Social Júnia Maria Pinto de Campos A ÉTICA DA MEDIAÇÃO EM MEMÓRIAS DA VILA: retrato e testemunho na representação dos moradores do Aglomerado da Serra Belo Horizonte 2018

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS … · Obrigada por sempre me mostrar o melhor caminho. Espero que essa parceria se fortaleça para além do mestrado! ... A dona

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Comunicação Social

Júnia Maria Pinto de Campos

A ÉTICA DA MEDIAÇÃO EM MEMÓRIAS DA VILA:

retrato e testemunho na representação dos moradores do Aglomerado da Serra

Belo Horizonte

2018

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Júnia Maria Pinto de Campos

A ÉTICA DA MEDIAÇÃO EM MEMÓRIAS DA VILA:

retrato e testemunho na representação dos moradores do Aglomerado da Serra

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação stricto sensu em Comunicação Social, da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

como requisito parcial para obtenção do título de

mestre em Comunicação

Orientador: Professor Dr. Marcio Serelle

Linha de pesquisa: Linguagem e Mediação

Sociotécnica

Belo Horizonte

2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Campos, Júnia Maria Pinto de

C198e A ética da mediação em memórias da vila: retrato e testemunho na

representação dos moradores do Aglomerado da Serra / Júnia Maria Pinto de

Campos. Belo Horizonte, 2018.

136 f.: il.

Orientador: Marcio de Vasconcelos Serelle

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

1. Memória coletiva. 2. Mediação. 3. Ética. 4. Outro (Filosofia). 5. Narrativa

(Retórica). I. Serelle, Marcio de Vasconcelos. II. Pontifícia Universidade Católica

de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. III.

Título.

CDU: 301

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Júnia Maria Pinto de Campos

A ÉTICA DA MEDIAÇÃO EM MEMÓRIAS DA VILA:

retrato e testemunho na representação dos moradores do Aglomerado da Serra

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação stricto sensu em Comunicação Social, da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,

como requisito parcial para obtenção do título de

mestre em Comunicação

Linha de pesquisa: Linguagem e Mediação

Sociotécnica

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Marcio de Vasconcelos Serelle − PUC Minas (Orientador)

____________________________________________________________________

Profª. Dra. Paula Guimarães Simões – UFMG (Banca Examinadora)

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Ercio do Carmo Sena Cardoso – PUC Minas (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 23 de fevereiro de 2018

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AGRADECIMENTOS

Gratidão é a palavra que define este momento. O mestrado para mim é um marco de

amadurecimento pessoal e acadêmico. Nesses dois anos aprendi que realmente é possível

superar os nossos limites quando há resiliência e fé. A jornada, apesar de densa e desafiadora,

me ensinou, dia a dia, que com planejamento e força de vontade vence-se qualquer luta!

Agradeço a Capes, pela oportunidade da bolsa de pesquisa. Sem ela essa fase

importante da minha vida acadêmica não teria sido concretizada. E à PUC Minas, excelente

universidade, da qual tenho orgulho de pertencer.

Ao Serelle, pela presteza, oportunidades e ensinamentos. Com a sua valiosa orientação

e conselhos tornei-me uma pessoa mais confiante e capaz. Obrigada por sempre me mostrar o

melhor caminho. Espero que essa parceria se fortaleça para além do mestrado!

Ao professor Ercio, que, desde a iniciação científica, me incentiva sempre à evolução

intelectual e acadêmica. Agradeço a você pela minha inserção nesse universo da pesquisa!

À professora Paula Simões, pelo aceite do convite para participar da minha banca de

qualificação, trazendo contribuições enriquecedoras para o meu trabalho.

Ao Grupo de Pesquisa Mídia e Narrativa, por todo o embasamento teórico adquirido.

Aos mestres, que me acompanharam desde o início dessa jornada, por me ajudarem a

tornar essa pesquisa possível de uma forma mais esclarecedora.

Ao Guilherme Cunha e à Joana Tavares por todo apoio, confiança e torcida para a

realização desse trabalho.

Ao pessoal do Aglomerado da Serra, em especial: Mariana, Edson, Kelly e Dona

Rosa, pela preciosa acolhida e disponibilidade no processo de elaboração da pesquisa.

À Dione, por todo apoio durante esses dois anos e por me fazer enxergar esta

dissertação com outros olhos, tornando o processo mais fácil e seguro.

À minha família e amigos, que abraçaram comigo esta trajetória e me apoiaram

sempre, entendendo o afastamento, a ausência e o estresse. O meu muito obrigada a todos:

amigos, irmãs, sobrinhos e sogros. À minha mãe, fonte de amor, que desde a minha aprovação

no processo seletivo não perdeu o brilho nos olhos, me inspirando sempre a continuar,

independentemente de qualquer situação. Ao meu pai, pelo apoio e preocupação de sempre

com a minha educação. À minha tia Lú pelo zelo. Ao Filipe, pelo carinho e apoio nesta fase

importante e por estar junto comigo nos momentos mais difíceis.

Por último, mas não menos importante, à Deus, meu principal mentor, que me guiou

até aqui da melhor forma possível!

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“Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Nossos

deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos nos faz evocar

lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual.”

(Ecléa Bosi)

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RESUMO

A pesquisa tem como objetivo estudar a obra Memórias da Vila (2016), de Guilherme Cunha

e Joana Tavares, por meio da análise de suas estratégias de linguagem e de sua inscrição na

cultura midiática contemporânea, com reflexão sobre como a narrativa, na articulação entre

retratos e relatos, medeia eticamente moradores do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.

O livro é tomado, nesta pesquisa, como um “dispositivo de visibilidade” (RANCIÈRE, 2008),

acerca da vida dos personagens, que busca valorizar suas histórias e denunciar a invisibilidade

social a que estão submetidos. A hipótese da pesquisa é a de que a mediação do Outro em

Memórias da Vila escapa e se contrapõe a formas estereotipadas como esse espaço e seus

moradores são comumente representados nas mídias dominantes. Analisam-se os elementos

de linguagem (fotografia e relato) constituintes da obra, com discussão sobre os riscos e

aporias inerentes às mediações e suas formas transformativas na representação dos sujeitos. A

identificação e o exame das questões éticas e estéticas envolvidas no processo de mediação da

obra é outro objetivo específico, no que se refere à representação e à relação estabelecida

entre o eu moral e o Outro marginalizado socialmente. Com base na pesquisa empírica e na

discussão teórica de referenciais transdisciplinares, foi possível perceber − a partir da análise

mais detalhada de um corpus composto de seis retratos e relatos −, que os elementos de

linguagem possuem a potência para propor um outro lugar a esses corpos marginalizados, que

tanto denuncia a violência simbólica a que são submetidos, como dignifica percursos de vida

desse Outro, que nos torna, assim, mais próximo.

Palavras-chave: Memórias da Vila. Mediação. Ética. Alteridade. Narrativas.

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ABSTRACT

The research aims to study the book Memórias da Vila (2016), by Guilherme Cunha and

Joana Tavares, through the analysis of its language strategies and its inscription on the

contemporary media culture, with reflection on how the narrative, in the articulation among

portraits and reports, mediates ethically residents of Aglomerado da Serra, in Belo Horizonte,

Minas Gerais, Brazil. The book is taken, in this research, as a "visibility device"

(RANCIÈRE, 2008), about the lives of the characters, who seek to value their stories and

denounce the social invisibility to which they are subjected. The research hypothesis is that

the mediation of the other in Memórias da Vila escapes and contrasts to stereotypical forms

such as that space and its inhabitants are commonly represented in the dominant media. The

elements of language (photography and reporting) are analyzed, with discussion of the risks

and aporias inherent in the mediations and their transforming forms in the subjects‟

representation. The identification and examination of the ethical and aesthetic questions

involved in the mediation process of the book is another specific objective, about the

representation and the relationship established between the moral self and the other socially

marginalized. Based on empirical research and the theoretical discussion of transdisciplinary

references, it was possible to perceive − from the more detailed analysis of a corpus

composed of six portraits and reports −, that the elements of language have the power to

propose another place to those marginalized bodies, which both denounce the symbolic

violence to which they are subjected, as dignifying the life paths of that other, which makes

us, thus, closer.

Keywords: Memórias da Vila. Mediation. Ethics. Otherness. Narratives.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Adelita Ferreira Neves .............................................................................................. 9

Figura 2 – Ailton Flávio de Souza ............................................................................................ 87

Figura 3 – Alda Lúcia da Silva Gonçalves ............................................................................... 90

Figura 4 – Anacleta Alvarenga ................................................................................................. 94

Figura 5 – José Pereira Cardoso ............................................................................................... 97

Figura 6 – José Timóteo Severino .......................................................................................... 100

Figura 7 – Vilma Maria de Jesus ............................................................................................ 104

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNDES Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social

CHISBEL Coordenação de Habitação de Interesse Social

CRAS Centros de Referência de Assistência Social

DBP Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares

EJA Educação de Jovens e Adultos

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ONG‟s Organizações Não Governamentais

PBH Prefeitura Municipal de Belo Horizonte

PRODECOM Programa de Desenvolvimento de Comunidades

PRO-FAVELA Programa Municipal de Regularização de Favelas

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UMEIS Unidades Municipais de Educação Infantil

URBEL Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

2 A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DO OUTRO: CONCEITOS E RISCOS DA

ALTERIDADE .................................................................................................................... 17 2.1 Sociedade e tecnologia: faces da mediação ..................................................................... 17 2.2 A ética na representação do Outro ................................................................................. 21

2.2.1 Realidades reivindicantes: possibilidades e desafios ..................................................... 25 2.3 Representações, esquemas e estereótipos na comunicação ........................................... 28 2.4 O Dispositivo de visibilidade como forma de desafiar a alteridade ............................. 34

3 RETRATO E TESTEMUNHO: ELEMENTOS DO DISPOSITIVO ............................ 38

3.1 Fotografia: aspectos históricos de um projeto moderno ............................................... 39 3.1.1 O retrato como gênero de figuração visual ................................................................... 46

3.2 O testemunho na representação do Outro: evolução histórica e usos ......................... 51 3.2.1 Memória e construção de narrativas ............................................................................. 58 3.2.1.1 A memória nos velhos ................................................................................................ 60 3.2.1.2 Narrativas dos que não escrevem: dilemas éticos e políticos .................................. 62

4 MEMÓRIAS DA VILA: ABORDAGENS ANALÍTICAS ................................................ 66

4.1 Aglomerado da Serra: breve contextualização de um “espaço de resistência” .......... 66 4.2 Um lugar midiaticamente estigmatizado ........................................................................ 71 4.3 Considerações e desafios metodológicos ......................................................................... 77

4.4 Fotografia e testemunho em articulação no dispositivo ................................................ 85 4.4.1 Alinhavando retratos e relatos ..................................................................................... 106

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 115

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 121

ANEXOS ............................................................................................................................... 127

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1 INTRODUÇÃO

Figura 1 – Adelita Ferreira Neves

Fonte: (CUNHA; TAVARES, 2016)

Nasci na Bahia, perto de Porto Seguro. Meus pais foram para Almenara quando eu

era pequenininha. Lá a gente trabalhava era pros outros. Tinha lá esse rapaz que

casei com ele, moramos em Valadares cinco anos. Tivemos duas meninas. Elas eram

pequenininhas, foram crescendo. Quando vim lá de baixo pra morar aqui, um

homem sozinho e Deus fez essa casa aqui pra mim. Ele até já morreu. Nem porta

tinha a casa. A dona ali de cima arrumou luz pra mim, água, até que eu me

arrumasse. E meu neto pequeninho. Nem homem não tinha nem nada. Quem olha lá

mais é Deus.

Meu esposo não tava morando comigo não. Ele botou outra mulher. Primeiro ele

entrava em minha casa. E eu ficava vendo eles lá. E eu sozinha. Meu neto menino

tinha um mês de nascido. Quando minha filha acabou o resguardo, fomos pra Bahia

passear. Falei: minha filha, lá em Belo Horizonte tudo é mais fácil pra mim, pra

zelar dele. Porque até vocês arranjar serviço aqui é mais difícil. [...]

Minha casa era de madeira. Ali embaixo era de madeira. E botava os trem tudo

enfiado assim. Depois Deus me ajudou que ganhei a porta, janela eu não ganhei.

Ganhei telhado. Essas telhas tudo fui eu que ganhei. E fui ficando aqui. [...]

Passei cada coisa quando eu era mocinha e morava com meus pais no interior...

Posso nem alembrar o que nós passou na vida. Pegava aquele cacho de banana,

verdinha, fininha, chega a estar com aqueles trem preto por dentro, pegava, punha

sal e comia. Tinha vez que tinha gordura, tinha vez que nem gordura não tinha. Nós

comia. Feijão, nós botava no fogo, aquele tiquinzinho no fogo. Nós deixava aqueles

carocinho de feijão cozinhar dentro da água pra de tarde. O caldo que tingia que tava

cozinhando o feijão nós fazia pirão e comia com pimenta, sem gordura sem nada.

Nós passou tanta necessidade, tanta fome na roça. Nós botava pra cozinhar aquela

mandioca dessa finurinha assim. Nem criava direito. Dava aquelas raizinha nós já

tirava e cozinhava. Massava assim e fazia um trem pra comer. Não sei como tenho

força hoje. Tô com 72 anos e ainda tenho força. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 26-

27).

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A foto acima e o relato da personagem retratada integram o livro Memórias da Vila,

objeto empírico desta pesquisa. A personagem representada é Adelita Ferreira Neves,

moradora do Aglomerado da Serra desde 1964. Em seu relato, ela destaca sua história de vida

desde a chegada à Comunidade, bem como as dificuldades superadas no processo de

ocupação. Seu retrato foi produzido pelo fotógrafo Guilherme Cunha e o relato, narrado em

primeira pessoa, gravado e transcrito pela jornalista Joana Tavares.

O fotógrafo e artista visual Guilherme Cunha é natural de Belo Horizonte, graduado

em artes plásticas e pesquisador independente. Seus trabalhos transitam na área das artes

visuais, aliadas às ciências humanas e filosofia, e se desdobram, principalmente, sobre a

temática da poética da vida humana. A jornalista Joana Tavares é editora do jornal Brasil de

Fato, de circulação em Minas Gerais, e colaborou diretamente com sua participação no

projeto idealizado pelo fotógrafo, principalmente na fase das entrevistas com os moradores do

Aglomerado da Serra.

De acordo com Cunha, o projeto tem o objetivo de “contribuir para a ampliação dos

espaços de divulgação e preservação das identidades e valores culturais dos moradores da

Comunidade da Serra.” (CUNHA, 2016, p. 11). Um dos seus desafios é, segundo ele, o de

produzir imagens que enalteçam o outro sem reificá-lo, isto é, evitar o “deleite estético” e que,

na interação com o livro, “se consuma a pobreza pelo distanciamento que a fotografia

permite”.1 Em vista disso, por meio da construção da memória visual e oral dos moradores da

Serra, sobretudo os idosos, buscou-se dignificar a história de vida de cada um deles.

Essa publicação se propõe, portanto, a promover encontros e o contato entre as

múltiplas sensibilidades, aproximar realidades, multiplicar as trocas de

conhecimento e alertar para a urgência de se trabalhar o entendimento sobre nossas

identidades coletivas de forma menos unilateral e tendenciosa. É uma obra que ativa,

dessa forma, um campo de permuta e intercâmbio entre vozes e olhares, memórias e

vidas. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 15).

Inspirado nessa ação poética e ao mesmo tempo política, o projeto da obra Memórias

da Vila teve início em 2010 e foi lançado em 2016, com recursos da Lei Municipal de

Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. O livro reúne mais de oitenta fotografias de habitantes

do Aglomerado, aliadas a vinte e dois relatos de vidas, narrados em primeira pessoa, na

proposta de retratar o olhar do Outro sobre ele mesmo e fotografar seus rostos como história.

O Aglomerado da Serra é o maior conjunto de favelas de Minas Gerais, localizado na

região Centro Sul de Belo Horizonte. Com aproximadamente 46 mil habitantes − de acordo

1 Entrevista realizada pelo Centro de Crítica da Mídia da PUC Minas em 20 ago. 2016.

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com o último Censo Demográfico do IBGE de 2010 (INSTITUTO BRASILEIRO DE

GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010) − se divide em oito vilas: Nossa Senhora da

Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Novo

São Lucas, Fazendinha, Chácara e Marçola. Além disso, o conjunto de favelas da Serra é um

marco para a história da capital mineira, devido ao período de sua formação – década de 20.

Usualmente, a realidade do Aglomerado da Serra é representada pela mídia dominante

de forma cristalizada, destacando, majoritariamente, o lado da violência e do tráfico de

drogas.2 Em meio a um ambiente onde ocorrem frequentemente protestos pela paz e onde o

descaso e o abandono fazem parte do dia a dia, o cotidiano e a história dos moradores nem

sempre são narrados ao público, o que torna o lugar e os seus habitantes socialmente

marginalizados. Memórias da Vila têm, portanto, a reivindicação da expansão e visibilidade

da imagem do Outro da favela, numa tentativa de romper as “membranas culturais” que

segregam a sociedade.

Em 2014, antes do lançamento da obra Memórias da Vila, alguns retratos dos

moradores da Comunidade da Serra foram expostos em espaços públicos de Belo Horizonte,

como, por exemplo, estações de metrô. Dessa forma, a produção fotográfica de Guilherme

Cunha ganhou visibilidade, ao mesmo tempo em que tornou visível um espaço incomum de

ser representado, que são a memória e a realidade da favela. Essa iniciativa foi um plano

piloto na realização da sua obra, que, devido à boa repercussão na cidade, foi concretizada,

dois anos depois, em forma de livro.

Diante dessa proposta de representação do Outro na busca por uma forma de mediação

que escape à lógica e estereótipos de representação da mídia dominante, surge a iniciativa

desta pesquisa. O objetivo maior que norteou o trabalho foi estudar, por meio da análise de

suas estratégias de linguagem e de sua inscrição na cultura midiática contemporânea, a obra

Memórias da Vila, com reflexão sobre como a narrativa, na articulação entre fotografia e

testemunho, medeia eticamente moradores do Aglomerado da Serra, em um dispositivo

sensível que, ao mesmo tempo, valoriza a memória dos personagens e denuncia a

invisibilidade social desses indivíduos. Para isso, foi necessário identificar e analisar questões

éticas e estéticas − aporias e riscos −, envolvidos no processo de mediação, considerando a

obra como um “dispositivo de visibilidade” (RANCIÈRE, 2012) que inscreve uma proposta

2 Foi realizada uma busca online de notícias que se referem ao Aglomerado da Serra, em três portais de notícias:

Estado de Minas, O Tempo/Super e Hoje em Dia. Por meio da filtragem de matérias pela busca “Aglomerado

da Serra” foi coletado um corpus de matérias, publicadas entre o período de 1º de agosto de 2017 a 1º de

outubro de 2017. Os temas das notícias, bem como a proporção da representação pejorativa da favela, serão

mais bem detalhados no capítulo metodológico desta dissertação.

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particular de narrativa. Além disso, foi imprescindível, para esse fim, historicizar e

contextualizar as representações sedimentadas midiaticamente acerca do espaço e indivíduos

do Aglomerado da Serra, como reflexão sobre o modo como Memórias da Vila busca

contribuir para o deslocamento do olhar e dos estereótipos.

Considerando a forma de atuação da mídia hegemônica, que, em grande parte, opera

de acordo com uma “racionalidade indolente” (SANTOS, 2007), na medida em que propõe

uma realidade totalizante e redutora, que acaba por apagar muitas realidades possíveis da vida

comum, é identificado um problema de comunicação e a necessidade de indagá-lo. É nesse

sentido que Memórias da Vila busca desafiar e tornar visíveis experiências e memórias, que

ao mesmo tempo testemunham e tornam presentes realidades produzidas como ausentes; com

uma narrativa ressignificadora, que se opõe às monolíticas, carregadas de interesses de classes

dominantes.

Nesse contexto, e por meio do olhar de Memórias da Vila, nos cabe refletir e

fundamentar como se dá a articulação de elementos visuais e textuais no dispositivo e de que

forma ela regula a representação dos sujeitos? Como os relatos em primeira pessoa atuam na

construção e mediação da experiência, com efeitos de veracidade? Que questões morais

emergem dessa aproximação com o Outro? Como a narrativa de Memórias da Vila medeia

eticamente, em um dispositivo sensível, pessoas excluídas e invisíveis, diante das

contradições éticas e aporias emergentes nessa relação?

Estudar a narrativa de uma obra requer cuidado e atenção. Em se tratando de um

trabalho de caráter testemunhal, presumimos que é ainda mais delicado, uma vez que envolve

aspectos éticos da interação com o Outro. A reflexão sobre o limite das palavras e os riscos da

fotografia como ponto central deste projeto nos faz pensar eticamente sobre as representações

de modo sensível e ao mesmo tempo prático. Nessa dualidade de olhares, o espectador se

depara com um encontro entre uma consciência social e um conceito estético que necessita ser

questionado e examinado.

Pretende-se, com esta pesquisa, contribuir para o desenvolvimento de metodologias

para a análise de textos midiáticos híbridos e experimentais, que articulam fotografia e relato

como formas de representação, uma vez que, segundo Bleiker (2015, p.105) o universo das

práticas visuais é tão complexo e fugaz que não existe um método de analisá-las que nos

forneça conhecimentos autênticos sobre como elas funcionam.

Tendo em vista essa perspectiva comunicacional e seus desafios, o percurso desta

pesquisa foi organizado em cinco capítulos, sendo o primeiro deles esta introdução. O

segundo capítulo do trabalho recupera teoricamente, em autores como Silverstone (2002a),

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conceitos sobre a mediação e suas interfaces tecnológica e social na comunicação, bem como

os desafios e cuidados no estudo desse processo. O autor elucida a ação mediadora como

transformativa, dialética e desigual, trazendo a reflexão sobre seus riscos na representação

midiática do Outro. Em Martín-Barbero (1997), foi possível complementar o pensamento de

Silverstone, no que se diz respeito aos usos e apropriações da mídia pelos receptores,

considerando-os como produtores de significados. A ética no processo representativo foi

teorizada, principalmente, a partir de Lévinas (1980), através do estudo sobre a radicalidade

do Outro e da relação com ele, além da necessidade de assumir os riscos e responsabilidades

morais dessa relação. Em Hall (2016), foram abordados os significados gerados pelo termo

representação e seus desdobramentos na cultura comunicacional, tais como: os estereótipos

redutores e as formas de assimilacionismo ou aniquilamento da alteridade. Dando sequência a

esse caminho teórico, Boaventura de Sousa Santos (2007) nos convoca a refletir sobre

possibilidades e aberturas para enfrentar o apagamento das experiências sociais. A partir dessa

perspectiva social foi possível entender os riscos e aporias existentes na ação de narrar o

Outro e a importância do dispositivo de visibilidade no processo de desafiar a alteridade,

lembrando sempre da necessidade do reconhecimento da incompletude da mediação e do

estabelecimento de uma relação crítica com a mídia.

No terceiro capítulo desta pesquisa o foco principal foi dado aos elementos

constituintes do dispositivo de visibilidade − a fotografia e o testemunho −, submetidos a um

arranjo que reivindica determinada atenção. Na abordagem histórica da fotografia,

recuperada, principalmente, a partir de Rouillè (2009), foi possível conhecer suas fases de

evolução nas sociedades, bem como o retrato como conquista à representação por parte da

classe trabalhadora. Além disso, o autor contribuiu para entender os desafios advindos da

modernidade fotográfica, com as novas ferramentas, técnicas e protocolos para a

representação de uma imagem. O princípio democrático da fotografia também ganhou

destaque, devido às novas oportunidades de visibilidade dos sujeitos. A partir do projeto

moderno da fotografia, em Sontag (2008), foi possível recuperar também o valor do retrato

como gênero de figuração visual na mediação de sujeitos excluídos. Por fim, a partir da

abordagem trazida por Fabris (2004), a leitura crítica do processo de representação do

indivíduo por meio do retrato foi viabilizada, bem como o entendimento da sua importância

na construção social da alteridade.

Na abordagem sobre o testemunho como artifício na mediação, foram apontados seus

desafios e lacunas nesse processo. Agamben (2008) foi significativo para o delineamento do

significado etimológico do termo − trazendo-o para o contexto de situações-limite como no

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caso do holocausto nazista −, bem como para o entendimento do testemunho enquanto

potência. Seligmann-Silva (2005) ampliou essa conceituação e caracterização do testemunho,

recuperando-o no contexto da América Latina, por meio de um viés de um gesto político. Em

Sarlo (2007), foi possível visualizar o processo de valorização do testemunho − com o

movimento de conquista da palavra −, e também os desafios da sua veracidade, relacionada às

experiências vividas por sujeitos invisibilizados.

A partir da recuperação de características da autobiografia como gênero da literatura

de testemunho, em Lejeune (2008), foi elucidado o estabelecimento de um contrato de leitura

entre autor e leitor. Além disso, o autor recupera aspectos importantes relacionados às

narrativas dos que não escrevem, devido à destituição do poder de sua autoria, que é dado à

minoria.

Sobre a abordagem do testemunho como narrativa mnemônica, retomamos,

principalmente, Bosi (1987), que discorre sobre a importância dos velhos no processo de

narração de experiências. A autora posiciona a velhice como categoria social nesse processo

de mediação e de restauração de estereótipos, apesar de toda a luta dessa classe etária pelo

direito de representatividade na sociedade capitalista.

O quarto capítulo deste trabalho foi dividido em quatro partes. A primeira delas foi

elaborada com o objetivo de apresentar uma contextualização do Aglomerado da Serra,

destacando as características que configuram esse lugar como um espaço de resistência. Isso

foi possível com o auxílio de dados coletados nas entrevistas realizadas para esta pesquisa,

com representantes locais da comunidade e com os próprios autores do projeto Memórias da

Vila, e também com a ajuda bibliográfica de outros pesquisadores que já realizaram estudos

na comunidade. Esse tópico descreve a história do local, bem como o processo de constituição

da favela, em seus âmbitos sociais e políticos. Por meio desse diálogo, o espaço sociocultural

representado se tornou mais palpável, auxiliando o processo de análise da narrativa da obra.

A segunda parte do capítulo teve como principal foco a abordagem do Aglomerado da

Serra como um espaço midiaticamente estigmatizado, o que foi corroborado com a busca

online de matérias sobre o local em alguns portais de notícias. Por meio da sistematização das

manchetes, a lógica de atuação dominante das narrativas midiáticas foi elucidada, bem como a

necessidade de reverter essa realidade. Através dessa ação de narrar o Outro, se tornou notória

a relação existente entre a noção de estereótipo e a ideia de estigma, sendo esta última

apresentada a partir de Soares (2009). Neste tópico, o entendimento dos esquemas

estratégicos de representação, arquitetados por meio de determinado dispositivo de

visibilidade, foi, portanto, nos dado à reflexão.

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Por isso, na terceira parte desse capítulo, foram apresentadas as considerações

metodológicas empreendidas para a realização da leitura narrativa do dispositivo em questão,

adequadas ao seu formato imagético e textual. O mecanismo da conotação, segundo Barthes

(1990), tornou-se peça chave para decifrar os sentidos gerados pela narrativa fotográfica, na

medida em que traz explicações capazes de transcender a forma denotativa de interpretação

do conteúdo representado. Já a leitura testemunhal foi realizada principalmente sob a ótica da

transcrição, abordada em Lejeune (2008), segundo critérios de adaptação narrativa,

elaborados pela mediadora. Assim sendo, para a análise das estratégias de linguagem − tanto

nos retratos quantos nos relatos −, tornou-se necessária a definição de algumas categorias

analíticas para facilitar o trabalho de investigação e para a identificação de possíveis

recorrências e particularidades das histórias dos moradores e restauração de estereótipos

existentes no discurso narrativo.

Por fim, a quarta parte do terceiro capítulo apresenta um estudo analítico e

interpretativo dos elementos que compõem o dispositivo de visibilidade de Memórias da Vila,

sendo estabelecido um corpus de seis retratos e seis relatos para essa análise. Após esse

exercício, foi apresentada uma interpretação baseada em três eixos globais da pesquisa,

definidos para alinhavar a construção narrativa do objeto, a saber: a articulação entre os dois

elementos do dispositivo – retrato e relato; os desafios e dificuldades que emergem na relação

ética com o Outro; e, por último, os modos em que os retratos e os relatos escapam aos

estereótipos que circulam nas mídias dominantes. Dada a questão central desta pesquisa,

acerca da ética das representações, torna-se imprescindível considerar os retratos e os relatos

numa dimensão macro, que diz respeito ao entrelaçamento desses elementos “com numerosos

fatores materiais, culturais, simbólicos e outros fatores, incluindo ambientes de mídia e, em

sentido geral, todo o contexto sociopolítico em que as imagens ganham significado.”

(BLEIKER, 2015, p. 106). Dessa forma, foi possível compreender as condições de produção

do livro como dispositivo de visibilidade e mediação.

O quinto e último capítulo desta dissertação traz as considerações finais da pesquisa,

tendo em vista o amadurecimento obtido após a análise dos elementos narrativos. Sem a

intenção de esgotar a discussão, esse capítulo propõe amarrar os conceitos teóricos chaves do

estudo, dialogando-os com os principais achados no processo empírico. Sendo a mediação

ética a lente que norteia e torna compreensível o modo de representação do Outro em

Memórias da Vila, a alteridade, apesar das aporias e contradições intrínsecas, foi

compreendida e explorada nesse dispositivo.

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Dessa forma, acredita-se que esse trabalho contribuiu significativamente para a

construção da crítica da mediação, conforme proposto por Serelle (2016, p. 89) a partir de

Silverstone (2002a), quando diz que é necessário pensar sempre as relações e as lacunas

existentes entre o vivido e o representado. Pois, embora seja necessária, a mediação é, de

maneira inevitável, incompleta.

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2 A REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DO OUTRO: CONCEITOS E RISCOS DA

ALTERIDADE

2.1 Sociedade e tecnologia: faces da mediação

A cultura midiática é marcada por representações que fornecem recursos para que os

sujeitos lidem com a complexidade do cotidiano. O conceito de mediação em Silverstone

(2002b) refere-se a um processo de circulação de significados que é tanto tecnológico como

social. Ele é tecnológico por que depende, em grande parte, em uma sociedade em vias de

midiatização (BRAGA, 2006), dos meios técnicos de comunicação; é social porque esses

significados produzidos midiaticamente se desdobram e reverberam no cotidiano, entre textos,

discursos e eventos. Por isso, Silverstone defende que “[...] nenhuma ética do e a partir do

cotidiano é concebível sem comunicação, e que toda comunicação envolve mediação,

mediação como um processo transformativo em que a significação e o valor das coisas são

construídos.” (SILVERSTONE, 2002b, p. 76, tradução nossa).3 A mediação consiste,

portanto, na constante transformação de significados na medida em que esses são produzidos

e colocados em circulação.

A mediação implica o movimento de significado de um texto para outro, de um

discurso para outro, de um evento para outro. Implica a constante transformação de

significados, em grande e pequena escala, importante e desimportante, à medida que

textos da mídia e textos sobre a mídia circulam em forma escrita, oral e audiovisual,

e à medida que nós, individual e coletivamente, direta ou indiretamente,

colaboramos para sua produção. (SILVERSTONE, 2002a, p. 33).

Dessa forma, as mediações são lugares onde é possível compreender a interação entre

o espaço da produção e da recepção. A partir disso é possível perceber a ruptura com a

centralidade da comunicação. França chama a atenção para o fator social dos sujeitos

receptores, e ainda os denomina de “sujeito no mundo”, uma vez que “[...] os sujeitos são

vistos enquanto classe (classes dominantes, classes populares), são marcados por variáveis

socioeconômicas como renda, escolaridade, gênero, faixa etária, religião, tipo de ocupação,

etc.” (FRANÇA, 2006, p. 7). Dessa forma, é necessário considerar o lugar social dos sujeitos

que estão expostos a qualquer tipo de mediação, visto que possuem diferentes experiências.

A abordagem de Martín-Barbero (1997) e Silverstone (2002a) vai ao encontro de

França (2006), na medida em que consideram também o fator social no processo de mediação,

3 No original: “[…] no ethics of, and from, the everyday is conceivable without communication, and that all

communication involves mediation, mediation as a transformative process in which the meaningfulness and

value of things are constructed.”

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embora apareçam algumas aproximações e distanciamentos sobre o tema. A teorização de

Martín-Barbero (1997) com relação ao conceito de mediação baseia-se nas relações entre

comunicação, política e cultura. O autor não expõe explicitamente o conceito de mediação,

mas nos leva a compreendê-lo no âmbito da cotidianidade familiar, da temporalidade social e

da competência cultural. Ele busca priorizar o receptor como produtor de significados,

levando em consideração os estudos na área de recepção de textos.

[...] em vez de fazer a pesquisa a partir da análise das lógicas de produção e

recepção, para depois procurar suas relações de imbricação ou enfrentamento,

propomos partir das mediações, isto é, dos lugares dos quais provém as construções

que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da

televisão. (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 304).

De acordo com o autor, embora os indivíduos cristalizem e materializem os processos

comunicativos, esses não se encerram nos indivíduos. Há nesse processo a difusão de uma

série de valores compartilhados por diversos grupos sociais. Assim, busca-se transgredir da

pergunta “o que os meios fazem com as pessoas” para “o que as pessoas fazem com os

meios”, uma vez que a mediação proposta por Martín-Barbero considera, sobretudo, os usos e

as apropriações dos receptores com a mídia, ou seja, as relações sociais existentes entre os

processos de produção e recepção.

A abordagem de Martín-Barbero sobre a mediação se aproxima de Silverstone

(2002a), na medida em que este considera a mediação como dialética, ou seja, entende o lugar

privilegiado dos meios de comunicação de massa na criação de sentidos, mas considera

também o comprometimento dos espectadores. Porém, para ele, essa relação de recepção é

desigual, uma vez que o poder de luta contra os significados dominantes consagrados pela

mídia também é desigual.

Silverstone também considera o fator social como determinante na abordagem sobre

mediação, uma vez que ela é penetrante na medida em que os atores sociais se tornam

dependentes da oferta social de significados para criarem suas próprias leituras de mundo. Ele

compreende que nem a mídia, nem a vida cotidiana, podem ser compreendidas de maneira

separada. Apesar disso, Silverstone reconhece o problema dos meios e acredita que os

espectadores são cúmplices dos seus significados, uma vez que, na maioria das vezes, eles não

buscam questionar as falhas envolvidas no processo, decaindo numa espécie de conluio com

as distorções midiáticas − sejam elas por motivo da própria tecnologia ou intencionalmente.

Com relação a esse combate por parte dos espectadores, Martín-Barbero parece mais otimista

do que Silverstone, por não promover uma discussão maior sobre a crítica da mídia no que

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tange as falhas do processo de mediação e as limitações dos receptores. Silverstone, por outro

lado, acredita que nem todas as sociedades tem o mesmo poder de questionar essa mediação e,

portanto, acabam se tornando cúmplices dela.

Silverstone (2002a), em sua obra Por que estudar a mídia?, aponta os desafios e

cuidados no estudo da mediação, principalmente no que se diz respeito ao envolvimento dos

produtores e consumidores de mídia. Para o autor, o estudo das mídias é um risco e apresenta

dificuldades tanto epistemológicas quanto éticas, pois, ao mesmo tempo em que envolve a

compreensão dos processos significativos da mediação, exige a elaboração de juízos de

valores sobre o exercício do poder nos processos mediadores.

A problematização do autor é desenvolvida em torno da inclusividade midiática na

vida dos sujeitos, principalmente na busca pela compreensão de mundo que fazemos por meio

da influência da mídia, ou seja, um mundo constantemente mediado. Entretanto, ao mesmo

tempo em que temos a mídia como referência para a nossa formação de mundo, usamos os

próprios significados que vêm dela para evitar e distanciar do mundo, do reconhecimento das

diferenças.

Essa inclusividade na mídia, nossa forçada participação com ela, é duplamente

problemática. É difícil desvendar, encontrar uma origem, construir uma explicação

do poder da mídia, por exemplo. É difícil, provavelmente impossível, para nós,

analistas, sair da cultura da mídia, da cultura de nossa mídia. Com efeito, nossos

próprios textos, como analistas, são parte do processo de mediação. Aqui, somos

como linguistas tentando analisar sua própria língua. De dentro, mas também de

fora. (SILVERSTONE, 2002a, p. 34).

Considerando a nossa inscrição na cultura midiática mediada torna-se um desafio

estudar a mídia. Estudá-la implica questioná-la, desafiá-la, fazer uma análise tanto de dentro,

quanto de fora. Por mais que se tente sair da mediação para fazer uma crítica da mídia, não é

possível, uma vez que estamos a todos os momentos rodeados por ela.

Silverstone compara o processo de mediação ao processo de tradução, para elucidar o

seu caráter transformativo e incompleto. Para Steiner citado por Silverstone, a tradução é “um

processo quádruplo de confiança, agressão, apropriação e restituição.” (STEINER, 1975 apud

SILVERSTONE, 2002a). A confiança se refere ao valor que se dá ao texto que será traduzido

e ao significado apreendido, para, posteriormente, no ato da tradução, ser comunicado a outras

pessoas. A agressão está ligada à forma de recepção do texto traduzido, na qual está sujeita a

várias interpretações. O receptor, ao tomar posse dos significados, acaba sendo “violento”, na

medida em que compreende o texto à sua maneira, com influências midiáticas. A apropriação

se refere à consumação dos significados do texto e a sua personificação, para dar sentido à

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tradução. O último movimento que completa esse processo de mediação da tradução é a

restituição, no qual sinaliza uma reavaliação, a devolução de significados ao texto, por parte

do tradutor. Essa reavaliação está sujeita a acréscimos e a consequente possível mudança de

significado do texto original. Afinal, “[...] nenhuma tradução, como diz Jorge Luis Borges em

Pierre Menard, pode ser perfeita, nem mesmo em sua perfeição. Nenhuma tradução. E

nenhuma mediação.” (SILVERSTONE, 2002a, p. 36).

Para Silverstone, em apoio às ideias de Steiner, a tradução é um processo ético e

estético ao mesmo tempo, o que demonstra mais uma semelhança ao conceito de mediação,

uma vez que “é um movimento que inclui tanto significado como valor.”. (SILVERSTONE,

2002a, p. 36). A tradução, assim como os processos de mediação, implica a transição entre

passado e presente, o que resulta na modificação das formas e possibilidades de representação

do original.

Em meio a tantas semelhanças, Silverstone destaca alguns pontos de diferença

existentes entre os processos de tradução e mediação. A primeira, por exemplo, fica limitada

ao seu texto original, sempre na tentativa de reproduzi-lo da forma mais fiel possível. Já a

mediação é infinita, pois envolve não só o desenredamento textual das palavras, mas também

os atos e experiências dos sujeitos e relações com a mídia. “O mediador não está

necessariamente ligado a seu texto, nem a seu objeto, por amor, embora possa estar em casos

particulares. A fidelidade à imagem ou ao evento não é de modo algum tão forte quanto é, ou

foi um dia, à palavra.” (SILVERSTONE, 2002a, p. 37). A mediação é, portanto, mais

horizontalizada, pois rompe com os limites impostos pelo textual, oferecendo descrições da

realidade.

Apesar da tentativa de se fazer uma tradução de “boa fé”, sem deturpações e

sensacionalismos, a transformação é sempre presente, o que faz da tradução, assim como a

mediação, um processo incompleto, tanto na sua produção, como na sua recepção.

[...] no momento em que os significados emergentes cruzam a soleira entre o

mundo das vidas mediadas e o da mídia viva, no momento em que as agendas

mudam e em que a televisão, neste caso, impõe suas próprias formas de trabalho,

uma nova realidade, mediada, ergue-se do mar, rompendo a superfície de um

conjunto de experiências e oferecendo, afirmando outras. (SILVERSTONE,

2002a, p. 40).

Portanto, já que todos nós somos mediadores, para Silverstone (2002a) é necessário

entender esses limites na alegação da autenticidade por parte dos produtos midiáticos e

perceber como a confiança é necessária nas representações da mídia. Como por exemplo: “Os

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sujeitos do filme devem confiar naqueles que se apresentam como mediadores. Os

espectadores devem confiar nos mediadores profissionais. E os mediadores profissionais

devem confiar em suas próprias habilidades e capacidades de fornecer um texto honesto.”

