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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO –PUC/SP Atividades artísticas e lutas democráticas na construção da sociabilidade de resistência contemporânea. AUREA SATOMI FUZIWARA DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Satomi... · Si cada hora viene con su muerte. ... Si nuestros bravos quedan sin abrazo. ... y no es bastante el llanto ni

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO –PUC/SP Atividades artísticas e lutas democráticas na construção da sociabilidade de resistência contemporânea.

AUREA SATOMI FUZIWARA

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO –PUC/SP Atividades artísticas e lutas democráticas na construção da sociabilidade de resistência contemporânea.

AUREA SATOMI FUZIWARA

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor em Serviço

Social, na área de concentração em Serviço Social,

Políticas Sociais e Movimentos Sociais, sob a orientação

da Profa. Dra. Maria Lúcia Silva Barroco.

SÃO PAULO

2014

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ERRATA

Tese de doutorado: “Atividades artísticas e lutas democráticas na construção da

sociabilidade de resistência contemporânea”

Autora: Aurea Satomi Fuziwara

Orientadora: Dra Maria Lúcia Silva Barroco

Pag. 12: Na nota de rodapé 3, onde se lê: “Vide nota 9”, leia-se “Vide nota 16”.

Pag. 18: Na nota de rodapé 11, onde se lê: “citadas na nota15”, leia-se “citadas na nota 8”.

Figuras – legenda e créditos.

Pag. 129: Considere-se como legenda da imagem: Tribunal Popular da Terra, realizado no

Sacolão das Artes em abril de 2011, pelo Tribunal Popular : o Estado n Banco dos Réus.

Fonte: Tribunal Popular, divulgação.

Pag. 142. Considere-se como legenda da imagem: Foto do ato de ocupação da FUNARTE,

em 2011. Fonte: Brava Cia, divulgação.

Pag. 150. Considere-se como legenda da imagem: folheto eletrônico mobilizando a defesa

do uso do espaço do sacolão. Fonte: Sacolão das Artes, divulgação.

BIBLIOGRAFIA

FREDERICO, Celso. Da periferia ao centro: cultura e política em tempos pós-modernos.

Estudos Avançados, São Paulo , v. 27, n. 79, 2013 a.

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Fazer agradecimentos é prazeroso, mas nem sempre poderemos alcançar a todos.

Primeiramente, agradeço aos meus pais, que me ensinaram o gosto pelo conhecimento. Ao

meu irmão por me garantir tranquilidade ao cuidar dos nossos pais. À minha irmã, pela torcida.

Agradeço aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, por

contribuírem com minha trajetória. Particularmente, Raquel Raichellis, Maria Carmelita Yasbek e

Ademir Alves da Silva, coordenadores à frente do Programa neste período. Maria Lúcia Carvalho e

Aldaíza Sposati, pelos conhecimentos compartilhados.

Aos professores visitantes Maria Cristina Paniago, Sérgio Lessa, Celso Frederico, Ivete

Simionato, Marilda Iamamoto, José Paulo Netto, pelo brilhantismo nas atividades programadas que

nos propiciaram.

Especialmente, agradeço a minha orientadora, Maria Lúcia Silva Barroco, que com sua

tranquilidade respeitou meu processo e meus momentos, pela generosidade, conhecimento e

paciência.

Aos docentes com quem pude exercitar a representação discente no Colegiado, por um ano,

que foi intenso e de grande aprendizagem. Aos funcionários do Câmpus Monte Alegre. Aos

companheiros Bruno Simões, Valéria Albuquerque, Josiane Moraes, Edson Cabral e Bruna

Carnelossi, bem como Maria Lúcia Martinelli, com quem compartilhamos a realização do

Seminário de socialização de pesquisas, em comemoração aos 40 anos do Programa. Fernanda

Carpanelli, Wagner Hosokawa, pela solidariedade de sempre, e Beatriz Abramides, lutadoras em

tempos difíceis desta universidade. A todos os colegas – que foram e são muitos – com quem tive a

oportunidade de compartilhar conhecimentos e boas conversas. Agradeço a Liliana Hurtado, colega

colombiana pelo apoio com o resumen, e Kátia Hale, por me acompanhar no registro do grupo

focal.

