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i PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Murillo Marques A retextualização do escrito para o oral: uma pedagogia expressiva da palavra para atores MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA São Paulo, SP 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Murillo Marques

A retextualização do escrito para o oral:

uma pedagogia expressiva da palavra para atores

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

São Paulo, SP

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Murillo Marques

A retextualização do escrito para o oral:

uma pedagogia expressiva da palavra para atores

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência para obtenção do título de Mestre em Língua

Portuguesa, sob orientação da Professora Doutora Ana

Rosa Ferreira Dias.

São Paulo, SP

2015

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Dissertação apresentada como requisito necessário para obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa.

Murillo Marques

Monografia apresentada em ____/____/____

_________________________________________________________

Orientador (a) Prof. (a). Titulação. Nome do Orientador

_________________________________________________________

Orientador (a) Prof. (a). Titulação. Nome do Examinador

_________________________________________________________

Orientador (a) Prof. (a). Titulação. Nome do Examinador

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Este trabalho foi fomentado por meio de bolsa

de incentivo à pesquisa concedida pela

Fundação CAPES.

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À minha mãe Stela, à minha avó Irene,

mulheres guerreiras que sempre acreditaram em mim.

Evoé Baco!

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Ana Rosa Ferreira Dias, pela orientação,

sabedoria, paciência e pelos ensinamentos tão valiosos nesse longo processo

de amadurecimento acadêmico.

À Professora Doutora Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira

Andrade, pelas críticas e sugestões feitas ao trabalho no exame de

qualificação.

À Professora Doutora Nancy dos Santos Casagrande, pelas críticas e

sugestões ao trabalho no exame de qualificação e também por todo afeto e

incentivo ao longo da vida acadêmica.

À minha mãe Stela, por sempre acreditar em meus sonhos.

À minha avó Irene, pela dedicação na formação do homem que sou.

Aos mestres da Escola de Arte Dramática (EAD), que ensinaram a mim

e aos meus companheiros da turma 62 os caminhos das artes do palco.

À professora-artista Maria Isabel Setti e à turma 65 da EAD, por toda a

sabedoria compartilhada na disciplina de Expressão Verbal.

Ao meu amigo companheiro Fernando Gimenes, por estar sempre perto,

dando toda a força e coragem.

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RESUMO

O ator é o principal agente do teatro, sem sua ação cênica, a obra teatral

fica incompleta. Ao retextualizar um texto escrito para a modalidade oral, o ator

pretende estabelecer uma relação de verossimilhança entre o diálogo forjado

pelo dramaturgo e a língua falada. Dessa maneira, o texto de teatro, apesar de

parecer com a fala cotidiana, é uma obra literária, estruturada e inacabada,

pois pressupõe a ação e a voz viva do ator para a sua efetivação. Portanto,

tendo como base a perspectiva de transposição do texto escrito para o oral, a

presente pesquisa se apoiará na intersecção entre os estudos

sociointeracionistas sobre Oralidade Literária, Análise da Conversação,

Sociolinguística e Psicolinguística e as vertentes práticas e teóricas de trabalho

com o texto nas Artes Cênicas, para, assim, evidenciar os mecanismos

linguísticos, semânticos, sintáticos e prosódicos utilizados pelo ator ao transpor

a modalidade escrita para a modalidade oral. Para tal observação, tomamos

como corpus de análise a disciplina de Expressão Verbal da Escola de Arte

Dramática, instituição fundada por Alfredo Mesquita em 1948 e que desde

então contribui para a formação de atores que compõem o panorama de um

Moderno Teatro Nacional.

PALAVRAS CHAVE: oralidade, retextualização, texto teatral, pedagogia teatral.

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ABSTRACT

The actor is the main agency in the theater, as without his theatrical

action, the play is incomplete. By adapting a written text to an oral genre, the

actor aims to establish a verisimilitude relation between the playwright's forged

dialogue and spoken language. This way, the theatrical text, despite from

seeming as an everyday speech, it is a literary production, structured and

unfinished, inasmuch as it foresees the action and active voice of the actor for

its attainment. Therefore, considering the perspective of converting written texts

to oral genre, the present research will be based in the intersection between

socio interactionist studies on Oral Literary, Conversation Analysis,

Sociolinguistics, Psycholinguistics and the practical and theoretical work strands

with the text on Theatrical Arts, so that it will evidence the linguistic, semantic,

syntactic and prosodic mechanisms used by the actor when converting written

genre to oral genre. To the present remark, the analyzed corpus will the class

on Verbal Expression from the Drama Art School, institution founded by Alfredo

Mesquita in 1948, which since this date contributes to graduating actors that are

part of a Modern National Theater scenario.

KEYWORDS: orality, theatrical text, retextualization, theatrical pedagogy.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 1

CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO 6

1.1 A natureza do texto oral e a natureza do texto escrito 6

1.2 A Oralidade Literária 9

1.3 A análise da conversação 11

1.3.1 Marcadores conversacionais 16

1.3.2 Paráfrase 21

1.3.3 Correção 27

CAPÍTULO 2 – O TEXTO TEATRAL E SUA PERFORMANCE 33

2.1 O discurso teatral e a estrutura do texto 33

2.2 A pedagogia da oralidade teatral 37

2.3 Procedimentos de retextualização: a transposição do escrito para o oral no

teatro 43

CAPÍTULO 3: CORPUS 49

3.1 A escola de arte dramática (1948-1968) 49

3.1.2 Os anos na universidade de são paulo (1968-2000) 57

3.2 Projeto pedagógico da escola de arte dramática 69

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DO CORPUS 75

4.1 Aspectos do teatro contemporâneo 75

4.2 Vida e obra de bernard-marie kòltes 77

4.3 Na solidão dos campos de algodão 79

4.4 O contexto da encenação: um exercício expressivo da palavra 80

4.5 Categorias de análise 83

Observações 88

4.5.1 Análise dos resultados 117

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CONSIDERAÇÕES FINAIS 121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123

ANEXOS 127

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A origem do teatro na história mundial é imprecisa, porém estudos apontam

indícios de manifestações de teatralidade desde épocas remotas em sociedades

predominantemente tribais e primitivas, cuja comunicação entre indivíduos se dava

por meio de imitações corporais e sonoras de outros seres, por danças ritualísticas

tribais que eram remetidas a uma determinada divindade. Portanto, é por meio da

observação, da imitação e da exemplificação de um determinado fato que se

processa a reflexão humana, dessa maneira, o teatro surge como uma necessidade

inerente ao ser humano em imitar outro ser.

No florescer da sociedade grega, entre os séculos IV e V a.C., o teatro se

manifestou como um rito coletivo ao deus Dioníso em que o coro entoava cantos

entusiasmados pelo vinho e festejavam em nome do deus como forma de comungar

com as esferas sagradas. A função do ator se estabeleceu quando Téspis, cidadão

grego, se desprendeu do coro e se denominou como a materialização física de

Dioniso. Com esse ato, surgiram as ideias de representação e de diálogo teatral, na

medida em que há um individuo frente a outro que é simultaneamente seu

interlocutor e sua assistência.

Assim, a arte teatral desenvolveu-se ao longo da história e estabeleceu

elementos necessários para a sua efetivação como espetáculo cênico. O surgimento

do teatro como espaço físico, a sonoplastia, os técnicos dos aparelhos teatrais, a

figura do ator, a figura do diretor, a iluminação, entre outros recursos, são hoje

características naturais do evento teatral contemporâneo.

Contudo, o texto, ao longo da história do teatro, assume distintas funções

diante dos mais diversos movimentos artísticos, políticos e filosóficos. Ora

pressupõe o ilusionismo ao contar uma história, provocando a piedade e o terror por

meio de personagens que falam e que agem dramaticamente aos olhos de uma

plateia observadora; ora se apresenta como uma comunicação direta ao público,

exemplificando as problemáticas do mundo e exigindo uma interação e um

posicionamento de quem assiste; ora esvaziado de sentidos dramáticos, exigindo

assim novas possibilidades de enunciação e comunicação por meio de estruturas

textuais.

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Entretanto, o texto teatral, para além de sua função dramática, é uma

estrutura primordialmente concebida como um texto escrito para ser falado em cena.

Ou seja, ao escrever, o dramaturgo forja o que ele pretende que sejam estruturas

linguísticas que se aproximem da língua falada e, para sua ativação efetiva,

pressupõe-se a voz de um enunciador/ator, seja na forma de um diálogo

convencional, seja na estruturação de um monólogo, em uma comunicação ou

narração direta à plateia.

Dessa maneira, o texto dramático é parte integrante da maquinaria cênica,

portanto, não constitui sozinho o evento teatral. Sob essa perspectiva, o ator é peça

fundamental para a constituição da encenação, pois é o emissor da fábula, na

medida em que é significado pelo texto, faz o texto significar para o público a cada

apresentação da obra teatral.

O ator é o sujeito crítico fundamental para estabelecer a comunicação efetiva

entre as ideias do dramaturgo e a plateia por meio do ato comunicativo, que se

denomina como dupla enunciação, ou seja, quando o diálogo ocorre na instância

fabular sobre o palco, o público estabelece, por meio daquele diálogo entre

atores/personagens, uma comunicação direta com o autor da obra.

As técnicas do trabalho do ator adquiriram cada vez maior relevância ao longo

da história do teatro, daí ser essencial o aprimoramento de sua voz e seu corpo, pois

passaram a ser vistos como instrumentos de trabalho necessários para o

desenvolvimento das linguagens cênicas e da materialização da encenação.

As escolas de teatro, então, surgem como instituições importantes para a

formação do ator, sobretudo na contemporaneidade, cujo tempo destinado à criação

artística é curto e a cobrança por produtos artísticos, urgente. O ator, então, para

corresponder a essa dinâmica capitalista do mundo contemporâneo, deve conhecer

suas ferramentas de trabalho, a fim de corresponder artisticamente às expectativas

do “mercado profissional”. Portanto, a escola de teatro é para os atores o momento

da tomada de consciência de suas ferramentas de criação, de seu aprimoramento

intelectual e das provocações necessárias para o desenvolvimento de um olhar

crítico sobre o mundo.

Desse modo, o recorte dessa pesquisa será referente à instrumentalização do

ator em relação ao seu trabalho vocal diante do texto de um dramaturgo. A

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encenação de uma peça teatral envolve um jogo de expressões vocálicas e

corporais, com base no ponto de vista adotado pelo diretor e pelos atores, que

implica a transposição do texto escrito para a atuação oral. Nesse sentido, a questão

que norteia esta pesquisa é: Quais operações de retextualização, da modalidade

escrita para a modalidade oral, podem ser catalogadas num exercício cênico de

montagem e de ensaio teatral?

A escolha do corpus (ANEXO) nesta dissertação direcionou-se ao estudo dos

procedimentos pedagógicos para a oralização do texto teatral, desenvolvidos pela

disciplina de Expressão Verbal, ministrada pela professora Maria Isabel Setti ao

longo do ano de 2014 para a turma 65 da Escola de Arte Dramática situada na

Universidade de São Paulo.

Esta pesquisa acompanhou semanalmente as aulas de Expressão Verbal,

coletando por meio de gravações de áudio e vídeo desde exercícios abstratos

relacionados à materialização do som no espaço por meio da voz, até

sistematizações das ferramentas desenvolvidas com a palavra, a fala e o diálogo na

realização do exercício cênico. O texto Na solidão dos campos de algodão do

dramaturgo francês Bernard-Marie Kòltes (décadas de 1970/1980) foi escolhido

como material de trabalho para a realização da performance oral dos atores.

Para tal análise, partimos do princípio de que os estudos sobre modalidade

oral no teatro fazem-se necessários para a compreensão de como se estabelecem o

diálogo vertical entre dramaturgo, encenador, atores e plateia por meio da

dramaturgia e o diálogo horizontal entre sujeitos que representam personagens.

Na encenação de uma peça, principalmente dos textos clássicos, discute-se

muito a reprodução do diálogo na hora da performance, sua ocorrência ipsis litteris,

como está previsto no texto escrito, ou a existência de transformações linguísticas,

semânticas e sintáticas, no momento da oralização, para que se chegue a um

estado de criação de uma realidade que dê suporte ao modo como a encenação

entenderá o uso da língua falada em cena.

Logo, esta pesquisa tem como objetivo geral: traçar um trajeto interdisciplinar,

a partir dos procedimentos de retextualização entre o texto escrito e a língua falada

no teatro, por meio dos estudos sociointeracionistas sobre Oralidade Literária,

Análise da Conversação, Sociolinguística e Psicolinguística. Além de estabelecer

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uma relação reflexiva com os estudos referentes à voz, ao texto, à oralidade e à

expressividade, ao tratar da construção de sentidos, desenvolvidos na obra teatral

no campo das Artes Cênicas, propondo assim uma reflexão que possa ajudar no

desenvolvimento teórico e prático dessas áreas de conhecimento.

Desse modo, delimitamos nossa pesquisa, por meio de nossos objetivos

específicos da seguinte maneira: evidenciar os mecanismos linguísticos,

semânticos, sintáticos e prosódicos utilizados pelo ator para transpor a modalidade

escrita para a modalidade oral; apontar as construções de sentido feitas pelos atores

ao retextualizarem a modalidade de texto escrito para a modalidade de texto falado

na criação e construção das cenas do texto Na solidão dos campos de algodão do

dramaturgo francês Bernard Marie-Kòltes; desenvolver um panorama histórico

acerca da importância da Escola de Arte Dramática como uma instituição formadora

de atores que contribui para a constituição do Moderno Teatro Brasileiro; analisar

como se dá a pedagogia de expressividade com a palavra, desenvolvida pela

disciplina de Expressão Verbal da Escola de Arte Dramática no ano de 2014 com a

turma 65. Para isso, a presente pesquisa divide-se em quatro capítulos.

No capítulo 1, desenvolvemos o referencial teórico a ser utilizado pela

pesquisa para que seja demonstrado, com base no viés sociolinguístico e da análise

conversacional, as ferramentas necessárias utilizadas pelos atores para a

transposição do texto escrito para o texto falado no momento de sua oralização.

Elaboramos uma contextualização sobre os principais aspectos da Análise da

Conversação, verticalizando assim os procedimentos metodológicos e de análise do

corpus sobre três aspectos: os Marcadores Conversacionais, os procedimentos de

Paráfrase e os procedimentos de Correção.

No capítulo 2, tratamos, primeiro, dos aspectos relativos à constituição do

discurso teatral e sua influência na estruturação do texto de teatro. A seguir,

partimos para a distinção dos aspectos da pedagogia da oralidade teatral no campo

das Artes Cênicas, em que se evidenciou a dicotomia entre o teatro épico e o teatro

dramático e suas implicações na oralização das falas do texto pelos atores. Por fim,

o último tópico desse capítulo diz respeito aos procedimentos de retextualização do

escrito para o oral sob a perspectiva da Análise da Conversação e dos mecanismos

para a oralização do texto pelos atores a partir do conceito dos procedimentos de

retextualização.

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No capítulo 3, desenvolvemos uma visão histórica sobre a fundação e a

elaboração do projeto pedagógico da Escola de Arte Dramática, para que assim

fossem entendidos os pressupostos práticos e teóricos para a formação profissional

do ator brasileiro segundo a visão político-pedagógica da escola em questão ao

longo de seus 65 anos.

No capítulo 4, apresentamos a peça Na solidão dos campos de algodão,

considerando os três primeiros textos que tratam da contextualização da obra entre

os movimentos artísticos pós-modernistas e pós-dramáticos da Europa da década

de 80, 90 e 2000, assim como esboçamos uma breve biografia de Bernard-Marie

Kòltes, a fim de que fosse proporcionado um panorama da vida e da obra do autor

tratado em nossa análise. Por fim, o capítulo é composto pela análise do corpus por

quatro trechos de diferentes ocorrências da produção textual dos atores. Esses

casos foram selecionados, pois denotam de maneira satisfatória os procedimentos

de retextualização como procedimentos pedagógicos para uma efetiva experiência

expressiva com a palavra oralizada.

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CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO

APRESENTAÇÃO

Neste capítulo, abordaremos as concepções teóricas acerca da natureza do

texto falado e da natureza do texto escrito, de maneira a se estabelecer um

entendimento sobre os procedimentos organizadores da produção desses dois tipos

de texto. Isso posto, discutiremos a presença das marcas de oralidade no texto

literário.

Para isso, verticalizaremos o desenvolvimento do capítulo à luz dos

referenciais teóricos da Análise da Conversação, dando ênfase às ferramentas que

serão utilizadas para analisar nosso corpus: os Marcadores Conversacionais, os

procedimentos de Paráfrase e de Correção. Portanto, o capítulo tem por objetivo

específico: evidenciar os mecanismos linguísticos, semânticos, sintáticos e

prosódicos utilizados pelo ator para transpor a modalidade escrita para a modalidade

oral.

1.1 A NATUREZA DO TEXTO ORAL E A NATUREZA DO TEXTO ESCRITO

O texto oral e o texto escrito podem ser denominados como pertencentes ao

conjunto de práticas sociais e culturais de uma mesma língua, e são vistos como

“resultados da atividade verbal de indivíduos socialmente atuantes, na qual estes

coordenam suas ações no intuito de alcançar um fim social, de conformidade com as

condições sob as quais a atividade verbal se realiza” (KOCH, 2003, p.26).

No entanto, o que difere a escrita e a fala em seus aspectos estruturais são

seus modos de produção, “a escrita tem sido vista como estrutura complexa, formal,

abstrata, enquanto a fala, de estrutura desestruturada, informal, concreta e

dependente do contexto” (FÁVERO, ANDRADE E AQUINO, 2005, p.9).

Na análise da produção de um texto oral, é necessário identificar como se

compõe a situação comunicativa dos falantes de determinado grupo social: suas

crenças, interesses, modos e emoções. Deve ser levada em conta a atitude dos

participantes envolvidos na situação comunicativa, quais são suas opiniões e como

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se comportam em relação ao tópico discursivo, por meio de seus aspectos

linguísticos, prosódicos e paralinguísticos.

A estrutura de produção do texto escrito se estabelece como “um evento

comunicativo no qual convergem ações sociais, cognitivas e linguísticas”

BEAUGRANDE apud KOCH e ELIAS, 2010, p.34), portanto sua produção é uma

prática que pressupõe um autor e um leitor virtual que tenha acesso à esfera social

em que o texto circula, cujo grau de letramento e escolarização sejam suficientes

para dominar e ler os códigos pressupostos para aquele determinado contexto de

circulação.

Ao serem comparados os modos de produção do texto escrito em relação aos

modos de produção do texto falado, é possível perceber que, embora nas duas

produções o sistema linguístico seja o mesmo para a construção das frases, “as

regras de sua efetivação, bem como os meios empregados, são diversos e

específicos, o que acaba por evidenciar produtos diferenciados” (MARCUSCHI,

2007, p.62).

As condições de produção do texto falado e do texto escrito ocorrem de

maneiras distintas. Enquanto o primeira tem uma exposição imediata da face de

seus participantes, porque há uma construção coletiva do discurso, a segunda

pressupõe um acordo prévio entre escritor e leitor, o escritor expõe todo seu ponto

de vista fazendo de seu interlocutor um sujeito reflexivo por meio de sua elaboração

textual.

Ao tratar do texto escrito e do texto falado, perceber-se-á que ambos são

constituídos por uma mesma natureza – os códigos da língua –, porém o que os

diferirá serão seus meios de produção, pois é pressuposto para a formulação de um

texto a transição do grau mais informal da produção textual para o grau mais formal,

e acordo com o tipo de situação comunicativa em que haja a produção de um

determinado tipo de texto, haverá uma adequação desta produção ao meio em que

circulará. Segundo Fávero, Andrade e Aquino (2005, p.74)

Para o estabelecimento das relações entre fala e escrita, sem que haja distorção do que de fato ocorre, é preciso considerar, portanto, as condições de produção. Estas possibilitam a efetivação de um

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evento comunicativo e são distintas em cada modalidade, como se pode constatar no esquema a seguir:

FALA ESCRITA

- Interação face a face; - Interação à distância (espaço-temporal);

- Planejamento simultâneo ou quase

simultâneo à produção;

- Planejamento anterior à produção;

- Criação coletiva: administrada passo a

passo;

- Criação individual;

- Impossibilidade de apagamento; - Possibilidade de revisão;

- Sem condições de consulta a outros

textos;

- Livre consulta;

- A reformulação pode ser promovida tanto

pelo falante como pelo interlocutor;

- A reformulação é promovida apenas pelo

escritor;

- Acesso imediato às reações do

interlocutor;

- Sem possibilidades de acesso imediato;

- O falante pode processar o texto,

redirecionando-o a partir das reações do

interlocutor;

- O escritor pode processar o texto a partir

das possíveis reações do leitor;

- O texto mostra todo o seu processo de

criação;

- O texto tende a esconder o seu processo

de criação, mostrando apenas o resultado;

Fonte: Fávero, Andrade e Aquino (2005, p.74)

Por fim, a partir dessa ideia, ao serem comparadas a natureza dos modos de

produção e de estruturação do texto escrito e do texto falado, é possível constatar

que, para os procedimentos de produção textual, é pressuposta a ação de um

sujeito-entidade psico – físico – social – “que, em sua relação com outro(s) sujeito(s),

constrói o objeto – texto, levando em consideração todos os fatores acima

mencionados, combinando-os com suas necessidades e objetivos” (KOCH, 2003,

p.24), ou seja, a produção textual se constitui como uma prática social que

pressupõe a interação entre os agentes sociais envolvidos neste evento discursivo,

sejam eles falante/ouvinte, autor/leitor etc. A partir dessa perspectiva, este trabalho

se aprofundará na escrita literária, fazendo um recorte dentro da literatura

dramatúrgica. Como dito anteriormente, buscaremos a elaboração de uma reflexão

acerca das estratégias de intersecção entre oralidade e literatura propostas pelo

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dramaturgo em seu texto teatral, quando esse texto é confrontado com a sua

oralização de fato na montagem de uma peça teatral.

1.2 A ORALIDADE LITERÁRIA

Segundo Urbano (2000, p.128), a língua literária se define como sendo

“criada e recriada parcialmente dentro de um texto literário, com valores e funções

vinculadas à intenção estética do autor”, ou seja, o código utilizado na linguagem

literária tem uma intenção estética prevista e elaborada pelo autor que cria,

artificialmente, os traços de coloquialidade, os referentes, etc. de forma organizada

no texto, pois supõe uma interação em que o leitor contribua com a construção dos

sentidos da obra a partir de sua leitura, inferência e pessoalidade. De acordo com

Urbano (2000, p.129):

A artificialidade patenteia-se, em primeiro lugar, por ser uma língua “escrita”, condicionada, pois, às técnicas próprias da língua escrita; passa depois pela estruturação narrativa planejada e termina por uma linguagem estilizada. Os diálogos, por exemplo, que na língua falada espontânea nascem e se desenvolvem muitas vezes ao sabor das situações e alheios à vontade dos falantes, têm, na língua literária, sempre propósitos definidos pelo autor/narrador, embora dando uma ilusão contrária.

Dessa maneira, ao analisarmos a presença da oralidade na literatura, é

possível perceber que a obra literária, apesar de conter marcas de oralidade ou

exemplificações dos falares de uma determinada época, não traz um retrato fiel da

oralidade corrente de tempo, “mesmo porque foram desiguais, ao longo da história

literária, as relações entre linguagem de ficção e a linguagem oral” (PRETI, 2004a,

p.117-118). No entanto, o mais prudente seria afirmar que a obra literária é

influenciada pela forma de falar de uma determinada época. Para tal afirmação,

apoiar-nos-emos em Preti (2004a, p.117):

Seria temerário afirmar, entretanto, que estudando-se a língua de uma época por meio de narrações, ou diálogos literários (ou teatrais), teríamos uma visão real do que foi a língua falada dessa época (...). Mas podemos dizer que, em todos os momentos da literatura, encontramos autores que se deixaram influenciar pela oralidade,

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levando para a escrita variantes que deveriam ter sido comuns em seu tempo.

Contudo, ao serem observados os diálogos na literatura, é possível constatar

que muitos fatos que incidem sobre o ato conversacional ficcional recriam, por meio

dos artifícios do texto escrito, os mecanismos da língua falada. Assim, quando uma

cena é construída com o uso abundante de reticências e um narrador entrecortando

as falas, cria-se, por meio desse tom, um certo tipo de realidade linguística parecido

com o da fala cotidiana e fica proposta uma variável psicológica para a personagem.

Para realizar esse tipo de observação, Preti (2004b) desenvolveu uma

metodologia de análise para os textos de ficção em que discorre sobre o fenômeno

das marcas de oralidade na literatura, a partir da perspectiva da macro e

microanálises da conversação literária. Em uma primeira instância, na macroanálise

pressupõe-se um levantamento do contexto histórico e geográfico da personagem,

fatores extralinguísticos, grau de escolaridade, profissão, posição social, faixa etária

e sexo. Em seguida, para o levantamento de dados da microanálise, devem ser

levadas em consideração as informações trazidas pela situação interacional a fim de

compreender os fatores pragmáticos que envolvem a fala, ou seja, de que maneira,

por meio das evidências textuais, a caracterização social e psicológica da

personagem se legitima no diálogo literário. Nessa seara serão analisadas as

estratégias conversacionais utilizadas pelos falantes durante o diálogo, suas marcas

linguísticas, seu léxico, ou seja, todas as marcas que constituem um turno

conversacional.

No entanto, quando se trata de um diálogo real, é possível perceber que, ao

ser estabelecida uma interação com determinado falante, cuja posição social, sexo,

escolaridade, etc. sejam conhecidas, cria-se para o ouvinte, por meio de

enquadramentos, o pressuposto de como o diálogo se desenvolverá. Em

contrapartida, quando se fala sobre a criação de um diálogo literário, em que a

situação comunicativa é forjada pelo autor, é possível perceber que o

desenvolvimento desse tipo de ato conversacional ficcional será trabalhado por meio

de frames, que são definidos da seguinte maneira por Preti (2004b, p.145)

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Os frames têm aspecto dinâmico na conversação. Mudam constantemente de direção, variam de ouvinte; revelam posturas diferentes dos falantes; podem justificar frases desligadas da situação, motivadas por alguma ocorrência paralela durante a interação; projetam o eu do falante, na relação com o ouvinte ou consigo mesmo ou com o próprio discurso. Enfim, os frames “passeiam” pelo discurso e é preciso estar atento a esse footing, palavra pela qual é conhecido esse fenômeno conversacional (Goffman, 19811), em que a linguagem de um interlocutor muda de alinhamento, ou seja, dirige-se a outros interlocutores ou fala de outras coisas, de repente.

Dessa maneira, os frames são trabalhados no texto literário de modo a

surpreender o leitor, que deve se colocar atento às mudanças dos enquadramentos

propostos na ficção. Entretanto, essas mudanças, ao longo do texto, só serão

aceitas na medida em que forem compreensíveis ao leitor, que está acompanhando

o fluxo do diálogo e dos tópicos discursivos desenvolvidos na ficção.

A macro e a microanálise das variações da linguagem nos levam a um

esquema teórico de como as personagens literárias devem falar, seguindo um

levantamento sobre suas variáveis socioculturais e psicológicas enquadradas em um

determinado frame que dá a quem lê ou a quem assiste à determinada cena o

reconhecimento de estruturas de expectativas que podem ser atendidas ou

quebradas de acordo com o contexto situacional proposto pelo autor.

Por fim, passaremos para o levantamento dos principais aspectos

estruturadores do diálogo propostos pela Análise da Conversação, de modo que

possamos organizar um olhar acerca dos seguintes elementos do texto falado: os

Marcadores Conversacionais, os procedimento de Paráfrase e os procedimentos de

Correção que constituirão as categorias de análise de nosso corpus.

1.3 A ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO

A conversação é a prática mais comum no dia a dia do ser humano e se

constitui como o gênero básico da interação humana, “o intercurso verbal em que

dois ou mais participantes se alternam, discorrendo sobre tópicos propiciados pela

vida diária.” (CASTILHO, 2006, p.29). Podemos observar que a linguagem em si “é

essencialmente de natureza dialógica” (MARCUSCHI, 2007, p.14), ou seja, a

1 GOFFMAN, Erving. Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981.

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conversação é produzida por meio de interações, há sempre alguém que fala,

emissor, para alguém que escuta, receptor, e esses papéis se alternam a todo

momento no diálogo cotidiano.

O momento da conversação exige habilidades que extrapolam a simples

apreensão linguística do falante. O emissor deve indicar que fala com alguém ao

utilizar recursos paralinguísticos (olhar, direcionamento do corpo, riso, etc.), que

denotem o envolvimento com seu receptor, ou então utilizando marcadores

conversacionais que façam a manutenção do acompanhamento, pelo outro, do texto

produzido. Em contrapartida, o receptor deve produzir sinais que demonstrem ao

falante seu envolvimento e compreensão do que está sendo dito. Esses sinais

podem ser de natureza paralinguística ou identificados como marcadores verbais ou

não verbais. A respeito dessa troca de evidências comunicativas, Kerbrat-Orechioni

(1996, p.8) afirma:

Para que haja troca comunicativa, não basta que dois falantes (ou mais) falem alternadamente; é ainda preciso que eles se falem, ou seja, que estejam ambos “engajados” na troca e que deem sinais desse engajamento mútuo, recorrendo a diversos procedimentos de validação interlocutória. Os cumprimentos, apresentações e outros rituais “confirmativos” desempenham, nesse sentido, um papel evidente. Mas a validação interlocutória se efetua, sobretudo, por outros meios mais discretos e, no entanto, fundamentais.

Portanto, o estudo da Análise da Conversação (AC) preocupa-se não só com

o estudo da utilização do código ou dos conhecimentos linguísticos, mas também

atenta para o estudo da interação humana por meio da linguagem e de

conhecimentos paralinguísticos e socioculturais.

Ao contrário do que se pensa, a conversação não é um fenômeno anárquico e

aleatório, mas sim uma estrutura altamente organizada e que reflete um processo

subjacente, desenvolvido, percebido e utilizado pelos participantes da atividade

comunicativa, ou seja, o entendimento dos falantes numa conversação ocorre por

meio de inferências contextuais e semânticas mutuamente construídas pelos

pressupostos cognitivos de cada um. Portanto, no jogo conversacional os

participantes se utilizam de perguntas e respostas, asserções e réplicas, numa

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intersecção de turnos para que haja uma hierarquização na hora de tomar a palavra.

Entenderemos turno segundo a concepção de Luiz Antônio Marcuschi (2007, p.89):

técnica e estruturalmente, é a produção de um falante enquanto ele está com a palavra, incluindo a possibilidade de silêncio, que é significativo e notado. A expressão “ter o turno” equivaleria então a “estar na vez”, “ter a palavra e estar de fato usando-a”. Daí não se considerar como turno a produção do ouvinte durante a fala de alguém, embora isto tenha repercussão sobre o que fala. Importante não confundir turno com ato de fala realizado em movimentos sucessivos. No caso do turno “você me emprestaria o telefone/que o meu está quebrado?”, temos dois atos de fala e um turno.

Para ocorrer a interação na conversação, é necessário que os participantes

saibam inferir sobre o tópico discursivo, ao tornar o momento conversacional uma

atividade social que requer esforços de entendimento de ambos os participantes. A

proposta de Dittman (apud MARCUSCHI, 2007, p.15) considera as seguintes

situações para que haja o desenvolvimento de uma situação conversacional:

a) Interação entre pelo menos dois falantes; b) ocorrência de pelo menos uma troca de falantes; c) presença de uma seqüência de ações coordenadas; d) execução num determinado tempo; e) envolvimento numa interação central;

Steger (apud MARCUSCHI, 2007, p.16) distingue a conversação em dois

tipos de diálogos. Os diálogos assimétricos, em que um participante toma o turno

durante toda a conversação e tem o direito de iniciar, orientar e concluir a interação;

é o caso de entrevistas, inquéritos e momentos onde haja uma centralização da

palavra por alguém que representa uma figura de poder socialmente constituída.

Nos diálogos simétricos há a descentralização do poder da palavra e todos os

participantes podem tomar o turno e interagir, ou seja, conversas cotidianas e

corriqueiras.

A partir dessa ideia da análise de conversações em situações naturais ou os

estudos sobre a etnometodologia, representada por Sacks, E. E. Shegloff e G.

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Jeferson (1974 apud KERBRAT-ORECHIONI, 1996, p.21) afirmaram que a

conversação é um

lugar privilegiado de observação da organização social”, pois nela é perceptível os falantes atuando conjuntamente na “gestão de diferentes tarefas que eles têm de completar (assegurar a alternância dos turnos de fala, „corrigir‟ as eventuais falhas da troca comunicativa, conduzir uma narrativa ou descrição, encaminhar de modo eficaz a negociação dos temas, da abertura e do encerramento

da troca (de turnos)2 etc.)

Ao observarem a conversação como um sistema de cooperação e tomada de

turno cujas interações são espontâneas, informais, casuais e sem hierarquias,

Sacks, E. E. Shegloff e G. Jeferson (1974), (apud MARCUSCHI, 2007, p.18)

elaboraram um esquema válido para análise de interações espontâneas. Assim,

podemos esperar de uma conversação:

a) A troca de falantes recorre ou pelo menos ocorre; b) em qualquer turno, fala um de cada vez; c) ocorrência com mais de um falante são comuns, mas breves; d) transições de um turno a outro sem intervalos e sem

sobreposição são comuns; longas pausas e sobreposições extensas são a minoria;

e) a ordem dos turnos não é fixa, mas variável; f) o tamanho do turno não é fixo, mas variável; g) a extensão do turno não é fixa nem previamente especificada; h) a distribuição dos turnos não é fixa; i) o número de participantes é variável; j) a fala pode ser contínua ou descontínua; k) são usadas técnicas de atribuição de turnos; l) são empregadas diversas unidades construidoras de turno:

lexema, sintagma, sentença etc; m) certos mecanismos de reparação resolvem falhas ou violações

nas tomadas;

Posto isso, é possível dizer que a conclusão de um turno pode ser

representada por aquilo que o falante faz ou diz, sendo relevada até mesmo a

possibilidade do silêncio. A partir dessa ideia, questões como: quando se constitui

ou não um turno, o que determina a mudança de turno e qual o momento propício

2 Grifo meu.

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para ocorrer a mudança de turno tornam-se temas recorrentes dentro do estudo da

Análise da Conversação (AC).

A regra básica de tomada de turno descrita por Marcuschi (1996, p.18)

consiste em que um falante fala por vez, sendo a tomada de turno um mecanismo-

chave para a estruturação da conversa, “a passagem de turno se dá por „assalto ao

turno‟, ou por passagem consentida ao turno” (CASTILHO, 2006, p.38) e ocorre ao

longo de toda a produção do diálogo informal, sem que haja uma hierarquização no

que diz respeito à ordem de quem fala.

No entanto, quando há o truncamento da conversação por falas simultâneas e

sobreposições, atos que colocam o sistema de tomada de turno em perigo, alguns

estruturadores e reparadores da tomada de turno são utilizados. Podemos destacar

como exemplos o uso dos marcadores metalinguísticos/conversacionais, as pausas,

silêncios, hesitações, as reparações e correções, como processos de edição ou

autoedição conversacional do turno que está sendo elaborado.

Até agora, observamos apenas os aspectos da organização local da

conversação. Há também organizadores que se estendem ao nível da sequência,

que ocorrem no meio da alternância de turnos e são denominados sequências em

movimentos coordenados e cooperativos, chamados por Schegloff (apud

MARCUSCHI, 2007, p.35) de pares adjacentes. Esses pares podem ser

exemplificados como pergunta e resposta, cumprimento-cumprimento, xingamento-

defesa/revide, ordem-execução, convite-aceitação/recusa, pedido de

desculpa/perdão, entre outros.

São organizadores que sempre co-ocorrem e estão ligados uns aos outros,

sem que haja uma segunda possibilidade ou outras ações, a não ser as

possibilidades já previstas e esperadas. É também por meio desses organizadores

que a primeira parte da sequência selecionará o próximo falante e determinará a sua

ação. Com base no aspecto semântico-pragmático, os pares são entendidos como

indícios de existência de compreensão entre os falantes. Dessa forma, percebemos

como os falantes analisam suas contribuições para a conversação e que, de acordo

com a estruturação desses organizadores, quem iniciou o turno pode, ou não, se dar

ao direito de voltar a tomar o turno num terceiro momento. Portanto, os pares têm

tanto a função de organizar os turnos, quanto de mecanismos de seleção de

falantes.