(SILVERSTONE, 2002a, p. 42). É importante considerar, portanto, esse movimento dos

significados que perpassam as representações midiáticas e as experiências de cada sujeito.

A obra Memórias da Vila suscita questões relacionadas à comunicação a partir de

diferentes interpretações e culturas e, ainda, ao modo como os autores, a partir de um modelo

próprio de mediação, conseguem alcançar o objetivo de contribuir para a ampliação dos

espaços de diálogo e exposição de tais identidades e valores culturais dos moradores da Serra.

Dessa forma, o questionamento que surge após essas reflexões é: como ocorre essa construção

de significados a partir de um dispositivo de visibilidade diferente, que desafia a mídia

hegemônica, considerando tais variáveis da mediação? A hipótese desta dissertação é a de que

a mediação do Outro em Memórias da Vila escapa e se contrapõe às formas estereotipadas

como esse espaço e seus moradores são comumente representados nas mídias dominantes.

Em vista disso, acreditamos que este trabalho pode contribuir para a construção da

crítica da mediação, conforme proposto por Serelle, a partir de Silverstone (2002a), já que,

enquanto comunicadores inseridos – inevitavelmente − nessa mediação “(...) cabe-nos, a todo

momento, pensar as relações e as frestas entre o vivido e o representado e reconhecer que,

embora necessária, a mediação é inevitavelmente incompleta e não deve ser usada para nos

afastar do mundo.” (SERELLE, 2016, p. 89).

2.2 A ética na representação do Outro

A ética do cotidiano diz respeito às ações e interações do dia a dia, que estabelecem a

responsabilidade e o cuidado que temos com o Outro. Como vimos, a mídia, segundo

Silverstone (2002a), é central hoje nesse processo, pois, em suas mediações, faz circular

representações do Outro, que constituem um complexo simbólico de que fazemos uso para

lidar com os enredamentos da vida imediata. Esse Outro deve ser entendido, nesta dissertação,

a partir da teoria de Lévinas (1980), como o Estrangeiro, aquele que, estando comigo, nunca

formará verdadeiramente um “nós”.

O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que

eu digo tu ou nós não é um plural de eu. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito

comum. Nem a posse, nem a unidade no número, nem a unidade do conceito me

ligam a outrem. Ausência de pátria comum que faz do Outro – o Estrangeiro; o

Estrangeiro que perturba o em sua casa. (LÉVINAS, 1980, p. 26).

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Lévinas (1980) traz em seu estudo o conceito sobre a radicalidade do Outro, que

embasará as ideias relacionadas à alteridade aqui referidas, no contexto da cultura midiática.

Para o autor, o Outro, o Estrangeiro é aquele que nada tem a ver comigo, sendo impossível se

unir a ele em complementaridade. O absolutamente Outro só pode ser apreendido se

desvinculado de predicados. Nós não podemos abordá-lo, em uma relação ética, com

referências pré-concebidas, estabelecidas conceitualmente. Lévinas usa a noção de “rosto”

para se referir ao Outro na sua forma mais pura e simples, em sua nudez, desprovida de

qualquer predicado. “Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação social com

outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela percepção, mas o que é

especificamente rosto é o que não se reduz a ele.” (LÉVINAS, 1961 p. 77).

O autor propõe essa desvinculação de predicados, uma vez que, quando enxergamos o

Outro carregado de atributos, nunca iremos enfrentar sua verdadeira alteridade. Portanto, é

necessário deixar os pré-conceitos para se chegar a um conhecimento do Outro.

Normalmente somos personagem: é-se professor na Soborna, vice-presidente do

Conselho de Estado, filho de fulano, tudo o que está no passaporte, a maneira de se

vestir, de se apresentar. E toda a significação no sentido habitual do termo, é relativo

a um contexto: o sentido de alguma coisa está na sua relação com outra coisa. Aqui

pelo contrário, o rosto é sentido só pra ele. Tu és tu. Neste sentido, pode dizer-se que

o rosto não é visto. Ele é o que não se pode transformar num conteúdo, que o nosso

pensamento abarcaria; é o incontível, leva-nos além. (LÉVINAS, 1961, p. 78,

destaque nosso).

A relação ética com o Outro está na nossa atitude para com ele, na relação desprovida

desses conceitos construídos previamente. Essa relação está para além do saber. Lévinas

propõe a sua explicação por meio do dizer e do dito. O dizer é a significação, gerada, de

forma imprevista, no encontro com o outro – e essa é a relação ética. Já o dito, é o significado,

que está presente no passado desse Outro, que o define a priori e assim impede que o rosto

apareça.

A atitude ética aparece quando eu coloco o Outro acima de mim. Quando eu sou para

o Outro sem a intenção de receber algo em troca. Ética é assumir a responsabilidade que eu

tenho pelo Outro, entendendo-o e aceitando-o nas suas diferenças. É a ausência de conceitos,

julgamentos sobre as suas ações e modo de vida. Esse é, ou deveria ser, o pressuposto de

todas as relações humanas, segundo Lévinas. “Se eu não existisse, nem sequer diríamos,

diante de uma porta aberta: „Primeiro o senhor!‟ É um „Primeiro o senhor‟ original que eu

procuro descrever. (LÉVINAS, 1961, p. 81). Essa relação é considerada assimétrica para

Lévinas.

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[...] sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse a

custar a vida. A recíproca é assunto dele. Precisamente na medida em que entre

outrem e eu a relação não é recíproca é que eu sou sujeição a outrem; e sou sujeito

essencialmente neste sentido. Sou eu que suporto tudo. (LÉVINAS, 1961, p. 90).

Para o autor, o eu moral só existe estando para o Outro e em relação a ele. Dessa

forma, temos uma responsabilidade moral em relação a ele. “Eu, não intercambiável, sou eu

apenas na medida em que sou responsável.” (LÉVINAS, 1961, p.93). Nessa relação, a ética é

a única dimensão que preserva a alteridade de Outrem, sem suprimi-lo, aniquilá-lo, ou possuí-

lo. A posse nega a independência desse Outro no seu modo de afirmação. Acaba por reduzi-lo

aos predicados que eu e a minha subjetividade formamos sobre ele.

O conceito de Outro para o autor está, portanto, na idealidade da nudez. Ou seja, nessa

“concepção utópica” de uma significação sem contexto gerada no encontro com o Outro

(LÉVINAS, 1961, p. 92), numa exterioridade pura. E “a relação ética é a única capaz de se

dirigir ao Outro em sua exterioridade absoluta.” (CARRARA, 2012, p. 46). A concepção de

alteridade em Lévinas reivindica nossa relação com o Outro, estrangeiro, sem privá-lo de sua

autoridade. Essa relação torna-se difícil de ser alcançada, principalmente em se tratando de

representações no contexto midiático, em dispositivos que fazem o Outro visível numa lógica

de organização e operação próprias.

Muitas vezes esse Outro, principalmente aquele distante, só nos é possível conhecer

por meio das mídias. Estas, muitas vezes, falham pela incapacidade de dar a ver o Outro,

preservando suas diferenças. É no reconhecimento dessa impossibilidade que reside um

posicionamento ético que exige a tomada de responsabilidade pela alteridade e pelo

desconforto que ela causa, uma vez que o Outro não pode ser apagado ou incorporado.

Portanto, a mídia está totalmente implicada no reconhecimento desse Outro, na sua presença

ou ausência na sociedade contemporânea.

Silverstone (2002a) expõe dois esquemas distintos e ao mesmo tempo complementares

entre os quais a representação midiática do Outro oscila: a definição da alteridade como algo

além da nossa capacidade de compreensão, criando ansiedade e legitimando a repressão do

Outro; e a incorporação do Outro, negando a sua diferença, incorporando a sua imagem a um

ambiente totalmente controlado e familiar aos espectadores, desconsiderando o contexto desse

Outro. A incorporação está ligada à domesticação da figura do Outro, ou, em outras palavras,

à negação da alteridade.

Todorov (1993), assim como Lévinas (1980) e Silverstone (2002a), busca discutir essa

questão da alteridade. Ele realiza essa reflexão por meio da apresentação da história da

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colonização da América – usa o exemplo de Cristóvão Colombo para relatar a chegada dos

europeus no Novo Mundo e as mazelas impostas aos colonizados, chamados pelos

colonizadores de estrangeiros. A partir dessa história, o autor descreve a posição de

colonizador e colonizado, os interesses presentes nessa relação, bem como as diferenças entre

a posição dos dois.

Na posição de colonizador, Colombo tenta impor os costumes e valores espanhóis aos

índios. Isso se torna notório principalmente na relação estabelecida para a troca de

mercadorias – o escambo. Para os europeus, o sistema de troca de simples objetos por pedras

preciosas era de grande valia, uma vez que o faziam para fins comerciais e, portanto,

lucrativos. Já para os índios, esse tipo de relação não tinha tanto valor, pois não era utilizado

como método de sobrevivência. Dessa forma, os colonizados trocavam ouro e outros objetos

valiosos por qualquer outro de origem europeia, como barris, vasos, entre outras coisas de

baixo valor.

Como aponta Todorov (1993) esse comportamento dos europeus gerava uma posição

de superioridade por parte dos colonos, que acabavam por praticar o assimilacionismo de

modo “inconsciente e ingênuo”. Para o autor, existem duas formas de aniquilamento da

diferença: através da domesticação do Outro, do estrangeiro, ou ainda tratando-o como

indiferente, numa relação de superioridade ou inferioridade. Todorov exemplifica a partir de

Colombo:

Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres

completamente humanos, com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não

somente iguais, mas idênticos, e este comportamento desemboca no

assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros. Ou então

parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e

inferioridade (no caso, obviamente, são os índios os inferiores): recusa a existência

de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado

imperfeito de si mesmo. (TODOROV, 1993, p. 41).

Percebe-se ainda que o assimilacionismo estava ligado não só na relação do escambo,

mas também no desejo dos espanhóis de cristianizar os índios, por meio do evangelho. Essa

atitude está ligada “à ideologia escravagista e, portanto, à afirmação da inferioridade dos

índios.” (TODOROV, 1993, p. 44). A superioridade apresentada por Colombo, em relação

aos índios, tem origem na percepção construída sobre eles. Portanto, ele compreende que os

valores são apenas convenções e que o que é importante para ele não necessariamente é para o

Outro. Nesse caso, o Outro, o diferente, tem a sua identidade ignorada e acaba sendo

assimilado ou domesticado por alguém “superior”.

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A questão da alteridade nesse episódio paradigmático da colonização ajuda-nos, como

fundamento, a compreender a crítica que Silverstone (2002a) faz à mediação midiática. De

um modo geral, para Silverstone, a mídia acaba por aniquilar a alteridade, uma vez que suas

estratégias de representação continuam a apagar a existência da diferença. O Outro, nesse

caso, é novamente considerado como ameaça ou é domesticado. O desafio da mediação diz

respeito a esses dois esquemas representativos e às tentativas de desafiá-los, o que implica,

primeiramente, reconhecer e discutir os estereótipos.

O silenciamento do Outro domesticado acaba, então, por reafirmar representações

hegemônicas. Sobram a ele contextos em que há predominância de discursos enraizados e

inabitáveis, que não são abertos para o diálogo e visibilidade desse Outro.

2.2.1 Realidades reivindicantes: possibilidades e desafios

Entendemos que a mídia hegemônica atua, em grande parte, de acordo com uma

“racionalidade indolente” (SANTOS, 2007) – que propõe uma realidade totalizante e redutora

–, típica do mundo moderno e que opera na contração do presente e no apagamento das outras

realidades possíveis, que de fato coexistem e se articulam na vida comum. De acordo com

Boaventura de Sousa Santos (2007), experiências locais, não muito conhecidas nem

legitimadas pelo conhecimento científico e pelo senso comum, são hostilizadas pelos meios

de comunicação social, e por isso têm permanecido invisíveis, desacreditadas. Segundo o

autor, são realidades produzidas como ausentes e, portanto, desperdiçadas. Um primeiro

desafio que se coloca é enfrentar esse desperdício de experiências sociais que configuram o

mundo midiaticamente inteligível, por meio de uma “Sociologia das Ausências”.

A Sociologia das Ausências é um procedimento transgressivo, uma sociologia

insurgente para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como

não-existente, como uma alternativa não-crível, como uma alternativa descartável,

invisível à realidade hegemônica do mundo. E é isso o que produz a contradição do

presente, o que diminui a riqueza do presente. (SANTOS, 2007, p. 28).

O autor objetiva com essa sociologia problematizar a questão do apagamento de

realidades que poderiam estar presentes, mas são por vezes extintas. Ele cita cinco

monoculturas, ou modos de produção de ausências, existentes em nossa sociedade. Para ele,

as monoculturas representam a destruição de novos conhecimentos e a descredibilização de

outros tipos de cultura.

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Ao constituir-se como monocultura (como a soja), destrói outros conhecimentos,

produz o que chamo “epistemicídio”: a morte de conhecimentos alternativos. Reduz

realidade porque “descredibiliza” não somente os conhecimentos alternativos, mas

também os povos, os grupos sociais, cujas práticas são construídas nesses

conhecimentos alternativos. Qual é o modo pelo qual essa cultura cria inexistência?

A primeira forma de produção de inexistência, de ausência, é a ignorância.

(SANTOS, 2007, p. 29).

A primeira dessas formas de práticas reducionistas é a monocultura do saber e do

rigor, da ideia rigorosa de que o único saber é o científico, que acaba apagando as realidades

que se encontram fora das concepções científicas. O segundo tipo de monocultura é a do

tempo linear, que inclui o conceito de progresso e desenvolvimento. Nela, a história

considera que os países desenvolvidos estão à frente do tempo se comparado aos

subdesenvolvidos e, por essa razão, tudo o que existe nos países desenvolvidos é mais

evoluído, o que faz dos demais atrasados. No terceiro tipo, a monocultura da naturalização

das diferenças, as hierarquias são ocultadas e as diferenças são sempre desiguais. A

hierarquia é tida como a consequência das diferenças e não sua causa. A monocultura da

escala dominante considera o universalismo ou a globalização como escalas dominantes, ou

seja, toda ideia ou entidade é válida independente do seu contexto de atuação. Todavia, Santos

defende que “não há universalismo sem particularismo”, e, por isso, essa forma de

monocultura cria ausências a partir do particular e do local. Por último, a monocultura do

produtivismo capitalista tem a ver com a definição da produtividade que acaba indo de

encontro à maneira de organização tradicional da produtividade, que leva em consideração

ciclos de produção em intervalos para o cultivo adequado da terra. Nesta monocultura há

outra lógica de produção, em que esse intervalo é desconsiderado e tudo o que não

desenvolver nesse novo contexto é tido como improdutivo ou estéril.

As monoculturas apresentadas por Boaventura Santos ilustram a ideia da aniquilação

da alteridade do Outro, colocada por Silverstone (2002a), uma vez que o Outro é, muitas

vezes, deixado de lado, ou apresentado como não existente, invisível, ou ainda reduzido,

ignorando muita experiência social existente sobre ele. O que Santos propõe é justamente essa

inversão, a de “transformar objetos ausentes em objetos presentes” (SANTOS, 2007, p. 32).

Ele acredita que há um costume muito forte em trabalhar com objetos que já estão dados, o

que torna difícil pensar objetos indisponíveis e, portanto, invisíveis.

Diante dessa insurgência, ele propõe a substituição de cada monocultura, por

ecologias, que possibilitem: novos diálogos entre saberes e tempos; a descolonização das

mentes e a eliminação das hierarquias; a articulação de análises em escalas locais e globais; a

recuperação de sistemas alternativos de produção.

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A sociologia das ausências proposta por Santos tem, portanto, o intuito de transformar

objetos ausentes, encobertos pela hierarquia dominante, em objetos presentes, constituindo

uma sociologia revolucionária, por meio de “utopias realistas”, segundo o autor. Nesse

contexto, entendemos que seu trabalho estimula, propõe e se identifica com um novo tipo de

visibilidade autônoma de anônimos. Se por um lado certas narrativas continuam a operar

segundo a lógica dominante, seja através de estereótipos redutores, assimilacionismos ou

aniquilamento da alteridade, por outro, experiências emergentes parecem avançar

midiaticamente, mas não sem dificuldades.

A Sociologia das Ausências e das Emergências traz como desafio também a questão

da operação da enorme quantidade de realidades que não existiam antes. Há um confronto

com uma realidade muito mais rica, ainda mais fragmentada, e certamente mais caótica.

Questiona-se como compreender e como produzir, midiaticamente, sentidos diante dessa

pluralidade, que demanda outras maneiras de articular conhecimentos, práticas, ações e

sujeitos coletivos.

Santos (2007) propõe estabelecer processos de traduções interculturais, de

engendramento de inteligibilidade sem aniquilamentos. Traduzir, para ele, significa afirmar a

alteridade e reconhecer a impossibilidade de transparência total, significa aumentar

interconhecimento e maximizar articulações. Somente através de processos de traduções

interculturais entre diferentes saberes é possível pôr em prática uma Sociologia das

Ausências, o que se mostra um desafio frente ao caráter transformativo e incompleto da

tradução como forma de mediação, como foi destacado por Silverstone (2002a) no início

deste capítulo.

É importante retomar aqui a discussão da alteridade na mídia e suas maneiras de

representação. Para Serelle (2016), a mídia possui algumas formas de ordenação, como as

narrativas, gêneros e agendamentos. Através delas os sujeitos representados, os produtores da

mediação e as audiências tornam-se cúmplices desse processo quando aceitam certas

limitações e não reconhecem a “impossibilidade e a parcialidade da representação”

(SILVERSTONE apud SERELLE, 2016, p. 87). Essa cumplicidade diz respeito à falta de

questionamento, ou mesmo envolvimento do Outro representado. O reconhecimento da

incompletude da mediação e o estabelecimento de uma relação crítica com a mídia são,

portanto, necessários.

Serelle (2016) exemplifica, a partir de Silverstone, algumas formas desse

aniquilamento do Outro representado.

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[...] Ao modo como a diferença é aniquilada na publicidade, talk-shows ou mesmo

em documentários, em que, por exemplo, africanos e caribenhos são exibidos

sorridentes e amistosos, os sujeitos marginais e invisíveis socialmente aparecem

„domesticados‟ ou os pobres são invariavelmente representados „com barrigas

inchadas e moscas nos olhos‟. Por outro lado, há as representações que delineiam a

alteridade como algo inalcançável e que não pode ser compreendida, como as

imagens persistentes de palestinos como terroristas. Silverstone coloca, portanto, o

problema da distância adequada, pois a “comunicação nunca pode incorporar o outro

completamente nem deve ter esse objetivo”. (SERELLE, 2016, p. 84).

Cabe aqui, ainda, a discussão da ética na mediação, na qual, segundo Serelle (2016) e

como já foi discutido em Lévinas (1980), reside o reconhecimento das diferenças e o

distanciamento apropriado do eu moral perante a representação e o relacionamento com o

Outro. Esse distanciamento é um dilema, pois o Outro mediado pode acabar submetido a

quem o representa. A aporia da moralidade se faz sempre presente na mediação. “Zygmunt

Bauman (1997, p. 131) argumenta que a moralidade é necessariamente aporética, uma vez

que a proximidade e o cuidado excessivos resultam em repressão, quando a autoridade do

outro é retirada [...]” (SERELLE, 2016, p. 85).

A ação de narrar o Outro leva sempre ao risco de aniquilar a autonomia desse Outro. O

ser e seu impulso moral – o de ser para o outro −, ao assumir responsabilidade perante ele,

pode levar a consequências imorais. O eu moral demanda proximidade em relação ao Outro.

Essa proximidade pode se tornar sobreposição, uma vez que se passa a falar pelo Outro, em

nome dele.

O outro é refundido como minha criação; agindo com o melhor dos impulsos, eu

roubei a autoridade do Outro. Sou eu agora quem diz o que o comando comanda. Eu

tornei-me o plenipotenciário do Outro, embora tenha eu próprio assinado o poder de

procurador em nome do Outro. (BAUMAN, 1997, p. 131).

A aporia é uma situação de impasse, de dificuldade, que aparece na relação com a

alteridade, situação em que o ser e o estar para o Outro levam sempre ao risco de assimilá-lo,

aniquilando a sua essência, em um “ato de violência” (LÉVINAS, 1980).

2.3 Representações, esquemas e estereótipos na comunicação

Diante dos desafios éticos da mediação, das responsabilidades e dilemas nas tentativas

de representação do Outro, faz-se necessário investigar as formas de representações

cristalizadas e, preliminarmente, conhecer os significados gerados pelo termo representação e

seus desdobramentos na cultura comunicacional. Hall (2016) aponta dois sentidos para o

termo, de acordo com o dicionário Oxford:

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I − Representar algo é descrevê-lo ou retratá-lo, trazê-lo à tona na mente por meio da

descrição, modelo ou imaginação; produzir uma semelhança de algo na nossa mente

ou em nossos sentidos. Como, por exemplo, na frase: „Este quadro representa o

assassinato de Abel por Caim.‟

II – Representar também significa simbolizar alguma coisa, pôr-se no seu lugar ou

dela ser uma amostra ou um substituto. Como na frase: „No cristianismo, a cruz

representa o sofrimento e a crucificação de Cristo‟. (HALL, 2016, p. 32).

Para o entendimento desses significados, deve-se levar em consideração um conjunto

de conceitos ou representações mentais que cada sujeito carrega. Além dos conceitos, é

necessário considerar também os diferentes sistemas classificatórios em que eles se encontram

organizados. Pessoas que pertencem a uma mesma cultura compartilham um mapa conceitual

relativamente similar, e, por isso, o seu entendimento em relação à certa linguagem e suas

formas de representações são passíveis de um intercâmbio eficaz. Por isso, Hall (2016) propõe

dois sistemas de representação para a interpretação do sentido das coisas representadas: o

acesso ao mapa conceitual e ao sistema de linguagem.

O mapa conceitual está relacionado à gama de vocabulários e línguas que determinada

cultura possui. Por meio dele é possível compartilhar ideias e pensamentos, e, portanto, dar

sentido às coisas do mundo de maneira mais ou menos similar, de forma que a comunicação

seja possível. Por isso, uma imagem representada em locais com mapas conceituais diferentes,

por exemplo, será passível de várias interpretações, de acordo com cada cultura interpretativa.

Já o sistema de linguagem está ligado à relação entre os signos e os seus referentes; aos

códigos que fixam o sentido e estabelecem a conexão entre nosso mapa conceitual e nossa

linguagem.

Dessa forma, os esquemas representativos estão ligados a um relativismo cultural ou

linguístico próprio de cada cultura humana.

Pertencer a uma cultura é pertencer, grosso modo, ao mesmo universo conceitual e

linguístico, saber como conceitos e ideias se traduzem em diferentes linguagens e

como a linguagem pode ser interpretada para se referir ao mundo ou para servir de

referência a ele. (HALL, 2016, p. 43).

Portanto, deve-se levar em consideração, a multiplicidade de interpretações nas

práticas representacionais.

É importante destacar ainda, no estudo da representação, as teorias que buscam

explicá-la pelo sentido da linguagem. Para Hall (2016, p. 47), existem três abordagens:

reflexiva, intencional e construtivista.

Na perspectiva reflexiva, o sentido é intrínseco aos objetos e a linguagem apenas

reflete o seu significado, já existente no mundo. Dessa forma, eles usam a teoria grega da

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mimesis para explicar como a linguagem imitava as verdades já existentes na natureza. Já a

segunda abordagem, a intencional, defende um sentido oposto para a representação. Nela a

linguagem é utilizada principalmente para convencer ou comunicar coisas que são especiais

para o próprio sujeito comunicante, de acordo com o seu próprio modo de ver o mundo. Na

perspectiva intencional, a essência da linguagem é a comunicação intencional e subjetiva de

cada sujeito. A terceira teoria é a construtivista, que reconhece o caráter social da linguagem,

já que defende que nem as coisas nem os usuários individuais têm o poder de fixar

significados próprios na linguagem, uma vez que “as coisas não significam: nós construímos

sentido, usando sistemas representacionais – conceitos e signos.” (HALL, 2016, p. 48). Por

isso o nome de construtivista, porque para ela o sentido é construído socialmente, separado do

mundo material, onde as coisas e pessoas existem. Existe, portanto, segundo essa teoria, o

plano simbólico, onde os atores sociais usam os sistemas representacionais de sua cultura para

dar sentido e fazer compreender o mundo.

Hall faz uma síntese de sua ideia sobre os sistemas representacionais:

Os sistemas representacionais consistem nos sons reais que emitimos com nossas

cordas vocais, nas imagens que fazemos com câmeras em papéis fotossensíveis, nas

marcas que imprimimos com tinta em telas, nos impulsos digitais que transmitimos

eletronicamente. A representação é uma prática, um tipo de „trabalho‟, que usa

objetos materiais e efeitos. O sentido depende não da qualidade material do signo,

mas de sua função simbólica. Porque um som ou palavra em particular indica,

simboliza ou representa um conceito, ele pode funcionar, na linguagem, como um

signo e transportar sentido – ou, como os construtivistas dizem, significar. (HALL,

2016, p. 49).

Para esta pesquisa vale destacar a terceira abordagem de Hall, uma vez que é

necessário considerar e entender a complexidade da comunicação e da construção de sentidos

pelos sujeitos, com relação aos objetos por eles representados ou interpretados. Afinal, “O

mundo não é precisamente refletido, ou de alguma outra forma, no espelho da linguagem: ela

não funciona como um espelho.” (HALL, 2016, p. 53). O sentido é produzido, portanto,

dentro de cada sistema representacional “que, por conveniência, nós chamamos de

„linguagens‟” (HALL, 2016, p. 54).

Na representação é necessário se discutir, ainda, o tema das diferenças, também

salientado por Hall (2016). O autor o aborda como uma área fortemente atraente, mas por

vezes contestada, e se refere às imagens expostas na cultura popular, bem como na mídia de

massa para analisar o funcionamento das práticas que envolvem pré-conceitos nas suas

formas de reprodução. Esses pré-conceitos são trabalhados pelo autor como estereotipagens.

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Dessa forma, a mediação das mídias entra aqui como prática que parte de esquemas

representativos, que reproduz e também gera estereótipos.

Hall (2016) estuda, de modo profundo e por meio de exemplos, as teorias sobre a

prática representacional, conhecidas como “estereotipagens”, em seu sentido mais amplo de

produção de significados. Para entender o estereótipo enquanto produção de significados, Hall

(2016) se refere a Richard Dyer (1977), que diferencia estereótipo de tipificação. Esse último

conceito está relacionado ao uso de tipos para dar sentido aos objetos no mundo.

Entendemos o mundo ao nos referirmos a objetos individuais, pessoas ou eventos

em nossa cabeça por meio de um regime geral de classificação em que – de acordo

com a nossa cultura – eles se encaixam. Assim, nós “decodificamos” um objeto

plano com pernas sobre o qual colocamos coisas como uma “mesa”. Talvez nunca

tenhamos visto certo tipo de “mesa”, mas temos um conceito geral ou categoria de

“mesa” em nossa cabeça e, nele, fazemos “caber” os objetos particulares que

encontramos ou percebemos. (HALL, 2016, p. 190).

Ou seja, a tipificação está relacionada à interpretação que produzimos sobre objetos ou

sujeitos particulares referindo-os a categorias mais amplas, como, por exemplo, aos papéis

que a pessoa exerce na sociedade: se é pai ou mãe, um trabalhador, um aposentado, um

prefeito. Assim sendo, os tipos podem estar associados aos predicados, ou atribuições de

determinada pessoa ou objeto numa determinada sociedade.

Já o estereótipo, segundo o autor, se apropria das poucas características superficiais de

uma coisa ou pessoa, reduzindo-a e, muitas vezes, exagerando. “A estereotipagem reduz,

essencializa, naturaliza e fixa a „diferença‟.” E ainda, “exclui ou expele tudo o que não cabe, o

que é diferente.” (HALL, 2016, p. 190). Ou seja, o estereótipo acaba por criar definições de

comportamentos padrões em uma cultura e tudo que for definido como fora desse padrão

acaba sendo excluído.

A estereotipagem, em outras palavras, é parte da manutenção da ordem social e

simbólica. Ela estabelece uma fronteira simbólica entre o “normal” e o “pervertido”,

o “normal” e o “patológico”, o “aceitável” e o “inaceitável”, o “pertencente” e o que

não pertence ou é o “Outro”, entre “pessoas de dentro” (insiders) e “forasteiros”

(outsiders), entre nós e eles. (HALL, 2016, p. 192).

Portanto, a criação de estereótipos tende a facilitar o fortalecimento dos laços das

pessoas consideradas “normais” e consideram as demais como perigosas ou “fora de lugar”.

Esse Outro, excluído, é muitas vezes incluído em sistemas onde existem desigualdades de

poder, e é, por isso, marginalizado socialmente.

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Esse estabelecimento de normas, por meio de tipos sociais e estereótipos é um hábito

de grupos de decisão que tentam impor a sua visão de mundo, seus sistemas de valores e

ideologias. São, muitas vezes, concepções impostas de forma sutil, que fazem parecer

“natural” e “inevitável” para os sujeitos.

Hall (2016) aponta para a questão da conexão existente entre representação, diferença

e poder na estereotipagem. Esse poder deve ser entendido “não apenas em termos de

exploração econômica e coerção física, mas também em termos simbólicos ou culturais mais

amplos, incluindo o poder de representar alguém ou alguma coisa de certa maneira – dentro

de determinado „regime de representação‟.” (HALL, 2016, p.193). O poder simbólico é

exercido por meio de práticas em que o discurso da representação produz uma forma de

conhecimento deturpada do Outro – o que resulta em violência simbólica. Além disso, o

poder “opera em condições ou relações desiguais.” (HALL, 2016, p. 196) e é capaz de

circular e gerar novas formas de vida.

O poder não só restringe e inibe: ele também é produtivo; gera novos discursos,

novos tipos de conhecimento (ou seja, o orientalismo), novos objetos de

conhecimento (o Oriente) e forma novas práticas (colonização) e instituições

(governo colonial). Ele opera em um micronível – a “mircrofísica do poder” de

Foucault −, bem como em termos de estratégias mais amplas. [...] o poder é

encontrado em toda parte. Segundo Foucault: o poder circula. (HALL, 2016, p. 196).

Essa circulação de poder é de grande relevância no contexto da representação e da

construção de estereótipo. Hall entra ainda na discussão da inversão dos estereótipos, que está

relacionada a uma estratégia integracionista de sujeitos excluídos socialmente, como é o caso

da raça dos negros. Sujeitos que corriqueiramente costumam ser representados como seres

diferentes, “como vítimas ou „perdedores‟ em termos de realizações.” (HALL, 2016, p.141).

O autor busca entender por que a alteridade é um objeto de estudo atraente e tenta explicar

essa indagação por meio de quatro abordagens teóricas, baseadas nos estudos culturais e tendo

como ponto de partida a diferença.

A abordagem vinda da linguística é a primeira delas. O seu ponto principal é a defesa

de que “a „diferença‟ é importante porque é essencial ao significado; sem ela, o significado

não poderia existir.” (HALL, 2016, p. 153) uma vez que o significado é relacional e, portanto,

a significação é construída na diferença, principalmente a diferença entre os opostos.

A segunda abordagem defende que a diferença é também necessária “porque somente

podemos construir significados através de um diálogo com o Outro.” Para Bakhtin4, citado

4 BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Austin: University of Texas, 1981.

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por Hall (2016, p. 155) “O significado não pertence a qualquer um dos falantes. Ele surge na

troca entre os interlocutores.”. De acordo com essa perspectiva, o significado é criado não só

por meio do diálogo com o Outro, mas também pela diferença entre os participantes. Então,

“O „Outro‟, em suma, é essencial para o significado”. Entretanto, Hall afirma ainda que o

significado não é fixo e nem pode ser comandando totalmente por determinado grupo.

Essa concepção está diretamente ligada ao que já foi exposto sobre a teoria da

representação, focada na abordagem construtivista, que é interpretada como a prática de

produção de significados. A estereotipagem surge aqui como um conceito crítico na tentativa

de explicar algumas operações dessa representação – principalmente a representação visual.

O terceiro tipo de abordagem está ligado a uma perspectiva antropológica, uma vez

que defende que “a cultura depende do significado que damos às coisas, isto é, a atribuição de

diferentes posições dentro de um sistema classificatório.” (HALL, 2016, p. 156). A cultura é,

portanto, um forte ponto a ser considerado para a marcação da diferença. E esta também é

aqui considerada de grande importância para o significado cultural.

A quarta e última abordagem de Hall para destacar a importância da diferença tem

origem na área psicanalítica, uma vez que relaciona o papel dela com a vida psíquica dos

atores sociais. O argumento defendido nessa perspectiva é que “o Outro é fundamental para a

constituição do self dos sujeitos e para a identidade sexual”. Nessa abordagem é defendido

que a subjetividade do sujeito é construída através do diálogo com o Outro, com “algo que

nos completa, mas que – por se encontrar fora de nós −, de certa forma, sempre nos falta.”

(HALL, 2016, p.160).

Há aqui uma relação que se pode construir acerca das abordagens de Lévinas (1980) e

Hall (2016), sobre a importância que conferem ao Outro. A ética da relação de

responsabilidade por Outro, defendida pelo primeiro, está diretamente ligada ao entendimento

e aceitação das diferenças, que são fundamentais não somente para a construção dos

significados de mundo, salientados por Hall, mas para a emergência do próprio self.

Com relação a essas diferenças e seu papel na construção dos significados, cabe

retomar Dyer (1999), quando diz que o problema dos estereótipos consiste em quem o

comanda e, portanto, na circulação de poder dos grupos hegemônicos na sociedade – já

apontada em Hall (2016). Dessa forma, entende-se, de acordo com o autor, que as

representações na sociedade midiática são produzidas a partir de valores sociais que se

encontram em constante circulação e, ao mesmo tempo, são apropriados e interpretados no

processo de mediação. Os estereótipos estabelecem, portanto, uma lógica redutora e

organizadora dos objetos, projetando-os na sociedade. Mas, nem sempre são falsos. São, antes

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disso, formas de ordenação, contudo, sujeitas às mediações daqueles com mais poder e mais

chances de impor suas definições de realidade. Diante desses modos de representações, é

notória, então, sua relação dialética com a sociedade, marcada fortemente por questões de

classe, raça, gênero, entre outras formas de classificação.

2.4 O Dispositivo de visibilidade como forma de desafiar a alteridade

O exercício de narrar o outro exige uma arquitetura comunicacional, em que a

linguagem, mediadora do processo, estabeleça o lugar em que a diferença possa de fato falar.

Dessa forma, se faz necessária, nesta dissertação, a discussão sobre o dispositivo em que os

elementos estão representados, uma vez que, por mais que a leitura seja atravessada por

particularidades e desejos empíricos, modos de interação são sempre propostos pelos textos

midiáticos.

A obra Memórias da Vila foi, portanto, tomada como um “dispositivo de visibilidade”

(RANCIÈRE, 2012), uma vez que realiza uma articulação de elementos na tentativa de sair do

lugar comum de narrar, ou, nas palavras de Rancière (2012), de criar uma outra “comunidade

de dados sensíveis”. Tendo em vista essa ideia, pode-se dizer que, a partir dos elementos em

um dispositivo de visibilidade, o olhar do leitor, pelo menos em idealidade, é politicamente

deslocado.

A análise desse dispositivo é também o delineamento de uma expectativa de leitura e

interação, criada pela obra. Eco refere-se à categoria de um “leitor modelo”, tipo de

espectador/leitor “ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar.”

(ECO, 1994, p. 15). Esse espectador/leitor é moldado de acordo com os sinais que o texto –

aqui em sentido amplo – específico dispõe.

Eco utiliza a metáfora do bosque para esclarecer o papel desse leitor diante da

narrativa. Segundo ele, um bosque possui vários caminhos, que se bifurcam, e, a partir deles,

todos podem traçar sua própria trilha de acordo com a sua escolha. Assim é o texto: o

narrador é livre para a decodificação da narrativa. Apesar disso, o texto demanda certa

cooperação de seu leitor, criando assim um leitor modelo. Esse se difere do leitor empírico,

aquele que lê sempre atravessado por sua subjetividade e pode ou não seguir as estratégias

narrativas propostas por um texto.

Nessa linha de pensamento, pode-se considerar um dispositivo de visibilidade como

um tipo de mediação na medida em que carrega artifícios para alguma representação,

propondo, como dissemos, um tipo de atenção ao Outro ali representado. De acordo com

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Rancière, “uma imagem nunca está sozinha. Pertence a um dispositivo de visibilidade que

regula o estatuto dos corpos representados e o tipo de atenção que merecem.” (RANCIÈRE,

2012, p. 96). A questão, apontada pelo autor, não é a de saber se se deve ou não fazer e olhar

tais imagens, mas, antes, no seio de qual dispositivo sensível o fazemos. Por isso, a escolha do

dispositivo se mostra importante, já que, dependendo da regulação dos corpos representados

que nele se fazem visíveis, a atenção do leitor, ao invés de ser aproximada de forma solidária,

pode ser afastada e distanciada.

Dessa forma, a proposta dos autores de Memórias da Vila com esse dispositivo,

descrita nos textos introdutórios da obra, é a de quebrar o senso comum, ou seja, retratar a

vida dos moradores da Comunidade da Serra, por outro viés, outra mediação, voltada para a

imagem e a história de vida dos habitantes, que normalmente não são representadas nas

mídias dominantes. Esse dispositivo torna, assim, visível uma realidade que não é comumente

retratada pelos meios de comunicação de massa.

Ao invés de aproximar, o dispositivo de visibilidade midiático pode afastar o leitor da

realidade. O Outro é representado e narrado de acordo com os seus interesses. O olhar do

espectador é conduzido para um caminho onde o que se vê é o estereótipo e a reiteração de

narrativas. De certo modo, Silverstone e Rancière fazem a mesma crítica à mídia, como

podemos verificar neste excerto:

O que vemos, sobretudo nas telas de informação de televisão, é o rosto de

governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que

elas mostram e o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é

porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas

vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o

olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra.

O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona

selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de “descriptar” a vaga

de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens

consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa

lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das

imagens pela televisão. (RANCIÈRE, 2012, p. 94, destaque nosso).

Rancière aponta para a questão de um Outro que, mesmo presente, está ausente e que

não consegue nos devolver o olhar. Mas como esse Outro não está presente, se é falado e

representado a todo o momento, por meio das narrativas midiáticas? O caso dos refugiados da

guerra civil da Síria, em evidência há seis anos, é um exemplo que se aplica nesse contexto. O

conflito, de motivos geopolíticos complexos, causou mais de quatrocentas mil mortes e

aproximadamente cinco milhões de refugiados, segundo dados do site de notícias EBC

Internacional (CHAGAS, 2017). O que aparece na grande mídia é, usualmente, a situação

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desumana em que os imigrantes refugiados se submetem. Entretanto, não temos acesso,

nessas narrativas, ao olhar, à voz da vítima, que passa verdadeiramente pela situação

conflituosa. O que fica evidente é a edição e reiteração de narrativas em terceira pessoa, da

fala de especialistas sobre vidas que, por serem assim representadas, continuam anônimas.

A ausência do Outro, referida neste tópico, se relaciona também com a noção de

“rosto”, dada por Lévinas (1980), já descrita anteriormente. A ação de narrar o Outro

midiaticamente, em geral, nos impede de vê-lo sem qualificativos prévios, uma vez que ele já

chega, na recepção, imbuído dos predicados formados sobre ele. O senso comum qualifica

esse Outro, de modo que ele se torna impedido de nos enfrentar, e esse enfrentamento se torna

ainda mais difícil devido aos esquemas estratégicos de um dispositivo que regula a forma de

representação e, consequentemente, propõe ao espectador determinadas formas de

decodificação, de construção de sentidos sobre o Outro. Dessa forma, o dispositivo apaga a

alteridade na medida em que reduz o “rosto”, o que vai de encontro aos princípios da ética da

mediação, mencionados em Silverstone (2002a).

