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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Érika Cintra Ribeiro
As instâncias do silêncio em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO 2010
Érika Cintra Ribeiro
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Professora Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira.
SÃO PAULO 2010
Presidente e Orientador ________________________________________
________________________________________
________________________________________
Dedicatória
À professora e companheira Maria Rosa Duarte de Oliveira.
Ao corpo docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo.
À minha família, pelo carinho e estímulo.
Enfim, a todos que contribuíram nessa etapa da vida.
AGRADECIMENTOS
À Deus pela Eterna bondade!
À minha Mãe e ao meu Pai – Toda gratidão!
Ao meu esposo pela paciência.
À Profª Drª. Maria Rosa Duarte por direcionar-me.
Ao Estado por me possibilitar esse estudo.
RESUMO Nosso estudo centrou-se sobre A Hora da Estrela (1977), tendo por objeto de
investigação a linguagem do silêncio na sua relação com a personagem Macabéa,
inscrita no discurso de um narrador – Rodrigo - que é também responsável pela
criação da personagem e do livro, assumindo a duplicidade autoral com Clarice
Lispector. Não obstante haver na fortuna crítica dessa obra alguns estudos que
caminham nessa direção, como os de Homem (2001) e Lisbôa (2008), aqui tratamos
do silêncio a partir do dito, do calado e do subentendido que se estabelece no
discurso de Macabéa na sua relação dialógica com a personagem Olímpico e com
Rodrigo, narrador e autor do relato. É nesse âmbito que trouxemos à tona as
manifestações do silêncio a partir das expressões, da censura, das pontuações e
dos paratextos, nos quais fica visível o silêncio autoral. Os fundamentos teóricos da
pesquisa se centraram no silêncio construído na instância discursiva, seja em termos
do seu sentido de linguagem inaugural (Orlandi, 1995), seja por meio dos embates
discursivos entre autor-narrador-personagens confrontados com os limites do dizer
(Bakhtin, 1998; 1999; 2000), seja por meio dos “lugares vazios” na interação texto-
leitor (Iser, 1979). A análise dos confrontos entre pontos de vista divergentes dos
criadores (Clarice Lispector e Rodrigo) e de suas criaturas (Macabéa, Olímpico,
Rodrigo) pode evidenciar a pretensa identidade autobiográfica entre o eu que vive e
o que escreve, graças ao silêncio que opera nesse intervalo de mediação sutil. Os
lances metaficcionais dessa escritura, a dupla voz – Rodrigo/Clarice Lispector -
apontam também para a fronteira entre o livro e a ausência do livro, que se
desmancha por entre os espaços do dizível e do indizível de modo a projetar uma
“realidade única” feita do silêncio textual. Não um silêncio mudo, mas aberto às
possibilidades do significar. Silêncio que se encontra latente, que antecede a palavra
e, ao mesmo tempo, dela necessita para existir.
PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector; A Hora da Estrela; silêncio; Macabéa;
narrador.
ABSTRACT PIRES, Érica Cintra Ribeiro. The urgings of silence in The Hour of the Sta. 2010.
87f. Dissertation (Master’s Degree) – Program of Literature and Literary Criticism,
PUC, São Paulo, 2010.
Our research is centered in A Hora da Estrela(1977), and investigates the language
of silence in its relation with character Macabea, who is inscribed in the discourse of
a narrator – Rodrigo – who is also the one responsible for the creation of the
character and of the book, and who assumes author’s duplicity with Clarice Lispector.
In spite of the existing studies about this novel which follow this line of research, such
as the ones by Homem (2001) and Lisbôa (2008), here we reflect about the silence
from the point of view of what is said, not said, and implicit that is established in
Macabea’s discourse in her dialogical relation with characters Olímpico and Rodrigo
(the narrator and author of the narrative). It is in this context that we come up with the
manifestations of silence appearing in the expressions, reproving, punctuations, and
paratexts, where the author’s silence becomes visible. The theoretical fundaments of
this research concentrate on silence built in the discourse level, either in the sense of
inaugural language (Orlandi, 1995), or through the discourse clashes among author,
narrator, and characters faced with the limits of expression (Bakhtin1998;1999;2000),
or through the “empty spaces” in the interaction between the text and the reader
(Iser). The analysis of the confrontations between the diverging points of view of the
authors (Clarice Lispector and Rodrigo) and of their creatures (Macabea, Olímpico,
Rodrigo) can spread light on the supposed autobiographical identity between the self
who lives and the self who writes, due to the silence that operates in this subtle
interval of mediation. The metafictional marks in this double-voiced writing –
Rodrigo/Clarice Lispector – also indicate the frontiers between the book and the
absence of the book, which is undone along the spaces of what can or cannot be
said, projecting a “unique reality” made of textual silence. Not a mute silence, but one
that is open to the possibilities of meaning something. This is a silence in a latent
state, preceding word and, at the same time, in need of it to exist.
KEYWORDS: Clarice Lispector; A Hora da Estrela; silence; Macabea; narrator.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................10 CAPÍTULO I - A HORA DA ESTRELA: FORTUNA CRÍTICA..................................15 1.1. Concepções críticas sobre A Hora da Estrela............................................15 1.1.1. A questão social............................................................................................15 1.1.2. A linguagem...................................................................................................19 1.1.3. O silêncio........................................................................................................23 1.2. Olhares críticos em A Hora da Estrela.........................................................26
CAPÍTULO II - O SILÊNCIO: CONFRONTOS ENTRE CONSCIÊNCIAS ................29 2.1. Rodrigo S. M. – autor/Narrador e Macabéa.....................................................29 2.2. Rodrigo S. M. – autor/Olímpico/Narrador........................................................39 2.3. Macabéa/Narrador/Olímpico.............................................................................42 CAPÍTULO III - O LIVRO E A AUSÊNCIA DO LIVRO.............................................48 3.1.Clarice Lispector: escritura silenciosa.............................................................48 3.2. Rodrigo: o duplo de Clarice.............................................................................48 3.3. Silêncios gráficos e paratextos........................................................................58
CONSIDERAÇÕES FINAIS – A POÉTICA DO SILÊNCIO ......................................68 REFERÊNCIAS..........................................................................................................72
LISTA DE ABREVIATURAS1
A Hora da Estrela –--------------------------------------------------------------- HE.
A Paixão Segundo G. H. –-------------------------------------------------- PSGH.
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres------------------------ O L P.
Água Viva ––------------------------------------------------------------------------ AV.
1 Todas as citações serão acompanhadas somente pelas siglas e numeração das páginas.
10
INTRODUÇÃO
Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os
significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria
que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste da sucata
da palavra. E prescindir de ser discursivo. (Clarice Lispector)
Penetrar no universo de Clarice Lispector é perder-se nos desvãos das palavras
e, ali, “Perto do Coração Selvagem”, na profundeza do ser clariceano, contemplar a
grandeza do silêncio que emana de sua escritura. Escritura que, segundo a autora,
[...] está sempre a caminho da literatura, ela é literatura em potência; mas só
esta realiza toda a potencialidade da linguagem. Só na literatura é que a
linguagem regressa a si mesma, só nela adquire a imanência.1
E assim, num movimento eloquente, entre os sons e os silêncios que
depreendem de suas obras, num instante único que é e não é, rompe as trevas e com
um “sim”, dá luz ao silêncio escritural de A Hora da Estrela (1977)2.
A Hora da Estrela, de acordo com os críticos, é a coroação da escritura de
Clarice Lispector, uma vez que, desfaz todos os paradigmas escriturais e dá vida a uma
nova forma de se fazer literatura; que vem de dentro, de uma lenta mutação interior da
autora e está aquém das modelagens superficiais. Logo, acompanhando essa lenta
mutação, a escrita clariceana, ou melhor, sua linguagem, projeta-se no cenário literário
como obra.
Aqui mesmo residirá talvez o que de mais marcante se pode assinalar face ao
modo como as obras [desta autora] perduram na herança deixada na cena
literária brasileira, isto é, obras e percursos que funcionarão modelarmente
como exemplos.” (ATHAÍDE, 1977, p. 2) 1 Conferência proferida por Clarice Lispector na Universidade de Austin, 1960. 2 Esta foi a última obra de Clarice Lispector publicada em 26 de outubro de 1977, meses antes de seu falecimento em 9 de dezembro de 1977. Para o trabalho, utilizamos a edição de 1999.
11
Durante toda sua vida, Clarice Lispector buscou incessantemente, exprimir o
inexprimível. Objetivo conquistado, segundo os críticos, pelo fracasso de sua linguagem
que resultou no indizível, no silêncio.
No romance A Hora da Estrela, o silêncio afasta-a das inflexões intimistas
lançando-a à extroversão, ao desafio da realidade. Se, nos primeiros escritos, a autora
encontrava-se inteiramente inserida em seus relatos; agora, a cena é “roubada” por
personagens que passam a protagonizar a narrativa. Esta inversão é, na verdade, um
desafio aos leitores que buscam apreender o “vazio” deixado por Clarice, neste salto,
do intimismo à extroversão. Vazio cuja resposta, a nosso ver, está nos espaços de
silêncio forjados nesta obra.
E, ainda que esse processo formador esteja presente em outros escritos da
autora, optamos por apreciá-lo em A Hora da Estrela, pois o silêncio que nela se
instaura compreende um processo de comunicação que envolve simultaneamente autor
ficcional/narrador/leitor. Mas como comunicar sem palavras? “Juro que este livro é feito
sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio.” (HE3, p. 16-17).
Ao escolher a temática do silêncio em A Hora da Estrela, propusemo-nos a
imergir em seu labirinto textual para descobrirmos, nos desvãos que permeiam a obra,
o lócus da não-palavra, do indizível como gérmen estruturador da narrativa clariceana.
Para tanto, resgataremos os elementos construtores do enredo, no qual personagem,
narrador e autor se entrelaçam e se transpõem, formando uma “realidade única” feita
do silêncio textual. Não um silêncio mudo, mas aberto às possibilidades do significar.
Silêncio que se encontra latente, que antecede a palavra e, ao mesmo tempo, dela
necessita para existir. É, portanto, o caráter positivo desse fenômeno que desejamos
enfocar, pois “quando não falamos, não estamos apenas mudos, estamos em silêncio:
há o pensamento, a introspecção, a contemplação, etc.” (ORLANDI, 1995, p. 37)
Pesquisadores contemporâneos como Maria Lúcia Homem (2001), João Alfredo
(2001), José Batista de Lima (2003), Sérgio Antônio Silva (2005) entre outros, enfocam
o silêncio clariceano a partir da linguagem - compartimento silencioso e secreto, no qual
as palavras guardam suas possibilidades – nas criações de Lispector como um todo.
Não nos apresentam, porém, um estudo específico sobre o silêncio na obra A Hora da
3 A partir daqui todas as citações de A Hora da Estrela (1998) serão referenciadas por HE.
12
Estrela, exceto o realizado por Santos (2008), em A Hora da Estrela: a linguagem e o
silêncio, no qual a temática encontra-se relacionada ao existencialismo e aos
problemas sociais.
Tais pesquisas, ao se distanciarem do nosso objetivo primeiro, que é focalizar o
sentido do silêncio nesta obra, nos aproximaram do romance por meio do seguinte
questionamento: Considerando as relações Clarice/Rodrigo (Criador/Criatura),
Macabéa/Narrador e Macabéa/Olímpico, é possível apreender em A Hora da Estrela
diferentes sentidos do silêncio? E como esse silêncio se manifesta?
Em se tratando de A Hora da Estrela, considerada uma das obras mais
importantes da literatura brasileira, cuja configuração está sempre desafiando seus
leitores, esta dissertação propõe-se a estudar a problemática do silêncio a partir da
análise de fragmentos da narrativa, que possibilitem a descoberta dos sentidos que se
depreende do silêncio. Para tanto, buscamos compreender o sentido do silêncio a partir
da relação exercida entre os pares: Clarice/Rodrigo, Macabéa/Narrador e
Macabéa/Olímpico.
Mediante a problemática levantada e o objetivo proposto, apresentamos como
possíveis respostas as seguintes hipóteses:
1ª. o confronto Criador/criatura, no que se refere ao plano da autoria, traz o silêncio
como resistência pelo que ficou por dizer – incompletude da linguagem como
representação do conflito autoral entre o dito e o não-dito;
2ª- os pontos de vista diferenciados das personagens Macabéa/Narrador e
Macabéa/Olímpico geram vazios, lacunas, que se manifestam como silêncio reflexivo e
como silêncio de incomunicabilidade;
3ª- o livro e o não livro revelam uma das faces do silêncio clariceano.
Procuramos demonstrar em vários momentos as manifestações desse silêncio
no corpus em análise, pautando-nos nas concepções de Orlandi (1995), que estuda a
multiplicidade desse conceito em seu livro, As Formas do Silêncio; e Mikhail Bakhtin
(1998, 1999ª, 1999b, 2000), que nos oferece os fundamentos teóricos para os embates
discursivos entre autor-narrador-personagens confrontados com os limites do dizer.
As concepções de Iser (1979) sobre os espaços vazios ajudam a complementar
nossa reflexão sobre o livro e a ausência do livro como uma das facetas do silêncio
13
clariceano. Segundo o teórico, os lugares vazios, no nosso corpus representados pelos
sinais gráficos e pelos espaços em branco, são as pausas do texto, os momentos de
silêncio como provocação do imaginário do leitor que o levam à visão de um texto
sempre renovado.
Esta dissertação é constituída de três capítulos, a saber:
No primeiro – A Hora da Estrela: A fortuna Crítica – apresentamos a síntese
de alguns estudos crítíco-analíticos realizados sobre a obra, com a finalidade de
demonstrar como o silêncio clariceano tem sido estudado.
No segundo capítulo - O Silêncio: Confrontos entre Consciências –
demonstramos o silêncio que se depreende da relação entre Macabéa/Narrador,
Olímpico/Narrador e Macabéa/Narrador/Olímpico, à luz do confronto entre suas
perspectivas de mundo materializadas no discurso, apoiando-nos nos estudos de
Bakhtin.
No terceiro capítulo – O Livro e a Ausência do Livro – apresentamos as
concepções que Clarice tem sobre o silêncio, a partir de obras, entrevistas,
depoimentos, etc., destacando a linguagem como incompletude. Para alicerçar esse
trajeto, apoiamo-nos em Orlandi (1995). Em seguida, apresentamos o silêncio autoral
em A Hora da Estrela por intermédio da correlação criador/criatura, focando o
autor/narrador Rodrigo S. M. como o duplo de Clarice Lispector, especialmente a partir
da afirmação: “Na verdade Clarice Lispector” e dos treze títulos que antecedem a
dedicatória. Finalmente, no último subitem focaremos as pontuações e o paratexto a
partir dos conceitos de Gerard Genetti (1997) e Carlos Ceia (2005) em A Hora da Estrela, como indícios do silêncio estruturador: do livro e do não-livro: espaços em
branco, perguntas sem resposta, suspensão do dito, indícios do inacabamento que vão
dando forma ao clarão da estrela, cujo silêncio se abre e se fecha com um “sim”.
Enfim, corroboramos com o crítico Benedito Nunes4 sobre a singularidade da
escrita clariceana:
4 Entrevista concedida por Benedito Nunes a José Castello no jornal O Estado de São Paulo em 27 de janeiro de 1996.
14
O que se pode dizer, depois de tudo, sobre a importância de Clarice? Sua
escrita é absolutamente ímpar. Há alguns anos participei da organização do
volume a ela dedicado pela coletânea Aclives, de Paris. Organizamos uma
edição crítica de A Paixão segundo G.H., uma edição crítica atípica, porque não
havia originais do livro. Para compensar, a Casa de Rui Barbosa me ofereceu
para consulta os originais de um conto de Clarice, A bela e a fera, um dos
últimos que escreveu. Nós o reproduzimos na edição crítica de G.H. e pudemos
assim mostrar a maneira entrecortada de escrever que Clarice cultivava. É
como se ela escrevesse por fulgurações. O confronto do original com o texto
definitivo mostra com muita clareza esses movimentos dentro de sua escrita.