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Os pares conversacionais contribuem para a AC como indicadores de que o

plano da conversação não é apenas formado pela simples ação linguística, mas

encontra-se amalgamada a essa ação uma sequência de atividades, ou seja, o ato

de fala isolado não é a unidade mais adequada para a análise dos mecanismos

conversacionais, pois é o meio que determinará sua localização na atividade social,

tratando-se de uma sintaxe sociocultural e não linguística, cujas regras não podem

ser formuladas como as regras sintáticas da língua.

1.3.1 Marcadores conversacionais

Os marcadores do texto conversacional são conceituados pela AC como

“organizadores globais” do texto falado. Esses elementos são específicos e

particulares do momento da elaboração do turno enunciativo de cada falante e

obedecem aos princípios da produção textual por meio da interação comunicativa

espontânea.

Dessa maneira, torna-se possível distinguir os Marcadores Conversacionais

(MC) em seus aspectos formais, semânticos e sintáticos, pois se relacionam tanto

com as estruturas linguísticas internas de organização da conversação, quanto com

os aspectos interacionais de um diálogo entre falantes. Os MC “verbalizam o

monitoramento da fala, sendo frequentemente vazios de conteúdo semântico,

portanto, irrelevantes para o processamento do assunto, porém altamente relevantes

para manter a interação” (CASTILHO, 2006, p.47).

Esses recursos linguísticos subdividem-se em três tipos de evidências: a)

verbais, b) não verbais e c) suprassegmentais. São auxiliadores no momento de

ligação das Unidades Comunicativas (UC)3 e mantém o fluxo conversacional, ao

ocuparem várias posições dentro do diálogo como: o momento da troca de falantes,

a mudança de tópicos, as falhas de construção em posições sintaticamente

regulares etc. Podendo, então, atuarem como iniciadores (de turno ou UC) ou

finalizadores. Segundo Urbano (2003, p.98), os MC

3 A expressão unidade comunicativa (UC) é tomada por Marcuschi (2003:61-62) segundo a definição de Rath (1979): como um substituto conversacional para a frase, ou seja, é a expressão de um conteúdo que pode dar-se, mas não necessariamente, numa unidade sintática tipo frase. Trata-se de uma noção pré-teórica, assim como a noção do tópico, e, nesse contexto, opera como categoria descritiva de unidades que podem ou não coincidir com a frase. Reflete nossa experiência comunicativa a respeito do que seja uma frase.

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Não integram propriamente o conteúdo cognitivo do texto. São, na realidade, elementos que ajudam a construir e dar coesão e coerência ao texto falado, especialmente dentro do enfoque conversacional. Nesse sentido, funcionam como articuladores não só das unidades cognitivo-informativas do texto como também dos seus interlocutores, revelando e marcando, de uma forma ou de outra, as condições de produção do texto, naquilo que ela, a produção, representa de interacional e pragmático. Em outras palavras, são elementos que amarram o texto não só como estrutura verbal cognitiva, mas também como estrutura de interação pessoal.

As UC são constituídas por elementos estruturantes como pausa, entonação,

elementos lexicais e paralexicais. A partir da incidência desses tipos de marcadores

conversacionais que organizam e estruturam o turno conversacional, quando

confrontados com os aspectos gramaticais, esses marcadores encontram sua

equivalência no texto escrito em forma de elipses, anacolutos, parênteses, etc. A

importância desse tipo de confronto deve-se à possibilidade de relacionar os

aspectos descritivos da gramática da língua escrita aos aspectos sintáticos da

produção do texto falado.4 As classes desses marcadores podem ser denominadas

da seguinte maneira:

a) recursos verbais: classe de palavras ou expressões altamente

estereotipadas. Não trazem informações novas para o desenvolvimento do tópico,

mas situam-no no contexto particular ou pessoal da conversação. Alguns não

chegam a ser lexicalizados: “mm”, “ahã”, “ué”, etc.

b) recursos não verbais: são paralinguísticos tais como o olhar, o riso, os

meneios da cabeça, a gesticulação. É fundamental na interação face a face.

c) recursos suprassegmentais: são de natureza linguística, mas não de

caráter verbal, por exemplo, as pausas, a voz, a entonação, a cadência e a

velocidade, que caracterizam relações pessoais e de conteúdo.

Para R. Rath (apud MARCUSCHI, 2007, p.63-64), as pausas podem ser

divididas da seguinte maneira: pausas sintáticas de ligação e de separação; pausas

não sintáticas de hesitação e de ênfase.

4 Marcuschi se apoiará, para fundamentar sua fala, nas linhas teóricas de linguistas alemães como R. Rath (1979), cuja a premissa é a de que tanto na produção oral como na escrita o sistema linguístico é o mesmo para a construção das frases, mas as regras de sua efetivação bem como os meios empregados são diversos e específicos, o que acaba por evidenciar produtos linguísticos diferenciados. Essa posição que também será defendida pelos funcionalistas de M. A. Halliday (1985).

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De acordo com Marcuschi (2007), esse tipo de classificação apresenta alguns

problemas. As pausas de separação e as de hesitação podem, às vezes, ter a

mesma função sintática. E algumas pausas de hesitação têm por vezes uma função

semelhante às de ligação, sobretudo quando ocorrem no interior de uma unidade.

Diante das afirmações, podemos observar a caracterização dos fenômenos

de hesitação com base nas incidências de repetições, pausas meditativas e

preenchidas, marcadores de planejamentos cognitivos textuais em oposição a outros

sinais.

Assim, é possível supor que, dentro da organização textual da fala, há a

manifestação de marcadores de hesitação reconhecidos como marcadores

provenientes da natureza prosódica como ah, uh, eh, etc. e são “frequentemente

preenchedores de pausas indicativas de hesitação ou planejamento textual”

(URBANO, 2003, p.107), como nos momentos em que há a passagem de um tópico

a outro quando se apresenta um novo argumento.

No que tange à compreensão sobre os tipos, as funções e as posições dos

marcadores conversacionais, pode-se dizer que os sinais verbais são subdivididos

em dois grandes grupos: a) sinais dos falantes e b) sinais dos ouvintes; eles também

podem ter funções específicas: 1) funções conversacionais e 2) funções sintáticas.

Os sinais e as funções acima destacados podem ocorrer em várias posições

dentro do turno ou então na sequência de turnos. Esses sinais aparecem em

qualquer tipo de elaboração do texto oral, seja em uma conferência, uma aula, uma

conversação formal ou informal, etc. Segundo Marcuschi (2007, p.67):

Seria oportuno investigar esse tipo de questão mais a fundo, uma vez que a determinação desses padrões dá uma ideia de variação social da organização sintática e suas influências sobre os processos argumentativo e inferencial. Por outro lado, o poder comunicativo de tais sinais é imenso, e um ouvinte, mesmo entendendo mal uma língua, pode sustentar um “diálogo” por longo tempo emitindo corretamente os sinais do ouvinte.

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SINAIS DO FALANTE (orientam o ouvinte)

Pré-posicionados

Pós-posicionados

No início do turno

Ex:

“olha” “veja” “bom”

“mas eu” “eu acho” “não, não”

“epa” “peraí”

“Certo, mas” “sim, sei, mas” “quanto a isso”

“nada disso” “você esquece” “Como assim?”

Etc.

O início da unidade

comunicativa.

Ex:

“então” “aí”

“daí” “portanto”

“agora veja” “porque”

“e” “mas”

“assim” “por exemplo”

“digamos assim” “quer dizer” “eu acho”

Etc.

No final do

turno

Ex:

“né” “certo?” “viu?”

“entendeu?” “sacô?”

“é isso aí” “que acha?” “E então?” “diga lá” “é ou não

é?” Etc.

No final da unidade

comunicativa

Ex:

“né” “não sabe?”

“certo?” “entende?”

“de acordo?” “tá?”

“não é?” Etc.

SINAIS DO OUVINTE (orientam o falante)

convergentes

Indagativos

divergentes

Ex:

“sim” “ahã”

“mhm” “claro”

“Pois não” “de fato”

“claro, claro” “isso”

“ah, sim” “ótimo”

“taí” Etc.

Ex:

“será?”

“não diga” “mesmo”

“é?” “ué”

“como?” “como assim?”

“o quê?” Etc.

Ex.

“não”

“duvido” “discordo” “essa não”

“nada disso” “nunca” “peraí” “calma”

Etc.

Fonte: Marcuschi (2007, p.68)

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É possível observar que esses sinais ou marcadores operam tanto no nível

conversacional como no nível sintático. Em relação às funções conversacionais,

temos os sinais produzidos pelos falantes – como o preenchimento de pausas, o

tempo de organização do pensamento, o monitoramento do ouvinte, etc – como

sinais do ouvinte, em resposta ao falante, é possível observar ações

paralinguisticas que indicam sua atenção e seu envolvimento ao texto produzido.

Em relação às funções sintáticas, percebemos que esses sinais são

responsáveis tanto pela sintaxe como pelo encadeamento de estruturas linguísticas

do turno conversacional em que se relacionam propriedades semântico –

pragmáticas e formas linguísticas marcadas interacionalmente. Com base nessa

afirmação, podemos destacar suas formas, funções e posições como: sinais de

tomada de turno, sinais de sustentação de turno, sinais de saída e entrega de turno,

sinais de armação do quadro tópico, sinais de assentimento ou discordância, sinais

de abrandamento, marcadores de rejeição, verbos parentéticos, indagações

propostas e evasões.

Ao serem analisadas as funções dos marcadores dentro do turno

conversacional, é possível destacar três aspectos relevantes para a sua

compreensão no turno: formais, semânticos e sintáticos.

No que se refere aos aspectos formais, há os marcadores linguísticos e não

linguísticos. Os primeiros podem ser verbais – por exemplo, ahn ahn, eh, eh ou

sabe? Eu acho que – e prosódicos – como pausas, entonação, mudanças de ritmos

ou alturas. Os não linguísticos (olhar, riso, etc.) sinalizam as relações interpessoais

ora combinados com elementos simples (sabe?), ora combinados com elementos

compostos ou complexos (quer dizer, no fundo) e oracionais (eu tenho a impressão

de que).

Em relação aos aspectos semânticos dos MCs, podemos dizer, em

conformidade com Urbano (2003, p.100), que “a maioria desses elementos são

vazios ou esvaziados de conteúdos semânticos”. E, dessa maneira, podemos

destacar os seguintes elementos:

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elementos verbais e não lexicalizados: eh, ah, ahn ahn;

elementos lexicalizados: sabe? Certo?;

expressões semanticamente validas: eu acho que, eu tenho a impressão que;

elementos que mantém em maior ou menor grau a parcela de seu sentido: ou seja, esses elementos mantêm parcialmente seu sentido e sua função sintática originais, assumindo, concomitantemente, uma relação entre linguagem e seus usuários.

Por fim, temos os aspectos sintáticos cujos elementos são emissões

completas por si mesmas, mas que “entremeiam a estrutura oracional, sem, porém,

integrá-la sintaticamente” (URBANO, 2003, p.102). Essas estruturas podem ser

marcadores lexicalizados ou não. Quando são lexicalizados, esses marcadores

usufruem de uma liberdade sintática posicional dentro da oração, no entanto, “a

frequência com que certos marcadores ocorrem em determinadas posições tem

levado os estudiosos a classificarem-no como iniciais, mediais e finais em relação às

unidades linguísticas em que estão envolvidos” (URBANO, 2003, p.103).

Para concluir, podemos dizer que os recursos apontados aqui, no que diz

respeito à utilização dos marcadores conversacionais, ocorrem concomitantemente

e que seus aspectos formais se entrelaçam. Portanto, a análise de um marcador

conversacional deve ser feita de acordo com o seu contexto de produção,

funcionando, dessa forma, como um elemento de grande organização do turno

conversacional. Os marcadores conversacionais também servem como elementos

que auxiliam na fluidez e agilidade da dinâmica conversacional e podem também

denotar, por parte do falante, a verificação da participação e acompanhamento de

seu interlocutor ao tópico discursivo.

1.3.2 Paráfrase

Os interlocutores, quando se encontram em uma situação conversacional,

constroem cooperativamente um texto. O falante pretende que seu enunciado seja

linguisticamente estruturado de maneira que o ouvinte reconheça, acompanhe e

colabore com sua produção comunicativa.

O falante, porém, não sabe qual será a evolução desse turno enunciativo,

pois a formulação e o planejamento acontecem de acordo com a interferência e a

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sinalização do acompanhamento do ouvinte em relação a sua compreensão e

reelaboração do tópico discursivo desenvolvido. A incidência de descontinuidades e

reformulações em um texto de natureza oral, portanto, é recorrente, essas

descontinuidades se apresentam como a interrupção do turno enunciativo, pelo fato

de o falante não encontrar uma alternativa precisa para a formulação de sua ideia.

Logo, observa-se que a descontinuidade é um mecanismo para o falante buscar a

palavra ou a expressão adequada àquela situação comunicacional.

Ela também pode ser vista como um sinal do policiamento do falante às

possíveis faltas de entendimento sobre o tópico discursivo desenvolvidas no diálogo

por parte do ouvinte. Dessa maneira, o falante reelabora, por iniciativa própria, ou

pela ação de seu interlocutor, seu enunciado a fim de sanar os erros ou falhas

provenientes de seu texto original e assim garantir uma interlocução mais eficiente

em sua produção textual.

É importante ressaltar que a possibilidade de o ouvinte não compreender o

enunciado leva o falante a fazer reformulações preventivas, Hilgert (2003) propõe a

distinção entre esses problemas de reformulação do texto falado a partir dos termos

que designam problemas prospectivos e retrospectivos, conceitualizados da

seguinte maneira:

problemas prospectivos: consiste na previsão dos problemas

identificados pelo falante antes mesmo de serem constituídos no texto

do turno conversacional. Dessa forma, é possível perceber a

ocorrência de hesitações como procedimento de formulação do texto.

As hesitações podem ocorrer na forma de interrupção do fluxo

conversacional: pela repetição de termos para a elaboração mental do

texto; pelo alongamento de vogais ou consoantes; por pausas;

interrupção da sequência sintática para a inserção de um comentário

independente; etc. Os problemas prospectivos sempre serão

formulados “abrindo um tempo no curso formulativo à busca de uma

alternativa de formulação” (HILGERT, 2003, p.24). Portanto, as

hesitações presentes nos problemas prospectivos segundo Hilgert

(2003, p.125) são:

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a) o falante para o desenvolvimento da formulação; b) preenche com pausa, alongamentos ou outros recursos a lacuna

de tempo necessária para definir uma alternativa de formulação adequada;

c) definida esta alternativa, com ela continua a formulação. Às vezes, ao prosseguir, o falante retoma (repete) em parte ou no todo o segmento interrompido; outras vezes não dá continuidade à estrutura sintática do segmento interrompido, retomando-o só adiante, depois de intercalar um enunciado com estrutura sintática estranha à que estava em curso.

problemas retrospectivos: nesse tópico, podemos observar que a

reelaboração dos problemas ocorrem a partir da formulação de um

enunciado informacional completo. Ao longo do enunciado, o falante se

utiliza de marcadores que reformulam o texto a favor da aderência do

ouvinte à sua intenção comunicativa, que muitas vezes não está

explicitada objetivamente no enunciado original. Portanto, para não

ocorrer falta de compreensão, o falante interrompe o fluxo

conversacional e reelabora determinado tópico discursivo, retomando-o

em forma de Paráfrase. Ao elaborar um Enunciado Reformulador (ER),

na perspectiva da língua falada, é possível dizer que se pretende

estabelecer uma relação de equivalência semântica ao Enunciado

Original (EO) de forma que seu conteúdo seja explicitado ao ouvinte. A

paráfrase, portanto, será entendida como atividade de reformulação

de um enunciado original (EO). Segundo Hilgert (2003, p.126), as

reformulações paráfrasticas, nos problemas retrospectivos, ocorrem

como:

a) uma descontinuidade, pois retomar sempre significa interromper o fluxo formulativo em andamento;

b) um problema de formulação, pois além de o enunciador não encontrar uma alternativa de formulação imediata e definitiva, a retomada não é gratuita, isto é, alguma razão na interação comunicativa a determinou;

c) um problema retrospectivo, na medida em que, ao contrário do prospectivo, o falante só percebe o problema e suas dimensões, quando ele está sendo ou já se encontra linguisticamente elaborado, levando-o, então, a uma atividade metaformulativa.

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Também pode-se afirmar que a paráfrase deve ser uma atividade de

reformulação em que o texto original se restaura, segundo Fuchs (apud FÁVERO,

AQUINO, ANDRADE, 2005, p.59), “bem ou mal, na totalidade ou em parte, fielmente

ou não, o conteúdo de um texto fonte, num texto derivado” que “pode manifestar-se

em um grau maior ou menor, nunca, porém, como uma equivalência semântica

absoluta” (HILGERT, 2006, p.275).

A paráfrase pode ocorrer dentro de um diálogo para explicar o que um termo

significa; ou generalizar o enunciado em que se passa de uma informação explícita

ou exemplificada para uma informação geral, ou de caráter resumitivo, ou seja, sua

função principal é contribuir para a coesão do texto, mobilizando informações já ditas

e retomadas para garantir a intercompreensão dos falantes. De acordo com Castilho

(2012, p.413):

O paradoxo da paráfrase está nisto: é uma repetição de conteúdos que, precisamente por terem sido repetidos, acrescentaram-se semanticamente e, nesse sentido, mudaram. Não é preciso dizer mais nada para mostrar a importância da paráfrase na manutenção da conversação e na criação do texto.

Portanto, no texto falado, parafrasear é estabelecer uma relação de

equivalência semântica entre o Enunciado Reformulador e o Enunciado de Origem

para que se façam deslocamentos de sentidos que abranjam ou impulsionem

gradativamente o texto produzido. Desse modo, serão analisados, portanto, os

procedimentos e as funções de paráfrase por três aspectos discursivos: o aspecto

distribucional, o aspecto operacional e a semântica das relações parafrásticas.

Os aspectos distribucionais são as relações parafrásticas que se estabelecem

por meio de compartilhamento do tópico discursivo entre falante e ouvinte e são

subdivididos em dois tipos paráfrases adjacentes e paráfrases não adjacentes. O

primeiro tipo se organiza quando se estabelece uma relação com a EO de

organização das funções locais do turno conversacional, pois surgem para resolver

os problemas de entendimento do tópico tanto pela manifestação interacional do

ouvinte, como pela organização dos desdobramentos temático-argumentativos que

podem ocorrer a partir dessas inferências.

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No que diz respeito ao segundo tipo, paráfrases não adjacentes, percebemos

que estão ligadas à estruturação de tópicos discursivos mais longos, em que temos

a predominância de uma abordagem temática que se constitui como uma unidade

linear, ou seja, a atividade prafrástica, nesse tópico, se desenvolve como uma

atividade linguística dominante. Por exemplo, os tópicos conversacionais que são

desenvolvidos até a sua conclusão sem inferências significativas, e que ao final a

atividade parafrástica retoma o tópico discursivo como uma forma de resumo do que

foi dito.

A operacionalização nas relações parafrásticas, de acordo com Hilgert (2003,

p.135-138), ocorre por meio de quatro variações. A autoparáfrase, em que o falante

parafraseia seu próprio enunciado à medida que percebe os sinais de

incompreensão do ouvinte. Na heteroparáfrase o interlocutor parafraseia o

enunciado produzido pelo falante, o que corresponde a uma interação a partir da

compreensão do que foi dito. A paráfrase auto-iniciada, quando é desencadeada

pelo próprio falante a despeito do entendimento de qualquer sinal do ouvinte. E a

paráfrase heteroiniciada, quando é produzida por um interlocutor e desencadeada

por outro.

Há também os pares de autoparáfrases autoiniciadas e heteroiniciadas. A

primeira pressupõe a garantia ao ouvinte da compreensão dos enunciados, ou seja,

o ouvinte pode exigir do falante paráfrases que ajudem no entendimento do tópico

discursivo. Esse tipo de recurso é mais evidente em turnos longos em que não haja

alternâncias significativas, os sinais de participação do ouvinte ocorrem por

expressões lexicais não verbais como hm hm, ahn ahn, ou então por expressões

lexicais verbais como “certo”, “claro”, “é verdade”, pois elas servem como

monitoramento do falante em relação ao entendimento e acompanhamento do

ouvinte à evolução do texto produzido.

No que tange à incidência de heteroparáfrases autoiniciadas, percebemos a

ação mais efetiva dos interlocutores na coelaboração do texto conversacional por

meio da intercompreensão dos falantes “o autor da paráfrase explicita como

compreendeu o enunciado parafraseado e, em geral, recebe de seu interlocutor um

sinal ratificador, de que a intenção comunicativa foi definitivamente reconhecida”.

(HILGERT, 2003, p.138)

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Por fim, as heteroparáfrases autoiniciadas podem ser desestabilizadoras da

condução temática da conversação, pois, com base na abrangência informacional

do EO, alguns aspectos são selecionados e outros descartados na produção do ER.

A semântica das relações parafrásticas é o aspecto que estuda a forma como

o Enunciado Reformulador retoma e estabelece relações em maior ou menor grau,

por meio da paráfrase, com a dimensão significativa do Enunciado de Origem. Ao

mencionar essa gradação entre ER e EO, pode-se apontar o modo como ela ocorre

tanto pelo nível de conhecimentos extratextuais dos interlocutores, como pela pura

repetição do que foi enunciado no texto matriz. Castilho (2012, p.413) dá três

definições acerca das funções parafrásticas no tratamento discursivo do tópico: 1)

expansão vs. redução do tópico; 2) determinação vs. indeterminação do tópico; 3)

ênfase vs. atenuação do tópico

Já Hilgert (2006) discorre como o desenvolvimento das relações parafrásticas

do texto matriz ocorre no tópico discursivo em três tipos relevantes de paráfrases:

expansivas, quando na passagem para a paráfrase há um deslocamento do sentido

geral da matriz para o específico; redutoras, quando a paráfrase passa o sentido

específico da matriz para um sentido geral, condensado; paralelas, em que a

paráfrase mantém o sentido do texto matriz.

As funções das paráfrases expansivas e redutoras, segundo Hilgert (2003,

p.144), são:

Expansivas: a) dar explicações definidoras, de matrizes constituídas por

noções abstratas; b) explicitar, precisando ou especificando, informações contidas

nas matrizes. As explicações ocorrem, com frequência, por meio de exemplificações que não se identificam com as reformulações parafrásticas.

Redutoras: a) conferir uma denominação adequada, mais simples ou

abrangente a uma formulação complexa ou demasiadamente específica da matriz;

b) resumir o conjunto de informações que a matriz contém. O exercício desta ultima função coincide, normalmente, com o de concluir um tópico conversacional.

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Para concluir, afirmamos que os mecanismos de parafraseamento vistos

acima são partes constituintes da produção do texto falado, pois servem para

reelaborar o Enunciado Original, a fim de torná-lo acessível à contribuição da

construção da intercompreensão do diálogo entre falante e ouvinte. Dessa maneira,

passaremos ao levantamento dos procedimentos de Correção como outro elemento

que compõe as categorias de análise de nosso corpus.

1.3.3 Correção

A correção é um dos instrumentos de elaboração do texto falado e

desempenha a função de organizar e (re)formular um Enunciado Original, “formular

é efetivar atividades que estruturam e organizam os enunciados de um texto”

(FÁVERO, ANDRADE e AQUINO, 2006, p.256), ou seja, um enunciado é

reformulado a fim de garantir seu entendimento, seus reparos podem ser sintáticos,

lexicais, fonéticos, semânticos ou pragmáticos. As correções podem ocorrer tanto

por parte do enunciador, como por parte do enunciatário e tem como objetivo claro a

intercompreensão do texto produzido.

Esses processos de reformulação textual são denominados como

mecanismos de correção (MARCUSCHI, 2007, p.29) e funcionam como

processadores da edição conversacional. De acordo com Marcuschi (2007, p.29), há

uma tipologia geral para mecanismos de correção:

a) autocorreção auto-iniciada: é a correção feita pelo próprio falante logo após a falha; b) autocorreção iniciada pelo outro: é a correção feita pelo falante, mas estimulada pelo seu parceiro ou por outro; c) correção pelo outro e auto-iniciada: o falante inicia a correção, mas quem a faz é o parceiro; d) correção pelo outro e iniciada pelo outro: o falante comete a falha e quem corrige é o parceiro.

Podemos observar que a correção como atividade de reformulação, que

independe se é autoiniciada ou se é iniciada pelo outro, visa a intercompreensão

entre falantes. Posto isso, tomaremos como premissa que a construção de um texto

falado não é apenas uma sequência verbal encadeada em um turno, mas sim uma

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elaboração de uma atividade intencional. Fávero, Andrade e Aquino (2006)

observam no processamento do texto “atividades problemas” para o estudo dos

mecanismos de correção como:

correção e hesitação: a hesitação é um mecanismo de “prospecção”, o

erro é previsionado, por isso, consertado antes mesmo de acontecer

na formulação do Enunciado Original, ou seja, a hesitação acontece

interrompendo um fluxo informacional, “resultando um enunciado ainda

não concluído do ponto de vista da organização sintagmática”

(FÁVERO, ANDRADE E AQUINO, 2006, p.261). A correção ocorrerá

quando um enunciado, com uma seleção inadequada, estiver

efetivado. Do ponto de vista sintagmático, o enunciado terminou, mas é

necessário que seja reformulado para uma compreensão efetiva do

texto produzido.

correção e paráfrase: esses termos podem ser confundidos. Na

paráfrase, o enunciado reformulado deverá apresentar relações

semânticas com o Enunciado Original, enquanto na correção o

interlocutor pretende apagar o enunciado original “por considerá-lo

inadequado no processamento da fala, substituindo pelo enunciado

reformulado.” (FÁVERO, ANDRADE E AQUINO, 2006, p.260)

É importante destacar que em Barros (2003) a diferenciação entre correção e

paráfrase também se encontra na natureza da relação semântica que o Enunciado

Formulador estabelece com o Enunciado Reformulador. Na reformulação marcada

pela paráfrase, há traços semânticos comuns ao Enunciado Original e a ampliação

do enunciado, por meio de traços lexicais diferentes – em que se estabelecem graus

de especificidade vs generalidade – ou pela escolha de palavras que intensifiquem

as características dos aspectos discutidos no tópico discursivo. Em contrapartida,

nos procedimentos de correção, há uma reformulação que busca a diferenciação de

sentidos aos termos que compunham o Enunciado Original. Segundo Barros (2003,

p.156):

Pela organização mais global da conversação pode-se, na maior parte das vezes, definir se o objetivo da reformulação foi marcar a

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intenção do locutor com uma diferença de sentido, na correção, ou assinalar essa intenção, por reforço, com a paráfrase.

Podemos também ressaltar dois tipos de correção, a correção por infirmação,

em que há uma invalidação ou revogação total do que foi dito no Enunciado Original,

para que haja a formulação adequada do texto. E também há a retificação, em que

ocorre a correção parcial do Enunciado Original, levando-o em consideração e

adequando as informações apresentadas em sua elaboração.

Para Barros, os mecanismos da conversação pressupõem dois tipos de

atividades de correção:

a reparação: a reparação está ligada diretamente a uma infração

conversacional “os interlocutores cometem „erros‟ no sistema de

tomadas de turno, violam regras de conversação e essas falhas e

desobediências são reparadas” (BARROS, 2003, p.159). Portanto, a

reparação está ligada intrinsecamente à organização conversacional e

suas características que variaram segundo os tipos de conversação

existentes dentro de uma determinada cultura, “as regras mudam e,

com elas, as infrações cometidas e os mecanismos de reparação”

(BARROS, 2003, p.163).

a correção: é definida como um ato de reformulação, cujo objetivo, ao

consertar “erros” e inadequações, é assegurar a intercompreensão do

diálogo. Os tipos de erros reparados pela correção se encontram no

âmbito da fonética e fonologia (pronúncia errada ou truncada de

palavras); da sintaxe (erros relacionados a estrutura sintática); do

semântico-pragmático (impropriedade de informações como

imprecisões nas expressões de sentimentos e opiniões).

De acordo com Marscuschi (2007, p.31), a correção modifica a estrutura da

frase “truncando-a, criando redundâncias, repetições, encaixamentos, etc.”. No

entanto, as correções não acontecem aleatoriamente ou de forma caótica, elas

ocorrem de forma ordenada e suas posições podem ser descritas da seguinte

maneira:

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a) autocorreções auto-iniciadas: 1) o mais comum é que ocorram no mesmo turno em que aparecem;

geralmente ocorrem na mesma sentença em que surge a falha, mas podem estar na seguinte;

2) ocorrem também no lugar de transição do turno, logo antes da troca;

3) ocorrem às vezes no terceiro turno, após o parceiro ter falado; b) autocorreções iniciadas pelo outro: realizam-se geralmente no

terceiro turno, ou seja, na retomada da palavra pelo falante que cometeu a falha;

c) correções pelo outro e iniciadas pelo outro: realizam-se no turno subsequente ao turno em que ocorreu a falha.

É possível dizer que há uma ordem de preferências em que essas correções

acontecem, a autocorreção autoiniciada é feita pelo próprio falante, pois ele não

quer perder, no próprio turno, a oportunidade de reformular o seu texto, posto sua

compreensão do erro cometido. Na autocorreção iniciada pelo outro, a correção é

iniciada pelo falante e efetivada pelo interlocutor.

Por fim, a última opção é a correção feita pelo outro e iniciada pelo outro,

essa modalidade é observada como uma das menos frequentes nos processos de

correção, haja vista que a conversação se dá como um encadeamento de

sequências do fluxo conversacional, por isso, a correção que não seja feita na

primeira oportunidade possível tem a probabilidade de não ser retomada nos fluxos

seguintes, “pois é comum que o ouvinte, ao tomar a palavra, renuncie a correção do

que o precedeu.” (SCHEGLOFF apud MARCUSCHI, 2007, p.32)

É possível observar que há, ao longo do turno conversacional, uma pressão

sobre o locutor tanto da estrutura conversacional, como da assimilação do texto pelo

interlocutor, para que as correções sejam feitas, a fim de que se estabeleça a

intercompreensão entre falante e ouvinte, pois, ao finalizar seu turno, é possível que

o locutor perca a palavra sem poder corrigir seu texto dali por diante. Portanto,

podemos dizer que “passa a haver uma estreita relação entre o mecanismo de

autocorreção e o da troca de turno” (MARCUSCHI, 2007, p.32), pois quem fala

corrige e reformula seu enunciado, a fim de ser compreendido antes de passar o

turno. Segundo Barros (2003, p.173):

Ao corrigir e, principalmente, ao corrigir seu interlocutor, o falante encontra, muitas vezes uma forma de participar da conversação ou

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de cooperar para o seu andamento, pois, para reformulá-la, repete ou retoma a contribuição do outro e, desse modo, se introduz na conversa e contribui para desenvolvê-la.

Com o intuito de garantir a intercompreensão e abrir espaços para as

possíveis correções, os marcadores conversacionais, introdutores da correção, se

estabelecem na conversação, truncando o fluxo do diálogo e servindo como

mecanismos de assalto ao turno para a iniciação de reparações ao texto falado que

é produzido pelo outro.

Esses marcadores podem ser prosódicos e, para serem analisados, é preciso

levar em consideração fatores extralinguísticos como gestos, risos, olhares, etc.,

conciliados às pausas, mudanças nas curvas entonacionais, velocidades de

elocução, alongamentos e intensidades da voz.

Os marcadores também podem ser discursivos como nos mostram os

exemplos a seguir: Quer dizer, bom, ah, ah bom, aliás, então, logo, não, ou, ahn

ahn, hein, digamos, digamos assim, ou melhor, em outras palavras, em termos, não

é bom assim, perdão, desculpe, finalmente.

E são subdivididos segundo Gülich e Kotschi (apud FÁVERO, ANDRADE E

AQUINO, 2006, p.269) em:

a) fracos, quando a relação semântica entre os dois termos da reformulação é claramente reconhecível, de modo que um marcador fraco é suficiente para marcar a atividade reformuladora.

b) fortes, quando a reformulação semântica entre os dois termos da reformulação é fraca e um marcador forte pode compensá-la.

As correções sinalizam diferentes funções interacionais em que se devem

estabelecer relações de envolvimento entre interlocutores. É por meio da correção

que o locutor orienta o foco da atenção de seu interlocutor para o tópico discursivo, e

assim esclarece determinados aspectos informacionais da mensagem; e para os

interlocutores e as relações entre eles, quando há a preservação da face dos

interlocutores em virtude da adequação linguística e da posição social que estão

ocupando.

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Em suma, o mecanismo da correção no texto falado tem um caráter de

reformulação do que foi dito para que a mensagem seja expressa de forma diferente

e assim alcance a intercompreensão, logo, observamos esse mecanismo como um

dos elementos de afirmação da natureza da língua falada como um processo

dinâmico, altamente interativo e colaborativo em sua manifestação.

Por fim, diante das dos elementos levantados da Análise da Conversação,

Marcadores Conversacionais, Paráfrase e Correção, passaremos para o próximo

capítulo, a fim de entendê-los sob perspectiva da retextualização feita pelos atores

da modalidade do texto teatral escrito para a modalidade do texto teatral oralizado.

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CAPÍTULO 2 – O TEXTO TEATRAL E SUA PERFORMANCE

APRESENTAÇÃO

Neste capítulo, abordaremos o discurso teatral, pelo viés das teorias das

Artes Cênicas, com base em duas concepções essenciais para seu entendimento na

contemporaneidade: o discurso teatral sob uma perspectiva dramática e o discurso

teatral sob uma perspectiva épica. Evidenciaremos como essas concepções estão

presentes na produção do texto criado pelo dramaturgo e como os atores se

relacionam e oralizam esses textos. A finalização do capítulo traz o conceito de

retextualização como elemento essencial para que sejam entendidos os

procedimentos linguísticos de transposição do texto escrito para o texto falado.

Esse capítulo tem como objetivo específico apontar as construções de sentido

feitas pelos atores ao retextualizarem a modalidade de texto escrito para a

modalidade de texto falado na criação e construção das cenas do texto Na solidão

dos campos de algodão do dramaturgo francês Bernard Marie-Kòltes.

2.1 O DISCURSO TEATRAL E A ESTRUTURA DO TEXTO

O conceito de Drama (ação) advém das concepções clássicas da teoria dos

gêneros literários, primordialmente propostos na República de Platão e depois

desenvolvidos pela Arte Poética de Aristóteles, “num sentido geral, o drama é o

poema dramático, o texto escrito para diferentes papéis e de acordo com uma ação

conflituosa” (PAVIS, 1999, p.109).

De acordo com Platão e Aristóteles, os gêneros fundantes do discurso literário

transitam entre aquilo que se denominou como Dramática, Épica e Lírica. O sentido

de suas distinções está justamente nas tentativas de explicitar as várias

possibilidades existentes da imitação do mundo natural pela literatura.

A Lírica atribui os traços de uma instância subjetiva à voz criada pelo próprio

autor para enunciar poemas. A Épica traz os traços de um narrador em terceira

pessoa, de uma voz historicamente constituída que narra fatos, comenta e distancia

o coenunciador para que este não se envolva diretamente com o fato narrado, mas

que o observe e se posicione em relação a ele.

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Por fim, a Dramática se institui como a ação que move uma personagem

dentro do contexto de uma fábula em que não há a presença de um narrador, ou

seja, quando ocorre a imitação da vida natural por meio de personagens que agem,

dialogam e se relacionam. “Isto é, a imitação é executada „por personagens em ação

diante de nós‟ (3º capítulo)”. (ROSENFELD, 2008, p.16).

Apesar de esses gêneros serem diferenciados e delimitados em formas

teoricamente estanques, quando lidos à luz da contemporaneidade, são

considerados, de certa maneira, híbridos, relacionando-se e se problematizando ao

longo de uma obra literária. Portanto, a pureza do conceito desses gêneros ocorre

apenas no plano das ideias.

Nesse capítulo, interessa-nos discorrer acerca das características e

concepções do dramático como elemento estruturador do texto teatral. Hegel (apud

ROSENFELD, 2008, p.28) definiu o dramático como aquele que “reúne em si a

objetividade da epopeia (Épica) com o princípio subjetivo da lírica”. Anatol Rosenfeld

(2008, p.28) argumenta acerca dessa afirmação da seguinte maneira:

na medida em que (o dramático) representa como se fosse real, em imediata atualidade, uma ação em si conclusa que, originando-se na intimidade do caráter atuante, se decide no mundo objetivo, através de colisões entre indivíduos. O mundo objetivo é apresentado objetivamente (como na Épica), mas mediado pela interioridade dos sujeitos (como na Lírica).