O desafio é, portanto, criar um novo regime em que a imagem circule sem essa lógica

sedimentada da representação, que propõe a visibilidade de multidões ditas “anônimas”, mas,

por outro lado, faz com que o Outro seja falado e nunca fale. Rancière, em sua obra O

espectador Emancipado, mostra, por meio da arte, como esse deslocamento é possível,

aliando a imagem a textos que situam o espectador em um determinado contexto.

O exemplo é a imagem The Eyes of Guetete Emerita, de 1996, do fotógrafo Alfredo

Jaar. A imagem se passa no contexto do genocídio de Ruanda5 e retrata o olhar de uma

mulher que presenciou o massacre de seu marido e seus dois filhos durante uma missa, e

conseguiu escapar com vida, acompanhada de sua irmã. Na imagem, o olhar de Guetete

Emerita se apresenta aliado a um texto que narra o acontecimento. O dispositivo no qual a

imagem se insere foi arquitetado de forma a contribuir e aguçar a percepção do receptor, visto

que a sua reprodução foi feita no fundo de uma caixa preta fechada, fazendo com que a

fotografia não seja visível a princípio, levando o espectador a ler o texto, como testemunho.

Rancière reflete sobre a importância de levar em consideração o contexto em que o

Outro está inserido e no seio de qual dispositivo se faz presente, antes de fazer qualquer

inferência sobre ele:

5 O genocídio de Ruanda aconteceu em 1994 e teve duração de cem dias. Nesse contexto cerca de 800 mil

pessoas foram massacradas por extremistas étnicos Hutus, que vitimaram membros da comunidade minoritária

Tutsi, assim como seus adversários políticos, independentemente da sua origem étnica. Foi um massacre

motivado por questões geopolíticas que envolvia uma sociedade altamente controlada e organizada. Fonte:

BBC Brasil. (ENTENDA..., 2014).

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A primeira vista, portanto, essas instalações também opõe o testemunho das palavras

à prova pelas imagens. Mas essa semelhança oculta uma diferença essencial: as

palavras aí estão desprovidas de voz, são tomadas como elementos visuais. Portanto,

está claro que não se trata de as opor à forma visível da imagem. Trata-se de

construir uma imagem, ou seja, certa conexão entre o verbal e o visual. O poder

dessa imagem, então, consiste em desorganizar o regime ordinário dessa conexão,

como o que é praticado pelo sistema oficial de informação. (RANCIÈRE, 2012, p.

94).

Desse modo, a intenção do dispositivo de visibilidade criado pelo artista foi a de levar

a temporalidade da imagem ao espectador, fazendo com que ele apreendesse aquele contexto

e se sensibilizasse perante a violência a que o Outro − no caso, Guetete Emerita e sua família

− foi submetido. No entanto, para isso, é necessário propor outras formas de articulação entre

imagem e texto, que subvertam o “sistema oficial de informação”, de que fazem parte as

narrativas das mídias dominantes. De acordo com Rancière (2012), a representação da

realidade é uma questão do dispositivo de visibilidade a que a imagem pertence e da

articulação de seus elementos para a sua exibição.

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3 RETRATO E TESTEMUNHO: ELEMENTOS DO DISPOSITIVO

Na medida em que o dispositivo de visibilidade regula os corpos representados por

meio de arranjos de linguagem, na articulação de elementos −, por exemplo, entre tipos de

imagem e tipos de texto – cabe, neste capítulo, o seu estudo. Começaremos, assim, pela

fotografia, que, em Memórias da Vila, é elemento ancorador do projeto e que mais se

evidenciou na representação dos moradores do Aglomerado da Serra.

Essa preponderância da fotografia em relação ao relato testemunhal, no objeto desta

pesquisa, se deve também à divulgação, desse material imagético, antes da concretização do

projeto, pela cidade de Belo Horizonte, em locais de grande circulação da população. Em

2014, antes do lançamento da obra, os retratos dos moradores da Serra foram expostos em

alguns espaços públicos − como as estações de metrô Central, Calafate e São Gabriel −, pelo

fotógrafo Guilherme Cunha, que contou com o apoio da Fundação Municipal de Cultura de

Belo Horizonte, com o objetivo de expandir e tornar conhecida a reprodução das fotografias

dessas vidas.

Para o autor e artista, é notório que os espaços fotografados e expostos ao público são,

em sua maioria, monumentos e pontos turísticos da cidade, que demonstram certo poder e

exuberância, ao passo que outros cenários, que também fazem parte da história da cidade, não

são visíveis e se tornam, portanto, desconhecidos e excluídos. Em entrevista ao site de

notícias Hoje em Dia, Guilherme destaca essa situação:

Sempre me incomodou o fato de vermos a cidade a partir de marcos oficiais que

definem uma estrutura de poder absurda porque reduz uma cidade inteira a pontos

arquitetônicos. E isso é assustador porque exclui todo conjunto de realidades que

fazem parte desse grande complexo que é a cidade. (CAVALHAES, 2014).

Com o objetivo de tornar visível esse outro cenário, Guilherme Cunha investiu no

projeto fotográfico no contexto do Aglomerado, para depois pensar em um projeto maior, que

complementasse o seu trabalho − organizado em um dispositivo, cujos elementos são

arranjados na tentativa de desafiar essa invisibilidade.

Em vista disso, este capítulo tem como objetivo a apresentação dos elementos do

dispositivo de visibilidade de Memórias da Vila − fotografia e testemunho −, dentro de um

arranjo que reivindica determinada função e atenção, na intenção de quebrar o senso comum e

de redefinir as representações estereotipadas.

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3.1 Fotografia: aspectos históricos de um projeto moderno

De acordo com Rouillè (2009), a fotografia surgiu na sociedade industrial do século

XIX, onde era usada para documentar os acontecimentos da época, bem como registrar as

mudanças ocorridas nas sociedades. Ela é considerada eminentemente urbana, uma vez que

surgiu nas cidades modernas e desenvolveu-se nelas. Seu caráter urbano também se deve ao

seu conteúdo, em que tinha como principal cenário as cidades. Conhecida como “a imagem da

sociedade industrial”, suas funções ganharam legitimidade pelo seu caráter mecânico e plural,

que possibilitava fotografar práticas tanto modernas quanto antimodernas. Entretanto, a

fotografia possuía um caráter predominantemente utilitário, em que a necessidade de servir e

de acompanhar as novas demandas da sociedade a transformava em uma forma de registro

adaptado aos novos ritmos.

Nessa época, a fotografia era considerada como fotografia-documento e, por isso, o

dispositivo técnico, o registro e os mecanismos para documentar os fatos eram levados em

consideração no ato de fotografar, com o objetivo de sustentar seu valor e confiança. Nessa

fase documental, a fotografia mediava em grande escala os cenários de poder, como os

monumentos e grandes obras urbanas a que se refere Cunha e Tavares (2016), o que

demonstra que essa fase não foi completamente superada. Entretanto, figuras urbanas

corriqueiras como operários, transeuntes, entre outros exemplos do popular, ficavam à

margem da representação. Os cenários eram evidenciados ao passo que sua população era

excluída, transformando as cidades em “um palco sem atores” (ROUILLÈ, 2009, p. 47).

Esse regime começa a se transformar somente com a Comuna de Paris, em meados de

1871, quando os trabalhadores conseguem significativamente o acesso à representação

fotográfica. Devido ao seu poder no governo, os operários conquistam um acesso, mesmo que

fugaz, à imagem. Esse acesso era tanto positivo, pelo princípio da democratização da

representação visual, como negativo, uma vez que, devido a sua função documental, a

fotografia poderia ser usada também como provas contra o próprio governo, visto que seus

usos são incontroláveis.

No Brasil, a popularização da fotografia entre a classe operária aconteceu na década de

1940. Nessa época, ocorreu a Consolidação das Leis trabalhistas no Brasil – aprovada em

1943 –, em que os trabalhadores tinham conquistado alguns direitos sociais. Eles passaram

pelo processo da fotografia para produção da carteira de trabalho, e, assim, tornaram-se

incluídos nesse espaço de representação fotográfica, que antes era um privilégio dos mais

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ricos. Nesse momento, muitos trabalhadores tiraram a sua primeira carteira de trabalho e

tiveram um contato elementar com uma câmera fotográfica.

O mineiro Assis Horta ganhou destaque nesse contexto por fotografar os primeiros

retratos de operários legalmente registrados no Brasil. Ele recebeu alguns trabalhadores e seus

familiares em seu estúdio, localizado na cidade de Diamantina. Na ocasião, Horta emprestou

algumas vestimentas, para fazer com que todos saíssem bem nos retratos. A identificação dos

trabalhadores retratados era feita por meio de uma plaqueta, na qual todos eram obrigados a

segurar, que continha a data em que cada foto era retirada. As fotos eram em tamanho 3x4 ou

tamanho postal e eram cobrados três cruzeiros para a sua produção. Essa oportunidade foi de

grande valor para os operários, visto que era a primeira vez em que estavam sendo

reconhecidos e representados de alguma forma. Harazim (2016, p. 39) relata, por meio do

perfil produzido sobre o retratista Assis Horta, um pouco desse impacto social:

[...] quando as operárias finalmente tiveram em mãos seu retrato 3x4, e ainda por

cima levaram a cópia em papel para mostrar a quem quisessem, o impacto deve ter

sido memorável. Para muitas daquelas mulheres, e homens também, aquele fora o

primeiro retrato de toda uma vida. E permanentemente, não mais só a imagem

refletida em alguma superfície espelhada. (HARAZIM, 2016, p. 39).

Horta transformou as fotografias em registros históricos, fazendo com que os operários

fossem retratados com reverência e zelo, utilizando técnicas e cuidados com a luz e o

posicionamento. Devido ao seu profissionalismo, Horta precisou ampliar seu estúdio e suas

variedades de retratos. Os retratados sempre voltavam, trazendo consigo as suas famílias, que

eram deixadas bem à vontade pelo fotógrafo, pois se preocupava somente com a parte técnica

ou com pequenos ajustes nas vestimentas.6

De acordo com Rouillè (2009), em meados de 1970, o caráter documental da

fotografia entrou em crise. Essa mudança de tendência ocorreu quando nasceu um mercado da

fotografia no âmbito da cultura e das artes, que antes era ainda restrito. Exemplo disso é o

surgimento de festivais, revistas, exposição de obras em locais públicos e privados e a

abertura de escolas especializadas em fotografia. Como consequências a essas

transformações, a fotografia foi construindo a sua legitimidade social, cultural e artística. Essa

nova tendência é associada ao caráter de expressão da fotografia, não só no que se diz respeito

6 Em março de 2017, duzentas fotos dos operários tiradas pelo fotógrafo foram expostas no Espaço Cultural

BNDES, no Rio de Janeiro. A partir do vídeo publicado pela BBC Brasil, foi possível perceber que o

diferencial do artista naquela época foi utilizar a fotografia como um instrumento pela igualdade e celebrar o

trabalho e a conquista de direitos dos operários. Eram pessoas invisíveis e, ainda como agora, sem prestígio

social.

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aos valores subjetivos no modo de representação, mas também às formas de interação e

dialogismo com o sujeito representado.

A transição da fotografia-documento para a fotografia-expressão tornou-se notável no

final do século XX, quando seu aspecto documental começou a se fragilizar e perder

credibilidade no que se diz respeito à sua veracidade representativa. Rouillè (2009) acredita

que mesmo na fotografia-documento há presente a expressão, seja em forma de escrita, de

subjetividade ou de um destinatário. Ou seja, a diferença entre esses dois tipos de fotografia,

segundo ele, se encontra mais no grau de expressão do que em sua essência, uma vez que a

fotografia-expressão permite outras posturas, usos, formas, manifestações, procedimentos e

contextos, que por ora eram marginalizados e até mesmo proibidos.

Enquanto a fotografia-documento se apoia na crença de ser uma impressão direta, a

fotografia-expressão assume seu caráter indireto. Do documento à expressão,

consolidam-se os principais rejeitados da ideologia documental: a imagem, com

suas formas e sua escrita; o autor, com sua subjetividade; e o Outro, enquanto

dialogicamente implicado no processo fotográfico. (ROUILLÈ, 2009, p.19,

destaque nosso).

Nesse sentido, e trazendo para o contexto de Memórias da Vila, nossa hipótese é a de

que os retratos ali representados estão entre o documento e a expressão. Essa proposição se

justifica pelo fato de que foram produzidos por meio de uma “poética da convivência”, um

envolvimento, que tem por objetivo, segundo Cunha (2016), a tentativa da aproximação entre

realidades. Além disso, ao mesmo tempo em que possui esse caráter expressionista, a

fotografia em Memórias da Vila documenta, registra e agrega ao projeto um caráter

mnemônico, carregando, portanto, traços da “ideologia documental”7 abordada por Rouillé

(2009).

No decorrer das transformações na sociedade, a modernidade fotográfica − com sua

característica de imagem-máquina, muitas vezes requisitada por desenhistas e artistas – surge,

juntamente com uma imagem tecnológica, em que a mão do indivíduo é abolida, em

substituição às técnicas do cinema, do vídeo e da televisão. “Atualmente, o declínio das

funções documentais da fotografia acompanha o fim da modernidade e da sociedade

industrial, e traduz-se em uma eclosão das práticas entre os múltiplos domínios − a fotografia,

7 Quando Rouillè (2009) se refere ao termo “ideologia documental”, sua intenção é ratificar que a fotografia,

como qualquer outra imagem, não é meramente um documento, apenas carrega um valor documental, que

muda de acordo com as circunstâncias. Ele defende, dessa forma, a expressão para além da arte, quando diz

que “mesmo quando está em contato com as coisas, o fotógrafo não está mais próximo do real do que o pintor

trabalhando diante de sua tela.” (ROUILLÈ, 2009, p. 19). Portanto, o termo ideologia está expresso no sentido

de que entre a imagem fotográfica e o real sempre existirá uma série de outras imagens na ordem do visível e

por meio de esquemas icônicos e estéticos presentes no contexto de quem a representa.

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a arte contemporânea e as redes digitais.” (ROUILLÈ, 2009, p. 31). Essas novas práticas de

mecanização são vistas pelos modernos como o principal meio para a eficácia das formas de

representação através da fotografia.

Na realidade, ser moderno talvez seja isto: primeiramente acreditar que, em qualquer

matéria, o humano e o não humano se distinguem de maneira radical, que nenhuma

zona os religa, que entre eles não é possível nenhuma interferência, nenhuma

composição, nenhuma hibridação. E, em seguida, dentro do quadro dessa disjunção,

acreditar nas virtudes das coisas, das máquinas, das ciências. Em se tratando de

fotografia, os adversários antimodernos e os partidários modernos cometem,

simetricamente, o mesmo erro. Polarizados pela questão da técnica – uns a

diabolizam, outros a idealizam −, durante muito tempo vão recusar-se a pensar na

fecundidade de uma posição intermediária (ou mesmo reconhecê-la): aquela que

admitiria que a arte e a fotografia não são inconciliáveis a priori. (ROUILLÈ, 2009,

p. 33).

Na modernidade, o artista adere a novas ferramentas para representar uma imagem.

Ele deixa de lado a relação entre o corpo-ferramenta e a imagem manual e passa a adquirir

uma nova relação entre as coisas do mundo e as imagens. Sendo assim, “enquanto as imagens

manuais emanam dos artistas, longe do real, as imagens fotográficas – que são impressões

luminosas – associam o real à imagem, longe do operador.” (ROUILLÈ, 2009, p. 34). Para o

autor, a modernização da fotografia promove, portanto, esse “distanciamento” entre a imagem

e seu operador, gerando novos protocolos, bem como a passagem da ferramenta para a

máquina e da oficina para o laboratório. Uma renovação do seu projeto documental para o seu

projeto expressionista.

Segundo Rouillè, no início dos anos 1980, o discurso predominante acerca da

fotografia se baseava nas teorias semióticas, sobretudo relacionadas aos estudos de Charles

Peirce, ligados aos ícones. Nessa época, a fotografia ainda perpassava por teorias

essencialistas e abstratas, no sentido de “relacionar as imagens à existência prévia das coisas.”

(ROUILLÈ, 2009, p. 17) e ainda reduzir a fotografia à forma de funcionamento do dispositivo

no qual se insere, uma vez que desconsidera seu contexto e sua singularidade. Nessa linha de

pensamento, “a fotografia tem seu paradigma construído a partir do grau zero, do seu

princípio técnico, muitas vezes confundido com um simples automatismo.” (ROUILLÈ, 2009,

p. 18). Entretanto, o autor mostra, de forma histórica, que a fotografia ultrapassa seu sentido

meramente utilitário, mesmo em seu caráter documental − sempre pensando no seu sentido

plural e considerando suas singularidades e transformações.

No ocidente industrial, onde a fotografia se instala, ocorre o fenômeno da criação das

grandes redes, como já citado. Com ele, há a passagem do local para o global, visto que a

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relação de espaço e tempo se aproxima e as comunicações se tornam mais facilitadas. Surge

então a necessidade de redefinir as funções mediadoras da imagem.

A partir do momento em que espaços heterogêneos ou radicalmente desconectados

separam coisa e imagem, tornando-as, assim, incomparáveis diretamente, o valor

representativo da imagem – ou seja, sua credibilidade documental – tem necessidade

de ser de novo fundamento. É a essa situação que a fotografia vem atender,

principalmente por abolir a servitude humana. (ROUILLÈ, 2009, p. 49).

Dessa forma, a fotografia − pelas técnicas de reprodutibilidade, sua mobilidade

espacial/temporal e sua capacidade de agilidade na produção − conquistou um papel de

“mediadora entre o mundo e os homens”, numa espécie de princípio democrático. Ou seja, a

fotografia traz consigo um projeto de tornar visível, que predomina em relação ao mero

registro e documentação de fatos.

Para o autor a fotografia traz mais do que a representação do visível:

[...] A fotografia é máquina para, em vez de representar, captar. Captar forças,

movimentos, intensidades, densidades, visíveis ou não; e não para representar o real,

porém para produzir e reproduzir o que é passível de ser visível (não o visível).

„Tornar visível, e não apenas apresentar ou reproduzir o que é visível‟ (Paul Klee)

[...]. (ROUILLÈ, 2009, p. 36).

Susan Sontag (2008), em sua obra, propõe ver a fotografia a partir dessa perspectiva

moderna, reconhecendo, principalmente, o seu modo de lidar com a complexidade e as

contradições do mundo. A fotografia, para a autora, torna visível por meio de fragmentos, ou

seja, o universal é representado no particular. É, portanto, uma maneira de ver que chama

atenção para certas ações e diversidades presentes na sociedade, que de certa forma eram

invisíveis. Essa operação por fragmentos permite a atenção e a percepção de determinado

contexto ou situação, de modo a iluminar determinados pontos cegos, por meio de detalhes.

Serelle analisa os aspectos fotográficos presentes nas obras de Sontag, e ressalta essa

característica de ampliação dos modos de ver o mundo, quando destaca que a forma de ver em

fragmentos dá a ideia de que a realidade é ilimitada e, por isso, as imagens técnicas, feitas por

câmeras, são importantes para dar apoio às novas formas de visibilidade. Além disso, para o

autor, na modernidade, a realidade se torna uma aparência, sempre fugaz e em transformação,

assim como as “verdades provisórias de um ensaio”, gênero cultivado por Sontag.

(SERELLE, 2015. p. 72).

Diante dessas características da fotografia, pode-se dizer que a realidade representada

se torna ilimitada, assim como o conhecimento, visto que tudo se torna relativizado, de acordo

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com o ponto de vista fotografado. E, por isso, “todas as fronteiras, todas as ideias unificadoras

tendem a ser enganosas, demagógicas; na melhor hipótese, temporárias; a longo prazo, quase

sempre falsas.” (SONTAG, 2008, p. 137).

Além disso, nessa sociedade moderna, a realidade é também acessada por câmeras,

que acabam por definir o que é ou não real, sem a necessidade de se experimentar o mundo de

forma direta. O que vai ao encontro do pensamento de Silverstone (2002a), quando este se

refere à importância da mediação tecnológica para a vida cotidiana, uma vez que ela – graças

aos meios técnicos de comunicação, entre eles a fotografia − nos dá a ver indivíduos, objetos

e espaços distantes, que não são “experimentados” ou vivenciados diretamente, mas retratados

e tornados visíveis e conhecidos por meio dos diversos gêneros imagéticos.

Essas imagens representadas, inseridas nessa maneira moderna de conhecer

(SONTAG, 2008, p. 138), atuam, portanto, como “fatos” da realidade. Nessas condições, a

realidade, para a autora, é reduzida à aparência. Uma aparência fugaz, que acompanha a

efemeridade da vida moderna, tornando-a memorável.

Dessa forma, e ainda se tratando da maneira moderna de ver, as fotografias podem

tornar visíveis e conhecidos espaços e pessoas que existem, mas que ainda estão socialmente

marginalizados, afastados ou mesmo apagados. Em consonância a esse projeto inclusivo da

fotografia está a fala do artista Guilherme Cunha, de Memórias da Vila, na entrevista

realizada para esta pesquisa, em outubro de 2016. O fotógrafo reitera a característica

fragmentária da fotografia, bem como o seu caráter social, que permite lidar e conhecer

melhor as contradições existentes na sociedade. Para ele, a fotografia é importante não só para

tornar familiar o que era tido como marginalizado, mas também para inspirar um senso crítico

em relação à realidade representada, uma espécie de inquietação e questionamento sobre

determinada situação.

Essa proposta moderna da fotografia vai ao encontro, também, da sociologia das

ausências e das emergências, apresentada por Boaventura Santos (2007) e discutida no

segundo capítulo desta dissertação, na medida em que propõe tornar presentes muitas

realidades e experiências consideradas como ausentes, por não serem de fato vistas ou

representadas.

Por isso, cabe aqui, a discussão do princípio democrático da fotografia, apontado

anteriormente por Rouillè (2009), que está ligado ao acesso e à reprodutibilidade fotográfica

nas sociedades. A partir do Entreguerras, a socialização do ato fotográfico muda de aspecto,

devido à mudança radical no contexto político social. A educação e as inovações tecnológicas

contribuíram para esse processo de democratização, transformando a fotografia em uma arte

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popular por excelência e colocando-a ao alcance do maior número de pessoas. Rouillè explica

essa mudança:

Em um primeiro momento, a ação democrática foi concebida (mais do que

realmente exercida) sob a forma de „vulgarização‟, este misto de utopia e de

disciplina procurando utilizar a fotografia-documento para apresentar amplamente as

façanhas da indústria e para compartilhar com o maior número de pessoas as jóias

do patrimônio cultural - „as riquezas confinadas até então nas caixas de papelão dos

colecionadores privilegiados pela sorte‟. No entreguerras, a democratização

consistiu em possibilitar a todos o acesso à prática: não mais abandonar a fotografia

a uma minoria, e integrá-la em todos os momentos da vida. A educação e as

inovações técnicas – a diminuição do tamanho das máquinas, a simplificação das

operações, a instantaneidade etc. – contribuíram para isso. (ROUILLÈ, 2009, p. 56).

Desprovida do olhar artístico e hierarquizado, a fotografia é democrática por tratar de

forma igual todas as coisas − com ressalva, evidentemente, para a questão dos

enquadramentos fotográficos, em que o todo, muitas vezes, é representado pela parte, fazendo

com que a escolha do ponto de vista do fotógrafo exclua outras realidades existentes no

contexto fotografado. Por essa razão, Rouillè compara a fotografia com o sol, que aparece

para todos sem distinção de sua forma. Por isso, o autor traz à tona uma forma inicialmente

moderna de pensar o fotográfico em que “a fotografia e a arte são inconciliáveis, assim como

a democracia e a aristocracia.” (ROUILLÈ, 2009, p. 57). Essa comparação é explicada

referindo-se à “teoria dos sacrifícios”, na qual se relaciona com a arte e apresenta-se contrária

a fotografia. Essa teoria diz respeito aos modos de reprodução que deixam de lado o

detalhamento dos elementos devido à preocupação na precisão da representação e na

organização dos elementos. A diferença é percebida porque “o fotógrafo „tira‟, o pintor

compõe; a tela é uma totalidade, a fotografia é apenas um fragmento.” (ROUILLÈ, 2009, p.

57).

Desse modo, essa oposição entre a fotografia e a arte está no aspecto estético e na ação

de representação e escolha dos detalhes de uma imagem. E, mais do que isso, está na distância

existente entre a arte e o documento, ou seja, a realidade e sua cópia, reproduzida como sendo

sua equivalência. Histórica e politicamente falando, esse conflito se deve também às

mudanças culturais de uma sociedade pré-industrial para a sociedade industrial.

Cabe aqui relembrar novamente da proposta de Boaventura Santos (2007), quando este

aponta os processos de tradução e propõe o estabelecimento de traduções interculturais, de

engendramento de inteligibilidade, sem aniquilamentos – mesmo reconhecendo a densidade

desse desafio. Pois, na medida em que considera o processo de tradução como um modo de

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afirmação da alteridade, a prática necessária da sociologia das emergências volta a ser

lembrada. Considera-se aqui, neste trabalho, a fotografia como um processo de tradução.

De acordo com Monteiro (2012), nesse processo de tradução, vale ressaltar que a

fotografia possui vários gêneros. O gênero do fotojornalismo, que representa imagens para

material jornalístico e se subdivide entre fotografias sociais: como política, economia,

negócios e tragédias cotidianas; fotografias esportivas, que fazem parte da cobertura de

eventos esportivos; fotografias culturais: que possuem a função de chamar a atenção do leitor

para a notícia e as fotografias policiais: que envolvem acidentes com mortes e

aprisionamentos, por exemplo. Outro gênero da fotografia é o científico, que é utilizado para

auxiliar cientistas e pesquisadores no estudo de determinados objetos. O gênero comercial

evidencia algumas características de determinado produto; que é diferente do gênero

publicitário, cujo objetivo é persuadir o espectador e, por isso, nem sempre registra o real.

Além desses, há, também, a fotomontagem, que manipula, ou mistura várias imagens,

resultando, muitas vezes em abstração; a fotografia amadora, que são registros feitos por

pessoas leigas, sem quaisquer vínculos comerciais; e, por último, o gênero do retrato, que

mais se evidencia, para fins dessa pesquisa. Ele busca captar a essência do retratado e será

mais detalhado adiante.

3.1.1 O retrato como gênero de figuração visual

A fotografia, para Almeida, representa um atestado de presença do retratado e é

conhecida como uma arte mimética, relacionando a percepção do sujeito à sua forma

representada bidimensionalmente. A autora se apoia no pensamento de Barthes, a respeito do

significado da fotografia, quando ele diz que esta funciona como “um „analogon‟ perfeito do

que ela representa: como se houvesse uma contiguidade física entre o sujeito e a sua

imagem.” (ALMEIDA, 2012, p. 99). Segundo a autora, a popularização da fotografia se deve

à indústria do retrato, que é um gênero em que a imagem é fixada e se confunde com aquele

Outro posicionado diante da câmera.

Vale discorrer aqui, ainda que de forma breve, sobre as fotografias de rostos, desde

suas reproduções em David Octavius Hill, retratista famoso recuperado em Benjamin (1994) e

contemporâneo de Daguerre8 no século XIX. Nessa época, além dos altos preços do

8 Quando se coloca Hill como contemporâneo de Daguerre, a intenção é situar o leitor sobre a técnica de

reprodutibilidade fotográfica predominante naquela época (1840): o daguerreótipo. Esse aparelho foi um

marco na história da fotografia, por fixar as imagens obtidas na câmara escura em uma folha de prata sobre

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daguerreótipo e das produções dos fotógrafos, os jornais também eram considerados objetos

de luxo e, por isso, raramente eram comprados pelas pessoas. Por isso, a fotografia aparecia

ainda para um círculo restrito e sem acompanhamento de textos e legendas para a sua

identificação. A legenda, para Benjamin (1994, p. 107), é necessária para estabelecer a

“literalização de todas as relações da vida”, com ela a produção fotográfica corre menos risco

de se tornar vaga e aproximativa.

Outra particularidade das fotografias dessa época, no que se diz respeito à sua

produção, é a longa duração da pose do retratado, em que o próprio procedimento técnico do

daguerreótipo levava o modelo a ficar longos tempos expostos à câmera, e, por isso,

precisavam de pontos de apoio para conseguirem ficar imóveis. “No início, os fotógrafos se

contentavam com dispositivos para fixar a cabeça ou o joelho. Depois vieram outros

acessórios, como nos quadros célebres, e, portanto, tinham que ser „artísticos‟.” (BENJAMIN,

1994, p. 98).

Nesse sentido histórico, Annateresa Fabris (2004, p. 38) traz análises de obras de

nomes importantes da fotografia, que se propõem a uma leitura crítica do processo de

representação do indivíduo por meio do retrato, bem como sua afirmação identitária. Para a

autora, todo retrato é um ato social e de sociabilidade, visto que obedece a determinadas

normas de representação e gera múltiplas construções de sentido no intercâmbio social. Por

meio dele o modelo representado expressa sua personalidade subjetiva e o grupo social a que

pertence.

De acordo com a autora, a característica mais admirável do retrato é a capacidade de

testemunhar, de revelar a sua verdadeira natureza e dar a ver um outro sem intercessões. Mas

revela que para que isso se torne possível “é necessário que o fotógrafo seja, a um só tempo,

inexistente e um deles.” (FABRIS, 2004, p. 14), que se coloque no lugar desse Outro.

[...] o que importa num retrato fotográfico não é a identidade, e sim a alteridade

secreta, aquela máscara que torna o indivíduo singular, que o transforma em “coisa

entre as coisas”, todas estranhas umas às outras, todas familiares e enigmáticas, em

lugar de um universo de sujeitos comunicando-se todos uns com os outros, todos

transparentes uns aos outros. (FABRIS, 2004, p. 14).

Entretanto, a autora compara o ato de reprodução do retrato com o ato de ver a si

mesmo através do espelho. Para ela, posicionar-se diante do espelho para ver o próprio corpo

revela a impossibilidade de se ver como os outros de fora o veriam. O que o espelho revela na

uma placa de cobre, implantando assim uma nova técnica e desencadeando outras evoluções na história da

arte. (BENJAMIN, 1994).

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verdade é um outro que existe dentro dele próprio, o que gera a impossibilidade de conhecer-

se em sua essência.

Nesse sentido, o retrato é como o espelho. Fabris aponta que a reprodução da

exterioridade do ser por meio do retrato suscita algumas reflexões sobre a impossibilidade de

se conhecer, bem como de conhecer o que os outros veem no seu próprio corpo. Por isso,

afirma também que “tal como o espelho, o retrato fotográfico devolve ao indivíduo uma

imagem morta, criada por uma suspensão temporal.” (FABRIS, 2004, p. 155), e ainda

assegura que “a única possibilidade de ter uma imagem viva de si reside na fotografia

instantânea que, em geral, é rejeitada pelo indivíduo que a ela prefere a estátua decorrente da

pose.” (FABRIS, 2004, p. 155). Enquanto pose, a imagem é tida como uma estátua, sem vida.

A essência do indivíduo se torna, portanto, secreta, invisível, passível de conhecimento

apenas pelo aparelho psíquico. Pode-se dizer assim que retrato e espelho possuem o mesmo

mecanismo de autorevelação do Outro, decaindo no desafio da alteridade colocado

anteriormente por Lévinas (1980).

Para Barthes (1984), esse Outro, antes, como foi visto, era retratado apenas para fins

de tornar conhecida a sua situação financeira e social, bem como registrar sua imagem para

uma condição legal e trabalhista. O ato de ver a si mesmo através do retrato, e não mais em

um espelho, é uma condição recente ainda na escala da história da humanidade, de acordo

com o autor.

Dessa forma, Barthes (1984), também citado em Fabris (2004), traz à tona, em sua

discussão, o risco da desapropriação do Outro no ato fotográfico, que está ligado à morte, ou

ao desconhecimento do retratado. Por isso, diz que o campo do foto-retrato é cerrado de

forças, que influenciam diretamente nas formas de como o Outro é retratado, dentre elas a

força comercial, por exemplo.

Imaginariamente, a Fotografia (aquela de que tenho a intenção) representa esse

momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um

objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma

microexperiência da morte (do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro. O

Fotógrafo sabe muito bem disso, e ele mesmo tem medo (ainda que por razões

comerciais) dessa morte em que seu gesto irá embalsamar-se. (BARTHES, 1984, p.

27-28).

Em outras condições, que não sejam comerciais, o autor explicita que é dever do

fotógrafo lutar para que a “fotografia não seja a morte”, visto que o objeto retratado é

impossibilitado de agir e ainda está sujeito às livres interpretações e leituras pela sociedade,

tornando-se, portanto, um “todo-imagem” ou ainda a “morte em pessoa.” (BARTHES, 1984,

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p. 28). Nesse processo de desapropriação do Outro, o sujeito acaba ficando à mercê de

trucagens sutis, estabelecidas, por exemplo, pela pose do sujeito representado.

Ao propiciar o advento do eu como outro, a fotografia cria uma cisão profunda entre

o sujeito e a própria imagem, estimulada pelo mecanismo da pose. Para além da

herança pictórica e da sujeição a alguns artifícios indispensáveis nos primórdios da

imagem técnica, a pose é considerada por Barthes como um dispositivo dotado de

um significado ulterior, visto proporcionar a fabricação instantânea de um outro

corpo, a autotransformação do sujeito em imagem, num movimento interativo com o

a objetiva. (FABRIS, 2004, p. 115-116).

Surge aqui a problematização em torno do dilema da conquista da representação, por

meio dos retratos fotográficos, que, ao mesmo tempo democratizaram a visibilidade dos

sujeitos, mas esses continuaram privados de sua voz, do seu “direito político de ser um

sujeito.” (BARTHES, 1984, p. 29). O autor questiona, ainda, a questão da propriedade da

foto. Afinal, ela pertence ao sujeito fotografado ou ao fotógrafo? Concluiu com suas

experiências que a fotografia acaba por transformar o sujeito em objeto, devido a uma

sociedade em que o ser baseia-se em ter (BARTHES, 1984, p. 26). Sendo assim, a questão da

propriedade da fotografia é, predominantemente, do fotógrafo.

Esse dilema vai ao encontro da questão da violência simbólica das imagens, pontuada

por Guilherme Cunha, em sua entrevista para esta pesquisa, quando alerta para a questão da

detenção, controle e perpetuação da imagem na sociedade, da criação de nichos de afirmação,

dominados por determinados grupos. Segundo Cunha, a violência simbólica, nesse contexto,

ocorre nessa situação, em que a pessoa retratada, muitas vezes, é inviabilizada de penetrar nas

membranas sociais e acaba recebendo um tipo de treinamento ou adestramento sensível, que

impede sua participação na sociedade. Ele exemplifica essas estratégias com a vitimização e a

criminalização da pobreza, a naturalização dos preconceitos, que ocorre de forma sutil e

programada.

Então o objetivo é você manter essa crença, é tipo uma crença, é pior do que

qualquer contexto religioso e alienante que possa existir no mundo, é pior do que

qualquer outra coisa, porque é programado. É um contexto que tem um controle

programado voltado para a manutenção dessa inclusão do outro. É literalmente isso

que a gente chama de violência simbólica, porque, por exemplo, a pintura sempre

vinculou a ideia de inocência e fragilidade às crianças brancas, loiras. A criança

negra sempre apareceu imageticamente num contexto de insegurança, de pobreza,

violência. Então você cria uma repulsa àquilo. O ser humano sofre um adestramento,

uma ditadura da sensibilidade, no meu ponto de vista, porque você adestra a pessoa

a ser sensível àquele tipo de situação, de organização simbólica, de código natural e

a não ter nenhum tipo de movimentação íntima a si mesmo. De não reconhecer a

beleza num contexto mais amplo. (Guilherme Cunha).9

9 Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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Nesse sentido, esta pesquisa busca problematizar, a partir dos elementos do dispositivo

de visibilidade em questão, neste caso o retrato, formas e tentativas de quebrar estereótipos,

criando outros modelos de representação desse Outro. Nessa linha de pensamento,

trabalharemos aqui com o retrato como gênero de figuração visual, já que em Memórias da

Vila é a forma mais evidente de representação dos sujeitos, ainda que existam, também na

obra, algumas fotografias do ambiente interno das casas dos moradores retratados.

O retrato, ainda segundo Barthes (1984, p. 188), correlaciona inevitavelmente

representação e sujeito. Essa conexão física entre “aquele que emana os raios de luz em

direção à câmera fotográfica.” (ALMEIDA, 2012, p. 99) e a sua representação na superfície

bidimensional é o objetivo que diferencia o retrato dos demais gêneros da fotografia. Todavia,

essa contiguidade entre realidade e representação já era observada no século XVIII, segundo

Almeida (2012), em um dispositivo popular de representação anterior à fotografia de retratos:

nos perfis desenhados em silhueta. A partir daí surge a noção de mimesis na representação,

que confunde a pessoa com o seu retrato.

De acordo com Picado, que possui um estudo voltado para a representação política

através do retrato, “o retrato se define como modo de rendição visual que opera no princípio

de que sua figura central [...] se constitua para a imagem sob os parâmetros de sua possível

recognoscibilidade.” (PICADO, 2009, p. 5). Retratar é, segundo o autor, atribuir distinção

pela ação de representar a fisionomia humana.

O retrato propõe um desenho de caráter − um ethos− e ao mesmo tempo uma relação

ética estabelecida com o Outro. Esse ethos diz respeito às formas e elementos de composição

da imagem que formam o sujeito representado e que vão além da expressão corporal, como,

por exemplo, a pose do retratado, suas vestimentas e seu olhar.

A pose era usualmente o protocolo de base da atitude pelo qual o retratado se

colocava para a fixação de sua imagem: era mediante tal gênero de disposição que

os modelos se dispunham a exibir os traços pelos quais supunham dever ser

reconhecidos [...] (PICADO, 2009, p. 6).

A caracterização e fixação dos traços do caráter do retratado depende, portanto, da

composição dos elementos nesse gênero de figuração, bem como da sua fisionomia e atitude

corporal.

Numa primeira aproximação com o objeto, notamos que os moradores em Memórias

da Vila foram retratados de modo que o seu rosto e, principalmente, o seu olhar atinja

diretamente o olhar do espectador, como forma de promover a sensibilidade para a sua vida,

por ele narrada. O leitor teria, então, sua própria subjetividade afetada pelo “retratismo

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fotográfico.” (PICADO, 2009, p. 7), arquitetado pelo projeto. Parece-nos que a obra pretende

ativar, assim como assinala Cunha e Tavares, “um campo de permuta e intercâmbio entre

vozes e olhares, memórias e vida.” (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 14).

A arte do retrato traz, portanto, uma diversidade de mediações possíveis por meio do

ethos particular de cada obra. Sontag (2008) ratifica as infinitas possibilidades trazidas pela

fotografia a partir do olhar do fotógrafo e sua intenção, mas nos coloca a questão sobre como

lidar com essa diversidade:

A fotografia – a forma suprema de viajar, de turismo – é o principal meio moderno

de ampliar o mundo. Como um ramo da arte, o projeto da fotografia de ampliação

do mundo tende a especializar-se em temas tidos por contestadores, transgressivos.

Uma foto pode estar nos dizendo: isso também existe. E isso. E isso. (E tudo isso é

“humano”.) Mas o que devemos fazer com esse conhecimento – se de fato é um

conhecimento sobre, digamos, o eu, sobre a anormalidade, sobre mundos

clandestinos ou relegados ao ostracismo? (SONTAG, 2008, p. 140).

Diante dessa diversidade e ao mesmo tempo em que resulta de um olhar do fotógrafo,

a fotografia também é difícil de ser entendida separada do sujeito que ela representa, visto

que, segundo Barthes, o que ela representa e o modo como representa, não será passível de

reprodução semelhante, posteriormente: “[...] ela repete mecanicamente o que nunca mais

poderá repetir-se existencialmente.” (BARTHES, 1984, p. 13). Desse modo, ela representa o

referente em seu particular, que foi dado a ver em determinado momento e fragmento.

Devido a essa complexidade e visando à ampliação do imaginário do espectador, que

entra em contato com determinado dispositivo de visibilidade, Memórias da Vila alia o retrato

ao testemunho em primeira pessoa, no processo de representação.