(1996, p. 1)
15
CAPÍTULO I 1. A HORA DA ESTRELA: FORTUNA CRÍTICA
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, é um livro feito para o apagamento. Um
livro que, tal como o amor, nasce da oferenda do que não se tem: o mistério das
palavras, o silêncio das palavras.
Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um
silêncio. Este livro é uma pergunta. Pergunta dirigida, sobretudo à narrativa: e
agora, como contar uma história com restos, com palavras pobres que restam?
(SILVA, 2005, contra capa)
1.1. Concepções críticas sobre A Hora da Estrela
Foi considerando a atividade crítica, não só no seu aspecto avaliativo de pensar
e ou julgar, mas também em suas relações e sua função no contexto literário, que nos
dispusemos a realizar leitura de estudos teórico-analíticos, ou melhor, de críticas sobre
A Hora da Estrela.
É evidente que, devido à vasta quantidade de pesquisas realizadas sobre a obra,
selecionamos estudos representem, preferencialmente, as concepções recentes
agrupadas a partir de três temas principais, a saber: a questão social, a linguagem e o
silêncio.
1.1.1. A questão social
Com o propósito de captar as instâncias silenciosas que erigem a escritura
clariceana, Santos (2000), no ensaio A Hora da Estrela: entre o grito e o sussurro
constelar, traça considerações acerca da problemática social dos marginalizados e sem
16
direito ao grito. A autora afirma que, nesse romance, Clarice troca o grito modal pelo
sussurrar de vozes que se entrecruzam. Assim, a capacidade de transculturação da
obra literária clariceana oferece a possibilidade de uma abertura estelar, de um jogo
dialógico de leituras possíveis.
De acordo com Santos (2000) A Hora da Estrela, última obra de Clarice
Lispector, publicada em vida
foi escrita sob o signo de um paradoxo que percorreu toda a sua trajetória
narrativa. Entre a mudez e o grito, sua narrativa inscreve-se. Entre a pós-
modernidade e a modernidade, sua narrativa se auto-questiona, se auto-
tematiza. Miséria e glória fundem-se no exato momento da morte. Pura
clarividência de alguém que morreria, de fato, algum tempo depois de ter
matado Macabéa. (p. 11)
As reflexões da autora não trazem uma abordagem direta sobre a problemática
do silêncio, ao contrário, tendo-o como parâmetro coloca em destaque a questão da
marginalidade social .
Já o texto A via crucis do outro: aspectos da identidade e da alteridade na obra
de Clarice Lispector, de Kahn (2000), traz considerações sobre a forma e o conteúdo
dos escritos clariceanos que, segundo a autora, obedecem a uma configuração em que
os limites entre ambos não são claramente estabelecidos.
Diz-se que a plasticidade da forma na escritura lispectoriana oscila entre o rigor
formal e o rechaço das convenções de gênero. Numa análise mais fina, busca rastrear
os modos de representação do outro, desde as mais primitivas identificações até
chegar à representação do outro excluído pela sociedade. Finaliza suas considerações,
abordando o tema do espaço social do outro, cujo referencial é A Hora da Estrela. Para alcançar tal objetivo, Kahn estuda as relações existentes entre o autor, o narrador,
as personagens e o leitor, de modo a revelar como a própria forma do romance
tematiza a questão da falta de espaço social proposta por ele mesmo. Em suas
pesquisas, Kahn, apesar de referir-se à forma e ao conteúdo dos escritos clariceanos
que desvirtua as convenções, retoma a problemática dos socialmente excluídos.
17
Em Clarice Lispector: a literatura em busca do outro, artigo publicado por Sato
(2002), fazendo referência a A Hora da Estrela, discorre sobre a questão do
migrante/imigrante (social). Para a autora, Lispector, por meio da dificuldade de Rodrigo
S. M. em aproximar-se do outro, conhecê-lo verdadeiramente, problematiza a alteridade
com a veemência da arte. Com isso, engloba o papel do leitor e da literatura frente a
essa dificuldade que aflige nossa sociedade. Utilizando-se da fala do narrador-autor,
passa-nos a concepção da impotência da literatura em mudar a realidade social que, “a
intervenção social da arte só será bem-sucedida se levar o leitor à experiência da
alteridade, o que resulta em empatia, comunhão, solidariedade com o outro, com
alguém ‘ralo’ como Macabéa”. (p. 10)
O texto traz um enfoque importante no que se refere ao problema social da
imigração e, ao mesmo tempo, coloca em xeque o papel da literatura frente à realidade
na qual está envolvida.
Em A construção da Identidade em A Hora da Estrela, os autores Schueri e
Teixeira (2004) analisam o modo como foram construídas as identidades de Rodrigo e
Macabéa. A partir da teoria bakhtiniana, defendem a ideia de que a linguagem utilizada
no romance é parte do contexto social e está aberta a outros discursos ideologicamente
situados. Assim fundamentados, buscam averiguar como se apresenta o discurso das
personagens Macabéa e Rodrigo considerando esta obra como parte de uma literatura
engajada e de crítica social.
Enquanto isso, Martins (2006), em A Hora da existência na temática, na
linguagem e na narrativa de Clarice Lispector, pauta-se na hipótese de ser A Hora da Estrela um romance de cunho social. Discute a problemática existencial numa direção
individual e subjetiva. Com esse procedimento, busca confirmar o caráter introspectivo
e existencialista da literatura clariceana. Ao invocar o existencialismo de Lispector,
Martins traz diversas situações que nos projetam às realidades sociais que nos
consternam.
Já em A Hora da Estrela: marcas dêiticas na construção da identidade, Márcia
Silva (2006), partindo de uma leitura linguístico-discursiva, analisa o processo de
construção da identidade. Segundo a autora, os elementos sociais que rebaixam e
marginalizam a protagonista dificultam a formação de sua identidade. Logo, para Silva,
18
a divisão das classes sociais que favorece a minoria privilegiada é, na verdade, a
responsável pela exclusão social de Macabéa, como representação de uma
coletividade marginalizada.
Pereira (2006), em A Hora da Estrela: Crise da narrativa no modernismo e na
contemporaneidade, evidencia a relação entre a elite intelectual e o povo, alicerçado na
crise dos procedimentos narrativos que se centram no modernismo e na tradição
republicana que perde espaço no regime militar. Com isso, o autor demonstra a luta
entre as ideologias dos intelectuais em detrimento do pensamento popular. Mais uma
vez, apresenta-se diante de nós a inscrição do confronto entre as diferentes classes
sociais em A Hora da Estrela. A desconstrução do herói em A Hora da Estrela, de Rocha (2007), discute os
caminhos trilhados por Macabéa nesta obra, visando a estabelecer um novo perfil para
a personagem a partir da teoria da desconstrução de Jacques Derrida. Para tanto,
realiza um levantamento da origem e das características de Macabéa, sobretudo,
aquelas que a aproximam da qualidade de herói. Dessa forma, Rocha desenvolve uma
reflexão sobre a linguagem como base construtora da personagem numa perspectiva
social, inferindo sobre as relações entre a protagonista e o narrador, assim como o
posicionamento do segundo como criador de uma narrativa ficcional, que contém
elementos da realidade e se configura como uma crítica social.
Temos também o artigo O Foco Narrativo na obra A Hora da Estrela, de Silva e
Braga (2007), cujo tema é a migração do povo, no território brasileiro, em busca de
sobrevivência. Com isso, traz à baila o lado social, sentimental e psicológico presentes
no enredo por meio das personagens e do foco narrativo.
Em A Hora da Estrela e Uma Vida em Segredo, as autoras Costa e Soares
(2007) tecem uma comparação entre as obras de Clarice Lispector e Autran Dourado,
buscando demonstrar a afinidade entre ambas por meio dos narradores masculinos que
transmitem suas ideologias por meio das personagens excluídas. Assim, apresentam a
ligação de tais obras com o modernismo, uma vez que, nesse período, os intelectuais
se colocam como porta-voz dos excluídos (homem ou mulher; branco ou negro etc).
Nesse sentido, procuram verificar em que medida esses narradores contemporâneos
utilizam procedimentos narrativos do modernismo e como os inovam. Com essa
19
comparação, revelam que ambos os escritores (Clarice Lispector e Autran Dourado)
têm em comum a percepção social direcionada à problemática dos menos favorecidos.
Figueiredo (2008), no ensaio O Intelectual Revisitado em A Hora da Estrela, faz
uma análise da obra clariceana sob o enfoque biográfico-histórico-sócio-cultural. O
autor associa o contexto histórico às preocupações de Clarice Lispector com relação
aos movimentos políticos, sociais e culturais. A partir disso, discute o papel da escritora
frente à produção literária de sua época e o reflexo produzido no âmbito social.
Em A Hora da Estrela: a face onipresente da morte, de Amorin (2008)
demonstra as aproximações entre Clarice, Rodrigo S.M. e Macabéa, “jogos de
identidade” lispectorianos que ocorrem em A Hora da Estrela. Segundo Amorim, os
múltiplos morreres estão em consonância com a própria linguagem que se edifica –
como afirma Maurice Blanchot – sobre túmulos. Em seu estudo sobressai a ideia de
que os percursos de Macabéa, Rodrigo, Clarice Lispector e o próprio leitor se
entrelaçam por intermédio de um mesmo destino. Ainda nos diz que, “pode-se
vislumbrar, diante dos diversos funerais narrativos, a face onipresente da morte na
sétima obra clariceana”. (p. 13)
Desta forma, o morrer para Amorin implica a exclusão social que envolve os três
planos (o protagonista, o ficcional e o autoral), deixando entrever as marcas da
marginalização profissional e existencial.
Em Uma análise das relações de gênero na obra A Hora da Estrela, publicado
na revista eletrônica Letra Magna, Azevedo (2008) analisa esta obra clariceana tendo
por parâmetro as relações sociais entre as personagens Macabéa e Olímpico, assim
como, a construção de suas identidades a partir de modelos pré-estabelecidos pela
cultura nordestina.
1.1.2. A linguagem
Castello (1977), no artigo intitulado: A Hora da Estrela nos diz que esta obra é a
concretização da extroversão de Clarice Lispector. Livro surpreendente, no qual as
personagens – que nada se parecem com Lispector - “roubam” a cena. Visão que
acreditamos ser equivocada, pois em várias instâncias Macabéa é reflexo da própria
20
escritora. Mais adiante, o autor faz uma contextualização do meio em que vive a
protagonista e se refere a Rodrigo S. M. atrelando-o à morte real da escritora. E finaliza,
“A Hora da Estrela é um romance sobre o desamparo a que, apesar do consolo da
linguagem, todos estamos entregues”. (p. 4)
Como se vê, as considerações de Castello são um tanto modestas e trazem
como “pano de fundo” a questão do descaso ao ser humano, no entanto, ao considerar
a linguagem de A Hora da Estrela como consolo nos induz a apreciá-la livres do
automatismo, o que impediria enxergar sua grandeza.
Nessa mesma década, a apreciação realizada por Pólvora e Portella (1978)
sobre A Hora da Estrela, centraliza-se na problemática da palavra e da linguagem.
Segundo os autores, ao praticar um exercício metalinguístico, Clarice intima as palavras
a saírem de seus pedestais e, na sequência, atribui-lhes novos significados. Para os
críticos, é no compartimento secreto da linguagem que as palavras guardam suas
possibilidades. Daí o “desdém” de Lispector às palavras como “representação”.
Olga de Sá (1979) em seu ensaio crítico A Escritura de Clarice Lispector nos
aproxima do convívio com o mundo instigante e misterioso da autora, ao abordar
criteriosamente o tempo e a linguagem na ficção clariceana, bem como o processo
epifânico. Aproxima o procedimento de Clarice Lispector ao de Joyce. A estudiosa nos
agracia com um levantamento minucioso das principais Fortunas Críticas que
acompanhou o desenvolvimento da escritora entre a década de 1940 e 1950, tendo
como escopo avaliar o que permaneceu e o que foi superado.
A escritura clariceana é caracterizada por Sá como metafórico-metafísica,
dilacerada pelo dilema entre existir e escrever, ser e linguagem. Sublinhou como
ninguém a contribuição de Clarice Lispector para a literatura brasileira assim como o
aspecto de recepção clariceana no Brasil, utilizando a teoria de Hans J Jauss.
Ao referir-se à obra A Hora da Estrela, pontua em outras palavras, que é a
coroação da escritura clariceana, pois nela está condensada a essência das obras de
Clarice Lispector com o fechamento do seu projeto escritural. Nas palavras de Sá
(1979), temos que o último livro de Clarice “constitui o último coágulo de uma escritura
toda voltada para a pesquisa a respeito das correspondências entre ser e linguagem.”
(p.279)
21
Já Lima (2003), em seu artigo Clarice Lispector: epifania ou transfiguração?,
desenvolve uma reflexão que coloca em destaque o procedimento por meio do qual a
autora realiza o traslado do “estar” para o “ser”. Fenômeno, segundo Lima, denominado
epifania ou transfiguração. Ao referir-se à A Hora da Estrela, destaca a linguagem
como lugar da existência, como um exercício de metalinguagem. E continua, “é na zona
silenciosa da linguagem que a autora vai buscar o sentido secreto da palavra”. (p. 3) em
seguida, associa Macabéa a Cristo, Clarice a Moisés e o leitor a Elias. O tríduo
transfigura-se em um amálgama que é a própria Clarice Lispector. A autora finaliza o
artigo mencionando que ler Clarice é contaminar-se dela, é transformar-se nela. Ou
seja, é emaranhar-se em sua retórica cuja matéria prima é o silêncio, é o não-dito, é o
que pulsa em cada coisa, porém, ainda não foi percebido.
A enunciação em A Hora da Estrela, de Silva (2005), faz uma análise do
discurso clariceano fundamentado na teoria bakhtiniana. O autor apresenta a
enunciação como uma forma de evidenciar os efeitos de sentido presentes no discurso.
Para tanto, expõe os elementos que constituem a enunciação na obra, destacando as
categorias enunciativas e os fenômenos como a autoria, a ironia, a heterogeneidade e a
linguagem. A nosso ver, ao direcionar-se o discurso, o pesquisador acomoda tais
fenômenos como componentes fundamentais da linguagem clariceana.
O Entrecruzamento Erótico, Pictórico e Musical em A Hora da Estrela, de Winter
& Motta (2006), analisam o modo como os procedimentos musicais, pictóricos e
eróticos auxiliam na constituição do processo de escrever nesta obra, participando
ativamente na estruturação da poética textual. Este processo, segundo os autores,
"insere-se num projeto literário consciente da proximidade entre as linguagens da arte,
bem como da possibilidade de transformar um sistema não-artístico, como o erotismo,
em um signo da arte". (p. 4)
Mantendo o tema, no artigo A Hora da Estrela: a linguagem e o silêncio, Felício
(2006), reflete sobre a linguagem como essência da existência humana, pois com ela o
homem nasce e se afirma e, ao mesmo tempo, na e pela linguagem, pode se perder, se
definhar. Trabalha, portanto, a partir da linguagem, o existencialismo sob uma
perspectiva filosófica. E finaliza suas considerações com o seguinte pensamento: A Hora da Estrela “esboça o gesto de colocar em cena, [Macabéa], personagem
22
deslizante, camuflada, que se nega ao mesmo tempo em que tenta afirmar epifânicos
destinos de Macabéas. Assim, a linguagem fala, ecoa silêncios”. (p.7)
Apesar de mencionar no título a palavra silêncio, o eixo em torno do qual gira
sua reflexão é a linguagem vinculada à questão filosófica do existencialismo que advém
da protagonista como representação do coletivo.