A dimensão da ação se dará pela interlocução das personagens que se

manifestam textualmente por meio de diálogos, instância enunciativa que busca criar

e (re)produzir uma determinada realidade. Para isso, imita os mecanismos da

conversação cotidiana e elenca o desenvolvimento da fábula por meio de cenas, da

situação inicial da trama – que pressupõe o caminho para o conflito e clímax – ao

desfecho. Assim, o espectador vê a ação se estender diante de seus olhos por meio

da verossimilhança da realidade do discurso produzido pelo texto teatral.

Isso posto, o texto de teatro, em seu aspecto primordial, constitui-se como

uma obra literária criada por um dramaturgo que projeta para o texto escrito

estruturas poéticas, em forma de diálogos ou monólogos, para serem oralizadas por

atores no momento da encenação.

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Diante dessa afirmação, pode-se dizer que uma peça, para ser deslocada do

campo da literatura propriamente dita para o campo efetivo do teatro, pressupõe a

intervenção do ator sobre os mecanismos textuais, propostos pelo dramaturgo, que

devem ser ativados por sua voz ao representar determinada personagem. Segundo

Rosenfeld (1996, p.24):

(...) a peça como tal, quando lida e mesmo recitada, é literatura; mas quando representada passa a ser teatro. Trata-se de duas artes diferentes, por maior que possa ser a sua interdependência. A literatura vira teatro literário; o que era substantivo passa a ser adjetivo, o que era substância torna-se acidente. Não é jogo de palavras. O fato descrito marca a passagem de uma arte puramente “temporal” (a literatura) ao domínio de uma arte “espácio-temporal” (o teatro), ou seja, de uma arte “auditiva”.

O dramaturgo, quando propõe estruturas poéticas abertas à intervenção oral

do ator, pode tanto estar forjando a construção de um diálogo pelos aspectos

verossímeis de uma conversação real, como pode estar propondo estruturas

linguísticas que possibilitem a criação dessa oralização sobre sua obra. O que se

coloca em jogo é por qual maneira a obra teatral irá estabelecer uma comunicação

efetiva entre dramaturgo e plateia/leitor.

Portanto, é possível afirmar que, para além de tentar estabelecer a mimese

da realidade, o texto teatral pressupõe, sobretudo, a intervenção das artes que

complementam o fazer teatral; em outras palavras, o texto teatral é concebido e

elaborado para ser falado, de outra maneira seria qualquer outra modalidade

artística literária, mas não seria teatro.

Na história da dramaturgia mundial, existem obras cuja linguagem, ou a

língua que se fala em cena, apela a um tipo de experiência poética, como a fala

criada a partir da metrificação de versos, presente em Fedra do dramaturgo francês

Racine, ou por solilóquios metafísicos e filosóficos como os que ocorrem em Hamlet

de William Shakespeare, ou até mesmo em obras contemporâneas cuja experiência

com o texto varia por diversos aspectos, como narrações diretas à plateia, falta de

pontuação, falas fragmentadas, ausência de nomes para as personagens, etc.

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Há outras obras, cuja essência encontra-se justamente na criação de diálogos

com forte apelo realista no que se refere à verossimilhança da língua falada.

Tomemos como exemplos qualquer uma das muitas comédias populares de Luís

Alberto de Abreu, as peças didáticas de Bertolt Brecht, algum drama marginal de

Plínio Marcos, as tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, ou um dos muitos dramas

realistas dos anos 40 de dramaturgos americanos como Tennessee Williams,

Eugene O‟Neill, Arthur Miller, etc.

O que se torna possível observar é que, ao entrar em contato com esses

textos, a plateia ou o leitor da obra deve ter uma experiência artística no campo da

estética (do ponto de vista de como determinado texto é escrito) e no campo da

interlocução (do ponto de vista da temática abordada pelo texto). Portanto, o texto

teatral não se caracteriza apenas como a tentativa de reproduzir um ato de fala

cotidiano, mas sim, ao forjar diálogos que podem ou não estabelecer um grau de

proximidade com a língua falada, criar uma realidade verossímil que estabeleça

algum tipo de relação com a plateia ou com o leitor envolvido. De acordo com

Lamahieu (apud RYNGAERT, 1995, p.49)

Oposição entre o dito proferido, a fala da personagem e sua colocação na boca (posição voz e respiração) do ator. O texto de teatro é falado-escrito ou escrito falado? Ao que se acrescenta o problema dos ritmos próprios, da voz interior do escritor que percebe muitas vezes diferentemente a escansão do texto que ele próprio propôs, ao mesmo tempo que deixa aos artistas dramáticos o cuidado de completar o que começou, do escrito à imagem espetacular.

Logo, a obra teatral traz emissores humanos comuns fazendo usos incomuns

da língua, pois há uma comunicação que deve ser estabelecida entre dramaturgo e

plateia por meio da constituição de um universo fabular e narrativo, exemplificado e

representado por personagens que dialogam em cena. A fim de demonstrar como

essas duas instâncias de comunicação se estabelecem no texto teatral, Ryngaert

(1995, p.108-109) discorre sobre o fenômeno da dupla enunciação:

A comunicação teatral não opera exclusivamente no eixo interno da relação entre os indivíduos, mas também – ou principalmente – no

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eixo externo, entre o Autor e o Leitor ou o Público, através de uma cadeia de emissores. O que é chamado de dupla enunciação no teatro explica essa particularidade. Na comunicação mais imediata, um ator fala a um ator, assim como na vida ordinária um receptor conversa com um receptor. Mas esses atores são apenas a expressão de uma outra troca situada desta vez ao nível da ficção, em que uma personagem conversa com outra personagem. Por trás das personagens encontra-se o verdadeiro emissor de todas essas falas, o autor que se dirige a um público.

O texto teatral tem como função principal estabelecer a comunicação entre

dramaturgo e plateia (ou leitor da obra) por intermédio de personagens que dialogam

e se relacionam na fábula, estabelecendo assim a dupla enunciação.

Entretanto, o diálogo em si não reproduz ou tenta imitar a realidade corrente

da língua em nome da comunicação, mas sim busca criar situações a partir da

verossimilhança em que seres humanos comuns fazem usos incomuns da língua

corrente.

A fim de influenciar ou impulsionar o conflito dramático, é possível dizer que

“o discurso endereçado a uma das personagens é uma forma de ação do locutor e

só tem, no fundo, uma significação real nos eventos, quando contribui de modo

decisivo para impulsionar a ação” (INGARDEN, 1988, p.157).

Vale ressaltar que o texto dramático se estabelece como parte da maquinaria

teatral, ou seja, para a criação de uma obra teatral, influências de outras ordens

agirão sobre o texto, como a ação do ator que contará com os elementos da

encenação e de sua criação subjetiva para a oralização das palavras forjadas e

elaboradas pelo dramaturgo.

2.2 A PEDAGOGIA DA ORALIDADE TEATRAL

O momento da encenação de um texto teatral pressupõe um trabalho coletivo

entre todas as instâncias envolvidas na produção da obra, portanto, comumente se

estabelece, a princípio, como um norte para a criação coletiva o texto teatral,

material essencial para o estabelecimento e as experimentações acerca do universo

da fábula a ser contada.

A escolha do texto deve-se ao tipo de linguagem cênica a ser pesquisada,

portanto o texto é consequência de uma necessidade do artista em refletir, de forma

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crítica, sobre algum aspecto do meio em que vive. Depois de um entendimento

apriorístico sobre a obra, começam os ensaios, a fim de proporcionar um espaço de

experimentação que legitime ou não o entendimento pressuposto sobre o trabalho.

No momento dos ensaios, a linguagem cênica é experimentada e

desenvolvida pelos atores não só a partir de treinamentos físicos, de expressão

corporal, mas também por treinamentos relacionados à voz e à apropriação do texto.

Portanto, como já dito, interessa-nos, nesta pesquisa, elaborar uma reflexão sobre

esse segundo aspecto acerca dos procedimentos de oralização do texto teatral.

Ao longo da história do teatro, a fala em cena foi vista e experimentada a

partir de diferentes perspectivas conceituais. Para tratarmos delas, é preciso

estabelecer que, antes de falar um texto, o ator em seu trabalho vocal e verbal deve

tomar consciência de que sua voz ressoa no espaço, que ela é em si corpo e

musculatura a ser sempre aprimorada e exercitada, pois é instrumento primordial do

trabalho teatral. Segundo Pavis (199, p.432)

A voz situa-se na junção do corpo e da linguagem articulada: ela é uma mediação entre a pura corporeidade não codificada e a textualidade inerente ao discurso “entre deux”, [entremeio], “do corpo e do discurso” (BERNARD, 1976:353), ”oscilação permanente, duplo movimento em tensão, pois que está em busca de ressonância corporal a que conjuntamente visa superar num sentido a ser comunicado por outrem” (ibid.:358). A voz se situa, portanto, no lugar de um encontro ou de uma tensão dialética entre corpo e texto, jogo do ator e signos linguísticos. Nele se realizam simultaneamente uma encarnação do verbo e uma sistematização do corpo.

Posto isso, estabelece-se o trabalho com o texto propriamente dito, e surge

uma seara de problematizações acerca de como o ator deve falar em cena tais

como, segundo Roubine (1987, p.17)

Será que a voz deve ser esse instrumento trabalhado, utensílio essencial senão único de um virtuose da declamação, meio de estilização deliberada? Será que através de artifícios, ela deve se transformar em eco teatral dos artifícios formais encontrados no texto dramático? Ou será que, ao contrário, ela deve reproduzir mimeticamente a “vida”, ser o “reflexo de uma realidade humana”?

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Com base nessas perguntas, levantaremos duas concepções fundantes

acerca do trabalho com a fala nas teorias das artes cênicas. A princípio, sob uma

perspectiva dramática de construção das personagens, surgirão os pressupostos de

Constantin Stanislavski (2009), advindos das sistematizações sobre o trabalho do

ator. Em um segundo momento, trataremos da fala como um procedimento de

distanciamento advindo dos princípios do teatro épico de Bertolt Brecht (2005).

O diretor russo Constantin Stanislavski, grande pensador sobre o trabalho de

instrumentalização do ator e fundador do Teatro de Arte de Moscou no começo do

século XX, acredita que a fala do ator em cena deve estar em consonância com a

lógica psicológica da personagem do texto teatral, portanto há de se buscar um jeito

de oralizar o texto, priorizando os aspectos verossímeis e naturais inerentes à

fábula.

Entretanto, isso não quer dizer que o ator deva falar de acordo com a lógica

cotidiana, na vida “a gente diz o que tem de dizer ou o que quer dizer com um

objetivo, para alcançar um fim, por necessidade ou, de fato, visando alguma ação

verbal verdadeira e frutífera” (STANISLAVSKI, 2009, p.160), enquanto “no teatro

dizemos um texto de um outro autor, e esse texto muitas vezes diverge dos nossos

requisitos e desejos” (STANISLAVSKI, 2009, p.161). Ele ainda afirma que “no palco

temos de falar de coisas que não vemos, nem sentimos, nem cogitamos por nós

mesmos, mas sim nas pessoas imaginárias de nossos papéis” (STANISLAVSKI,

2009, p.161).

Há no trabalho de Stanislavski uma concepção de teatro que obedece à ideia

de uma fábula dramática/realista, cujo ponto de partida, assim como definido em

Aristóteles, é a “imitação que é feita pelas personagens em ação e não através de

um relato, e que, provocando piedade e terror, opera a purgação de tais emoções”

(ARISTÓTELES apud PAVIS, 1999, p.110). Portanto, a oralização das falas da

personagem obedece à lógica psicológica das sensações, dos sentimentos, do

subtexto e das emoções naturais relativas a um tipo de fábula contada sem a

interferência da plateia, fechada na quarta parede5 do palco italiano, cujo público vai

5 Quarta parede: é a parede imaginária que se constitui em frente ao palco e faz com que a plateia se torne

agente passivo do evento teatral, ou seja, a plateia apenas observa a fábula interpretada pelos atores sem ser convidada a interagir ou se relacionar ativamente com a obra.

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ao teatro para observar uma realidade verossímil diante de seus olhos e acreditar na

ilusão criada pelo universo ficcional da encenação.

Em contrapartida, a oralização feita pelos atores no contexto de uma obra

inerente ao teatro épico, advindo dos estudos e dos conceitos do alemão Bertolt

Brecht, pressupõe um distanciamento do ator sobre aquilo que é enunciado, a fim de

proporcionar ao ator que faz e à plateia que recebe uma experiência que se situa no

campo do ator-narrador-personagem.

Enquanto o teatro dramático prima pela constituição de uma ilusão dentro da

caixa preta em que a plateia é observadora da ação que discorre diante de seus

olhos, no teatro épico os procedimentos do fazer teatral são evidenciados para

mostrar à plateia que a fábula é objeto de análise, de reflexão política e filosófica

acerca da realidade do mundo atual. Logo, para Brecht, “o teatro dramático, com

efeito, não é mais capaz de dar conta dos conflitos do homem no mundo; o individuo

não está mais oposto a outro indivíduo, porém a um sistema econômico” (Pavis,

1999, p.110).

Segundo a distinção de Rosenfeld (2008, p.149) acerca do teatro dramático e

do teatro épico, podemos observar o seguinte quadro:

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Forma dramática do teatro Forma épica do teatro

Atuando Narrando

Envolve o espectador numa ação cênica Torna o espectador um observador

Gasta-lhe a atividade Desperta a sua atividade

Possibilita-lhe emoções Força-o a tomar decisões

Vivência Concepção do mundo

O espectador é colocado dentro de algo

(identificação; nota do autor)

É posto em face de algo

Sugestão Argumento

Os sentimentos são conservados São impelidos os atos de conhecimento

O espectador identifica-se, convive O espectador permanece em face de,

estuda

O homem é pressuposto como conhecido O homem é objeto de pesquisa

O homem imutável O homem mutável que vive mudando

Tensão visando ao desfecho Tensão visando ao desenvolvimento

Uma cena pela outra (encadeamento;

nota do autor)

Cada cena por si

Crescimento (organismo; nota do autor) Montagem

Acontecer linear Em curvas

Necessidade evolutiva Saltos

O homem como ser fixo O homem como processo

O pensar determina o ser O ser social determina o pensar

Emoção Raciocínio

Fonte: Rosenfeld (2008, p.149)

Dessa maneira, o ator do teatro épico deve impedir a identificação do

espectador com a personagem, mostrando-a em vez de encarná-la, quebrando a

quarta parede em nome de uma relação direta com o espectador.

No que se refere à fala do ator como procedimento de distanciamento, a

princípio, Brecht propõe três possibilidades de oralização do texto. A primeira advém

da experiência, por parte do ator, em dizer seu texto na terceira pessoa. Quando

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isso ocorre, evidencia-se a “colisão de duas entonações” na fala, descolando a ideia

de personagem encarnada para um ator que interpreta diante de todos alguém que

ele não é. A segunda possibilidade se dá pela recorrência ao passado, como um

narrador que conta o que aconteceu até aquele momento. A terceira é a intromissão

de indicações sobre a encenação e de comentários, em que o ator mostra oralmente

os procedimentos utilizados para a feitura da cena e dá sua opinião acerca da fala

da personagem que irá ser oralizada, criando assim um movimento dialético, no qual

se evidencia a distinção entre a fala da personagem e a fala do ator. Segundo

Brecht (2005, p.108):

É pela conjugação destes processos que se distancia o texto nos ensaios; mas também durante a representação o texto se mantém, de maneira geral, distanciado. Quanto à dicção propriamente dita, de sua relação direta com o público sobrevêm-lhe a necessidade e possibilidade de uma variação que será conforme ao grau de importância a conferir às falas. O modo de falar das testemunhas, num tribunal, oferece-nos um bom exemplo disto. A maneira de a personagem frisar suas declarações deverá produzir um efeito artístico especial. Se o ator se dirigir diretamente ao público, deve fazê-lo francamente, e não num mero “aparte”, nem tampouco num monólogo no estilo do velho teatro. Para extrair do verso um efeito de distanciamento pleno, será conveniente que o ator reproduza, primeiro, em prosa corrente, nos ensaios, o conteúdo dos versos, acompanhado, em certas circunstâncias, dos gestos para eles estabelecidos. Uma estruturação audaciosa e bela das palavras distancia o texto. (A prosa pode ser distanciada por tradução para o dialeto natal do ator.)

Com o advento do teatro contemporâneo, cuja fábula como obra fechada e

coesa se fragmentou e o diálogo perdeu sua força disparadora de ações dramáticas,

é possível perceber que há a problematização do “como” se falar o texto, tendo em

vista que a urgência dessa fala pretende o estabelecimento efetivo de uma dupla

enunciação. Para Ryngaert (1998, p.135),

o verdadeiro diálogo contemporâneo se faz cada vez mais diretamente entre Autor e o Espectador, por diversos procedimentos enunciativos, o personagem enfraquecido mostrando ser um intermediário cada vez menos indispensável entre um e outro.

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Isso posto, o ator contemporâneo não é simplesmente o meio pelo qual essa

dupla enunciação deve ser estabelecida, ele deve se comprometer com o texto que

está sobre sua responsabilidade e não somente decorá-lo, o ator deve emitir sua

opinião sobre as palavras que diz no palco. Dessa maneira, vemos que a distinção

apontada por Brecht na década de 50 acerca do teatro dramático e do teatro épico

se desfaz, de acordo com Pavis (1999, p.112):

o épico e o dramático não mais são abordados individualmente e de maneira exclusiva, mas, sim, em sua complementariedade dialética: a demonstração épica e a participação total do ator/espectador muitas vezes coexistem no mesmo espetáculo.

Por fim, essas duas linguagens tendem a colaborar a despeito de uma

comunicação mais efetiva em que o ator dá voz e corpo às palavras do dramaturgo,

colocando-se de forma crítica diante do texto ao enunciar, como ator e como

personagem, diretamente ao público, ou ao outro ator da cena a sua opinião de

integrante do jogo conversacional.

2.3 PROCEDIMENTOS DE RETEXTUALIZAÇÃO: A TRANSPOSIÇÃO DO ESCRITO PARA O ORAL

NO TEATRO

O texto de teatro é uma das ferramentas essenciais para a criação de uma

obra teatral, tradicionalmente é a partir do texto que os atores e diretores começam

a trabalhar e desenvolver as técnicas necessárias para o levantamento de uma

encenação.

Quando nos debruçamos sobre o texto, podemos dizer que este pressupõe

uma completude, ou seja, o texto escrito, para ser ativado, precisa da voz e da

interpretação do outro que o encenará. Portanto, é um tipo de texto que se

apresenta sob duas faces, “um texto (script) para ser falado ou à espera de voz viva

e o outro oralizado no palco como dramatização do script” (URBANO, 2005, p.196).

A língua falada no palco também é objeto de estudo para a Análise da

Conversação no que diz respeito às estratégias de enunciação e de (re)produção do

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texto teatral, posto que é iminente a intervenção feita pelo ator sobre o texto

primordialmente idealizado pelo dramaturgo. As estratégias discursivas e os

imprevistos, ao longo do turno da fala teatral, podem ser as mais variadas desde

enunciações fiéis ao texto original, até infrações, improvisos, supressões,

digressões, etc., haja vista que na encenação teatral o texto escrito planejado se

encontra somado à performance espontânea da produção do texto oral.

Entretanto, apesar da enunciação feita pelo ator parecer língua viva, brotada

naquele instante, ela continua sendo uma fala pré-concebida, apesar dos traços de

subjetividade do momento da enunciação, ou seja, há uma organização para que a

fala estabeleça uma comunicação do texto com o público e o ator utiliza suas

estratégias linguísticas naturais da língua falada para ser o condutor daquela fábula.

Segundo Preti (2004c, p.201)

Tais estratégias estão sempre ligadas a uma realidade linguística internalizada pelos autores e tornada viva nos textos, embora dela estejam quase sempre ausentes algumas características tipicamente orais, como a sobreposição de vozes, por exemplo.

Dessa maneira, ao analisarmos a estruturação do texto teatral, sob a

perspectiva de uma caracterização desse mesmo gênero discursivo, será possível

perceber a existência de mecanismos que nos ajudam a compreender as distinções

e aproximações entre o texto teatral e a língua falada propriamente dita. Segundo

Urbano (2005, p.197-198), o texto teatral se estrutura da seguinte forma:

2. A voz, idealizada nos scripts, recebe voz “viva” do personagem ator, com todas as implicações que isso acarreta; (...) 4. A oralização no palco não deixa de ser uma produção retextualizada das falas idealizadas nos scripts; (...) 7. Como nas conversações naturais, durante a oralização acentua-se, em relação aos scripts, a ocorrência de repetições, reduplicações, redundâncias, paráfrases, pronomes egóticos, frases e palavras truncadas, que favorecem a ocorrência de campos semânticos mortos; de fenômenos, como hesitações, pausas vazias, pausas preenchidas (como eh eh), marcadores conversacionais (como “viu?”, “né?”, “olha?”, “Mas”, etc.), em função do caráter mais interativo do texto falado e da conseqüente materialidade sonora da

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fala. Enfim, a expectativa é que aumente a “não referencialidade” textual durante a oralização.

Dessa maneira, partiremos da afirmativa feita por Urbano no quarto tópico

acima apresentado, em que a oralização do texto teatral é vista como uma atividade

de retextualização.

Haja vista que o texto teatral escrito é uma obra elaborada previamente na

qual a “dialogicidade constitui-se numa relação „ideal‟, em que o escritor leva em

conta a perspectiva do leitor” (KOCH e ELIAS, 2010, p.13). Para estabelecer essa

comunicação entre leitores, esse texto escrito sofre “as imposições de ordem

normativa e convencional, que podem, por vezes, conflitar com as de ordem

funcional.” (KATO, 1995, p.28).

Enquanto em sua transposição para texto oral, o texto emerge “no próprio

momento da interação” (KOCH e ELIAS, 2010, p.14) como se fosse seu próprio

rascunho, refletindo assim a materialidade linguística da expressão oral por “marcas

de produção verbal conjunta” (KOCH e ELIAS, 2010, p.13), posto que a fala “é

regida por imposições de ordem comunicacional e funcional” (KATO, 1995, p.28) da

instantaneidade.

Assim sendo, os atores agem sobre o texto teatral, para levá-lo ao palco, por

meio de atividades de retextualização do diálogo escrito, recriando-o de acordo com

a espontaneidade e a coerência da produção do texto falado. Marcuschi (2005,

p.46) afirma que a retextualização se trata de

(...) um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos da relação oralidade-escrita.

Portanto, o jogo que se estabelece nessas atividades não trata da passagem

do texto “controlado e bem formado” (o texto escrito) para uma lógica de um texto

“descontrolado e caótico” (o texto falado); parafraseando Marcuschi (2005), a

passagem da escrita para a fala não é a passagem da ordem para o caos: é a

passagem de uma ordem para outra ordem. Muitas vezes estratégias inerentes,

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complexas e imperceptíveis, naturais da língua falada, agirão sobre o texto escrito

espontaneamente, pois o responsável pela produção daquele texto, primeiro, deverá

compreender o que foi proposto como texto falado pelo dramaturgo, para que diga

aquelas palavras de acordo com a sua lógica de falante da língua em uso e que

adaptará sua performance oral ao contexto social da personagem dentro fábula.

A fala que se produz no palco nem sempre é da mesma natureza da fala

produzida na vida cotidiana, mas sim se utiliza de mecanismos verossímeis à fala

natural, para fazer um uso incomum da língua falada, ou seja, o ator fala o texto

previamente escrito de forma que se estabeleça uma comunicação efetiva com o

outro ator, ou com a plateia por meio dos usos correntes da língua falada.

É nessa “correlação entre personagem de ficção e o falante real que se

constitui esse „diálogo verossímil‟, isto é, essa verdade linguística possível, embora

nem sempre encontrada na conversação natural” (PRETI, 2004c, p.201). Em outras

palavras, “claro que o teatro não registra todas as vicissitudes da fala viva proferida

por sujeitos ativamente envolvidos na conversação, mas ele encontra nesta seu

alimento” (RYNGAERT, 1995, p.110).

Diante disso, apoiar-nos-emos na afirmativa de Ryngaert (apud URBANO,

2005, p.199-200) sobre a produção dos processos de enunciação das falas do texto

teatral no momento da encenação:

O estudo de um texto conversacional permite formular hipóteses sobre a teatralidade mínima indispensável para que as trocas possam se efetuar de maneira satisfatória. Se é preciso um contexto para que a conversação exista, é um contexto mínimo que se deve construir no momento da passagem ao palco de um diálogo de teatro, pelo menos se admitirmos que a fala de um personagem jamais é arbitrária.

Ao falarmos sobre atividades de retextualização do escrito para o oral no texto

de teatro, propomos que essas atividades podem ocorrer de forma diversificada de

acordo com o contexto de encenação e dos jogos linguísticos possíveis para a

oralização do texto.

Ao codificar o texto escrito para a realidade da língua falada, o ator tomará

como base para sua oralização uma multiplicidade de escolhas de valor sintático,

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semântico e prosódico no que se refere ao tipo de interlocução que deseja

estabelecer com o texto, o outro ator com quem está dialogando e a plateia que

assiste à obra. Elementos como pausas, reformulações, duplicação de turnos,

paráfrases, ou outras atividades da conversação real servem ao texto como modos

de frisar, opinar, sublinhar, chamar a atenção para certos conteúdos em detrimento

de outros.

Assim como a eventual sobreposição de vozes, o truncamento de palavras,

correções, repetições denotam atos espontâneos e imprevisíveis do turno

conversacional que pressuporá a improvisação linguística do ator sobre o texto que

é de sua responsabilidade, posto que o diálogo teatral tem como objetivo

desencadear ações que levem a fábula ao seu desfecho. Portanto, a produção

linguística pode ser vista como “um encadeamento de reformulações (previstas ou

não previstas), tal o imbricamento dos jogos linguísticos praticados nessa

interdiscursividade e intertextualidade.” (MARCUSCHI, 2005, p.49).

Para Fortuna (2000, p.43), a relação entre o texto teatral e a oralização do

texto pelo ator ocorre da seguinte maneira:

Entre o natural e o não natural, se impõe o caminho do mimetismo e, com isto, o ator tende a desorientar-se na opção de uma realização natural sem ser banal, natural sem ser vulgar, natural artístico, poético requintado, sem ser pernóstico; humanidade e arte se impõem (...)

Pode-se considerar que o diálogo teatral “é tão ou mais complexo do que

diálogo da conversação espontânea e da narrativa literária” (URBANO, 2005, p.220).

Ele se constitui como um gênero híbrido, em que as atividades de retextualização se

encontram na perspectiva de transpor o texto escrito para o texto falado; porém, no

que se refere a esse procedimento, o diálogo teatral não reproduz ipsis literis os

moldes da conversação espontânea, uma vez que a elaboração oral desse texto é

artística e guiada por um texto previamente escrito.

Essa elaboração, feita pelo ator, é em parte premeditada e elaborada como

uma partitura oral a ser seguida, e em parte aberta para o imprevisto e para o

improviso. Assim, podemos dizer que o texto falado no palco apresenta marcas de

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oralidade inerentes ao momento de sua enunciação, pois traz em si a natureza de

uma situação conversacional forjada/ literária que é confrontada com a natureza da

produção do texto oral no momento em que este é retextualizado pelo atores na

encenação.

Dessa maneira o texto que primordialmente foi elaborado como uma situação

conversacional premeditada é reelaborado a partir da perspectiva da produção de

um texto oral real, pois assim como na fala espontânea, a ocorrência de

truncamentos e incompreensões é recorrente e o desafio então estabelecido é a

percepção, por meio do ator, em estabelecer a comunicação das ideias do texto

para a plateia e assim antever o diálogo efetivo entre dramaturgo e audiência por

meio da fábula apresentada oralmente.

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CAPÍTULO 3 – CORPUS

APRESENTAÇÃO

O presente capítulo desenvolve um panorama histórico sobre a importância

da Escola de Arte Dramática para o cenário do Teatro Moderno Brasileiro. Dessa

maneira, é observada a importância de sua prática pedagógica para a formação de

atores que atuarão profissionalmente nos diversos meios das artes cênicas. O

capítulo tem como objetivo específico: desenvolver um panorama histórico acerca da

importância da Escola de Arte Dramática como uma instituição formadora de atores

que contribui para a constituição do Moderno Teatro Brasileiro.

3.1 A ESCOLA DE ARTE DRAMÁTICA (1948-1968)

O final da década de 40 no Brasil é marcado pelos últimos anos de governo

do presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), cujo mandato foi conhecido pelas

atitudes liberais em relação ao freio da intervenção estatal na economia do país e a

abolição das premissas estabelecidas pelo Estado Novo, “acreditava-se que o

desenvolvimento do país e o fim da inflação gerada nos últimos anos de guerra

dependiam da liberdade dos mercados em geral, e, principalmente, da livre

importação de bens” (FAUSTO, 2006, p.222).

O Presidente Dutra ficou conhecido por tentar viabilizar uma política

econômica que favorecia o avanço das indústrias, enquanto achatava os salários

dos empregados e repreendia os movimentos sindicais e de organização política das

classes operárias. O Brasil via sua moeda ser valorizada e, durante a guerra, e

diante do cenário pós-guerra, começou a exportar os produtos nacionais para uma

Europa devastada. Por conta da moeda em alta, as importações de produtos de toda

a espécie acabaram por esgotar as disponibilidades cambiais que o Brasil havia

conquistado diante dos países com quem mantinha relações econômicas.

O país vivia um momento de crescimento e a Revolução Industrial começava

a dar sinais de desenvolvimento nos Estados do Sudeste. O ex-presidente Getúlio

Vargas iniciava suas manobras políticas para a sucessão presidencial e São Paulo

crescia aos olhos do país como polo da indústria, da economia e da cultura.

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No que se refere ao cenário cultural do Brasil, ao longo do decênio de 1940,

podemos observar que os movimentos do teatro amador se expandiam e almejavam

ganhar contornos profissionais, com uma nova concepção e entendimento da arte

dramática. Até então, o teatro havia vivido a época de ouro da comédia de costumes

e do teatro de revista, no qual o Rio de Janeiro se consolidou como polo cultural e o

cinema despontava tomando o lugar de uma linguagem que o teatro não comportava

mais, o retrato cada vez mais fiel e verossímil da realidade.

Os grupos amadores de teatro cresciam e a efervescência tardia do

Modernismo chegava aos palcos como a “etapa final de um grande movimento

cultural começado em São Paulo na altura de 1920 pela instrução pública,

manifestando-se na literatura e nas artes” (CÂNDIDO, 1985, p.9). Essa

efervescência culminaria na criação dos aparelhos culturais mais emblemáticos do

teatro moderno brasileiro como a Escola de Arte Dramática (EAD) e o Teatro

Brasileiro de Comédia (TBC).

As grandes companhias independentes, como as de Procópio Ferreira,

respeitavam a lógica de um mercado que as bancavam, e, por conta disso,

submetiam a sua produção a um repertório oriundo de comédias de costumes e quid

pro quo. O teatro visto como mero entretenimento começava a minguar, pois as

relações comerciais que determinavam o processo criativo dessas companhias

perdiam terreno para um teatro amador experimental, que era apontado

paralelamente durante todo o decênio de 1930, e que, no final dos anos 40, requeria

um status de profissionalização.

No entanto, aquilo que seria chamado de novo teatro profissional brasileiro

ocorrera de fato com a abertura do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), situado na

Rua Major Diogo, no bairro da Bela Vista em São Paulo.

O TBC foi idealizado pelo empresário italiano Franco Zampari, que decidiu

abrir um espaço para a atuação desses grupos de teatro amador paulistanos,

representados nesta situação pelo Grupo de Teatro Experimental (GTE), que

despontavam no cenário teatral em meados da década de 30, para a apresentação

de suas obras.

Esse ato marca o fim da disponibilidade amadora e o início do rigor

profissional desses grupos emergentes, ao proporem que o processo de criação de

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um produto cultural fosse também o processo de criação de uma obra de arte.

Segundo Décio de Almeida Prado (2003, p.42):

O TBC – sigla que logo se popularizaria no meio teatral – deslocou a iniciativa (cultural) para São Paulo. É que um engenheiro industrial, Franco Zampari (1898 – 1966), nascido na Itália, mas radicado desde a mocidade no Brasil, despusera-se a colocar a sua pequena experiência de homem de negócios a serviço do palco, dando-lhe uma estrutura administrativa como ele nunca tivera. O seu programa esteticamente, não se distanciava muito do que já se fazia no Rio, apoiando-se sobre dois pilares de comprovada solidez: textos consagrados e encenadores estrangeiros. A diferença seria antes de caráter empresarial, consistindo numa economia interna mais perfeita e num considerável salto quantitativo. Em vez de um diretor europeu, dois ou três (de preferência italianos); em vez de oito ou dez atores contratados, quinze ou vinte. Como repertório para equilibrar a receita e despesa, clássicos universais, antigos ou modernos, alternavam-se com peças de apelo popular, em geral comédias americanas ou francesas. Todos os originais, no entanto, bons ou maus, mereciam o mesmo tratamento cênico esmerado, tentando-se recuperar através do espetáculo o que porventura se perdera na qualidade literária. O Brasil saía assim do seu casulo, atualizava-se e internacionalizava-se, travando conhecimento com autores tão diversos quanto Sófocles e Willian Saroyan, Oscar Wilde e Schiller, Gorki e Noel Coward, Arthur Miller e Pirandello, Goldoni e Strindberg, Bem Jonson e Anouilh.

Diante desse novo cenário do teatro brasileiro, é importante ressaltar o

surgimento da Escola de Arte Dramática como resposta a uma necessidade do

momento histórico em formar artistas aptos cultural, técnica e profissionalmente para

os diversos setores das artes cênicas.

No dia 2 de maio de 1948, Alfredo Mesquita, mais conhecido como Dr. Alfredo

no meio teatral, que foi um dos fundadores do GTE, ao concluir em sua vivência que

os atores amadores tinham o desejo da renovação, mas ainda eram irresponsáveis

e descompromissados “em face do teatro como arte e como realização coletiva”,

inaugurava sua escola em uma sala pequena com seus 37 alunos no Externato

Elvira Brandão na Alameda Jaú, Bela Vista. A escola nasce do desejo em formar

atores qualificados que tivessem repertório para responder prontamente às

expectativas artísticas desse novo momento da cena paulistana e para qualificar

profissionalmente os artistas que viriam a integrar, mais tarde, o TBC.

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Logo em seguida a esse primeiro momento no Externato, a EAD se muda

para o segundo andar do TBC, Franco Zampari cederia algumas salas mais

adequadas para que a escola de Alfredo Mesquita fosse melhor instalada.

No que diz respeito à manutenção financeira da EAD, seu mecenas Alfredo

Mesquita a manteria durante muito tempo com as forças de seus próprios recursos,

na medida em que chamava seus amigos artistas e pessoas que trabalhavam para

uma renovação do cenário artístico cultural do país para que ministrassem aulas em

sua escola.

A EAD foi idealizada como um espaço artístico acessível a todos que

tivessem interesse em encarar o teatro como uma profissão e não apenas como um

hobby. Para tanto, Dr. Alfredo, junto aos mestres de sua escola, elaborou um

vestibular que primasse pelo talento dos candidatos e não apenas pelos saberes

escolares fundamentais. A escola funcionaria de modo que tanto as classes mais

abastadas como as classes trabalhadoras pudessem frequentar as aulas. Segundo

Maria Thereza Vargas (1989, p.48), a EAD se organizaria da seguinte maneira:

a) Seriam selecionados de quinze a vinte alunos; b) não seriam necessários graus de ensino anteriores, porque isso

poderia afastar, talvez, da Escola elementos de circo que tanto têm enriquecido o palco brasileiro;

c) a escola funcionará à noite, para facilitar os que exercem atividades diurnas e para afastar certo grupo diletante que procuraria a Escola apenas como “hobby, não a encarando com seriedade”.

Durante sua primeira fase, a escola funcionou mais pela força do entusiasmo

das pessoas envolvidas em seu projeto pedagógico do que necessariamente pelo

retorno financeiro. A ideia de renovação do fazer teatral, para os artistas-professores

envolvidos, era mais contundente do que o salário. Em contrapartida, seu idealizador

andava pelas repartições públicas, buscando respaldo e apoio financeiro do Estado

à sua escola, contudo ao longo do decênio de 1950 não obteve tal retorno dos

órgãos públicos.

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Nesse período, por conta própria, a escola conseguiu sua sede, um pequeno

teatro na Rua Maranhão em Higienópolis. Por fim, na década de 60, veio a ocupar o

primeiro prédio público, o Liceu de Artes e Ofícios na Avenida Tiradentes.