3.2 O testemunho na representação do Outro: evolução histórica e usos

Outro elemento componente do dispositivo de visibilidade em estudo é o relato em

primeira pessoa − tratado aqui como testemunho −, que surgiu no projeto, segundo Guilherme

Cunha, com o objetivo de complementar o trabalho fotográfico, no exercício de narrar o

Outro, “indo além do sentido contemplativo e icônico”, inerente às fotografias (Guilherme

Cunha).10

Os relatos foram produzidos a partir de entrevistas realizadas pela jornalista Joana

Tavares com alguns idosos moradores do Aglomerado, que, após a gravação, os transcreveu e

editou. Essa narrativa apresenta-se na obra com um nível de coloquialidade comum da fala e

certo ritmo de oralidade. Nota-se, numa primeira aproximação com os relatos, que a

10

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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ortografia reproduz a fala popular, o que demostra a intenção de narrar de forma mais

aproximativa da realidade dos sujeitos narradores.

Segundo Guilherme Cunha, a intenção inicial do projeto, antes da idealização do livro,

era a produção de um documentário sobre os moradores da Serra. Porém, acreditaram que a

fotografia, aliada ao relato, em um dispositivo de leitura como o livro, seria mais eficaz no

que se refere ao grau de envolvimento do leitor.

A imagem tem esse poder de absorção, no meu entendimento. A partir do momento

em que você constrói junto com a pessoa. É diferente da pessoa está te contando a

história dela e você estar inserindo a história dela no seu imaginário. Tem um

interesse, um esforço íntimo de você imaginar a vida daquele ser, a vida de quem

está ali. [...] De forma voluntária, você absorve aquilo, então eu acho que no

processo de construção simbólica de conhecimento, intermediado pela produção

poética, tudo tem um distanciamento da realidade, que é importante para que a gente

consiga reposicionar, refazer essa ideia no nosso imaginário. Às vezes no

documentário audiovisual, com o movimento, com a voz da pessoa é diferente. No

livro a voz presente é a voz da sua cabeça, a sua voz falando da vida do outro. É

diferente do outro falando da vida dele. Tem um grau de participação

diferente, é mais íntimo do leitor. Tem uma troca de lugar importante. Você

está vendo a pessoa, mas é a sua voz na sua cabeça lendo o texto. Tem uma

coisa de se colocar no outro. (Guilherme Cunha, destaque nosso).11

Nesse sentido, a valorização das narrativas pessoais em Memórias da Vila está no

sentido de dar a voz, de construir uma história carregada de atributos testemunhais, que ao

mesmo tempo torna conhecida e dignifica realidades. Aliados aos retratos, os testemunhos

possuem, portanto, grande relevância no processo de mediação do Outro, bem como de

empatia, num artifício de leitura das histórias em primeira pessoa que faz ecoar o texto na

mente do próprio leitor, em um processo de vivência de experiências.

Para Agamben (2008, p. 27)12

, o significado etimológico do termo testemunho deriva

de dois outros termos em latim. Testis, que significa “aquele que se põe como terceiro em um

processo ou em um litígio entre dois contendores” e o segundo, superstes, que se refere

“àquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho

disso”. Há ainda, segundo o autor, um terceiro termo que expressa a ideia da testemunha: o

auctor, que quer dizer “quem intervém no ato de um menor (ou de quem, por algum motivo,

não tem a capacidade de realizar um ato juridicamente válido), para lhe conferir o

complemento de validade de que necessita.” (AGAMBEN, 2008, p. 149).

11

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016. 12

“O que resta de Auschwitz” é uma obra de Giorgio Agambem, publicada em 2008, que recupera de forma

interessante testemunhos de sobreviventes do Holocausto nazista, privados do direito à linguagem, no intuito

de valorizar narrativas e preservar histórias de vidas. Portanto, não é um livro histórico, mas uma obra que

destaca as dificuldades do testemunho nesse contexto.

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O autor conceitua o testemunho no contexto da barbárie do Holocausto nazista e, por

isso, acredita que as verdadeiras testemunhas são as que viveram de fato a experiência até o

fim, e assim conseguem relatá-las de modo completo − superstes. No caso dos sobreviventes

do extermínio, é possível alcançar apenas uma aproximação da situação com o seu

testemunho, já que não vivenciaram todas as fases no campo de concentração. Por isso,

Agamben (2008, p. 146) acredita que há uma lacuna no ato de testemunhar e posiciona esse

ato entre o dizível e o indizível, entre o que se pode dizer e o que de fato se diz. Nesse

sentido, ele pensa o testemunho enquanto potência, por fazer referência àquilo que não é

dizível, pelo fato de não tê-lo vivenciado por inteiro.

O testemunho é uma potência que adquire realidade mediante uma impotência de

dizer e uma impossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidade de

falar. Os dois movimentos não podem nem identificar-se em um sujeito ou em uma

consciência, nem sequer separar-se em duas substâncias incomunicáveis. Esta

indivisível intimidade é o testemunho. (AGAMBEN, 2008, p. 147).

Portanto, esse caráter potencial do testemunho só existe por haver uma impotência, ou

seja, uma impossibilidade de fala, de fixação da verdade do fato por aquele que é desprovido

do direito da enunciação. Diante dessa situação, o Outro, sem autoridade para fala, é por vezes

representado por um modo de testemunhar, que acaba sendo tomado como verdade – testis.

Dessa forma o testis, aquele que vê a cena, é diferente, portanto, daquele que vive a cena de

fato, até o fim − o superestis −, mas estão relacionados.

Assim como Agambem (2008), Seligmann-Silva (2005) conceitua o testemunho a

partir da perspectiva europeia – com ênfase na abordagem da memória, voltada para a noção

do fato histórico da Shoah, como já visto −, mas, à diferença de Agamben, reflete sobre esse

tipo de relato no contexto da América Latina. Para esta dissertação vale destacar o discurso

desenvolvido na América Latina, uma vez que, nele, a reflexão sobre a política da memória

no testemunho é desenvolvida dentro de um viés de luta de classes, enfatizando os esforços

revolucionários de sujeitos excluídos socialmente.

O testemunho, ou testimonio − como é referido por Seligmann-Silva (2005), em sua

origem espanhola13

− teve seu surgimento por meio de ondas de memórias que são

deslanchadas por grandes processos, como é o caso da Shoah e também da Revolução Cubana

de 1959, por exemplo, que tem papel importante na origem desse gênero. Isso se justifica pelo

13

O termo Hispano-Américo testimonio, para Seligmann-Silva, é mais adequado para uso no seu sentido estrito

da relação entre literatura e justiça, representando situações de lutas de classes e conquistas de direitos, por

sujeitos marginalizados socialmente e anônimos. Portanto, não se deve confundir o testemunho, na sua

utilização em vários gêneros, com diferentes roupagens, e a literatura de testimonio, que “existe apenas no

contexto da contra história, da denúncia e da busca pela justiça.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 88).

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fato de Cuba assumir liderança em um movimento de revisão de sua história, que passou a ser

recontada do ponto de vista de sujeitos excluídos do poder e explorados econômica e

socialmente. A revista cubana Casa de las Américas, em 1970, criou o “Premio Testimonio

Casa de las Américas” com o objetivo de estabelecer um vínculo entre os países irmãos do

continente. Nela se encontravam testemunhos com valor histórico e documental.

(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 87).

O autor delineia as principais características da literatura de testemunho utilizando

cinco esquemas de significação: o evento, que se refere à literatura de testimonio como um

registro, uma contra-história, apresentando provas do outro ponto de vista, diferente da

história oficial; a pessoa que testemunha, que faz referência ao testis – visto em Agambem

(2008) −, que é a terceira pessoa capaz de certificar a veracidade dos fatos, mas com destaque

para a “necessidade de se fazer justiça, de se dar conta da exemplaridade do „herói‟ e de se

conquistar uma voz para o subalterno”; o testimonio, que está ligado à sua fidelidade, ou seja,

apresenta-se como uma “narração contada na primeira pessoa gramatical, por um narrador que

é ao mesmo tempo o protagonista (ou a testemunha) de seu próprio relato.” (ALZUGARAT

apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 89). É, portanto, uma narração que nasce da boca de

sujeitos, em sua maioria, explorados ou analfabetos. Segundo o autor, essa forma de narrativa

exige geralmente um mediador, que costuma ser apagado do testimonio. “Tudo se passa como

se o jornalista, antropólogo, ou sociólogo fosse uma figura transparente e a sua escritura,

literalmente agora, um „porta-voz‟ do testemunho.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 90). A

cena do testemunho é outra forma de significação do termo pelo autor e está relacionada à

cena do tribunal, que reúne populações em torno de uma única luta, numa trama e espécie de

“pacto literário/ilusório”, que não apresenta identificação dos leitores com a testemunha ou o

que é testemunhado. E, por último a literatura de testimonio, que se vincula aos gêneros da

crônica, confissão, hagiografia, autobiografia, reportagem, diário e ensaio. E à novela

testimonial, com ênfase na narrativa em primeira pessoa e não ficcional.

Para Seligmann-Silva, a literatura do testemunho traz um novo modo de se relacionar

com o passado, utilizando-se da memória de forma a desconstruir a forma linear de evolução

da história.

A concepção linear do tempo é substituída por uma concepção topográfica: a

memória é concebida como um local de construção de uma cartografia, sendo que

nesse modelo diversos pontos no mapa mnemônico entrecruzam-se, como em um

campo arqueológico ou em um hipertexto. Como Celan mesmo afirmou, definindo

sua poética, a sua poesia visa construir “cercamentos [Einfriedungen] em torno do

sem-palavra, do sem-limites”: ele quer mapear o passado. Ao invés de visar uma

representação do passado, a literatura do testemunho tem em mira a sua construção a

partir de um presente. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 79).

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Por isso, mesmo possuindo um caráter mnemônico, o testemunho não deve ser

confundido com a autobiografia. Seligmann-Silva reforça essa ideia recuperando a teoria da

rememoração, de Walter Benjamin (1987), quando este diz que nem toda recordação

representa uma autobiografia, uma vez que esta última está relacionada ao tempo e ao fluxo

da vida de um sujeito. Já o testemunho está mais ligado ao contexto, ao momento e ao

inconstante, porque, independente do seu caráter temporal, o relato testemunhal surge sob o

sujeito num determinado momento de rememoração, sendo, portanto, imprevisível, mutável, e

influenciado por fatores externos ao sujeito. Deste modo, “o objeto de relato é construído num

determinado presente do escritor.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 111).

Sendo a autobiografia um gênero intrínseco à literatura de testimonio – segundo

Seligmann-Silva −, é importante destacar, para fins deste trabalho, algumas de suas principais

características, de acordo com Lejeune. Para este autor, a autobiografia é considerada um tipo

de escrita, mas também um modo de leitura, visto que existe um contrato de leitura proposto

pelo autor ao leitor, que determina o sentido atribuído ao texto na mente deste último. A

autobiografia é, portanto, “um efeito contratual historicamente variável”, submetida a

diferentes tipos de leituras (LEJEUNE, 2008, p. 45). Por isso, não existe uma fórmula clara e

total para defini-la. Paralelos à autobiografia existem seus gêneros vizinhos, tais como:

memórias; biografia; romance pessoal; poema autobiográfico; diário e autorretrato, ou ensaio.

Por definição, entende-se a autobiografia como uma narrativa construída

retrospectivamente por um sujeito, sobre sua vida particular. Lejeune (2008, p. 14) pontua,

ainda, elementos pertencentes à autobiografia, separando-os em quatro categorias. São elas:

as formas de linguagem, como a narrativa ou a prosa; o assunto tratado, a vida particular

do sujeito ou a história de uma personalidade; a situação do autor, sua identidade e relação

com o narrador; e, por último, a posição do narrador, se é personagem principal e se narra

sua história de forma retrospectiva.

No caso de Memórias da Vila, a prática autobiográfica se faz presente nas histórias de

vidas narradas pelos moradores da Serra e mediadas pela Jornalista Joana Tavares. Os relatos

seguem os elementos pertencentes à autobiografia, de acordo com Lejeune: forma de

narrativa; vida particular dos sujeitos; identidade real do autor e narrador; narrador em

primeira pessoa do singular; além de seu aspecto retrospectivo de narração. Mesmo

intencionando o mínimo de mediação possível − com todas essas características estruturais

presentes nos relatos autobiográficos − a jornalista que transcreveu os relatos reitera esse

desafio.

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A intenção foi fazer o mínimo de mediação possível, para que essas vinte e duas

pessoas que contam parte de suas histórias aqui possam fazê-lo para todos que estão

lendo este livro. Mas é claro que isso é praticamente impossível e ficam registrados

o desejo e o fracasso, além do pedido para que todos se abram para ouvir, para que

imaginem aquilo que não foi dito, para que se aproximem dessas pessoas que têm

tanto a dizer e que falaram tão pouco nos canais oficiais ao longo da história.

(CUNHA; TAVARES, 2016, p. 17).

Em vista disso, e como já mencionado em Seligmann-Silva (2005), muitas das formas

narrativas dos testimonios exigem um mediador, que por vezes intenciona a sua transparência

como forma de manter a ética na relação de alteridade e o detalhamento expressivo dos

sujeitos representados. Sobre esse exercício narrativo, os desafios e dilemas com relação à sua

autoria serão abordados, mais adiante, baseados no pensamento de Lejeune (2008), com

relação à existência de um pacto autobiográfico que fundamente essa relação mediadora.

Assim como a fotografia, tratada no tópico anterior, o testemunho também possui um

caráter ético. Trazendo-o para o contexto do Holocausto novamente – que foi bastante

significativo no surgimento da literatura testemunhal da Alemanha − os testemunhos de

alguns sobreviventes, como Primo Levi e Binjamin Wilkomirski, foram importantes para

documentar, argumentar e tornar visível e verdadeira a existência e funcionamento dos

campos de concentração na Alemanha. A ética entra aqui como forma de alteridade, no

exercício de dar oportunidade de fala às pessoas antes excluídas e aprisionadas em situação

desumana e de risco de vida. Nesse contexto, as narrativas testemunhais significam libertação

do passado e também uma forma de construção da identidade. Essa narração é, portanto,

necessária e considerada como “um ato subjetivo e objetivo, psicológico e ético.”

(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 114). Numa época em que os sujeitos eram privados da

linguagem e da preservação de suas próprias vidas, o testemunho ganha valor.

A valorização do testemunho é, segundo Sarlo (2007, p.38), um “movimento de

devolução da palavra, de conquista da palavra e de direito à palavra”. Esse movimento tem,

segundo a autora, um viés ideológico de cura identitária, resultante da recuperação da

memória social ou pessoal. Por meio desses relatos “os direitos da primeira pessoa se

apresentaram, de um lado, como direitos reprimidos que devem se libertar; de outro, como

instrumentos da verdade.” (SARLO, 2007, p. 41).

Sarlo aponta um problema relacionado à auto representação do testemunho como

verdade de um sujeito que relata sua experiência, e coloca como necessária a análise da

relação entre relato e experiência, principalmente à carga de subjetividade presente pela

utilização da memória como “instância reconstituidora do passado.” (SARLO, 2007, p. 28).

Para a autora, “todo testemunho quer ser acreditado, mas nem sempre traz em si mesmo as

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provas pelas quais se pode comprovar sua veracidade; elas devem vir de fora.” (SARLO,

2007, p. 37). Por isso, não se pode usar a mesma metodologia para se referir aos usos

judiciários ou históricos do testemunho. Em seus usos judiciais, o testemunho funciona como

facilitador no exercício das provas de uma situação, que, em meio a outros tipos de

evidências, auxilia na sustentação dos argumentos. Em contrapartida, em seus usos

historiográficos de reconstrução do passado, como no caso de Levi, que viveu uma “situação-

limite”, impossível de ser testemunhada por sujeitos que a vivenciaram até o fim – superestes

– não há como considerar as mesmas regras de crítica sobre sua verdade. A “[...] intensidade

da experiência vivida, incrível para quem não viveu a experiência, é também aquilo que o

testemunho não é capaz de representar.” (SARLO, 2007, p. 36). Devido à necessidade de se

considerar as experiências e as subjetividades presentes nos relatos, surge a aporia da

veracidade dos testemunhos históricos.

Mesmo diante dessa situação, a autora acredita na verdade e na importância dos relatos

de experiências, porque, através deles, é possível conhecer outros lados de histórias,

transformando os sujeitos em seres “cognoscíveis” e retirando-os da posição de alienação e

anonimato.

O sujeito não só tem experiências como pode comunicá-las, construir seu sentido e,

ao fazê-lo, afirmar-se como sujeito. A memória e os relatos de memória seriam uma

“cura” da alienação e da coisificação. Se já não é possível sustentar uma Verdade,

florescem em contrapartida verdades subjetivas que afirmam saber aquilo que, até

três décadas atrás, se considerava oculto pela ideologia ou submerso em processos

acessíveis à simples introspecção. Não há Verdade, mas os sujeitos, paradoxalmente,

tornaram-se cognoscíveis. (SARLO, 2007, p. 39).

O valor da verdade do testemunho se sustenta, portanto, no imediatismo da

experiência vivida pelo sujeito. Nesse sentido, a autora revela o caráter de incompletude das

histórias. Por ser contada de várias maneiras a história não terá um só desfecho. Dessa forma,

a promessa de veracidade dos relatos em primeira pessoa “não tem a ver com o enunciado

como tal, mas com a garantia de sua eficácia: o que nele está em jogo não é a função

semiótica e cognitiva da linguagem como tal, mas sim, a garantia de sua veracidade e da sua

realização.” (AGAMBEN apud LOBATO, 2015, p. 168).

Os relatos em primeira pessoa, segundo Serelle, tornaram-se, novamente, um dos

eixos narrativos centrais, a partir da década de 1970, em uma “guinada subjetiva” que “deu a

voz, por meio do testemunho, àqueles até então excluídos dos discursos majoritários.”

(SERELLE, 2009, p. 39). Trazendo para o contexto desta pesquisa, as histórias de vida em

Memórias da Vila, ao recuperar o “eu”, por meio dos relatos em primeira pessoa, objetivou

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uma aproximação de um público-leitor com a cultura de pessoas excluídas socialmente, para

levar o leitor a se posicionar no lugar do Outro, bem como, ao reforçar a perspectiva dos

excluídos, “trabalhar o entendimento sobre nossas identidades coletivas de forma menos

unilateral e tendenciosa.” (CUNHA, 2016, p. 15).

Sobre essa guinada subjetiva, Sarlo (2007, p. 18) a teoriza, quando destaca a

importância e a possibilidade de se entender o passado e valorizar os modos de subjetivação

do Outro narrado para a reconstrução de histórias. Segundo a autora, isso começou a se

evidenciar por meio de um reordenamento ideológico e conceitual da sociedade − entre as

décadas de 1960 e 1970 − e do passado dos seus sujeitos, por meio da revalorização da

primeira pessoa como referência, reconhecendo o seu lugar e a importância da sua

subjetividade.

Tomando-se em conjunto essas inovações, a atual tendência acadêmica e do

mercado de bens simbólicos que se propõe a reconstituir a textura da vida e a

verdade abrigadas na rememoração da experiência, a revalorização da primeira

pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva, que hoje se

expande sobre os estudos do passado e os estudos culturais do presente, não são

surpreendentes. São passos de um programa que se torna explícito, porque há

condições ideológicas que o sustentam. Contemporânea do que se chamou nos anos

1970 e 1980 de “guinada linguística” ou muitas vezes acompanhando-a como sua

sombra, impôs-se a guinada subjetiva. (SARLO, 2007, p. 18).

Esse movimento marca a realocação dos indivíduos nas estruturas sociais, que antes

eram contaminados por um falso e encoberto discurso. Com a história oral e o testemunho, a

confiança no sujeito que narra a sua vida foi estabelecida não só para conservar uma memória,

mas também para tornar visível uma identidade encoberta e distorcida. Sobre essa

rememoração de experiências narradas é preciso discorrer sobre a importância da memória na

reconstituição do passado e o papel da figura do narrador nesse processo.

3.2.1 Memória e construção de narrativas

No processo de narração, em alguns casos, principalmente em situações-limite, os

narradores não conseguem se lembrar dos fatos de forma espontânea − por esquecimento, ou

mesmo por não querer obter lembranças de tais vivências. O que ocorre nessa situação é,

segundo Sarlo (2007), uma “imposição de memória”, em que os sujeitos são exigidos a pensar

e testemunhar. Por isso, o testemunho permite e estimula o anacronismo, sendo diretamente

influenciado pelo contexto e pelo presente vivido da sua experiência, ou seja, nunca aparece

em seu “estado puro”, devido às diferentes temporalidades entre experiência e narração.

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Portanto, “[...] A memória, como se disse, „coloniza‟ o passado e o organiza na base das

concepções e emoções do presente.” (SARLO, 2007, p. 66).

Benjamin (1987) considera a narração como uma arte de intercâmbio de experiências,

mas chama a atenção para a sua extinção, devido, principalmente, ao surgimento do romance

e à difusão da informação. Para o autor, com o aparecimento do romance no período moderno

a narrativa começou a entrar em crise.

O romance se diferencia da narrativa principalmente na forma de incorporação das

experiências. Nele, o narrador incorpora as suas experiências às de seus ouvintes e as

reproduz de forma mais profunda e segregada. Benjamin (1987) acredita na teoria da

reminiscência, em que as experiências são transmitidas de geração a geração, e observa que os

romancistas possuem uma memória perpetuadora, consagrada a um herói, uma peregrinação

ou um combate. Já o narrador, para ele, possui uma memória mais breve, consagrada a muitos

fatos difusos. Desse modo, o romance possibilita uma reminiscência mais criadora, na medida

em que atinge seu objeto e o transforma, fazendo-o refletir na interpretação particular de cada

leitor.

Com a consolidação da burguesia o que se viu foi a crise do próprio romance e o

surgimento de uma sociedade voltada para a informação, que acabou tornando a arte narrativa

ainda mais rara, devido à grande quantidade de comunicação que chega pronta aos sujeitos, de

forma rápida e fácil.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em

histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de

explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da

narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está

em evitar explicações. (BENJAMIN, 1987, p. 203).

Com tanta informação, o leitor, com sua livre imaginação, atinge uma amplitude

interpretativa que, segundo o autor, acaba fugindo da informação de fato. Benjamin (1987, p.

204) afirma que a informação só tem valor no momento em que surge, ao contrário da

narrativa, que conserva suas forças depois de muito tempo da experiência vivida e ainda é

capaz de se desenvolver mais.

Bosi compartilha da opinião de Benjamin (1987), na medida em que considera os

receptores da comunicação como “desmemoriados”, pelo excesso de informação que recebem

e, consequentemente, pela saturação da vontade de conhecer mais. Por isso, eles “incham sem

nutrir, pois não há lenta mastigação e assimilação.” (BOSI, 1987, p. 45). Além disso, as

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informações aparecem aos leitores carregadas de contrastes e situações díspares, fazendo com

que o espectador perca o sentido da História. Eles são, portanto, sujeitos “a-históricos”.

Considerando a importância da memória para a revelação do passado, ordenação do

tempo e, por isso, a construção de uma ponte entre a vida e a morte, é necessário discorrer

sobre a narração de memórias em pessoas velhas. Essa forma de narração tem a intenção de

sustentar histórias e experiências, que, na sociedade da informação são vistas como práticas

incomuns e extintas.

3.2.1.1 A memória nos velhos

Considerando a função social da memória e sua importância, é evidente que o papel da

memória na vida de pessoas idosas tem mais importância do que a sua posição na vida de

pessoas jovens ou adultas. Isso é confirmado por Bosi, quando diz que os velhos não esperam

de forma passiva que as suas lembranças de vida surjam, estão sempre na condição de

procurá-las, seja interrogando outros velhos ou procurando-as em sua própria mente. “Há um

momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser

um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no

entanto, uma função própria: a de lembrar.” (BOSI, 1987, p. 23).

Por terem mais experiências, os velhos são carregados de lembranças. Ao contrário

dos homens ainda ativos, que se ocupam menos de lembrar, exercendo pouco a atividade da

memória. “[...] o passado pode ocupar quase todo o espaço mental do sujeito, como no caso

dos velhos enfermos e aposentados; e pode, em situações opostas, ser desdenhado e

esquecido, como na infância durante a adolescência.” (BOSI, 1987, p. 29). Por isso, a

narração feita por velhos se transforma em um testemunho valioso. Numa tentativa de

rejuvenescimento, eles fazem com que fatos passados surjam de modo constitutivo no

presente.

Para Bosi (1987, p. 35) “a velhice é uma categoria social”, pois cada sociedade a vive

de uma maneira diferente. A autora mostra como a velhice é oprimida e rejeitada em alguns

contextos, principalmente pela improdutividade de trabalho dos sujeitos mais velhos. Dessa

forma, nessa fase da vida, os sujeitos passam a lutar para continuar sendo pessoas comuns e

de direitos, apesar das adversidades trazidas pelo corpo físico e pela memória, destituída pela

sociedade capitalista.

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Que é, pois, ser velho na sociedade capitalista? É sobreviver. Sem projeto impedido

de lembrar e de ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à

medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe

para si mas somente para o outro. E este outro é um opressor. (BOSI, 1987, p. 18).

Relacionada a essa opressão, Marilena Chauí, ao apresentar a obra de Bosi (1987), faz

menção a uma função importante da memória dos velhos, no âmbito político: a de restaurar

estereótipos da ideologia da classe dominante. Na oportunidade de falar o que por muito

tempo foi silenciado, os sujeitos-testemunha da obra de Bosi, se sentiram a vontade para

narrar realidades encobertas. A maioria dos relatos do livro – que se assemelham aos relatos

em Memórias da Vila − apresenta alguma marca de desigualdade social, racial, econômica ou

de gênero, em uma sociedade na qual reinava a desvalorização do trabalho e a intensa

competição pelo lucro. A exclusão dos velhos é tida, pela autora, como consequência desse

processo. Dar voz a eles é, portanto, um exercício não só de alteridade, mas também de luta

pela desconstrução de estereótipos e pela construção de pertencimento social.

Bosi (1987, p. 39), assim como Cunha e Tavares (2016), objetivou, portanto, −

utilizando-se de narrativas mnemônicas − a reconstrução das relações humanas e a inclusão

dos velhos na sociedade, com a justificativa de que lhe faltam armas para o combate pelos

seus direitos de igualdade; sendo, por isso, dever do Outro lutar por eles, e não excluí-los.

Desse modo, “Por que temos que lutar pelos velhos? Porque são a fonte de onde jorra a

essência da cultura, ponto onde o passado se conserva e o presente se prepara, pois, como

escrevera Benjamin, só perde o sentido aquilo que no presente não é percebido como visado

pelo passado.” (BOSI, 1987, p. 18).

Nesse sentido, Memórias da Vila recupera também testemunhos de pessoas que, ao

longo do projeto, faleceram, mas tiveram seu registro e memória preservados, a fim de dar

visibilidade às experiências e histórias da ocupação do Aglomerado que não serão mais

narradas. O que vai ao encontro do pensamento de Benjamin (1987), novamente, quando ele

afirmou que “[...] o „sentido‟ da sua vida somente se revela a partir da sua morte.”

(BENJAMIN, 1987, p. 214). Desse modo, a memória é peça central no projeto do fotógrafo,

como função social de reconstrução do passado, tendo a linguagem como seu instrumento

socializador.

A gente fez questão de colocar todas que faleceram durante o processo para o

reconhecimento da participação, para registrar a memória deles. Os mais idosos

falavam que tinham o desejo de deixar histórias porque os jovens estavam perdendo.

Porque como eles não viveram a conquista da ocupação estavam esquecendo. Não

queriam passar em branco esse conjunto de experiências que pra eles foi tão

importante ter conquistado os direitos. É estranho você ter que conquistar algo que

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você já tem direito sobre ele. É contraditório. O direito no Brasil é entendido como

privilégio, é uma ferramenta de controle e de barganha para o poder. (Guilherme

Cunha).14

Dessa arte de contar experiência e de sua extinção surge a necessidade de discorrer

mais sobre a evolução do método dos relatos de vida e de tais formas de expressão

consagrados a outros tipos de públicos, anônimos e desprovidos de voz.

3.2.1.2 Narrativas dos que não escrevem: dilemas éticos e políticos

A autobiografia é, de acordo com Lejeune (2008), um gênero literário e um método de

investigação das ciências humanas relativamente novo. O autor analisa o contexto de

evolução dessas narrativas por meio de alguns ensaios, que discutem, principalmente, as

relações de poder na produção autobiográfica atual, bem como a sua evolução histórica nas

relações sociais e sua mudança na sociedade, onde passou a dar voz à memória popular –

como visto na guinada subjetiva, em Sarlo (2007). Para Lejeune (2008) essa tal guinada

subjetiva − em que se destacou a voz dos sujeitos pertencentes às classes mais baixas, como

operários, artesãos e camponeses – surgiu a partir da técnica dos relatos coletados por meio de

gravadores, em trabalhos etnográficos, e publicados de forma escrita, em livros.

À vista disso, o autor sugere a troca do termo “autobiografia” para “relato de vida”,

uma vez que o segundo é mais completo e específico que o primeiro, em seu sentido narrativo

e de produção de uma história vivida, contada por um sujeito, mas escrita e, portanto, mediada

por outro. Para ele, o novo termo deixa mais claro o lugar de fala do autor e o meio de

comunicação utilizado no processo de narração. Com a adoção desse termo, Lejeune faz uma

reflexão sobre o papel do autor na elaboração dessas narrativas midiáticas e problematiza a

questão da sua autenticidade.

Esses livros não são, na realidade, condenados por sua inautenticidade, mas porque

entregam o ouro ao bandido, e lançam uma suspeita, talvez legítima, sobre o restante

da literatura. Sob certos aspectos, a autobiografia dos que não escrevem elucida a

autobiografia dos que escrevem: o ersatz [literalmente, “substituto”] revela os

segredos de fabricação e de funcionamento do produto „natural‟. (LEJEUNE, 2008,

p. 116).

O que o autor pontua aqui é a confusão de identidades entre autor, narrador e modelo,

existentes no dispositivo do contrato autobiográfico, que acaba por, de certa forma, neutralizar

a percepção da escrita. O que está diretamente relacionado ao pacto autobiográfico,

14

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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questionado em sua obra. Esse pacto faz relação também com o “pacto literário/ilusório”

presente na cena do testemunho, anteriormente colocada por Seligmann-Silva (2005), quando

este descreve as características principais do testemunho.

Assim sendo, o funcionamento do pacto autobiográfico de Lejeune (2008) determina a

relação entre o autobiógrafo e seu leitor, no ato de nascimento do discurso. A forma de

posicionamento do autor do testemunho esclarece os papéis que serão estabelecidos na

narrativa, de forma que seja conferida a fidelidade ao leitor e esse entenda as limitações do

exercício de mediação. O pacto nasce, então, de um trabalho conjunto de identificação entre

autor, narrador e personagem e, consequentemente, de um estabelecimento de um contrato de

leitura.

Por meio do olhar crítico de Lejeune, é possível perceber que a atividade de escrita de

um relato mediado verossímil é um desafio. Na tentativa de torná-lo um reflexo da realidade,

o autor se torna responsável por estabelecer uma ordem e escolher os eixos de pertinência da

narrativa, a fim de que o leitor sinta a personalidade do Outro narrado, bem como garantir um

nível de interesse na obra. O gênero autobiográfico possui, portanto, leis de escrita que

acabam por limitar a relação fiel entre a imagem que o modelo fornece e a sua representação

sem manifestação de subjetividades do autor. O sujeito que escreve a narrativa do Outro, ao

mediá-lo, se encontra, portanto, em um dilema ético.

Esse dilema é evidenciado também no sentimento de responsabilidade pela autoria da

narrativa, que fica entre o modelo e o redator. Para Lejeune, “quanto mais a elaboração do

texto for esmerada (e o texto, „bem sucedido‟), mais intenso será o sentimento de

responsabilidade exclusiva de cada uma das partes.” (LEJEUNE, 2008, p. 123). Entretanto, a

escrita do texto não é suficiente para declarar sua autoria, pois, “só se torna autor quando se

assume, ou quando alguém lhe atribui, a responsabilidade da emissão de uma mensagem

(emissão que implica sua produção) no circuito de comunicação.” (LEJEUNE, 2008, p. 124).

Dessa forma, a autoria do relato deriva de diferentes aspectos, que estão diretamente ligados

ao dispositivo de visibilidade no qual se insere e ao contrato de leitura por ele estabelecido.

Após a sua leitura analítica a respeito do pacto autobiográfico, Lejeune (2008) afirma

que a partir do momento em que se decide produzir um relato autobiográfico de um sujeito

em um livro, com a ajuda de um gravador, já é excluída a produção de uma biografia. Mesmo

defendendo que o próprio sujeito deva assumir a escrita da sua vida narrada, considerando o

valor a ser passado ao leitor, ele conclui que a mediação existente na concretização dessa

escrita não tem tanta importância, desde que o leitor tenha fé e envolvimento na narrativa.

Como argumento, ele usa a metáfora da existência simbólica de Deus: “O importante é a

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presença real do corpo de Cristo na hóstia. Obviamente, sempre há um padeiro envolvido na

história.” (LEJEUNE, 2008, p. 128). O que vale, portanto, é a iniciativa do redator, de tornar

visível uma narrativa que, sem a sua mediação, teria permanecido encoberta.

[...] uma vida (isto é, uma narrativa de vida escrita e publicada) é sempre produto de

uma transação entre diferentes instâncias, e a determinação do “autor”, no caso de

uma colaboração confessa, depende acima de tudo do tipo de efeito que o livro deve

produzir. Não se trata de uma questão metafísica a ser solucionada

independentemente das circunstâncias: é um problema ideológico, vinculado aos

contratos de leitura, às posições possíveis de identificação com “pessoas” e às

relações de classe. (LEJEUNE, 2008, p. 130, destaque nosso).

Dessa forma, pode-se refletir, a partir dessa problematização, que há uma relação não

só ética, mas também política na mediação da autobiografia dos que não escrevem. Isso se

justifica pelo fato de que o poder interfere diretamente nas formas de representação dos

sujeitos e em sua posição de autoridade. Os modelos que são excluídos da escrita, por

exemplo, são representados e resgatados pelos que a possuem. Nesse sentido, pode-se afirmar

que a autoridade estará sempre do lado dos que detêm certo poder.

Por isso, o fato de que “escrever e publicar a narrativa da própria vida foi, e continua

sendo, um privilégio reservado às classes dominantes.” (LEJEUNE, 2008, p. 113) é levantado

pelo autor. Segundo ele, além da alfabetização e da aculturação, existe o problema do circuito

de comunicação, que está nas mãos das classes dominantes, que acabam promovendo seus

valores e ideologias. Para ele, “os relatos autobiográficos, obviamente, não são escritos

apenas para „transmitir a memória‟ [...]. Eles constituem o espaço em que se elabora, se

reproduz e se transforma uma identidade coletiva, as formas de vida próprias às classes

dominantes.” (LEJEUNE, 2008, p. 131).

O vivido das classes dominadas é estudado a partir de um ponto de vista econômico e

político e, até o século XIX, era silenciado. O que se fazia visível e interessante de ser

reconhecido, até então, eram biografias de pessoas célebres que tiveram êxito em algum

campo da vida social. Dessa forma, é manifesta a existência de jogos de poder entre o vivido e

o representado. A evocação da vida das classes dominadas é feita por relatos de alguém, cuja

identidade não aparece, ou seja, o “discurso relatado neutraliza aparentemente a oposição

entre quem tem a palavra e quem não a tem.” (LEJEUNE, 2008, p. 139).

Presume-se que o discurso narrado e construído em Memórias da Vila reitera o

modelo no sentido da sua vida social e econômica, principalmente na rememoração do

processo de ocupação do Aglomerado e a sua trajetória de vida construída ali. A autora do

relato – jornalista Joana Tavares − busca adaptá-lo às leis da comunicação escrita, como é

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percebido no estilo das falas, implantando técnicas da elaboração literária, como será visto no

capítulo seguinte. O mediador, para Lejeune, sempre tem essa perspectiva etnológica de

coletar o vivido a partir de um ponto de vista próprio de trabalho e interesse. Por isso, o autor

acredita que “a partir do momento em que é fixada em um texto escrito, essa memória natural

se torna passiva.” (LEJEUNE, 2008, p. 146).

Nesse sentido, nota-se que o problema da aporia da moralidade, apontado por Bauman

(1997) no segundo capítulo, é novamente evocado, pela existência da dificuldade no

distanciamento adequado do eu moral no processo de representação e narração do Outro.

Trazendo para o contexto de Memórias da Vila, a alteridade, ao mesmo tempo em que se faz

necessária, para tornar visível um outro lado da história dos habitantes da favela, pode fazer

emergir uma infinidade e, ao mesmo tempo, uma incompletude de informações (LÉVINAS,

1980). Diante dessas realidades reivindicantes no âmbito da cultura midiática, e considerando

as aporias e riscos no processo de mediação, é necessário, portanto, investigar como as

narrativas testemunhais do projeto Memórias da Vila se posicionam eticamente, desafiando as

práticas de mediação reducionistas, na tentativa de tornar visíveis e memoráveis realidades

marginalizadas.

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4 MEMÓRIAS DA VILA: ABORDAGENS ANALÍTICAS

4.1 Aglomerado da Serra: breve contextualização de um “espaço de resistência”

Situado na região Centro-Sul de Belo Horizonte, na encosta da Serra do Curral, o

Aglomerado da Serra faz limite com terrenos da Fundação Benjamin Guimarães, como o

Hospital da Baleia, o Parque das Mangabeiras e com os bairros Paraíso, Santa Efigênia, São

Lucas e Serra, segundo informações do site da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH)

(BELO HORIZONTE, 2007). Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Nossa

Senhora Aparecida, Santana do Cafezal, Novo São Lucas, Fazendinha, Chácara e Marçola são

as oito vilas que integram o Aglomerado.

De acordo com dados do Censo Demográfico do IBGE de 2010, a população do

Aglomerado é de aproximadamente 46 mil habitantes, distribuídos em cerca de 13 mil

moradias, em uma área de cerca de 1.470.500 metros quadrados. Segundo informações do

acervo online de documentários latino-americanos (O AGLOMERADO..., 2011), é o maior

conjunto de favelas de Minas Gerais, com a menor renda per capta do município de Belo

Horizonte, e o segundo maior da América Latina, perdendo em tamanho apenas para a favela

da Rocinha, no Rio de Janeiro. As vilas do Aglomerado estão localizadas em terreno de

acentuada declividade e a região é cortada por nascentes e córregos, em encostas íngremes,

sendo que algumas áreas apresentam risco geológico em alto grau.

Conforme o Guia BH Cidadania (BELO HORIZONTE, 2014), o Aglomerado da Serra

conta com o apoio de Organizações Não Governamentais (ONG‟s) localizadas na própria

comunidade ou no seu entorno, para o desenvolvimento de diversos tipos de atividades, tais

como: tratamento ambulatorial de dependentes químicos e seus familiares, com grupos de

acompanhamento e ações educativas de prevenção; dança de rua; capoeira; manutenção de

computadores; artesanato solidário; almoço para pessoas carentes; Educação de Jovens e

Adultos (EJA); pré-vestibular; bazar; oficinas de dança, informática, iniciação musical,

educação ambiental/reciclagem; atendimento psicossocial às crianças, adolescentes e

familiares em situação de vulnerabilidade, violação de direitos ou em cumprimento de

medidas socioeducativas; reforço escolar; teatro, entre outras ações sociais.

Além disso, há na Comunidade da Serra escolas, creches e Unidades Municipais de

Educação Infantil (UMEIS), que atendem alunos de educação infantil, ensino fundamental e

ensino médio, bem como pessoas com necessidades educativas especiais. O Aglomerado

possui também redes de apoio ligadas à saúde, ao esporte, à cultura e à comunidade, todas

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elas vinculadas indiretamente aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que,

através de políticas públicas municipais, articulam ações de interesse e benefício da

comunidade como um todo.