Rodrigo S. M.: Dos bastidores da escrita à revelação de um sujeito-escritor,
artigo de Scheifer (2007), desenvolve uma análise sobre a prática de escrita de Rodrigo
S. M., autor ficcional de A Hora da Estrela, assim como, sua relação com a linguagem,
apreendida por meio de seus rastros deixados no corpo de seu enredo. Com isso, a
autora traz a reflexão metalinguística do narrador-autor sobre o ato de escrever, no
mesmo instante em que o pratica. A simultaneidade entre o ato de escrever e a reflexão
de sua prática, de acordo com Scheifer, situa a obra nas balizas da modernidade. Ao
referir-se à escrita como revelação do sujeito, a autora desenvolve ao mesmo tempo
uma breve apreciação sobre a questão da linguagem que mantém estreita ligação com
o autor ficcional.
Já Clarice Lispector: Criador e Criaturas – Uma Leitura de A Hora da Estrela, de
Faria (2007), procura, num primeiro momento, observar e identificar os procedimentos
estéticos geradores de significação. Na sequência, analisa a obra numa perspectiva
teórica, buscando apreender o funcionamento do texto e realizar uma possível leitura
do livro. Nesta leitura, o autor associa A Hora da Estrela ao mito como procedimento
estético que abre a obra a infinitas leituras, destacando, sobretudo a linguagem como
instrumento diferenciador.
Por meio de vários questionamentos, Santos (2008), no artigo Produtos da
linguagem: A hora e vez de Macabéa, reflete sobre a crise da linguagem, uma vez que
para o autor a protagonista tinha consciência de sua precariedade. Nessa perspectiva,
“a linguagem-produto se instaura, qual uma esfinge devoradora, apontando para os
abismos dos nossos macabéicos destinos”. (p. 8)
A posição do narrador Rodrigo S. M., em A Hora da Estrela, de Clarice
Lispector, dissertação elaborada por Spinelli (2008), retrata questões formais que são,
por Lispector, redimensionadas no momento em que a miséria da protagonista é
abordada como tema norteador da narrativa. Com isso, revela que a obra é um espaço
23
privilegiado para que o impasse da forma ganhe força e densidade. Para reforçar sua
posição, a autora analisa Rodrigo S. M. “como solução formal de uma literatura que
realizou um ajuste de contas com o seu tempo e com a sua experiência social”. (p. 12)
Verificamos, portanto, que o estudo realizado por Spinelli, traz como pano de fundo
uma discussão sobre a linguagem.
Enquanto isso, A escrita de si ou uma análise metaficcional de A Hora da
Estrela, artigo elaborado por Pôrto & Ferro (2009), traça uma reflexão sobre a escritura
clariceana como crítica à própria escritura. “À escritura, reservou-se, ao seu modo, o
direito de discursar sobre si mesma, que, ao justificar sua autonomia enquanto arte
despoja da crítica o direito da absolutização da verdade”. (p. 9)
Partindo da personagem Macabéa, as autoras Silva, Fernandes & Pereira, no
ensaio denominado Apogeu e queda de uma estrela: Percursos do Estilo em A Hora da
Estrela, de Clarice Lispector tecem considerações sobre o estilo literário clariceano,
buscando destacar as peculiaridades de sua escritura, ou melhor, de sua linguagem
que, conforme as autoras, é simples, direta e sem enfeites.
1.1.3. O silêncio
Prado Junior (1989) desenvolve no artigo intitulado O impronunciável: notas
sobre um fracasso sublime, uma análise reflexiva acerca do silêncio como catalisador
da inovação escritural de Clarice Lispector. O parâmetro do seu estudo é a obra A Hora da Estrela, tida por vários estudiosos como síntese da criação lispectoriana. Embora
seja uma visão geral das criações lispectorianas, a discussão de Prado Junior sobre o
impronunciável nos projeta para a essência do corpus da nossa pesquisa e sustenta o
silêncio como eixo norteador de A Hora da Estrela.
Em A vocação para o abismo, publicado na revista “Literatura e Sociedade”,
Lúcia Helena (1999) tece considerações sobre o silêncio e a transfiguração
lispectoriana em A Hora da Estrela. Ao questionar-se acerca da localização de ambos,
conclui que o silêncio está no abismo e a transfiguração está na hipnose do indivíduo
que “olha o ofuscante objeto olhado”. (p. 12)
24
Reforçando sua hipótese, a autora nos diz que a zona do silêncio poderá ser
encontrada nas instâncias do leitor, do escritor ou do narrador. Isto porque,
independentemente de sua localização, o silêncio sempre vai operar a divinização da
palavra. Notamos que a autora vai além dos olhares de outros críticos, pois com ela o
silêncio é percebido na obra A Hora da Estrela em conexão com o
leitor/escritor/narrador. Ao colocá-lo frente ao fenômeno da transfiguração, na verdade,
Lúcia Helena nos permite observá-lo como estratégia escritural por meio da palavra que
significa e aponta para a transfiguração do “indizível”.
Já no estudo No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços da autoria em Clarice
Lispector, Homem (2001) tece um paralelo entre as obras Água Viva, A Hora da Estrela e Um sopro de vida, focalizando a questão da autoria em relação à forma de
compor que se origina do incessante confronto entre o silêncio e a palavra. É, portanto,
uma análise que gira em torno do “dilema que se estabelece entre o que é da ordem da
palavra, da escrita, da letra e o que se coloca em seu pólo antinômico: a não-palavra, o
silêncio, aquilo que não se pode construir como linguagem, como texto”. (p. 10)
É um estudo bastante extenso que busca trazer amiúde elementos que revelem
o “jogo” entre o silêncio e a palavra como procedimento norteador da escritura
clariceana. Apresenta uma abordagem diferenciada centrada na questão autoral que
permeia as obras: Água Viva, A Hora da Estrela e Um Sopro de vida. No mesmo ano, Montenegro (2001), em seu livro História e ontologia em A Hora
da Estrela, reflete sobre a temática da transfiguração como sinônimo de divinização do
mundo. Clarice “diviniza o mundo [...] e fisga numa louca intuição, o inexprimível
absoluto da vida interior”. (p. 15-16)
Associa esse fenômeno ao estreito vínculo que a autora mantém com suas
personagens. Assim, fundamentado no fenômeno da transfiguração, o autor busca
enfatizar o silenciamento que se faz no enredo, tomando como centro a divinização do
mundo.
Quatro anos depois, A Hora da Estrela de Clarice, de Silva (2005) contempla-
nos com uma proposta instigante que nos leva a uma leitura diferenciada do
pensamento clariceano sobre a concepção de literatura. Seguindo os passos da
“mestra”, o autor penetra nos desvãos de A Hora da Estrela e, gradativamente, nos
25
aponta o “questionamento” como origem e essência do projeto literário lispectoriano,
para toda literatura que conduz à impessoalidade da palavra e, consequentemente, ao
apagamento do próprio escritor. No caso de Clarice Lispector, esse apagar, esse sair
de si, é uma exigência da própria escrita, pois ao lançar-se ao silêncio, utilizando-se
dos restos que a linguagem alcança:
Eu transmuda-se no Ele. Quando escrever é entregar-se ao interminável, o
escritor que aceita sustentar-lhe a essência perde o poder de dizer ‘Eu’. O ‘Ele’
toma o lugar do ‘Eu’, eis a solidão que sobrevém ao escritor por intermédio da
obra. ‘Ele’ sou ‘Eu’ convertido em ninguém, outrem que se torna o outro. (p. 32)
Enfim, numa ampla reflexão que envolve a palavra, o silêncio, a linguagem; a
literatura centra-se no apagamento como procedimento norteador do projeto literário de
Clarice Lispector.
Outro estudo importante foi realizado por Lisbôa (2006) que, em sua dissertação
- A pontuação do Silêncio: uma análise discursiva da escritura de Clarice Lispector -,
pondera sobre as relações do silêncio no discurso, na linguagem e na ideologia que
forja a escritura clariceana. Para tanto, analisa em A Hora da Estrela - a pontuação
como espaço privilegiado para a manifestação do silêncio e marca da singularidade da
sintaxe de Lispector.
Encontramos em Uma Leitura dos Silêncios: aproximações entre Teolinda
Gersão e Clarice Lispector, um paralelo entre os silêncios que emergem nas narrativas
de ambas, tomando como referência personagens femininas, é o que nos diz Leal
(2007). Dentre essas personagens, sobressai Macabéa – protagonista de A Hora da Estrela – como símbolo do silêncio que ameaça a emergência do sujeito feminino
numa sociedade patriarcalista.
Em recente trabalho, Manchuca (2009), no artigo Do Silêncio à Palavra: Uma
Leitura de Macabéas, tendo por base A Hora da Estrela, apresenta-nos uma reflexão
sobre o silêncio de Macabéa como instrumento de luta contra as adversidades sociais,
individuais, da representação própria da palavra literária entre o dizer e não-dizer.
Essa vertente nos oferece, portanto, um panorama do silêncio lispectoriano,
como um procedimento estilístico que coloca em evidência o inacabamento de sua
26
obra. Obra repleta de silêncios que, de acordo com os estudiosos de Clarice, são
chaves que abrem apenas caixas que escondem outras caixas, que escondem outras
caixas que escondem outras caixas. Sendo assim, oferece-nos pistas que permitem
rastrear o mais profundo sentido da escritura de Lispector.
É por meio dessa abertura que os textos clariceanos instigam o desejo de
penetrar em A Hora da Estrela para captar, por trás das palavras, o silenciamento de
sua autora, pois, se observarmos a Fortuna Crítica citada, veremos que essa vertente
não é tão explorada nesta obra. O que existem, como comentamos, são estudos
tímidos e considerações generalizadas.
1.2. Olhares críticos em A Hora da Estrela
Contemplando as diferentes vozes que ecoam sobre A Hora da Estrela,
notamos que, em sua maioria, sobreleva a questão da temática social atrelada à
alteridade, ao rebaixamento, ao silêncio e à palavra, assim como a tentativa da
linguagem vinculada à palavra e ao silêncio.
A primeira vertente, sempre centrada na protagonista, retrata a problemática da
injustiça social, no contexto brasileiro. Injustiça que resulta na morte alienação, na
morte submissão, na morte carências, na morte ausência de vida, de inumeráveis
macabéas. Nessa perspectiva, A Hora da Estrela irrompe como romance de cunho
social e marco de um novo modo de escrever de sua autora.
Já na segunda, o destaque se dá no processo metalinguístico utilizado por
Clarice, no intuito de forjar uma linguagem diferenciada que, embora necessite das
palavras, não se centra nelas. Tal descentralização dá origem à linguagem-silêncio.
Este pensamento é posteriormente retomado por Lima (2003) no momento em que
deposita destaque a linguagem como lugar da existência, como um exercício de
metalinguagem. Agora revelada, a linguagem como instrumento possibilita a ocorrência
do fenômeno da transfiguração, da apoteose do não-notado. Em outra instância, a
linguagem é explorada em conexão com a problemática do silêncio e do existencialismo
como reflexo de questões sociais mais profundas.
27
Esta vertente é fechada em nossa amostra como linguagem-produto, ou seja,
linguagem em crise. Partindo desse pensamento, Santos (2008) associa todos os
homens e mulheres que mais cedo ou mais tarde tomam consciência de sua
precariedade. Diante dessa visão geral, percebida nos diversos textos, notamos que a
linguagem clariceana é algo inquietante, que vai além das convenções, por isso suscita
uma série de estudos que a abordam sob as mais variadas linhas. É evidente que em
muitas instâncias, acabam confluindo a um mesmo ponto, haja vista, alimentar-se de
um único e mesmo desejo: focar sua singularidade.
Este fator, a nosso ver, é um dos limites dessas abordagens, porque o diferencial
da linguagem clariceana é um fato constatado desde seus primeiros escritos. Vistas por
este ângulo, tais concepções tornam-se repetitivas, o que não significa que sejam
vazias.
Já a terceira vertente, o silêncio, é apreciada sob diversos ângulos (da palavra,
da linguagem, das personagens, da autoria, etc.) pelos estudiosos que buscam
absorver o que está por trás das palavras de Clarice Lispector. Esse buscar, na
verdade, propiciou a edificação de estudos, como os realizados por Homem (2001) e
Lisbôa (2008), entre outros, porém, dirigem-se a aspectos específicos (a pontuação, a
autoria, etc.) e abrem-se às quatro principais obras de Clarice Lispector: Paixão segundo GH; Água Viva; A Hora da Estrela e Um sopro de vida.
Diante do corpus selecionado para esta pesquisa, A Hora da Estrela,
percebemos que a linguagem e o silêncio são dependentes entre si. Logo, sem o
silêncio que se apresenta nos desvãos das palavras, como constitutivo da linguagem
clariceana, não há sentido, isto é, “[...] a relação do silêncio com a linguagem mostra a
constituição essencial da linguagem”. (ORLANDI, 1995, p. 55)
Em outras palavras, a linguagem escrita que forja A Hora da Estrela adquire
significação no não-verbalizável, no universo silencioso das personagens. Sendo um
meio de expressão (verbalizável ou não), a linguagem é um fenômeno social, ou seja,
traz em si as marcas de um determinado contexto e sua historicidade. Disso decorre
que, embora a crítica enfatize de modo particular cada uma dessas vertentes,
acreditamos que devam ser estudadas como um complexo único, haja vista, uma
28
desencadear na outra. Porquanto, o silêncio dá sentido à linguagem que, por sua vez, é
um fenômeno social. Nesta acepção, há uma profunda relação entre os três.
Embora a temática do silêncio seja o “pano de fundo” dos olhares críticos aqui
arrolados, não desenvolvem, a nosso ver, um estudo que contemple as manifestações
sobre o silêncio na obra analisada, tal como pretendemos desenvolver nesta
dissertação. Assim, buscaremos explorar o silêncio clariceano a partir do próximo
capítulo.
29
CAPÍTULO II
2. O SILÊNCIO - CONFRONTOS ENTRE CONSCIÊNCIAS
O diálogo, menciona Bakhtin (1999ª), é a matriz discursiva, que descentraliza a
unicidade da voz narrativa. Nele as personagens representam diferentes vozes que não
permitem uma única leitura, embora misturem vários tipos de discursos. Ainda segundo
o autor, o romance não somente conta uma história, mas o romance fala e isso ocorre
por meio do discurso citado, isto é, um discurso dentro de outro discurso
Em A hora da Estrela, as diferentes vozes narrativas se intercalam e se
redefinem constantemente, possibilitando a dramaticidade no plano estrutural. Dentre
essas vozes, destaca-se a de Rodrigo S. M., que é o duplo autoral de Clarice Lispector
no plano ficcional, responsável pela criação das personagens Macabéa e Olímpico. É o
próprio Rodrigo S. M. que confirma essa posição ao dizer que: “A história – determino
com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais
importantes deles, é claro.” (HE, p. 12)
É dessa forma que, no confronto de consciências das personagens de A hora da Estrela, focaremos a relação dialógica entre Macabéa, Olímpico e o narrador e autor
Rodrigo S.M., fundamentados nas concepções bakhitinianas.
2.1. Rodrigo S. M. – autor / narrador – e Macabéa
O entrecruzamento entre o narrador e autor Rodrigo S. M. e Macabéa far-se-á
por diferentes formas de discurso (interior, entrecortado, indireto, indireto livre, ausente,
não-fala, etc.), concretiza o silêncio-textual nesse espaço de fronteira entre o eu e o
outro, cada qual irredutível, na sua singularidade, ao discurso de outrem, marcando,
inevitavelmente, a diferença do lugar de onde falam.
30
[...] o autor criador e as personagens ocupam no texto planos diferentes
porque suas posições em relação aos acontecimentos são diferentes.
Consequentemente, a posição única de um revela uma capacidade
igualmente única de resposta: desse lugar somente um (autor ou
personagem), se dirige ao mundo, por que cada fragmento do espaço
só pode ser ocupado por uma pessoa (BAKHITIN, 1999ª citado por
MACHADO, 1995, p. 38)
Segundo Machado, na concepção bakhtiniana, há uma relatividade na
percepção única, pois entre a mente que percebe e a coisa percebida, há uma
diversidade de focalizações, ou seja, o olhar que o indivíduo dirige ao mundo cria uma
multiplicidade de percepções. Nesta acepção, um objeto ou evento pode ter múltiplos e
simultâneos destaques, considerando-se os possíveis ângulos que nele incidem.