A EAD deve ser compreendida historicamente por um primeiro momento que

abarca o final dos anos 40 e todo o decênio de 1950, em que a consolidação da

formação desse novo artista brasileiro segue, paulatina e coerentemente, o

estabelecimento de uma Democracia no país; ou seja, a EAD é fruto de um

momento político favorável à consolidação de bases democráticas políticas e

culturais. Segundo Fernandes (2009, p.24):

Os anos de 1940 e 1950 foram decisivos para a plena instauração da democracia e para a sedimentação do progresso econômico e industrial que estão na base da moderna sociedade brasileira, marcados por uma urbanização acelerada e pela implantação da cultura de massas. No caso da EAD, quer isto dizer que como bem salientou Antonio Candido, ela deve ser inserida no contexto da modernização cultural decorrente dos movimentos de elite que a capitaneou.

Nos quinze anos subsequentes à sua fundação, a escola de Dr. Alfredo foi

imaginada como um lugar de formação integrado, que abarcaria não só o curso de

formação de ator, mas também os cursos de Cenografia, implantado em 1960,

Dramaturgia e Crítica, ambos implantados em 1961, e como projeto não implantado,

mas idealizado, o curso de Direção Teatral, que compreenderia a ideia de que o

aluno-diretor, ao final do curso, faria seu estágio no exterior.

Nessa primeira fase da EAD, compreendida entre 1948 a 1964, temos uma

estruturação pedagógica que objetiva formar atores que soubessem interpretar

papéis clássicos, modernos e contemporâneos. A EAD “foi uma instituição que

nasceu do descontentamento com certo tipo de teatro e da busca de uma nova ética

e estética da cena” (SILVA, 1987, p.68). Para tal, era imprescindível pensar que

essa mudança deveria acontecer pela formação de um novo ator que servisse à arte

e não ao lucro comercial.

O contexto histórico do país ao longo desses vinte anos, da primeira fase da

EAD, compreendeu o retorno de Getúlio Vargas (1951-1954) à presidência e a

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instauração de um período político contraditório, no que diz respeito à equação entre

ajustes fiscais necessários e direitos trabalhistas. Grandes pressões populares em

relação às medidas tomadas pelo presidente culminaram em seu suicídio no mês de

agosto de 1954.

O sucessor de Vargas foi Juscelino Kubitscheck, representante do Partido

Social Democrático à presidência. Seu governo compreende os anos de 1956 a

1961 e seu mandato ficou conhecido pelos progressos que abrangiam 31 objetivos

divididos em seis grandes grupos: energia e transporte, indústrias de base,

alimentação, educação e a construção de Brasília, uma nova capital para o país. O

presidente também deixaria, para seu sucessor, um déficit orçamentário nunca antes

visto de 39,5%, em decorrência de todas os seus projetos políticos.

A sucessão presidencial de Juscelino se deu pela posse de Jânio Quadros

como presidente, tendo como vice João Goulart (Jango). O novo presidente buscava

tomar medidas em seu governo que fossem bem vistas tanto pela esquerda quanto

pela direita, ao colocar em pauta assuntos vistos por muitos como irrelevantes.

Enquanto isso, órgãos paralelos ao governo requeriam um endurecimento na

democracia brasileira, à medida que os Estados Unidos anunciavam uma ajuda

financeira à América do Sul para o seu desenvolvimento.

No dia 24 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência e a

posse compulsória de João Goulart foi suspensa pelos setores militares que

demonstraram receio de que isso representasse o surgimento de uma república

sindicalista.

Para a posse de Goulart, o Congresso Nacional alterou o sistema do governo

brasileiro que era presidencialista para parlamentarista, assim o novo presidente

tomou posse do cargo com poderes diminuídos. O mandato de Jango (1961 a 1964)

ficou conhecido pelos desastrosos esforços em conter a inflação e pelas medidas

populares (reforma agrária e aumento de salários do funcionalismo público), vistas

pelos ricos e militares do país com muitas ressalvas.

O ano de 1964 marcaria o fim da experiência democrática até então vivida

pelo Brasil no período de 1945-1964. O governo Goulart se esfacelou totalmente, e o

Brasil era testemunha pela primeira vez, em sua história, da ascensão militar ao

poder. Esse movimento iniciado no dia 31 de março de 1964 tinha o objetivo de livrar

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o país da corrupção, do comunismo, fazer a manutenção da ordem social, trazer o

respeito e a hierarquia e assim restaurar a democracia supostamente perdida. Para

restaurar esses valores, os militares começaram a mudar as instituições do país por

meio de decretos, chamados Atos Institucionais (AI).

Quanto ao cenário teatral da década de 50 e primeira parte da década de 60,

podemos observar a consolidação do Teatro Brasileiro de Comédia alicerçado pela

montagem de grandes textos clássicos, tendo contratados em seu quadro artístico

grandes diretores do teatro europeu. Em contrapartida, no núcleo da Escola de Arte

Dramática, com a formação da primeira turma de atores, nasceu o Teatro de Arena

fundado por José Renato, cujo principal objetivo foi proporcionar uma nova

disposição cênica para os atores iniciantes, a peça acontecendo no centro e a

plateia sentada ao redor.

O Teatro de Arena seria composto por nomes como Gianfrancesco Guarnieri,

Augusto Boal, Oduvaldo Viana Filho, Milton Gonçalves e seu projeto artístico seria

descoberto como oposição ao TBC, de forma que a preocupação com o que seria

representado viria ao encontro de um discurso artístico e político acerca da realidade

brasileira.

Em outras palavras, enquanto o TBC apostava em representar os clássicos

modernos e contemporâneos, o Arena buscava uma interlocução direta com a

realidade corrente do país. Eles não usam black tie, escrita por Gianfrancesco

Guarnieri, foi a primeira obra emblemática do grupo. A peça colocava em cena o

operário e os conflitos daquele momento histórico para serem discutidos. Segundo

Prado (2003, p.65)

O sucesso de Eles não usam black tie, sucesso completo, maciço, de imprensa e de bilheteria, restaurou a crença no valor, inclusive comercial, das peças nacionais, com o Arena marchando à frente dos acontecimentos. A esta primeira etapa, de incentivo à produção local, sucedeu aquilo que Augusto Boal chamou de “nacionalização dos clássicos”. Tratava-se agora de transportar ao espetáculo a intenção nacionalizante, procurando-se um estilo brasileiro capaz de preservar a nossa peculiar maneira de ser, as nossas idiossincrasias idiomáticas e gestuais, mesmo perante grandes peças estrangeiras. Se o ideal do TBC havia sido adequar o ator ao texto, qualquer que fosse a procedência deste, visava-se agora quase o contrário.

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Desse pensamento nacionalista, surgiu o teatro engajado político do Teatro

de Arena, que fundamentou sua estética nos estudos sobre teatro do alemão Bertolt

Brecht. Assim, desses estudos, surgiu a série de peças de Arena conta: Zumbi,

Tiradentes, Pequenos Burgueses, Andorra, Os inimigos, etc.

Entre 1950 e 1964, o TBC contraiu muitas dívidas, posto que não era

fomentado pelo Estado e vivia do próprio lucro. À medida que os grandes atores

deixavam o quadro artístico do teatro de Franco Zampari e a liberdade democrática

foi arrefecendo, a única possibilidade para o TBC era fechar as portas.

A partir da segunda metade dos anos 60, a Escola de Arte Dramática havia

amadurecido. Os alunos que antes iam ao TBC assistir às grandes montagens,

agora viam no Teatro de Arena e no Teatro Oficina de José Celso Martinez o

vislumbre de uma arte que fazia sentido à sua época, pois, por meio das novas

ideias teatrais de Brecht, Artaud e Grotowski, o teatro problematizava o meio em que

era produzido e assim se afinava aos princípios políticos da esquerda do país.

Esse novo momento artístico e político era refletido dentro da EAD de forma

que os alunos observavam uma discrepância entre o que era ensinado dentro da

escola e o que acontecia politicamente no país, haja vista que a escola primava pelo

estudo de textos clássicos e pela estética teatral sem relacioná-los ao contexto

presente. Dessa maneira, os alunos viam na escola um retrocesso ao tipo de

formação de ator de que o teatro brasileiro necessitava naquele momento. Enquanto

isso, Alfredo Mesquita seguia na direção e administração da escola falido e

relutando a essa nova estética teatral. Segundo Fernandes (2009, p.26)

Na década de 1960, no entanto, quando o país conheceu acontecimentos político-econômicos que atingiram profundamente a sociedade e a cultura – seja pela própria evolução da sociedade, seja pelos efeitos subsequentes a fatores políticos que culminariam com a Revolução de 1964 –, a Escola de Arte Dramática viveu a exaustão de seu projeto e, como foi acontecer, acompanhou as curvas de apogeu e decadência que lhe correspondiam: endividado e exaurido financeiramente, Alfredo Mesquita decidiu abrir mão de sua escola.

A anexação da EAD à Universidade de São Paulo era uma possibilidade

corrente e levantada por Décio de Almeida Prado, professor da escola, desde 1961.

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Ele intuía ser aquele momento o mais propício para essa operação, pois a escola

encontrava-se ainda forte nos aspectos administrativos e pedagógicos. Essa

possibilidade fora sempre negada por Alfredo Mesquita, que temia perder o controle

de sua escola para a burocratização das leis que regiam uma Universidade Pública.

Contudo, a escola e o próprio Alfredo Mesquita encontravam-se exauridos

artística e financeiramente. O que antes mantinha uma compreensão dos

funcionários acerca dos problemas financeiros era a perspectiva de um ideal de

transformação do teatro brasileiro por meio da formação dos artistas que ali

estudavam; no entanto, essa perspectiva não se sustentava mais, a escola

mergulhava em dívidas e a consolidação da instituição no cenário nacional precisava

de bases financeiras mais sólidas para seu desenvolvimento e aprimoramento.

O professor Décio de Almeida Prado também constatava o esgotamento do

papel desempenhado pela escola no cenário nacional “embora (indo) muito bem, ela

tinha caído num certo ramerrão, vamos dizer, e já tinha deixado de representar

aquela novidade que tinha sido no início.” (FERNANDES, 2009, p.29)

Por fim, a Escola de Arte Dramática foi anexada à Universidade de São Paulo

pelo Decreto nº 46.419 do Estado de São Paulo, no dia 16 de junho de 1966. O

decreto também criava a então Escola de Comunicações Culturais (ECC), que

atualmente se denomina como Escola de Comunicações e Artes (ECA).

3.1.2 OS ANOS NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (1968-2000)

O ano de 1966 foi marcado pela transição e adequação do regime militar ao

poder por meio dos Atos Institucionais (AI), entendidos como medidas excepcionais

transitórias para que fossem reestabelecidas a confiança política e econômica no

país. O Brasil vivia o final do governo de seu primeiro presidente militar, o coronel

Humberto de Alencar Castelo Branco, cujo mandato foi conhecido por restringir o

conceito de democracia.

Nesse período, o país vivia sob a égide do AI-1, baixado no dia 9 de abril de

1964, que tinha como objetivo reforçar o poder Executivo e reduzir o campo de ação

do Congresso Nacional, suspender a imunidade parlamentar, autorizar o comando

supremo da revolução militar a cassar mandatos: fosse na esfera municipal,

estadual ou federal. A classe estudantil era uma das mais visadas pela repressão e

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figuras que por alguma razão tinham se destacado em posições nacionalistas e de

esquerda sofreram as suspensões de seus direitos políticos.

Com o medo de que Juscelino Kubitschek concorresse à próxima eleição

presidencial e com a vitória da oposição no Governo de importantes Estados

brasileiros, os militares, do grupo linha-dura, adversários dos castelistas, exigiam

uma severidade maior do poder militar contra os inimigos. Foi sob esse ambiente

hostil, pressionado por esses setores, que Castelo Branco baixou em 17 de outubro

de 1965 o AI-2. Ficava então, regulamentado que a eleição para Presidente e Vice-

Presidente da República seria realizada pela maioria absoluta do Congresso

Nacional, em sessão pública e votação nominal. Em fevereiro de 1966, o AI-3 foi

decretado, estabelecendo também eleições indiretas para Governadores dos

Estados por meio das respectivas Assembleias Estaduais.

O AI-2 reforçou ainda mais o poder do presidente da República,

regulamentando a possibilidade de poder baixar atos complementares a ele, assim

como decretos-leis em matéria de segurança nacional. Sua medida mais importante,

porém, foi a determinação do fim dos diversos partidos políticos existentes, pois “os

militares consideravam que o sistema multipartidário era um dos responsáveis pelas

crises políticas” (FAUSTO, 2006, p.476). Dessa forma, foi criado o partido da

Aliança Renovadora Nacional (Arena) que unificava a base aliada do Governo e o

Movimento Democrático Brasileiro (MDB) cuja base era formada pela oposição.

No ano seguinte, o AI-4 foi baixado como forma de fazer o Congresso aprovar

a nova Constituição de 1967. Essa constituição incorporou na legislação a

ampliação de poderes conferidos ao poder executivo, especialmente quando o

assunto era a segurança nacional. Nesse mesmo ano, o presidente Castelo Branco

não conseguiu fazer seu sucessor ser eleito e foram eleitos para presidente e vice-

presidente o general Artur Costa e Silva e o udenista Pedro Aleixo, que tomaram

posse em março de 1967.

Ao longo dos últimos anos da ditadura, passado o impacto inicial da

repressão, a oposição começou a se reestruturar. A Igreja começou a confrontar o

Governo e os estudantes se mobilizaram em torno da UNE (União Nacional dos

Estudantes). No cenário político, Lacerda se aproximava de seus inimigos

tradicionais, Jango e Juscelino, para juntos formarem a Frente Ampla em luta pela

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redemocratização do país e a afirmação dos direitos dos trabalhadores. O ano de

1968 não foi um ano qualquer para o mundo, segundo Boris Fausto (2000, p.476):

Em vários países os jovens se rebelaram, embalados pelo sonho de um novo mundo. Nos Estados Unidos, houve grandes manifestações contra a guerra do Vietnã; na França, a luta inicial pelo sistema educativo assumiu tal amplitude que chegou a ameaçar o governo De Gaulle. Buscava-se revolucionar todas as áreas do comportamento, em busca da liberação sexual e da afirmação da mulher. As formas políticas eram vistas como velharias e esperava-se colocar a “imaginação no poder”. Esse clima que no Brasil teve efeitos visíveis no plano da cultura em geral e da arte, especialmente da música popular, deu também impulso a mobilização social. Era um árduo caminho colocar a “imaginação no poder”, em um país submetido a um a ditadura militar.

O ano de 1968 foi marcado pelo levante estudantil e operário contra a

repressão dos militares no poder. O clima hostil no país reforçava a certeza dos

“linhas-duras” de que a revolução estava se perdendo e era preciso criar novos

instrumentos contra os movimentos subversivos, liderados por estudantes e

operários. No dia 13 de dezembro de 1968, o então presidente Costa e Silva baixou

o Ato Institucional 5.

Ao contrário dos outros Atos, o AI-5 não tinha prazo de vigência e não era,

pois, uma medida excepcional transitória, ele duraria até o inicio de 1979. O objetivo

do Ato era dar plenos poderes ao presidente da República, permitindo decretar o

fechamento do Congresso Nacional provisoriamente quando quisesse; suspender a

garantia de habeas corpus aos acusados de crimes e infrações de ordem

econômica, social e popular; cassar mandatos e suspender direitos políticos do

funcionalismo público, abrangendo professores universitários; censurar os meios de

comunicação; e adotar a tortura como parte dos métodos do governo. O regime

cada vez mais parecia incapaz de ceder às pressões e se reformar, seguia o curso

de uma ditadura violenta, enquanto as ações armadas populares contra o governo

se multiplicavam.

Diante desse panorama histórico que abarcou os últimos quatro anos da

década de 60, é possível observar que a Escola de Arte Dramática sofria os reflexos

dessa juventude descontente com o paradigma político estabelecido daquele

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momento. A escola tomaria, por meio dos artistas-alunos e a contragosto de seu

fundador, “a forma de uma nova postura estético-ideológico, frente à arte cênica,

visivelmente influenciada pelos grupos profissionais de vanguarda.” (SILVA, 1987,

p.205)

Enquanto Alfredo Mesquita relutava em aceitar as organizações estudantis

que efervesciam na escola, era iminente a constatação de que não era mais

possível manter sozinho financeiramente sua instituição, pois o poder público que

“que pouco ajudou a EAD, anteriormente, se afastava agora ainda mais de qualquer

subvenção à cultura. Ao contrário, para o governo pós-revolução de 1964, a cultura

antes de ser ajudada, deveria ser amputada.” (SILVA 1987, p.205). Os alunos

questionavam a falta de diálogo da escola com a realidade do país, sobretudo em

relação à disciplina de interpretação, que era ministrada pelo próprio Alfredo

Mesquita. Segundo o depoimento de Antonio Januzelli (SILVA, 1987, p.206):

Os alunos já estavam começando a questionar tudo. Era uma época revolucionária, diferente da EAD de outros tempos. A gente sentia o que tinha sido a EAD, mas já todo tremido, cambaleante. O que existia lá eram reuniões, discutindo a estrutura da Escola... a necessidade de mudança. Tudo estava indo para os ares, o teatro estava mudando e já não era mais aquele ator que a direção do professor Alfredo Mesquita tinha até então formado. O homem daquele momento não era o homem de vinte anos atrás. Isso eu fui entender depois, no momento eu não entendia nada.

Diante de tal descontentamento, os principais grupos de vanguarda do teatro

paulista, o Teatro de Arena e o Teatro Oficina, apresentaram à administração da

escola uma proposta de reformulação de seu currículo escolar, no qual os próprios

integrantes desses grupos ministrariam oficinas ao longo do ano, alternando suas

frentes de atuação entre os artistas que compunham esses grupos para, assim, abrir

um diálogo entre o conteúdo ministrado na escola e a cena teatral da época.

A proposta não foi vista com bons olhos por Alfredo Mesquita, contudo os

alunos sintonizados com a legitimidade das mudanças, tanto políticas na esfera do

engajamento estudantil, como pedagógicas na esfera da conciliação de estéticas

teatrais com o momento presente, decidiram fazer chegar a Alfredo Mesquita, por

meio de uma carta, seus desejos de mudança e apoio à proposta apresentada.

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Em uma determinada noite de 1968, os alunos suspenderam as atividades da

escola para anunciar uma assembleia geral, cuja finalidade era dialogar com a

direção da escola acerca das mudanças curriculares e do engajamento político.

Alfredo Mesquita não se propôs a ficar para assembleia que durou o período regular

de aula e se excedeu para depois dele, por isso, foi redigida uma carta que deveria

ser entregue na mesma madrugada a ele. Por ser tarde da noite, uma parte dos

alunos decidiram dormir na escola, o que foi visto por Alfredo Mesquita como uma

invasão e um desrespeito a sua autoridade dentro de sua instituição. Depois desse

fato, o diretor da EAD não dialogou mais com os alunos e foi se afastando de sua

escola. Segundo Silva (1987, p.210):

Na verdade, Alfredo Mesquita começava a entender que sua missão estava cumprida. O próprio teatro, que estava na moda, já não o satisfazia. Perguntado sobre quando ele sentiu que o teatro brasileiro se afastava dos ensinamentos ministrados na EAD, ele respondeu: “foi o teatro engajado, o teatro agressivo... Roda Viva”.

O ano de 1966 marcou o início da incorporação da EAD à Universidade de

São Paulo e sua incorporação efetiva ao campus ocorreu em 1968, ou seja, quase

dois anos de trâmites burocráticos entre o decreto de incorporação e a anexação

que ocorreu de forma gradual. O primeiro ano passaria para a Universidade, que

custearia todos os dispêndios financeiros para seu funcionamento, enquanto os

outros anos continuariam funcionando no prédio do Liceu de Artes e Ofícios na

Avenida Tiradentes, sob a responsabilidade financeira de Alfredo Mesquita.

Em sua Escritura de Incorporação, consta que a EAD ficaria nas

dependências da Universidade como um instituto anexo da também recém-criada

ECC (Escola de Comunicações Culturais, atual ECA), uma unidade maior na

universidade foi criada para abrigar cursos de nível superior (graduação e pós-

graduação). Essa distinção gerava incoerências e prejuízos financeiros para a

universidade, pois o lugar jurídico da EAD se tornava nebuloso, posto que a escola

era caracterizada como uma instituição de ensino de nível médio dentro da alçada

de uma escola de nível universitário.

Portanto, para a incorporação à Universidade, a EAD foi desmembrada de

forma que os cursos de Dramaturgia e Crítica e Cenografia foram considerados

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como cursos de nível superior, enquanto o curso de formação de ator foi configurado

como um curso de nível médio. Dessa maneira, ficou estabelecido que a EAD anexa

à USP seria responsável pelo curso de formação de ator, enquanto os cursos que

foram desmembrados ajudariam a fundar o curso de artes cênicas da universidade.

O receio de Alfredo Mesquita em relação à anexação da EAD à Universidade

de São Paulo era justamente pelo fato de que sua escola ainda não se encontrava

totalmente estruturada. Os cursos de Dramaturgia e Crítica e Cenografia ainda eram

novos e faltava ser implementado o curso de Direção com toda a sua

particularidade.

Entretanto, com a falta de dinheiro, a única saída possível aos problemas era

a anexação. Alfredo Mesquita elaborou entre 1966 a 1968 um projeto pedagógico

coeso para a instalação da escola na universidade de acordo com as verbas

prometidas pelo reitor, contudo, quando repassadas, elas foram menores do que o

acordado.

No decreto oficial, ficava previsto um crédito de NCr$ 110.240,00 para sanar

as despesas de incorporação, porém o valor real liberado foi de NCr$ 70.000,00.

Alfredo Mesquita foi obrigado a comprimir seu projeto pedagógico de dois anos de

estudo para um novo projeto que se adequasse à verba em quinze dias. Segundo as

palavras de Alfredo Mesquita (SILVA, 1987, p.213):

Imagine um trabalho de dois anos ser totalmente reduzido em 15 dias. Esse plano é completamente impossível que quase desisti da anexação, naquele dia. Eu só não desisti, porque estava completamente desiludido.

Os NCr$ 40.000,00 que faltavam, segundo o recém-nomeado reitor, Prof. Dr.

Guimarães Ferri, seriam aplicados como verba inicial de construção de um prédio

que fosse útil tanto à ECC como à EAD. No entanto, o reitor afirmava que a

Universidade não dispunha daquela verba naquele momento, o que fez com que,

após a anexação, a ECC começasse a funcionar em acomodações precárias no

prédio da reitoria, enquanto a EAD e o teatro da ECC foram acomodados em

barracões provisórios e sem nenhuma infraestrutura básica para a acomodação de

uma escola daquele porte nas dependências da cidade universitária.

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A crise movimentou a imprensa e a classe teatral que, indignada, mostrava

seu apoio à escola publicamente e era contra o descaso com que a tramitação

acontecia na USP. Cacilda Beker declarou “não medirei esforços, se me forem

solicitados e considerados úteis, na defesa intransigente da instituição”; Maria Della

Costa e Sandro Polloni declararam que “ a crise da Escola de Arte Dramática é um

triste sintoma da má situação do teatro (...) Que se pode esperar do Governo se ele

permitir o esfacelamento da EAD?”6.

Diante de toda a crise, como tentativa de salvar a escola, as cidade de São

Caetano do Sul e Brasília fizeram propostas requerendo a fixação da EAD nas

respectivas regiões. Alfredo Mesquita negou tais propostas, pois queria que sua

escola continuasse a pertencer à cidade de São Paulo.

Contudo, Alfredo Mesquita ainda tentou negociar com o reitor Antonio

Guimarães Ferri, argumentando que era impossível uma escola “funcionar direito”

sendo que estava sendo fundada de forma errada. A resposta do reitor foi que

“todas as outras [escolas] que havia dentro da USP também eram assim e que havia

ainda piores” (FERNANDES, 2009, p.33).

O fundador da EAD já desiludido com o engajamento estudantil de seus

alunos e diante de sua decepção acerca da anexação de forma errada da sua

escola à Universidade de São Paulo, não via outra saída a não ser desistir de seu

projeto artístico-pedagógico. Portanto, de um navio rumo à Europa, Alfredo Mesquita

redigiu sua carta demissional e por todo acervo (figurinos, livros, aparelhos

eletrônicos, discos, etc.), que seria passado junto a EAD, a universidade pagou a

quantia de NCr$ 70.000,00, que foi utilizada para o pagamento de professores e das

dívidas existentes até aquele momento. É possível afirmar segundo Fernandes

(2009, p.34):

Tais fatores desastrosos talvez pudessem ter sido contornados por uma disposição mais flexível, seja da USP, seja do próprio Alfredo Mesquita; no entanto, a nosso ver o episódio que marcou a primeira insubordinação dos alunos foi a gota d‟agua que motivou o seu afastamento definitivo da escola. Deve-se frisar que este não foi um fato isolado na onda das mudanças socioculturais vividas não somente pelo país, como também pelo teatro: espelhando-se na onda mundial de rebelião juvenil deflagrada pelo movimento de Maio

6 Os artistas protestam contra o fechamento – O Estado de S. Paulo 12/11/1967

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de 1968 em Paris e no engajamento sociopolítico que envolvia a massa estudantil brasileira, os alunos da EAD proclamaram o seu desejo de autonomia e participação na gestão pedagógica da escola. Esse posicionamento, aos olhos de Mesquita – o qual, nos primeiros vinte anos, conseguiu dar à escola sua marca pessoal e uma gestão absolutamente una, muito embora respeitando a visão individual de seus professores e até tolerando visões menos conservadoras –, configurou-se como a concretização de seu pressentimento: ele havia perdido o controle da EAD.

Por fim, a substituição de Alfredo Mesquita frente à direção da Escola foi feita

pelo então professor da escola Clóvis Garcia, que também se encontrava vinculado

ao Setor de Teatro da Escola de Comunicações Culturais.

Quanto ao panorama histórico desse período, em agosto de 1969, Costa e

Silva foi vítima de um derrame que o deixou paralisado. Pedro Aleixo, seu vice-

presidente, não pode assumir a presidência por ter se oposto ao AI-5. Assim, por

meio do AI-12, os ministros Lira Tavares, do Exército, Augusto Redemaker, da

Marinha e Márcio Souza de Melo da Aeronáutica assumiram temporariamente o

poder.

Foi o momento mais cruel da repressão, a junta militar respondeu com várias

medidas formais de repressão além da tortura, à escalada da esquerda radical, que

viu como única saída à altura o sequestro de membros do corpo diplomático para

que a troca por presos políticos fosse feita.

Instituíram, então, o AI-13 que oficializava a pena de banimento do território

nacional, aplicável a todo brasileiro que “se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso

à segurança nacional”. Logo em seguida estabeleceu-se também o AI-14, que

oficializava a pena de morte para os casos de “guerra externa, psicologia adversa,

ou revolucionária e subversiva”.

A pena de morte nunca ocorreu formalmente, mas acabava sendo

decorrência das torturas, apresentadas como choques entre subversivos e as forças

de ordem ou como desaparecimentos misteriosos. Porém, ao passo que o Brasil

passava pela sua ditadura mais violenta, era possível perceber que sua economia se

estabilizava.

Em 25 de outubro de 1969, com a impossibilidade do retorno de Costa e Silva

ao poder, postulou-se uma nova eleição para presidente e para vice-presidente.

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Subia ao poder Emílio Garrastazu Médici, amigo íntimo de Costa e Silva. A partir

desse período, a luta armada perde força e entra na década de 70 quase sem

nenhuma voz ativa, seus representantes foram torturados, mortos ou estavam

desaparecidos, de acordo com as afirmações de Fausto “a esquerda radical

equivocara-se completamente, pensando poder criar no Brasil um novo Vietnã”

(FERNANDES, 2006, p.483).

Com o crescimento da economia, o governo Médici apostou no

desenvolvimento das telecomunicações, já que cada vez mais brasileiros estavam

comprando televisão. Nesse momento, a TV Globo cresceu e atingiu todo território

nacional, a emissora nessa época foi a grande porta-voz das ideias nacionalistas do

Governo. A promoção do “Brasil grande potência” e a marchinha “Ninguém segura

este país” demonstraram a imposição de um ufanismo nacionalista, que

representava as “melhorias econômicas nacionais”, o dito “milagre brasileiro”.

Segundo Chauí (1989, p.48-49):

O “regime”, nome empregado para a fachada governamental, é dirigido pelo “sistema” – isto é, pelo Serviço Nacional de Informação e pela chamada Comunidade de Informação – que lhe garantia implementar uma política monetarista altamente inflacionária, fundada no arrocho salarial e na repressão aos movimentos trabalhistas (o chamado “milagre brasileiro”), levando ao extremo a concentração da renda e as desigualdades sócio-econômicas, criando uma estrutura de poupança compulsória (os fundos de todo tipo) que sustenta a política social (a drenagem do salário sendo dissimulada pela devolução dos “benefícios sociais”), produzindo crescimento econômico acelerado e artificial através de sistemas de crédito e subsídios governamentais, obtidos por empréstimos à finança internacional (a célebre “divida externa”), consolidando a intervenção do Estado na economia por meio de empresas mistas e estatais.

Enquanto o milagre econômico acontecia, a cultura brasileira enfrentava uma

crise. Os anos 70 começavam à luz da repressão, desde o golpe de 1964, a

produção artística era submetida à censura que vetava os produtos culturais e

acumulava nas gavetas dos militares textos de teatro e letras de músicas. A

produção artística estagnou no começo da nova década se comparada ao começo

da década anterior; no plano da arquitetura, em 1970, não havia o que se

assemelhasse à grandeza de Brasília; no setor do cinema, não havia nada como o

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cinema novo; na música, nada como a Bossa Nova; nada como as “pesquisas de

linguagens” do grupo de teatro Arena; não se fazia mais uma autorreflexão crítica do

país.

De acordo com as afirmações de Augusto Boal (GASPARI, HOLLANDA e

VENTURA, 2000, p.45), sobre a questão do vazio cultural ele afirma que “pode ser

que exista, mas as gavetas dos censores não estão vazias. Esvaziem-se as gavetas

dos censores e se encherá de imediato o vazio cultural que alguns sentem”.

Posto isso, durante todo o decênio de 1970, a EAD passou por um momento

de adequação de seu pensamento administrativo. Com o desmembramento dos

cursos considerados superiores e ainda sem fixar uma nova identidade, a escola

passou por três fases distintas nessa nova etapa, “num primeiro momento há uma

espécie de continuidade; embora reduzida ao curso de formação do ator”

(FERNANDES, 2009, p.36), os professores foram mantidos e a direção se voltava

para a administração dos recursos financeiros da escola dentro da universidade e da

regularização de alunos, professores e funcionários dentro da ECC.

A segunda fase foi marcada pela ocupação de um espaço ainda inapropriado

para as aulas, o prédio conhecido como Pavilhão C da Cidade Universitária, que

tinha duas salas pequenas para a representação, isto é, as instalações na USP

ainda não dispunham de um teatro laboratório e o espaço precário para o

desenvolvimento de atividades continuava a ser dividido entre a EAD, o

Departamento de Artes Cênicas, a cenotécnica e a administração.

Quanto à divisão do Pavilhão C, entre as duas escolas que o habitavam, ficou

decidido que o Departamento de Artes Cênicas ocuparia o prédio no período diurno,

seguindo o modelo de outras graduações da USP que funcionavam durante o dia

em período integral, enquanto o curso técnico de formação de ator da EAD manteria

seu horário de funcionamento no período noturno. É importante ressaltar que as

duas escolas ocuparam e ocupam o mesmo prédio até os dias atuais de forma

organizada, para que haja uma convivência pacífica entre os alunos do local,

respeitando horários letivos e fazendo acordos quando necessário para algum tipo

de ensaio extra que deva ocorrer fora do período.

A terceira fase se deu a partir de 1981 quando houve uma cessão, via

prefeitura, de um pequeno teatro no Itaim Bibi que funcionou daquele momento em

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diante como um posto avançado do campus. Para tal administração, a universidade

reativou o Teatro Universitário da USP – TUSP, órgão que foi criado em 1960 e que

alguns anos mais tarde foi desativado por conta da represália militar e contenção de

despesas da universidade. O TUSP renovado passou então a gerir e a abrigar os

exercícios cênicos e espetáculos teatrais produzidos tanto pela EAD como pelo

Departamento de Artes Cênicas.

A finalização desse primeiro momento da EAD na Universidade de São Paulo,

que foi até o início dos anos 80, está marcada por uma sucessão de acadêmicos

frente à direção da escola e uma manutenção dos planos pedagógicos elaborados

por Alfredo Mesquita e seus professores antes da anexação.

A EAD só voltou seus olhos novamente à reflexão de uma prática pedagógica

condizente com a formação de um ator que dialogasse com o seu tempo, quando

Claudio Luchesi, ex-aluno, assumiu a direção e redimensionou o caminho trilhado

até então, de modo que foi possível perceber um tipo de cisão em relação à visão

pedagógica mesquitiana. A partir desse momento, a escola entrou em uma fase

mais experimental e profissional, cuja produção artística possibilitou o encontro entre

vários setores da ECC (música, direção, dança, artes plásticas, etc.) para criação de

obras de arte partilhadas e coletivas.

A partir do decênio de 1980, com a EAD já estabelecida dentro da

universidade, mas ainda reivindicando instalações adequadas, e a construção de um

teatro laboratório próprio para suas produções, a escola passou pelo momento de

sua estruturação diante da máquina pública. Os professores foram admitidos no

quadro empregatício da universidade por meio de um sistema CLT (Ofício EAD

20/72) e a supervisão administrativa pedagógica ficou alçada por duas instâncias:

uma delas sendo a própria universidade por ser cedente e responsável pela

alocação na Cidade Universitária e a outra a Secretaria da Educação do Estado de

São Paulo, por ser considerada a priori uma escola de nível médio e a posteriori

passar ao status de escola de nível técnico. Segundo Fernandes (2009, p.47)

(...) após se deparar com a superação meramente acomodatícia às vinculações burocráticas da universidade, finalmente, a EAD voltou a viver seu papel de entidade autônoma no que se refere à gestão administrativa e pedagógica. A partir de 1983 (gestão Claudio Luchesi), já trabalhando com base num Regimento Interno (aprovado

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somente em 1981 e que fora encaminhado à ECA em fins de 1979), a escola passou a ser normalmente fiscalizada pela Secretaria Estadual da Educação, embora inserida no quadro da ECA como instituto anexo, apoiada numa interessante estruturação pedagógica e passando a desenvolver com criatividade o seu projeto pedagógico. Provavelmente devido a essa vinculação à SEE e a sua qualificação como curso de nível médio, a situação peculiar propiciou-lhe maior liberdade e desenvoltura no planejamento e implementação das linhas mestras de suas atividades pedagógicas. O que se observa, mormente a partir de 1986 (“Carta Aquarius”), é o escoramento do seu trabalho em reflexões diretivas próprias, emanadas em termos consensuais de um corpo docente ativo e participativo.

Ao longo dos próximos vinte anos, a EAD então passou pelo seu

amadurecimento artístico, profissional e pedagógico dentro da universidade,

tentando compreender seu papel diante do cenário teatral e assimilando a

contradição de estar localizada geograficamente dentro da USP sem pertencer de

fato à comunidade acadêmica. Por exemplo, no que diz respeito ao quadro de

docentes da universidade, que não reconhece os professores da escola em seu

plano de carreira acadêmica, eximindo-os de qualquer tipo de fomento à pesquisa

científica; ou então pela constatação de que os alunos da EAD não são alunos da

USP, portanto não têm direito à utilização do Hospital Universitário ou às bolsas de

estudo e pesquisa oferecidas aos alunos da graduação.

Entretanto, o final da década de 80 foi marcado pela “Carta de Aquarius”

(1986), cujo sentido era a elaboração de um projeto pedagógico pensado e redigido

por todas as mãos do corpo docente, que pode ser sintetizado pela seguinte

afirmação “cada professor da EAD têm visão diversa sobre o teatro, ficando a cargo

do aluno a síntese” (FERNANDES, 2009, p.56).

O ano de 1992 marcou, enfim, a inauguração do prédio de artes cênicas

dentro do campus “ainda assim insuficiente para ser dividido entre os dois cursos.”

(FERNANDES, 2009, p.61) O prédio foi composto por salas práticas e salas teóricas

e por dois teatros laboratórios a sala “Miroel Silveira” e a sala “Alfredo Mesquita”.

A partir da década de 90 e durante os anos 2000, a EAD se consolidou não

mais como uma escola de cunho paternalista, cujo mecenas tinha total poder para

impor sua visão de teatro para os alunos, mas sim uma escola embasada por um

conselho administrativo e pedagógico compostos por professores. As decisões na

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escola, a partir desse momento e até a atualidade, são dialogadas por meio de votos

que viabilizam a administração da escola de forma democrática.