Os CRAS são espaços em que os moradores das vilas e usuários das políticas de

assistência social têm acesso a uma rede de proteção básica, no que se diz respeito ao auxílio

na construção cidadã de famílias, bem como no alcance de direitos sócio assistenciais em

territórios de vulnerabilidade social. Os CRAS são unidades da política social da Prefeitura de

Belo Horizonte e atuam intersetorialmente, sendo divididos em uma unidade por cada vila do

Aglomerado.

As ações desempenhadas pelas iniciativas dos CRAS contam com o apoio de

profissionais qualificados e estão voltadas para: melhoria da qualidade de vida dos moradores,

como academia, pilates e atividades ao ar livre; desenvolvimento de programas com o

objetivo de construir e fortalecer relações sociais entre crianças, jovens e idosos; controle e

prevenção do uso de drogas por crianças e adolescente; apoio às famílias que possuem

membros usuários de drogas, por meio da escuta e troca de vivências entre elas; entre outras

atividades voltadas para a comunidade em geral.

Motta em seu artigo “Da construção da nova capital mineira ao atual modelo de gestão

de vilas e favelas: notas sobre um estudo de caso do Programa Vila Viva”, traz um panorama

sobre o processo de constituição das favelas em Belo Horizonte e a gestão desse espaço por

parte do poder público municipal. Segundo a autora, a luta do processo de constituição das

favelas é um marco na história da capital mineira e é uma consequência do mau planejamento

urbano em que Belo Horizonte foi projetada, que, para ela, teve caráter excludente e

segregacionista − beneficiando classes econômicas mais favorecidas e marginalizando a

ocupação dos operários (MOTTA, 2012, p. 130).

A jornalista Joana Tavares reitera essa situação, quando diz que a constituição das

favelas, no geral, é uma consequência do êxodo rural. Segundo ela, são construções dos

próprios moradores às margens de cidades e, na grande maioria, são “espaços de resistência,

de sobrevivência e, claro, de construção de afetos.” (CUNHA; TAVARES, 2016, p.16). A

favelização das cidades perpassa, portanto, por um contexto de pobreza no meio rural, de

exclusão dos trabalhadores camponeses e também pela ausência de atividade do Estado para

conceder o básico para uma vida digna a essas famílias, que vieram em busca de melhores

condições de vida.

De acordo com Guilherme Cunha (2016, p. 10), no projeto original de construção da

cidade de Belo Horizonte não estava previsto um local para abrigar essa classe trabalhadora,

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vinda do interior para o início das obras. Além disso, a presença da população trabalhadora na

parte nobre da cidade era uma ameaça ao poder público. Por isso, as famílias eram manejadas

de acordo com os interesses políticos, e, quando do fim das demandas, eram despejadas em

locais periféricos, sem estrutura adequada de urbanização e com baixo valor de mercado. Os

relatos de alguns moradores presentes no livro confirmam essa falta de estrutura e as

dificuldades enfrentadas pelas famílias para terem acesso às necessidades básicas de vida.

Aqui não tinha nada: não tinha igreja, não tinha escola, não tinha farmácia. A gente

buscava água ou na biquinha da mangueira ou no canão. No canão a gente buscava

água pra tomar banho, pra comer, pra lavar roupa. E nós não tinha bacia. A bacia

nossa era um pneu. (sic) (Rosa Maria).15

Miguel Almeida, em sua dissertação “Favela, arte e juventude: pensando a relação

entre ações artístico-culturais e identidade no Aglomerado da Serra em Belo Horizonte”,

também ratifica o processo incongruente de formação da cidade de Belo Horizonte e, ainda,

define a favela como “a solução encontrada por parte da população de baixa renda dos centros

urbanos para o problema da moradia.” (ALMEIDA, 2006, p. 52):

Cidade planejada, organizada a partir da necessidade de atender demandas próprias

de uma capital, o traçado original previa que no interior da Avenida do Contorno

ficariam os prédios administrativos e as residências dos funcionários públicos. A

população de baixa renda teria que viver na periferia (no projeto de Aarão Reis,

zonas suburbanas e rural). O resultado desse processo foi a ocupação desordenada e

desorganizada de diversos espaços urbanos periféricos, localizados próximos aos

locais de trabalho dos operários encarregados da construção da cidade. O poder

público teve uma postura de tolerância diante dessa ocupação, uma vez que lhe

interessava a proximidade da mão-de-obra e, também, pela ausência de um lugar

definido para suas moradias. Sendo assim, em Belo Horizonte a favela surge

concomitante à construção da cidade. (ALMEIDA, 2006, p. 51).

Considerando esse contexto de construção desordenada, os conceitos de favela são, na

maioria das vezes, representados pela ausência, ou ainda, como o último recurso encontrado

para habitação de pessoas marginalizadas socialmente. De acordo com Silva (2009, p. 16), a

favela geralmente é definida “pelo que não seria ou pelo que não teria. Nesse caso, é

apreendido, em geral, como um espaço destituído de infraestrutura urbana – água, luz, esgoto,

coleta de lixo; sem arruamento; globalmente miserável; sem ordem; sem lei; sem regras; sem

moral”. Os aspectos de diversidade geográfica do terreno e sua desorganização espacial

também marcam fortemente as inúmeras definições e caracterizações desse território, o que o

torna conhecido pejorativamente.

15

Relato da moradora Rosa Maria Silva. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 162).

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Seguindo a linha cronológica construída em Motta (2012), em meados de 1950 o

poder público da capital mineira começou a tratar as favelas como um problema social,

criando um Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares (DBP), cuja intenção

era construir habitações para famílias retiradas dessas comunidades. Essa iniciativa só surgiu

com a intensa atividade dos movimentos populares decorrentes daquele período e com a

criação de organizações de defesa e reivindicação dos trabalhadores favelados. Esses

movimentos foram de fundamental importância para sensibilizar os governantes a respeito da

necessidade e urgência de criação de programas sociais de garantia de direitos, bem como de

urbanização das regiões ocupadas. Vale aqui citar um trecho do relato de um morador, que

conta o valor desses movimentos. “Político não luta por nossos direitos, para eles tá tudo bom.

Nós é que temos que brigar por nossos direitos. Pra eles lá tá tudo um céu. A gente tem que ir

para luta, senão não consegue nada. Estamos caminhando, não estamos parados.” (José

Timóteo).16

Apesar desse êxito, em 1971, os habitantes das favelas, bem como suas associações,

passam novamente a ser tratados como problema de polícia, quando, no auge da repressão

militar, foi criada uma Coordenação de Habitação de Interesse Social (CHISBEL), que

realizou intervenções para a remoção dos moradores das comunidades.

Foi a partir de 1975 que as entidades das favelas começaram novamente a se reerguer

(MOTTA, 2012, p. 131), pois a reorganização dos movimentos sociais somada às catástrofes

naturais ocasionadas pelas chuvas levou o poder público estadual a averiguar a sua forma de

gestão e atuação em vilas e favelas. Assim, em 1979, criou-se o Programa de

Desenvolvimento de Comunidades (PRODECOM), que, em parceria com outros programas

estaduais, realizou intervenções em favelas e reconheceu o direito de permanência da

população nessas áreas.

Mais tarde, em 1983, a legalização e titulação das áreas ocupadas foram conquistadas

através da aprovação da Lei nº 3.532, que criou o Programa Municipal de Regularização de

Favelas (PRO-FAVELA). O programa foi implementado um ano depois, pela PBH, que,

através da criação da Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL), o efetivou. A

URBEL passou a ser, a partir de então, o órgão responsável pela política urbana em vilas e

favelas no município de Belo Horizonte. (MOTTA, 2012, p. 132).

O atual modelo de gestão de vilas e favelas da cidade de Belo Horizonte se iniciou

com a criação do Programa Vila Viva, para a execução de propostas legalizadas e originadas

16

Relato do morador José Timóteo Severino. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 104).

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de cada vila ou favela. O programa Vila Viva é uma ação financiada pelo Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BID), pelo Banco Nacional do Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES), pela Caixa Econômica Federal, pelo Governo Federal e pela

Prefeitura de Belo Horizonte. Trata-se de um conjunto de intervenções estruturais em

assentamentos precários de Belo Horizonte, que envolve a urbanização e a regularização

fundiária de vilas e favelas da cidade, dentre elas está o Aglomerado da Serra. Foi iniciado em

2005 pela PBH, como forma de solucionar problemas dessas áreas habitacionais e

proporcionar novas condições de moradias para os habitantes.

Apesar desse objetivo, a eficácia do Programa Vila Viva no Aglomerado da Serra foi

questionada pelo Ministério Público, de acordo com matéria publicada no jornal Hoje em Dia,

em 8 de abril de 2013. Esse questionamento tem como base um estudo de caso feito por um

grupo de pesquisadores ligados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cuja

pesquisa registrou casos de pressão aos moradores das favelas para que desocupassem suas

casas, ficando sujeitos a pagamento de indenizações.

De acordo com o pesquisador, moradores da região afetados pelas obras do Vila

Viva denunciaram a pressão por parte dos técnicos da PBH para deixarem suas

casas. Algumas pessoas relatam, inclusive, a presença de maquinário da prefeitura

na frente de suas casas antes mesmo do fim do prazo para deixarem o local. “Um dia

saí para comprar pão, mas quando voltei eles já estavam fazendo um buraco na

minha casa”, relata moradora que não quis ser identificada. (GUSSEN, 2013).

Conforme Motta (2012, p. 138), apesar de existirem três opções para indenização, os

critérios utilizados para estabelecê-las acabam limitando a possibilidade de escolha dos

moradores. Por exemplo, ao considerar somente as benfeitorias, a indenização em dinheiro se

torna baixa para adquirir uma casa, sobretudo em Belo Horizonte (valor máximo de 30 mil

reais). Os apartamentos se tornam, então, a única opção de permanência no local, o que leva

muitos moradores a escolher morar nos conjuntos habitacionais construídos na própria favela.

A realocação nesses apartamentos implica transformações e mudanças para esses

novos moradores, como, por exemplo, para a família da Kely Cristina, habitante da Vila

Fátima, que concedeu entrevista para esta pesquisa. Segundo a moradora, apesar de terem

permanecido no aglomerado de origem, os habitantes

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[...] acabam tendo espaço limitado para sua família, que na maioria das vezes é

grande, e para suas plantações [...]. Eu falo, se eu ganhar um apartamento vai ser

bem-vindo, eu moro nele durante uns três anos e vendo. Porque eu quero um espaço

primeiramente para os meus filhos e também para plantar, e lá não tem. A gente

precisa de espaço. (Kely Cristina).17

Dessa forma, a moradora não aprovou as novas condições de moradia do projeto.

Na entrevista realizada com Edson Gomes, psicólogo e coordenador do CRAS Vila

Fátima do Aglomerado da Serra, também ficou evidente que o projeto social Vila Viva,

apesar de trazer melhorias para a comunidade – em termos de segurança e de um lugar mais

digno de moradia − tornou-se ambíguo, de acordo com relatos de moradores nos atendimentos

de assistência social, uma vez que a maioria das pessoas se sente prejudicada com questões de

espaço.

O que se vê, portanto, é a negligência por parte do poder público, no que se diz

respeito ao olhar para as relações sociais construídas entre os moradores da favela e o local

por eles ocupado. As formas e possibilidades impostas para intervenção nas vilas e favelas

acabam desconsiderando o contexto sócio histórico das diversidades ali existentes. O não

reconhecimento da conjuntura desses aglomerados e a sua importância para a história do

município de Belo Horizonte os torna, portanto, lugares por vezes estigmatizados e invisíveis.

4.2 Um lugar midiaticamente estigmatizado

De acordo com Rosana Soares, o termo estigma faz referência a uma espécie de

cicatriz, uma marca que é visível e que assinala uma distinção, que pode, ao mesmo tempo,

isolar quem a possui, ou reuni-la em um grupo de pertencimento. “[...] trata-se de algo que o

estigmatizado evoca, em relação ao Outro, uma marca que ele possui e que, de alguma

maneira, faz com que o outro o estigmatize.” (SOARES, 2009, p. 2). O termo faz referência

ainda a um indivíduo ou grupo supostamente “des-locado”, ou seja, em um local que não

deveria estar, como, por exemplo, os moradores do Aglomerado da Serra representados na

mídia de massa, na maioria das vezes de modo a reforçar o lado do crime e do tráfico,

presentes na favela. Surge, nesse exemplo, um incômodo que acompanha o sujeito

representado, pelo fato de estar onde não deveria, devido às características que carrega – ser

um habitante da favela, por exemplo, e, no caso, em uma zona nobre da cidade. O estigma

social é, portanto, uma marca simbólica que surge na relação estabelecida entre o Eu e o

Outro.

17

Entrevista realizada com a moradora do Aglomerado da Serra, Kely Cristina, em 22 set. 2017.

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Aplicamos esse conceito às formas de representações das favelas e, no caso desta

pesquisa, do Aglomerado da Serra, no contexto da mídia dominante. Acredita-se que as

formas midiáticas de descrever ou retratar a realidade existente nesse espaço social o

transforma em um lugar onde predominam atributos negativos − ligados ao crime e as drogas,

por exemplo −, o que faz com que os espectadores não o conheçam de fato, ou, ainda,

atribuam certo preconceito e repulsa ao local.

Para melhor embasamento desse argumento, realizou-se uma busca online de notícias

que se referem ao Aglomerado da Serra, em três portais de notícias: Estado de Minas, O

Tempo/Super e Hoje em Dia. Por meio da filtragem de matérias pela busca “Aglomerado da

Serra”, foi coletado um corpus de 66 matérias, publicadas entre o período de 1º de agosto de

2017 a 1º de outubro de 2017. Desse total, 17 matérias foram veiculadas pelo Estado de

Minas, 32 pelo O Tempo/Super e 17 pelo portal do jornal Hoje em Dia.

Após a coleta das matérias, elas foram categorizadas por temas em uma planilha

cronológica. Para Kelle (2015, p. 397), esse processo de estruturação dos dados através da

categorização está relacionado à codificação, ou seja, “a ação de relacionar passagens do texto

a categorias que o pesquisador ou já desenvolveu anteriormente, ou irá desenvolver para o

caso específico”. Neste caso, as categorias emergiram de acordo com os temas das manchetes,

que foram recorrentes nos três veículos de comunicação. As categorias temáticas das notícias

foram: Crime; Confronto; Operação Policial; Desaparecidos; História de traficante; Prevenção

de risco; Falta de água; Festival Cultural; Festival Gastronômico; Projeto Providência; Prêmio

a vice-prefeito; Exposição de retratistas; Intervenções em vilas; Projeto Social e Agenda

Cultural. Espera-se, ainda segundo o autor, que essa técnica de pesquisa torne a análise dos

dados qualitativos mais eficaz. (KELLE, 2015, p. 396). Após o estabelecimento dessas

categorias temáticas, realizou-se a classificação da natureza desses temas, em positiva ou

negativa18

, para posterior quantificação das notícias.

No portal Estado de Minas, 11,8% das matérias coletadas no período determinado

foram de natureza positiva, abordando temas de caráter social, como: a prevenção de

moradores habitados em área de risco, para a chegada de chuvas, “Defesa Civil cadastra

moradores da Rua Sustenido para alerta de risco via SMS” (SILVA, 2017), bem como o tema

18

Para melhor esclarecimento, os temas classificados como negativos foram aqueles que remeteram ao

Aglomerado de modo a significá-lo pejorativamente, dando ênfase ao lado do crime e do tráfico de drogas, por

exemplo. Em contrapartida, as notícias classificadas como positivas dizem respeito aos outros modos de

significar a Comunidade da Serra, de forma inclusiva e, as vezes, engrandecedora. Por exemplo, a inclusão de

eventos da favela na agenda cultural de Belo Horizonte, ou, ainda, a execução de projetos sociais no local.

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da falta de água em alguns bairros da Serra, “BH e quatro cidades da região metropolitana

ficam sem água neste domingo” (BH..., 2017).

Apesar disso, 88,2% das publicações desse portal foram de natureza pejorativa ao se

referirem ao espaço do Aglomerado da Serra, sendo os temas predominantes: crime, “Clima

de tensão está de volta ao Aglomerado da Serra com mais um assassinato” (CLIMA..., 2017);

operação policial, “PM apreende mais de 44 quilos de maconha no Aglomerado da Serra”

(VALE, 2017); e confronto, “Tiroteios entre gangues espalham novamente clima de

insegurança no Aglomerado da Serra” (PARANAIBA, 2017), respectivamente. Totalizando

15, das 17 matérias publicadas no período analisado.

No portal O Tempo/Super, a porcentagem de notícias referentes ao Aglomerado da

Serra de forma positiva foi de 37,5%, em que abordavam temas relacionados, principalmente,

ao Circuito Gastronômico de Favelas, que estava acontecendo no período das matérias

recortadas, “Aglomerado da Serra recebe o Circuito Gastronômico de Favelas” (SIQUEIRA,

2017), e também ao Festival Cultural “Eletrônika”, que deu voz a algumas apresentações

artísticas de moradores de favelas. Além deles, o Projeto Providência ganhou visibilidade

nesse período por contemplar alguns jovens envolvidos, dentre eles moradores da Serra, com

uma festa de 15 anos, “Jovens de projeto social ganham baile dos sonhos” (SUAREZ, 2017).

Outra matéria não pejorativa ao Aglomerado foi a do prêmio “enrolão do ano” concedido ao

vice-prefeito Paulo Lamac (CAMILO, 2017), por alguns moradores da Serra e integrantes do

movimento Tarifa Zero BH, que ganhou destaque em duas matérias veiculadas nesses dois

meses de recorte. Como última notícia positiva, a exposição de fotos antigas de retratistas do

morro foi alvo de uma matéria do jornal nesse período.

Em contrapartida, 62,5% das notícias do portal O Tempo/Super sobre o Aglomerado

foram negativas, ligadas principalmente à operação policial, “Tiroteio no Aglomerado da

Serra assusta moradores e deixa dois feridos” (FERREIRA, 2017a); crimes, “Traficante é

assassinado com 13 tiros no Aglomerado da Serra” (FERREIRA, 2017b); confrontos, “Guerra

do tráfico na Serra vive seu momento mais tenso” (FERREIRA, 2017c); história de traficante

e, ainda, notícia de jovens desaparecidas. Totalizando 20, das 32 matérias veiculadas.

No portal de notícias Hoje em Dia também não foi diferente, somente 23,5% das

matérias remetiam à Serra de maneira positiva, sendo os temas predominantes: as agendas

culturais de BH, incluindo atividades no Aglomerado, bem como temas sociais, como o

projeto de intervenção e melhorias em Vilas, da Prefeitura de Belo Horizonte, “Com previsão

de orçamento maior em 2018, PBH deve concluir Via 710 e cobrir parte do Arrudas”

(MOTTA, 2017); e um projeto de comunicação, com o objetivo de gerar renda à população

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das favelas e promover a valorização desse espaço urbano, através de outdoors, “Projeto

Outdoor Social leva ações de mídia e renda para aglomerados de BH” (MORENO, 2017).

Paralelamente a essas notícias, os 76,5% de notícias restantes foram representados por

manchetes negativas, que dizem respeito a operações policiais contra o tráfico de drogas,

“Oito são presos em operação conjunta no Aglomerado da Serra” (ROCHA, 2017); crimes,

“Homem em surto psicótico esfaqueia três na Zona Sul de BH” (SALES, 2017a); e confrontos

entre gangues rivais, “Dois baleados em tiroteio envolvendo gangues rivais na Serra”

(SALES, 2017b), respectivamente. Totalizando 13, das 17 matérias coletadas nesse veículo de

comunicação.

Diante dessa realidade, é possível perceber, a partir deste levantamento, que o

Aglomerado da Serra é alvo de um olhar negativo, devido às situações que constantemente o

representa. Cabe aqui retomar Hall (2016), quando ele diz que a mediação das mídias é uma

prática que parte de esquemas representativos, reproduzindo e criando estereótipos.

Considerando o conceito de estereótipo colocado pelo autor, que está ligado à apropriação de

características superficiais de um objeto e, consequentemente, à sua redução de acordo com

essas características, a mídia acaba por usar as situações de crime e hostilidade presentes na

favela para representá-la, tendo como efeito a fixação dessas visões como definições de

comportamentos padrões da cultura daquele espaço.

Dessa forma, torna-se evidente a relação existente entre a noção de estereótipo e a

ideia de estigma, apresentada anteriormente. Em relação aos estigmas, Soares (2009, p. 2)

afirma que os estereótipos agem de forma a reafirmar e manter um sistema anteriormente

instaurado pelos estigmas negativos – no caso aqui exposto, os estigmas midiáticos. Por isso,

pode-se dizer que os estereótipos fazem com que as pessoas sejam encaixadas de forma

pronta em um contexto, ao contrário dos estigmas, que surgem no sujeito por meio de um

outro que o desqualifica, o rotula. Os estereótipos estabelecidos e reproduzidos pela mídia

dominante, conforme o exposto, tendem, portanto, a sustentar os estigmas sociais existentes

nesse contexto de exclusão.

Essa ação de narrar o Outro, por meio das mídias, leva-nos também novamente ao

pensamento de Rancière (2012), quando ele diz que esse Outro, mesmo estando presente,

continua ausente, pelo fato de não conseguir nos devolver o olhar. Segundo o autor,

considerando os esquemas estratégicos de representação do sujeito por meio de determinado

dispositivo de visibilidade, ele se torna impossibilitado de devolver-nos sua própria palavra,

ficando os espectadores a mercê das formas de construção de sentidos sobre esse Outro,

impostas por tais sistemas de representação.

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[...] os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a

torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros

horrores que constituem o presente do nosso planeta. Bem ao contrário, eles

reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las.

Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua

significação. (RANCIÈRE, 2012, p. 94).

Dessa forma, o autor reforça que o Outro é, quase sempre, alvo de uma ação

humanitária, de sistemas de informação que selecionam sujeitos e os colocam em posição

como se fossem capazes de falar e raciocinar por outros. Nesse caso, Rancière faz referência a

uma montagem política das imagens midiáticas, que está inserida numa sociedade do

espetáculo, em que a realidade se torna invertida e se choca com a aparência. O esforço a ser

feito, segundo o autor, está no sentido de sair da condição de receptor passivo, criando um

novo regime em que as imagens possam circular. A arte, para ele, é uma ferramenta para a

realização dessa mudança.

Deve-se considerar ainda, conforme exposto em Hall (2016) e Dyer (1999), que a

construção dos significados no processo de mediação está diretamente ligada à circulação de

poder dos grupos hegemônicos na sociedade, que possuem mais chances de impor suas

definições de realidade. Considerando que esse poder opera em condições de desigualdade e

trazendo-o para o contexto dos regimes de representação midiáticos, o que se vê é a geração

de uma violência simbólica, que deturpa características de um Outro − que se torna

marginalizado e perigoso, no caso dos habitantes da favela – e omite realidades

reivindicantes.

Em entrevista com Edson Gomes, torna-se notória essa questão do apagamento de

realidades de sujeitos e espaços sociais por meio da mídia:

Ás vezes a grande mídia traz muito essa questão do negativo, do conflito entre

grupos rivais, do tráfico, da violência, que existe, que é uma coisa que gera uma

sensação de insegurança, até mesmo para gente assim que vem trabalhar, passa o dia

aqui, nos limita de algumas atividades. Mas [essa mídia] não se dá talvez tanta

ênfase na produção de cultura, nos grupos culturais de jovens, de pessoas de toda

idade, ao povo que vem, que luta [...] (Edson Gomes).19

Guilherme Cunha, em entrevista para esta pesquisa, também destaca esse tema da

violência simbólica e da afirmação da figura de sujeitos através da imagem, diante de uma

sociedade que acaba criando nichos de afirmação, por meio de grupos hegemônicos.

19

Entrevista realizada com Edson Gomes, coordenador e assistente social do CRAS Vila Fátima, no Aglomerado

da Serra, em 22 set. 2017.

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Então essa lógica da imagem, afirmação da figura diante da sociedade e com valores

de excelência atribuída a ela, isso migrou e acabou criando esses nichos de

afirmação que são controlados por determinadas classes, pelas elites financeiras, que

basicamente são os meios de comunicação, não é? A mídia de massa. Ela é que

define a imagem que vai ser perpetuada na mídia de massa, que vai se afirmar na

sociedade. Então isso tem a ver com a violência simbólica. Quando você impede a

propagação visual da imagem de alguém, você cria um desconhecido. Aquele

desconhecido não visível. Eu acho que você cria um estranho. O anônimo é assim:

muitas vezes você vê o cara ali todo dia, pra você ele é um anônimo, você não

conhece ele, mas ele é familiar. A figura dele não apresenta uma ameaça. Mas

geralmente a gente tende a rejeitar o desconhecido. (Guilherme Cunha)20

.

Entende-se, por meio da fala do fotógrafo, que é preciso tornar conhecidos esses

espaços midiaticamente estigmatizados, para, então, conseguir transformar tais realidades

reivindicantes e violentadas simbolicamente. Nesse sentido, ele afirma que não só a mídia,

mas até mesmo os sistemas educacionais, são ferramentas utilizadas para a manutenção de

certos controles sociais, que, de forma mascarada, acabam impondo “não verdades” e

influenciando a maneira como nos relacionamos com as diferenças, “provocando a

estigmatização e a distorção da imagem de culturas tradicionais.” (CUNHA; TAVARES,

2016, p. 9). O processo de formação das cidades, para ele, é ensinado de forma errada e

negligente.

Ainda de acordo com Guilherme Cunha, “as sociedades são estruturas orgânicas em

transformação contínua, são sistemas mais ou menos moldáveis e passíveis de

desenvolvimento e melhoramentos sociais.” (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 14). Para que

esse amadurecimento ocorra, o esforço da crítica e a problematização dessas formas de

representação é importante, de modo a romper com a naturalização da desigualdade social, da

discriminação e da marginalização da pobreza e como forma de auxiliar no avanço do campo

sociopolítico. Continuar com a omissão ou indiferença é, segundo o fotógrafo, “um sinal de

desinteligência” que vai de encontro à “objetividade crítica e ao espírito de fraternidade” e ao

encontro do “conluio” com os significados impostos pela mídia, colocado por Silverstone

(2002a) no segundo capítulo – o que acaba posicionando os espectadores como cúmplices

desse processo de mediação.

Portanto, é notório que, apesar de estar presente midiaticamente nas matérias

selecionadas para essa pesquisa, o Aglomerado da Serra foi apresentado de forma positiva

apenas em 27% do total de notícias coletadas nos três veículos de comunicação, contrastando

com os 73% das manchetes que fazem referência ao local por meio de fatos negativos.

Conhecer o Aglomerado da Serra através de imagens de crime, operações da Polícia Militar

20

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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contra o tráfico de drogas, confronto entre gangues rivais, dentre outras notícias que

diminuem e rebaixam o local, não representa de fato o outro lado, das dificuldades, lutas, e

histórias de resistência dos habitantes que ali vivem. Esse lado, obscurecido pelos estigmas

sociais, é não só importante para a afirmação do contexto histórico de surgimento e

crescimento da cidade de Belo Horizonte, mas também para a formação da identidade coletiva

dos sujeitos e da sua convivência no meio social. Fazer emergir esse outro lado é, portanto,

uma iniciativa preliminar para conseguir transformar uma realidade. Pois, “[...] a gente só

transforma aquilo que a gente conhece, o que a gente não conhece a gente não transforma.”

(Guilherme Cunha).21

Foi com o objetivo de contrapor essa realidade hegemonizada e torná-la

conhecida que o projeto Memórias da Vila foi idealizado.

4.3 Considerações e desafios metodológicos

A hipótese desta pesquisa − de que a mediação do Outro, em Memórias da Vila,

escapa e se contrapõe às formas estigmatizadas de como o espaço do Aglomerado da Serra e

seus moradores são comumente representados nas mídias dominantes – vai ao encontro da

proposta da sociologia das ausências de Boaventura Sousa Santos (2007). Dialogando com o

objetivo deste autor − de transformar objetos ausentes em objetos presentes, tornando visíveis

realidades que antes não eram representadas de fato −, Guilherme Cunha, por meio da

“poética da convivência” com os moradores da Comunidade da Serra, realiza um movimento

de tradução intercultural, com o objetivo de reconfigurar tais representações. Essa prática, ao

mesmo tempo em que nos provoca, com a proposta de mediação por meio de elementos

visuais e orais, busca desafiar também a lógica do sistema educacional, criticado por ele.

O tipo de sensibilidade que a gente tem está muito vinculado à ideia de naturalização

da cultura, e não tem nada, em se tratando de ser humano, que não foi construído. E

essas construções muitas vezes são subservientes a interesses. É isso que desvia um

pouco. Isso tem muito a ver com o livro, porque assim, quando você não conhece a

realidade, como você ensina para uma criança a realidade sobre a cidade dela, mas

você omite a história panorâmica daquela realidade e conta a história só dos iguais?

Na escola particular, por exemplo, só se conta a história daqueles que tiveram algum

tipo de destaque no contexto social. Um destaque também programado, algum tipo

de privilégio para ele está sendo destacado ali. Você não conta a história dos

operários da cidade, daqueles que vieram, que ficaram sem casa. Então você

encontra na escola uma mitologia política das esferas de poder, como se existisse

uma passividade do ser humano, em relação à estrutura social. Então é assim, é de

uma crueldade, que você gera a pessoa despreparada para conviver no meio social.

(Guilherme Cunha).22

21

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016. 22

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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Dessa forma, contrapondo a diminuição da riqueza do presente e propondo a

ampliação de espaços de transformação dessas realidades sociais reivindicantes, Memórias da

Vila busca, também, através de um dispositivo sensível (RANCIÈRE, 2012), ressignificar

realidades por meio de uma perspectiva inclusiva. Esse dispositivo traz um arranjo linguajeiro

que pretende regular uma outra forma de exibição desses corpus marginalizados

midiaticamente. Neste capítulo, serão analisados esses elementos em articulação: fotografia e

relato de vida. A começar pelos aspectos de linguagem que os constitui.

É importante destacar que a metodologia desta pesquisa, embora esteja projetada neste

capítulo, não se inicia aqui. Desencadeou-se com o conhecimento do espaço do Aglomerado

da Serra, por meio de uma observação participante, a fim de entender o contexto social

representado no objeto empírico. Esse método é fundamental para promover a aproximação

do pesquisador com a conjuntura do objeto da pesquisa. De acordo com Boumard, a

observação participante “permite num movimento pendular metodológico entre o ponto de

vista do investigador e o dos atores, reconhecer uma multivetorialidade da análise em cujo

processo aqueles a priori do investigador são questionados da mesma maneira que os pontos

de vista dos atores.” (BOUMARD, 1999, p. 7).

Além desse método, foram realizadas também − por meio de uma investigação

qualitativa – entrevistas in loco. Dentre elas está a interlocução com a Rosa Maria, moradora

da Vila Fátima, representada em Memórias da Vila; entrevistou-se também Kely Cristina,

moradora da comunidade e uma das produtoras locais do livro. Além delas, Edson Gomes,

coordenador e assistente social do CRÁS Vila Fátima, também foi entrevistado, bem como os

autores do livro, Guilherme Cunha e Joana Tavares. Essas entrevistas, realizadas de forma

semiestruturada, foram fundamentais para conhecer outros pontos de vista e coletar dados não

documentados sobre o contexto e o objeto da pesquisa. Conforme Pádua (2000), essa técnica

de pesquisa permite, por meio de um roteiro semiestruturado, a interação espontânea entre o

pesquisador e os entrevistados. Por meio dela foi possível retratar as experiências vivenciadas

pelos autores e pelos moradores do Aglomerado no projeto social, bem como entender o

processo de produção da obra.

O olhar inicial da análise será dado para a fotografia, uma vez que ela é o elemento

ancorador do projeto Memórias da Vila. O livro contempla um total de 78 fotografias,

sobretudo de habitantes idosos do Aglomerado, dentre elas estão incluídas fotografias do

ambiente interno das casas de alguns dos moradores, dando foco para alguns objetos, como,

por exemplo: o sofá da sala, a janela da copa, a mesa da cozinha, o terço pendurado na parede,

a cortina que separa o cômodo, os quadros distribuídos pela parede, a pia do banheiro e os

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animais de estimação no quintal. Desse total, 68 fotografias são retratos de rostos, sendo 37

retratos de homens e 31 retratos de mulheres. Desses retratos, 61 deles foram tirados em um

cenário montado pelo fotógrafo e os demais nas próprias casas dos moradores. De acordo com

Guilherme Cunha, essa diferenciação se deve ao fato de que alguns dos habitantes

representados apresentaram dificuldades de locomoção ao local preparado para fotografá-los.

O elemento fotográfico será analisado nessa pesquisa de modo a dar ênfase ao gênero

retrato, conforme Fabris (2004). Vale aqui retomar, de acordo com a autora, a caracterização

do retrato como fotografia de identidade, em que o sujeito retratado expressa sua própria

personalidade subjetiva e o grupo ao qual pertence. Para fins analíticos, é necessário destacar

também a característica de alteridade conferida aos retratos, que está ligada à cumplicidade

existente entre o objeto fotografado e a câmera, bem como ao processo de mediação

relacionado ao possível aniquilamento da singularidade do modelo, por meio de sua pose.

Essa questão faz emergir o desafio da alteridade, ponto chave dessa pesquisa, uma vez que,

conforme o exposto nos capítulos anteriores, a tentativa de se colocar no lugar do Outro e

representá-lo, por meio do ato fotográfico, é um gesto ético que está sujeito a riscos. Dessa

forma, a capacidade de testemunhar e de revelar a verdadeira natureza dos retratados, dando a

ver um Outro sem intercessões, será analisada mediante o auxílio de alguns autores.

Barthes ao recuperar o sentido conotativo das fotografias, faz refletir sobre a

mensagem mediada por elas, bem como a forma paradoxal da leitura do seu conteúdo. A

fotografia para ele, como já visto, é o “analogon” perfeito, ou seja, uma tentativa de

reprodução mecânica do real, que carrega uma perfeição analógica do objeto representado.

Entretanto, é inevitável a redução ou transformação existente entre objeto fotografado e sua

imagem. Como toda arte mimética (BARTHES, 1990, p. 13), a fotografia carrega dois tipos

de mensagens: a mensagem denotada, que é a perfeição analógica na forma de representação,

o “analogon”; e a mensagem conotada, que é proveniente dos códigos de leitura oferecidos

pela sociedade, os estereótipos. Assim sendo, o processo de descrição ou análise de uma

fotografia consiste em dar significado a um objeto representado, ou seja, codificá-lo.

Em suma, de todas as estruturas de informação, a fotografia seria a única a ser

exclusivamente construída por uma mensagem “denotada” que esgotaria totalmente

seu ser; diante de uma fotografia, o sentimento de “denotação”, ou de plenitude

analógica, é tão forte, que a descrição de uma fotografia é, ao pé da letra,

impossível; pois que descrever consiste precisamente em acrescentar à mensagem

denotada um relais ou uma segunda mensagem, extraída de um código que é a

língua, e que constitui, fatalmente, qualquer que seja o cuidado que se tenha para ser

exato, uma conotação em relação ao análogo fotográfico: descrever, portanto, não é

somente ser inexato ou incompleto: é mudar de estrutura, é significar uma coisa

diferente daquilo que é mostrado. (BARTHES, 1990, p. 14).

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Seguindo a linha de pensamento de Barthes, o ato de leitura da fotografia implica o

surgimento de signos e, como todo signo vem acompanhado de códigos, a própria leitura e

interpretação fotográfica faz parte do processo de codificação, e, consequentemente, da

conotação da imagem. O paradoxo, segundo o autor, consiste nessa conotação de uma

mensagem denotada, e, portanto, “sem código”. É um paradoxo estrutural e, ao mesmo tempo,

ético, uma vez que revela a presença de características que aparentemente se chocam. Dessa

forma, “[...] como pode, pois, a fotografia ser, ao mesmo tempo, “objetiva” e “investida” (de

outros significados), natural e cultural?” (BARTHES, 1990, p. 15). Para responder a esse

dilema é necessário considerar os objetivos intencionados pelas fotografias, bem como

selecionar elementos constituintes para a sua análise, como forma de auxílio no processo de

decodificação.

Trazendo para o contexto analítico, é necessário, portanto, pensar quais os elementos

fotográficos podem ser considerados na composição dos retratos de Memórias da Vila, tendo

em vista o objetivo e hipótese desta pesquisa. Como a narrativa da obra propicia uma

visibilidade diferenciada em relação àqueles moradores que são representados, de modo a

valorizar as suas histórias de vida e denunciar a invisibilidade social desses sujeitos? Assim

sendo, deve-se considerar primeiramente, já iniciando o processo de conotação23

, o

dispositivo de visibilidade em que os retratos se inserem: um livro, cujos elementos estão

conjugados entre fotografias e relatos de vida dos moradores do Aglomerado da Serra, de

forma que o modelo, narrador da sua história de vida, seja identificado no retrato, posicionado

ao lado do seu testemunho. Tendo isso em vista, os elementos elencados para a análise

narrativa dos retratos foram: olhar do retratado; postura; expressão; vestimenta e

enquadramento.

O olhar foi escolhido como elemento chave para a análise dos retratos, já que, na

obra, todos os moradores representados olham para a câmera e, consequentemente, para o

leitor-receptor, trazendo uma perspectiva de aproximação. Por isso, esse elemento possui

grande influência na quebra de imaginário do receptor. O olhar realiza, neste caso, um papel

importante na relação entre o “eu” e o Outro, devido à ponte que estabelece entre modelo e

leitor.

23

A conotação nesta pesquisa está sendo considerada como técnica analítica para decifrar os sentidos gerados

pelos retratos de Guilherme Cunha, em Memórias da Vila. Essa escolha é derivada da metodologia utilizada

por Barthes (1990), em sua obra Óbvio e obtuso, com o objetivo de transcender a forma denotativa com que a

imagem é representada, indo além do senso comum.

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Quando você vê uma imagem que contradiz aquele imaginário anterior, muitas

vezes ela dá essa quebra de expectativa da personalidade. Quem sou eu diante do

Outro, nem é quem é o Outro diante de mim. É você que está mudando ali, porque

ele continua o mesmo, te olhando o tempo inteiro na imagem. É você que muda, por

isso a imagem é tão potente. Porque ela te muda. Você pode olhar todo dia pra ela e

ela continua a mesma, você que muda diante dela, você que se entende diferente a

partir do confronto com a imagem. (Guilherme Cunha).24

Esse confronto com a imagem, pontuado pelo fotógrafo, se deve também ao elemento

da postura dos retratados, que também se assemelha em todos eles. Nos retratos de Memórias

da Vila, os moradores aparecem posicionados de frente, de maneira diferente daquelas

comumente representadas em outros meios de comunicação. A postura é também central na

análise dos retratos, pois se relaciona à pose, que, segundo Barthes (1990, p. 16), “sugere a

leitura dos significados de conotação: juventude, espiritualidade, pureza.” Por isso, a pose é

fundamental na interpretação da mensagem expressa.

A expressão é, também, um elemento significativo no estabelecimento da troca

simbólica do retratado com o leitor. Em Memórias da Vila, ela se torna marcante no rosto dos

habitantes representados, que carregam na expressão traços definidos que revelam história e

são, portanto, passíveis de serem analisados.

A vestimenta é o quarto elemento elencado para ser analisado nos retratos, pois se

mostra também como ponto chave na quebra de paradigmas e estereótipos com relação aos

moradores do Aglomerado da Serra. De acordo com Guilherme Cunha, os moradores foram

fotografados sem a preparação prévia de um traje específico, justamente pela intenção de se

fazer o mínimo de intervenção possível, na forma de torná-los conhecidos. “A forma como ele

está no livro é exclusivamente a forma como ele está no dia a dia dele. Eles não aprontaram,

essa roupa está lá no guarda roupa dele. Isso é o que eles são. Só que tem uma expectativa

sobre a favela que é muito diferente. A imagem da favela.” (Guilherme Cunha).25

Para Fabris

(2004), vestir-se é um ato de diferenciação, e, portanto, um ato de significação, pelo qual o

indivíduo declara o pertencimento a determinado grupo social. Esse ato “afirma e torna

visíveis clivagens, hierarquias, solidariedades de acordo com um código estabelecido pela

sociedade”. (FABRIS, 2004, p. 37).