A percepção humana é, desta forma, comandada pela lei do posicionamento que
determina o prisma do campo visual de focalização. De outra maneira, a lei do
posicionamento se edifica a partir de um princípio físico elementar: “O que vemos é
governado pelo modo como vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos.”
(idem, ibidem, p. 37)
Nessa perspectiva, embora haja uma pseudo-identificação de Macabéa e
Rodrigo S. M., uma vez que, para falar sobre a personagem, o narrador deverá negar-
se como intelectual e igualar-se a ela. É assim que, ao tecer ponderações acerca da
insignificância de Macabéa, o narrador, numa espécie de monólogo interior, se vê
igualmente insignificante: “Mas a pessoa de quem falarei [...] é inócua, não faz falta a
ninguém. Aliás – descubro agora – também eu não faço a menor falta. E até o que
escrevo um outro escreveria”. (HE, p.14)
Todavia, o olhar que dele advém põe em relevo sua postura de escritor. O
Narrador fala sobre alguém, ao direcionar seu discurso utilizando-se do verbo no futuro,
e nos revela no presente ficcional a inexistência da personagem. Coloca-se, portanto,
como criador diante da futura criatura. Neste momento, a criatura encontra-se, porém,
no mundo das ideias, é ideia, é silêncio prestes a significar. De acordo com Bakhtin
31
É no ponto destes contatos entre vozes-consciências que nasce e vive
a idéia. [...] a idéia é interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua
existência é a comunicação dialogada entre consciência. A idéia é um
acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre
duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao
discurso com o qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a
idéia quer ser ouvida, estendida e ‘respondida’, por outras vozes e de
outras posições. Como o discurso, a idéia é por natureza dialógica.
(BAKHTIN, 1999 a, p. 86-87)
O fato de se posicionarem em planos diferenciados determina um confronto entre
a consciência do autor Rodrigo e da personagem Macabéa que, mesmo sem palavras,
acaba por exigir um posicionamento autoral.
O que escrevo é mais do que invenção é minha obrigação contar sobre essa
moça entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de
revelar-lhe a vida. [...] é preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me
acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. Escrevo em traços vivos e
ríspidos de pintura. (HE, p. 13 e 17; grifos nossos)
Rodrigo S. M. deixa clara a luta do autor-ficcional ao trazer para a escritura os
vestígios de sua consciência, “Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na
certa de algum modo escrito em mim.” (HE, p. 17)
Essas marcas, mais que sobrelevar a peculiaridade de sua criatura silenciosa,
como a pintura aberta às possibilidades do significar, apresenta-nos o embate do autor
com o papel do escritor na sociedade que o marginaliza. “Que mais? Sim, não tenho
classe social, marginalizado que sou”. (HE, p. 17) Rodrigo e Macabéa são ao mesmo
tempo um e outro; unidos, paradoxalmente, nesse intervalo silencioso que marca a
diferença entre ambos.
Notem que esse fenômeno embora, de certa forma, iguale as duas personagens,
colocando-as num mesmo patamar do complexo social (dos marginalizados), na
verdade, traz à tona a reverberação de diferentes vozes sociais: do Narrador como
representante da intelectualidade e de Macabéa símbolo dos não intelectualizados, ou
32
melhor, dos semi-analfabetos. Nesse “jogo discursivo” ambos ocupam, conforme já foi
dito, espaços diferentes na narrativa.
Dessa forma, o Narrador não conhece em totalidade sua criatura. Isso provoca
no texto clariceano o surgimento de lacunas, espaços vazios que, conforme Iser (1979)
são preenchidos pela imaginação do leitor.
A função do vazio consiste em provocar no leitor operações estruturadas. Sua
realização transmite à consciência a interação recíproca das posições textuais.
A mudança de lugar do vazio é responsável por uma seqüência de imagens
conflitantes, que mutuamente se condicionam no fluxo temporal da leitura. A
imagem afastada se imprime na que lhe sucede, mesmo se supomos que esta
resolve as deficiências da anterior. Neste sentido, as imagens permanecem
unidas em uma seqüência e é por esta seqüência que o significado do texto se
torna vivo na consciência imaginante do leitor. (p.132)
É evidente que em A Hora da Estrela o significado do silêncio que se configura
por meio dos espaços vazios não ocorre somente devido ao diferente posicionamento
de Rodrigo S. M. e Macabéa, mas também se deixa notar pela própria estrutura do
texto, cuja fragmentação estimula a participação imaginativa do leitor. Portanto ao
deparar-se com procedimentos estéticos como:
- frases interrompidas: “O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus, [...] mas não
pensara em Deus nenhum, era apenas um modo de [...].” (HE, p. 55); “Ah, é mesmo...
que coisa...”. (HE, p. 57)
- travessões no interior das construções frasais: “Ela sabia o que era o desejo – embora
não soubesse que sabia.” (HE, p. 45); “Então – ali deitada – teve uma úmida felicidade
suprema, pois ela nascera para o abraço da morte”. (HE, p. 84)
- rompimento discursivo/mudança de assunto com a utilização de parênteses.
A nordestina não acreditava na morte, como eu já disse, pensava que não –
pois não é que estava viva? esquecera os nomes da mãe e do pai, nunca
mencionados pela tia. (Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra
escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e
cair no abismo povoado de gritos: o inferno da liberdade. Mas continuarei). (HE,
p. 37)
33
O leitor penetra nesses lugares vazios buscando dar-lhe um significado e nessa
perspectiva, faz as vezes de coautor do texto em construção.
Assim o vazio possibilita a participação do leitor na realização do texto. Do
ponto de vista desta estrutura, participação não significa que o leitor seja levado
a internalizar as posições manifestadas do texto, mas sim que ele é induzido a
fazê-la agir. Estas operações se desenrolam controladamente, pois limitam a
atividade do leitor à coordenação, à mudança de perspectiva e ao
esclarecimento recíproco dos pontos de vistas relacionados. À medida que o
vazio possibilita estas operações, torna-se clara a ligação fundamental entre
estrutura e sujeito. (ISER, 1979, p. 131)
Retomando a questão do dialogismo, observamos em certos momentos a
reverberação da voz de Macabéa no discurso do narrador.
Mas voltemos ao hoje. Por que, como se sabe, hoje é hoje. Não estão me
entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e
ríspidos de velhos. E ouço passos cadenciados na rua. Tenho um arrepio de
medo. (HE, p. 20)
Sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. [...] sou um desesperado
e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser [...]. Experimentei quase
tudo, inclusive a paixão e seu desespero. E agora só queria ter o que eu tivesse
sido e não fui. (HE, p. 21)
Se atentarmos para o primeiro excerto, veremos que, embora nos dê a
impressão de ser uma reflexão própria da personagem Macabéa, dela emerge um
discurso em que a transmissão da palavra interior se realiza fora do discurso
pronunciado pela personagem. Esse é o discurso indireto livre no qual a palavra do
narrador está ao lado da de Macabéa, sem oprimi-la, de modo que é perceptível o
duplo acento que as diferencia. A personagem e/ou narrador e/ou autor estão diante do
presente do relato e se vêem incompreendidos. A apreensão da própria realidade é tão
intensa que lhes possibilita “ouvir escuro”, ir além da palavra, alcançar por meio da
enunciação o não-dito, o silêncio. Nesse sentido, Macabéa, conforme Machado (1995,
34
p. 109), “[...] não é um ser mudo privado da palavra, mas, ao contrário, é um ser cheio
de palavras interiores. Toda sua atividade mental é mediatizada pelo discurso interior e
é por aí que se opera a junção do apreendido do exterior”.
Já no segundo fragmento depreendem-se do discurso interior do narrador duas
entonações que se mesclam e se confundem: a primeira vincula-se ao próprio Rodrigo
que ao aproximar sua condição de escritor à vida precária de sua criatura, sente-se
excluído “A classe alta me tem como monstro esquisito, a média com desconfiança de
que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim”.(HE, p. 19); a segunda,
trata-se da ponderação indireta da protagonista sobre sua posição no contexto social.
Julgamento que se dá pelo discurso indireto livre que, de acordo com Bakhtin, “[...]
constitui uma forma direta de representação da apreensão do discurso de outrem, do
vivido efeito produzido por este”. (1999b, p. 182)
Observem que a visão de ambos é similar no que tange a seus lugares na
sociedade. Daí o desejo de atingir o inatingível: ter o que não foi. Esse inatingível, a
nosso ver, é a instância do silêncio em que as consciências se sobrepõem no “jogo
discursivo” de A Hora da Estrela. Silêncio que não é fusão, mas representação da
palavra interior desses personagens, ou seja, de suas ideologias, cada uma ocupando
um lugar determinado na tessitura narrativa.
Ainda em relação aos dois fragmentos, podemos detectar duas manifestações
discursivas. Em um primeiro momento é evidente o ressoar da voz de Rodrigo S. M.
que – altiva – convida o leitor a voltar ao presente, instante em que ele (o leitor) depara-
se com a “fala” de Macabéa. Num segundo, a expressão de um é simultaneamente a
expressão do outro, “sobrei”. Podemos, portanto, individualizar a representação das
vozes de ambos num mesmo espaço discursivo. Esse evento, no qual ocorre a
presença marcante de diferentes vozes num mesmo enunciado, é o que Bakhtin
denomina dialogismo. Dessa forma, segundo o autor, “Cada manifestação discursiva é
plena de ecos e ressonâncias de outros discursos com os quais está ligada pela
identidade da esfera de comunicação discursiva”. (2000, p. 297)
Logo, sendo a palavra (discurso interior) uma manifestação ideológica por
excelência, traz em si, as marcas histórico-sociais de cada época. Decorre daí que no
35
discurso de Rodrigo/Macabéa estão os estigmas das vozes que os antecederam e do
contexto em que vivem (presente).
É o conhecimento desse contexto que permite ao narrador falar sobre a
realidade da personagem.
Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era
crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara a chorar.
Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos.
Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por
causa da vida que levava: porque não tendo conhecido outros modos de viver,
aceitara que com ela era “assim”. Mas também creio que chorava porque,
através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia
existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma. Muitas coisas
sabia que não sabia entender. (HE, p. 51; grifos nossos)
Nesse relato, em que sobressai o desconhecimento de Macabéa sobre si,
Rodrigo S. M. utiliza a própria fala da personagem para confirmar seu pensamento “ [...]
com ela era assim”. Com isso, mais que revelar o comodismo da moça, o Narrador nos
leva a perceber que a aceitação dos fatos ou o silenciamento de Macabéa é o modo
que a pessoa encontrou para resistir às suas interferências e aos obstáculos que a
sociedade lhe impõe, pois tal postura provoca o embate das consciências
Criador/Criatura, uma vez que a segunda não se revela por completo. Permanece,
todavia, um enigma, um mistério a ser revelado. “Teria ela a sensação de que vivia para
o nada. Nem posso saber, mas acho que não”. (HE, p.18)
Observem que em seu discurso Rodrigo S. M. não tem certeza daquilo que
verdadeiramente ocorre no interior de Macabéa ou macabéas: “como a nordestina, há
milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de
balcões trabalhando até a estafa.” (HE, p. 14) Assim, a nosso ver, a lacuna que se
origina do embate Criador/Criatura é o silêncio como sinônimo de resistência, aquele no
qual reverberam as vozes dos marginalizados, caracterizando-se, portanto, como
silêncio social.
É desse modo que entendemos o viver impessoal de Macabéa, “sem alcançar o
pior nem o melhor”, viver à toa, sem indagar-se, pois “quem se indaga é incompleto”.
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Nessa perspectiva, o silêncio se nos apresenta como nulidade do ser: “Ela somente
vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais que
isso? O seu viver é ralo.” (HE, p. 23)
É interessante notar que, se somente quem indaga é incompleto, ao nos revelar
que Macabéa não questiona, mais do que mostrar seu conformismo, indiretamente, o
autor coloca a nossa frente um ser acabado. Ficamos, pois, diante de uma antítese:
acabamento X incompletude. O que vemos nos leva a inferir que, o silêncio abarca as
duas dimensões.
Observemos os fragmentos abaixo:
Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir
vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia
estatelada e em cheio no chão. É que “quem sou eu?” provoca necessidade.
[...] quem se indaga é incompleto. (HE, p. 15)
Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de
perguntar? E receber um “não” na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas
para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia
perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter
respondido: é assim porque é assim. (HE, p. 26)
Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe
que é um cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver.
Não sabia para quê, não se indagava. [...] Ela pensava que a pessoa era
obrigada a ser feliz. Então era. [...] Vagamente pensava de muito longe e sem
palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser. (HE, p.33)
O conformismo de ser porque tem que ser coloca Macabéa, de certa forma, num
espaço-silêncio determinado, ou seja, fechado. Fechamento que não ocorre ao acaso,
uma vez que se atentarmos para a realidade, ou melhor, o contexto de onde veio e
onde vive a personagem, diríamos que é o próprio contexto que a silencia. De outro
modo, ao se forjar nesse meio, a personagem é “obrigada” a calar-se, fechando-se em
si. Sua existência é aquilo que a sociedade lhe impõe. Disso decorre que o contexto
funciona como uma espécie de censura que, de acordo com Orlandi (1995, p. 81)
37
[...] é a interdição manifesta da circulação do sujeito, pela decisão de um poder
de palavra fortemente regulado. [...] não há reversibilidade possível no discurso,
isto é, o sujeito não pode ocupar diferentes posições: ele só pode ocupar o
“lugar” que lhe é destinado, [...]. A censura afeta, de imediato, a identidade do
sujeito.
No entanto, embora tal interdição aparentemente coloque Macabéa numa
“moldura ideológica” é sabido que ela permanece incompleta, pois na consciência
silenciosa da protagonista ressoam infinitas vozes que, conforme Orlandi (1995)
possibilita o movimento dos sentidos, das significações que se amplia em cada leitura.
Nessa perspectiva, ocorre um apagamento necessário para que o sujeito se constitua,
isto é, se complete. Isso que em Macabéa nos parece alienação. “Tornara-se com o
tempo apenas matéria vivente em sua forma primária. Talvez fosse assim, para se
defender da grande tentação de ser infeliz [...]. Existia. Só isto.” (HE, p. 38-39), é, na
verdade, um modo que encontra para manter-se viva.
Assim, o que foi silenciado encontra um meio de significar, pois “o antes, o
estado anterior não é o ‘nada’ mas ainda o silêncio enquanto horizonte de sentidos. O
silêncio é contínuo e há sempre ainda sentidos a dizer.” (ORLANDI, 1995, p. 73)
Aí está a sua faceta de resistência social “[...] sem privilegiar um ‘eu’ [fala] na
perspectiva de todos os ‘eus’. [...] A identidade fica mais definida e mais presente: por
este silêncio todos falam, cada um se diz”. (idem, ibidem, p. 86-87)
O silenciamento de Macabéa representa, desse modo, a luta do povo sofrido,
buscando sobreviver como pode. “E da cabeça um fio de sangue inesperadamente
vermelho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente
raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito.” (HE, 1998, p. 80)
Enquanto isso não ocorre, Macabéas silenciam como “inocência pisada, de uma miséria
anônima...”5
O anonimato funciona, nessa instância, como o silêncio de quem não tem voz
nem vez. É o silêncio forçado do marginalizado.
5 Entrevista de Clarice Lispector concedida em fevereiro de 1977 ao repórter Júlio Lemer para a TV Cultura, de São Paulo.
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Nem se dava conta que vivia numa sociedade técnica onde ela era o parafuso
dispensável. [...] Ela falava sim, mas era extremamente muda. Uma palavra
dela às vezes eu consigo, mas ela me foge por entre os dedos. (HE, p. 29-30)
É interessante perceber que nos fluxos de consciência de Rodrigo S. M.
reverberam diferentes vozes sociais. No fragmento acima, soam aos nossos ouvidos
vozes do escritor e do narrador, dotados de uma visão crítica mais aguçada, bem como
a voz submissa de sua criatura. Discorrendo sobre essa questão, Bakhtin afirma que, o
caráter social da vida humana que se dá pela linguagem é determinado pela
compreensão de que a existência preenche o lugar na fronteira do “eu” com o “outro”.