Por fim, é possível constatar que a EAD continua sendo uma escola de

excelência, marco profundo na renovação do teatro dos últimos 68 anos e seu vigor

é renovado pela multiplicidade de artistas que a compõem, pois os profissionais que

ali trabalham de acordo com Fernandes (2009:61)

Dando corpo a uma visão mais profissional e eficiente do ensino teatral (...) trouxeram, cada qual, a seu modo, características próprias a uma pedagogia (...) para a formação de um ator inserido no moderno teatro brasileiro.

Ainda hoje, a escola enfrenta problemas que continuam situados na mesma

seara desde o momento da anexação, como o lugar da escola dentro da

universidade, a valorização dos profissionais que lá trabalham, o reconhecimento do

corpo discente como membros da comunidade universitária, entre outros nós que

surgem constantemente, colocando em xeque a participação da Escola nas

decisões tomadas pela USP e seus reitores, porém, apesar de todos os percalços, a

EAD continua a ser um expoente dentro do cenário teatral com a sua contribuição ao

formar artistas atuantes, críticos e que dialogam com o tempo presente.

3.2 PROJETO PEDAGÓGICO DA ESCOLA DE ARTE DRAMÁTICA

No dia 2 de maio de 1948, a Escola de Arte Dramática foi fundada por seu

mecenas Alfredo Mesquita à maneira brasileira “improvisadamente e aos poucos”,

posto que não havia no país um modelo a ser seguido de estrutura pedagógica

acerca da formação do ator e das artes do palco de um modo geral. Assim, a escola

teve que assumir a criação de um projeto pedagógico que desse conta da formação

dos artistas que iriam compor o moderno teatro brasileiro.

As influências fundadoras do projeto pedagógico da EAD, em sua fase

mesquitiana (1948-1968), vieram das vanguardas artísticas da Europa do final do

século XIX e começo do século XX, sobretudo no que dizia respeito aos movimentos

artísticos advindos da França, cuja premissa do teatro centrava-se na arte da

oratória e o ator/comediante, além de desenvolver técnicas de trabalho com o texto,

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tinha sua preocupação como artista vinculada ao desenvolvimento de sua existência

social.

Diante disso, a estrutura pedagógica da escola acabava por se fundamentar

por meio dos seguintes eixos de formação, os quais comporiam uma tríade, que

sustentaria o surgimento desse ator que deveria fundar e corresponder às

expectativas de um moderno teatro brasileiro: primeiro, a ênfase da escola de

Alfredo Mesquita se daria pela formação cultural, conjuntamente com os

fundamentos técnicos do trabalho do ator e a interpretação propriamente dita.

No que diz respeito à formação cultural, observa-se que a escola focava a

construção de um vasto repertório sobre a história do teatro clássico, moderno e

contemporâneo, a posteriori, a partir de 1962, a cátedra sobre História do Teatro

Brasileiro seria criada, fazendo o aluno-ator refletir sobre a tradição teatral do Brasil

até então.

As necessidades de se conhecer os fundamentos do teatro grego, as

premissas do teatro elisabetano e do teatro clássico francês seriam eminentes nesse

processo. Essa formação fazia parte dos dois primeiros anos da escola, vista de

maneira que, se o aluno fosse reprovado, não poderia dar continuidade ao curso. A

leitura de textos clássicos “daria aos alunos uma abertura de consciência cultural

que, com um pouco de esforço, poderia proporcionar-lhes o entendimento perfeito

das obras contemporâneas” (SILVA, 1987, p.61-62).

As aulas de língua portuguesa faziam parte do eixo de formação cultural dos

alunos, pois se acreditava que o ator deveria saber ler, escrever e se comunicar

corretamente em seu idioma. Aulas de inglês e de francês também seriam

ministradas, com um enfoque reforçado nesta última língua, posto que toda a

bibliografia da biblioteca encontrava-se em francês. O ensino da língua francesa

teve grande importância para Alfredo Mesquita, que teve sua formação cultural na

França e acreditava que o teatro de vanguarda viria dos moldes franceses.

O segundo eixo da tríade de formação se deu sob os fundamentos técnicos

da expressão que foram primordialmente imaginados como uma referência

importante para esse novo ator, porém o que foi idealizado ainda buscava

embasamento teórico. Muitos caminhos do que se entendia como técnica da

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expressão foram percorridos, até a sistematização do que seria a técnica para o

processo criativo de trabalho do ator.

O que foi definido como a base dos elementos essenciais para o trabalho do

ator foram as técnicas de expressão corporal e vocal. Mais uma vez, podemos

observar que a escola de Alfredo Mesquita, seguindo a tradição europeia, mais

precisamente a tradição teatral de linha francesa, deu ênfase às técnicas de

expressão vocal. Segundo Silva (1987:73)

Saber „dizer‟ o texto era elemento fundamental de avaliação do exame público do aluno-ator que deveria, exercitado para tanto, conseguir extrair do texto dramático algumas de suas principais possibilidades cênicas.

As técnicas de impostação de voz, canto, dicção e respiração confluíram por

meio da professora Maria José de Carvalho para uma primeira sistematização de um

processo de formação vocal para o ator brasileiro. A professora trabalharia com

textos literários e poéticos para treinar pronúncia, sonoridade, ritmo, respiração,

pontuação, métrica e improvisos vocais e expressivos.

No entanto, quando o aluno entrava em contato com a personagem do texto

teatral, as técnicas deveriam servir ao papel. Essa confluência entre técnica e

criação tornava o trabalho mais complexo, na medida em que se experimentava uma

limpeza quase de natureza fonoaudiológica nos exercícios de voz, para depois

aplicar aquele saber racional nas matérias de criação artística. Nesse sentido, foi

criada a disciplina de “estilos de interpretação” em que a professora Maria José

ensinava aos alunos, de acordo com Antonio Januzelli (apud SILVA, 1987, p.76),

(...) a pesquisarem as características próprias de diversos tipos em relação às épocas das peças, ou seja: como era um caipira, um nobre ou um intelectual. Os estudantes não deviam nunca buscar os estereótipos dessas figuras, mas sua alma, seu espírito.

No que se refere às técnicas de expressão corporal, a escola fundamentou

suas práxis nos métodos do suíço Jacques Dalcroze (1865-1950), que estabeleceu

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um tipo de ensino de coordenação de movimentos corporais com a música,

denominado de Euritmia, em que se pretendia chegar a um estado emocional por

meio de uma experiência física. A escola também adotou os métodos do professor

húngaro Rudolf Laban (1879-1958), em que a mímica deveria concentrar-se

basicamente em três aspectos: “(a) as características da pessoa representada; (b)

os tipos de valores pelos quais elas lutam; (c) a situação onde se desenvolvem

essas lutas.” Portanto, a mímica, a esgrima, a dança e a ginástica fizeram parte da

grade curricular como elementos essenciais para desenvolver a expressividade do

aluno-ator.

A última vertente da tríade é a interpretação propriamente dita. Um dos

problemas dessa vertente, para Alfredo Mesquita, era a falta de consonância

existente entre os diretores convidados para ocupar a cadeira de interpretação e a

habilidade para ministrarem aulas que proporcionassem uma experiência

pedagógica sobre a arte de interpretar personagens para os alunos da escola.

O próprio Alfredo Mesquita ministrava as aulas sobre interpretação, como

primeiro professor a assumir a cadeira de interpretação no segundo ano, logo após o

término das disciplinas técnicas e teóricas. Segundo Silva (1987, p.87):

Cuidadoso com a evolução escolar integrada de cada estudante, jamais abriu mão de uma primazia, a de iniciar o ator no curso preparatório, conduzindo-o em suas primeiras incursões no universo dos personagens. Esse era um encargo não raramente maçante, que só uma vocação pedagógica podia reavivar na sucessão dos anos. Afastando de seu horizonte qualquer pretensão de carreira profissional, o diretor que existia em Alfredo Mesquita foi, aos poucos, sendo ofuscado pelo professor, a quem todos os alunos da EAD, creditam os primeiros e fundamentais ensinamentos.

Alfredo Mesquita trabalhava em suas aulas com texto de Shakespeare, pois

acreditava haver tudo na obra do dramaturgo inglês. De acordo com Silva (1987:87)

amor, luta, morte, poesia, enfim, situações dramáticas e personagens, todos os elementos que podiam funcionar como itens básicos de um verdadeiro trabalho de interpretação teatral.

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A disciplina de interpretação se interligava com as práticas de montagem e

assim se constituía a segunda parte do curso da EAD. Nos primeiros semestres, a

técnica e a teoria, nos últimos semestres, a prática no levantamento de uma peça.

Esse projeto pedagógico, no que diz respeito à formação do ator, foi a base

fundamental da EAD durante os vinte anos anteriores à anexação à USP. Durante a

década de 70 e metade da década de 80, quem esteve à frente da direção da escola

fez a manutenção desse projeto sem buscar mudanças efetivas, posto que a escola

passava por um processo de adequação à estrutura imposta pela Universidade de

São Paulo.

A elaboração de um novo projeto pedagógico ocorreu, enfim, na gestão como

diretor de Claudio Luchesi, com a elaboração da “Carta de Aquarius”, que data dos

dias 23 e 24 de agosto de 1986 e que tem por objetivo a pedagogia teatral dentro da

EAD ser diversa e multifacetada, pois seu corpo docente é constituído por artistas

com visões diferentes sobre o fazer teatral, portanto a EAD não se constituiria por

uma única “linha” de pensamento estético ou filosófico, mas sim por uma gama de

“linhas” de atuação estético-filosóficas.

As conclusões sobre esse novo projeto se estabeleceram com base na ideia

de que o documento seria uma “síntese de todas as experiências anteriores

desenvolvidas pela Escola” e que suas preocupações básicas seriam: a) ênfase na

formação do ator; b) atendimento de um mercado de trabalho diversificado; c)

interferência do artista no meio social. Dessa maneira, segundo Fernandes (2009,

p.58-60), as justificativas dessas diretrizes embasam a vivência que o aluno da

escola deve ter ao longo dos quatro anos do curso como:

I. um processo programado de desenvolvimento específico da arte do ator: autoconhecimento como primeiro estágio (conhecimento centrado no ator); a seguir reconhecimento (ênfase no trabalho de construção do personagem); jogo teatral (ênfase na situação dramática) e, por fim, encenação (elaboração do produto estético).

II. Num sentido global, deve-se levar o aluno a posicionar-se frente ao fenômeno teatral em seu aspecto mais amplo, pretendendo-se um direcionamento múltiplo que considere: a) o eixo diacrônico (referência do fenômeno à sua dimensão histórica); b) a possibilidade de experimentar (praticar, fazer) como instância prioritária de dinamização do conhecimento; c) o atendimento da

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necessidade de leitura e compreensão da produção teatral contemporânea.

III. Quanto à implantação do projeto, pretende-se: um controle maior do processo pedagógico, conduzindo a escolha do repertório para as montagens (correspondentes a cada estágio respectivo); um aprofundamento do estudo organizado tematicamente e o estreitamento da relação pedagógica entre as disciplinas regulares e as etapas das montagens; devem-se observar critérios práticos de programação das disciplinas, funcionamentos das mesmas e das oficinas de montagem e acompanhamento pedagógico e participação discente.

Participaram da elaboração desse projeto pedagógico todos os

professores/artistas que faziam parte da escola até aquele momento. Alguns deles,

como Ana Maria Spyer, Celso Frateschi, Sandra Regina Sproesser, Silvia Taques

Bittencourt e Silvana Garcia, continuam dando aula e observando a pungência e a

permeabilidade desse projeto pedagógico até os dias atuais. Portanto, com esse

documento, ficou evidenciado que o objetivo geral da EAD é “formar atores

profissionais de nível médio levando-se em conta a diversidade das tendências

contemporâneas” (FERNANDES, 2009, p.60). Assim, durante o processo de

formação do ator, a EAD deve proporcionar aparatos técnicos para que o ator

encontre suas ferramentas pré-expressivas e expressivas, que esse ator consiga se

situar dentro das linhas estéticas, políticas e filosóficas do fazer teatral “a fim de que

possa conhecer suas características individuais como intérprete; visar „a arte do ator‟

sem perder de vista „o ofício do ator‟”. (FERNANDES, 2009, p.60).

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CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DO CORPUS

APRESENTAÇÃO

O capítulo identificará os aspectos relevantes do teatro contemporâneo,

situando a vida e a obra do dramaturgo francês Bernard-Marie Kòltes. Em seguida,

contextualizaremos o ambiente da gravação de nosso corpus para, enfim,

delimitarmos as categorias de análise que serão utilizadas. Determinamos como

objetivo especifico deste capítulo: analisar como se dá a pedagogia de

expressividade com a palavra, desenvolvida pela disciplina de Expressão Verbal da

Escola de Arte Dramática no ano de 2014 com a turma 65.

4.1 ASPECTOS DO TEATRO CONTEMPORÂNEO

A concepção clássica do discurso dramático pressupõe ações que viabilizem

a identificação do público com as personagens que estão envolvidas na intriga e no

conflito propostos pela fábula. Essa concepção foi vigente até o final do século XIX,

a boa peça teatral era aquela que reproduzia fidedignamente a realidade e que

respeitava de forma absoluta a coerência das unidades clássicas aristotélicas de

tempo, ação e lugar, a fim de criar a mimese do mundo real. Segundo Szondi (2011,

p.25):

(...) o público era (e é) arrastado para o interior do jogo dramático, passando de espectador a sujeito falante – pela boca de todos os personagens, bem entendido. A relação espectador-drama conhece apenas total separação ou total identidade; ela desconhece tanto a intromissão do espectador no drama, quanto sua interpelação por ele.

No entanto, com a chegada do século XX e o advento das grandes

revoluções políticas e culturais como o cinema e as duas Grandes Guerras, a

reprodução da realidade no teatro começou a ser problematizada. Dessa maneira, o

espetáculo passava a não mais imitar “a realidade, ele propunha uma construção

para ela, uma réplica verbal prestes a se desenrolar em cena” (RYNGAERT, 1998,

p.5).

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Portanto, o discurso dramático vigente, a partir desse momento, não dava

suporte mais aos anseios criativos da classe artística contemporânea, e a realidade

só caberia no teatro, novamente, a partir de um ponto de vista e de uma opinião

política estruturada.

A crise no discurso dramático é instaurada dessa maneira, e os

procedimentos do teatro épico surgem como forma de engajamento de um discurso

político para um teatro que não queria mais o ilusionismo proposto pela mimese da

realidade.

A obra teatral desse momento previa um diálogo direto com a plateia, o ator

que representava uma personagem era também o narrador e tinha uma opinião

própria acerca do que era apresentado. Este era o princípio do teatro épico, que tem

como seu maior expoente o alemão Bertolt Brecht, cujas fábulas representadas na

cena teatral eram metáforas para um discurso subjacente do dramaturgo, que queria

estabelecer um diálogo direto com o público, ou seja, as obras desse momento

requeriam a participação, a reflexão e o posicionamento político de quem se

relacionava com elas.

Contudo, com o movimento pós-moderno que se anunciava, num momento

“Pós-Brecht” (1960-1970), em que o legado do teatro épico começava a esmorecer e

evidenciava um afastamento sintomático de temas políticos e ideológicos do palco,

os artistas buscavam uma nova forma de expressar e explorar as linguagens

cênicas.

Com base nas premissas desse novo momento, surgiram primeiros indícios

de um movimento teatral, na contramão veemente dos procedimentos dramáticos,

ao instaurar uma ruptura com a linearidade da narrativa e com o textocentrismo do

teatro. Segundo Lehman (2011, p.79):

O que se abala e se esvanece com essa crise é uma série de componentes até então inquestionáveis do drama: a forma textual do diálogo, carregado de tensões e decisões; o sujeito, cuja realidade se exprime essencialmente na fala interpessoal; a ação que se desenrola primordialmente em um presente absoluto.

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Por fim, após os movimentos artísticos dos anos 70, surge como

consequência ou oposição a todas as experimentações do teatro até então o que

será denominado como o teatro pós-dramático. Esse termo acaba estabelecendo

uma reminiscência com o drama como se fosse constituído pelos “membros ou

ramos do organismo dramático, embora como um material morto, (...) (que) constitui

o espaço de uma lembrança „em irrupção‟” (LEHMAN, 2011, p.35). A partir do

movimento pós-dramático, as noções do que é um texto, uma cena e uma obra se

problematizam e começam a estabelecer diálogos com as outras esferas da arte e

da vida.

Diante de tal afirmação, passaremos para a contextualização da vida e da

obra de Bernard-Marie Kòltes, dramaturgo francês que viveu a efervescência do

teatro pós-moderno e pós-dramático, a fim de observarmos como tais movimentos

artísticos refletem em sua criação artística.

4.2 VIDA E OBRA DE BERNARD-MARIE KÒLTES

No início da década de 70, na França, surge no cenário teatral Bernard-Marie

Kòltes, um jovem dramaturgo francês, vindo de uma família pequeno-burguesa

católica, marcada pelo terror e pela opressão da Revolução Argelina. Seu pai era um

oficial do exército e tinha participado das campanhas de guerra contra a

independência do país.

A ausência paterna para Kòltes foi marcante ao longo de sua infância e

juventude, seu pai regressaria tempos mais tarde, com o peso da derrota da França

nas costas. Por conta disso, o universo bélico, a metrópole e as opressões raciais

marcaram a escrita do dramaturgo, segundo o próprio Kòltes (apud Machado, 2000,

p.90)

Acho que os negros inevitavelmente estarão presentes até o fim, em tudo que escrevo. Pedir-me para escrever uma peça, um romance sem que haja, ao menos um, ainda que mínimo, mesmo escondido

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atrás de um poste, seria como pedir a um fotógrafo para fazer uma foto sem luz.7

O francês estreou como dramaturgo em 1970, mas sua primeira obra

consideravelmente relevante, Combate de Negros e Cães, foi encenada em 1983,

sob a direção de Patrice Chéreau. A peça Na solidão dos campos de algodão

estreou em 1985 e Roberto Zucco, em 1988, esta última não foi vista pelo

dramaturgo, pois faleceu aos 41 anos de idade, vitimado pelo HIV um ano antes de

sua estreia oficial.

Kòltes encontra-se na seara dos dramaturgos contemporâneos que buscam

novas formas de expressão para sua obra. A estrutura de seu texto lança mão de

elementos clássicos da constituição de uma obra dramática para criar outras

dinâmicas na linguagem verbal em que “a atividade da palavra toma o lugar antes

reservado à progressão da intriga” (FERNANDES, 2001, p.75). O jovem dramaturgo

tinha muitas dúvidas em relação ao fazer teatral, não gostava de ir aos espetáculos,

pois não via a pulsão da vida quando se deparava com a encenação de uma obra

teatral. Para Kòltes (apud Machado, 2000, p.8):

Vejo o palco como um lugar provisório, do qual os personagens parecem estar querendo sair (...) o que parece suscitar que o teatro é o abandono do palco para reencontrar a própria vida. Mas já não sei de fato se a vida existe de algum lado (...) eu sempre detestei um pouco o teatro porque ele é o contrário da vida, no entanto, acabo sempre retomando-o, e ele é o único lugar onde se diz que aquilo não é vida.

Dessa maneira, Kòltes se mostra um dramaturgo atento ao seu tempo, cuja

obra retrata o caos da tragédia moderna, que se encontra “ancorada no interior de

nosso cotidiano, de nossa sociedade” e “que nos toca e nos desequilibra com sua

linguagem inovadora” (MACHADO, 2000, p.9)

Trataremos, então, de contextualizar nesta pesquisa a peça Na solidão dos

Campos de Algodão, parte importante de nosso corpus de análise. No que se refere

à obra, podemos observar que todas as características essenciais da produção

7 Entrevista a Alain Pique, in Theatre em Europe, janeiro de 1986.

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artística do dramaturgo se encontram desenvolvidas como uma das muitas

respostas possíveis aos experimentos das neovanguardas dos anos 70 e 80 acerca

dos apontamentos de Lehman sobre o teatro pós-dramático.

4.3 NA SOLIDÃO DOS CAMPOS DE ALGODÃO

O título da obra Na solidão dos campos de algodão de Bernard-Marie Kòltes,

segundo uma explicação do próprio dramaturgo, é uma metáfora aos algodoais do

Mississipi nos Estados Unidos para onde os negros eram levados para trabalhar

como escravos e lá ficavam uns ao lado dos outros sem poderem conversar,

estando coletivamente solitários em seu trabalho diário.

A peça trabalha a partir da complementariedade entre procedimentos

advindos do teatro épico e procedimentos advindos do teatro dramático de modo

que os personagens ora narram o acontecido, ora evidenciam a constituição

psicológica de uma personagem imbuída de uma lógica dramática.

O mote principal da obra é o encontro entre duas personagens sem nome

próprio e que são denominadas alegoricamente como Dealer, em que na única

rubrica existente do texto é categorizado como uma transação comercial baseada

em valores proibidos, e a outra personagem como o Cliente, transeunte que anda

pela cidade em busca de algo, ou seja, as personagens adquirem valores

arquetípicos facilmente reconhecidos pelo sistema capitalista. Portanto, podemos

observar que a peça trata sobre uma transação comercial entre um comerciante e

um cliente e, por meio dessa transação, reconheceremos aquilo que as personagens

podem trazer de mais humano em suas essências. De acordo com Fernandes

(2001, p.74)

É interessante observar como em suas peças a circulação da palavra auxilia a construção de estratégias espaciais complexas. Na solidão dos campos de algodão é uma “trans-ação” entre traficante e cliente onde o jogo de ataque e defesa é projetado através dos movimentos do diálogo. Sem utilizar uma única rubrica, Koltès consegue sugerir a imobilidade do primeiro e a movimentação do segundo através de um “motim verbal” que se desdobra no ritmo preciso das falas e nas passagens bruscas do discurso altamente retórico à linguagem cotidiana. O movimento do traficante em direção ao cliente e o recuo deste, na tentativa dúbia de negar e afirmar a intenção de compra acabam projetando territórios de ação.

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Portanto, não há um tema pré-existente para a peça, o que existe é o que se

constrói no momento da enunciação, por isso as personagens estão ao longo de

suas falas negociando, sem que haja um produto claro a ser negociado, elas

negociam o desejo de estar diante de um outro que também está em plena solidão.

A relação que se estabelece entre os dois vem da imanência dialética do

discurso das personagens e não do objetivo do que será conseguido ao final deste

encontro. Assim como não há uma delimitação clara de um cenário instituído pelo

autor, a construção dessa cena imaginária é discursiva, feita pela enunciação dos

atores no quadro cênico. O texto falado na obra tem a característica de grandes

monólogos entrecortados em que as personagens tendem a expor mais aquilo que

sentem do que de fato ouvem o que o outro tem a dizer, por consequência a

audiência que presencia tal verborragia é conduzida epicamente entre a narração e

o mundo subjetivo e solitário dessas personagens, Michel Vinaver (apud

FERNANDES, 2001, p.74-75) observa que a obra

tem qualidade postiça e retórica, acentuada pela falta de ligação entre pergunta e resposta. Na verdade, as réplicas infladas são longos monólogos em que cada interlocutor fala até perder o fôlego, sem que nunca se tenha certeza a quem se dirige. Em lugar de responder, o antagonista geralmente retoma sua fala anterior, compondo um movimento musical de repetição/variação.

Por fim, a obra Na solidão dos campos de algodão não pretende ter um fio

condutor narrativo linear, por isso não há episódios ou ações que constituem uma

história a ser contada, mas sim é uma obra sobre o encontro metafísico de duas

instâncias alegóricas de poder, presentes na sociedade, que evidenciam o

esfacelamento desse homem contemporâneo, solitário e que é reconhecido

majoritária e socialmente pelo seu poder de compra e de negociação.

4.4 O CONTEXTO DA ENCENAÇÃO: UM EXERCÍCIO EXPRESSIVO DA PALAVRA

O corpus de análise da presente pesquisa se estabelece como uma

observação acerca dos procedimentos de transposição do texto escrito para o texto

falado no teatro.

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Para tal análise, acompanhamos a disciplina de Expressão Verbal ministrada

pela professora Maria Isabel Setti na sexagenária Escola de Arte Dramática,

importante instituição formadora de atores em nosso país, que está situada nas

dependências da Cidade Universitária da Universidade de São Paulo.

Ao longo do primeiro semestre de 2014, este pesquisador acompanhou

semanalmente a disciplina, gravando todos os exercícios pertinentes ao trabalho

técnico vocal do ator.

No entanto, essa primeira parte do processo não constituiu um trabalho

efetivo de oralização do texto em que pudéssemos respaldar nosso referencial

teórico. A pesquisa para os alunos atores da disciplina, neste momento, encontrava-

se no âmbito da voz como matéria expressiva e expansiva no espaço cênico.

Interessa-nos, portanto, discorrer sobre o acompanhamento das aulas a partir

do segundo semestre de 2014, em que o texto se estabeleceu como um norte para

as experimentações vocais e, sobretudo, como uma provocação aos atores a partir

da pergunta “como oralizar um texto no teatro?”.

A professora trouxe para a turma de vinte atores o texto de Bernard Marie-

Kòltes, Na solidão dos campos de algodão, obra teatral composta por duas

personagens, Dealer e Cliente. Desde o princípio, essa questão não se apresentou

como um problema, posto que todos iriam assumir a responsabilidade sobre a

oralização do texto. Portanto, metade da turma trabalharia a partir da perspectiva de

Dealer e outra metade, a partir da perspectiva do Cliente.

Dessa maneira, por meio de jogos improvisacionais e proposições de cenas

trazidas pelos atores, o exercício foi construído. Como não havia compromisso

nenhum com a linearidade do fluxo conversacional ou com a sequência lógica da

história, percebemos que o exercício se constituiu de forma refratária, ou seja, os

atores/personagens contracenavam em sua maioria ao mesmo tempo, criando

cenas corais ou a partir de novas proposições de diálogos que poderiam ser

compostas por monólogos direcionados à plateia, ou por contracenas em que dois

ou mais atores se relacionavam ao mesmo tempo.

Sendo assim, percebemos que uma das características da encenação era

criar para o texto novos turnos conversacionais, a partir do encadeamento de

fragmentos de falas que se amalgamassem e gerassem sentidos dramáticos.

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Outro aspecto relevante do exercício, proposto pela professora, era a ideia de

estabelecer a encenação como um jogo improvisacional em que o ator seria

responsável por evidenciar todos os procedimentos de criação da cena e, por

consequência, teria total liberdade em escolher a melhor forma de oralizar o texto,

em busca de uma expressividade que o satisfizesse em relação à sua performance

enunciativa.

Logo, o jogo cênico estabelecido no exercício não primava por um espetáculo

teatral pronto e acabado, mas sim por uma experiência pedagógica dos atores-

alunos da disciplina de Expressão Verbal com a obra. O texto acabava se tornando

um pretexto para um exercício de expressividade da fala. A partir da criação de

elementos verbais que truncassem o raciocínio linear do diálogo forjado pelo

dramaturgo, o aluno-ator poderia desvirtuar a lógica do texto em razão de uma

necessidade individual de experimentar uma nova interpretação para o turno que

acabara de ser enunciado.

Portanto, de acordo com o jogo proposto, as regras para a busca de uma

expressividade satisfatória sobre a própria fala seriam:

a) Toda vez que um ator cometesse alguma falha em sua enunciação, teria o

direito de refazê-la, entretanto, para isso, ele deveria sinalizar a retomada

de seu turno para a plateia por meio da expressão “de novo”

(denominamos nesta pesquisa a expressão “de novo” como um Marcador

Conversacional, que indica um procedimento de correção no turno do

falante);

b) Cada ator criou uma “fissura” que era recorrente em sua enunciação.

Entender-se-á “fissura” como um estranhamento no texto que tinha o

objetivo de quebrar a lógica dramática linear proposta pelo dramaturgo.

Logo após esse estranhamento, o texto era retomado e o ator o abordava

por uma outra perspectiva entonacional e prosódica, mas ainda assim

coerente a uma lógica da língua falada8.

8 Temos como hipótese a ser confirmada pelo corpora recolhido que isso que se designou a chamar-se “fissura”

tem como função equivalente, dentro da Análise da Conversação, os Marcadores Conversacionais que denotam aspectos relacionados à correção e paráfrase no turno.

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Desse modo, as cenas escolhidas para a análise de nosso corpus denotam

um trabalho efetivo dos atores envolvidos com as ferramentas pedagógicas

propostas pela professora para o desenvolvimento de um trabalho com a

expressividade da fala em cena. Recolhemos ao todo três cenas de momentos

distintos do exercício cênico, a primeira cena (CENA 1) foi extraída do último dia de

apresentação do exercício com o público, a segunda cena (CENA 2) foi retirada de

um ensaio que antecedia o dia de abertura do processo para o público e a última

cena analisada (CENA 3) também fez parte do último dia de apresentação do

processo para o público.

É importante ressaltar os momentos distintos de seleção das cenas, pois,

dessa maneira, evidenciamos a importância do papel da audiência na produção do

texto falado pelos atores, já que é função do ator estabelecer uma relação de

sentido do que se produz como texto falado em cena com o seu principal

interlocutor, a plateia. Em oposição a essa afirmação, é possível observar, na cena

que provém de um ensaio, a liberdade da atriz em experienciar diferentes maneiras

de produzir o texto falado, como se de fato estivesse exercitando seus mecanismos

expressivos sem necessariamente estar preocupada com uma comunicação efetiva

com a plateia, seus experimentos com a palavra não seguiam um sentido lógico da

fala. Portanto, podemos afirmar que a plateia é o grande norteador do jogo

conversacional estabelecido no palco, é por meio das reações advindas da

audiência que o ator adequa e melhora seu desempenho oral ao retextualizar a

modalidade do texto escrito para a modalidade do texto falado.

Por fim, Na solidão dos campos de algodão foi um experimento apresentado

entre os dias 27, 28, 29 e 30 de novembro na sala de ensaio nº 25 da Escola de Arte

Dramática, como um exercício de finalização do ano letivo da disciplina de

Expressão Verbal da turma 65. O jogo proposto proporcionou para o texto escrito, ao

longo dos dias de apresentação, uma inconstância que o subvertia à medida que era

oralizado, tornando-o uma obra aberta e polissêmica no que diz respeito à busca por

uma expressividade efetiva da palavra enunciada pelo ator.

4.5 CATEGORIAS DE ANÁLISE

A presente pesquisa observou os procedimentos expressivos, utilizados pelos

alunos-atores da turma 65 da disciplina de Expressão Verbal da Escola de Arte

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Dramática, ao retextualizarem o texto escrito Na solidão dos campos de algodão do

dramaturgo francês Bernard-Marie Kòltes para a modalidade de texto falado.

No exercício cênico, a professora propôs aos alunos que fossem criadas

“fissuras” dentro do texto, elementos verbais ou não verbais que desvirtuassem a

linearidade do diálogo forjado pelo dramaturgo, a fim de que fosse evidenciada uma

experiência com a expressividade no modo de dizer o texto.

Destacamos no quadro a seguir as fissuras analisadas ao longo do corpora:

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- Uma fissura comum utilizada por

todos os atores ao longo do jogo

conversacional e que denota a

possibilidade de refazer a fala diante

de um erro ou de uma performance

oral não satisfatória;

DE NOVO

- ao longo da transcrição da Cena 1

foram levantadas as seguintes

“fissuras”

L3: “SAI” e “LARGA” (cuja função

dentro do turno é causar um

estranhamento ao texto oralizado)

L4: “MAIS ALto Ivi” e “poTÊNcia

MÁxima Ivi” (cuja função é

evidenciar um comentário da

atriz a si mesma sobre o

desempenho que deseja ter

sobre a própria fala)

- ao longo da transcrição da Cena 2

destacamos como “fissura” o canto

entoado pela atriz ao longo da fala

“Xangô Ole gon de ilê” e

“Ah...eh...ah...eh...” (cuja função

dentro do turno está em criar um

movimento intertextual entre o texto

do dramaturgo e o canto sagrado que

evidencia as marcas da identidade

cultural e religiosa da atriz ao oralizar

o texto.)

- ao longo da transcrição da Cena 3

destacamos como “fissura” pequenos

comentários feito pelo ator

“- - fui claro - -“; “- - eu gosto

especialmente dessa fala vou dizer

ela de novo - -“ e “- - me faltou o ar- -”

(cuja função se encontra em comentar

com o público as impressões que o

ator está tendo sobre o texto

enunciado).

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Dessa maneira, em nossa análise, mapeamos o que foi designado como

“fissura” no texto falado, a partir de categorias de análises embasadas pelos

referenciais teóricos da Análise da Conversação (AC). Portanto, para entender o que

se designou serem “fissuras” criadas pelos atores no texto teatral, destacamos os

seguintes aspectos da AC: Marcadores Conversacionais que tem como função

iniciar procedimentos de Paráfrase e Correção.

Para analisar o corpus gravado, utilizamos as normas de transcrição

propostas pelo NURC/SP. Vide a tabela a seguir:

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NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO

Ocorrências Sinais Exemplificação9

Incompreensão de palavras ou

segmentos

( ) do nível de renda... ( ) nível de renda

nominal...

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado (com o

gravador)

Truncamento (havendo

homografia, usa-se acento

indicativo da tônica e/ou

timbre)

/ e comé/ e reinicia

Entoação enfática maiúscula porque as pessoas reTÊM moeda

Prolongamento de vogal e

consoante (como s, r)

:: podendo

aumentar para ::::

ou mais

ao emprestarem os... éh::: ...o

dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção

Interrogação ? e o Banco... Central... certo?

Qualquer pausa ... são três motivos... ou três razões...

que fazem com que se retenha

moeda... existe uma... retenção

Comentários descritivos do

transcritor

((minúsculas)) ((tossiu))

Comentários que quebram a

sequência temática da

-- -- ... a demanda de moeda -- vamos

dar essa notação -- demanda de

9 Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP nº338 EF e 331 D2.

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exposição; desvio temático moeda por motivo

Superposição, simultaneidade

de vozes

{ ligando as linhas A. na { casa da sua irmã B. sexta-

feira? A. fizeram { lá... B. cozinharam

lá?

Indicação de que a fala foi

tomada ou interrompida em

determinado ponto. Não no

seu início, por exemplo.

(...) (...) nós vimos que existem...

Citações literais ou leituras de

textos, durante a gravação

" " Pedro Lima... ah escreve na

ocasião... "O cinema falado em

língua estrangeira não precisa de

nenhuma baRREIra entre nós".

Observações 1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.)

2. Fáticos: ah, éh, eh, ahn, ehn, uhn, ta (não por está: tá? você está brava?)

3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.

4. Números: por extenso.

5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa).

6. Não se anota o cadenciamento da frase.

7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa).

8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto e vírgula, ponto

final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa.

Acrescentaremos como procedimento de transcrição o negrito como forma

de destacar as ocorrências de fissuras no texto oralizado pelos atores.

Diante do exposto, passaremos a análise de nosso corpus.

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4.6 ANÁLISE

A) CENA 1

Um deal é uma transação comercial baseada em valores proibidos ou

estritamente controlados, e que se conclui, em espaços neutros,

indefinidos, e não previstos para este uso, entre fornecedores e

pedintes, por acordo tácito, sinais convencionais ou convers ação de

duplo sentido – com o objetivo de contornar os riscos de traição e de

trapaça que uma tal operação implica – , a qualquer hora do dia e da

noite, independentemente das horas regulamentares de abertura dos

lugares de comércio homologados, mas de preferência às horas em que

estes estão fechados.

O Dealer

Se você anda na rua, a esta hora e neste lugar, é que você

deseja alguma coisa que você não tem, e esta coisa, eu posso fornecê -

la a você; pois se eu estou neste lugar desde muito mais tempo do que

você, e que mesmo esta hora que é aquela das relações selvagens

entre os homens e os animais não me tira daqui, é que eu tenho o que

é preciso para satisfazer o desejo que passa na minha frente, e é como

um peso do qual eu preciso me livrar em cima de qualq uer um, homem

ou animal, que passe na minha frente.

É por isso que eu me aproximo de você, apesar da hora que

é aquela onde normalmente o homem e o animal se jogam

selvagemente um sobre o outro, eu me aproximo, eu, de você, as mãos

abertas e as palmas viradas na sua direção, com a humildade daquele

que oferece frente àquele que compra, com a humildade daquele que

possui frente àquele que deseja; e eu vejo o seu desejo como quem vê

a luz que se acende, em uma janela no alto de um prédio, na hora do

crepúsculo; eu me aproximo de você como o crepúsculo se aproxima

dessa primeira luz, calmamente, respeitosamente, quase

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afetuosamente, deixando lá embaixo na rua o animal e o homem

puxarem suas coleiras e mostrarem selvagemente os dentes um ao

outro.