À querida e sempre ao meu lado, amiga Maria Suzete Caselatto pela revisão deste trabalho.

Aos fazedores do Sacolão das Artes, meu respeito admiração e eterna gratidão. Rita,

Ademir, Sassá, Max, Cris, por terem viabilizado este processo.

A Cristina Brites e Celso Frederico pela honra de contar com seu conhecimento e pela

contribuição na qualificação desta tese.

À trabalhadora e ao trabalhador, pela bolsa CAPES. Às colegas de trabalho. Aos juízes com

quem eu trabalhei ao longo destes 18 anos, sempre apoiada (dentro do possível na instituição) no

meu interesse pela continuidade dos estudos.

Aos amigos de militância e de vida: a cada um meu especial agradecimento. Não os

nominarei, pois sabemos quem somos.

Ao Edu, por me dar a dimensão do tempo e do que é importante.

Presentinhos e broncas apareciam enquanto eu estudava em casa: agradeço ao meu filho

encantador pela alegria, humor, inquietude e poesia com que aqueceu estes nossos longos dias.

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Por qué cantamos Mario Benedetti

Si cada hora viene con su muerte si el tiempo es una cueva de ladrones los aires ya no son los buenos aires la vida es nada más que un blanco móvil

usted preguntará por qué cantamos.

Si nuestros bravos quedan sin abrazo la patria se nos muere de tristeza y el corazón del hombre se hace añicos antes aún que explote la vergüenza

usted preguntará por qué cantamos.

Si estamos lejos como un horizonte si allá quedaron árboles y cielo si cada noche es siempre alguna ausencia y cada despertar un desencuentro

usted preguntará por qué cantamos.

Cantamos porque el río está sonando y cuando suena el río / suena el río cantamos porque el cruel no tiene nombre y en cambio tiene nombre su destino.

Cantamos por el niño y porque todo y porque algún futuro y porque el pueblo. Cantamos porque los sobrevivientes y nuestros muertos quieren que cantemos.

Cantamos porque el grito no es bastante y no es bastante el llanto ni la bronca. Cantamos porque creemos en la gente y porque venceremos la derrota.

Cantamos porque el sol nos reconoce y porque el campo huele a primavera y porque en este tallo en aquel fruto cada pregunta tiene su respuesta.

Cantamos porque llueve sobre el surco y somos militantes de la vida y porque no podemos ni queremos dejar que la canción se haga ceniza.

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LISTA DE SIGLAS

ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social

AI-5 – Ato Institucional nº5

BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CBAS – Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais

CCJC – Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania

CLT – Consolidação das Leis do Trabalho

Cofins – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social

CNIC – Comissão Nacional de Incentivo à Cultura

CPC-UNE – Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes

CTI - Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI).

Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes S/A

FUNARTE – Fundação Nacional das Artes

FNC – Fundo Nacional de Cultura

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPTU – Imposto predial e territorial urbano

ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros

PMCMV – Programa Minha Casa, Minha Vida

MEC – Ministério da Educação

MinC – Ministério da Cultura

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

MTST – Movimento de Trabalhadores Sem Teto

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PT – Partido dos Trabalhadores

OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico

ONG – Organização não governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

PAC – Programa de Aceleramento do Crescimento

PEC – Projeto de emenda constitucional

PIS – Programa de Integração Social

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PNDH III – Plano Nacional de Direitos Humanos III

TCU – Tribunal de Contas da União

UNCTAD - Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento

VAI – Programa de Valorização de Iniciativas Culturais

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RESUMO

As manifestações artísticas com conteúdo e forma similares aos dos processos revolucionários

e/ou de resistência podem ser expressões que indicam a necessidade de democratização no