[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas
relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da
vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a
partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as
relações sociais em todos os domínios. (1999b, p. 41)
Portanto, mais do que edificar um enredo de caráter monológico, Rodrigo S. M.
constrói em A Hora da Estrela uma narrativa que se alicerça no confronto entre os
sujeitos, isto é, no choque entre as diferentes vozes. Logo, a aparente identificação da
história da protagonista com a do autor-narrador revela, na verdade, uma realidade
ambivalente, na qual criador e criatura se entrechocam de modo que o primeiro se
converte no centro da narrativa e Macabéa só terá seu lugar de estrela no momento da
morte.
[...] Macabéa morreu. Vencera o príncipe das trevas. Enfim a coroação. [...] Ela
estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante,
passa logo, eu sei por que acabo de morrer com a moça. [...] Viver é luxo. (HE,
p. 85-86)
As expressões de Macabéa (É?.., pois é...; me acho um pouco..., etc.) que
afloram no texto clariceano, em sua maioria, monossilábicas, refletem na desenvoltura
do enredo o cruzamento da influente voz do narrador que consegue sistematizar num
mesmo discurso a realidade obscura do seu mundo e do mundo de sua criatura. Assim,
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no grande universo narrativo de A Hora da Estrela seu discurso impregna-se do
discurso da protagonista, pois com ela Rodrigo S. M. dá seu grito ao mundo e,
inversamente, num “jogo dialógico”, o grito sufocado da protagonista se faz ouvir no
silenciar da narrativa.
É o oco, a zona fronteiriça entre Rodrigo/Macabéa na qual, as diferenças se
calam, silenciam:
Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto me
incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar
copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me
recompensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça.
Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente.
(HE, p. 26)
Nesse ponto em que ocorre o confronto consciencial entre as personagens fica
uma lacuna que, a nosso ver, é o silêncio como resistência tanto de Maca como de
Rodrigo S. M.; silêncio que implica o posicionamento de ambos no contexto que os
envolve. Vale lembrar que para concretizar a zona de silêncio entre o Narrador e
Macabéa, Lispector utiliza discurso indireto livre, que traz as marcas das ideologias
vinculadas às realidades das personagens.
2.2. Rodrigo S. M. – autor / narrador e Olímpico
Lançando nosso olhar sobre Olímpico e Rodrigo S. M., notamos que a
qualificação que é conferida ao primeiro, já o difere do segundo. “O rapaz e ela se
olharam [...], bichos da mesma espécie que se farejam”. (HE, p. 43)
Designado de antemão como um bicho, animal inconsciente e irracional,
Olímpico é o oposto de Rodrigo S. M. que, por sua vez, é consciente e inteligente. A
apreciação do narrador é direta, não há uma reflexão antecedente, simplesmente olha a
personagem e emite sua visão sobre ela.
Essa postura deixa sobressair a ideia de ser o rapaz algo exterior ao narrador, ou
seja, Olímpico não é sua criatura e sim um ser que já existia. No decorrer dos encontros
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de Olímpico com Macabéa, essa concepção vai se confirmando.
Ao se referir à profissão do rapaz, por exemplo:
O trabalho consistia em pegar barras de metal que vinham deslizando de cima
da máquina para colocá-las embaixo, sobre uma placa deslizante. Nunca se
perguntara por que colocava a barra embaixo. (HE, p. 45)
Mais uma vez, Rodrigo S. M. se coloca como um observador que contempla de
fora seu objeto. Com tal olhar atento, o vê como um ser alienado cujas ações são
automáticas, pois o rapaz não questiona os porquês das coisas.
Indo adiante, ressaltamos que, não obstante a alienação, Olímpico, de acordo
com as descrições do narrador, é um ser que possui consciência e sabe aonde quer
chegar, pois é um homem que tem caprichos, que desfruta de posição social, que
reconhece sua inteligência, que possui objetivos claros.
No nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e
trocá-lo por um dente de ouro faiscante. Este dente lhe dava posição na vida.
Aliás, matar tinha feito dele homem com letra maiúscula. Olímpico não tinha
vergonha, era o que se chamava no nordeste de “cabra safado”. Mas não sabia
que era um artista. [...] Ele dizia alto e sozinho: - Sou muito inteligente, ainda
vou ser deputado. (HE, p. 46)
Notamos que o rapaz tem um posicionamento sobre si mesmo, o que o leva a
julgar-se como “peça-chave, dessas que abrem qualquer porta.” (HE, p. 46) Com esse
posicionamento autossuficiente, Olímpico não dá espaço para que “o outro” o penetre e
o construa. Encara-se como responsável por sua própria edificação, ou seja, ao
contrário das personagens autoconscientes que, conforme Bakhtin (1999) são
inacabadas, isto é, estão abertas às inúmeras possibilidades, Olímpico é uma
personagem “estereotipada”, exteriorizada. Logo, é construída ou vista a partir de uma
tipologia regional.
Disso decorre que os fluxos conscienciais do narrador partem daquilo que
Olímpico é em si mesmo, “quanto a mim de tanto me chamarem, eu virei eu. No sertão
da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico.” (HE, p. 49) “[...] agora vi tudo: ele
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não era inocente coisa alguma, [...] tinha dentro de si a dura semente do mal, gostava
de vingar-se, este era seu grande prazer e o que lhe dava força e vida”. (HE, p. 47)
Como se vê, Olímpico já tinha vida própria, logo, cabe a Rodrigo somente apresentá-lo.
Assim, diante da conclusão a que chegara, o Narrador vai mostrando Olímpico
como ser que se sobrepõe a Macabéa. É evidente que nas divagações sobre o rapaz
sobrelevam as qualificações negativas
[...] ele era um verdadeiro técnico em roubar, nojento, crestado e duro,
assassino, macho de briga. Tinha como única fraqueza o sentimentalismo
diante dos enterros, cujo cerimonial provocava-lhe o choro. (HE, p.50)
Mesmo com tais qualificativos, nos fluxos conscienciais de Rodrigo S. M.,
Olímpico se autoconstrói como pessoa. Se assim considerarmos, Olímpico é um ser
que “se faz ouvir” uma vez que é notado, a própria imagem do rapaz dissipa o silêncio
no seu entorno. Ou ainda, atentando-nos para sua história, observamos ainda que sua
maneira de ser é, também, responsável pela produção de silêncio ao qual Macabéa e
Glória são submetidas, pois “o galinho de briga”, conforme Rodrigo S. M., também se
impõe a elas.
Ele, para impressionar Glória e cantar logo de galo, comprou pimenta
malagueta das brabas na feira dos nordestinos e para mostrar à nova
namorada o durão que era mastigou em plena polpa a fruta do diabo. Nem se
quer tomou um copo de água para apagar o fogo nas entranhas. O ardor quase
intolerável, no entanto o enrijeceu, sem contar que Glória assustada passou a
obedecê-lo. (HE, p. 65)
Percebemos diante dessa consideração que não só o modo de ser, mas também
as atitudes de Olímpico corroboram para o silêncio que se apresenta como resistência à
opressão que dissemina.
Já em se tratando da zona silenciosa entre o Narrador e Olímpico, podemos
notá-la a partir do próprio estereótipo do nordestino que, uma vez “acabado”, possui
uma consciência que se molda a partir de uma realidade específica (a do nordeste).
Esse fator confronta-se com a concepção do Narrador em relação ao moço e a seu
42
modo de ser. Nesse sentido, a visão de Olímpico sobre si mesmo “- Sou muito
inteligente...” contraria a do narrador que o vê como um animal. Estas posturas geram
lacunas, vazios, confrontos entre consciências geradores do silêncio, pois para S. M.
“[...] Olímpico tinha o gosto que se sente quando se fuma um cigarro acendendo-o do
lado errado, na ponta da cortiça.” (HE, p. 45)
Deste modo, “jogando” com a força bruta de Olímpico; “[...] tinha uma grandeza
demoníaca: sua força sangrava” (HE, p. 45), Rodrigo S. M. trava seu embate tentando
descobrir os mistérios de seu “opositor”.
Ele tinha fome de ser outro. No mundo de glória, ele ia se locupletar, o frágil
machinho. Deixaria de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo,
por vergonha de tal fraqueza: é que desde menino na verdade não passava de
um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O sertanejo é antes
de tudo um paciente. Eu o perdôo. (HE, 1999, p. 65)
Temos a nossa frente, portanto, uma personagem com a qual o autor e o
narrador Rodrigo não cria elos, como faz com Macabéa, sua criatura, com a qual
mantém parceria e duplicidade.
2.3. Macabéa/Narrador/Olímpico
Com Rodrigo S. M. trafegamos por caminhos que evidenciaram algumas das
particularizações de Macabéa e Olímpico, revelando diferenças que os aproximam e os
distanciam, como também, seu posicionamento em relação ao casal.
Notamos que, ao achegar-se a ambos, o narrador os coloca na condição de
animais guiados pelo instinto, atraindo-se pelo cheiro. “O rapaz e ela se olharam por
entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie
que se farejam”. (HE, p. 43)
Este ato, próprio do instinto animal, caracteriza a não-consciência dos futuros
“namorados”. A partir desta concepção é que se estabelece o confronto de
consciências e inconsciências que se arroja à medida que Rodrigo S. M. penetra no
universo do casal.
43
Dessa forma, observando de fora a “relação” que começa a nascer; “[...] no final
da tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou (explosão) a
primeira espécie de namorado de sua vida...” (HE, p. 43), percebemos nos “diálogos”
que seguem a manifestação do silêncio que os envolve, assim como, a diferente tônica
que este silêncio adquire quando confrontado com os fluxos conscienciais do narrador.
No primeiro caso, a concreção do silêncio se dá pelas quebras das falas ou suas
exposições sem sustentação que dão forma ao vazio/insignificância de Macabéa e
Olímpico.
Ele: - Pois é.
Ela: - Pois é o quê?
Ele: - Eu só disse pois é!
Ela: - Mas “pois é” o quê?
Ele: - Melhor mudar de conversa por que você não me entende. (HE, p. 48)
Ele: Pare de falar porque você só diz besteira. Diga o que é do seu agrado.
Ela: - Acho que não sei dizer.
Ele: - Não sabe o quê?
Ela: - Hein?
Ele: - Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada, está
bem?
Ela: - Sim, está bem, como você quiser. (HE, p.48)
Se atentarmos para o entrecho que antecede os fragmentos: “e ali acomodados,
nada os distinguia do resto do nada” (HE, p. 47), veremos que simplesmente
concretizam o silêncio que é “concebido” no fluxo consciencial de Rodrigo S. M., como
nada, como nulidade, como vazio. São nada diante do nada, cria-se, portanto, um
vácuo, uma zona silenciada entre Macabéa/Narrador/Olímpico pelo não-dizer, do não-
sentido de suas falas e a consciência do narrador em relação às limitações das
personagens. É o silêncio forjado pelo embate de consciência versus não-consciência.
Observamos, ainda, que há um espaço vazio entre as palavras expressas e o
que deveria ser dito. Portanto, a linguagem por eles articulada não atinge sua
finalidade, ou seja, não comunica. É uma linguagem silenciada pelos próprios
44
protagonistas da fala, é o reflexo daquilo que são.
Em se tratando do texto, o espaço vazio (que se vivifica na linguagem expressa
pelas personagens) se estende ao narrador/leitor que busca resgatar o que está nas
entrelinhas, visando a compreender o significado em suspense, aquele que, a nosso
ver, centra-se na “simplicidade orgânica” de Macabéa e Olímpico, seres silenciados
pelo próprio âmbito no qual situam e que se deixam entrever na simplicidade de seus
discursos. Tal finalidade, no entanto, será sempre frustrada, pois, conforme Iser, os
espaços vazios não possuem um conteúdo específico, e “tampouco podem ser
descritos, uma vez que, sendo ‘pausas do texto’, nada são; desse ‘nada.” (1979, p. 144)
Nos exemplos citados, essas pausas textuais são concretizadas no momento em
que o casal emite frases e expressões inconclusas (Pois é..., hein?...) e em outras
circunstâncias apresentam-se ao longo da narrativa sob a forma de pontuações
(travessões, reticências, ponto final) que possibilitam a interação com o leitor. Iser ainda
nos diz que: “Tais vazios [pausas textuais] provocam o leitor a produzir a própria
vivacidade da estória narrada; ele começa a viver com as personagens e a participar de
suas experiências.” (idem, ibidem, p. 117)
Macabéa e Olímpico apresentam um movimento duplo: por um lado a
protagonista é silenciada à medida que o rapaz se sobrepõe; por outro, ela o silencia,
embora Olímpico não seja capaz de responder aos questionamentos que lhe faz.
– Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você
pergunta não tem resposta?
Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste.
(HE, p.49)
– Nessa rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras difíceis, por
exemplo: o que quer dizer “eletrônico”?
Silêncio.
Eu sei, mas não quero dizer.
– O que quer dizer cultura?
– Cultura é cultura, continuou ele emburrado.
– O que quer dizer “renda per capita”; [...] rua Conde de Bonfim? O que é
conde? É príncipe?
– Conde é conde, ora essa. Eu não preciso de hora certa por que tenho relógio.
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Não contou que o roubara no mictório da fábrica: o colega o tinha deixado na
pia quando lavara as mãos. (HE, p. 50)
A partir desses fragmentos do texto, podemos observar que o silêncio da
protagonista é consequência da repressão vinculada ao desconhecimento, daí o
abaixar a cabeça; já o de Olímpico se funda somente na ignorância daquele que ou se
cala ou emite respostas que nada dizem.
Inferimos, portanto, que por trás da fala/silêncio que se engendra a partir do
contato de Macabéa com Olímpico está o narrador que frente à protagonista toma uma
postura de envolvimento e parceria; já em relação ao rapaz, assume um caráter de
indignação, que culmina com um drástico julgamento: “ninguém soube, ele era um
verdadeiro técnico em roubar”. (HE, p. 50)
No entanto, o fato de Rodrigo S. M. mostrar-se “complacente” com sua criatura e
“rigoroso” com o rapaz não significa a ausência do confronto de consciências:
Criador/Criatura.
Nada contou a Glória porque de um modo geral mentia: tinha vergonha da
verdade. A mentira era tão mais decente. Achava que boa educação é saber
mentir. (HE, p. 69)
Pensou vagamente enquanto tocava a companhia da porta: capim é tão fácil e
simples. Tinha pensamentos gratuitos e soltos porque embora à toa possuía
muita liberdade interior. (HE, p. 72)
Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. (HE, p. 80)
Colocando-nos diante dos trechos acima relacionados, observamos deles
sobressair a imagem de Macabéa como um ser em busca da autoconsciência. Assim,
pelo discurso indireto livre do narrador ressoa forte o pensamento de Macabéa,
estabelecendo o confronto de consciências devido às diferentes posições que ocupa na
narrativa.
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Como manifestação típica da escritura, o discurso indireto livre inexiste na fala,
mas não deixa de ser inspirado por ela. Trata-se de uma forma exclusiva que a
escrita elaborou para citar a voz, que se manifesta pelo jogo de manifestações
expressivas. O discurso indireto livre supera a capacidade cênica do discurso
direto, que é entrecortado pelas observações do autor. A palavra exibe sua
dupla orientação: é voz do personagem e escritura do autor. (BAKHTIN, 1999ª
citado por MACHADO, 1995, p. 129)
Mais adiante, ao deparar-se com o choro de Macabéa, no momento em que
ouve, “Una Furtiva Lacrima” (HE, p. 51), Rodrigo S. M. além de nos apresentar a “não-
consciência” da personagem perante a vida, tenta apreender e compreender o que está
latente na reação de sua criatura. Neste momento, o narrador parece penetrar no
âmago da protagonista e, diante de seus mistérios, toma a palavra e emite seu
pensamento sobre a possibilidade de a música suscitar algo nela. Esta conduta nos
projeta ao silêncio como resistência, aquele que leva o autor-ficcional a defrontar-se
continuamente com sua criatura num “jogo dialógico” no qual as vozes se confundem e
se diferenciam. Ainda, o posicionamento de S. M. expressa de certa forma, sua
preocupação mediante o vazio que se avulta também, quando em seus fluxos
conscienciais surge a comparação entre as personagens, Macabéa e Olímpico.