Não que eu tenha adivinhado o que você possa desejar, nem

que eu esteja apressado em conhecer; pois o desejo de um comprador

é a coisa mais melancólica que existe, que se contempla como um

presente que se recebe embrulhado e que se toma um tempo

desfazendo o laço. Mas é que eu mesmo desejei, desde o tempo em

que estou neste lugar, tudo o que todo homem ou animal pode desejar

a esta hora escura, e que o faz sair de casa apesar dos grunhidos

selvagens dos animais insatisfeitos e dos homens insatisfeitos; é por

isso que eu sei, melhor que o comprador inquieto que guarda ainda por

um tempo o seu mistério como uma pequena virgem educada para ser

puta, que o que você vai me pedir eu já tenho, e que basta a você, sem

que se sinta ferido pela aparente injust iça que há em ser o pedinte

frente àquele que oferece, me fazer o pedido.

Já que não há uma verdadeira injust iça sobre esta terra a

não ser a própria injust iça da terra, que é estéri l pelo frio ou estéri l

pelo quente e raramente férti l pela doce mistura do quente e do frio;

não há injustiça para quem anda sobre a mesma porção de terra

submetida ao mesmo frio ou ao mesmo quente ou à mesma doce

mistura, e todo homem ou animal que pode olhar um outro homem ou

animal nos olhos é o seu igual pois eles andam sobre a mesma l inha

f ina e plena da liberdade de ação, escravos dos mesmos frios e dos

mesmo calores, ricos do mesmo jeito e, do mesmo jeito pobres; e a

única fronteira que existe é aquela entre o comprador e o vendedor,

mas incerta, ambos possuindo o desejo e o objeto de desejo , ao

mesmo tempo vazio e saliente. É por isso que eu pego emprestado

provisoriamente a humildade e te empresto a arrogância, a f im de que

nos distingam um do outro a esta hora que é inevitavelmente a mesma

para você e para mim.

Me diga então, virgem melancólica, neste momento, onde

grunhem surdamente homens e animais, me diga a coisa que você

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deseja e que eu posso te fornecer, e eu fornecerei calmamente a você,

quase respeitosamente, talvez com afeição; em seguida depois de ter

preenchido os vazios e aplanado os montes que estão em nós, nós nos

distanciaremos um do outro, em equilíbrio sobre o f ino e plano f io da

nossa l iberdade de ação, sat isfeitos no meio dos homens e dos animais

e insatisfeitos por serem homens e insatisfeitos por serem animais;

mas não me peça para adivinhar o seu desejo; eu serei obrigado a

enumerar tudo o que eu possuo para satisfazer aqueles que passam na

minha frente desde o tempo em que estou aqui, e o tempo que seria

necessário a esta enumeração secaria o meu coração e cansaria sem

dúvida a sua esperança.

O Cliente

Eu não estou andando em um certo lugar e a uma certa hora; eu

estou andando, só isso, indo de um ponto a outro, para negócios

privados que se tratam nesses pontos e não em percurso; eu não

conheço nenhum crepúsculo nem nenhum tipo de desejo e eu quero

ignorar os acidentes do meu percurso. Eu ia desta janela iluminada,

atrás de mim, lá no alto, a essa outra janela iluminada, lá em frente,

segundo uma linha bem reta que passa através de você porque você

está aí deliberadamente posicionado. Acontece que não existe nenhum

meio que permita, a quem vai de uma altura a uma outra altura, evitar

descer para ter de subir em seguida, com o absurdo de dois

movimentos que se anulam e o risco, entre os dois, de esmagar a cada

passo o lixo jogado pelas janelas; quanto mais no alto se mora, mais o

espaço é são, mas a queda é mais dura; e quando o elevador te deixou

embaixo, ele te condena a andar no meio de tudo isso que não

quisemos lá em cima, no meio de uma pilha de lembranças podres,

como, no restaurante, quando um garçom te prepara a conta e

enumera, ao seu ouvido atento, todos os pratos que você já está

digerindo há muito tempo.

Seria preciso al iás que a escuridão fosse ainda mais densa, e que

eu não pudesse perceber nada do seu ros to; então eu teria, talvez,

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podido me enganar sobre a legit imidade da sua presença e do desvio

que você fazia para se colocar no meu caminho e, por minha vez, fazer

um desvio que se adaptasse ao seu; mas qual escuridão seria

suficientemente densa para fazer com que você parecesse menos

escuro do que ela? Não há noite sem lua que não pareça ser meio -dia

se você caminha nela, e esse meio-dia me mostra suficientemente que

não foi o acaso dos elevadores que te colocou aqui, mas uma

imprescrit ível lei da força da gravidade que é própria a você, que você

carrega, visível, sobre os ombros como uma mochila, e que te prende a

esta hora, neste lugar de onde você avalia suspirando a altura dos

prédios.

Quanto ao que eu desejo, se ele fosse algum desejo do qual eu

pudesse me lembrar aqui, na escuridão do crepúsculo, no meio de

grunhido de animais dos quais não vemos nem a cauda, além desse

desejo garantido que eu tenho de te ver deixando cair a humildade, em

mim e nos outros, e essa troca me desagrada – , o que eu desejaria,

você com certeza não teria. Meu desejo, se ele é mesmo um, se eu o

exprimisse a você, queimaria o seu rosto, faria você afastar as mãos

com um grito, e você sumiria na escuridão como um cachorro que corre

tão depressa que não se vê nem a cauda dele. Mas não, a perturbação

deste lugar e desta hora me faz esquecer se eu já t ive algum dia algum

desejo do qual eu pudesse me lembrar, não, eu não tenho mais que

oferta a te fazer, e vai ser preciso que você faça um desvio para que

não tenha o que fazer, que você se desloque do eixo que eu seguia,

que você se anule, porque essa luz, lá no alto, no alto do prédio, da

qual se aproxima a escuridão, continua imperturbavelmente brilhando;

ela fura essa escuridão, como um fósforo aceso fura o pano que

pretende asfixiá-lo.

TRANSCRIÇÃO (6’45 – 14’25)10- vídeo A

Participação de L1: ator, L2: atriz, L3: atriz, L4: atriz e L5: ator, na gravação do

excerto.

10

Minutagem do vídeo anexo.

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5 10 15 20 25 30 35 40 45 50

1º - L1: a PE::ça foi escrita a partir de uma experiência pessoal do Kòltes... uma noite andando em Nova Iorque... ele é parado por um homem negro que diz... eu tenho tudo o que você quer... a isto Kòltes responde... eu não quero nada... a peça tem dois personagens um Dealer e um Cliente ((as personagens são apresentadas e os atores atravessam o palco))... nas palavras de Kòltes um deal é uma transação comercial... baseada em valores proibidos ou estritamente controlados entre fornecedores e pedintes... por meio de acordo tácito... sinais convencionais ou conversação de duplo sentido... a fim de evitar os possíveis riscos de traição e trapaça que uma tal interação inclui a qualquer hora do dia e da noite... mas de preferência quando os locais de comércio homologados estão fechados... quatro pessoas nos cubos... dois Dealers e dois Clientes 2º - L2: Dealer 3º - L3: Dealer 4º - L4: Cliente 5º - L5: Cliente 6º - L5: eu não estou andando em um certo lugar e a uma certa hora... eu estou:: an::dando só isso indo de um ponto a outro para tratar de negócios que se tratam nesses pontos e não em percurso... eu venho daquela janela iluminada lá atrás lá no alto até aquela outra janela i luminada lá na frente seguindo uma linha bem reta que passa através de você porque você está aí deliberadamente posicionado [ 7º - L2: você tem RAzão em pensar que eu não estou vindo de nenhum lugar e que eu não tenho nenhuma intenção de subir... mas você se enganaria se acreditasse que eu sofro por isso... eu FUjo dos elevadores como os caCHOrros fogem da água... não que eles se recusem a me abrir a porta ou que eu tenha horror em me fechar neles... mas os elevadores em movimento me fazem CÓcegas e eu perco ali a minha dignidade... e se eu gosto de sentir CÓcegas... eu gosto de poder não MAIS senti -LAS... desde que minha dignidade o exija (...) 8º - L4: entretanto... eu não tenho para te agradá desejos... i l ícitos... meu próprio comércio EU o faço nas horas homologadas do dia... nos lugares de comércio homologados e iluminados com luz elétrica... talvez... TALvez eu seja puta mas se eu sou o meu bordel não é deste mundo... o meu borde l se expõe à luz legal e (sis)/de novo ... o MEU bordel se exPÕE à luz legal e fecha suas portas à noite timbrado pela lei... e i luminado pela luz elétr ica (...) 9º - L3: você faz o possível para enfiar um espinho debaixo da sela do meu cavalo para que ele se irrite e dispare... mas se meu cavalo é nervoso e às vezes indócil eu o mantenho com

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55 60 65 70 75 80 85 90 95

uma rédea curta e ele não dispara tão... de novo .. . e ele não disPAra tão faci lmente... um espinho não é uma lâmina meu cavalo sabe a espessura de seu couro e pode se adaptar à coceira... 10º - L2: tem elevadores que são como certas drogas... o uso excessivo te deixa f lutuan::do nunca em cima nunca embaixo... tomando linhas curvas por l inhas retas e congelando o fogo no seu centro e é por isso que não importa o que você disser... a LInha sobre a qual você andaria de reta talvez que ela fosse f icou TORta quando você percebeu a minha presença [ 11º - L5: seria preciso al iás que a escuridão fosse ainda mais densa... e que eu não pudesse ver nada do seu rosto... aí eu po/deria... de novo ... aí eu poderia talvez ter me enganado sobre a legit imidade da sua presença [ 12º L4: e seu f iz um desvio (...) [ 13º - L5: do desvio que você fazia para se colocar no meu caminho (...) 14º - L4: e se eu f iz um desvio se bem que minha linha reta do ponto de onde eu venho ao ponto para onde eu vou não tenha motivo neNHUM... MAIS ALto Ivi ... não tenha motivo nenhum de se entortada de repente... poTÊNcia MÁxima Ivi.. . é que eu NÃO TEnho MOtivo neNHUM... VOcê... esTÁ... me baRRANdo o CAminho cheio de intenções iLÍcitas e de presunções iLÍcitas em relaÇÃO a MIM... saiba então...saiba você que o que mais me rePUgna no mundo mais que a intenção i l ícita é o olhar daquele que presume que você está cheio de intenção i l ícita e habituado a tê-la(.. .) 15º - L3: eu mantenho a minha língua como um garanhão é

mantido pela rédea para que ele não se jogue sobre a égua...

SAI ... porque se eu sol tasse a rédea se eu afrouxasse

ligeiramente a pressão dos meus dedos... SAI::: ... SE EU

afrouXA::sse l iGEIramente a preSSÃO dos MEUS DEdos E A

TRAção dos meus BRAços minhas palavras desmontariam a

mim mesmo e se jogariam em direção do horizonte com a

violência de um cavalo árabe... que percebe o deserto e nada

mais pode frear (...)

16º - L2: e eu percebi o momento preciso em que você me percebeu pelo momento preciso em que sua l inha f icou curva... de novo ... e eu percebi o momento preciso em que você me percebeu pelo momento preciso em que sua l inha f icou curva...não para te distanciar de mim...mas curva para vir até

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100 105 110 115 120 125 130

mim...senão nós nunca teríamos nos conhecido(.. .) 17º - L5: quanto ao que eu desejo se ele fosse algum desejo que eu pudesse me lembrar aqui na escuridão do crepúsculo no meio de grunhido de animais dos quais não vemos nem a CAUda... se eu o exprimisse a você... eu queimaria o seu rosto... FAria você afastar as mãos com um grito e você sair ia correndo tão rápido como um cachorro que corre tão de pressa que não se vê nem a cauda dele (...) 18º - L2: você tem razão eu não estou indo... eu não estou vindo... eu sofro... 19º - L4: pois se disséssemos de um homem que atravessa o Atlântico-- de avião -- que ele está em tal momento na Groenlândia será que ele está mesmo? Ou no coração tumultuado do oceano? 20º - L3: eu deixei a arrogância pra você por causa da hora do crepúsculo na qual nós nos aproximamos um do outro porque a hora do crepúsculo na qual você se aproximou de mim é aquela onde a correção não é mais obrigatória... LARga ... é aquela onde a correção:: não é mais obrigatória e passa a ser então necessária onde nada mais é obrigatório fora uma relação selvagem na escuridão e eu poderia ter caído sobre você como um trapo sobre a chama de uma vela eu poderia ter te puxado pela gola da camisa de surpresa e esta correção... necessária mais...gratuita que eu te ofereci l iga você a mim até mesmo porque eu poderia por orgulho ter andado sobre você como uma bota esmae/de novo como uma bota esmaga um papel engordurado... SAI ... 21º - L2: e vai ser preciso que você faça um desvio para que eu não tenha que fazer (...) 22º - L3: se não mais um

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ANÁLISE

TEXTO ESCRITO: 2 turnos idealizados pelo dramaturgo

TEXTO ORALIZADO: 22 turnos, em que se percebe a edição de trechos e

encadeamentos lógicos das ideias do texto para criar uma nova dinâmica

conversacional entre os diálogos retextualizados. A rubrica inicial se transformou em

um turno direcionado à plateia que tem como objetivo narrar e explicitar os

procedimentos de como se desenvolverá a ação cênica no exercício. É possível

dizer que todos os elementos da encenação serão evidenciados aos olhos do

público e, com isso, se justifica a natureza de ser um exercício cênico em que todos

os atores farão as duas personagens (Dealer e Cliente).

L4: linhas 41- 46

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

“Talvez eu seja puta, mas se eu sou, meu bordel não é deste mundo; ele se expõe, o meu, à luz legal e fecha suas portas à noite, timbrado pela lei”

TALvez eu seja puta mas se eu sou o meu bordel não é deste mundo... o meu bordel se expõe à luz legal e (sis)/de novo ... o MEU bordel se exPÕE à luz legal e fecha suas portas à noite timbrado pela lei... e i luminado pela luz elétr ica (...)

Há neste trecho uma autocorreção autoiniciada em que se percebe a hipótese

do truncamento de uma palavra que não é retomada no enunciado reformulado.

Portanto, o marcador “de novo” anuncia nesse trecho uma hesitação, pois o erro que

seria cometido foi previsionado pelo ator e, por isso, a palavra se encontra truncada.

L3: linhas 51- 52

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

e ele não dispara tão facilmente e ele não dispara tão... de novo .. . e ele não disPAra tão facilmente...

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Nessa situação, percebe-se a formulação de um problema parafrástico de

prospecção, pois o falante para o desenvolvimento da formulação e, ao intercalar o

MC “de novo”, elabora o Enunciado Reformulador (ER), repetindo os termos do

Enunciado Original (EO), acrescentando como uma nova informação o advérbio de

modo “facilmente”.

L5: linhas 65- 67

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

então eu teria, talvez, podido me enganar sobre a legit imidade da sua presença

aí eu po/deria... de novo ... aí eu poderia talvez ter me enganado sobre a legit imidade da sua presença

Primeiramente na retextualização para o texto oral percebemos a substituição

do marcador pré-posicionado “então” pelo marcador pré-posicionado “aí”, utilizado

nessa situação como iniciador da unidade comunicativa do turno da atriz, ao mesmo

tempo em que denota ênfase e preocupação do falante em estabelecer a

intercompreensão entre seu interlocutor e as ideias do texto oralizado. Há também

nesse trecho uma autocorreção autoiniciada, contudo, percebe-se o acionamento do

MC “de novo”, pois o falante pretende corrigir o truncamento acontecido na palavra

“poderia” e assim re-enunciar o trecho que foi comprometido pelo truncamento.

L4: linhas 75- 80

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

para onde eu vou não tenha motivo, nenhum, de se entortada de repente, é que você está me barrando o caminho, cheio de intenções il ícitas e de presunções em relação a mim

eu venho ao ponto para onde eu vou não tenha motivo neNHUM... MAIS ALto Ivi ... não tenha motivo nenhum de se entortada de repente... poTÊNcia MÁxima Ivi ... é que eu NÃO TEnho MOtivo neNHUM... VOcê... esTÁ... me baRRANdo o CAminho cheio de intenções iLÍcitas e de presunções iLÍcitas em relaÇÃO a MIM...

Os MCs: “MAIS ALto Ivi” e “poTÊNcia MÁxima Ivi” aparecem como

comentários que quebram a sequência temática do tópico discursivo, para que o

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falante possa evidenciar uma observação a si mesmo acerca do desempenho de

sua fala. Portanto, esses comentários se estabelecem dentro do turno

conversacional como marcadores conversacionais em que os elementos que o

constituem mantêm os seus sentidos e funções sintáticas originais e estabelecem

uma relação intertextual entre a performance da linguagem utilizada pelo locutor e a

constituição do texto escrito pelo dramaturgo. Ou seja, à medida que enuncia o texto

escrito pelo dramaturgo, a atriz pede a si mesma que sua fala seja mais alta,

fazendo assim um comentário sobre o seu desempenho em relação ao a sua

performance oral do texto escrito. Ao perceber que seu desempenho pode ser mais

intenso, pede a si mesma a potência máxima no desenvolvimento do enunciado e

com isso exalta o tom de voz e chega ao grito, desenvolvendo por meio da repetição

desses marcadores uma relação parafrástica expansiva entre o EO e o ER em que o

EO é repetido depois do primeiro MC “MAIS ALto Ivi” desenvolvendo o turno .

Quando a atriz recorre ao outro MC ”poTÊNcia MÁxima Ivi...” a f im de

completar o raciocínio elaborado pelo texto escrito, abdica de uma

segunda repetição li teral dos termos já falados e reformula o restante

do turno repetindo apenas “é que eu NÃO TEnho moTIVO neNHUM...”

de modo a encerrar o tópico conversacional .

TURNO 15

L3: linhas 85- 92

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

para que ele não se jogue sobre a égua, porque se eu soltasse a rédea, se eu afrouxasse ligeiramente a pressão dos meus dedos e a tração dos meus braços, minhas palavras desmontariam a mim mesmo e se jogariam em direção ao horizonte com a violência de um cavalo árabe

para que ele não se jogue sobre a égua... SAI . .. porque se eu soltasse a rédea se eu afrouxasse ligeiramente a pressão dos meus dedos... SAI::: ... SE EU afrouXA::sse liGEIramente a preSSÃO dos MEUS DEdos E A TRAção dos meus BRAços minhas palavras desmontariam a mim mesmo e se jogariam em direção do horizonte com a violência de um cavalo árabe...

TURNO 20

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L3: linhas 114- 125

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

é aquela onde a correção não é mais obrigatória e passa a ser então necessária (...) ter andado sobre você como uma bota esmaga um papel engordurado

é aquela onde a correção não é mais obrigatória... LARga ... é aquela onde a correção:: não é mais obrigatória e passa a ser então necessária onde nada mais é obrigatório fora uma relação selvagem na escuridão e eu poderia ter caído sobre você como um trapo sobre a chama de uma vela eu poderia ter te puxado pela gola da camisa de surpresa e esta correção... necessária mais...gratuita que eu te ofereci l iga você a mim até mesmo porque eu poderia por orgulho ter andado sobre você como uma bota esmae/de novo como uma bota esmaga um papel engordurado... SAI ...

Nos turnos 15 e 20 de L3, há a utilização dos MCs “SAI” e “LARGA”, que

podemos classificar como marcadores lexicalizados que não trazem relação

semântica com o resto da formulação do texto conversacional. Percebe-se no 15º

turno a ocorrência do marcador “SAI” em dois momentos. No primeiro momento, o

marcador é colocado entre o desenvolvimento do enunciado de forma a dar ênfase e

estranhamento ao que será dito em seguida.

No segundo momento, é possível perceber a formação de uma autoparáfrase

prospectiva em que L3, para o desenvolvimento da formulação, intercala o

enunciado com o MC “SAI” e retoma parte do segmento interrompido com uma outra

qualidade prosódica, concluindo assim a ideia do enunciado original. Observemos

como isso ocorre:

1ª porque se eu soltasse a rédea se eu afrouxasse ligeiramente a

pressão dos meus dedos... SAI ::: ... (Enunciado Original incompleto e

submetido à intrusão do MC “SAI :::...”)

2ª se eu soltasse a rédea se eu afrouxasse ligeiramente a pressão dos

meus dedos... SAI::: ... SE EU afrouXA::sse l iGEIramente a preSSÃO

dos MEUS DEdos E A TRAção dos meus BRAços minhas palavras

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desmontariam a mim mesmo e se jogariam em direção do horizonte

com a violência de um cavalo árabe... (Enunciado Reformulado iniciado

pela repetição do Enunciado Original mais a complementação

necessária para seu desencadeamento lógico.)

No 20º turno, quando aparece o MC “LARGA” , há também uma

constituição de um marcador lexical izado cujo intuito é sublinhar algo

que já foi dito, pois L3 repete a mesma formulação criando um

alongamento na palavra “correção::”.

É possível perceber o truncamento da palavra esmae/ e o

surgimento do marcador “DE NOVO” como um procedimento de

hesitação em que a atriz previsiona o erro que será cometido, por isso

trunca a palavra, aciona o MC de novo e faz uma nova formulação,

dessa vez, elaborando sem hesitar a palavra “esmagar”.

Por f im, o ult imo MC “SAI” encontra -se pós-posicionado,

marcando a f inalização do turno conversacional de L3.

B) CENA 2

Dealer

Se você acredita que eu esteja animado por intenções de violência em

relação a você – e talvez você tenha razão – , não dê cedo demais nem

um gênero nem um nome a esta violência. Você nasceu com o

pensamento de que o sexo de um homem se esconde em um lugar

preciso e que ele f ica lá, e você guarda cautelosamente este

pensamento; entretanto, eu sei, eu – apesar de nascido da mesma

maneira que você – , que o sexo de um homem, com o tempo que ele

passa esperando e esquecendo, f icando sentado na solidão, se

movimenta calmamente de um lugar a outro, nunca escondido em um

lugar preciso, mas visível lá onde não o procuram; e que nenhum sexo,

passado o tempo onde o homem aprendeu a se sentar e a descansar

tranquilamente na sua solidão, se parece com nenhum outro sexo, não

mais do que um sexo macho se parece com um sexo fêmeo; que não se

trata de disfarce de uma coisa como esta, mas uma doce hesitação das

coisas, como as estações de inverno, nem inverno de verão.

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Entretanto uma suposição não merece que se perturbem por ela;

é preciso manter sua imaginação como sua pequena noiva: se é bom

vê-la vagabundear, é estúpido deixá-la perder o senso das

conveniências. Eu não sou astucioso, mas curioso; eu tinha posto

minha mão no seu braço por pura curiosidade, para saber se, a uma

carne que tem aparência daquela de uma galinha depenada,

corresponde o calor da galinha viva ou o frio da galinha morta, e agora

eu sei. Você sobe, seja dito sem te ofender, do frio como a galinha viva

depenada pela metade, como a galinha acometida, no senso estri to do

termo, de uma doença que faz cair as penas;

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TRANSCRIÇÃO (0’32-3’45) – vídeo B.

Participação: L1- atriz

5 10 15 20 25 30

L1: se você acredita que eu esteja animada por intenções de

violência em relação a você...e talvez você tenha razão não dê

cedo demais nem um nome xanGÔ :::: não de mali/de novo não

dê cedo demais nem um nome nem um gênero a esta

violência.. . você nasceu com o pensamento OLÊ GON DE

ILÊ ::... você nasceu com o pensamento de que o sexo de um

homem se escon/OLÊLÊ ::: se esconde em um lugar preciso e

que ele f ica GONGONGONGON : : DE ILÊ :: GONGONGONGON ::

DE ILÊ :: e que ele f ica lá... entretanto eu sei... eu... apesar de

AH :::EH:::AHEH ::: apesar de ter nascido da mesma maneira

que você... que o sexo de um AH:::EH:::AHEH::: apesar de ter

nascido da mesma maneira que você...que o sexo de um

homem com o tempo que ele passa esperando e esquecendo

f icando sentado na sua solidão se movimenta calmamente de

um lugar a outro...e que nenhum sexo passado um tempo em

que o homem xanGÔ OLÊ GON DE ILÊ xanGÔ OLÊ GON DE

ILÊ OLÊLÊ ::: :: xanGÔ OLÊ GON DE ILÊ xanGÔ OLÊ GON DE

ILÊ OLÊLÊ ::: :: e passado um tempo em que o homem

aprendeu a se sentar e a descansar tranquilamente na sua

solidão GONGONGONGONGON ::: DE ILÊ ::: e passado um

tempo em que o homem aprendeu a se sentar e a des cansar

tranquilamente na sua solidão se movimenta calmamente de

um lugar a AHAHAH :: : EHEHEHEH :::: AHEHAHEH :::: se

movimenta calmamente de um lugar a outro e que nenhum sexo

AHAHAH : :: EHEHEH:: : AHAHAH ::: EHEHEHEH ::::

AHEHAHEH :::: e que nenhum sexo passado um tempo em que

o homem aprendeu a se sentar e a descansar tranquilamente

na sua solidão... se parece com nenhum outro sexo... não mais

do que um sexo macho se pare/xanGÔ OLÊ GON DE ILÊ

xanGÔ OLÊ GON DE ILÊ OLÊLÊ ::::: entretanto uma

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35 40 50

suposição não merece que se perturbem por ela é preciso

manter sua imaginação como sua pequena noiva se é bom vê -

la vagabundear é estúpido deixá -la perder o senso das

conveniências eu não sou astucioso eu sou curioso...eu tinha

posto a minha xanGÔ OLÊ GON DE ILÊ xanGÔ OLÊ GON DE

ILÊ OLÊLÊ ::: :: eu tinha posto a minha mão no seu braço por

pura curiosidade para saber se a car/ AHAHAH ::: EHEHEH :: :

AHAHAH : :: EHEHEHEH :: :: AHEHAHEH :::: para saber se a

carne que corresponde aquela de uma galinha depenada pela

metade tem o frio da galinha viva ou o calor da galinha morta

de novo para saber se a carne que tem a aparência daquela

de uma galinha depenada pela metade corresponde ao frio da

galinha morta ou o calor da galinha viva... e agora... eu sei. ..

você sofre... seja dito sem te ofender... do frio da galinha

depenada pela metade da galinha acometida no senso e/

estrito do termo de novo da galinha acometida no senso estrito

do termo de uma doença que faz cair as penas...

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ANÁLISE

L1: linhas 2- 5

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

...e talvez você tenha razão – ,

não dê cedo demais nem um

gênero nem um nome a esta

violência.

e talvez você tenha razão não

dê cedo demais nem um nome

xanGÔ :::: não de mali/de novo

não dê cedo demais nem um

nome nem um gênero a esta

violência

É possível observar nesse excerto o prenúncio da música “Xangô” como um

marcador conversacional de natureza prosódica em que se hibridizam elementos

verbais lexicalizados “Xangô Ole gon de ilê” e elementos verbais não lexicalizados

“Ah...eh...ah...eh...” entendidos ao longo do turno como procedimentos, muitas

vezes, enfáticos ou de paráfrases para determinados momentos da enunciação.

É importante ressaltar que a música aparece como uma marca de

referencialidade à própria atriz que está enunciando o texto. Supomos então que

possivelmente a escolha desta música, como “fissura”, ao texto de Bernard-Marie

Kòltes vem a serviço de uma identificação da atriz, que é negra e brasileira, com as

palavras que estão sob sua responsabilidade nesse exercício de um dramaturgo

branco e francês, e que, de uma certa maneira, na perspectiva da própria atriz, pode

não dialogar diretamente com os problemas sociais do Brasil. Portanto, a música

vem como um comentário da atriz ao texto e como uma provocação poética de como

a negociação entre um Dealer e um Cliente seria estabelecida alegoricamente na

realidade miscigenada e sincrética de nosso país.

No que diz respeito aos aspectos linguísticos do turno conversacional,

percebemos que, logo após o primeiro canto, ocorre uma autocorreção autoiniciada

a partir do truncamento da palavra “mali/” como um procedimento de hesitação. A

formulação será interrompida pelo Marcador Conversacional “de novo” e o

Enunciado Reformulado não retomará a palavra truncada, isso provavelmente

denota um problema fonético e fonológico na produção do Enunciado Original que,

em sua reformulação, corrige a falha da palavra truncada.

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L1: linhas 5 - 15

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

Você nasceu com o pensamento

de que o sexo de um homem se

esconde em um lugar preciso e

que ele f ica lá, e você guarda

cautelosamente este

pensamento; entretanto, eu sei,

eu – apesar de nascido da

mesma maneira que você – , que

o sexo de um homem, com o

tempo que ele passa esperando

e esquecendo, f icando sentado

na solidão

você nasceu com o pensamento

OLÊ GON DE ILÊ ::... você

nasceu com o pensamento de

que o sexo de um homem se

escon/OLÊLÊ ::: se esconde em

um lugar preciso e que ele f ica

GONGONGONGON :: DE ILÊ ::

GONGONGONGON :: DE ILÊ :: e

que ele f ica lá... entretanto eu

sei... eu... apesar de

AH :::EH:::AHEH::: apesar de ter

nascido da mesma maneira que

você... que o sexo de um

AH :::EH:::AHEH::: apesar de ter

nascido da mesma maneira que

você...que o sexo de um

homem com o tempo que ele

passa esperando e esquecendo

f icando sentado na sua solidão

O canto entoado nesse excerto se apresenta como um procedimento

intertextual, pois, ao longo da retextualização, à medida que há a repetição do texto

dito, novas informações vão aparecendo ao transpor o sentido geral do enunciado

para um sentido específico. A forma como a atriz encontrou de enunciar seu texto

estabelece um diálogo entre o texto idealizado pelo dramaturgo e as crenças que

definem a identidade cultural da atriz: “eu sei. .. eu... apesar de

AH:::EH:::AHEH::: apesar de ter nascido da mesma maneira que você...

que o sexo de um AH:::EH:::AHEH::: apesar de ter nascido da mesma

maneira que você...que o sexo de um homem com o tempo que ele

passa esperando e esquecendo f icando sentado na sua solidão” .

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106

L1: linhas 36- 42

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

eu tinha posto minha mão no

seu braço por pura curiosidade,

para saber se, a uma carne que

tem aparência daquela de uma

galinha depenada

eu tinha posto a minha mão no

seu braço por pura curiosidade

para saber se a car/AHAHAH :::

EHEHEH ::: AHAHAH :::

EHEHEHEH : ::: AHEHAHEH ::::

para saber se a carne que

corresponde aquela de uma

galinha depenada pela metade

O canto aparece nesse momento como um marcador conversacional que

introduz uma hesitação, que deflagra a consciência de um problema prospectivo,

portanto há o truncamento da palavra “carne” que será retomada na reformulação

feita a seguir.

L1: linhas 40- 51

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

para saber se, a uma carne que

tem aparência daquela de uma

galinha depenada, corresponde o

calor da galinha viva ou o f r io da

galinha morta, e agora eu sei

para saber se a carne que

corresponde aquela de uma

galinha depenada pela metade

tem o frio da galinha viva ou o

calor da galinha morta de novo

para saber se a carne que tem

a aparência daquela de uma

galinha depenada pela metade

corresponde ao frio da galinha

morta ou o calor da galinha

viva... e agora... eu sei...

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107

Nesse excerto, há a incidência de uma correção autoiniciada. A atriz percebe

que trocou a lógica semântica das palavras apresentada na frase, causando assim

um estranhamento acerca do fato enunciado “tem o frio da galinha viva” e “o calor da

galinha morta”. Ao perceber a incoerência semântica do enunciado, a atriz evoca o

marcador corretivo “de novo” para reformular seu turno da maneira semanticamente

coerente “tem o frio da galinha viva ou o calor da galinha morta de novo (...)

corresponde ao frio da galinha morta ou o calor da galinha viva”.

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108

C) CENA 3

O Cliente

Você é um bandido estanho demais, que não rouba nada ou demora demais

a roubar, um ladrão excêntrico que entra à noite no pomar para balançar as árvores,

e que vai embora sem levar as frutas. Você que é habituado a esses lugares, e eu

sou o estrangeiro; eu sou aquele que tem medo e que tem razão em ter medo; eu

sou aquele que não te conhece, que não pode te conhecer, que apenas imagina a

sua silhueta na escuridão. Era você quem tinha de adivinhar, de nomear alguma

coisa, e então, talvez, com um movimento de cabeça, eu teria aprovado, com um

sinal, você teria sabido; mas eu não quero que o meu desejo seja espalhado por

nada como sangue sobre uma terra estrangeira. Você não arrisca nada; você

conhece de mim a inquietude e hesitação e a desconfiança; você sabe de onde eu

venho e para onde eu vou; você conhece estas ruas, você conhece esta hora, você

conhece os seus planos; eu, eu não conheço nada, eu arrisco tudo. Na sua frente,

eu estou como na frente desses homens travestidos em mulheres que se fantasiam

de homens, no fim, não se sabe mais onde está o sexo.

Porque sua mão se pôs sobre mim como aquela do bandido sobre sua vítima

ou como aquela da lei sobre o bandido, e deste quando eu sofro, ignorante,

ignorante da minha fatalidade, ignorante se eu sou julgado ou cúmplice, por não

saber do que eu sofro, eu sofro por não saber qual ferida você me faz e por onde

corre meu sangue. Talvez na verdade você não seja nada estranho, mas astucioso;

talvez você seja apenas um servidor disfarçado da lei com a lei mantida secreta à

imagem do bandido para perseguir o bandido; talvez você seja, finalmente, mais leal

do que eu. E então por nada, por acidente, sem que eu tenha dito nada nem

desejado nada, porque eu não sabia quem você é, porque eu sou o estrangeiro que

não conhece a língua, nem os costumes, nem o que aqui é mau ou conveniente, e o

certo ou o errado, e que age como deslumbrado, perdido, é como se eu tivesse te

pedido alguma coisa, como se eu tivesse te pedido a pior coisa possível e fosse

culpado por ter pedido. Um desejo como sangue aos seus pés correu fora de mim,

um desejo que eu não conheço e não reconheço, que você é o único a conhecer, e

que você julga.

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109

Se é assim, se você se esforça, com o emprenho suspeito do traidor, em me

acuar a agir com ou contra você para que, em todos os casos, eu seja culpado, se é

isso, então reconheça ao menos que eu realmente ainda não agi nem por nem

contra você, que não há nada ainda a me criticar, que eu me conservei honesto até

este instante. Testemunhe a meu favor que eu não tive prazer na escuridão como

um ladrão, por minha própria vontade e com intenções ilícitas, mas que eu fui

surpreendido aqui e que eu gritei, como uma criança na sua cama cuja lâmpada que

fica acesa a noite inteira se apaga de repente.

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110

TRANSCRIÇÃO (23’00 – 25’57) vídeo A.

Participação: L1 – ator.

5 10 15 20 25 30

F1 VOcê:: é um bandido estranho demais...na sua frente...eu estou como

na frente desses homens travestidos de mulheres que se fantasiam de

homens...no fim...não se sabe mais onde está o sexo...pois você botou a

sua mão sobre mim...como aquela do bandido sobre a sua vítima ou como

aquela da lei sobre o bandido...e desde então eu SOfro...

ignorante...ignorante da minha fatalidade...ignorante se eu sou julgado ou

cúmplice...por não saber que eu SOfro...eu SOfro por não saber qual ferida

você me faz e por onde corre o meu sangue...talvez você não seja nada

estranho...mas astucioso...talvez você seja um desses servidores da lei

disfarçado de bandido...como a lei as vezes os cria à imagem do bandido

para perseguir o bandido -- fui claro? -- talvez você seja um desses

servidores da lei disfarçado de bandido como a lei às vezes os cria a

imagem do bandido para perseguir o bandido...talvez finalmente você seja

mais leal do que eu...e então por nada...por acidente sem ( ) digo

nada...nem desejado nada...porque eu não sabia quem você era...porque

eu sou o estrangeiro que não conhece a língua nem os costumes...