O último elemento elencado para a análise dos retratos é o enquadramento, que está

relacionado à aproximação, ou ao plano em que o modelo foi fotografado. Esse plano também

interfere no processo de conotação da imagem, pois, inseridos em um plano médio, os retratos

podem auxiliar na descrição e narração da ação e do sujeito fotografado, como é o caso dos

24

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016. 25

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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enquadramentos nos retratos de Memórias da Vila. O enquadramento é importante, pois está

ligado ao recorte escolhido pelo fotógrafo para representar o sujeito, estando, portanto,

relacionado à mediação simbólica.

Outro elemento que compõe o arranjo do dispositivo é o testemunho, ou relato de vida.

Memórias da Vila traz 22 relatos dos moradores do Aglomerado da Serra, sendo 12 relatos de

mulheres e 10 relatos de homens. Percebe-se, de acordo com essa quantidade, que nem todas

as pessoas fotografadas deram testemunho da sua história. De acordo com Kely Cristina, isso

se deve ao fato de que alguns moradores não quiseram dar depoimento, enquanto outros não

possuíam lucidez para contarem a sua história, devido ao avanço da idade.

Tendo em mente a troca do termo “autobiografia” para “relato de vida”, proposta por

Lejeune (2008) – devido ao seu sentido narrativo de produção de uma história vivida por um

sujeito, mas escrita e mediada por outro −, a análise desse gênero da literatura de testemunho

será feita a partir desse autor. Vale aqui retomar a caracterização desse gênero literário, em

Memórias da Vila, como um artifício de leitura das histórias em primeira pessoa, fazendo

ecoar o texto na mente do próprio leitor, em um processo de vivência de experiências. Essa

narrativa da obra possui, portanto, um importante caráter mnemônico que utiliza a linguagem

como instrumento de socialização e humanização, uma vez que recupera aspectos históricos

importantes do processo de surgimento da favela por pessoas que viveram de fato a

experiência – algumas delas até mesmo já faleceram, mas deixaram suas contribuições sociais

e históricas no projeto, sobre o processo de formação de Belo Horizonte e a constituição

desses espaços socialmente estigmatizados.

Agambem (2008), ao trazer a tona o caráter potencial do testemunho − pela existência

da impossibilidade de fala de sujeitos desprovidos do direito de enunciação −, sugere que os

relatos em primeira pessoa também possuem caráter ético, na medida em que se constituem na

relação de alteridade, em dar oportunidade de fala às pessoas estigmatizadas, proporcionando

o detalhamento expressivo dos sujeitos representados. Nesse sentido, de representação

narrativa do Outro, o testemunho é visto como instrumento da verdade, bem como um

movimento de devolução da palavra, tendo como resultado a recuperação da memória social.

Portanto, por meio dos relatos é possível conhecer o outro lado de histórias, tirando os

sujeitos da posição de alienação e anonimato, retomando, assim, a guinada subjetiva, expressa

em Sarlo (2007).

Em sentido analítico, a transcrição dos relatos tornou-se também uma questão a ser

problematizada, a partir de Lejeune (2008), quando ele coloca a questão da adaptação

narrativa do relato pelo mediador, conforme os objetivos do seu projeto. É a partir da

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perspectiva de “narratário” que o mediador − que no caso de Memórias da Vila é a jornalista

Joana Tavares − é responsável por criar um modo de narração que conserve traços do discurso

oral, mas também contemple a legibilidade, as características e os encadeamentos exigidos na

narrativa escrita, fazendo uma espécie de “faxina” no discurso.

A solução mais comum consiste em “fazer uma faxina” no discurso para adaptá-lo

às leis da comunicação escrita. Essa solução corresponde, aliás, à reação automática

da maior parte dos transcritores: pelo simples fato de estarem escrevendo, sua

tendência é eliminar as hesitações, as repetições, as expressões da linguagem oral:

eles podam as repetições e as formas “orais” (negações com um só termo, frases

segmentadas), sem suprimi-las por completo, isto é, efetuam um início de

estilização; coloca, um pouco em ordem a lógica do discurso (a transcrição, sob esse

aspecto, está indissoluvelmente ligada à montagem). (LEJEUNE, 2008, p. 168).

A partir dessa montagem, ou adaptação discursiva, percebe-se que Joana Tavares

busca adaptar o discurso dos moradores às leis da comunicação escrita, como é percebido no

estilo das falas, implantando técnicas da elaboração literária. O mediador, para Lejeune (2008,

p.146), sempre tem essa perspectiva etnológica de coletar o vivido a partir de um ponto de

vista próprio de trabalho e interesse. Por isso, o autor acredita que “a partir do momento em

que é fixada em um texto escrito, essa memória natural se torna passiva.”.

Para esta pesquisa, a análise do conteúdo textual e testemunhal possui o objetivo de

explorar marcas linguísticas da transcrição e relacioná-las ao contexto sócio histórico no qual

se inserem. Foi observada, principalmente, a recorrência de tais marcas, que fazem parte da

identidade do discurso construído, a fim de elaborar categorias analíticas de unidades de texto

para posterior interpretação. Assim como nos retratos, foram elencados os seguintes

elementos narrativos para análise dos relatos de vida: a construção da narrativa em primeira

pessoa; o mapeamento das experiências narradas, buscando identificar possíveis recorrências

e particularidades das histórias de vida dos moradores; e, por último, as marcas do discurso

narrativo que configuram a identidade do sujeito.

A construção narrativa em primeira pessoa se refere às características da

transcrição dos relatos, como, por exemplo, as formas de representação da coloquialidade da

fala oral; a ordenação do discurso de acordo com uma sequência cronológica dos fatos e não

seguindo uma ordenação natural da memória, e a maneira de decodificação dessas histórias,

em sua forma de expressão dos acontecimentos narrados. Dessa forma, essa categoria tem

como alvo principal o aspecto da transcrição, construção e ordenação da voz em primeira

pessoa.

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O mapeamento das experiências narradas é um elemento discursivo imprescindível

na análise do processo de tornar visíveis e memoráveis as realidades marginalizadas, proposto

pela obra. A partir desse mapeamento, almeja-se perceber o enredamento entre a mediação do

Outro em Memórias da Vila e a própria vida cotidiana, central no pensamento de Silverstone

(2002), quando este reitera o caráter social da mediação. Para o autor, os significados

produzidos midiaticamente se desdobram e reverberam no cotidiano, entre textos, discursos e

eventos. Portanto, como toda ética a partir do cotidiano é concebível a partir da comunicação

e, consequentemente, pela mediação, é necessário estudar esse caráter transformativo de

significação gerado por ela.

O mapeamento terá como objetivo, também, revelar as histórias mais recorrentes dos

moradores, sendo possível conhecer um pouco dos seus valores, sofrimentos, alegrias, os

contextos familiares, mundos de trabalhos, história de ocupação do Aglomerado e as

condições de vida desses habitantes. Além disso, essa categoria tem o objetivo de perceber os

momentos que tencionam o olhar hegemônico, ou seja, que revela traços de que a obra é, de

fato, uma outra forma de mediação. Pretende-se, portanto, dar atenção aos episódios que não

são vistos na mídia hegemônica, e que, por isso, escapam e se contrapõe a essas formas

tradicionais de narrar o Outro. Essa categoria analítica será fundamental para contribuir com o

desafio de mediação, que reivindica o reconhecimento e a discussão dos estereótipos

redutores ou aniquiladores da alteridade.

O último elemento a ser analisado nos relatos de vida será as marcas do discurso

narrativo que configuram a identidade do sujeito, ou seja, os tipos de expressões que

caracterizam o modo como o próprio morador se vê. Ou, em outras palavras, são os traços

discursivos que revelam como o modelo se qualifica enquanto sujeito, morador da favela.

Pretende-se com essa categoria conhecer de forma mais pessoal como é a construção da

identidade do modelo, representada por ele mesmo no seu testemunho.

Após estudar – individualmente, no corpus a ser delimitado − os elementos elencados

para o exame dos retratos e dos relatos, será desenvolvida uma análise global em torno de três

eixos da pesquisa. O primeiro deles será a articulação entre os dois âmbitos do dispositivo,

ou seja, verificar se as formas de representação do fotográfico e do testemunho se

complementam ou se chocam, e de que forma o texto narrativo auxilia na leitura do texto

imagético, e vice-versa. O segundo eixo geral de análise terá como base os desafios e

dificuldades que emergem na relação ética com o Outro, considerando os riscos, aporias e

contradições existentes na alteridade e no impulso moral para com Ele. O terceiro e último

eixo de análise narrativa será a investigação dos modos em que os retratos e os relatos

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escapam aos estereótipos que circulam nas mídias dominantes, com o objetivo de

reconhecer se o dispositivo é, de fato, uma outra forma de mediação de realidades

reivindicantes.

4.4 Fotografia e testemunho em articulação no dispositivo

Toda pesquisa social empírica seleciona evidências com o objetivo de sustentar os

argumentos levantados durante o trabalho (BAUER; AARTS, 2015, p. 39). Por isso, para o

contexto analítico desta pesquisa foi selecionado um corpus de seis retratos dos moradores de

Memórias da Vila, conjugados com os seus respectivos relatos de vida, como forma de

representar o total dos elementos do dispositivo de visibilidade. Essa seleção se deve ao fato

de que não é possível analisar toda a obra, para esta dissertação, e, por isso, foi definida uma

amostragem de elementos de acordo com os objetivos deste trabalho.

Como nem todos os moradores fotografados deram testemunhos sobre as suas

histórias de vida, optou-se pelo processo de seleção do corpus a partir da escolha daqueles

moradores que possuem ambos os elementos na sua forma de representação. Dessa forma, de

um total de 68 retratos, a quantidade foi reduzida para 21 fotografias dos moradores,

conjugadas com seus correspondentes testemunhos. Dos 21 retratos e relatos, 11 são de

mulheres e 10 são de homens.

Tendo em vista a questão da ética envolvida no processo de mediação da obra, bem

como o seu objetivo de valorização das histórias de vida dos modelos e denúncia da sua

invisibilidade social, o corpus foi selecionado de acordo com uma avaliação daqueles

moradores que possuem − em sua representação imagética e textual − mais elementos a serem

explorados, conforme esse objetivo, e baseando-se nas categorias analíticas elencadas no

tópico metodológico. Para Bauer e Aarts, os materiais constituintes de um corpus devem ser

homogêneos, ou seja, “materiais textuais não devem ser misturados com imagens, nem devem

os meios de comunicação ser confusos [...]” (BAUER; AARTS, 2015, p. 56). Contudo, no

caso desta pesquisa, deve-se considerar que imagem e texto se misturam em torno de um

mesmo objetivo e é justamente a articulação entre esses elementos que elucidará a questão

central deste trabalho.

A amostragem definida para a análise contempla retratos e relatos de três mulheres e

três homens e, como já foi exposto, não foi definida aleatoriamente, observou-se,

principalmente, o diálogo entre os elementos escolhidos e as principais teorias abordadas na

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pesquisa. Assim sendo, acredita-se que esse corpus garantirá uma representatividade

suficiente e concisa, que dê conta de responder ao problema de pesquisa.

A amostragem garante eficiência na pesquisa ao fornecer uma base lógica para o

estudo de apenas partes de uma população sem que se percam as informações – seja

esta população uma população de objetos, animais, seres humanos, acontecimentos,

ações, situações, grupos ou organizações. (BAUER; AARTS, 2015, p. 40).

Assim sendo, os modelos escolhidos para essa amostragem foram: Ailton Flávio de

Souza; Alda Lúcia da Silva Gonçalves; Anacleta Alvarenga; José Pereira Cardoso; José

Timóteo Severino e Vilma Maria de Jesus. Os retratos serão aqui expostos de modo a facilitar

o entendimento do seu formato, enquanto os relatos estarão em forma de anexo, ao final deste

trabalho, devido à sua extensão.

Esse exercício analítico do discurso narrativo tem como pressuposto a existência de

uma relação de dupla-troca entre a fotografia e a oralidade. De acordo com Peter Loizos

(2015, p. 147), só é possível fazer uma leitura mais completa da fotografia com base em um

conhecimento histórico detalhado do tempo e do lugar. A interpretação fotográfica, segundo

esse autor, exige uma leitura tanto das presenças, quanto das ausências de um registro visual.

Por isso, além do conhecimento da conjuntura social do Aglomerado da Serra, obtido por

meio da pesquisa em campo e das entrevistas, acredita-se que a leitura interpretativa do relato

pessoal do morador fará diferença significativa na interpretação da fotografia que o

representa.

Portanto, o exercício que se seguirá pretende apresentar considerações importantes a

respeito da constituição do arranjo linguajeiro do dispositivo de visibilidade em estudo. No

entanto, vale ressaltar os desafios e dificuldades em que esse processo analítico está

condicionado, considerando não só os riscos e aporias existentes na relação com o Outro

(LEVINAS, 1980), mas também a complexidade e riqueza de elementos revelados pelo objeto

comunicacional.

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Figura 2 – Ailton Flávio de Souza

Fonte: Fotografia de Guilherme Cunha

Com 64 anos de idade e nascido em Aimorés, no interior de Minas Gerais, Ailton é

morador do Aglomerado da Serra desde 1973. O seu retrato é composto pelas informações de

nome completo, data de nascimento, cidade de origem e ano de chegada na comunidade da

Serra – assim como todas as outras fotografias de rosto dos moradores em Memórias da Vila

−, o que faz lembrar os retratos da classe operária brasileira, retirados por Assis Horta, já

mencionado neste trabalho, pela forma de representação e utilização de técnicas e cuidados

com o fotografado. Além disso, o retrato de Ailton encontra-se representado, na obra, ao lado

do retrato da sua esposa, Maria Alves de Souza, que não concedeu testemunho para o projeto.

Com relação à categoria do enquadramento fotográfico, pode-se perceber que o

modelo se encontra representado em plano médio, de forma que o destaque recaia sobre suas

feições. A foto representa Ailton do seu busto para cima, de modo que ele fique centralizado

no plano fotográfico. O cenário de fundo é limpo e uniforme, de cor gelo, o que também

contribui para o destaque do sujeito retratado. Além disso, pela proximidade com o modelo, o

enquadramento destaca também o seu corte de cabelo, que se revela bem feito e bem cuidado,

assim como a sua vestimenta, que é vista em parte, mas com detalhes.

A vestimenta no retrato de Ailton é composta por uma camisa branca básica, com gola

verde, por baixo de uma blusa de frio cinza, com alguns detalhes no bolso. A roupa, muito

limpa e bem passada, não dá pistas da origem desse sujeito retratado, apenas passa a imagem

de um homem comum e bem arrumado. Ao contrário dos estigmas criados sobre a favela, que

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acabam por caracterizar o favelado como “sujeito sujo” e “mal cuidado”, neste retrato não há

elementos que o caracterize como tal. O modelo, apesar da vida pobre e humilde, não a torna

visível por meio da fotografia.

Pelo que se faz notório, a expressão do senhor é o elemento que mais revela

características da sua vida. O seu rosto e pescoço, bem marcados por linhas de expressão,

pressupõem ao leitor traços de luta e trabalho, principalmente pela pele morena caracterizada

pela exposição ao sol. O morador não sorri abertamente, o que demonstra certa serenidade na

sua expressão facial. Seu olhar, que também faz parte da perspectiva expressionista, é

identificado por uma deficiência visual, entretanto, se mostra aberto e profundo. Pode-se

perceber que não é um olhar desafiador, mas também não se revela intimidado ou retraído.

Com relação à postura, pode-se falar da pose do modelo, que se encontra levemente

inclinado para o seu lado direito, o que não indica um enfrentamento do espectador leitor. A

pose, no retrato, tem fundamental importância para dar significado e ele. O significado

expresso na pose de Ailton desperta no imaginário do espectador a noção de dignidade e

direito de representatividade.

Após a interpretação fotográfica do modelo, a análise seguirá sob o ponto de vista do

relato de vida. Em seu relato (anexo A), Ailton conta um pouco sobre a sua trajetória de vida

desde quando chegou à comunidade, destacando situações de dificuldades que passou no

processo de ocupação, bem como as condições de violência, do tráfico e de infraestrutura das

moradias, comparando-as com o contexto atual.

Com base na construção da narrativa em primeira pessoa no processo de narração,

nota-se que o relato de Ailton preserva alguns erros da fala. Em algumas frases são notórias

algumas expressões informais, como, por exemplo: “Ele tava aqui há uns seis meses e foi pra

lá pra chamar nós pra vim pra Belo Horizonte”; “Porque naquela época não tinha essa

drogaiada [...]”; “No primeiro barraco que nós morou, cozinhava era atrás da casa”. Dessa

forma, a narração demonstra a construção de um ritmo de oralidade comum da fala, inclusive

pelos erros ortográficos e gramaticais.

Além disso, o que se percebe em relação à ordenação cronológica do discurso

narrativo é a existência de uma lógica construída em torno dos temas discursivos, uma vez

que o morador conta primeiro a sua origem e as condições da nova vida no Aglomerado:

“Mas aqui, antigamente, a vida era muito penosa. Aqui não tinha nada, não tinha

infraestrutura nenhuma, era tudo terra, uns barraquinhos de painel, maderite, essas coisas

[...]”; depois segue contando o motivo da imigração: “Ele [seu cunhado] falou que aqui tinha

muito serviço. E tinha uma turma do nosso interior que já morava aqui.”; e relata também a

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forma como conseguiu se instalar na comunidade: “Eu trabalhei dois meses na firma e pedi

pra ir embora, pra conseguir dinheiro pra comprar as coisas pra casa, num topa tudo. [...]

Tudo que a gente planejou a gente conseguiu. Coisa grande a gente não tem nem condições de

planejar.”.

No entanto, é possível perceber, na separação dos parágrafos, alguns cortes no

discurso, pois, há uma passagem brusca de um tema para outro, o que demonstra marcas da

edição e, portanto, da “faxina” do oral para a escrita. Por isso, embora tenha sido feito um

arranjo discursivo por parte da jornalista, a narrativa acaba apresentando alguns “buracos” e

elipses, e, por isso, não flui como uma conversação.

Sob a perspectiva da decodificação da história de vida de Ailton, pode-se constatar que

o relato do morador, apesar de estar adaptado para um dispositivo de visibilidade específico,

procurou expressar de forma natural os traços de dignidade que carrega o seu discurso. Essa

questão foi planejada por Joana Tavares no processo de transcrição.

Através do mapeamento das experiências narradas pelo modelo Ailton foi possível

perceber a recorrência de algumas marcas discursivas, que revelam situações representativas

da formação das favelas, como, por exemplo: o processo de imigração para Belo Horizonte.

Meu cunhado que teve a ideia de vir pra cá. Ele tava aqui há uns seis meses e foi pra

lá pra chamar nós pra vim pra Belo Horizonte, que aqui era melhor pra nós. Porque

lá era muito ruim. Era pasto, bateção de pasto ou plantação. Muito arroz, feijão,

milho... lavoura. Ele falou que aqui tinha muito serviço. E tinha uma turma do nosso

interior que já morava aqui. Incluindo o moço que arrumou o primeiro serviço pra

mim. Era muito diferente o trabalho da obra do trabalho da lavoura. E o clima

também. Aqui chovia seis meses. Belo Horizonte era muito frio na época. Eu

trabalhava de 7 da manhã às 9 da noite. E quase todo dia chovia. Era difícil demais,

porque aqui era só terra, escorregava demais! (Ailton Souza).26

Esse trecho mostra um pouco da trajetória do morador, que abandonou a vida no

interior e mudou para Belo Horizonte em busca de melhores condições de vida, por meio do

trabalho nas obras de construção da cidade. Apesar de todas as dificuldades de instalação e

moradia, o morador relata que a vida na capital possuía mais oportunidades e, por isso, era

mais compensatória. Em vista disso, a coragem para mudança também é uma marca

recorrente em seu discurso: “Viemos pra Belo Horizonte com dois mês de casado. A gente

não tinha nada não. O que tinha metia num saco e trazia. A gente só tinha a cara e a

coragem.”.

26

Relato de Ailton Flávio de Souza (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 36).

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Apesar de toda a luta, Ailton vê o Aglomerado da Serra como um local importante e

estratégico para moradia, devido, principalmente, à sua localização. “Eu já tive muita

oportunidade de sair daqui, mas eu que não quis. Aqui é perto de tudo, a gente já tá

acostumado, já conhece todo mundo. [...] Isso aqui é fora de série, Quantas vezes eu fui daqui

a pé no Centro, porque não tinha dinheiro?”. Portanto, a Comunidade da Serra representa

simbolicamente, para o morador, a chance para a concretização do seu plano de melhoria de

vida, juntamente com a sua família.

Com relação às marcas que configuram a identidade do sujeito representado, é notória,

no relato de Ailton, uma história de luta e também de superação. “Tudo que a gente planejou a

gente conseguiu. Coisa grande a gente não tem nem condições de planejar. A gente planejou

ter um barraco, taí, tem que terminar, mas agora é só acabamento. E outro plano era ver

nossos meninos criados. Graças a Deus, taí.”. Neste trecho pode-se perceber que Ailton sente

orgulho de sua história, e a enxerga como superação da pobreza e miséria que vivia na roça e

no princípio da sua instalação na Serra. “Minha mulher buscava água lá no canão. Lavava

roupa lá. Buscava água meia-noite, uma hora da manhã. Eu chegava do serviço oito, nove da

noite e ia carregar água.”. Como pôde ser visto, as marcas do seu discurso o qualifica como

um homem batalhador, corajoso, determinado e orgulhoso dos frutos gerados pelo seu

trabalho.

Figura 3 – Alda Lúcia da Silva Gonçalves

Fonte: Fotografia de Guilherme Cunha

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O retrato acima representa Alda, de 66 anos de idade, nascida em Governador

Valadares e criada no Aglomerado da Serra desde os seus dois anos de idade. O seu retrato, de

tamanho maior, em relação ao de Ailton, também é integrado pelas informações de nome

completo, data de nascimento, cidade de origem e ano de chegada à comunidade da Serra –

que se apresentam na página ao lado da fotografia. Ao contrário do retrato anterior, a senhora

foi representada sozinha, de forma que o seu relato dê sequência à sua figura.

Alda também foi enquadrada em plano médio, do busto para cima, o que resultou no

destaque dos seus traços faciais, assim como os seus cabelos, que estão soltos e são vistos

como o ponto de maior destaque no retrato, pelo tom preto dos fios, realçado com o cenário

limpo, de cor gelo. A vestimenta não é tão destacada em sua foto, pelo fato de ser uma blusa

de tom bege, que acaba entrando em consonância com a tonalidade do plano de fundo. Apesar

disso, o enquadramento e a boa resolução da foto possibilita a visibilidade dos detalhes da sua

roupa, como os bordados na gola e ao lado do peito. Em semelhança à representação de

Ailton, o retrato de Alda procura preservar traços simples, de modo a conservar a dignidade

da modelo, de maneira natural.

Assim como o retrato anteriormente analisado, os traços que mais revelam a

personalidade e história da modelo representada, antes de ler o seu relato, são as linhas de

expressão, que compõem o seu rosto e a serenidade no seu sorriso, que embora não esteja

estampado abertamente, aparece com o semblante calmo da moradora. As linhas de expressão

são evidentes principalmente na região dos olhos, trazendo um aspecto de velhice, mas ao

mesmo tempo de experiência de vida. O olhar é fundo devido às pálpebras pesadas que

simbolizam não só a sua idade, mas também a luta pela sobrevivência. Assim como o olhar de

Ailton, o olhar de Alda não é provocador, ao contrário, transmite certa humildade e

despretensão.

Com relação à sua postura, a moradora está representada de forma menos inclinada, se

comparada a Ailton, o que aproxima ainda mais a sua feição do espectador-leitor, pois o

coloca frente a frente à modelo. Devido ao plano médio, que corta os seus braços, não é

possível ter a certeza se ela se encontra em pé ou sentada. Entretanto, a foto dá prioridade para

a postura de frente da senhora, fazendo com que ela ocupe a maior parte do espaço

fotografado.

Em seu relato (anexo B), Alda conta sobre a sua migração de Governador Valadares

para Belo Horizonte, ainda criança. O motivo da vinda foi a oportunidade de trabalho que

surgiu para os seus pais em uma chácara no Aglomerado da Serra. Sua narrativa é marcada

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pelos fatos de dificuldade de estudo, de saúde, de infraestrutura da comunidade e de luta para

a subsistência de uma família composta por 12 pessoas.

A construção da narrativa em primeira pessoa se apresenta com menos erros

gramaticais e de pronúncia, se comparada ao relato anterior, de Ailton. Mas algumas

expressões comuns da fala oral também foram reveladas no discurso de Alda, como, por

exemplo: “Pra gente estudar a gente tinha que andar... Eu fiz jardim lá na Escola Estadual

Benjamim Guimarães. Aí depois fui fazer primeiro ano na Escola Pedro II, lá no Centro.

Depois, tava muito longe [...]”; “Meu pai mexia com roça. E tinha criação de porcos. Era uma

fazenda. Não tinha gado, né?”; “Minha mãe saía pra trabalhar fora, e nós éramos quatro filhas

mulher.”.

Quanto à cronologia, pode-se perceber que o discurso de Alda se inicia com a história

da sua chegada à comunidade e se desenrola com a narração das dificuldades de acesso às

condições básicas de água, saúde, educação e transporte, na época da sua instalação. A

moradora narra também a mudança de bairro, no Aglomerado, devido ao seu casamento.

Logo depois, a narrativa se volta para as dificuldades de acesso à água para a realização de

atividades básicas do dia a dia. “Lavar roupa a gente lavava lá, onde eles falam „canão‟. A

gente ia lá pra lavar a roupa. Foi muita dificuldade [...]”. Após esse relato, a narrativa se volta,

novamente, para a sua história de convivência com os pais:

Minha mãe saía pra trabalhar fora, e nós éramos quatro filhas mulher. Meus pais não

deixavam a gente trabalhar de jeito nenhum! Só dentro de casa. Mamãe saía pra

trabalhar e a gente ficava em casa, cuidando. Depois a gente foi casando e cuidando

de marido. Eu, graças a Deus, nunca trabalhei fora. Trabalhei assim, lavando roupa

pros outros, mas em casa. Na minha casa. Meu marido não deixava, dizia que a

prioridade era cuidar das crianças, dos filhos. Tive 16 filhos. Todos vingaram.

Faleceu um com 33 anos, Jeremias. E o Marcos morreu com 36. Meu tempo era só

pra cuidar de filho. A única coisa que eu fiz foi obter filho. Meu marido era pedreiro,

trabalhava em construção. Depois fiquei viúva. (Alda Gonçalves).27

Percebe-se, com esse encadeamento discursivo, que o relato de Alda não possui uma

edição temática cronológica da sua fala. Joana Tavares, apesar de ter arrumado o discurso no

ato da transcrição – o que pode ser percebido pela apresentação de elipses narrativas entre os

parágrafos, resultando em passagens bruscas de um assunto para o outro −, procurou

preservar a ordenação narrativa da memória da narradora.

Com o mapeamento das experiências narradas por Alda, foi possível identificar

algumas marcas que configuram a sua fala como fruto de uma mediação diferente,

27

Relato de Alda Gonçalves (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 41).

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intencionada pela jornalista, narratária da história. A primeira delas é sobre o processo de

instalação no Aglomerado, que ocorreu pelo motivo da busca pelo trabalho na capital. “Isso

tudo era plantação de café. Puseram o nome de Cafezal por isso. A gente morava dentro da

chácara, porque meu pai tomava conta. Tinha o doutor Jaimes de Barros, que era o dono.

Tinha bastante café, eucalipto, que o meu pai plantava pra ele”.

Além disso, outra marca forte do discurso de Alda é a dificuldade com a infraestrutura

da comunidade, que era muito precária. “Aqui começou a crescer muito devagar. Ônibus não

tinha. Água também não tinha. Carreguei muita água na cabeça, buscando lá embaixo, pra

baixo do Hospital Evangélico.” “Depois é que foi chegando a água, aos pouquinhos. Aliás, eu

fui uma das primeiras moradoras a ter água da Copasa. Já tava casada.”. Esses episódios

relatados acabam confirmando as dificuldades do processo de formação da favela em Belo

Horizonte e a significação desse espaço como uma conquista dos próprios moradores,

trabalhadores.

Outra marca percebida é em relação à sociedade machista da época, em que as

mulheres eram obrigadas a cuidar da casa e, consequentemente, eram proibidas ao acesso a

outros tipos de trabalho. “Minha mãe saía pra trabalhar fora, e nós éramos quatro filhas

mulher. Meus pais não deixavam a gente trabalhar de jeito nenhum! Só dentro de casa.” “Meu

marido não deixava, dizia que a prioridade era cuidar das crianças, dos filhos.”.

Tendo em vista essas situações, infere-se que as marcas que configuram a identidade

do sujeito representado, no relato de Alda, são marcas de luta e de trabalho pela conquista do

crescimento e sobrevivência no contexto da favela. Em contrapartida, nota-se presente no

discurso traços de submissão e limitação, impostos, principalmente, pelos pais e pelo marido.

A moradora demonstra certa conformidade em seu relato de vida, expressando marcas de

subordinação e privação da sua liberdade. “Meu tempo era só pra cuidar de filho. A única

coisa que eu fiz foi obter filho.”. Além disso, a tristeza e a solidão são marcantes na sua fala,

quando conta que ficou viúva e que perdeu dois dos seus 16 filhos. “Conselho meu é evitar

violência, procurar o caminho que deve seguir... Porque eu, graças a Deus, tenho essa

filharada, mas todos aos pés do Senhor.”. Apesar disso, e com ajuda da religiosidade −

fortemente presente em sua narrativa −, Alda acha que cumpriu os seus objetivos, da forma

como deveria ser, quando se mostra contentada com as suas realizações: “Não tenho do que

me queixar.”.

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Figura 4 – Anacleta Alvarenga

Fonte: Fotografia de Guilherme Cunha

O retrato acima se refere à moradora Anacleta, de 82 anos de idade, nascida em

Ferros, no interior de Minas Gerais e habitante do Aglomerado da Serra há 42 anos. O seu

retrato tem dimensão e configuração semelhantes ao retrato de Alda. Por isso, a modelo está

enquadrada também em plano médio, de forma que o seu rosto e o seu corpo, do ombro ao

busto, ganham destaque. Assim como nos dois outros retratos interpretados, o enquadramento

prioriza o rosto como forma de representação do sujeito, o que é percebido pelo corte da foto

e pela luz que ilumina a pele da sua face, contrastando-a com o cenário de fundo, que não se

faz notado. Essa demarcação do retrato também enfatiza elementos da retratada: o corte de

cabelo e os seus acessórios, como os brincos de pérola e o colar com o símbolo de Nossa

Senhora Aparecida, que indica a presença da religiosidade na vida da modelo.

A vestimenta também é outro elemento destacado no retrato da moradora,

principalmente pela luz que ressalta as cores vivas da sua camisa. A senhora se apresenta bem

vestida e arrumada, assim como foi observado nos retratos anteriores. Por isso, por mais que

os estigmas sociais nos forçam a procurar marcas visíveis que caracterizam esses moradores

como sujeitos pertencentes a uma classe social menos favorecida, o retrato em Memórias da

Vila não atesta essa distinção.

Talvez a expressão da moradora pode ser considerada como a única forma de

demonstração explícita da sua história de vida, visto que é bastante marcada por linhas faciais.

Além disso, a seriedade estampada em seu rosto simboliza tristeza e peso em sua maneira de

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relacionar com a câmera fotográfica. Os traços de sofrimento e lamentação podem ser

percebidos também no olhar da moradora, que é representado de forma lacrimejante. Um

olhar fechado, que se for observado isolado do rosto da modelo, transparece angústia e dor. A

postura da moradora, levemente inclinada para o seu lado esquerdo, expressa um caráter

retraído e humilde, diferente de uma postura de confrontação com a câmera.

Em seu relato de vida (anexo C), que aparece na página seguinte às informações do

seu retrato, Anacleta ressalta a trajetória de ocupação do território do Aglomerado por causa

do seu casamento. Mesmo com a dificuldade de criação dos cinco filhos sozinha, devido à

separação, conseguiu se estabelecer de forma progressiva. Porém, relata um pouco sobre a

fase difícil e angustiante em que está passando, devido à perda do seu filho mais novo, que

morreu assassinado em um bar do Aglomerado.

A construção da narrativa da senhora Anacleta em primeira pessoa revela também

alguns erros de pronúncia comuns da fala oral, como, por exemplo: “Eu tinha 23 pra 24 anos,

era cozinheira. De lá que eu arranjei um casamento, casei mal, e vim embora. Vim sem nada.”

“Ele, com a cabeça muito virada, nós não demos certo.” “A minha casa era cheia de menino

dos outros. Eu fazia um panelão assim de comida. E dava pra todo mundo. Punha assim no

chão naquelas baciinha de alumínio, punha pra todo mundo comer.” “Agora eu tô assim

descaída, porque meu filho foi. Ele morreu no bar ali. Eu falava que ele tinha que parar de

beber, pra nós poder passear... Fiquei tão triste e depois percebi que estava ficando pinel.”

Como pode ser visto, além da coloquialidade, as falas revelam também expressões

regionalistas que marcam o discurso, como é o caso do termo “pinel”, cujo significado diz

respeito a uma pessoa louca, com alguma inquietação mental.

A narrativa testemunhal de Anacleta, se comparada com as duas anteriores, é a que

mais segue uma ordem cronológica dos acontecimentos. O seu discurso se inicia com o relato

da sua chegada e instalação no Aglomerado, segue contando as desavenças no casamento, até

a sua separação e depois continua dizendo sobre as dificuldades enfrentadas na criação dos

filhos e na morte de um deles. Percebe-se também que a sua história é sempre marcada por

traços subjetivos de luta e solidão, como, por exemplo: “Foi difícil demais, porque a gente

não tinha condições. Comecei a trabalhar fichada, mas pra tratar dos meninos, o dinheiro era

muito pouco, as coisas eram muito caras.”; “Agora todo mundo cresceu e tô aqui sozinha”; “A

família foi feita pra dois.”. Em vista disso, o discurso de Anacleta revela menos elipses entre

os temas narrados, se comparado às anteriores, fazendo com que o texto flua mais

naturalmente, sem interrupções perceptíveis que sugerem quebra na fala.

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Com o mapeamento das experiências narradas por Anacleta, é possível perceber

também traços narrativos que revelam fatos da vida no Aglomerado da Serra, que se chocam e

ao mesmo tempo torna conhecido um outro lado da realidade mostrada na mídia hegemônica

− como foi visualizado na busca de notícias.

Ficamos sabendo que ia repartir terreno aqui na Serra. Aí ganhei um pedaço. Vim

pelejando, fiz um quartinho, fui aumentando, até fazer. Aqui não tinha água, não

tinha luz, era uma dificuldade danada. A gente lavava roupa lá no canão. Muitas

vezes, eu trabalhava varrendo rua e trazia água lá da Igreja do Carmo. (Anacleta

Alvarenga).28

Em se tratando de infraestrutura, o espaço do Aglomerado, de acordo com a moradora,

era pior do que a roça de onde ela veio, devido à quantidade de mato no local. Depois de

muito esforço para construir uma moradia digna, Anacleta relata, ainda, que hoje em dia a

vida na comunidade melhorou significativamente, se comparada à época da sua imigração,

não só com relação à infraestrutura, mas também à acessibilidade. “[...] melhorou, todo

mundo já tem suas casas. Naquele tempo era tudo casa de tábua, aqueles barracãozinho

pequeninho, não tinha gás, não tinha nada. Hoje não, hoje tem tudo. Melhorou pra todo

mundo.”.

As marcas que configuram a identidade da modelo representada revelam um pouco da

sua personalidade. As características de mulher, mãe e trabalhadora são bem marcantes na sua

fala:

A mãe que carrega a cruz nas costas; ela é tudo, não tem ninguém pra pedir nada,

não tem ninguém pra esperar nada, todo mundo espera só de você ali. Eles falam:

'mãe, a senhora não adoece, nunca reclama de uma dor'. Eu levanto é cedo. Vou

varrer o terreno, a beirada da rua, porque eu tenho meus cachorrinhos. Tenho que

varrer antes do sol. Eu acostumei com isso. Mas agora que eu tô mais triste que eu

fico perguntando assim: por quê? É um destino que a gente tem, né? (Anacleta

Alvarenga).29

É notório também que Anacleta se sente sozinha e abandonada, com a morte do seu

filho mais novo e com o rumo que tomou os outros filhos. Por isso, se mostra deprimida,

carente e frustrada com o seu casamento. “Eu acho que é muito difícil quando é uma pessoa

só. A família foi feita pra dois. Quando uma pessoa só cria, é muito difícil carregar a cruz. Eu

sou mãe, sou avó. Nunca tive ninguém pra me ajudar com nada. Sete anos que vivi com

homem, sete anos de sofrimento.”. “A Catarina, que é uma moça nova, mas gosta de

28

Relato de Anacleta Alvarenga. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 48). 29

Relato de Anacleta Alvarenga. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 49).

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conversar com gente mais de idade, me levou pra conversar com uma psicóloga. Estou me

sentindo meio assim sufocada. Se eu continuar, vou ficar pinel. E eu não posso ficar pinel

não, porque tenho que seguir em frente.”

Apesar de se sentir deprimida, Anacleta continua sonhando com a perspectiva de sair

do Aglomerado para conhecer outros lugares. “O pior é que eu sou sonhadora, estou sempre

querendo as coisas, sempre querendo melhorar.”

Meu sonho agora é acabar de fazer esse muro e ir passear. Curtir a vida. Mas

primeiro vou fazer esse muro, que aí deixo minhas galinhas fechadinhas, meus

cachorros. Pego minha carteira, vou lá pra Itabira, na casa da minha irmã. Passear.

Visitar minhas amigas. Não ficar chorando igual eu tô agora. É porque tá recente,

né? (Anacleta Alvarenga).30

Dessa forma, o relato de vida da moradora revela mais características de uma habitante

da favela do que o retrato por si só. Apesar disso, ambas as narrativas – imagética e textual −

são marcadas por traços subjetivos da personalidade da modelo, embora no texto eles se

tornem mais evidentes.

Figura 5 – José Pereira Cardoso

Fonte: Fotografia de Guilherme Cunha

O retratado acima é José Pereira, mais conhecido na comunidade como “Zezinho”,

com então 58 anos de idade e morador do Aglomerado da Serra há 40 anos. A sua foto ocupa

30

Relato de Anacleta Alvarenga. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 49).

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uma página inteira do livro e é seguida pelo seu relato de vida, bem como pelas informações

tradicionais que acompanham os retratos neste dispositivo, como nome completo, data de

nascimento, cidade de origem e ano de migração para a Serra.

José Pereira está enquadrado também em plano médio, assim como as outras

fotografias aqui observadas, de modo a destacar o seu rosto e parte da sua vestimenta. Os seus

braços não são visíveis nesse tipo de retrato, já que é priorizado o tronco do modelo no corte

da foto. A luz também está voltada para o seu rosto, dando ênfase nas suas expressões faciais.

O cenário é o mesmo dos outros modelos aqui expostos, de modo que o sujeito fique isolado,

numa espécie de alto relevo.

A vestimenta, como já dito, é uma componente fotográfica bastante evidenciada. No

caso do modelo em questão, que está vestido com uma camisa de gola polo vermelha, com

listras azuis, a roupa é um elemento de destaque, principalmente por causa da sua cor vívida.

Além disso, como nos outros retratos, o traje de José Pereira é um traje comum, de passeio, o

que acaba reforçando a dignidade do retratado.

Com relação a sua expressão, nota-se também a ausência de um sorriso estampado na

fotografia, assim como nas outras analisadas. Apesar disso, o senhor expressa um semblante

de seriedade e ao mesmo tempo de tranquilidade em sua face. Os traços que marcam o seu

rosto revelam a sua experiência de vida e a pele, aparentemente grossa, simboliza o trabalho e

o longo tempo de exposição ao sol.

Com relação ao seu olhar, quando observado isolado do restante da face, é aberto e

aparentemente triste. Analisado de forma independente, o olhar demonstra, ainda, um caráter

envelhecido, que se desconstrói quando observado de forma conjunta com o restante da face.