Vejamos
Ele falava coisas grandes, mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes
como ela própria. [...] Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas. Ele dizia o
que ela nunca tinha ouvido. (HE, p. 52).
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava. Mas Olímpico não
só pensava como usava palavreado fino. Nunca esqueceria que no primeiro
encontro ele a chamara de “senhorinha”, ele fizera dela um alguém. [...] O seu
diálogo era sempre oco. Dava-se conta longinquamente de que nunca dissera
uma palavra verdadeira. (HE, p. 54)
Ainda dos fragmentos sobreleva a ideia da inferioridade de Macabéa em relação
a Olímpico. Aqui, de certa forma, o narrador obriga-nos a enxergar as limitações de sua
criatura, seu oco existencial que sobressai até na fala.
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Salientamos algumas considerações de Rodrigo S. M.
(Mas eu? Eu que estou contando esta história [...]. Fico abismado por saber
tanto a verdade. Será que o meu oficio doloroso é o de adivinhar na carne a
verdade que ninguém quer enxergar? Se sei quase tudo de Macabéa é que já
peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance
me deu ela de corpo inteiro. Quanto ao paraibano, na certa devo ter-lhe
fotografado mentalmente a cara – e quando se presta atenção espontânea e
virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo). (HE,
55) E agora apago-me de novo e volto para essas duas pessoas que por força
das circunstâncias eram seres meio abstratos. (HE, p. 57)
A nosso ver, tal consideração é um dos pontos relevantes da relação entre as
três personagens. Ao colocar-se como escritor que sofre ao adivinhar na carne
verdades que ninguém quer enxergar e, que num relance, obteve Maca de corpo
inteiro, na verdade, ele toma para si as dores e a vida de sua criatura.
Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um prato de sopa
quente, um beijo na testa enquanto a cobria com um cobertor. E fazer que
quando ela acordasse encontrasse simplesmente o grande fluxo de viver. (HE,
p. 59)
É justamente por intermédio da protagonista que o autor ficcional desenha um
autorretrato de si, como se fossem dobras de uma escrita de diferentes eus que se
entrecruzam no espaço escritural: Clarice Lispector, Rodrigo S. M. e Macabéa. Entre
eles, uma zona intervalar e silenciosa, que demarca, como num jogo entre luz e
sombra, aquilo que os une e os separa, alternadamente.
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CAPÍTULO III
3. O LIVRO E A AUSÊNCIA DO LIVRO
3.1. Clarice Lispector: escritura silenciosa
Ainda que o silêncio seja um evento não-observável, podemos percebê-lo, ou
melhor, vislumbrá-lo em todo e qualquer discurso por meio de suas rupturas e de suas
falhas. Ele é, conforme nos diz Orlandi (1995) a respiração da significação e a
linguagem é, por sua vez, o veículo por meio do qual as palavras passam ao silêncio e
do silêncio às palavras. Nesse continuum, o silêncio é o sentido que transpõe a
linguagem e “atravessando” as conversações/diálogos sensibiliza o sujeito do discurso.
É um vazio factual e intrínseco, indefinível, sentido apenas.
O que aqui propomos é trazer à tona as concepções sobre a significação do
silêncio para Clarice Lispector, uma vez que é presença marcante em sua obra. Silêncio
que se constrói pela antítese, o ruído de opostos que se complementam: “Nenhum som
teme o silêncio que o extingue e não há silêncio que não esteja grávido de som.”
(CAGE, 1985, p. 98)
Essa proposta centra-se, portanto, no desejo de extrairmos, a partir dos diversos
textos de Lispector (entrevistas, cartas, livros), o modo como a autora vê o silêncio. A
partir daí, confrontarmos a visão global do silêncio lispectoriano com a visão específica
que advém de A Hora da Estrela. Com isso, longe de fugirmos do nosso objeto de
análise, queremos ampliar nossos horizontes para melhor apreendermos e
aprofundarmos essa questão.
Na literatura clariceana, o silêncio é um recurso estilístico pela autora bastante
explorado. Sobre ele nos debruçamos, buscando penetrar nos vazios do “não-dizer”,
atentos à invocação da autora: "Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o
que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu
mesma não posso.” (AV, 2003, p. 40)
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Clarice incita a penetrar na ambiguidade de sua fala e, com ela e para ela,
descortinar a essência de sua escritura que se faz no silêncio/palavra. Ao nos convidar
a escutar o silêncio, a autora propõe ir além da fala, ou seja, do audível para captar a
essência da significação. Nesse sentido, o silêncio clariceano é, conforme Orlandi, “um
lugar de recuo necessário [...] para que o sentido faça sentido. Reduto do possível, do
múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é ‘um’, para o que permite o movimento
do sujeito”. (1995, p. 13)
Para Clarice, o silêncio tem o mesmo valor que a palavra e se configura, de certa
forma, como o fim último da escritura e depois da escritura: o silêncio. No entanto, para
concluir que o silêncio é a expressão máxima do indizível, a autora se utiliza da palavra,
o que é, na verdade, um paradoxo.
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma
linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A
realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e
como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não
conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço
humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos
vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do
fracasso da minha linguagem. [...] só quando falha a construção, é que obtenho
o que ela não conseguiu. (PSGH, 1990, p. 180)
Aprofundando-nos nesse pensamento lispectoriano, percebemos que o silêncio
forja-se no próprio transitar das palavras, ou seja, no “jogo” em que os opostos se
confrontam gerando o voltar com as mãos vazias, com o indizível, com a linguagem
silenciada.
Nessa perspectiva, o silêncio clariceano se nos apresenta como incompletude da
linguagem, uma vez que o silêncio diz o que a linguagem não pode dizer, ou melhor,
significa o que não foi enunciado. Disso decorre que o silêncio trabalha “nos limites do
dizer”, isto é, da linguagem como modo de buscar a realidade. Dessa forma, nas
palavras de Orlandi.
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[...] podemos considerar o silêncio como parte da incompletude que trabalha os
limites das formações discursivas, produzindo tanto a polissemia (o dizer)
quanto o já dito, isto é, o silêncio trabalha nos limites do dizer, o seu horizonte
possível e o seu horizonte realizado. (1995, p. 93)
Adotando como parâmetro as considerações da autora, fica evidente que a
literariedade dos textos clariceanos advém da relação silêncio/incompletude. Logo, o
silêncio forjado por Clarice Lispector em suas obras está repleto de intenções e sendo o
avesso das palavras é, para a autora, a essência da comunicação: “Eu sei criar silêncio.
[...] No silêncio é que mais se ouvem os ruídos. [...] O silêncio não é o vazio, é a
plenitude.” (LISPECTOR citada por MONTEIRO, 2002, p. 58-59)
Portanto, na concepção clariceana, o silêncio é o cerne do diálogo entre os
sujeitos e deve ser “manipulado” com cautela:
Bem tranqüila Lóri, vá bem tranqüila. Mas cuidado. É melhor não falar, não me
dizer. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de
minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o
“próprio silêncio”. (Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, 1998a, p. 71)
O silêncio entre os interlocutores – Ulisses e Lóri – dispensa palavras e vai além.
Ao exprimir a totalidade do ser, revela-se como uma expressão singular da linguagem.
Nessa acepção, como constitutivo da linguagem, o silêncio a transpassa e é
transpassado, constituindo, assim, uma unidade primária e coesa no e do discurso.
Clarice Lispector soube, em seus escritos, explorar essas possibilidades da não-
palavra. Essas palavras “caladas” estão prenhes de significados e são, de acordo com
a própria autora, “o luxo do seu silêncio”. “Minhas desequilibradas palavras são o luxo
de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por
profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do
silêncio.” (HE, p. 25)
Refletindo sobre as considerações de Lispector poder-se-á inferir que o ato de
escrever lhe permite divisar a grandeza do silêncio que, nesse sentido, configura-se
como a “quarta dimensão” da palavra.
51
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel, mas insone; e sem fantasmas.
É terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de
uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma
coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é
ira, ira é a vida. Ou neve. Que é muda, mas deixa rastro - tudo embranquece,
as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a
vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se
fala da neve. Não se pode dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o
silêncio desta noite? Quem ouviu não diz. A noite desce com suas pequenas
alegrias de quem acende lâmpadas com o cansaço que tanto justifica o dia. As
crianças de Berna adormecem, fecham-se as últimas portas. As ruas brilham
nas pedras do chão e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes as mais
distantes. (OLP, 1998a, p. 20)
É interessante perceber como Lispector vai descrevendo o crescimento paulatino
do silêncio que, pouco a pouco, invade a cidade de Berna. É o silêncio que tudo contém
que está ali, aguardando o momento para significar, é o silêncio como possibilidade.
Clarice Lispector nos apresenta duas variações do silêncio: o grande e o pequeno. Na
concepção de Orlandi, o silêncio clariceano não permite que o sujeito diga o que quiser,
mas o que lhe é imposto.
A relação com o dizível é, pois, modificada quando a censura intervém: não se
trata mais do dizível sócio-historicamente definido pelas formações discursivas
(o dizer possível): não se pode dizer o que foi proibido (o dizer devido). Ou seja:
não se pode dizer o que se pode dizer. (1995, p. 70)
Na vertente clariceana, o silêncio fundante (grande) assume o papel de uma das
facetas da política do silêncio (pequeno). No excerto acima, tudo em Berna conflui para
que isso ocorra (idioma, costumes, ausência da família e dos amigos, etc.). Em uma de
suas entrevistas, Clarice assim se pronuncia “Sinto-me só. É como se as pessoas ao se
aproximarem de mim [...] me negassem uma comunicação, impedindo-me de retribuir.”
(LISPECTOR, 2007, p.14)
No entanto, a escritora reconhece a possibilidade de se acercar do pequeno
silêncio, pois fomos feitos para ele. Esse pequeno silêncio a que se refere Clarice é
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aquele definido por Orlandi (1995) como “silêncio constitutivo”, aquele que nos permite
refletir. “Nunca, então, havia eu de pensar que um dia iria de encontro a este silêncio.”
(LISPECTOR, 2007, p. 18); silêncio que se vincula à própria produção do sentido.
Na verdade, tal silêncio é, na obra clariceana, sinônimo de incompletude da
linguagem, por isso prefere não questionar temendo não obter respostas, pois quem
pergunta “é incompleto”. “Não quero perguntar por que, pode-se perguntar sempre por
que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante
silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta?”. (HE, 1998, p. 15)
Ainda que se questione acerca de sua impotência frente ao silêncio, acreditamos
que a autora inebria-se dele para obter as respostas mais profundas em relação à vida
e às suas criações. Estas últimas estão dotadas de signos que o indiciam seja pela
fragmentação, seja pelas frases inconclusas, seja pela pontuação. O silêncio ali se faz
presente trazendo consigo suas significações.
Assim, na obra clariceana, existem, aparentemente, duas tipologias que
orquestram as diversas formas de manifestações do silêncio, a saber: o silêncio
fundador, como princípio de toda significação “Eu sou Aquele que Sou” (Água Viva,
2003). Ao igualar-se ao Criador, Clarice é, em suas obras, a origem onde tudo significa,
ou melhor, o silêncio significa. E o silenciamento com suas duas vertentes: os silêncios
constitutivo e local. Lembrando que nas narrativas clariceanas, o silêncio não é o vazio,
o sem sentido, senão que “[...] ele é o indício de uma totalidade significativa. Isso nos
leva à compreensão do ‘vazio’ da linguagem como um horizonte e não como uma falta”.
(ORLANDI, 1995, p. 70)
De acordo com Clarice, “depois de uma palavra dita, às vezes no próprio coração
da palavra, os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia – ei-lo.” (1994, p. 40) O
silêncio é, portanto, um mecanismo de produção de sentidos, de significações, pois
“calar-se, não é ser mudo, é recusar a falar, portanto, falar ainda”, afirmava Sartre.
(1994, p. 53)
Desse modo, em Clarice, se contempla o silêncio de sua escritura.
53
3.2. Rodrigo: o duplo de Clarice
Discutir o silêncio autoral implica, antes, que nos coloquemos diante da obra A Hora da Estrela e, de longe, contemplemos sob diferentes ângulos a posição
Criador/Criatura. Tal conduta nos permitirá observar que Clarice Lispector é Criadora da
personagem Rodrigo S. M que, por sua vez, é Criador de Macabéa e ambos são
criadores da obra. A primeira, no plano real; o segundo, no ficcional. Logo, Rodrigo e a
obra são criaturas diretas de Clarice e, Macabéa e a obra são criaturas do autor-
narrador. Olhando sob este aspecto, acreditamos que o silêncio autoral poderá ser
notado no momento em que ambos se confundem, ou seja, no momento em que o
autor-narrador assume a palavra e, embora se identifique com a autora, de certa forma,
ele a absorve e é por ela absorvido. Nesse instante, instaura-se, a nosso ver, o silêncio
autoral, haja vista Clarice-autora silenciar-se, dando a vez e a voz a sua personagem
Rodrigo S. M.
Em A Hora da Estrela esse evento ocorre em duplo movimento, uma vez que no
discurso de Rodrigo encontra-se o pensamento de Clarice e são responsáveis pelo
processo narrativo que forja concomitantemente a personagem e o narrador. O
segundo, conforme Waldman:
[...] será então o mediador do dilaceramento de Clarice Lispector, empenhada
sempre em tocar a realidade e traduzi-la literariamente, mas será também
instrumento seu, isca, porque através dele a escritora se embrenhará na busca
da não-palavra. [...] O desdobramento do escritor internalizado na obra marca
um processo de inversão que sugere que se o personagem pode ser autor, este
pode também ser sua personagem. (1979, p. 64-66)
As considerações da escritora nos levam a inferir que a representação do
narrador possibilita a Clarice Lispector assumir a condição de personagem que
simultaneamente reflete sobre o processo da criação artístico-literária e também assiste
ao nascimento de sua obra (sua escritura).
Cabe, no entanto, salientar que a escritora deixa evidente em duas
circunstâncias sua posição de autora de A Hora da Estrela. A primeira diz respeito à
54
assinatura que, na página inicial, rompe com o esquema gráfico dos treze títulos,
organizados de modo a desenhar a imagem de um sino.
A HORA
DA ESTRELA
A CULPA É MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE ARRANJE
OU
O DIREITO AO GRITO
QUANTO AO FUTURO
OU
LAMENTO DE UM BLUE
OU
ELANAO SABE GRITAR
OU
UMA SENSAÇÃO DE PERDA
OU
ASSOVIO NO VENTO ESCURO
OU
EU NÃO POSSO FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
OU
HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL
OU
SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS
Já a segunda é percebida pelo subtítulo que se encontra entre parênteses,
acompanhando a dedicatória: (Na verdade Clarice Lispector). Percebam que, ao
55
colocar em relevo sua assinatura numa das primeiras páginas do livro e afirmar que a
dedicatória do autor é, na verdade, a dedicatória de Clarice Lispector, a escritora
assume sua autoria, podendo então manipular sua “criatura”, intervindo no interior da
narrativa. Lispector é, nessa perspectiva, personagem de si mesma. Refletindo sobre
essa questão, Kahn (2000, p. 93) faz a seguinte consideração.