(lembra) que é mal o conveniente...o certo ou o errado...e que age como

um:: deslumbrado perdido...não desejo como o sangue aos seus pés corra

fora de mim...não desejo o que eu não conheço e não reconheço... que

você é o único a conhecer e que você julga -- eu gosto especialmente

dessa fala vou dizer ela de novo -- ((riso da plateia)) não desejo como o

sangue aos seus pés corra fora de mim não desejo o que eu não conheço

e não reconheço...que você é o único a conhecer e que você julga...se é

assim se você se empenha com o esforço do TRAIdor em aCUAR Agir

COM OU CONtra voCÊ -- me faltou o ar -- SE é assim se você se

empenha em agir com o esFORço do traidor em acuar com ou contra...em

a/de novo se é assim se você se empenha com o esforço do traidor em

acuar e agir com ou contra você... para que em todos os casos eu seja o

culpado...reconheça ao menos que eu ainda realmente não agi nem por

nem contra você...que não há nada ainda a me criticar...que EU permaneci

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honesto até este instante... testemunhe ( ) que eu não me inseri na

escuridão como um ladrão...por minha própria vontade e com intenções

ilícitas mas com meio termo como uma criança em sua cama cuja a

lâmpada que fica acesa à noite inteira se apaga de repente...

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ANÁLISE

TEXTO ESCRITO: 1 turno idealizado pelo dramaturgo.

TEXTO ORALIZADO: 1 turno. É possível perceber que, na transposição do

escrito para o oral, o texto foi editado ao passo que se tornava uma fala direcionada

à plateia.

Nesse turno, encontrar-se-á dois tipos de Marcadores Conversacionais que

desempenham papéis diferentes dentro da oralização. São eles:

1 – Marcadores conversacionais que são constituídos por expressões

semanticamente válidas para introduzir um comentário ao que foi dito e assim

reformular o texto oralizado.

2 – Marcador “de novo” como procedimento de correção, hesitação e

reformulação do texto oralizado.

No entanto, a princípio, notemos que no procedimento de retextualização

houve supressões consideráveis ao longo do turno. A primeira supressão ocorre

logo no começo do turno conversacional:

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1ª supressão:

L1: linhas 1- 3

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

Você é um bandido estranho demais, que não

rouba nada ou demora demais a roubar, um

ladrão excêntrico que entra à noite no pomar

para balançar as árvores, e que vai embora

sem levar as frutas. Você que é habituado a

esses lugares, e eu sou o estrangeiro; eu sou

aquele que tem medo e que tem razão em ter

medo; eu sou aquele que não te conhece,

que não pode te conhecer, que apenas

imagina a sua silhueta na escuridão. Era você

quem tinha de adivinhar, de nomear alguma

coisa, e então, talvez, com um movimento de

cabeça, eu teria aprovado, com um sinal,

você teria sabido; mas eu não quero que o

meu desejo seja espalhado por nada como

sangue sobre uma terra estrangeira. Você

não arrisca nada; você conhece de mim a

inquietude e hesitação e a desconfiança; você

sabe de onde eu venho e para onde eu vou;

você conhece estas ruas, você conhece esta

hora, você conhece os seus planos; eu, eu

não conheço nada, eu arrisco tudo. Na sua

frente, eu estou como na frente desses

homens travestidos em mulheres que se

fantasiam de homens, no fim, não se sabe

mais onde está o sexo.

VOcê:: é um bandido estranho demais...na

sua frente...eu estou como na frente desses

homens travestidos de mulheres que se

fantasiam de homens...no fim...não se sabe

mais onde está o sexo...

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2ª supressão

L1: linhas 3- 23

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

Porque sua mão se pôs sobre mim como

aquela do bandido sobre sua vítima ou como

aquela da lei sobre o bandido, e deste

quando eu sofro, ignorante, ignorante da

minha fatalidade, ignorante se eu sou julgado

ou cúmplice, por não saber do que eu sofro,

eu sofro por não saber qual ferida você me

faz e por onde corre meu sangue. Talvez na

verdade você não seja nada estranho, mas

astucioso; talvez você seja apenas um

servidor disfarçado da lei com a lei mantida

secreta à imagem do bandido para perseguir

o bandido; talvez você seja, finalmente, mais

leal do que eu. E então por nada, por

acidente, sem que eu tenha dito nada nem

desejado nada, porque eu não sabia quem

você é, porque eu sou o estrangeiro que não

conhece a língua, nem os costumes, nem o

que aqui é mau ou conveniente, e o certo ou

o errado, e que age como deslumbrado,

perdido, é como se eu tivesse te pedido

alguma coisa, como se eu tivesse te pedido a

pior coisa possível e fosse culpado por ter

pedido. Um desejo como sangue aos seus

pés correu fora de mim, um desejo que eu

não conheço e não reconheço, que você é o

único a conhecer, e que você julga.

pois você botou a sua mão sobre mim...como

aquela do bandido sobre a sua vítima ou

como aquela da lei sobre o bandido...e desde

então eu SOfro... ignorante...ignorante da

minha fatalidade...ignorante se eu sou julgado

ou cúmplice...por não saber que eu SOfro...eu

SOfro por não saber qual ferida você me faz e

por onde corre o meu sangue...talvez você

não seja nada estranho...mas

astucioso...talvez você seja um desses

servidores da lei disfarçado de

bandido...como a lei às vezes os cria a

imagem do bandido para perseguir o bandido

-- fui claro? -- talvez você seja um desses

servidores da lei disfarçado de bandido como

a lei às vezes os cria a imagem do bandido

para perseguir o bandido...talvez finalmente

você seja mais leal do que eu...e então por

nada...por acidente sem ( ) digo nada...nem

desejado nada...porque eu não sabia quem

você era...porque eu sou o estrangeiro que

não conhece a língua nem os costumes...

(lembra) que é mal o conveniente...o certo ou

o errado...e que age como um:: deslumbrado

perdido...não desejo como o sangue aos seus

pés corra fora de mim...não desejo o que eu

não conheço e não reconheço... que você é o

único a conhecer e que você julga -- eu

gosto especialmente dessa fala vou dizer

ela de novo -- ((riso da plateia)) não desejo

como o sangue aos seus pés corra fora de

mim não desejo o que eu não conheço e não

reconheço...que você é o único a conhecer e

que você julga...

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115

De um modo geral, a 1ª e a 2ª supressões demonstram uma escolha por

parte do ator em delimitar mais claramente o tópico discursivo. Podemos observar

que tais edições acentuam a tensão e o desejo sexual entre as personagens e

descartam os traços de subjetividade líricos e poéticos propostos pelo texto original,

assim sendo expressões como “eu estou como na frente desses homens travestidos

de mulheres que se fantasiam de homens...” e “pois você botou a sua mão sobre

mim” configuram um sentido conotativo acerca de um desejo proibido que o

incomoda. Dessa maneira, o ator como Cliente coloca a plateia como Dealer seu

interlocutor que, para ele, representa o bandido que sabe de coisas demais e que

talvez esteja ali para observá-lo e testar os desejos que ele possa vir a ter sobre o

desconhecido.

No que se refere aos aspectos da estruturação do turno conversacional,

percebemos no quadro da 2ª supressão a ocorrência de dois Marcadores

Conversacionais de natureza prosódica, constituídos como marcadores a partir de

expressões semanticamente válidas “-- fui claro --” e “-- eu gosto especialmente

dessa fala vou dizer ela de novo --”. Esses marcadores ocorrem de maneira que

quebram a sequência temática da exposição do turno, a fim de tecer um comentário

do ator sobre o texto que acabara de enunciar. Quando o ator retoma sua fala,

acaba por repetir literalmente o que há pouco fora proferido sem acrescentar ou

suprimir qualquer informação relevante de ser apontada.

No entanto, quando a segunda quebra acontece, o desvio temático é tão

brusco ao fluxo do turno que provoca risos na plateia, causando assim um efeito

inesperado de humor ao turno conversacional, no que se refere ao sentido

entonacional da fala.

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Observemos, portanto, o terceiro quadro:

L1: linhas 23- 31

TEXTO ESCRITO TEXTO FALADO

Se é assim, se você se esforça, com

o empenho suspeito do traidor, em

me acuar a agir com ou contra você

para que, em todos os casos, eu seja

culpado, se é isso, então reconheça

ao menos que eu realmente ainda

não agi nem por nem contra você,

que não há nada ainda a me criticar,

que eu me conservei honesto até este

instante.

SE é assim se você se empenha em

agir com o esFORço do traidor em

acuar com ou contra...em a/de novo

se é assim se você se empenha com

o esforço do traidor em acuar e agir

com ou contra você... para que em

todos os casos eu seja o

culpado...reconheça ao menos que eu

ainda realmente não agi nem por nem

contra você...que não há nada ainda a

me criticar...que EU permaneci

honesto até este instante

No trecho acima, percebemos uma troca lexical na ordenação das palavras

“esforço” e “empenho”. No texto escrito ocorre da seguinte maneira: “Se é assim, se

você se esforça, com o empenho suspeito do traidor”; no texto falado: “se é assim se

você se empenha com o esforço do TRAIDOR”. Essa adequação possivelmente

tenha ocorrido de forma inconsciente, pois é possível observar a proximidade do

valor semântico entre as palavras, com isso o significado do texto oralizado

permanece próximo ao significado do texto original.

Notemos, agora, a repetição que ocorre no seguinte trecho

1ª se é assim se você se empenha com o esforço do TRAIDOR EM ACUAR AGIR

COM OU CONTRA VOCÊ -- me faltou o ar –

2ª SE é assim se você se empenha em agir com o esFORço do traidor em acuar com

ou contra...em a/de novo

3ª se é assim se você se empenha com o esforço do traidor em acuar e agir com ou

contra você...

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Nesse exemplo, percebemos a utilização de outro marcador conversacional

lexicalizado a partir de uma expressão semanticamente válida para a intrusão de um

comentário que desvirtua a temática do turno. No entanto, esse marcador inicia um

processo de autocorreção autoiniciada sobre o aspecto semântico pragmático do

turno.

Na primeira enunciação, o ator exalta o tom de voz e perde o ar ao final da

frase, na segunda tentativa desloca o termo “em agir” para o primeiro plano da frase

e, preocupado com o desenvolvimento do turno, o ator trunca a próxima palavra,

criando assim um procedimento de hesitação que introduz o marcador “de novo”

para repetir pela terceira vez a frase. Nesse momento estabelecendo-a de forma

coerente e acrescentando entre os termos “em acuar” e “agir”, a conjunção

coordenativa aditiva “e”.

Por fim, é notável que, ao repetir o texto, o ator evidencia para o público o

procedimento de ordenação e produção do texto oral de forma racional, ao tentar

encaixar os termos do turno de modo que seja criada uma coerência ao que se

pretende enunciar.

4.5.1 Análise dos resultados

Durante a fase de coleta do corpus que seria analisado, a presente pesquisa

buscava entender quais seriam os pressupostos teóricos da Análise da Conversação

que abarcariam nosso olhar sobre o texto oralizado pelos atores na disciplina de

Expressão Verbal da Escola de Arte Dramática. Haja vista todas reflexões existentes

acerca dos procedimentos de retextualização entre texto escrito teatral e língua

falada em cena, tendo como principais expoentes os estudos de Fischer (2002),

Urbano (2005) e Preti (2004).

Entretanto, o foco de nossa análise se delimitou a partir da perspectiva de

quais são os procedimentos pedagógicos que instrumentalizam o trabalho do ator

com o texto, quando este se encontra em seu momento de formação em uma escola

de interpretação.

Isso posto, esta análise levará em consideração o conceito de exercício

cênico, cuja premissa está na ideia de atores em cena oralizando um texto a partir

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118

da perspectiva de experimentações de sentidos possíveis ao dar voz e corpo para

um texto escrito.

Dessa maneira, quando a professora orientadora do exercício propõe aos

atores criarem “fissuras” no texto, ela pretende estabelecer, no campo da cena, um

instrumento pedagógico a ser recorrido quantas vezes forem necessárias para o

aprimoramento da oralização no texto teatral.

Sob a perspectiva da Análise da Conversação, esta pesquisa fez a

equivalência do termo “fissura” utilizado pela professora da disciplina de Expressão

Verbal da EAD, ao que Marcuschi (2007) e Urbano (2003) denominaram como

Marcadores Conversacionais (MC).

Partimos, então, do pressuposto que os MC, que aqui foram denominados

como “fissuras”, são convencionados como códigos de um jogo teatral, portanto,

instituímos como tal, fragmentos de cantos, pequenos comentários e palavras fora

do contexto lógico da enunciação.

Diante do exposto, mapeamos os seguintes MCs:

Linguísticos verbais:

Lexicalizados e não lexicalizados: “Xangô Ole gon de ilê” e

“Ah...eh...ah...eh...”

Lexicalizados que não trazem relação semântica com o resto da

formulação: “SAI” e “LARGA”.

Expressões semanticamente válidas que ocorrem para quebrar a

sequência temática do turno conversacional:

- em virtude de um comentário a ser tecido para o público:

“- - fui claro - -“; “- - eu gosto especialmente dessa fala vou dizer

ela de novo - -“ e “- - me faltou o ar- -”.

- em virtude de um comentário a ser tecido para si mesmo:

“MAIS ALto ivi” e “poTÊNcia MÁXIma ivi”

Marcador indicativo do procedimento de correção e hesitação:

“de novo”

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119

No que diz respeito à função desses marcadores conversacionais inseridos

no turno comunicativo, foi possível levantar algumas hipóteses. Eles aparecem

como:

procedimentos de paráfrase por prospecção;

procedimentos de paráfrase expansiva;

autocorreção autoiniciada;

encerramento do turno comunicativo.

Quanto aos procedimentos de retextualização do texto escrito para o texto

falado, é possível apontar como possíveis características:

o desdobramento dos turnos feitos ao longo da oralização, por exemplo

a cena 1 em que 2 turnos conversacionais se desdobraram em 22

turnos para evidenciar um jogo teatral de oralização do texto entre os

atores participantes da cena, ao transformarem os monólogos de

Dealer e Cliente em diálogos direcionados à plateia;

a supressão de trechos idealizados pelo dramaturgo em busca de uma

delimitação mais objetiva do tópico discursivo, vide os quadros 1ª

supressão e 2ª supressão na cena 3;

a oralização da rubrica como forma de estabelecer um diálogo direto

com o público, vide início da cena 1;

a musicalidade como autorreferência dentro do texto em virtude de

uma aproximação entre o texto escrito por um dramaturgo francês e a

realidade corrente de nosso país, conforme cena 2.

Finalmente, cabe ressaltar que a análise desses elementos de maneira

alguma se impõe como uma técnica absoluta para a oralização de textos teatrais.

Cada processo artístico parte de um pressuposto diferente, assim deixamos claro

que as concepções sobre a voz e o trabalho com a palavra pelos atores são muitas

e diversas no campo das artes cênicas e que possivelmente ao ser analisada outra

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encenação, requererá do pesquisador outros aspectos teóricos sobre a Análise da

Conversação. Com a presente reflexão, fica apontado um tipo de perspectiva do

trabalho com o texto, que se verticaliza por meio das relações entre o diálogo

premeditado pelo dramaturgo e as leituras possíveis de sua oralização feita pelos

atores no momento da encenação. Nesse caso, as múltiplas leituras possíveis feitas

pelos atores em um processo de formação escolar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ator é o principal agente do teatro, sem sua ação cênica, a obra teatral fica

incompleta, portanto, o texto teatral só se estabelece como material expressivo

quando ganha vida pela voz do ator.

Dessa maneira, o presente trabalho se propôs a traçar um trajeto

interdisciplinar entre os estudos sociointeracionistas sobre Oralidade Literária,

Análise da Conversação, Sociolinguística e Psicolinguística. Com base nos estudos

referentes à voz, ao texto, à oralidade e à expressividade, ao tratar da construção de

sentidos, desenvolvidos na obra teatral no campo das Artes Cênicas, também

propôs uma reflexão que pudesse ajudar no desenvolvimento teórico e prático

dessas áreas de conhecimento.

Para observar os procedimentos utilizados pelo ator, ao retextualizar o texto

escrito, para a esfera da língua falada, elaboramos como questão norteadora em

nossa pesquisa: Quais operações de retextualização, da modalidade escrita para a

modalidade oral, podem ser catalogadas num exercício cênico de montagem e de

ensaio teatral?

Diante disso, coube-nos, a princípio, evidenciar os mecanismos linguísticos

utilizados pelo ator para transpor a modalidade escrita para a modalidade oral.

Por isso, fizemos um levantamento de como se constituem a natureza do

texto falado e a natureza do texto escrito, assim percebemos que os dois textos não

estabelecem uma relação dicotômica; eles se organizam de forma diferente e

estabelecem graus de semelhança quanto ao nível formal de sua produção.

Com base nessa afirmação, discorremos sobre os aspectos da oralidade na

literatura, para, enfim, compreendermos a relação que se estabelece entre o diálogo

produzido por um dramaturgo em uma cena teatral e a língua viva cotidiana.

Constatou-se que o texto teatral, apesar de parecer, em uma primeira camada, com

a fala cotidiana, é uma obra literária, estruturada e inacabada do ponto de vista

teatral, que pressupõe a ação e a voz do ator para a sua efetivação.

Dessa maneira, a presente pesquisa tomou como corpus de análise o

material coletado pelas gravações na disciplina de Expressão Verbal da Escola de

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Arte Dramática, a fim de analisar como se dá a pedagogia de expressividade com a

palavra em uma escola tradicional de formação de atores da cidade de São Paulo.

Para tanto, foi necessário desenvolver um panorama histórico acerca da importância

da Escola de Arte Dramática para a constituição do Moderno Teatro Brasileiro.

Para analisar o material coletado, recorremos, enfim, às noções de

Marcadores Conversacionais, Paráfrase e Correção como procedimentos

retextualizadores utilizados pelos atores no momento da transposição do texto

escrito para o texto falado.

Assim, nossos apontamentos se desenvolveram da seguinte maneira: o ator,

ao retextualizar um texto escrito, pretende estabelecer uma relação de

verossimilhança entre o diálogo forjado pelo dramaturgo e a língua falada. No

entanto, isso não pressupõe que o ator deva falar o texto de forma cotidiana, já que

é um ser comum fazendo um uso incomum da língua, posto que seu principal

objetivo é conduzir a plateia, por meio de sua fala, às ideias do dramaturgo,

estabelecendo assim o que Ryngaert (1996) chamou de dupla enunciação.

Enfim, o assunto desta pesquisa não se esgota com o término deste trabalho,

outros aspectos relevantes devem ser estudados a posteriori, como a pontuação do

texto teatral como fonte de expressividade para o ator ou a fala do ator como

performance poética.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana L. P. de. Procedimentos de reformulação: a correção. In: PRETI, Dino (Org.). Análise de textos orais. 6ª ed. São Paulo: Humanitas, 2003. p. 147-178.

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ANEXOS

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NA SOLIDÃO DOS CAMPOS DE ALGODÃO

B. M. KOLTÈS

Um deal é uma transação comercial baseada em valores proibidos ou

estritamente controlados, e que se conclui, em espaços neutros,

indefinidos, e não previstos para este uso, entre fornecedor es e

pedintes, por acordo tácito, sinais convencionais ou conversação de

duplo sentido – com o objetivo de contornar os riscos de traição e de

trapaça que uma tal operação implica – , a qualquer hora do dia e da

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noite, independentemente das horas regulamentares de abertura dos

lugares de comércio homologados, mas de preferência às horas em que

estes estão fechados.

O Dealer

Se você anda na rua, a esta hora e neste lugar, é que você

deseja alguma coisa que você não tem, e esta coisa, eu posso fornecê -

la você; pois se eu estou neste lugar desde muito mais tempo do que

você, e que mesmo esta hora que é aquela das relações selvagens

entre os homens e os animais não me tira daqui, é que eu tenho o que

é preciso para satisfazer o desejo que passa na minha frente, e é como

um peso do qual eu preciso me livrar em cima de qualquer um, homem

ou animal, que passe na minha frente.

É por isso que eu me aproximo de você, apesar da hora que

é aquela onde normalmente o homem e o animal se jogam

selvagemente um sobre o outro , eu me aproximo, eu, de você, as mãos

abertas e as palmas viradas na sua direção, com a humildade daquele

que oferece frente àquele que compra, com a humildade daquele que

possui frente àquele que deseja; e eu vejo o seu desejo como quem vê

a luz que se acende, em uma janela no alto de um prédio, na hora do

crepúsculo; eu me aproximo de você como o crepúsculo se aproxima

dessa primeira luz, calmamente, respeitosamente, quase

afetuosamente, deixando lá embaixo na rua o animal e o homem

puxarem suas coleiras e mostrarem selvagemente os dentes um ao

outro.

Não que eu tenha adivinhado o que você possa desejar, nem

que eu esteja apressado em conhecer; pois o desejo de um comprador

é a coisa mais melancólica que existe, que se contempla como um

presente que se recebe embrulhado e que se toma um tempo

desfazendo o laço. Mas é que eu mesmo desejei, desde o tempo em

que estou neste lugar, tudo o que todo homem ou animal pode desejar

a esta hora escura, e que o faz sair de casa apesar dos grunhidos

selvagens dos animais insatisfeitos e dos homens insatisfeitos; é por

isso que eu sei, melhor que o comprador inquieto que guarda ainda por

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um tempo o seu mistério como uma pequena virgem educada para ser

puta, que o que você vai me pedir eu já tenho, e que basta a você, se m

que se sinta ferido pela aparente injust iça que há em ser o pedinte

frente àquele que oferece, me fazer o pedido.

Já que não há uma verdadeira injust iça sobre esta terra a

não ser a própria injust iça da terra, que é estéri l pelo frio ou estéri l

pelo quente e raramente férti l pela doce mistura do quente e do frio;

não há injustiça para quem anda sobre a mesma porção de terra

submetida ao mesmo frio ou ao mesmo quente ou à mesma doce

mistura, e todo homem ou animal que pode olhar um outro homem ou

animal nos olhos é o seu igual pois eles andam sobre a mesma l inha

f ina e plena da liberdade de ação, escravos dos mesmos frios e dos

mesmo calores, ricos do mesmo jeito e, do mesmo jeito pobres; e a

única fronteira que existe é aquela entre o comprador e o vended or,

mas incerta, ambos possuindo o desejo e o objeto de desejo, ao

mesmo tempo vazio e saliente. É por isso que eu pego emprestado

provisoriamente a humildade e te empresto a arrogância, a f im de que

nos distingam um do outro a esta hora que é inevitavelme nte a mesma

para você e para mim.

Me diga então, virgem melancólica, neste momento, onde

grunhem surdamente homens e animais, me diga a coisa que você

deseja e que eu posso te fornecer, e eu fornecerei calmamente a você,

quase respeitosamente, talvez com afeição; em seguida depois de ter

preenchido os vazios e aplanado os montes que estão em nós, nós nos

distanciaremos um do outro, em equilíbrio sobre o f ino e plano f io da

nossa l iberdade de ação, sat isfeitos no meio dos homens e dos animais

e insatisfeitos por serem homens e insatisfeitos por serem animais;

mas não me peça para adivinhar o seu desejo; eu serei obrigado a

enumerar tudo o que eu possuo para satisfazer aqueles que passam na

minha frente desde o tempo em que estou aqui, e o tempo que seria

necessário a esta enumeração secaria o meu coração e cansaria sem

dúvida a sua esperança.

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O Cliente

Eu não estou andando em um certo lugar e a uma certa hora; eu

estou andando, só isso, indo de um ponto a outro, para negócios

privados que se tratam nesses pontos e não em percurso; eu não

conheço nenhum crepúsculo nem nenhum tipo de desejo e eu quero

ignorar os acidentes do meu percurso. Eu ia desta janela iluminada,

atrás de mim, lá no alto, a essa outra janela iluminada, lá em frente,

segundo uma linha bem reta que passa através de você porque você

está aí deliberadamente posicionado. Acontece que não existe nenhum

meio que permita, a quem vai de uma altura a uma outra altura, evitar

descer para ter de subir em seguida, com o absurdo de dois

movimentos que se anulam e o risco, entre os dois, de esmagar a cada

passo o lixo jogado pelas janelas; quanto mais no alto se mora, mais o

espaço é são, mas a queda é mais dura; e quando o elevador te deixou

embaixo, ele te condena a andar no meio de tudo isso que não

quisemos lá em cima, no meio de uma pilha de lembranças podres,

como, no restaurante, quando um garçom te prepara a conta e

enumera, ao seu ouvido atento, todos os pratos que você já está

digerindo há muito tempo.

Seria preciso al iás que a escuridão fosse ainda mais densa, e que

eu não pudesse perceber nada do seu rosto; então eu teria, talvez,

podido me enganar sobre a legit imidade da sua presença e do desvio

que você fazia para se colocar no meu caminho e, por minha vez, fazer

um desvio que se adaptasse ao seu; mas qual escuridão seria

suficientemente densa para fazer com que você parecesse menos

escuro do que ela? Não há noite sem lua que não pareça ser meio -dia

se você caminha nela, e esse meio-dia me mostra suficientemente que

não foi o acaso dos elevadores que te colocou aqui, mas uma

imprescrit ível lei da força da gravidade que é própria a você, que você

carrega, visível, sobre os ombros como uma mochila, e que te prende a

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esta hora, neste lugar de onde você avalia suspirando a altura dos

prédios.

Quanto ao que eu desejo, se ele fosse algum desejo do qual eu

pudesse me lembrar aqui, na escuridão do crepúsculo, no meio de

grunhido de animais dos quais não vemos nem a cauda, além desse

desejo garantido que eu tenho de te ver deixando cair a humildade, e m

mim e nos outros, e essa troca me desagrada – , o que eu desejaria,

você com certeza não teria. Meu desejo, se ele é mesmo um, se eu o

exprimisse a você, queimaria o seu rosto, faria você afastar as mãos

com um grito, e você sumiria na escuridão como um cachorro que corre

tão depressa que não se vê nem a cauda dele. Mas não, a perturbação

deste lugar e desta hora me faz esquecer se eu já t ive algum dia algum

desejo do qual eu pudesse me lembrar, não, eu não tenho mais que

oferta a te fazer, e vai ser preciso que você faça um desvio para que

não tenha o que fazer, que você se desloque do eixo que eu seguia,

que você se anule, porque essa luz, lá no alto, no alto do prédio, da

qual se aproxima a escuridão, continua imperturbavelmente brilhando;

ela fura essa escuridão, como um fósforo aceso fura o pano que

pretende asfixia-lo.

O Dealer

Você tem razão em pensar que eu não estou descendo de

nenhum lugar e que eu não tenho nenhuma intenção de subir, mas você

se enganaria se acreditasse que eu sofro por isso. Eu evito elevadores

como um cachorro evita a água. Não que eles se recusem a me abrir a

porta nem que eu tenha horror a me fechar neles; mas os elevadores

em movimento me fazem cócegas e eu perco ali minha dignidade; e, se

eu gosto de sentir cócegas, eu gosto de poder não mais sentí- las

desde que minha dignidade o exija. Tem elevadores que são como

certas drogas, o uso exagerado te deixa f lutuando, nunca em cima

nunca embaixo, tomando linhas curvas por l inhas retas, e congelando o

fogo no seu centro. No entanto, desde o tempo em que estou neste

lugar, eu sei reconhecer as chamas, que de longe, atrás dos vidros,

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parecem geladas como crepúsculos de inverno, mas das quais basta se

aproximar, calmamente, talvez afetuosamente, para se lembrar de que

não tem mesmo claridade definit ivamente fria, e meu objetivo não é te

apagar, mas te abrigar do vento, e secar a umidade da hora ao calor

desta chama.

Pois, não importa o que você disser, a l inha sobre a qual você

andaria, de reta talvez que ela fosse, f icou torta quando você percebeu

a minha presença, e eu percebi o momento preciso onde você me

percebeu pelo momento preciso onde o seu caminho f icou curvo, e não

curvo para te distanciar de mim, mas curvo para vir até mim, senão nós

nunca teríamos nos encontrado, mas você teria se distanciado mais

ainda de mim, pois você andaria à velocidade daquele que se desloca

de um ponto ao outro; e eu não teria nunca te alcançado porque eu me

desloco lentamente, tranquilamente, quase imovelmente, com o passo

de quem não está indo de um ponto ao outro mas de quem, em um

lugar invariável, espreita aquele que passa na sua frente e espera que

ele modif ique l igeiramente seu percurso. E se eu digo que você fez

uma curva, e que sem dúvida você vai af irmar que foi um desvio para

me evitar, e que eu af irmarei em reposta que foi um movimento para se

aproximar, sem dúvida é porque no f inal das contas você realmente não

desviou, que toda linha reta apenas existe relativamente a um plano,

que nós nos movemos segundo dois planos distintos, e que, no f inal de

todas as contas só existe o fato de que você me olhou e que eu

interceptei esse olhar ou o inverso, e que, part indo de absoluta que

era, a l inha sobre a qual você se deslocava f icou relativa e complexa,

nem reta nem curva, mas fatal.

O Cliente

Entretanto eu não tenho, para te agradar, desejos il ícitos. Meu

próprio comércio, eu o faço nas horas homologadas do dia, nos lugares

de comércio homologados e iluminados com luz elétrica. Talvez eu seja

puta, mas se eu sou, meu bordel não é deste mundo; ele se expõe, o

meu, à luz legal e fecha suas portas à noite, t imbrado pela lei e

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i luminado pela luz elétr ica, pois mesmo a luz do sol não é confiável e

tem complacências. O que você espera, você, de um homem que não

dá um passo que não seja homologado e timbrado e legal e inundado

de luz elétrica nos lugares mais instigantes e escondidos? E se eu

estou aqui, em percurso, na espera, em suspenso, em deslocamento,

impedido, fora da vida, provisório, praticamente ausente, por assim

dizer não aqui – pois se dizemos de um homem que atravessa o

Atlântico de avião que ele está em tal momento na Groenlândia, será

que ele está mesmo? Ou no coração tumultuado do oceano? – e se eu

f iz um desvio, se bem que minha linha reta, do ponto de onde eu venho

ao ponto para onde eu vou não tenha motivo, nenhum, de se entortada

de repente, é que você está me barrando o caminho, cheio de

intenções il ícitas e de presunções em relação a mim de intenções

il ícitas. Ora saiba que o que mais me repugna no mundo, mais mesmo

que a intenção il ícita, mais que a própria atividade il ícita, é o olhar

daquele que presume que você está cheio de intenções il ícitas e

habituado a tê-las; não somente por causa do próprio olhar, suspeito

entretanto ao ponto de tornar suspeita uma torrente de montanha – e o

seu olhar faria subir de novo a lama no fundo de um copo d´água – ,

mas porque, unicamente pelo peso desse olhar sobre mim, a virgindade

que está em mim se sente subitamente violada, a inocência culpada, e

a linha reta, suposta de me levar de um ponto luminoso a um outro

ponto luminoso, que por sua causa f ica curva e se transforma em um

labirinto escuro no escuro território onde eu me perdi.

O Dealer

Você faz o possível para enfiar um espinho embaixo da sela do

meu cavalo para que ele se irrite e dispare; mas, se meu cavalo é

nervoso e às vezes indócil, eu o mantenho com uma rédea curta, e ele

não dispara tão facilmente; um espinho não é uma lâmina, meu cavalo

sabe a espessura de seu couro e pode se adaptar à coceira. No

entanto, quem conhece completamente os humores dos cavalos? Às

vezes eles suportam uma agulha enfiada no dorso, às vezes uma

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poeira que f ica na sela pode fazê-los empinar e girar sobre eles

mesmos e derrubar o cavaleiro.

Saiba então que se eu falo com você, a esta hora, assim,

calmamente, talvez ainda com respeito, não é como você: pela força

das coisas, segundo uma linguagem que te faz ser reconhecido como

aquele que tem medo, um pequeno medo agudo, insano, visível

demais, como aquele que uma criança tem de um possível tapa de seu

pai; eu tenho a linguagem daquele que não se deixa reconhecer, a

l inguagem desse território e dessa parte do tempo onde os homens

puxam a coleira e onde os porcos batem a cabeça contra a cerca; eu

mantenho a minha língua como um garanhão é mantido pela rédea para

que ele não se jogue sobre a égua, porque se eu soltasse a rédea, se

eu afrouxasse l igeiramente a pressão dos meus dedos e a tração dos

meus braços, minhas palavras desmontariam a mim mesmo e se

jogariam em direção ao horizonte com a violência de um cavalo árabe

que percebe o deserto e que nada mais pode frear.

É por isso que sem te conhecer, desde a primeira palavra eu te

tratei corretamente, desde o primeiro passo que eu dei na sua direção,

um passo correto, humilde e respeitoso, sem nada conhecer de você

que pudesse me fazer saber se a comparação de nossos dois estados

autorizava que eu fosse humilde e você arrogante, eu deixei para você

a arrogância por causa da hora do crepúsculo na qual nós nos

aproximamos um do outro, porque a hora do crepúsculo na qu al você

se aproximou de mim é aquela onde a correção não é mais obrigatória

e passa a ser então necessária, onde nada mais é obrigatório fora uma

relação selvagem na escuridão, e eu poderia ter caído sobre você como

um trapo sobre a chama de uma vela, eu poderia ter te puxado pela

gola da camisa, de surpresa. E esta correção, necessária mais gratuita,

que eu te ofereci, l iga você a mim, nem que seja porque eu poderia,

por orgulho, ter andado sobre você como uma bota esmaga um papel

engordurado, pois eu sabia, por causa desse tamanho que faz a nossa

diferença primeira – e a esta hora e deste lugar só o tamanho faz a

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diferença – , nós dois sabemos quem é a bota e quem, o papel

engordurado.

O Cliente

Se no entanto eu o f iz, saiba que eu desejaria não ter olhado para

você. O olhar caminha e se coloca e acredita estar em terreno neutro e

livre, como uma abelha em um campo de f lores, como o focinho de uma

vaca dentro do espaço cercado de uma pradaria. Mas o que fazer com

o olhar? Olhar em direção ao céu me faz f ica r nostálgico e f ixar o chão

me entristece, lamentar alguma coisa e lembrar que nós não a temos

são duas coisas igualmente inoportunas. Então é preciso olhar diante

de si, à altura, qualquer que seja o nível onde o pé está

provisoriamente colocado; é por isso que quanto eu andava aqui onde

eu estava andando há pouco e onde eu estou agora parado, meu olhar

devia bater cedo ou tarde em todas as coisas que est ivessem postas ou

andando na mesma altura que eu; acontece que, pela distância e pelas

leis da perspect iva, todo homem e todo animal está provisoriamente e

aproximadamente à mesma altura que eu. Talvez, na verdade, a única

diferença que nos resta para nos dist inguir, ou a única injust iça se você

preferir, é aquela que faz com que eu tenha vagamente medo de um

possível tapa do outro; e a única semelhança, ou única justiça se você

preferir, é a ignorância onde estamos do grau segundo o qual esse

medo é comparti lhado, do grau de realidade futuro desses tapas, e do

grau respectivo de sua violência.

Assim não estamos fazendo nada além de reproduzir a relação

comum dos homens e dos animais entre eles nas horas e nos lugares

il ícitos e tenebrosos que nem a lei nem a eletricidade invadiram; e é

por isso, por ódio aos animais e por ódio aos homens, eu pref iro a lei e

eu pref iro a luz elétrica e eu tenho razão em acreditar que toda luz

natural e todo o ar não f i ltrado e a temperatura das estações não

corrigida faz o mundo f icar arriscado; pois não há paz nem direito nos

elementos naturais, não há comércio no comércio i l ícito, há apenas a

ameaça de fuga e o golpe sem objeto para vender e sem objeto para

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comprar e sem moeda válida e sem escala de preços, trevas, trevas

dos homens que se abordam durante a noite; e se você me abordou, é

porque na verdade você quer me bater; e se eu te perguntasse porque

você quer me bater, você me responderia, eu sei, que é por uma razão

secreta sua, que não é necessário, sem dúvida, que eu conheça. Então

eu não te perguntarei nada. Por acaso a gente fala a uma telha que cai

do teta e que vai quebrar a sua cabeça? A gente é uma abelha que

pousou sobre a f lor ruim, o focinho de uma vaca que quis pastar do

outro lado da cerca elétr ica; a gente lamenta, espera, a gente faz o que

pode, motivos insanos, i legalidade, trevas.

Eu pus o pé na valeta de um estábulo onde correm mistérios

como dejetos de animais; e se foi desses mistérios e dessa escuridão

que são seus que saiu a regra que quer que entre dois homens que se

encontrem seja preciso sempre escolher ser aquele que ataca; e sem

dúvida, a esta hora e nestes lugares, seria preciso se aproximar de

todo homem ou animal sobre o qual o olhar tenha se colocado, bater

nele e lhe dizer: eu não sei se era sua intenção bater em mim, por uma

razão insana e misteriosa que de qualquer maneira você não teria

julgado necessário me contar, mas, seja como for, eu preferi fazê -lo

primeiro, e a minha razão, se é insana, ao menos não é secreta: estava

no ar, pela minha presença e pela sua e pela conjunção de acidental de

nossos olhares, a possibil idade de que você me batesse primeiro, e eu

preferi ser a telha que cai do que a cabeça, a cerca elétrica do que o

focinho da vaca.