Brasil, que é a 7ª economia mundial e o 3º com maior nível de desigualdade. Com esta

inquietação, cunhamos neste estudo a tese de que existe uma sociabilidade de resistência

contemporânea que questiona a atual forma da democracia no Brasil, frente à violação (por

ausência ou precariedade) dos direitos fundamentais. Essa sociabilidade não é um mundo

paralelo, mas a vivência contra-hegemônica, cotidiana, de sujeitos coletivos que lutam pela

superação desse sistema que está destruindo a própria humanidade. Com fundamento nas

produções marxistas, realizamos a exposição da tese partindo das categorias teóricas trabalho

(categoria fundante do ser social), atividade artística e democracia. Articulando essas

categorias, analisamos aspectos contraditórios do desenvolvimento do Brasil, do processo da

democracia neste país e o debate da democratização. A análise do Relatório de Economia

Criativa (PNUD e UNCTAD) e das posições do movimento da cultura e da arte na defesa de

uma política para a cultura indicou elementos sobre a sujeição desta aos interesses do capital.

Refletindo sobre a violação de direitos, discutimos a gentrificação, que inclui a especulação

imobiliária e a mercantilização dos direitos fundamentais, inclusive utilizando-se da arte e da

cultura como mecanismos de dominação e apassivamento da população. Nesta direção,

realizamos um estudo exploratório que se fundamentou em análise bibliográfica e

documental, e pesquisa de campo junto ao Sacolão das Artes (por meio de entrevistas grupais,

individuais e observação durante as reuniões do Coletivo Gestor) onde produzimos uma

releitura do Grupo Focal (que entendemos ser uma parte da contribuição deste processo de

investigação científica). Não realizamos uma teorização sobre a estética, mas discutimos a

atividade artística como práxis fundamental para o desenvolvimento do ser social e que nos

possibilita uma forma particular de conhecimento. Guiada pela perspectiva ontológica do ser

social, entendemos que esta sociabilidade de resistência contemporânea nos fornece

elementos relevantes sobre o enfrentamento ao ethos capitalista e à barbárie posta na

sociedade.

Como fruto desta tese, apresentamos algumas pistas visando contribuir para a construção das

mediações possíveis e necessárias ao fortalecimento de uma sociabilidade que tem como

horizonte o projeto societário emancipatório.

PALAVRAS-CHAVES: sociabilidade, resistência, trabalho, atividade artística, democratização.

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RESUMEN

Las manifestaciones artísticas con contenido y forma similares a las de los procesos revolucionarios

y/o de resistencia pueden ser expresiones que indican la necesidad de la democratización en Brasil,

que es la sétima economía mundial y el tercer país con mayor nivel de desigualdad. Con esta

inquietud, acuñamos en este estudio la tesis de que existe una sociabilidad de resistencia

contemporánea que cuestiona la actual forma de democracia en Brasil, frente a la violación (por

ausencia o precariedad) de los derechos fundamentales. Esa sociabilidad no es un mundo paralelo,

es la violencia contra-hegemónica, cotidiana, de sujetos colectivos que luchan por la superación del

sistema capitalista que está destruyendo la propia humanidad. Fundamentada en las producciones

marxistas, realizamos la exposición de la tesis partiendo de las categorías teóricas: trabajo (categoría

basilar del ser social), actividad artística y democracia. Articulando esas categorías, analizamos los

aspectos contradictorios del desarrollo de Brasil, del proceso de la democracia en este país y el

debate de la democratización. El análisis del Informe de Economía Creativa (PNUD y UNCTAD) y

de las posiciones del movimiento de cultura y arte en defensa de una política para la cultura, indicó

elementos sobre la sumisión de ésta a los intereses del capital. Al reflexionar sobre la violación de

los derechos, discutimos la gentrificación, que incluye la especulación inmobiliaria y la

mercantilización de los derechos fundamentales, inclusive utilizando el arte y la cultura como

mecanismos de dominación y para fomentar la pasividad en la población. En esta dirección,

realizamos un estudio exploratorio que se fundamentó en un análisis bibliográfico y documental, y

en una pesquisa de campo junto al Sacolão das Artes (por medio de entrevistas grupales,

individuales y observación durante las reuniones del Colectivo Gestor) donde produjimos una

relectura del Grupo Focal (que entendemos como una parte de la contribución de este proceso de

investigación científica). No realizamos una teorización sobre la estética, pero discutimos la

actividad artística como praxis fundamental para el desarrollo del ser social que nos permite una

forma particular de conocimiento. Guiada por la perspectiva ontológica del ser social, entendemos

que esta sociabilidad de resistencia contemporánea nos fornece elementos relevantes sobre el

enfrentamiento al ethos capitalista y a la barbarie puesta en la sociedad.