Ao intervir como Clarice Lispector no interior de um romance assinado por ela,
Clarice automaticamente institui-se como personagem de si mesma. A Clarice
personagem aparece como uma das múltiplas facetas ou máscaras de
Clarice/Autora. Novamente há aqui um acúmulo de funções, autoras e
personagens representados pela mesma figura, sem delimitação clara entre
uma e outra. Por outro lado tem-se uma autora que permanece tão grudada a
sua obra, que se prolonga para dentro da mesma, borrando também os limites
entre realidade e ficção, fazendo da segunda um desdobramento da primeira.
E continua
[...] há três níveis de autoria: Clarice Lispector escritora – Clarice Lispector
autora e personagem de Clarice Lispector escritora – Rodrigo S. M.
personagem de Clarice(s) e autor da história de Macabéa. Deparamos assim,
não com uma autora, mas com um complexo autoral, cuja estrutura de
camadas sobrepostas, denuncia a indiferenciação interna de sua organização,
estabelecendo uma correspondência perfeita com a estrutura do universo
ficcional do próprio romance.
As reflexões da autora apresentam o desdobrar de Clarice Lispector em várias
facetas. Com isso, destaca na obra A Hora da Estrela o embate de consciências cuja
arena é a própria consciência da autora. Nela se “digladiam” o pensamento real da
escritora com os pensamentos ficcionais das personagens. Essas dobras em que
Lispector “incorpora” o real e o ficcional constituem, conforme palavras da pesquisadora
Maria Rosa Duarte, “zonas entre o dizer e o não-dizer: silenciosas”6. Ou seja, entre o
real e o ficcional há o silêncio, aquele que abre o texto lispectoriano às inúmeras
possibilidades de leitura. Nesta acepção, segundo Iser (1976) “[...] a liberação de
6 Palavras proferidas na orientação do dia 15/03/2010.
56
aspectos ocultos [significações silenciadas] começa então a orientar as possibilidades
de combinação do leitor. Mas os vazios não estão apenas no repertório, mas também
nas estratégias”. (p.108)
Feitas essas ressalvas e retomando a problemática do silêncio autoral, diríamos
que, ao trazer a imagem do sino mudo, analogicamente, Clarice-escritora o impede de
badalar, criando um espaço de silêncio em torno de sua pessoa. Espaço que vai
ampliando à medida que Rodrigo S. M. toma as rédeas da narrativa e,
simultaneamente, por muito saber acerca de sua criatura (a nordestina), é por ela
tragado: “e como muito adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado
pegajoso ou lama negra”. (HE, p. 21)
Este acontecimento serve de válvula para que Clarice Lispector silencie como
escritora e passe a “falar” por meio de sua criatura. A identificação de ambos é tão
intensa que com/em Rodrigo, Clarice se transforma em personagem, deixando-lhe
como herança traços que lhe são peculiares, porquanto, o autor-narrador de A Hora da Estrela possui uma grande semelhança com sua Criadora. A partir dessa conduta, a
autora, fundamentada nos princípios bíblicos, coloca-se como arquétipo do “Criador do
Universo”: “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança.
[...] Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher
ele os criou”. (Gênesis, vrs. 26-27)
Assim, a presença/ausência autoral, muitas vezes se deixa notar por meio das
reflexões e dos questionamentos de S. M, criado à imagem e semelhança de Clarice
Lispector. De acordo com Nunes (1995), outra presença, a da própria escritora que
disputa com a do narrador, insinua-se nessa modalidade de fala.
Suspendendo, pois, a sua máscara pública de ficcionista acreditada ao
identificar-se com S. M. — na verdade Clarice Lispector — e por intermédio dele
com a própria nordestina, Macabéa – a quem se acha colado o autor interposto
-, Clarice Lispector faz-se igualmente personagem. [Com isso], [...] abre o jogo
da ficção — e o de sua identidade como ficcionista. Comprometida com o ato
de escrever, a ficção mesma, fingindo um modo de ser ou de existir, demandará
uma prévia meditação sem palavras e o esvaziamento do eu. (p. 165)
57
Aí está o aparente contrassenso sobre o qual o texto clariceano se alicerça, ou
seja, o momento em que o criador ao pensar sua criação literária é capaz de refletir ou
repensar a si mesmo. Esse procedimento estético se concretiza em A Hora da Estrela pela sobreposição e convergência de máscaras narrativas que se defrontam e se
redefinem pelos contrários. Não obstante haver uma pseudo-identificação entre Clarice
e Rodrigo S. M., fica evidente nas considerações do crítico, as “dobras” do eu que
escreve. Desse modo, Clarice/autor ficcional/Macabéa se interpõem um ao outro.
Portanto, Lispector provoca a diluição do sujeito do discurso que na figura do criador
paradoxal, se multiplica e se fragmenta. “[...] é um relato que desejo frio. Mas tenho o
direito de ser dolorosamente frio e não vós.” (HE, p. 13)
Aqui, “guiado pelo pensamento clariceano” que sobressai por meio do discurso
indireto livre, diferentemente dos momentos anteriores em que se limitava a expor seu
objetivo, escrever sobre a nordestina, o Narrador assume o papel do autor-ficcional
Rodrigo S. M., dando as direções que nortearão sua escritura.
Colocando-se, pois, no direito de manter-se “apático” diante da criação, Rodrigo
S.M. indiretamente apresenta-se como porta-voz de Clarice Lispector. Ele é o protótipo
ao redor do qual girará a história de Macabéa e da criação literária. Com essa missão, o
autor ficcional traz à tona o contingencial de A Hora da Estrela, aquilo que foge das
mãos da própria Criadora. Por isso, o narrador nos esclarece.
Eu ainda poderia voltar atrás em retorno aos minutos passados e recomeçar
com alegria no ponto em que Macabéa estava de pé na calçada – mas não
depende de mim dizer que o homem alourado e estrangeiro a olhasse. (HE, p.
80)
Fica-nos evidente pela fala que o duplo de Rodrigo S. M. é a própria Clarice
Lispector, por isso, não depende dele mudar a sequência dos acontecimentos, os quais
deverão fluir conforme os propósitos da Criadora que a ele, se encontra “colada”. Enfim,
a delimitação das vozes narrativas de Rodrigo S. M. e Lispector encontra como
contraponto o próprio texto.
58
3.3. Silêncios gráficos e paratexto
Percebemos que, na criação clariceana, a temática do silêncio é constante e
revela a inquietude de Lispector em encontrar, por meio de sua linguagem, uma
maneira original de se expressar por sua escritura “silenciosa”. Silêncio que não é o
vazio, não é o nada, é a origem de todo silêncio, de todo sentido e significação. E, “tudo
no mundo começou com um sim. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-
história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve.” (HE, p. 11)
Agora, mudando de lugar, focamos nosso corpus sob outro ângulo e sentimos a
necessidade de apreciar a “concretude” do silêncio que, em A Hora da Estrela se faz
notar pelas pontuações (silêncios gráficos) e paratextos como indiciadores da ausência
do livro ou do livro-silêncio.
A partir daí, levamos a termo que, uma das primeiras manifestações dos
silêncios gráficos em A Hora da Estrela ocorre justamente pela fragmentação da
narrativa que nos permite enxergar o oco, o espaço em branco, o vazio que se cria
entre o enredo que conta as “aventuras” de Macabéa e os comentários ou
posicionamentos do Narrador. Assim, desde as primeiras páginas esses espaços-
vazios se concretizam pelo adiamento constante, por parte de Rodrigo S. M, da história
da protagonista. História que se delineia paulatinamente, entre os comentários do fazer
literário e as menções da própria história do narrador-personagem.
É claro que como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos:
conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios
que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a palavra é ação,
concordais? Mas não vou enfeitar a palavra, pois se eu tocar no pão da moça
esse pão se tornará ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não
poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar
a sua delicada e vaga existência.... (HE, p.15)
59
No trecho citado, que continua até a interrupção do Narrador, que retorna a falar
sobre si mesmo7 há, também, a ocorrência de pontuações como a interrogação e o
travessão. Tais ocorrências em conexão com os lugares-vazios deixados pela
fragmentação obrigam o leitor a usar a imaginação para completar as lacunas, ou no
dizer de Orlandi (1995) dar significado ao silêncio.
No caso do excerto acima, pensamos que, ao calar a própria palavra lançando
um questionamento ao leitor, Rodrigo S. M. dá ao silêncio um sentido de provocação,
de desafio criado pelo vazio, pela incompletude que a interrogação sugere. Este sentido
é na sequência reforçado pela reflexão da palavra associada à Macabéa. Por isso, o
Narrador não a enfeita, pois, assim, o distanciaria da nordestina. O travessão, neste
sentido, indicia a presença do vazio-textual, como propulsor dos esquemas mentais que
levam o leitor a interar-se com o texto. Segundo Iser (1979, p. 106)
Apenas quando os esquemas dos textos estão inter-relacionados é que o objeto
imaginário começa a se formar. Esta operação exigida do leitor encontra nos
vazios o instrumento decisivo. Eles indicam os seguimentos do texto a serem
conectados. Representam pois as “articulações do texto” pois funcionam como
“charneiras mentais” das perspectivas de representação e assim se mostram
como condições para a ligação entre seguimentos do texto, liberam o espaço
das posições denotadas pelo texto pra os atos de projeção do leitor. Assim,
quando tal relação se realiza, os vazios “desaparecem.”
Baseando-nos nas reflexões iserianas, entendemos que o leitor exerce um papel
fundamental na “ampliação” e compreensão do sentido do texto, posto que é capaz de
atribuir ou captar os significados dos vazios textuais, conferindo-lhe uma nova
dimensão. Nesse sentido, Clarice Lispector conhecedora dessa potencialidade, abusa
dos “silêncios gráficos” (reticências, travessões, ponto final, espaços em branco,
7 Desculpai-me, mas vou continuar a falar de mim que sou um desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco, pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa? (HE, p.15)
60
interrogações, parênteses) acreditando que o leitor neles penetrará de modo a dar
continuidade a sua escritura silêncio.
Em A Hora da Estrela, o discurso clariceano se faz de silêncios e em silêncio,
como podemos apreciar nos exemplos abaixo:
Por isso não sei se minha história vai ser – ser o quê? Não sei de nada, ainda
não animei a escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais? Também não
sei. (HE, p.22)
(Há os que têm. E há os que não têm. É muito simples: a moça não tinha. Não
tinha o quê? É apenas isso mesmo: não tinha. Se der para me entender, está
bem. Se não, também está bem. Mas pó que trato dessa moça quando o que
mais desejo é trigo puramente maduro e ouro no estio?). (HE, p. 25)
– parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou desanimada e
com pudor: – Pois como o senhor vê eu vinguei... pois é... (HE, p.43)
Nos três exemplos, percebemos que toda a escritura tende ao silêncio, primeiro
porque o enredo permanece no devir: é espaço vazio a ser “preenchido”, tanto pelo
autor-real, como pelo autor-ficcional. Segundo, porque toda manifestação discursiva
colocada entre parênteses demonstra um “a parte”, logo, está, de certa forma, fora do
conjunto que norteia a obra e se cria um desvão entre a história a ser continuada e o
leitor que aguarda seu desfecho. Esse desvão, a nosso ver, silencia tanto o discurso
construtor do enredo como o próprio leitor que, como o Narrador, permanece de “mãos
atadas”. Observa-se, ainda, no fragmento entre parênteses, a indeterminação da
construção discursiva, ou seja, ela é abruptamente calada, isso suscita inúmeras
possibilidades de interpretação, é o que nos diz Iser (1979)
A indeterminação resulta da função comunicativa dos textos ficcionais e, como
esta função é realizada por meio das determinações formuladas no texto, esta
indeterminação, à medida que textualmente “localizável” não pode deixar de ter
uma estrutura. As estruturas centrais de determinação no texto são seus vazios
e suas negações. Eles são as condições para a comunicação, pois acionam a
interação entre texto e leitor e até certo nível a regulam. (p. 106)
61
No último exemplo, notamos o silêncio escritural desde o início, pois antes da
pronúncia da protagonista há um espaço silenciado, simbolicamente representado pelo
travessão. Na sequência, entre palavras e pausas (dois pontos, travessão, reticências),
o silêncio vai paulatinamente crescendo até chegar ao auge da indeterminação, da não-
palavra. Em outro momento de sua escritura, na obra Água Viva (2003), Clarice
Lispector nos faz o seguinte esclarecimento sobre a questão da palavra.
[...] não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e
ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola
sutil do entrechoque das palavras. Então escrever o modo de quem tem a
palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-
palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que
se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí
cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. (AV, p. 25)
Na verdade, as palavras de Lispector confirmam o que vínhamos articulando
acima: a escritura clariceana se faz de silêncios e em silêncio. Assim, ao darmos como
leitores, continuidade à escritura silenciosa de A Hora da Estrela, ampliamos e
movimentamos os sentidos que dela advêm, pois no momento em que tocamos a não-
palavra dando-lhe “concretude” (significação), ela volta ao estado original.
Dessa forma, a pontuação clariceana deixa evidente a incompletude do texto, de
modo a projetar o leitor para Clarice que está por trás desse silêncio. Segundo o que
nos fala Orlandi (1995 p. 79)
[...] a constituição da unidade textual e da unidade dos sentidos corresponde
um domínio de incompletude do sujeito. Assim como o texto não se esgota em
um espaço fechado, o sujeito e o sentido também são caracterizados pela
incompletude. (p.79)
Com tais marcações, a autora permite ao leitor aproximar-se do processo de
constituição da linguagem, que se caracteriza pelo recorte discursivo. O calar-se cria
espaços de silêncio próprios da linguagem lispectoriana. Assim é que, o não-dito, o
62
indizível se deixa ver pela pontuação inusitada que se mantém em aberto devido à
ausência de respostas. “Este livro é uma pergunta.” (HE, p. 17)
Evidencia-se, dessa forma, a edificação de novos sentidos: “Com apenas um
modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me
acompanhar o texto.” (HE, p. 23)
As informações contidas nesses silêncios gráficos (pontuações) estabelecem um
jogo que se alicerça na antítese presença/ausência das significações. O autor Rodrigo
e seu duplo inserem o leitor no interdiscurso, de forma a destacar as marcas do silêncio
e, simultaneamente, por meio de tais pontuações, apresentam-nos o lócus, no qual, as
palavras tocam o indizível. Percebemos a partir daí, que a utilização de sinais gráficos
(pontuação) inusitados é responsável pela singularidade da escritura clariceana, pois
A pontuação é, assim, marca do estilo do escritor, sendo o estilo uma
manifestação singular, mas que se constitui a partir de condições determinadas
histórica e socialmente. Ou seja, a singularidade se dá pela forma própria como
o sujeito constitui o seu discurso a partir das diversas determinações que sofre
no seu dizer. Sendo assim, [por ser a pontuação] tanto quanto a linguagem
constituída pela historicidade tem um caráter, essencialmente, discursivo e
remete o leitor para espaços de silêncio totalmente indefinidos e, em certos
casos, para o silêncio enquanto real do discurso. (LISBÔA, 2008, p. 90-91)
À guisa de síntese, diríamos que as pontuações, como concretude dos silêncios
gráficos, são, em Lispector, partes dos caracteres inerentes à sua escritura, por isso
juntam-se com os demais aspectos que norteiam o enredo, as condições de produção
do texto, ou seja, ao criar os espaços vazios que “pedem” para ser preenchidos, o texto
clariceano coloca seus leitores diante de um impasse, de um desafio que deverá ser
vencido.
Tal impasse estimula a criatividade dos leitores que se incumbem de buscar
novos caminhos que complementem os vazios textuais, isto é, abre espaço para que o
texto se renove. Assim, a cada participação do leitor surge um texto renovado, uma vez
que é enriquecido com novas significações.
63
Finalmente, é preciso enfocar, em A Hora da Estrela, o paratexto representado
pelo rol dos títulos – apresentado no item 3.2 deste capítulo – e pela dedicatória que se
encontra no anexo deste trabalho.