Apesar disso, não é um olhar desafiador, visto que se traduz em simplicidade e humildade.

A postura do retratado também se revela um pouco inclinada para o seu lado esquerdo,

todavia, ainda o expõe frente a frente com o espectador-leitor. É uma postura tímida, mas ao

mesmo tempo natural, em que o senhor retratado se coloca de forma espontânea.

Em seu relato de vida (anexo D), que é exibido na sequência do seu retrato, José

Pereira conta a trajetória do início da sua ocupação, comparando as condições de antigamente

com as condições atuais de infraestrutura do Aglomerado. Além das melhorias na

comunidade, o morador relata também as dificuldades que passou para construir sua moradia,

até a sua estabilidade no local. O morador revela, ainda, situações de ameaças de remoção dos

habitantes da favela pelo poder público.

A construção da narrativa de José Pereira é fortemente marcada pela coloquialidade da

fala. Como pode ser visto em alguns trechos do seu testemunho: “Na época que eu mudei pra

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cá, só tinha uma casa aqui e outra lá. Aqui era tudo mato. Só tinha uma casa, no pé de abacate.

Na época que eu vim, eu trabalhava na mina, mas num nasci aqui não. Nascido aqui tem

muita gente. Meus filhos nasceram tudo aqui.”. “Na minha época, já num tinha cavalo. Só

tava o terreno, tudo livre. Aí o povo começou a invadir lá em cima. O pessoal contava que

antes tinha cavalo, eles pegava os cavalo dos outro pra pegar material lá no Santa Efigênia,

num depósito que tinha lá.”. Dessa forma, nota-se que a jornalista procurou preservar na

transcrição os erros comuns da fala.

Observa-se também a presença de elipses e quebras discursivas entre os parágrafos, o

que demonstra traços da faxina discursiva feita pela repórter-narratária. Isso é evidente,

principalmente, com a passagem de um assunto para o outro, quando, por exemplo, o morador

narra as suas condições de moradia, já passa a falar do seu trabalho como pedreiro e, logo em

sequência, conta as vantagens do bairro em que está instalado. Apesar disso, o encadeamento

dos fatos não prejudica a sua forma de interpretação, devido à estética textual da narrativa,

marcada por pausas entre os parágrafos e temáticas, e pela fonte da letra, sutil e de fácil

leitura.

Por meio do mapeamento das experiências narradas, foi possível perceber fatos que

marcam o discurso de uma forma diferente, sem enfatizar o lado do crime e do tráfico de

drogas, por exemplo. José Pereira transcende em seu relato o estigma de que a favela é um

lugar ruim, que se resume a características negativas, quando descreve o lugar como um

ambiente bom para se viver.

Aglomerado diz que é ruim. É ruim pra quem tem dinheiro, que vai morar no

Belvedere, vai morar na Savassi, comprar sítio. Agora pra nós é bom aqui mesmo.

Tá bom demais. Liberdade... eu saio sem camisa, eu entro no boteco de chinelo. No

bairro não. Lá onde eu trabalho tem um cara que mora pertinho de onde nós

trabalhamos. Chega de tarde ele tá trocando de roupa pra voltar pra casa. Eu falo:

“se você mora pertinho, porque que você tá trocando de roupa?” Ele fala: “Ah não,

porque eu moro em apartamento, aí é chato eu chegar lá com o uniforme da

empresa.” O importante é você tá trabalhando! Se você fosse vagabundo com

dinheiro, eles aceitavam. (José Pereira).31

Através das falas, é possível perceber que o morador sente orgulho em morar na

comunidade, que além do acolhimento e amizade que se constrói com a vizinhança, possui a

vantagem da localização, próxima ao centro da capital, bem como da área hospitalar de Belo

Horizonte. Entretanto, segundo o narrador, devido a esse fator, o Aglomerado foi alvo de

tentativas de desterritorialização pela PBH.

31

Relato de José Pereira Cardoso. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 99).

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O prefeito é o seguinte: eles querem jogar nós fora daqui, porque isso aqui é uma

área que o pessoal rico interessa, perto do centro. Então ele quer tomar. Só que num

tem como. Se eu mudar daqui, eu vou pra onde? Pra roça num tem condições de

morar, lote num tem condições de comprar que vai morar longe. Então eu quero

ficar aqui onde eu tô. Até hoje num mexeu comigo não. (José Pereira).32

Apesar das tentativas do poder público de afastamento dos moradores, José Pereira

revela a determinação em não abrir mão da sua moradia no Aglomerado da Serra. Por isso, as

marcas do discurso que configuram a sua identidade o caracteriza como um sujeito

trabalhador e persistente. “Mas eu não quero sair daqui não.” “Eu vim pra cá, e num tinha

nenhum juízo na época. Eu tava lá na roça, deu pra vim pra Belo Horizonte, eu vim. Era em

1978. Eu comprei a casa em 1985, antes eu morava na casa dos outro. Área de sete metros por

três metros. Barraco de dois cômodo, nem banheiro tinha.”.

Ademais, é notado que o discurso do morador é o primeiro dos relatos que foram aqui

interpretados que não cita ou não se refere aos seus familiares, como esposa ou filhos. Isso faz

com que a narrativa seja mais focada na pessoa do narrador, e menos carregada de caráter

emocional, como nas outras. Por isso, o morador expressa menos adjetivos em relação a si

mesmo, enfocando o discurso para outros contextos da sua vida, como o trabalho, benfeitorias

conquistadas e a indignação com a atitude da prefeitura.

Figura 6 – José Timóteo Severino

Fonte: Fotografia de Guilherme Cunha

32

Relato de José Pereira Cardoso. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 99).

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O retrato acima representa José Timóteo, de 73 anos, nascido em Guaraciaba, no

interior de Minas Gerais e morador do Aglomerado da Serra há 40 anos. A sua fotografia

também ocupa uma página inteira da obra Memórias da Vila e é seguida das informações

complementares, conforme descrito nos outros exemplos analisados.

Timóteo está enquadrado em plano médio, de forma que a parte de cima do seu tronco

seja destacada. Seus braços não aparecem no corte da foto. A fotografia também busca

evidenciar parte da vestimenta e os detalhes do seu rosto. A sua pele morena se torna

reluzente, principalmente na região da testa e dos olhos. O seu cabelo branco acaba se

camuflando no cenário de fundo, cor de gelo. Quanto à sua vestimenta, trata-se de uma

camisa de linho de tom bege, que faz com que a sua pele seja destacada ainda mais, devido ao

contraste de cores. A camisa é simples, fazendo com que o sujeito tenha aparência de um

trabalhador comum.

A sua expressão facial é séria e com linhas profundas, que aparentam um pouco da sua

idade. Timóteo não apresenta tranquilidade e serenidade na forma de se relacionar com a

câmera, ao contrário de José Pereira. O olhar, como o de Anacleta, apresenta-se lacrimejante,

simbolizando um pouco do seu sofrimento e preocupações. Além disso, é um olhar que

remete a um estado reflexivo e memorialístico, de recordação de fatos passados.

A postura do modelo retratado é levemente inclinada para o seu lado esquerdo, o que é

quase imperceptível, uma vez que ele está frente a frente com o espectador leitor. Essa

postura, principalmente em conjunto com o enquadramento fotográfico, é estratégica para o

estabelecimento de uma relação de proximidade do Outro representado com o leitor da obra, o

que revela certa intenção de provocação de choques de realidades e quebra de alguns estigmas

sociais sobre o morador da favela.

Em seu relato de vida (anexo E), José Timóteo torna visível alguns traços da sua

personalidade que podem ser comparados com as características percebidas na sua fotografia,

tais como a humildade, a luta e experiência de vida. A sua narrativa é longa e ocupa duas

páginas do livro.

A construção da narrativa em primeira pessoa de Timóteo revela também traços

coloquiais comuns da fala oral. “Agora é cuidar dos netos, até Deus alembrar da gente.

Enquanto não alembra, a gente vai caminhando.” “O que Deus deu, deu; o que não deu, tem

que correr pra buscar. Pra nós adquirir tem que trabalhar, se não trabalhar não tem nada;

roubar é que não vale a pena.”. Essas frases revelam a humildade do morador e a simplicidade

com que leva a vida.

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A narrativa do morador também é marcada por cortes, que são mais evidentes entre os

parágrafos. Além disso, existe certa cronologia no seu discurso, que se inicia com a sua

história de origem e migração para o Aglomerado, segue com a narrativa das dificuldades de

trabalho e de infraestrutura dos bairros e termina com o relato sobre o preconceito sofrido

pelo fato de ser morador da favela. A fala do narrador possui um ritmo que facilita a leitura e

a interpretação da sua voz na mente, principalmente pelas frases curtas e pelo espaçamento

significativo entre os parágrafos.

O mapeamento das experiências narradas por Timóteo tornou visível momentos que

tencionam o olhar hegemônico da mídia dominante. A começar pelo objetivo da sua migração

para o Aglomerado, para buscar melhores condições de vida por meio do trabalho na obra.

“Vim pra cá através de um primo que já trabalhava aqui. Me aposentei na UFMG. Comecei

de servente e Deus me ajudou e depois me classificaram de pintor e veio a continuidade.

Trabalhei 34 anos na UFMG. Juntei os tempos que eu tinha fora, e deu certo.”. Além disso,

a falta de apoio e acolhimento do poder público, com relação às necessidades básicas de vida,

mostra que os moradores da favela precisam de muito esforço e contestação para conquistar

alguns serviços, como é o caso da construção do posto de saúde na Vila do Cafezal.

No mais, tem nossa associação. Pondo as coisas em dia, fica mais fácil de resolver.

Tem umas coisas que a gente tem que fazer. O posto de saúde novo do Cafezal, a

gente vem caminhando em cima dele. Várias coisinhas miúdas a gente precisa fazer.

Sozinho a gente não tem força. Eles tão lá embaixo e não tão vendo. Nós temos que

conseguir as coisas com os políticos que nós votamos. Nossas necessidades, nós é

que sabemos, nós é que sabemos o que nós precisamos aqui na favela. (José

Timóteo).33

Essa fala demonstra a indignação do morador frente à negligência por parte do poder

público para atender à população da favela, que acaba sendo excluída. São reinvindicações

que não se fazem presentes nos grandes veículos de comunicação de massa, e, por isso, se

tornam apagadas. A mídia, ao aniquilar tais realidades, acaba se configurando como um

espaço de resistência a essas lutas. “Político não luta por nossos direitos, para eles tá tudo

bom. Nós é que temos que brigar por nossos direitos. Pra eles lá tá tudo um céu. A gente tem

que ir para luta, senão não consegue nada. Estamos caminhando, não estamos parados.”. As

lutas, que já apresentam naturalmente dificuldades para serem vencidas, se tornam ainda mais

árduas quando não são perpetuadas.

33

Relato de José Timóteo Severino. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 105).

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Além da dificuldade do acesso a essas questões básicas de vida, os moradores do

Aglomerado também enfrentam situações de preconceito, geradas pelos estereótipos

existentes quando se referem ao contexto favelizado.

Já passamos muita dificuldade aqui. Os mais antigos falavam que tinha uns

companheiros que, na hora de trabalhar, não conseguiam fichar quando falava onde

é que morava. A gente não pode falar que favela é ruim, que é o lugar que Deus deu

pra gente morar, mas pros queridos e famosos lá de baixo já teve problema. Nem

namorada não arrumava quando falava que era do Cafezal. Agora já afastou tudo,

porque temos uma conta de água, uma conta de luz, endereço fixo. (José Timóteo).34

Esses estereótipos redutores acabam não só aniquilando a alteridade desse Outro

favelado, mas também o impedindo de adquirir seus direitos sociais de trabalho e liberdade.

Dessa forma, por meio das marcas discursivas no relato de Timóteo, foi possível

identificar como o morador se vê e como ele se configura como sujeito nesse contexto social.

Por isso, foram selecionadas algumas passagens de texto que delineiam a identidade do

modelo representado. “Vi muitas mães com neném na barriga. Eles já foram embora e eu

continuo aqui. A gente não é tão velho assim, mas sabe algumas coisas que é necessário pra

todos.”. Com esse trecho, percebe-se que o morador se vê como um sujeito experiente, que

possui conhecimentos a ser passados. “A gente tem que viver com o que Deus dá e procurar

ser humilde. Tem que ter o nome limpo, que é a melhor coisa da vida.”. Além de experiente,

ele se posiciona como humilde e considera esse valor como prioridade em sua vida. “Nós

temos é que agradecer a Deus e elogiar onde a gente mora. Agradecer por ter onde a gente

esconder do sereno.”. Nota-se bem presente no seu discurso o valor da gratidão a Deus, que

revela a fé e o reconhecimento e valorização de tudo aquilo que ele tem e conquistou, apesar

de todas as limitações e estereótipos envolvidos no contexto social onde habita.

34

Relato de José Timóteo Severino. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 105).

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Figura 7 – Vilma Maria de Jesus

Fonte: Fotografia de Guilherme Cunha

A moradora acima retratada é a Vilma, de 65 anos, nascida em Jequeri, no interior de

Minas Gerais e moradora do Aglomerado da Serra há 42 anos. Sua fotografia é representada

em uma página inteira da obra, ao lado do seu testemunho, bem como das informações

pessoais, conforme o padrão dos retratos.

A personagem está enquadrada em plano médio, de modo a evidenciar o seu rosto e a

sua vestimenta, assim como nos outros retratos analisados. Nesse plano é possível perceber os

detalhes da modelo, como as rugas presentes em sua face, o seu cabelo bem penteado com um

gel, de forma fixa na cabeça, e a sua vestimenta. O fundo é o mesmo dos outros moradores,

limpo, sem muita informação, e claro, de forma que a atenção do espectador esteja totalmente

voltada para o sujeito.

A vestimenta da Vilma é um casaco de cor cinza, que vem por cima de uma blusa

branca. É uma vestimenta simples e formal, que traz um aspecto de seriedade à personagem

representada. Como nas outras vestimentas dos modelos de Memórias da Vila, a partir desse

elemento não é possível identificar o contexto de origem da senhora. Por isso, as conclusões

que podem ser tiradas a respeito da retratada, através da sua roupa, são os aspectos da

simplicidade e formalidade, caracterizando-a como um sujeito comum.

O rosto, como é bem destacado no plano fotográfico, traz a expressão de certo

afastamento à câmera fotográfica. Vilma se mostra um pouco retraída diante do fotógrafo

Guilherme Cunha, deixando transparecer certo incômodo ou falta de costume com aquele

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momento. Devido a esse sentimento de timidez diante da câmera, o olhar da Vilma, um pouco

fundo e fechado, revela certo medo e estranhamento.

A sua postura também é um pouco inclinada para o seu lado esquerdo, apresentando-

se de forma ereta frente ao espectador leitor. Com essa postura a relação modelo-leitor é

enfatizada, devido à proximidade do Outro representado, provocando um choque de

realidades.

A construção da narrativa em primeira pessoa no relato de Vilma também preserva

marcas comuns da oralidade. “Quando eu era pequena, eu nem alembro mais. Eles falam que

minha terra é Ponte Nova, mas sei que sou de Jequiri. Eu já trabalhei na roça. Panhava café,

panhava arroz, tudo eu já fiz.”. “Conheci minha mãe depois que eu vim pra Belo Horizonte.

Eles que me trouxe, os povo de lá. Já morei em tudo quanto é canto antes de vir. Ficava

viajando.”. A sua fala é marcada por erros de pronúncia e de concordância e essas

características foram preservadas na transcrição realizada pela jornalista.

O seu relato (anexo F) é pequeno − possuindo menos parágrafos, se comparado aos

demais aqui analisados − e apresenta certa cronologia, pois a narradora inicia relatando a sua

origem e chegada à comunidade; o primeiro encontro que teve com a sua mãe, em Belo

Horizonte; as suas condições de casamento; a precariedade da infraestrutura do Aglomerado

na época da sua migração e o desenvolvimento do local ao longo dos anos, e, por fim, as

limitações pessoais nas suas condições de estudo.

Através do mapeamento das experiências narradas por Vilma em Memórias da Vila

tornou-se notório que a história da moradora é, também, uma história de sofrimento e luta

para alcançar a instalação no Aglomerado da Serra, pois passou por dificuldades não só

financeiras e estruturais, mas também nos seus relacionamentos conjugais. “Aqui era mesma

coisa de uma favelinha, tinha nada calçado não. Nós morava em barracão de tábua, depois que

nós fez tijolo. Nós pegava água na bica; agora que melhorou bastante. Tinha dia que eu saía

daqui cinco e meia da manhã. Nós usava vela, depois que veio a luz.”. “Toda vida eu era

amigada. Nunca casei. Conheci esse marido lá em Almenara. Tenho três filhos com ele. Mas

tem de outros homens também. Dele eu tinha quatro, morreu um. Do outro também era

quatro, mas morreu um também. Então tenho seis.”.

Essas experiências pessoais só são passíveis de conhecimento por meio de um relato

testemunhal e de um trabalho de um mediador-narratário que as preserve. Afinal, muitas

vezes são relatos de sujeitos que não escrevem e que, por isso, possuem a identidade apagada:

“Sei nem assinar meu nome. Mas não tem jeito de aprender não.”.

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As marcas discursivas da narrativa de Vilma são capazes de revelar certa frieza e

desapego emocional por parte da narradora, não só em seu casamento, mas também na forma

de lidar com os seus problemas. O fato de ter sido criada sem a mãe e só conhecê-la depois de

adulta é um fato marcante na narrativa da senhora, além dos problemas com o marido

alcoólatra. Por isso, a modelo se sente melhor sozinha e afastada das pessoas que trazem

desconforto. “Gosto de ficar mais é sozinha, que eu tenho sossego. Ele, quando bebe, fica pra

lá e pra cá. Quando ele está bêbado, ninguém aguenta. A casa de lá é minha, mas eu deixei ele

pra lá e fico aqui com minha menina.”. Apesar de tudo, Vilma expressa certa vontade de

aprender coisas novas, inclusive a alfabetização. Entretanto, demonstra baixa autoestima,

quando se coloca em condição inferior para adquirir novos conhecimentos. “Tenho vontade

de aprender muita coisa. Aprender ler isso tudo aí. Mas acho que não tenho cabeça boa pra

aprender não.”.

4.4.1 Alinhavando retratos e relatos

O exercício analítico que será apresentado neste subtópico busca articular as

discussões teóricas e interpretativas que se referem ao conjunto do dispositivo. Cabe destacar,

de início, que esta proposta analítica não possui o objetivo de esgotar o diálogo – o que é

impossível, diante da complexidade dos fenômenos comunicacionais −, mas visa apontar

possíveis conexões e fechar algumas frestas que foram abertas na proposta conceitual ao

longo deste estudo. Partindo dos três eixos de análises globais que foram definidos, será feita

uma interação teórico-analítica, com a finalidade de elucidar algumas questões que podem

abrir portas para responder ao problema desta pesquisa.

Tendo em vista a articulação entre os dois elementos do dispositivo – retrato e

relato –, o que pode ser entendido, com a interpretação da amostragem dos seis modelos, é

que ambos os elementos se complementam e agem mutuamente. Isso pode ser percebido por

meio do exame feito a partir das categorias analíticas elencadas para esta análise. Em todas as

fotografias, o fotógrafo priorizou a postura do sujeito frente a frente ao espectador – apesar da

inclinação de alguns retratados −, de forma a manter uma relação próxima entre os dois. A

pose, apesar de ser tímida em alguns modelos, revelou a humildade e dignidade carregada por

eles. Essas características são percebidas também no relato, a partir da categoria das marcas

do discurso, capazes de identificar traços da identidade subjetiva dos narradores. Por meio

desses traços discursivos foi possível apreender características de pessoas corajosas,

humildes, trabalhadoras, com marcas de sofrimento.

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O enquadramento é um fator que contribuiu significativamente para a aproximação

entre a realidade do leitor e a do modelo, uma vez que o recorte privilegiou os seus rostos, as

suas vestimentas e acessórios. Ao centralizar o retratado no recorte fotográfico, de forma que

a luz esteja voltada para o seu rosto, a expressão do morador foi evidenciada em todos os

retratos, de modo a privilegiar as linhas de expressão bem marcadas da face e o semblante

sério ou, por vezes, plácido perante o espectador. A ausência de sorriso foi um ponto

marcante em todos os retratos da obra, o que pode indicar um ponto da resistência do Outro

com o que não o é familiar – a câmera, o fotógrafo, a exposição. Além disso, e ao mesmo

tempo, o fato de não sorrirem para a câmera sugere também a pretensão de respeito ao

modelo, bem como se relaciona ao aspecto de dignificação das vidas ali representadas por

parte do fotógrafo. Nesse corte foram destacados também os acessórios, como, por exemplo, o

colar da modelo Anacleta, que simboliza a fé e a religiosidade, característica muito presente

também nos relatos da maioria dos moradores interpretados. A menção a Deus é uma marca

discursiva recorrente, que demonstra a crença dos moradores, que atribuem também, muitas

vezes, as conquistas e superação da história de vida a essa fé.

A vestimenta, também estimada nas fotografias, revela a simplicidade e a dignidade

dos moradores. Esta provocou uma quebra de expectativas ao posicionar o sujeito do

Aglomerado como bem vestido e arrumado, não o caracterizando, por meio das roupas, como

um indivíduo de classe social desfavorecida. No relato, essa valorização da vida dos sujeitos

foi reforçada, principalmente, com a narrativa escrita em primeira pessoa. O narratário − a

repórter que escutou −, recolheu as histórias e as transcreveu, preservando erros comuns da

oralidade da fala. Esse caráter coloquial, ao mesmo tempo em que valoriza o sujeito, pelo fato

de dar a palavra a ele e tentar representá-lo de forma mais próxima ao leitor, demonstra certa

precariedade do personagem no que se refere ao acesso a uma educação formal.

O olhar provocativo, ao interpelar o leitor diretamente − apesar de não ser desafiador

em nenhum dos retratos −, passa a ideia de que o olhar é para ele, narra-se para ele, e, que,

portanto, a história deve ser lida. Por isso, o olhar estimula e ao mesmo tempo convoca o

leitor à leitura da narrativa. Esta, como foi percebido com o mapeamento das experiências

narradas, expõe a versão do Outro, do excluído, e, portanto, se distingue e transcende alguns

estigmas sociais, ao revelar a história de vida, que é contada pelos próprios sujeitos. Nela,

emergem alguns episódios que normalmente não são abordados na mídia dominante, como: o

processo de ocupação do Aglomerado, marcado pela imigração; a falta de apoio e

acolhimento do poder público para a solução de problemas básicos de moradia; o preconceito

que sofrem por serem habitantes da favela e as dificuldades enfrentadas nesse contexto.

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Dessa forma, a narrativa textual, ao ser lida com a fotografia, auxilia na interpretação

desta, na medida em que descreve, a partir de uma linguagem coloquial e aproximativa, fatos

pessoais da história de vida dos moradores do Aglomerado da Serra. Fatos estes que não

podem ser desvendados somente com a leitura imagética do retrato, devido à limitação desse

gênero de figuração visual. Ao mesmo tempo em que o testemunho dá sentido e vida ao

retrato, este traz uma estética à oralidade. É na limpeza do retrato e na sua beleza que está o

contraponto com o relato testemunhal. O retrato, na tentativa de dignificar a figura do sujeito

favelado, por mais natural que seja, tenta “arrumá-lo”, enquadrando-o aos moldes estéticos da

fotografia. O testemunho, em contrapartida, tem o objetivo de expressar de forma mais “crua”

o discurso narrado pelo modelo – apesar da “faxina” discursiva feita pela jornalista-narratária.

Por isso, há pontos de encontro e de afastamento entre os dois modos de narrar o Outro em

Memórias da Vila. Enquanto o retrato busca a representação digna por meio de uma estética

da imagem, o testemunho busca essa veracidade na forma informal e espontânea da narrativa

oral do sujeito, entretanto, com certas limitações a que o próprio gênero autobiográfico está

sujeito.

Percebe-se também, como outra forma de cruzamento entre os dois elementos do

dispositivo, a exposição do retrato em uma página inteira do livro, estando muitas vezes

sucedido por uma página em branco, que aparece anterior ao relato. Essa forma de exibição

faz com que o retrato não dispute a atenção com outras informações na mesma página, sendo,

portanto, privilegiado. Isso tem a ver com o dispositivo de visibilidade e com a regulação do

tempo de leitura dos seus elementos, com o objetivo de deslocar o olhar do leitor à

determinada atenção intencionada, conforme Rancière (2009).

De acordo com Danto (2010), é possível assumir duas atitudes em relação aos objetos:

uma atitude prática e outra estética. No caso de Memórias da Vila a atitude prática diz

respeito à observação do objeto com alguma sensibilidade social para as vidas ali narradas,

por meio do fator mnemônico e de alteridade, por exemplo. Já a estética diz respeito à

observação dos elementos imagéticos que compõe os retratos, como as formas, cores e

posicionamentos, tratando plasticamente a obra.

Embora essas atitudes dependam do olhar que os sujeitos espectadores direcionam às

obras – e nisso elas são imprevisíveis –, acreditamos que o dispositivo de visibilidade também

propõe uma narrativa e um modo de interação que modula uma forma de olhar que pode

valorizar o estético ou o prático. A diferença entre a arte e a realidade, portanto, não depende

“[...] das coisas com que nos relacionamos, mas de como nos relacionamos com elas.”

(DANTO, 2010, p. 59). Acreditamos que este é um dos desafios centrais da obra: ao mesmo

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tempo em que ela se constrói por meio de estratégias de linguagem, entre o fotográfico e o

testemunho, com efeitos estéticos, ela busca um compromisso ético, isto é, um lugar para o

espectador/leitor que não seja contemplativo, mas socialmente reflexivo e atuante.

Nessa linha de pensamento e considerando as estratégias linguísticas presentes no

dispositivo de visibilidade, deve-se considerar também o fator da percepção por parte dos

receptores desse dispositivo. Esse fator é importante para a compreensão da alteridade, do

objetivo de se colocar no lugar do Outro, que é central neste objeto de estudo. Nesse sentido,

Guilherme Cunha, em entrevista para essa pesquisa, cita o estudo da neurociência das

narrativas, que está relacionado à capacidade neurológica do observador de ler uma narrativa

e vincular os sentidos percebidos por ela à sua realidade.

De acordo com Zimmermann e Torriani-Pasin, sob a ótica da neurociência, a

percepção pode ser definida como a capacidade de “associar as informações sensoriais à

memória e à cognição de modo a formar conceitos sobre o mundo, sobre nós mesmos e

orientar nosso comportamento.” (ZIMMERMANN; TORRIANI-PASIN, 2011, p. 734). Por

isso, a partir do momento em que o observador percebe uma informação – no caso do objeto

em estudo, uma narrativa articulada em um dispositivo −, ele evoca inconscientemente o seu

repertório motor e biológico e associa-o a sua individualidade, de forma a ressignificar os

símbolos percebidos, na sua mente. Sobre essa experiência perceptiva, Guilherme Cunha a

relaciona à alteridade provocada pela disposição dos retratos e dos relatos em Memórias da

Vila.

A imagem é como se você tivesse digerindo aquela figura, igual na química, um

agente qualquer catalisador que entra e modifica reações químicas naquele contexto.

As formas do livro são menos impositivas, você vai criando um personagem íntimo,

que tem relação com a sua vida. Enquanto você está lendo uma história você se

coloca naquela situação [neurociência das narrativas]. Seu cérebro ascende como se

você estivesse vivenciando aquela situação. (Guilherme Cunha).35

Dessa forma, acredita-se que a fotografia e o testemunho são colocados em

aproximação em Memórias da Vila como forma de construção do imaginário do observador

em relação às formas de vidas anônimas. Apesar de terem pontos estéticos e formatos

diferentes, a junção dos dois elementos permite a elucidação dessas histórias de forma mais

íntima e detalhada, bem como a tentativa da desvinculação de predicados no Outro, na medida

em que nos colocamos no lugar dele. Acredita-se, portanto, que o retrato e o testemunho,

35

Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.

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juntos, trabalham com o objetivo de superar as aporias e contradições existentes na verdadeira

relação de alteridade com o Outro representado.

Considerando que a representação é o lugar da codificação e, por isso, um lugar

tensionado (BARTHES, 1990), pode-se dizer que o vivido é redimensionado e, portanto,

reconfigurado nessa representação. Nesse processo, surgem dificuldades, principalmente no

que se diz respeito à produção de sentidos gerados pela neurociência das narrativas, o que

acaba fraturando essa representação, pelos vários sentidos gerados na comunicação. Dessa

forma, entra-se no segundo eixo global e analítico desta pesquisa, que está relacionado aos

desafios e dificuldades que emergem na relação ética com o Outro, considerando os

riscos, aporias e contradições existentes nessa interação.

Nesse processo de mediação de realidades pelo dispositivo é necessário observar, para

fins desta pesquisa, as limitações existentes na representação e nos recursos narrativos

escolhidos em Memórias da Vila e até que ponto eles conseguem tornar visível um Outro na

sua verdadeira alteridade. Pois, como foi visto em Lévinas (1961), a relação ética com o

Outro se baseia na relação desprovida de predicados e de conceitos construídos previamente

sobre ele, que, muitas vezes, acabam impedindo que o seu “rosto” seja visto.

Cremilda Medina ratifica esse processo transformativo, intrínseco às interações

pessoais e comunicativas, na medida em que se refere à mediação autoral, ou seja, ao

processo de polifonia e, portanto, de polissemia, marcado por vozes que possuem o objetivo

de ampliar a visibilidade do Outro, por meio da cumplicidade para com Ele. Acredita-se que

essa cumplicidade pode ser relacionada às formas de representação mediadas em Memórias

da Vila, cujo ato de mediação é também transformativo. De acordo com a autora “a narrativa

de mediadores-autores surpreende pela renovação e reestruturação do sentido.” (MEDINA,

2016, p. 276). Para ela, esse ato de edição e transformação de narrativas, na

contemporaneidade, estabelece o desafio de sobressair às opiniões pré-estabelecidas – ou seja,

no caso dessa pesquisa, às formas de representação comumente visíveis na mídia hegemônica.

Por essa razão, ela acredita que esse tipo de mediação se constitui de “ética solidária, técnica

complexa e estética densa e tensa”, capazes de conferir uma identidade ímpar às narrativas

transformadoras do estado das coisas (MEDINA, 2016, p. 276).

Nesse sentido, em relação à fidelidade de representação dos moradores da favela, tanto

na forma imagética, quanto na narrativa oral, foi observado que a transcrição acaba se

tornando um problema da alteridade na medida em que evidencia os erros e registros da fala

coloquial, que, quando representados textualmente, acabam por ganhar um peso que pode

acentuar a precariedade da personagem. A dificuldade está, portanto, na representação desse

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Outro em forma de registro escrito, pois, em contrapartida, se a narrativa fosse escrita na

forma culta da língua resultaria em um distanciamento do narrador e até mesmo em uma

“violentação simbólica”. Joana Tavares considera esse processo de registro da história oral

como o mais desafiador no seu trabalho, justamente pela dificuldade e certa insegurança com

a fidelidade na representação.

Não foi possível mostrar para cada um os relatos. Isso me deixa até hoje um pouco

insegura e receosa. O processo foi muito respeitoso, mas é muito delicado você

escrever sobre a vida da pessoa em primeira pessoa. Eu tenho até hoje essa

insegurança de eles não terem gostado. (Joana Tavares).36

Por isso, a narrativa revelou certo incômodo e um confronto entre o trabalho de uma

jornalista de formação culta e a escrita da narratária, na tentativa de transcrever a fala oral, ao

mesmo tempo em que objetivou a aproximação de realidades, na tentativa de recriar uma

situação de “escuta”, tão cara ao ato de testemunhar.

Mas a gente optou, eu propus isso para o Guilherme e ele aceitou: de chegar o mais

próximo possível para que as pessoas pudessem “ouvir”. Mas a gente tentou manter

um jeito mais próximo da linguagem oral, porque o relato é oral. Está num suporte

escrito, mas foi feito oralmente. Mas sem querer, tomamos muito cuidado, não sei se

deu certo. A intenção foi a de provocar em quem lê, com a foto ali do lado, imaginar

que está ouvindo. (Joana Tavares).37

Torna-se evidente, portanto, em se tratando do elemento textual como forma de

mediação, que o relato de vida revela a marcação de uma linguagem popular que passa ao

largo da norma culta.

Apesar de a fotografia ser composta por elementos que auxiliam esteticamente na

forma de dignificar as vidas dos moradores da favela, nota-se certo desconforto em alguns

modelos representados, o que é indicado, principalmente, em algumas expressões e posturas.

Alguns revelam certa estranheza à câmera, apresentando-se mais retraídos, o que subentende

certa insegurança do retratado com essa condição de ser representado. Outros aparentam certa

tristeza, pois, de certa forma, a ação de representá-los, acompanhada dos relatos, é um

momento de memória, de lembrança social de trajetórias difíceis, e, por isso, possivelmente,

doloroso. A fotografia consegue, portanto, em alguns casos, imprimir essa dor e o desconforto

gerados no momento de rememoração e representação desse Outro comumente invisibilizado.

36

Entrevista realizada com a jornalista Joana Tavares, em 25 ago. 2017. 37

Entrevista realizada com a jornalista Joana Tavares, em 25 ago. 2017.

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Diante dessas aporias e dificuldades em alcançar uma atitude ética e simétrica para

com o Outro no dispositivo de visibilidade, a análise seguirá para o seu terceiro eixo global, a

partir da visão interpretativa dos retratos e relatos dos modelos selecionados para o estudo.

Serão investigados, neste momento, os modos em que os retratos e os relatos escapam aos

estereótipos que circulam nas mídias dominantes, a fim de entender a proposta do

dispositivo como uma mediação capaz de se contrapor às lógicas da mídia hegemônica.

Em contraposição às manchetes resultantes da busca online nos portais de notícias

para esta pesquisa, é evidente que os temas abordados nos relatos de vida se chocam com as

mensagens de crime no Aglomerado, operação policial contra o tráfico, confronto entre

gangues, entre outras, presentes na mídia hegemônica. Ao contrário, como forma de escapar a

essas lógicas de produção de notícia, bem como tornar conhecido o outro lado desse contexto

social, os temas privilegiados na edição da jornalista narratária foram: o processo de migração

dos moradores do interior de Minas Gerais para Belo Horizonte; as dificuldades de instalação

e infraestrutura do Aglomerado, devido à negligência do poder público; as lutas e conquistas

dos próprios moradores para melhoria das condições de vida na favela; a trajetória de vida

dura de cada um deles; e, ainda, a valorização dos trabalhos desses sujeitos.

Por meio do mapeamento das experiências narradas pelos moradores, nos relatos,

tornou-se notório que a temática da violência da favela aparece com menor frequência, se

comparada às abordagens dos meios de comunicação dominantes. Esse assunto se mostra

presente quando os moradores se referem, por exemplo, à perda de filhos, mas sem expor

claramente as situações de criminalidade. Exemplo disso é o relato de Alda, moradora que

perdeu seus filhos por meio da violência.

Tive 16 filhos. Todos vingaram. Faleceu um com 33 anos, Jeremias. E o Marcos

morreu com 36. Meu tempo era só pra cuidar de filho. A única coisa que eu fiz foi

obter filho. Meu marido era pedreiro, trabalhava em construção. Depois fiquei

viúva. Conselho meu é evitar violência, procurar o caminho que deve seguir...

Porque eu, graças a Deus, tenho essa filharada, mas todos aos pés do Senhor. Não

tenho do que me queixar. (Alda Gonçalves).38

Além do relato de Alda, a outra narrativa em que aparecem marcas da criminalidade e

do tráfico é o de Ailton, mas essa questão é minoritária nos testemunhos, se comparada aos

temas das dificuldades de instalação na comunidade.

38

Relato da moradora Alda Lúcia da Silva Gonçalves. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 41).

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Era ruim por um lado e bom por outro, né? Porque naquela época não tinha essa

drogaiada, essa violência... E tinha muito serviço pra gente trabalhar também.

Comparando, hoje tá mais difícil que antes. Porque hoje tem muito serviço, mas a

gente não pode facilitar com as coisas. Antigamente você podia sair e deixar sua

casa aí. Antigamente a droga que tinha era a cachaça. Quando falava que fulano era

maconheiro já era pra sair de perto. Hoje não. Hoje maconha é comum. (Ailton

Souza).39

Diante dessa realidade, pode-se inferir que os temas majoritários narrados pelos

moradores representados em Memórias da Vila são os relacionados às questões das

dificuldades enfrentadas com a infraestrutura de moradia nos primeiros anos de instalação, o

que vai de encontro às formas de representação comumente vistas na mídia hegemônica.

Outra característica que escapa a essas formas de visibilidade é o preconceito sofrido

pelos representados, pelo fato de serem moradores da favela. Essa marca aparece em vários

relatos e foi enfatizada também pela jornalista-narratária, na entrevista para esta pesquisa.

Tinha uma outra coisa que era muito presente, quando eles saiam para trabalhar

quando eram jovens, era que não podiam falar que moravam na favela. Desde aquela

época. Hoje em dia isso ainda é né, motivo de preconceito, até de perder

possibilidades de emprego e eles tinham muito disso também, de não poder falar

para os outros. Por exemplo, para pegar o ônibus, como a Serra tinha muito barro

ainda, porque não era asfaltada, eles tinham que colocar um plástico no sapato para

não chegar com lama lá em baixo, para o povo não saber que eles eram da favela. É

uma forma de eles negarem a condição deles pelo fato de ela não ser bem vista pela

sociedade. (Joana Tavares).40

O morador José Timóteo ratifica em seu discurso o preconceito sofrido, pelo fato de

ser um morador do Aglomerado da Serra.

Já passamos muita dificuldade aqui. Os mais antigos falavam que tinha uns

companheiros que, na hora de trabalhar, não conseguiam fichar quando falava onde

é que morava. [...] Nem namorada não arrumava quando falava que era do Cafezal.

(José Timóteo).41

No trecho do relato do morador José Timóteo, é possível perceber que ele se sente à

vontade em relatar os fatos da sua vida. Nesse sentido, o projeto Memórias da Vila tenta fazer

emergir um Outro menos estigmatizado, de forma a preservar a sua alteridade, apesar dos

riscos existentes no próprio dispositivo, que fazem com que, em alguns momentos, Ele seja

suprimido de alguma forma nessa relação − como foi analisado no segundo eixo desta análise.

39

Relato do morador Ailton Flávio de Souza. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 36). 40

Entrevista realizada com a jornalista Joana Tavares, em 25 ago. 2017. 41

Relato do morador José Timóteo Severino. (CUNHA; TAVARES, 2016, p. 105).

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A esfera do trabalho pode ser vista também como temática predominante nos relatos

em estudo. Essa marca discursiva é uma forma de dignificar a figura do morador da favela,

visto, por vezes, como traficante, que sobrevive de forma ilícita. “Eu trabalhava de 7 da

manhã às 9 da noite. E quase todo dia chovia. Era difícil demais, porque aqui era só terra,

escorregava demais!” (Ailton Souza). “Nessa época, a gente trabalhava e morava na casa das

famílias. Eu tinha 23 pra 24 anos, era cozinheira.” “Comecei a trabalhar fichada, mas, pra

tratar dos meninos, o dinheiro era muito pouco, as coisas eram muito caras. Comecei a criar

uns porcos.” (Anacleta Alvarenga). “Trabalhei 34 anos na UFMG. Juntei os tempos que eu

tinha fora, e deu certo. Já sofri bastante tempo na roça, já trabalhei bastante, mas graças a

Deus foi até bom pra gente.” “Pra nós adquirir tem que trabalhar, se não trabalhar não tem

nada; roubar é que não vale a pena.” (José Timóteo). A valorização das formas de vida na

favela e a denúncia da invisibilidade social são reparadas, portanto, nesses modos de

narrativas que fogem dos estereótipos da comunidade como um local em que predomina a

violência e o tráfico como forma de ganhar a vida.