Senão, se fosse verdade que nós somos, você o vendedor com a

posse de mercadorias tão misteriosas que você se recusa em revelá -

las e que eu não tenho nenhum meio de adivinhá-las, e eu o comprador

com um desejo tão secreto que eu mesmo o ignoro e que eu precisaria,

para me assegurar de que tenho realmente um, esfregar minha

lembrança como uma casca para fazer correr o sangue, se isso é

verdade, por que você continua a guardá-las escondidas, suas

mercadorias, embora eu tenha parado, e esteja aqui esperando? Como

numa grande mochila, trancada, que você carrega nos ombros, como

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uma impalpável lei da força da gravidade como se elas não existissem

e só devessem existir tomando a forma de um desejo; como aqueles

homens que f icam em frente das boates de strip-tease , que te puxam

pelo cotovelo, quando você está voltando para casa, à noite, para

dormir, e te enfiam na orelha: ela está aqui, está noite. Ao p asso que

se você as mostrasse para mim, se você desse um nome á sua oferta,

coisas lícitas ou i l ícitas, mas com nome e então nos mínimo julgáveis,

se você as nomeasse, eu saberia dizer não, e eu não me sentir ia mais

como uma árvore balançada por um vento v indo de parte nenhuma e

que desestrutura suas raízes. Porque eu sei dizer não e eu gosto de

dizer não, eu sou capaz de te fascinar com os meus nãos, de te fazer

descobrir todas as formas que existem de dizer sim, como as pessoas

que experimentam todas as camisas e todos os sapatos para não levar

nenhum, e o prazer que elas têm em experimentar todos é feito apenas

do prazer que elas têm em recusá-los todos. Decida-se, mostre-se:

você é o bruto que destrói a calçada, ou você é o comerciante? Nesse

caso estenda primeiro sua mercadoria, e nós demoraremos olhando -a.

O Dealer

É porque eu quero ser comerciante, e não bruto, mas verdadeiro

comerciante, que eu não te digo o que eu possuo e te ofereço, pois eu

não quero ter de suportar uma recusa, que é a coisa que t odo

comerciante mais teme no mundo, porque é uma arma da qual ele

mesmo não dispõe. Assim eu nunca aprendi a dizer não, e

definit ivamente eu não quero aprender; mas todos os tipos de sim, eu

sei: sim espere um pouco, espere muito, espere comigo uma eternid ade

aqui; sim eu tenho, eu terei, eu tinha e eu terei de novo, eu nunca tive

mas eu terei para você. E que venham me dizer: digamos que alguém

tenha um desejo, que o confesse, e que você não tenha nada para

satisfazê-lo? Eu direi: eu tenho o que é preciso para; se me dizem:

imagine no entando que você não tem? – mesmo imaginando, eu tenho

sempre. E que me digam: suponhamos que no f im das contas esse

desejo seja tal que absolutamente você não queira nem ter a idéia do

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que é preciso para satisfazê-lo? Bom, mesmo não querendo, apesar

disso eu tenho o que é preciso assim mesmo.

Mas quanto mais um vendedor é correto, mais o comprador é

perverso; todo vendedor procura satisfazer um desejo que ele ainda

não conhece, ao passo que o comprador submete sempre seu dese jo à

satisfação primeira de poder recusar o que lhe é oferecido; assim seu

desejo inconfessado é exaltado pela recusa, e ele esquece seu desejo

no prazer que ele tem em humilhar o vendedor. Mas eu não sou da raça

dos comerciantes que invertem suas placas para satisfazer o gosto dos

clientes pela cólera e indignação. Eu não estou aqui para dar prazer,

mas para preencher o abismo do desejo, recordar o desejo, obrigar o

desejo a ter um nome, arrastá-lo até a terra, dar-lhe uma forma e um

peso, com a crueldade obrigatória que existe em dar uma forma e um

peso ao desejo. É porque eu vejo o seu aparecer como saliva no canto

dos seus lábios que seus lábios engolem, eu esperarei que ele corra ao

longo do seu queixo ou que você o cuspa antes de te dar um lenço

porque se eu te der o lenço cedo demais, eu sei que você o recusaria,

e é um sofrimento que eu definit ivamente não quero sofrer.

Pois o que todo homem ou animal teme, a esta hora onde o

homem anda na mesma altura que o animal e onde todo animal anda na

mesma altura que todo homem, não é o sofrimento, pois o sofrimento

se mede, e a capacidade de impor e de tolerar o sofrimento se mede; o

que ele teme acima de tudo, é a estranheza do sofrimento, e de ser

levado a suportar um sofrimento que não lhe seja familiar. A ssim a

distância que se manterá sempre entre os brutos e as senhoritas que

povoam o mundo vem não da avaliação respectiva das forças, porque

então, o mundo se dividiria muito simplesmente entre os brutos e as

senhoritas, todo bruto se jogaria sobre cada senhorita e o mundo seria

simples; mas o que mantém o bruto, e o manterá ainda por eternidades,

a distância da senhorita, é o mistério inf inito e a inf inita estranheza das

armas, como essas pequenas bombas que elas carregam em suas

bolsas de mão, sujo líquido elas jogam nos olhos dos brutos para fazê -

los chorar, e vê-se bruscamente os brutos chorando na frente das

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senhoritas, toda dignidade destruída, nem homem, nem animal,

passarem a ser nada, apenas lágrimas de vergonha na terra de um

campo. É por isso que brutos e senhoritas se temem e se desconfiam

tanto uns dos outros, porque só impomos os sofrimentos que nós

mesmos podemos suportar e só tememos os sofrimentos que nós

mesmos não somos capazes de impor.

Então não se recuse a me dizer o objeto, eu te peço, da sua

febre, do seu olhar sobre mim, a razão, a dizê -la a mim; e se trata-se

de não ferir absolutamente sua dignidade, bom, diga -a como a dizemos

a uma árvore , ou perante o muro de uma prisão, ou na solidão de um

campo de algodão no qual se anda, nu, à noite; a dizê-la a mim sem

nem me olhar. Pois a verdadeira única crueldade desta hora do

crepúsculo onde nós dois nos mantemos não é que um homem fira o

outro, ou o muti le, ou torture -o, ou lhe arranque os membros e a

cabeça, ou mesmo faça-o chorar; a verdadeira e terrível crueldade é

aquela do homem ou do animal que torna o homem ou o animal

inacabado, que o interrompe como reticências no meio de uma frase,

que se desvia dele depois de tê-lo olhado, que faz, do animal ou do

homem, um erro do olhar, um erro do julgamento, um erro, como uma

carta que se começou e que se amassa bruscamente logo depois de ter

escrito a data.

O Cliente

Você é um bandido estanho demais, que não rouba nada ou

demora demais a roubar, um ladrão excêntrico que entra à noite no

pomar para balançar as árvores, e que vai embora sem levar as frutas.

Você que é habituado a esses lugares, e eu sou o estrangeiro; eu sou

aquele que tem medo e que tem razão em ter medo; eu sou aquele que

não te conhece, que não pode te conhecer, que apenas im agina a sua

silhueta na escuridão. Era você quem tinha de adivinhar, de nomear

alguma coisa, e então, talvez, com um movimento de cabeça, eu teria

aprovado, com um sinal, você teria sabido; mas eu não quero que o

meu desejo seja espalhado por nada como sangue sobre uma terra

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estrangeira. Você não arrisca nada; você conhece de mim a inquietude

e hesitação e a desconfiança; você sabe de onde eu venho e para onde

eu vou; você conhece estas ruas, você conhece esta hora, você

conhece os seus planos; eu, eu não conheço nada, eu arrisco tudo. Na

sua frente, eu estou como na frente desses homens travestidos em

mulheres que se fantasiam de homens, no f im, não se sabe mais onde

está o sexo.

Porque sua mão se pôs sobre mim como aquela do bandido sobre

sua vít ima ou como aquela da lei sobre o bandido, e deste quando eu

sofro, ignorante, ignorante da minha fatalidade, ignorante se eu sou

julgado ou cúmplice, por não saber do que eu sofro, eu sofro por não

saber qual ferida você me faz e por onde corre meu sangue. Talvez na

verdade você não seja nada estranho, mas astucioso; talvez você seja

apenas um servidor disfarçado da lei com a lei mantida secreta à

imagem do bandido para perseguir o bandido; talvez você seja,

f inalmente, mais leal do que eu. E então por nada, por ac idente, sem

que eu tenha dito nada nem desejado nada, porque eu não sabia quem

você é, porque eu sou o estrangeiro que não conhece a l íngua, nem os

costumes, nem o que aqui é mau ou conveniente, e o certo ou o errado,

e que age como deslumbrado, perdido, é como se eu t ivesse te pedido

alguma coisa, como se eu tivesse te pedido a pior coisa possível e

fosse culpado por ter pedido. Um desejo como sangue aos seus pés

correu fora de mim, um desejo que eu não conheço e não reconheço,

que você é o único a conhecer, e que você julga.

Se é assim, se você se esforça, com o emprenho suspeito do

traidor, em me acuar a agir com ou contra você para que, em todos os

casos, eu seja culpado, se é isso, então reconheça ao menos que eu

realmente ainda não agi nem por nem con tra você, que não há nada

ainda a me crit icar, que eu me conservei honesto até este instante.

Testemunhe a meu favor que eu não t ive prazer na escuridão como um

ladrão, por minha própria vontade e com intenções i l ícitas, mas que eu

fui surpreendido aqui e que eu gritei, como uma criança na sua cama

cuja lâmpada que f ica acesa a noite inteira se apaga de repente.

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O Dealer

Se você acredita que eu esteja animado por intenções de

violência em relação a você – e talvez você tenha razão – , não dê cedo

demais nem um gênero nem um nome a esta violência. Você nasceu

com o pensamento de que o sexo de um homem se esconde em um

lugar preciso e que ele f ica lá, e você guarda cautelosamente este

pensamento; entretanto, eu sei, eu – apesar de nascido da mesma

maneira que você – , que o sexo de um homem, com o tempo que ele

passa esperando e esquecendo, f icando sentado na solidão, se

movimenta calmamente de um lugar a outro, nunca escondido em um

lugar preciso, mas visível lá onde não o procuram; e que nenhum sexo,

passado o tempo onde o homem aprendeu a se sentar e a descansar

tranquilamente na sua solidão, se parece com nenhum outro sexo, não

mais do que um sexo macho se parece com um seco fêmeo; que não se

trata de disfarçe de uma coisa com esta, mas uma doce hesitação das

coisas, como as estações de inverno, nem inverno de verão.

Entretanto uma suposição não merece que se perturbem por ela;

é preciso manter sua imaginação como sua pequena noiva: se é bom

vê-la vagabundear, é estúpido deixá-la perder o senso das

conveniências. Eu não sou astucioso, mas curioso; eu tinha posto

minha mão no seu braço por pura curiosidade, para saber se, a uma

carne que tem aparência daquela de uma galinha depenada,

corresponde o calor da galinha viva ou o frio da galinha morta, e agora

eu sei. Você sobe, seja dito sem te ofender, do frio como a galinha viva

depenada pela metade, como a galinha acometida, no senso estri to do

termo, de uma doença que faz cair as penas; e, quando eu era

pequeno, eu corria atrás delas no galinheiro para tocar nela s e

descobrir, por curiosidade pura, se sua temperatura era aquela da

morte ou da vida. Hoje que eu te toquei, se senti em você o frio da

morte, mas eu senti também o sofrimento do frio, como só um ser vivo

pode sofrer. É por isso que eu te estendi meu casaco para cobrir os

seus ombros, já que eu não sofro, eu, do frio. E eu nunca sofri disso,

ao ponto em que eu sofri por não conhecer esse sofrimento, ao ponto

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em que o único sonho que eu t inha, quando eu era pequeno – desses

sonhos que não são objetivos mas prisões suplementares, que são o

momento onde a criança percebe as barreiras de sua primeira prisão,

como aqueles que, nascidos de escravos, sonham que são f i lhos dos

patrões – , meu próprio sonho era conhecer a neve e o gelo, conhecer o

frio que é o seu sofrimento.

Se eu te emprestei meu casaco apenas, não é que eu não saiba

que você sofre do frio não apenas no alto do seu corpo, mas, seja dito

sem te ofender, do alto até embaixo e talvez mesmo um pouco além; e,

no que me diz respeito, eu terei sempre pensado que seria preciso

ceder ao friorento a peça de roupa correspondente ao lugar onde ele

sente frio, com o risco de se encontrar nu, de alto a baixo e talvez

mesmo um pouco além; mas minha mãe, que não era de jeito nenhum

avarenta mas dotada de senso das conveniências, me disse que era

válido dar sua camisa ou seu casaco ou qualquer coisa que cubra o

alto do corpo, é preciso sempre hesitar longamente a dar seus sapatos,

e que em nenhum caso é conveniente ceder suas calças.

Acontece que da mesma forma que eu sei – sem explicar mas

com uma certeza absoluta – que a terra sobre a qual nós estamos

colocados você e eu e os outros está ela mesma colocada em equilíbrio

sobre o chifre de um touro e mantida nesta posição pela mão da

providência, da mesma forma eu me esforço, sem realmente saber por

que mas sem hesitação, em f icar no limite do que é conveniente,

evitando o inconveniente como uma criança deve evitar se pendurar na

beira do telhado antes mesmo de compreender a lei da queda dos

corpos. E da mesma forma que a criança acredita que a proíbem de se

pendurar na beira do telhado para impedi -la de voar, eu acreditei muito

tempo que proibiam o menino de ceder suas calças para impedi -lo de

descobrir o entusiasmo ou a melancolia de seus sentimentos. Mas hoje

que eu compreendo mais as coisas, que eu reconheço mais as coisas

que eu não compreendo, que eu f iquei neste lugar e nessa hora tanto

tempo, que eu vi passar tantos passantes, que eu os olhei e que às

vezes, sem compreender nada e sem querer compreender nada ma s

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sem renunciar para tanto a olhá-los e fazer o possível para pôr minha

mão nos braços deles – porque é mais fácil agarrar um homem que

passa do que uma galinha no galinheiro – , eu sei bem que não há nada

de inconveniente nem no entusiasmo nem na melancoli a que seja

preciso esconder, e que é preciso seguir a regra sem saber por quê.

Além do mais, seja dito sem te ofender, eu esperava, ao cobrir os

seus ombros com o meu casaco, tornar sua aparência, mais familiar

aos meus olhos. Estranheza demais pode fazer com que eu f ique

tímido, e, vendo você vir em minha direção agora há pouco, eu me

perguntei porque o homem não doente se vestia como uma galinha

acometida por uma doença que faz cair as penas e que perde suas

penas e continua andando no galinheiro com as penas f ixadas sobre

ela apesar de sua doença; e sem dúvida, por t imidez, eu teria me

contentado em coçar a cabeça e fazer um desvio para te evitar, se eu

não tivesse visto, no seu olhar f ixo em mim, o vislumbre daquele que

vai, no senso estrito do termo, pedir alguma coisa, e esse vislumbre me

distraiu da sua roupa ridícula.

O Cliente

O que você espera tirar de mim? Todo gesto que eu tomo por um

golpe acaba com uma carícia; é inquietante ser acariciado quando se

deveria apanhar. Eu exi jo que ao menos você desconfie, se você quer

que eu me demore. Já que você pretende por acaso me vender alguma

coisa, por que não duvidar primeiro de que eu tenho com o que pagar?

Meus bolsos, talvez, estejam vazios; teria sido honesto que você me

pedisse primeiramente para expor meu dinheiro no balcão, como se faz

com os clientes duvidosos, você não me perguntou nada do tipo: que

prazer você tida do risco de ser enganado? Eu não vim a este lugar

para encontrar doçura; a doçura corta em pedaços, ele ataca por

partes, retalha as forças como um cadáver numa sala de medicina. Eu

preciso da minha integridade; a hostil idade, ao menos, me manterá

inteiro. Fique com raiva: senão onde eu vou buscar minha força? Fique

com raiva: nós f icaremos mais próximos dos nossos negócios, e nós

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teremos certeza de que estamos tratando ambos do mesmo negócio.

Pois, se eu compreendo de onde eu tiro o meu prazer, eu não

compreendo de onde você tira o seu.

O Dealer

Se eu tivesse por um instante duvidado de que você não tivesse o

necessário para pagar o que você veio procurar, eu teria me desviado

quando você se aproximou de mim. Os comércios comuns exigem de

seus clientes provas de que estes possam pagar, mas as lojas de luxo

adivinham e não perguntam nada, nem se rebaixam nunca para

verif icar o montante do cheque e a conformidade da assinatura. São

objetos para vender e objetos para comprar tais que a questão não se

coloca de saber se o comprador será capaz de quitar o preço nem

quanto tempo ele gastará para se decidir. Assim eu sou paciente

porque não se ofende um homem que se distancia quando se sabe que

ele vai retroceder. Não se pode voltar atrás de um insulto, enquanto se

pode voltar atrás de uma genti leza, e é melhor abusar desta do que

usar uma só vez o outro. É por isso que eu não f icarei com raiva ainda,

porque eu tenho o tempo de não f icar com raiva, e eu tenho o tempo de

f icar com raiva, e eu f icarei com raiva talvez quando todo esse tempo

tiver corrido.

O Cliente.

E se – por hipótese – eu admitisse que só tinha usada a

arrogância – sem gosto – porque você tinha me pedido para usá-la

quando você se aproximou de mim com algum objetivo que eu não

adivinho ainda – pois eu não tenho muito talento para adivinhar – e que

me retém enquanto isso aqui? Se por hipótese eu te dissesse que o

que me retém aqui fosse a incerteza que eu tenho dos seus objetivos, e

o interesse que eu tenho nisso? Na estranheza da hora e a estranheza

do lugar e a estranheza do avanço em direção a mim eu teria avançado

em direção a você, movido por esse movimento conservado na sua

totalidade de maneira indelével até que um movimento contrário lhe foi

transmit ido. Se fosse por inércia que eu tivesse me aproximado de

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você? Levado até embaixo não por vontade própria mas por essa

atração que experimentam os príncipes que vão se misturar à plebe

nos albergues, ou a criança que desce escondida até o porão, a

atração do objeto minúsculo e solitário pela massa escura, impassível

que está na sombra; eu teria vindo até você, medindo tranquilamente a

moleza do ritmo do meu sangue nas minhas veias, com a questão de

saber se essa moleza seria excitada ou esgotada completamente;

lentamente talvez, mas cheio de esperança, sem desejo formulável,

pronto a me satisfazer com o que me oferecessem, porque, qualquer

coisa que me oferecessem, teria sido como o sulco de um campo estéri l

durante tempo demais por abandono, ele não diferencia os grãos

quando eles caem sobre o campo; pronto a me satisfazer com tudo, na

estranheza da nossa aproximação, de longe eu teria acreditado que

você se aproximava de mim, de longe eu teria t ido a impressão de que

você me olhava; então, eu teria me aproximado de você, eu teria te

olhado, eu teria chegado perto de você, esperando de você – coisas

demais – coisas demais, não que você adivinhasse, pois eu mesmo não

sei, eu mesmo não sei adivinhar, mas eu esperava de você e o gosto

de desejar e a idéia de um desejo, o objeto, o preço, e a satisfação.

O Dealer

Não há vergonha em esquecer à noite aquilo de que nós nos

lembraremos pela manhã; a noite é o momento do esquecimento, da

confusão, do desejo tão esquentado que se torna vapor. Entretanto a

manhã o leva como uma grande nuvem acima da cama, e ele será

estúpido de não prever à noite a chuva da manhã. Se então por

hipótese você me dissesse que você está no momento desprovido de

desejo a exprimir, por cansaço ou por esquecimento ou por excesso de

desejo que leva ao esquecimento, por hipótese de retorno eu te dir ia

para decididamente não se cansar mais e pegar emprestado aquele de

algum outro. Um desejo se rouba mas não se inventa; acontece que o

casaco de um homem conserva o mesmo calor se vestido por um outro,

e um desejo se pega emprestado mais facilmente do que uma roupa. Já

que custe o que custar eu devo vender e custe o que custar você

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precisará comprar, bom, compre para outros além de você – qualquer

desejo que esteja por aí e que você pegar resolverá a questão – , para

divertir por exemplo e satisfazer quem acorda perto de você de manhã

nos seu lençóis, uma noivinha que desejará ao acordar alguma coisa

que você não tem ainda, que você terá prazer em oferecer a ela, e que

você f icará feliz em possuir porque você terá comprado de mim. É a

sorte do comerciante que existam tantas pessoas diferentes tantas

vezes ligadas a tantos objetos diferentes de tantas maneiras

diferentes, pois a memória de uns é substituída pela memória de

outros. E a mercadoria que você vai comprar de mim poderá muito bem

servir a qualquer outro se – por hipótese – você não t iver uti l idade para

ela.

O Cliente

A regra quer que um homem que encontra um outro aca be sempre

lhe dando um tapinha nas costas enquanto falam de mulher; a regra

quer que a lembrança da mulher sirva de últ imo recurso aos

combatentes cansados; a regra quer isso, a regra; eu não me

submeterei a ela. Eu não quero que encontremos a nossa paz na

ausência da mulher, nem na lembrança de uma ausência, nem na

lembrança de qualquer coisa que seja. As lembranças me desagradam

e as ausências também; à comida digerida, eu pref iro os pratos nos

quais ainda não tocamos. Eu não quero uma paz vinda de qualqu er

lugar; eu não quero que encontremos a paz.

Mas o olhar do cachorro não contém nada além da suposição de

que tudo, em volta dele, é cachorro com toda certeza. Assim você

af irma que o mundo sobre o qual nós estamos, você e eu, é mantido na

ponta do chifre de um touro pela mão de uma providencia; acontece

que eu sei, eu, que ele f lutua. Colocado sobre as costas de três

baleias; que não há providencia nem equilíbrio, mas o capricho de três

monstros idiotas. Nossos mundos não são então os mesmos, e nossa

estranheza está misturada às nossas naturezas coma uva no vinho.

Não, eu não levantarei a pata, na sua frente, no mesmo lugar que você;

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eu não sofro a mesma força da gravidade que você; eu não vim da

mesma fêmea. Porque não é de manhã que eu acordo, e não é n os

lençóis que eu durmo.

O Dealer

Não f ique com raiva, paizinho, não f ique com raiva. Eu sou

apenas um pobre vendedor que conhece apenas este pedaço de

território onde eu espero para vender, que não conhece nada além do

que a sua mãe lhe ensinou; e como e la não sabia nada, ou quase, eu

não sei nada também, ou quase. Mas um bom vendedor tenta dizer o

que o comprador quer ouvir, e para tentar adivinhar, ele precisa tocar -

lhe um pouco para reconhecer o odor. O seu odor não me foi nem um

pouco familiar, nós na verdade não saímos da mesma mãe. Mas a f im

de poder te abordar, eu supus que você bem que saiu de uma mãe

você também como eu, supondo que sua mãe te fez irmãos como a

mim, em um número incalculável como uma crise de soluço depois de

uma grande refeição, e que o que nos aproxima em todo caso, é a

ausência de raridade que nos caracteriza a ambos. E eu me agarrei a

isso do pouco que nós temos em comum, pois podemos viajar muito

tempo no deserto com a condição de que tenhamos um ponto de

referência em algum lugar. Mas se eu me enganei, se você não saiu de

uma mãe, e ninguém te vez irmãos, e se você não tem uma noivinha

que acorda com você pela manhã nos seus lençóis, paizinho, eu te

peço perdão.

Dois homens que se cruzam não têm outra escolha senão bater

um no outro, com a violência do inimigo ou a doçura da fraternidade. E

se eles escolhem no f inal, no deserto desta hora, evocar aquele que

não está aqui, passado ou sonho, ou falta, é que não enfrentam

diretamente a estranheza exagerada. Diante do mistério é c onveniente

se abrir e se revelar inteiramente a f im de forçar o mistério a se revelar

por sua vez. As lembranças são as armas secretas que o homem

guarda com ele quando está despido, a últ ima franqueza que obriga a

franqueza em retorno; a últ ima nudez. Eu não tiro daquilo que eu sou

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nem glória nem confusão, mas porque você me é desconhecido, e mais

desconhecido ainda a cada instante, bom, como meu casaco que eu

tirei e estendi para você, como minhas mãos que eu te mostrei

desarmadas, se eu sou cachorro e você humano, ou se eu sou humano

e você outra coisa além disso, de alguma raça que eu seja e de alguma

raça que você seja, a minha, ao menos, eu ofereço aos seu s olhares,

eu deixo você tocar nela, me apalpar e se habituar a mim, como um

homem se deixa revistar para não esconder suas armas.

É por isso que eu te proponho, prudentemente, gravemente,

tranqüilamente, olhar para mim com amizade, porque fazemos melhores

negócios sob o abrigo da famil iaridade. Eu não procuro te enganar, e

não peço nada que você não queira dar. A única camaradagem que

vale a pena que nós tenhamos não implica agir de uma certa maneira,

mas não agir; eu te proponho a imobil idade, a inf inita paciência e a

injust iça cega do amigo. Já que não há justiça entre quem não se

conhece, e não há amizade entre quem se conhece, não mais do que

na há pontes sem barranco. Minha mãe sempre me disse que era

estúpido recusar um guarda chuva quando se sabe que vai chover.

O Cliente

Eu preferia você astucioso a amigável. A amizade é mais pão -

dura do que a traição. Se fosse um sentimento do qual eu precisasse,

eu teria dito a você, eu teria te perguntado o preço, e eu o teria

quitado. Mas os sentimentos se trocam apenas contra seus

semelhantes; é um falso comércio com uma falsa moeda, um comércio

de pobre que imita o comércio. Por acaso trocamos um saco de arroz

contra um saco de arroz? Você não tem nada a oferecer, é por isso que

você joga seus sentimentos no balcão, como os maus comércios fazem

o abatimento sobre a mercadoria contrabandeada, e depois não é mais

possível reclamar do produto. Eu não tenho sentimento para te dar em

retorno; desta moeda eu estou desprovido, eu não pensei em trazê -la

comigo, você pode me revistar. Então, guarde a sua mão no seu bolso,

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guarde a sua mãe na sua família, guarde as suas lembranças para a

sua solidão, é a coisa mais insignif icante.

Eu não vou querer nunca essa familiaridade que você tenta,

escondido, instaurar entre nós. Eu não quis a sua mão no meu braço,

eu não quis o seu casaco, eu não quero o risco de ser confun dido com

você. Pois saiba que, se você foi surpreendido há pouco pela minha

roupa, e você não achou que era bom esconder a sua surpresa, a

minha surpresa foi ao menos tão grande quando eu te olhei se

aproximando de mim. Mas, em terreno estranho, o estrange iro toma o

hábito de mascarar o seu espanto, porque para ele toda esquisit ice

torna-se costume local, e ele precisa se habituar como ao clima ou ao

prato regional. Mas se eu te levasse entre os meus, e que você fosse,

você, o estrangeiro forçado a esconder o seu espanto, e nós os nativos

livres para expor o nosso espanto, nós f icaríamos em volta de você te

apontando com o dedo, nós te tomaríamos com certeza por um

carrossel de parque de diversões, e me perguntariam onde se compram

os bilhetes.

Você não está aqui para o comércio. Você está aqui mais para a

mendicância, e para o roubo que a sucede como a guerra às

discussões. Você não está aqui para satisfazer desejos. Porque

desejos, eu tinha, eles caíram em volta de nós, nós os pisoteamos;

grandes, pequenos, complicados, fáceis, teria sido suficiente que você

se abaixasse para pegá-los aos punhados; mas você os deixou rolar

para a sarjeta, porque mesmo os pequenos, mesmo os fáceis, você não

tem com o que satisfazê-los. Você é pobre, e você está aqui não por

gosto mas por pobreza, necessidade e ignorância. Eu não f injo que

estou comprando imagens piedosas nem pagando os acordes

miseráveis de uma guitarra num canto de rua. Eu faço caridade se eu

quero fazer, ou eu pago o preço das coisas. Mas que os mendigos

mendiguem, que eles ousem estender a mão, e que os ladrões roubem.

Eu não quero nem te insultar nem te agradar; eu não quero ser

nem bom, nem mau, nem bater, nem apanhar, nem seduzir, nem que

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você se esforce para me seduzir. Eu quero ser zero. Eu temo a

cordialidade, eu não tenho vocação para parentesco, e mais do que

aquela dos golpes eu temo a violência da camaradagem. Sejamos dois

zeros bem redondos, impenetráveis um ao outro, provisoriamente

justapostos, e que rolam, cada um na sua direção. Aqui, que nó s

estamos sós, na inf inita sol idão desta hora e deste lugar que não são

nem uma hora nem um lugar definíveis, porque não tem razão para que

eu te encontre aqui nem razão para que você cruze por mim aqui nem

razão para a cordialidade nem valor razoável para nos preceder e que

nos dê um sentido, sejamos simples, soli tários e orgulhosos zeros.

O Dealer

Mas agora é tarde demais: a conta está cortada e será preciso

que ela seja liquidada. É justo roubar de quem não quer ceder e guarda

com ciúme nos seus cofres para seu prazer soli tário, mas é grosseiro

roubar quando tudo está para vender e tudo para comprar. E se é

provisoriamente conveniente dever a alguém – o que é apenas um justo

prazo combinado – , é obsceno dar e obsceno aceitar que te dêem

gratuitamente. Nós nos encontramos aqui para o comércio e não para a

batalha, então não será justo que haja um perdedor e um ganhador.

Você não vai partir como um ladrão com os bolsos cheios, você

esquece o cachorro que guarda a rua e que vai te morder o cú.

Já que você veio aqui no meio da hosti l idade dos homens e dos

animais em cólera, para não procurar nada alcançável, já que você

quer ser machucado por não sei que razão obscura, você vai precisar,

antes de virar as costas, pagar, e esvaziar seus bolsos, para que não

se f ique devendo nada, e nada seja dado. Desconfie do comerciante: o

comerciante que é roubado é mais ciumento do que o proprietário que é

assaltado; desconfie do comerciante: seu discurso tem a aparência do

respeito e da doçura, a aparência da humildade, a aparência do amor,

a aparência apenas.

O Cliente

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O que é então que você perdeu e que eu não ganhei? Porque eu

posso fuçar minha memória, eu não ganhei nada, eu não. Eu aceito

pagar o preço das coisas; mas eu não pago o vento, a escuridão, o

nada que está entre nós. Se você perdeu alguma coisa, se a sua

fortuna está mais leve depois de ter me encontrado do que ela era

antes, onde então passou o que falta a nós dois? Mostre para mim.

Não, eu não desfrutei de nada, não, eu não pagarei nada.

O Dealer

Se você quer saber o que esteve desde o início inscrito na sua

fatura, e que você vai ter de pagar antes de me virar as costas eu te

direi que é a espera, e a paciência, e a mercadoria que o vendedor cria

para o cl iente, e a esperança de vender, a esperança princi palmente,

que faz com que todo homem que se aproxima de todo homem com um

pedido no olhar seja de cara um devedor. De toda promessa de venda

se deduz a promessa de comprar, e há a multa a pagar para quem

rompe a promessa.

O Cliente

Nós não estamos, você e eu, perdidos sozinhos no meio dos

campos. Seu eu chamasse deste lado, em direção a essa parede, lá no

alto, em direção ao céu, você veria luzes brilharem, passos se

aproximando, socorro. Se é duro odiar sozinho, para muitos isso se

torna um prazer. Você ataca os homens mais do que as mulheres,

porque você teme o grito das mulheres, e você supõe que todo homem

achará indigno gritar; você conta com a dignidade, a vaidade, a mudez

dos homens. Eu te dou essa dignidade de presente. Se é mal que você

me deseja, eu chamarei, eu gritarei, eu pedirei socorro, eu vou te fazer

ouvir todas as maneiras que existem de pedir socorro, pois eu conheço

todas.

O Dealer

Se não é a desonra da fuga que te impede, por que você não

foge? A fuga é um meio sutil de combate; você é sutil; você deveria

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fugir. Você é como essas senhoras gordas nos salões de chã que se

metem entre as mesas entornando as cafeteiras: você caminha o seu

cú atrás de você como um pecado pelo qual você tem remorso, e você

se vira em todos os sentidos para fazer crer que o seu cú não existe.

Mas não vai adiantar nada, vão te morder o cú assim mesmo.

O Cliente

Eu não sou da raça daqueles que atacam primeiro. Eu peço

tempo. Talvez fosse preferível, f inalmente, catarmos uns piolhos em

vez de f icarmos nos mordendo. Eu peço tempo. Eu não quero ser

acidentado como um cachorro distraído. Venha comigo; procuremos

gente, pois a solidão nos cansa.

O Dealer

Há este casaco que você não pegou quando eu o estendi para

você, e agora, vai ser preciso que você se abaixe para pegá-lo.

O Cliente

Se no entanto eu cuspi em alguma coisa, eu o f iz sobre

generalidades, e sobre uma roupa que é apenas uma roupa; e se está

na sua direção, não é contra você, e você não tinha nenhum movimento

a fazer para se esquivar do escarro; e se você faz um movimento para

recebê-lo na cara, por gosto, por perversidade ou por cálculo, não

impede que seja apenas por este pedaço de pano que eu mostrei algum

desprezo, e um pedaço de pano não pede conta. Não, eu não tenho a

f lexibi l idade de um contorcionista de feira. Tem movimentos que o

homem não pode fazer, como o de lamber o seu próprio cú. Eu não

pagarei uma tentação que eu não t ive.

O Dealer

Não é conveniente para um homem deixar insultarem sua roupa.

Porque se a verdadeira injustiça deste mundo é aquela do acaso do

nascimento de um homem, do acaso do lugar e da hora, a única just iça,

é a vestimenta. A roupa de um homem é, melhor do que ele mesmo, o

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que ele tem de mais sagrado: ele mesmo que não sofre; o ponto de

equil íbrio onde a justiça compensa a injustiça, e não se deve maltratar

esse ponto. É por isso que é preciso julgar um homem pela sua roupa,

não pela sua cara, nem pelos seus braços, nem pela sua pele. Se é

normal cuspir sobre o nascimento de um homem, é perigoso cuspir

sobre a sua rebelião.

O Cliente

Bom, eu te ofereço a igualdade. Um casaco na poeira, eu pago

com um casaco na poeira. Segamos iguais, na igualdade do orgulho, na

igualdade da impotência, igualmente desarmados, sofrendo igualmente

do frio e do quente. A sua seminudez, a sua metade de humilhação, eu

as pago com a metade das minhas. Resta -nos outra metade, é bastante

suficiente para ousar ainda se olhar e para esquecer o que perdemos

todos os dois por inadvertência, por risco, por esperança, por

distração, por acaso. A mim, vai restar ainda a inquietude persistente

do devedor que já reembolsou.

O Dealer

Por que, o que você pede, abstratamente, inalcançavelmente, a

esta hora da noite, por que, isso você teria pedido a um outro, por que

não ter pedido a mim?

O Cliente

Desconfie do cl iente: ele tem o ar de procurar uma coisa

enquanto quer uma outra, da qual o vendedor não desconfia, e que ele

obterá f inalmente.

O Dealer

Se você fugisse, eu te seguiria; se você caísse com os meus

golpes, eu f icaria perto de você para o seu despertar ; e se você

decidisse não acordar, eu f icaria ao seu lado, no seu sono, no seu

inconsciente, além. No entanto, eu não desejo brigar com você.

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O Cliente

Eu não tenho medo de brigar, mas eu temo as regras que eu não

conheço.

O Dealer

Não há regra; só há meios. Há apenas armas.

O Cliente

Tente me alcançar, você não conseguirá; tente me ferir, quanto o

sangue corresse, bom, seria dos dois lados e, inevitavelmente, o

sangue nos unirá, como dois índios, no canto do fogo, que trocam seu

sangue no meio dos animais selvagens. Não há amor, não há amor.

Não, você não poderá alcançar nada que já não tenha sido alcançado,

porque um homem morre primeiro, depois procura sua morte e a

encontra f inalmente, por acaso, sobre o trajeto casual de uma luz a

uma outra luz, e e le diz: então, era só isso.

O Dealer

Por favor, na gritaria da noite, você não disse nada que você

desejasse de mim, e que eu não t ivesse ouvido?

O Cliente

Eu não disse nada; eu não disse nada. E você, você não me

ofereceu nada, na noite, na escuridão tão profunda que ela pede tempo

demais para que a gente se acostume, que eu não tenha adivinhado?

O Dealer

Nada.

O Cliente

Então, qual arma?