Carlos Ceia (2005) considera, pois, a concepção de paratexto como
Aquilo que rodeia ou acompanha marginalmente um texto e que tanto pode ser
determinado pelo autor como pelo editor do texto original. O elemento
paratextual mais antigo é a ilustração. Outros elementos paratextuais comuns
são o índice, o prefácio, o posfácio, a dedicatória ou a bibliografia. O título de
um texto é o seu elemento paratextual mais importante e mais visível,
constituindo, como observou Roland Barthes, uma espécie de “marca
comercial” do texto. (p. 21)
A partir da observação do autor, notamos em primeira instância, pelo rol dos
títulos, que as possibilidades de nomeações da obra – artifício estético utilizado
propositalmente por Clarice Lispector – geram uma lacuna, embora o objeto permaneça
indefinido. Tal acontecimento nos projeta a própria Macabéa que até o primeiro ano de
vida não fora nomeada, portanto, para as formalidades sociais ela não existia. Nessa
perspectiva, a não nomeação da obra e de Macabéa – sua matéria prima – nos revela a
ausência do livro, pois para que ele exista, se torne visível é necessário ser nomeado,
isto é, receber um título definido, só assim, entrará no universo do leitor.
E apesar de que nós nem sempre saibamos se essas produções [paratextos]
devem ou não ser vistas como pertencendo ao texto, em todo o caso elas
rodeiam o texto e o estendem, precisamente para apresentá-lo, no sentido
usual deste verbo, e num sentido mais forte: fazer presente, garantir a presença
do texto no mundo, sua `recepção´ e consumo sob a forma (atualmente, pelo
menos) de um livro. (GENETTE, 1997 citado por MIELNICZUK , s/d, p. 1)
Em consequência, embora aparentemente, a indefinição da obra e da
protagonista nos encaminha para o não-livro, contudo, na verdade, ela é a
concretização do livro, uma vez que esse procedimento inusitado nos leva a “palpá-lo”.
Ele é o paratexto que possibilita o leitor a entrar no texto.
64
Relacionando os treze títulos aos treze espaços em branco, contados a partir da
primeira pagina (p. 11) da história de Macabéa, poder-se-á inferir que as lacunas
deixadas formam o silêncio-textual e instigam o leitor a interpretar os vazios, conforme
as pistas que a obra vai sugerindo.
É interessante ainda notar que tais lacunas podem ser associadas à ausência
dos títulos de cada um dos capítulos de, A Hora da Estrela, logo leva-nos a pensar que
o silêncio/ausência do livro vai construindo-se gradualmente até culminar no espaço em
branco, aquele que envolve toda narrativa levando-a ao silêncio inaugural, aquele que
antecede o sim. Constrói, portanto, a ausência total do livro como objeto
estruturalmente organizado sob normas ou regras específicas.
Como se vê, Clarice Lispector transgride até a função habitual do paratexto,
aproveitando-o na elaboração do silêncio-textual. É um instrumento que, nas mãos da
autora, traz à tona a presença/ausência do livro.
Em se tratando da dedicatória, notamos que há uma reciprocidade no que se
refere ao silenciar, pois, no momento em que Clarice é silenciada ao dar a voz ao autor-
ficcional, ela também o silencia no instante em que põe em destaque sua própria
assinatura: “(Na verdade Clarice Lispector)”.
Assim, deixando sua marca semelhante àquela que rompe a estrutura dos treze
títulos, sob a máscara do autor-ficcional Rodrigo S. M., Lispector passa a dedicar o
livro-ausência. Ausência que se entrevê no momento em que Clarice/Rodrigo ao referir-
se à obra dá a ela uma conotação pejorativa, “pois que dedico esta coisa aí [...]”, mais
uma vez a indefinição não nos permite ver com clareza o objeto, que pode ser qualquer
coisa, mas o quê exatamente? Dessa maneira, não podendo defini-lo, o livro se
converte em algo informe, ausente no próprio sentido estrutural.
Sendo “esta coisa aí”, a obra é dedicada aos “criadores” e a todos aqueles que,
embora ausentes, deixaram suas marcas. Ao evocá-los, Clarice/Rodrigo incorpora-os
em A Hora da Estrela adensando-lhe o silêncio:
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Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são
hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu
sangue. Dedico-me sobretudo ao gnomos, anões, sílfides e ninfas que me
habitam a vida. Dedico-me a saudade de minha antiga pobreza, quando tudo
era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta. Dedico-me à
tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de Bach. A Chopin
que me amolece os ossos.
Se observarmos a sequência da dedicatória, veremos que, num “vôo poético”,
Clarice/Rodrigo traz para o presente todos aqueles “eus” que já são parte dela, ao
mesmo tempo que se abrem para o encontro com “outros” eus emergentes em A Hora da estrela e aí o lugar do leitor não deixa de ser um deles.
A Stravinsky que me espantou e com quem voei em fogo. “À Morte e
Transfiguração”, em que Richard Strauss me revela um destino sobretudo
dedico-me às vésperas de hoje e a hoje, ao transparente véu de Debussy, a
Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a Schönberg, aos dodecafônicos, aos
gritos rascantes dos eletrônicos – a todos esses que em mim atingiram zonas
assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim
me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu.
Após “explodir em eu”, Clarice/Rodrigo cai no vazio de sua obra, porém é um
vazio no qual se contempla a presença de outros “eus”. Nessa perspectiva, o
silêncio/ausência que se configura em A Hora da Estrela como livro estruturalmente
falando é aquele em que, de acordo com Bakhtin ressoa uma multiplicidade de vozes.
Por isso os “autores” declaram
Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para
me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado, enfim que é que se há de
fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que só se atinge com a
meditação. Meditar não precisa de ter resultados: a meditação pode ter como
fim apenas ela mesma. Eu medito sem palavras e sobre o nada. Ao que me
atrapalha a vida é escrever.
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Deixando de escrever para meditar sem palavras é que Clarice/Rodrigo se
apagam, abrindo-se ao múltiplo. Com isso, trazem para A Hora da Estrela um
redemoinho de rostos e vozes. O último fragmento, por sua vez, nos projeta para o
inacabamento da obra e, por conseguinte, desafia a nós leitores para completá-la.
- E – e não esquecer que a estrutura do átomo não é vista. Mas sabe-se dela.
Sei de muita coisa que não vi. E vós também. Não se pode dar uma prova da
existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. [...] Trata-se de livro
inacabado por que lhe falta resposta. Resposta esta que espero que alguém no
mundo me dê. Vós? (HE, p.18)
Logo no início do entrecho, Clarice/Rodrigo utilizam-se da pontuação (o
travessão) e rompe a fala, deixando sobressair o silêncio. Esta interrupção cria
expectativas no leitor que aguarda ansioso pelo desfecho da narrativa. Há ainda aí uma
analogia entre a estrutura do átomo “que não é vista, mas sabe-se dela” com o
significado do silêncio que também é uma zona feita de ausência, de não palavra, mas
nem por isso deixa de ser perceptível. Nesse sentido, o silêncio é, num primeiro
momento, signo de advertência Ao romper a fala, o autor chama a atenção do leitor
para o que vem a seguir. Em seguida, ele faz parte, de acordo com Orlandi (1995), da
política do silêncio. Dentro dessa política, instaura-se como silêncio constitutivo,
conquanto traga consigo sentidos silenciados. As palavras ditas apresentam um recorte
entre o que se diz e o que não se diz, apresentando, portanto, sentido distinto dos
signos visíveis. São sentidos que trazem as marcas dos diferentes olhares que
complementam o dizer silencioso de Clarice/Rodrigo. Com isso o livro se faz presença.
E deste livro somos todos coautores.
Nessa perspectiva, ao acompanhar marginalmente a narrativa clariceana, o rol
dos treze títulos e a “Dedicatória do Autor” indiciam desde o começo o caráter dialógico
do discurso com seus diferentes sentidos e significações, isto é, com suas diferentes
mundividências, o eu se deslocando para o outro.
Enfim, mesmo dando aos paratextos e a toda sua escritura um caráter
transgressor Clarice Lispector “[...] permite que o texto [de A Hora da Estrela] se torne
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um livro e seja oferecido enquanto tal para seus leitores e para o público de um modo
geral.” (GENETTE, 1997 citado por MIELNICZUK , s/d., p. 1)
Clarice Lispector consegue, portanto, por meio do procedimento do silêncio feito
linguagem, traduzir e nessa transposição do silêncio para o papel traz ao universo das
o livro presença, material palpável que a todos encanta.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A POÉTICA DO SILÊNCIO
Estou tentando abrir um túnel na rocha bruta. Eu sei,
sei que é penoso. Mas qual é a busca que em si
mesma não traga sua pena?
(Waldman, 1983)
Impulsionados pelo incessante desejo de penetrarmos no bruto universo de A Hora da Estrela, aquele antes do antes do antes... em que a palavra pairava no vazio,
nos deparamos com um sim, badaladas de sinos a soarem ?: “[...] os sinos badalavam,
mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a
iminência que há nos sinos que quase-quase badalam”. (HE, p. 86)
Sim que nos projeta a história de Macabéa, personagem cuja configuração
provoca uma sensação de eterna busca. Mas o que buscar no nada de sua história?
Essa sensação angustiante nos levou ao seu misterioso silêncio, sem palavras,
fotografia muda. A partir daí, passamos a flutuar no universo estelar clariceano e
verificamos que em A Hora da Estrela, Clarice Lispector lança-se, por meio do silêncio,
a uma profunda contemplação da realidade.
Dessa forma, a escritora busca tocar a vida com a palavra que em Macabéa se
faz vazio, se faz silêncio. “Por isso sua linguagem se contorce em malabarismos
sintáticos, torna-se de tal modo elástica, plástica, expressiva e exuberante, que pulsa
como a vida” (WALDMAN, 1983, p. 63)
Diante desse dinamismo que se instaura em A Hora da Estrela, observamos a
existência de um pacto silencioso entre Clarice/Rodrigo (Criador/Criatura);
Macabéa/Narrador; Macabéa/Olímpico e Macabéa/Narrador/Olímpico. É por meio
dessas “instâncias” que sobressai na narrativa um discurso fragmentário, cujas
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rupturas, norteadas por pontuações inusitadas, formam os vazios do texto, é o que nos
diz Iser (1979).
O silêncio passa, assim, a ser um fator fundamental do movimento dos sentidos
que se espalham pela obra abarcando-a por completo. Esse dinamismo dos sentidos
silenciados caracteriza o inacabamento de A Hora da Estrela. Penetrando no seu universo descobrimos a partir do confronto entre
Macabéa/Narrador/Olímpico, a existência de diferentes posicionamentos do narrador e
autor-ficcional Rodrigo S. M. em relação à sua criatura – a personagem Macabéa -
lançando-lhe um olhar ora carinhoso e complacente, ora indignado e até mesmo
áspero. “E esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar
paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça.” (HE, p. 16)
Olhar que vem de dentro, tão interior que reflete com intensidade o próprio pulsar
de Rodrigo S. M. que busca a todo custo identificar-se com a moça.
[...] para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir
olheiras escuras, por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão [...]. Além de
vestir-me com roupa velha e rasgada. Tudo isso para me por no nível da
nordestina. (HE, p. 19)
É justamente essa pseudo-identificação, a partir de um trabalho metalingüístico,
que aponta a irredutível diferença que separa o autor de sua personagem. É essa zona
de fronteira, que se mantém entre visibilidade e invisibilidade, que abriga o silêncio de
“um lugar vazio”.
Na obra A Hora da Estrela o discurso silencioso do Narrador/Macabéa constrói
uma história em aberto e com ela o inacabamento da escritura, deixando no ar a
possibilidade de se forjar novos sentidos que retornam ao antes do antes, ao silêncio
inaugural, aquele que antecede o “sim”. “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente
morre. Mas – eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de Morangos.
Sim.” (HE, p. 87)
Na concepção crítica, esse silêncio que segue um movimento espiral foi
abordado timidamente, uma vez que, no estudo de A Hora da Estrela se dedicaram
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com maior intensidade à problemática social e da linguagem. Dedicando-nos, portanto,
ao estudo do silêncio verificamos que:
- o vazio originado pelo confronto Criador/criatura culmina no silêncio como resistência
que se afirma entre o dito e o não-dito autoral;
- as lacunas geradas a partir das concepções das personagens Macabéa/Narrador e
Macabéa/Olímpico que, ocupam diferentes lugares na construção narrativa, edificam o
silêncio como incomunicabilidade entre as personagens e, como resistência da
protagonista em relação a Rodrigo/Olímpico e o contexto social;
- a presença/ausência do livro que advêm das pontuações e recursos (paratextos,
estrutura do livro) inusitados dão um caráter diferencial ao silêncio de A Hora da Estrela.
Podemos então firmar que no silêncio Lispectoriano de A Hora da Estrela, há
um “jogo dialógico” que funciona como catalisador capaz de condensar as diferentes
vozes narrativas ou as consciências que se confrontam e dessa forma “Transgredir,
porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em
escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa.” (HE, p. 17)
Ao transgredir os próprios limites, Clarice Lispector realiza por meio de seu duplo
Rodrigo S. M., uma reflexão sobre a linguagem que desemboca numa escritura
silenciosa e, simultaneamente, nos apresenta as atitudes do escritor frente ao ato de
escrever. Nesta acepção, Lisbôa (2008) menciona que
A linguagem é, assim, dentro das condições históricas em que sua obra é
produzida, o objeto da escritura de Clarice. São estas mesmas condições de
produção que determinam a relação particular de sua escritura com o silêncio e
decorrente trabalho sobre a pontuação. Interpelando a hegemonia e
combatendo os estereótipos através de uma crítica da linguagem, Clarice utiliza
a pontuação de modo à desconstruir o processo de textualização do discurso,
mostrando-nos a discursividade constitutiva de todo texto, bem como que todo
início e todo fecho não são mais que um efeito, o efeito necessário para que o
texto se constitua. (p. 108)
A participação do leitor na edificação do sentido que emana do silêncio advindo
de A Hora da Estrela acontece no momento em que “a escrita se dá na hora mesma
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em que é lida”. Logo, o leitor atua como coautor, haja vista sua leitura, de acordo com
Iser (1979), dar um novo contorno à escritura silenciosa que fica em aberto.
Concluímos com isso que as palavras que dão vida ao enredo, ao livro,
concretizam-se em primeira instância no mundo das ideias, no momento em que o
receptor/leitor categoriza o objeto-palavra conferindo, de acordo com as regras
convencionais, qualificações que lhes são próprias.
Outros elementos que simbolicamente indiciam a ausência do livro centram-se
na própria estruturação da narrativa, da qual depreendem-se os espaços em branco, as
perguntas sem resposta, enfim, a suspensão do dito, o inacabamento da obra que
silencia com palavras, sinos sem pêndulos.
Ao contemplar o livro ausente, verificamos que sua trama, cujo dinamismo é
expressão de um modo de existir no mundo, necessitava de um “corpo” para se
materializar. Entendemos então que o romance-estelar se torna palpável no instante em
que as palavras se corporificam por meio da leitura onde a escritura se encena. “A ação
desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha
materialização enfim em objeto”. (HE, p. 20)
Ou seja, conforme Genette (1997 citado por MIELNICZUK, s/d, p. 1), se
materializa, ganha concretude à medida que, “[...] garante a presença do texto no
mundo, sua ‘recepção’ e consumo sob a forma de livro”.
Por fim, podemos ainda dizer que, após adentrarmos no romance-estelar
clariceano e sermos por ele tragados, vislumbramos o dinamismo que o potencializa.
Resgatamos em sua construção: o silêncio-palavra que ganha forma, por meio do
discurso que se apresenta na trama de suas personagens ausente-presentes. O
romance-estelar é, portanto, para o universo literário um clarão, cujo silêncio se abre e
se fecha na poeticidade de um “sim”.
Poeticidade que se constrói pela suspensão do sentido, palavra silenciada que
encontra eco em Macabéa. Nela a escritura é o veículo que a transforma num símbolo
de resistência poética a todos os tipos de opressão. Daí conservar-se como objeto
passivo de infinitas análises.
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