Com relação ao fotográfico, acredita-se que a pose − elemento essencial na

constituição do ethos do retrato, como visto em Barthes (1990) – foi escolhida de forma

estratégica pelo fotógrafo Guilherme Cunha, na medida em que permitiu dar a ver o Outro

frente a frente, de forma interpelativa para a sua história de vida. Nota-se, através desse

elemento, certo empenho para transcender o desafio da desapropriação do Outro no ato

fotográfico (BARTHES, 1990) e da consequente violência simbólica da imagem desse Outro.

Isso se justifica pelo fato de que o modelo, além de estar presente numa posição de diálogo

com o espectador, “conversa” com ele por meio do relato, proporcionando uma

ressignificação do sentido criado imageticamente. A pose no retrato se mostra, portanto, como

um artifício de luta contra estereótipos, de forma a superar a forma denotativa com que os

moradores da favela são comumente representados.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a discussão teórica e a análise, pautadas no objetivo desta pesquisa – o de

estudar a obra Memórias da Vila, por meio da análise de suas estratégias de linguagem e de

sua inscrição na cultura midiática contemporânea, com reflexão sobre como a narrativa, na

articulação entre retratos e relatos testemunhais, medeia eticamente os moradores do

Aglomerado da Serra −, apreende-se que, no dispositivo de visibilidade em que estão

inseridos, os elementos estabelecem uma relação de dupla-troca na tentativa de sair do lugar

comum de narrar. Diante dessa realidade, é importante articular os conceitos estudados de

forma a esclarecer as inquietações levantadas para a realização deste estudo, retomando as

principais ideias abordadas em alguns autores, que se tornaram fundamentais para essa

discussão.

Conforme foi dissertado, o fotógrafo Guilherme Cunha e a jornalista Joana Tavares

tiveram a intenção de contribuir para a ampliação dos espaços de divulgação e preservação de

identidades e valores culturais dos moradores do Aglomerado da Serra, diante da questão

maior sobre as diferenças sociais das realidades múltiplas de nosso país. O projeto objetivou,

assim, apresentar uma outra forma de comunicação possível para amenizar os efeitos de ações

alienantes que, reiteradamente, reduzem a cota de participação de indivíduos na sociedade,

bem como dos impactos de uma política global que atinge as pessoas de forma desigual, em

um país onde os direitos são vistos como benefícios ou privilégios.

Trata-se da representação do maior conjunto de favelas de Minas Gerais, que

apresenta a menor renda per capta do município de Belo Horizonte. Com esse histórico e com

outras características capazes de corroborar a estigmatização desse lugar, foi possível elucidar

o caráter excludente por parte do poder público, na medida em que este desconsidera o

contexto sócio histórico da formação das favelas na capital mineira, ao tratá-las como um

problema para a cidade, além de negligenciar também os direitos básicos de uma vida digna à

população dessas comunidades. Sendo o processo de constituição das favelas uma

consequência do mau planejamento urbano, já se nota a desvalorização desse espaço, que

surgiu concomitante à construção da cidade de Belo Horizonte, e, por isso, merece sua devida

atenção, respeito e compreensão de sua importância.

Perante a realidade de representação midiática, corroborada com a realização da busca

online de matérias sobre temáticas que envolvem o conjunto de favelas do Aglomerado da

Serra, anunciadas por importantes portais de notícias, tornou-se evidente a existência de uma

exclusão programada da mídia em relação a esse contexto marginalizado. Isso se justifica pelo

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fato de que as matérias coletadas, predominantemente, fizeram menção negativa à

comunidade, dando destaque ao crime, aos conflitos e ao tráfico de drogas – episódios que

não aparecem nos relatos de Memórias da Vila como problemas majoritários enfrentados

pelos habitantes. A história de luta pela conquista de direitos, as dificuldades enfrentadas no

processo de instalação no local e suas causas, o trabalho duro para a sobrevivência das

famílias, entre outros fatos importantes para tornar conhecida a realidade desses moradores,

não foram mostrados. É preciso, portanto, e urgente, fazer conhecer as diversas realidades que

nos cercam e romper com as membranas e preconceitos construídos nos núcleos de castas

sociais. A alteridade é, por isso, uma realidade insurgente nesta pesquisa.

Por meio da recuperação da memória visual e oral dos moradores idosos do

Aglomerado da Serra, foi possível fazer emergir histórias sob perspectivas antes não

conhecidas, contadas e expressadas pelos próprios sujeitos que as vivenciaram, ainda que

mediadas pela fotografia e pelo relato transcrito e organizado. A análise interpretativa, que

permitiu explorar de forma mais profunda os elementos do dispositivo que contribuem para

essa alteridade, só foi possível a partir da elaboração de categorias analíticas, como forma de

destacar elementos recorrentes e importantes, que atuam estrategicamente na construção ética

e estética da narrativa.

Nesse processo, é necessário convocar Martín-Barbero (1977), que apresentou uma

vasta contribuição sobre o fator social do processo de mediação e circulação de significados

nas mídias, juntamente com Silverstone (2002). Para o segundo, é necessário considerar

sempre o processo de mediação da comunicação como dialético, uma vez que depende dos

produtores e receptores da comunicação. Por isso, a apropriação dos significados

intencionados nas narrativas de Memórias da Vila pode vir a ser desigual e transformativa, já

que é um processo que envolve várias camadas de mediação. Isso se justifica pelo fato de que

o morador e personagem da obra é representado e narrado por um mediador – no caso da

fotografia, esse mediador é o fotógrafo, que esquematiza a narrativa visual do retrato de

acordo com o seu objetivo; no caso do relato testemunhal, a mediação perpassa pela

jornalista-narratária, que transcreve o oral e o edita de acordo com determinada estratégia do

dispositivo. Após essa primeira mediação, existe a mediação do Outro ali representado na

mente do “leitor-modelo” (ECO, 1994), sendo os elementos ressignificados na mente do

receptor. Por isso, a mediação é considerada infinita por Silverstone (2002), e sujeita a aporias

e riscos.

De acordo com Loizos, essas características e paradoxos são inerentes ao próprio

discurso e, por isso, devem ser observadas em processos de análise narrativas.

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Diferentemente de outros estilos de análise que suprimem a variabilidade, ou

simplesmente encobrem situações que não se adaptam à história que está sendo

contada, a análise de discurso exige rigor, a fim de produzir um sentido analítico dos

textos a partir de sua confusão fragmentada e contraditória. (LOIZOS, 2015, p. 255).

Nesse sentido, vale retomar o caráter de tradução do projeto Memórias da Vila, indo

ao encontro da abordagem de Silverstone (2002a) − ao apresentar-se como um projeto

advindo de um processo ético e estético, que atribui tanto significado quanto valor às vidas

narradas − e Boaventura Souza Santos (2007), quando este propõe uma sociologia insurgente

e revolucionária, capaz de transcender o apagamento de realidades. Essa aproximação se

refere ao estímulo a um novo tipo de visibilidade autônoma de indivíduos −, na medida em

que propõe o desafio de se fazer emergir uma outra forma de mediação e produção de

sentidos sobre realidades inexistentes, reconhecendo-as em suas particularidades e

pluralidades. Esse processo, chamado por Boaventura Santos de traduções interculturais, está,

portanto, sujeito à impossibilidade de transparência total na forma de afirmação da alteridade.

Nesse sentido, Memórias da Vila trabalha de encontro à perspectiva da monocultura da escala

dominante, estabelecida por Boaventura Santos, em que o global e universal é hegemônico e o

particular e o local não conta, se tornando invisível, descartável e desprezível.

Após a identificação e exame das questões éticas envolvidas no processo de mediação

e tradução desse Outro marginalizado, por meio de um dispositivo, cabe aqui discutir sobre os

riscos e aporias existentes nesse processo. A relação ética está na tentativa de representação

com legitimidade, sem julgamento e classificação, bem como no esforço de desvincular

predicados pejorativos relacionados à noção de periferia dos sujeitos mediados. Busca-se,

assim, uma espécie de revelação de uma exterioridade pura e absoluta, sem o apagamento ou

incorporação de seus valores. A intenção é, portanto, a tomada de responsabilidade pela

alteridade, e não a sua negação.

Retomando Hall (2016), os significados são construídos socialmente dentro de cada

sistema de linguagem representacional, por meio do diálogo com o Outro, bem como pela

diferença entre os participantes. Essa diferença pode estar relacionada ao conceito de poder

simbólico na forma de representar alguém. Esse poder, como foi abordado em Hall, é detido

por aqueles que têm mais chances de impor suas definições de realidade e pode resultar em

violência simbólica, quando estabelece uma forma de conhecimento deturpada do Outro,

gerando novos discursos circulantes marcados por estereótipos redutores. Na tentativa de

transcender essa lógica reducionista, o dispositivo de visibilidade (RANCIÈRE, 2012) aqui

em estudo, na medida em que cria artifícios para a regulação de determinada atenção ao Outro

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ali representado, se esforça para atribuir a palavra a esse Outro “sem nome” e sem condições

sociais de escrita.

Sendo a estrutura visual do livro pautada na pessoa e considerando os elementos

narrativos selecionados para esse gesto de alteridade, foi necessário avaliar os riscos de

estetizar esse Outro e os distanciamentos necessários na ação ética e moral de aproximação,

como exposto no tópico anterior, conclusivo da análise. O Aglomerado da Serra, grande e

importante espaço na história de Belo Horizonte, é representado por meio de fragmentos do

contexto particular daqueles moradores idosos, indo ao encontro da perspectiva moderna da

fotografia, em Sontag (2008), de representar o universal através do particular. Nessa

representação, pode ser destacado o retrato como ato social e de sociabilidade (FABRIS,

2014), visto que gera múltiplas construções de sentido no intercâmbio social, por meio do

ethos particular do dispositivo.

Enquanto a imagem fotográfica se apresenta como artefato mnemônico, exibido no

suporte bidimensional, a oralidade contextualiza a imagem, salvando o registro visual de ser

um mero analogon perfeito, como descreve Barthes. Ao se articular a uma narrativa oral

delineada por emoções e lembranças, a imagem, ela mesma, já, agora, um fragmento do

passado, lançando às futuras gerações contra o esquecimento, se potencializa. Vale aqui

retomar a noção de legenda, para Benjamin (1994), que é importante no estabelecimento da

literalização das relações na fotografia. Em Memórias da Vila, o relato cumpre essa função de

legenda, na medida em que aproxima o leitor do discurso do morador fotografado. Os retratos

possuem um tempo de exibição, por serem apresentados em página inteira, e são, muitas

vezes, seguidos por uma página em branco, que antecede o relato. Acompanhada dessa

temporalidade narrativa, que propõe um ritmo ao nosso olhar, a “legenda testemunhal” surge,

portanto, como complemento aos elementos visuais atribuídos ao Outro, morador da favela.

Baseando-se na abordagem de Rouillè (2016), os retratos de Memórias da Vila estão

entre o documento e a expressão, pois ao mesmo tempo em que possuem um caráter

expressionista, são capazes de documentar, de forma memorialística, valores históricos de

uma cultura, antes não registrados. O princípio democrático da fotografia é eminente no

projeto, na medida em que os retratos são utilizados como ponte ou mediação, de um contexto

− por vezes hostilizado −, ressignificando-o para a sociedade, visto que o processo de

formação do Aglomerado é um marco na história de surgimento da capital de Belo Horizonte,

o que é comprovado pela recorrência nas falas dos moradores sobre a oportunidade de

emprego nas obras iniciais da cidade.

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Assim como na fotografia, nos relatos também é notória a recuperação da memória

social, pela narração de fatos históricos que se confirmam e se tornam registrados por meio do

caráter documental do testemunho. Dessa forma, a narrativa oral possibilita a reconstrução, a

validação de histórias, bem como a desconstrução de estigmas sociais. A voz do morador é,

portanto, arquitetada de modo a ecoar na mente do espectador-leitor, fazendo com que ele se

coloque no lugar do Outro representado, como forma de empatia. Nesse processo, a mediação

da narratária acaba sendo menos declarada, pois, conforme foi esclarecido em Seligmann-

Silva (2005), o jornalista mediador acaba se tornando uma figura transparente no ato de

narração testemunhal, sendo o mais importante a sua função de porta-voz da narrativa.

Com base na análise interpretativa dos retratos e relatos, e tendo em vista a mediação

ética como operadora para essa ação, foi possível inferir que a combinação dos elementos

imagéticos e textuais que medeiam os sujeitos de Memórias da Vila é responsável por

transcender a forma denotativa de representação dessas vidas, indo além do senso comum.

Apesar de todos os riscos e limitações existentes nesse processo, acredita-se que o olhar deve

ser dado não somente aos meios e técnicas empregados na representação do Outro, mas

também ao gesto de valorização das vidas ali narradas. Tanto a escuta quanto a exposição da

fisionomia são formas ressignificadoras.

Sobre a primeira, vale destacar a relação que nasce baseada no interesse comum entre

ouvinte e narrador, de registro e conservação da história narrada. A valorização do Outro

emerge no próprio tempo de ouvi-lo e registrar o seu relato, já que, retomando Bosi (1987, p.

48), “a memória é a faculdade épica por excelência” e, por isso, é necessário reproduzi-la de

geração a geração, não só como forma de sustentar a matéria-prima de uma experiência, mas

também de dignificar vidas ocultas. Já a representação fisionômica propõe não só a

desvinculação do predicado de aparência pejorativa dos moradores da favela, como também

busca outra forma de dignificação dos moradores idosos, tidos, muitas vezes,

preconceituosamente pela sociedade. A velhice foi, portanto, valorizada na obra, na tentativa

de romper estereótipos relacionados à impotência e inferioridade dessa fase natural da vida.

Ao contrário a esses clichês, foi usada para potencializar e tornar notáveis histórias

importantes na constituição de um contexto social.

Diante dessa mediação transformativa e necessária, surgem reflexões a respeito de

quem é esse Outro que está emergindo. À luz dos conceitos sobre a ética na representação,

abordados principalmente em Lévinas (1980), compreende-se que o morador “favelado” foi

“desfavelizado”, como forma de alteridade, uma vez que é somente com a desvinculação das

significações do sujeito que se alcança – ou se tenta alcançar − a sua verdadeira essência, ou a

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sua verdadeira alteridade. Após a retirada desse Outro do seu contexto original, surgem novas

significações e predicados intrínsecos à nova forma de mediá-lo. Nesse processo conotativo

(BARTHES, 1990), emerge um Outro imigrante, digno, que fala de maneira popular, que

possui uma história importante e passível de se fazer conhecida, dentre outros atributos que o

caracterizam. Entretanto, na medida em que esses predicados são usados para defini-lo, acaba-

se decaindo novamente na aporia do processo de mediação ética, bem como na atitude de

responsabilidade moral na forma de representação desse Outro. Portanto, considerando que a

exterioridade pura do Outro é uma “concepção utópica” e difícil de ser alcançada (LÉVINAS,

1980), deve-se refletir que o Outro que emerge em Memórias da Vila, apesar de não estar

totalmente desvinculado de um contexto − já que agora é exibido em um dispositivo que

possui elementos reguladores e caracterizadores do seu “rosto” (LÉVINAS, 1980) – é um

Outro que tem voz e, consequentemente, não é aniquilado ou omitido.

Com a articulação dos elementos do dispositivo, de forma analítica, acredita-se que o

nosso imaginário, na posição de pesquisadores e espectadores, foi ampliado. O

estabelecimento de uma relação crítica com a mídia fez-nos pensar as frestas existentes entre

o vivido e o representado e o funcionamento ético, moral e humanizador da mediação no

envolvimento com o Outro. Apesar dos riscos e contradições desse processo, foi possível

perceber que os elementos comunicacionais serviram como ativadores da memória e como

denúncia a estereótipos e ideologias. Portanto, apesar da incompletude da mediação e dos

riscos éticos envolvidos nesse processo, Memórias da Vila serviu como um instrumento de

reconstrução das relações humanas e de inclusão dos idosos na sociedade, tendo a linguagem

como socializadora da memória popular.

É necessário e importante preparar o indivíduo para conviver no meio social em que

vive, fazendo-o entender a sua posição e possibilidades para afirmação enquanto cidadão.

Entretanto, a necessidade se faz presente também no cuidado do eu moral com a

representação e narração do Outro. Por isso, não se pode deixar de lado as aporias inerentes

ao processo de alteridade. Por meio de uma poética ética da convivência e do privilégio da

estética em prol da dignidade dos moradores da favela, foi possível entender o processo de

afirmação entre iguais, tentando desvincular qualquer tipo de codificação que remetesse à

favela como um contexto negativo. O envolvimento é sugerido, portanto, de forma menos

emocional, sendo arquitetado como um encontro de realidades, antes distantes, mas que se

tornam próximas.

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ANEXOS

ANEXO A - Ailton Flávio de Souza

Cheguei aqui na Serra em 1973. Eu nasci no Espírito Santo, em Nova Venécia. Mas

vim pra Minas Gerais eu tinha menos de um ano. A gente veio pra Tabaúna, de Tabaúna a

gente foi pra Serra do Capim. Aí de lá que veio pra cá. Veio a família toda. Tem uma irmã

que veio e depois voltou pro interior. A gente veio pra rua Nossa Senhora de Fátima, perto da

Fazendinha. Ali a gente morou uns seis meses de aluguel.

Mas aqui, antigamente, a vida era muito penosa. Aqui não tinha nada, não tinha

infraestrutura nenhuma, era tudo terra, uns barraquinhos de painel, maderite, essas coisas...

Meu cunhado, que trouxe a gente pra Belo Horizonte, fez um barraquinho no quintal dele, e

eu mudei pra lá. Continuei pagando aluguel lá com ele. Aí depois eu comprei uma área do Seu

Dufino, quando Seu Dufino fez o Cafezal. Seu Dufino ia tirar um terreno pra mim, não tirou,

aí eu comprei. Fiz um barraco de tábua de madeira e aí a gente passou pra lá. Era eu, minha

esposa e minha mãe.

Meu cunhado que teve a ideia de vir pra cá. Ele tava aqui há uns seis meses e foi pra lá

pra chamar nós pra vim pra Belo Horizonte, que aqui era melhor pra nós. Porque lá era muito

ruim. Era pasto, bateção de pasto ou plantação. Muito arroz, feijão, milho... Lavoura. Ele

falou que aqui tinha muito serviço. E tinha uma turma do nosso interior que já morava aqui.

Incluindo o moço que arrumou o primeiro serviço pra mim. Era muito diferente o trabalho da

obra do trabalho da lavoura. E o clima também. Aqui chovia seis meses. Belo Horizonte era

muito frio na época. Eu trabalhava de 7 da manhã às 9 da noite. E quase todo dia chovia. Era

difícil demais, porque aqui era só terra, escorregava demais!

Era ruim por um lado e bom por outro, né? Porque naquela época não tinha essa

drogaiada, essa violência... E tinha muito serviço pra gente trabalhar também. Comparando,

hoje tá mais difícil que antes. Porque hoje tem muito serviço, mas a gente não pode facilitar

com as coisas. Antigamente você podia sair e deixar sua casa aí. Antigamente a droga que

tinha era a cachaça. Quando falava que fulano era maconheiro já era pra sair de perto. Hoje

não. Hoje maconha é comum. Se a gente fosse pessoa que mexesse com certo tipo de coisa,

não tinha mais de 40 anos que tava morando na Serra não. Já tinham botado nós pra correr

daqui.

Eu não tenho muita coisa, mas tudo o que eu tenho eu tirei daqui. Eu já tive muita

oportunidade de sair daqui, mas eu não quis. Aqui é perto de tudo, a gente já tá acostumado,

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já conhece todo mundo. E meus filhos, todos nasceram no Hospital Evangélico. A família é

toda daqui. Não tem nem porque sair. Isso aqui é fora de série. Quantas vezes eu fui daqui a

pé no Centro, porque não tinha dinheiro?

Até pela profissão da gente, aqui é melhor. Mas tem mais de 40 anos que tô aqui e tem

coisa da roça que a gente sente falta. A tranquilidade, os córregos pra pescar, tomar banho... O

ritmo de vida de lá é um, aqui é outro.

“A gente só tinha a cara e a coragem”

Eu conheci minha mulher porque eu trabalhava pro pai dela. Ele morava na roça

mesmo. Ele ia na cidade e chamava pra trabalhar lá por semana. Na época ela estudava ainda.

Quando eu casei, ela não tinha nem 15 anos. Teve que mudar a idade pra 16 pra poder casar.

O pai dela não sabia a idade que ela tinha. Naquela época, eu tinha que pedir pra alguém pra

casar. Se eu chegasse direto no pai dela e pedisse pra casar, eu tava faltando com o respeito. A

pessoa que pedia pra gente casar era o padrinho de casamento.

A gente tinha conversado muito pouco. Eu pensei que ia ter que casar, que ela era uma

menina boa, que eu conhecia a família toda, pai, mãe, avós... Pensei: vou namorar, se ela

quiser casar, eu caso. A gente praticamente cresceu junto. Aí a gente namorou um ano. Com

quatro dias de casado meu apêndice estourou. Viemos pra Belo Horizonte com dois mês de

casado. A gente não tinha nada não. O que tinha metia num saco e trazia. A gente só tinha a

cara e a coragem.

No primeiro barraco que nós morou, cozinhava era atrás da casa. Não tinha fogão a

gás. Minha mãe morava com a gente; nós três no mesmo cômodo. Eu trabalhava até 21h e

minha mulher cuidava da casa e da minha mãe. Aí passou uns tempos e ela começou a

trabalhar de doméstica.

Eu trabalhei dois meses na firma e pedi pra ir embora, pra conseguir dinheiro pra

comprar as coisas pra casa, num topa tudo. Eles faziam leilão. Comprei um gás, um fogão e

um armário. A gente comprava tambor de água e carregava. Quem tinha água vendia água pra

gente. Pra tudo, pra lavar a roupa, banho... E nessa época só tinha nós dois, não tinha menino

não. Minha mulher buscava água lá no canão. Lavava roupa lá. Buscava água meia-noite, uma

hora da manhã. Eu chegava do serviço oito, nove da noite e ia carregar água.

Tudo que a gente planejou a gente conseguiu. Coisa grande a gente não tem nem

condições de planejar. A gente planejou ter um barraco, taí, tem que terminar, mas agora é só

acabamento. E outro plano era ver nossos meninos criado. Graças a Deus, taí.

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ANEXO B - Alda Lúcia da Silva Gonçalves

Eu cheguei aqui na Serra há mais ou menos 52 anos. Eu nasci em Valadares, mas

meus pais vieram pra Belo Horizonte; eu tava com um ano de idade. Já viemos pra Serra

direto. Meus pais tomavam conta duma chácara que tinha na Terceira Água, e a gente morava

lá.

Pra estudar a gente tinha que andar... Eu fiz jardim lá na Escola Estadual Benjamim

Guimarães. Aí depois fui fazer primeiro ano na Escola Pedro II, lá no Centro. Depois, tava

muito longe, construíram a escola Augusto de Lima. E depois que eu já tava grande é que

construíram o Laura das Chagas e o Efigênio Salles. Posto de saúde não tinha. O hospital

mais próximo era o Hospital da Baleia. E a Santa Casa, onde a gente consultava.

Isso tudo era plantação de café. Puseram o nome de Cafezal por isso. A gente morava

dentro da chácara, porque meu pai tomava conta. Tinha o doutor Jaimes de Barros, que era

dono. Tinha bastante café, eucalipto, que o meu pai plantava pra ele. Meu pai mexia com

roça. E tinha criação de porcos. Era uma fazenda. Não tinha gado, né? Papai trabalhava com

carroça. Aqui não tinha nada, só muita plantação. A gente morava numa casinha dentro da

chácara. Minha família era bem numerosa, éramos 12. Aí a gente foi crescendo, muitos

casaram e a minha família mudou toda daqui da Serra. Só tem eu aqui.

Quando eu casei vim morar perto da minha sogra. Eu casei em 1968. Então, desde 68

que eu tô aqui. Aqui chama 'Matinha' porque tem bastante mato. O único lugar de

preservação, porque a gente tá sempre cultivando, sempre plantando. Tem muita árvore

plantada pelo meu esposo, porque ele gostava muito de plantar.

Aqui começou a crescer muito devagar. Ônibus não tinha. Água também não tinha.

Carreguei muita água na cabeça, buscando lá embaixo, pra baixo do Hospital Evangélico.

Lavar roupa a gente lavava lá, onde eles falam 'canão'. A gente ia lá pra lavar a roupa. Foi

muita dificuldade... Eu com bebê novinho, tinha que colocar menino de lado, bacia na cabeça

e, às vezes, quando a gente vinha com a roupa, a gente colocava uma lata assim, no fundo da

bacia e punha a roupa ao redor da lata e já trazia a água pra poder chegar em casa e fazer

janta. Era muito difícil. Porque a gente chegava cansada, com a bacia de roupa, e pra voltar lá

embaixo pra buscar água de novo. Depois é que foi chegando a água, aos pouquinhos. Aliás,

eu fui uma das primeiras moradoras a ter água da Copasa. Já tava casada.

Quando eu casei meus pais já estavam morando na rua Bandoneon. Eles construíram

uma casa. Quando era época de chuva, papai ficava lá sozinho, cuidando da criação, e a gente

ficava na casa, porque ficava muito difícil de ir pra escola. Quando era época de seca, a gente

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ia pra lá, ficava lá com ele, e na época de chuva vinha pra cá. Todo mundo estudou. Eu não

trabalhei na roça não, graças a Deus. Eu sempre ajudei dentro de casa. Minha mãe saía pra

trabalhar fora, e nós éramos quatro filhas mulher. Meus pais não deixavam a gente trabalhar

de jeito nenhum! Só dentro de casa. Mamãe saía pra trabalhar e a gente ficava em casa,

cuidando. Depois a gente foi casando e cuidando de marido. Eu, graças a Deus, nunca

trabalhei fora. Trabalhei assim, lavando roupa pros outros, mas em casa. Na minha casa. Meu

marido não deixava, dizia que a prioridade era cuidar das crianças, dos filhos. Tive 16 filhos.

Todos vingaram. Faleceu um com 33 anos, Jeremias. E o Marcos morreu com 36. Meu tempo

era só pra cuidar de filho. A única coisa que eu fiz foi obter filho. Meu marido era pedreiro,

trabalhava em construção. Depois fiquei viúva.

Conselho meu é evitar violência, procurar o caminho que deve seguir... Porque eu,

graças a Deus, tenho essa filharada, mas todos aos pés do Senhor. Não tenho do que me

queixar.

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ANEXO C - Anacleta Alvarenga

Cheguei aqui tem... 40 anos? Quarenta. Nasci em Ferros, de Ferros vim praqui

novinha. Trabalhei um tempo com a família do Eduardo Azeredo, depois comecei a criar os

filhos. Nessa época, a gente trabalhava e morava na casa das famílias. Eu tinha 23 pra 24

anos, era cozinheira. De lá que eu arranjei um casamento, casei mal, e vim embora. Vim sem

nada.

Vim morar ali na Santa Tereza, na beira da linha. Eu tinha uma máquina de costura,

empenhei na Caixa Econômica, tirei o dinheiro e comprei umas telhas, uns painel e fizemos

um barraquinho. O marido tava pra Brasília, fazendo Brasília. Era candango. Eu fiquei

trabalhando, mas aí ganhei filho, ficou difícil pra mim. Ele, com a cabeça muito virada, nós

não demos certo. Ele era desses homens que não queria muita responsabilidade, e eu não

queria aceitar aquilo. Aí nós separamos. E ele foi embora; eu com cinco meninos. Fiquei no

aluguel, o dono cobrando, e eu sem ter como pagar. Aí fui para a Conferência São Vicente de

Paula. Eu fiquei assim aérea; vim da roça com aquela criação. Não chegava perto de homem.

Naquela época era tudo muito vigiado.

Ficamos sabendo que ia repartir terreno aqui na Serra. Aí ganhei um pedaço. Vim

pelejando, fiz um quartinho, fui aumentando, até fazer. Aqui não tinha água, não tinha luz, era

uma dificuldade danada. A gente lavava roupa lá no canão. Muitas vezes, eu trabalhava

varrendo rua e trazia água lá da Igreja do Carmo.

Foi difícil demais, porque a gente não tinha condições. Comecei a trabalhar fichada,

mas pra tratar dos meninos, o dinheiro era muito pouco, as coisas eram muito caras. Comecei

a criar uns porcos. Cada um que eu vendia me dava um dinheiro, aí eu pegava e fazia um

pedaço da casa. Aqui era puro mato. Olha como a vida mudou. Eu ia lá na Savassi pra

conseguir duas latas de lavagem. Hoje, nessa esquina eu já tiro um monte de lavagem. Mas

hoje ninguém quer criar, porque não tem mais espaço. E também porque melhorou, todo

mundo já tem suas casas. Naquele tempo era tudo casa de tábua, aqueles barracãozinho

pequeninho, não tinha gás, não tinha nada. Hoje não, hoje tem tudo. Melhorou pra todo

mundo.

A minha casa era cheia de menino dos outros. Eu fazia um panelão assim de comida. E

dava pra todo mundo. Punha assim no chão naquelas baciinha de alumínio, punha pra todo

mundo comer. Todo mundo comia, todo mundo brincava. Tinha uma televisãozinha velhinha,

eles assistiam. Agora todo mundo cresceu e tô aqui sozinha.

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A mãe que carrega a cruz nas costas; ela é tudo, não tem ninguém pra pedir nada, não

tem ninguém pra esperar nada, todo mundo espera só de você ali. Eles falam: 'mãe, a senhora

não adoece, nunca reclama de uma dor'. Eu levanto é cedo. Vou varrer o terreno, a beirada da

rua, porque eu tenho meus cachorrinhos. Tenho que varrer antes do sol. Eu acostumei com

isso. Mas agora que eu tô mais triste que eu fico perguntando assim: por quê? É um destino

que a gente tem, né?

Eu acho que é muito difícil quando é uma pessoa só. A família foi feita pra dois.

Quando uma pessoa só cria, é muito difícil carregar a cruz. Eu sou mãe, sou avó. Nunca tive

ninguém pra me ajudar com nada. Sete anos que vivi com homem, sete anos de sofrimento.

Ele não pensava as coisas pra gente. E eu sempre sonhando. O pior é que eu sou sonhadora,

estou sempre querendo as coisas, sempre querendo melhorar.

Agora eu tô assim descaída, porque meu filho foi. Ele morreu no bar ali. Eu falava

que ele tinha que parar de beber, pra nós poder passear... Fiquei tão triste e depois percebi que

estava ficando pinel. A Catarina, que é uma moça nova, mas gosta de conversar com gente

mais de idade, me levou pra conversar com uma psicóloga. Estou me sentindo meio assim

sufocada. Se eu continuar, vou ficar pinel. E eu não posso ficar pinel não, porque tenho que

seguir em frente. Ela me passou quatro dias de academia. Comprei minha blusinha branca,

uma roupinha, um tênis, e lá estou até hoje. Faço minha hora de academia, venho, chego aqui,

faço minhas coisas.

Meu sonho agora é acabar de fazer esse muro e ir passear. Curtir a vida. Mas primeiro

vou fazer esse muro, que aí deixo minhas galinhas fechadinhas, meus cachorros. Pego minha

carteira, vou lá pra Itabira, na casa da minha irmã. Passear. Visitar minhas amigas. Não ficar

chorando igual eu tô agora. É porque tá recente, né?

Filho, cada um está cuidando da própria vida. A gente tem que cuidar da gente. Mas

eu queria que eles fosse igual eu: se eu não tô sentindo bem, eu procuro uma pessoa que posso

conversar. Eu procuro ajuda. E eles não. Eu quero dar ajuda e eles não querem aceitar.

Eu já sou quase a mais velha daqui. E não tô nem aí. Oitenta anos e não tô nem aí. É

só eu ter um dinheiro e eu racho fora, vou passear, vou viajar. Eu preparo a cabeça, porque

enquanto a minha cabeça tiver boa, eu tenho saúde.

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ANEXO D - José Pereira Cardoso

Na época que eu mudei pra cá, só tinha uma casa aqui e outra lá. Aqui era tudo mato.

Só tinha uma casa, no pé de abacate. Na época que eu vim, eu trabalhava na mina, mas num

nasci aqui não. Nascido aqui, tem muita gente. Meus filhos nasceram tudo aqui.

Na minha época, já num tinha cavalo. Só tava o terreno, tudo livre. Aí o povo

começou a invadir lá em cima. O pessoal contava que antes tinha cavalo, eles pegava os

cavalo dos outro pra pegar material lá no Santa Efigênia, num depósito que tinha lá. Eles iam

pegar material pra construir aqui. Num tinha mais nada. É coisa antiga.

Eu vim pra cá, e num tinha nenhum juízo na época. Eu tava lá na roça, deu pra vim pra

Belo Horizonte, eu vim. Era em 1978. Eu comprei a casa em 1985, antes eu morava na casa

dos outro. Área de sete metros por três metros. Barraco de dois cômodo, nem banheiro tinha.

O prefeito é o seguinte: eles querem jogar nós fora daqui, porque isso aqui é uma área

que o pessoal rico interessa, perto do centro. Então ele quer tomar. Só que num tem como. Se

eu mudar daqui, eu vou pra onde? Pra roça num tem condições de morar, lote num tem

condições de comprar que vai morar longe. Então eu quero ficar aqui onde eu tô. Até hoje

num mexeu comigo não.

Eu trabalho de pedreiro. Então material, às vezes, a gente consegue comprar um pra

mexer, mas é isso aí. Mas eu num quero sair daqui não.

E bairro também tem outra coisa, cabra chega, entra pra dentro e fecha a porta, quer

nem saber. Agora olha aqui, tá cheio de gente, um tá mexendo com serviço, o cara pergunta:

“tá precisando de ajuda?” Um ajuda o outro. Vai no bairro procê ver! Você vai buscar parente

seu longe, porque seu vizinho num te ajuda não. Você fica dois, três anos pra ter uma

conversa.

Aglomerado diz que é ruim. É ruim pra quem tem dinheiro, que vai morar no

Belvedere, vai morar na Savassi, comprar sítio. Agora pra nós é bom aqui mesmo. Tá bom

demais. Liberdade... eu saio sem camisa, eu entro no boteco de chinelo. No bairro não. Lá

onde eu trabalho tem um cara que mora pertinho de onde nós trabalhamos. Chega de tarde ele

tá trocando de roupa pra voltar pra casa. Eu falo: “se você mora pertinho, porque que você tá

trocando de roupa?” Ele fala: “Ah não, porque eu moro em apartamento, aí é chato eu chegar

lá com o uniforme da empresa.” O importante é você tá trabalhando! Se você fosse

vagabundo com dinheiro, eles aceitavam.

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ANEXO E - José Timóteo Severino

Fui nascido em Guaraciaba. Com 13 anos saímos e fomos para Teixeira, em Minas,

entremeio Ponte Nova com Viçosa. Trabalhava na roça. Me casei novinho lá mesmo, em 77.

E aí vim embora pra cá. Meus pais também trabalhavam na roça. Trabalhava na lavoura de

café, milho, feijão, com plantio. Trabalhava pro fazendeiro, era a meia. A certo caminho,

vimos que trabalhava pra caramba, só para ajudar o fazendeiro e quase não dava dinheiro

nenhum.

Vim pra cá através de um primo que já trabalhava aqui. Me aposentei na UFMG.

Comecei de servente e Deus me ajudou e depois me classificaram de pintor e veio a

continuidade. Trabalhei 34 anos na UFMG. Juntei os tempos que eu tinha fora, e deu certo.

Já sofri bastante tempo na roça, já trabalhei bastante, mas graças a Deus foi até bom

pra gente. Eles falam que quem nasceu e criou na roça tem educação pra tratar um pequeno do

mesmo jeito que trata um grande; tratar uma criança do mesmo jeito que trata um idoso.

Como trata um, trata dois.

Quando eu vim, não tinha isso não, era um beco. Andava isso aqui tudo a pé. Tinha

mais casa, mas era de painel, barraco prensado de madeirite, que era uns sarrafos de tábua.

Tinha muito barraco de madeira, depois foi acabando. Somos mais de 11 mil habitantes aqui

no aglomerado. E eu alcancei muita coisa aqui na Serra.

Vi muitas mães com neném na barriga. Eles já foram embora e eu continuo aqui. A

gente não é tão velho assim, mas sabe algumas coisas que é necessário pra todos.

A gente não tem leitura. Não aprendi a ler. Na roça tinha escola Mobral. Já ouviu falar

nessa escola? Pra ir na escola era seis léguas a pé, de noite. Não tinha condução, nem cavalo,

nem carroça, era a pé. Leitura a gente não tem, mas tem educação que Deus deu. Tirante isso

aí, a gente é feliz. Criei meus filhos, tô com a família criada e tenho 18 netos. Agora é cuidar

dos netos, até Deus alembrar da gente. Enquanto não alembra, a gente vai caminhando.

O que Deus deu, deu; o que não deu, tem que correr pra buscar. Pra nós adquirir tem

que trabalhar, se não trabalhar não tem nada; roubar é que não vale a pena. A gente tem que

viver com o que Deus dá e procurar ser humilde. Tem que ter o nome limpo, que é a melhor

coisa da vida.

No mais, tem nossa associação. Pondo as coisas em dia, fica mais fácil de resolver.

Tem umas coisas que a gente tem que fazer. O posto de saúde novo do Cafezal, a gente vem

caminhando em cima dele. Várias coisinhas miúdas a gente precisa fazer. Sozinho a gente não

tem força. Eles tão lá embaixo e não tão vendo. Nós temos que conseguir as coisas com os

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políticos que nós votamos. Nossas necessidades, nós é que sabemos, nós é que sabemos o que

nós precisamos aqui na favela.

Político não luta por nossos direitos, para eles tá tudo bom. Nós é que temos que brigar

por nossos direitos. Pra eles lá tá tudo um céu. A gente tem que ir para luta, senão não

consegue nada. Estamos caminhando, não estamos parados.

Já passamos muita dificuldade aqui. Os mais antigos falavam que tinha uns

companheiros que, na hora de trabalhar, não conseguiam fichar quando falava onde é que

morava. A gente não pode falar que favela é ruim, que é o lugar que Deus deu pra gente

morar, mas pros queridos e famosos lá de baixo já teve problema. Nem namorada não

arrumava quando falava que era do Cafezal. Agora já afastou tudo, porque temos uma conta

de água, uma conta de luz, endereço fixo. Nós temos é que agradecer a Deus e elogiar onde a

gente mora. Agradecer por ter onde a gente esconder do sereno.

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ANEXO F - Vilma Maria Jesus

Sou de Jequiri, mas minha identidade está Ponte Nova. Quando eu era pequena, eu

nem alembro mais. Eles falam que minha terra é Ponte Nova, mas sei que sou de Jequiri. Eu

já trabalhei na roça. Panhava café, panhava arroz, tudo eu já fiz. Eu nem conheci meu pai. Eu

era criada com os outros, depois que juntei com minha mãe, mas ela já morreu.

Conheci minha mãe depois que eu vim pra Belo Horizonte. Eles que me trouxe, os

povo de lá. Já morei em tudo quanto é canto antes de vir. Ficava viajando.

Toda vida eu era amigada. Nunca casei. Conheci esse marido lá em Almenara. Tenho

três filhos com ele. Mas tem de outros homens também. Dele eu tinha quatro, morreu um. Do

outro também era quatro, mas morreu um também. Então tenho seis.

Ele mora lá e eu aqui. Acho melhor, que quando ele bebe, ele não dá sossego pra

ninguém. Aí é melhor assim. Ele vem aqui só pra comer e vai embora. Gosto de ficar mais é

sozinha, que eu tenho sossego. Ele, quando bebe, fica pra lá e pra cá. Quando ele está bêbado,

ninguém aguenta. A casa de lá é minha, mas eu deixei ele pra lá e fico aqui com minha

menina.

Aqui era mesma coisa de uma favelinha, tinha nada calçado não. Nós morava em

barracão de tábua, depois que nós fez tijolo. Nós pegava água na bica; agora que melhorou

bastante. Tinha dia que eu saía daqui cinco e meia da manhã. Nós usava vela, depois que veio

a luz.

Sei nem assinar meu nome. Mas não tem jeito de aprender não. Conta faço tudo.

Tenho vontade de aprender muita coisa. Aprender ler isso tudo aí. Mas acho que não tenho

cabeça boa pra aprender não.