Como fruto de esta tesis, presentamos algunas pistas esperando contribuir para la construcción de

las mediaciones posibles y necesarias al fortalecimiento de una sociabilidad que tiene como

horizonte el proyecto societario emancipador.

PALABRAS CLAVE: sociabilidad, resistencia, trabajo, actividad artística, democratización.

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ABSTRACT

The artistic expressions with content and shape similar to the revolutionaries and/or resistance

processes can be expressions that indicate the need for democratization in Brazil, which is the

7th world economy, but the 3rd with the highest level of inequality. With this concern, this

study coined the thesis that there is a contemporary sociability of resistance, which challenges

the current form of democracy in Brazil, opposite the violation (lack or insufficiency) of

fundamental rights. This sociability is not a parallel world, but a counter-hegemonic, everyday

experience of collective subjects who struggle for the overcoming of the capitalist system that

is destroying humanity itself. Based on Marxist productions, we present our thesis starting

from the theoretical categories: work (foundational category of social being), artistic activity

and democracy. Articulating these categories we analyzed the contradictory development of

Brazil, the democratic process in this country and debate aspects of democratization. The

analysis of the Creative Economy Report (PNUD and UNCTAD) and positions the movement

of cultural and art in defense of a policy for culture indicated the elements subjected to the

interests of capital. Reflecting on the violation of rights, we discuss the gentrification, which

implies real estate speculation and commercialization of fundamental rights, including the use

of art and culture as mechanisms of people domination and appeasement. With this in mind,

we conducted an exploratory study which was based on literature and document analysis and

field research in the Sacolão das Artes (through group and individual interviews and

observation during meetings of the Managing Collective), producing a reinterpretation of the

Focus Group (which we understand to be a part of the contribution of this process of scientific

investigation). We did not try to theorize about Aesthetics; instead, we discussed the artistic

activity as fundamental to the development of social being and praxis which enables us to a

particular form of knowledge. Guided by an ontological perspective of social being, we

understand that this contemporary sociability of resistance provides relevant elements on the

confronting capitalist ethos and barbarism present in society. As a result of this thesis we

present some clues we hope will contribute to the construction of the possible and necessary

mediations in building a stronger sociability whose horizon is the emancipatory project of

society.

KEY-WORDS: sociability, resistance, work, artistic activities, democratization.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÂO...................................................................................................... .. 10

1. TRABALHO E ATIVIDADE ARTÍSTICA ...................................................... 27

1.1. TRABALHO ...................................................................................................... 27

1.2. A ATIVIDADE ARTÍSTICA E A PERSPECTIVA ONTOLÓGICA ................. 34

1.3. A ATIVIDADADE ARTÍSTICA E A SOCIABILIDADE DE RESISTÊNCIA

NA ATUALIDADE ...................................................................................................

44

1.4 HISTÓRIA E ATIVIDADE ARTÍSTICA ........................................................... 49

2. LUTAS DEMOCRÁTICAS E DEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL:

TENSÕES ................................................................................................................

58

2.1. REFLEXÕES SOBRE O BRASIL: VOLTANDO ALGUNS PASSOS ............ 66

3. A PERIFERIA E A PRESSÃO DO CAPITAL ................................................ 84

3.1.POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA E RENÚNCIA FISCAL .......... 95

3.2. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA E A ECONOMIA CRIATIVA 96

3.2.1. Relatório sobre Economia Criativa e a política governamental .............. 98

3.2.2 Elementos sobre a influência da perspectiva da Economia Criativa no

Brasil ........................................................................................................................

102

3.3. A POSIÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA NA CAPITAL PAULISTA........ 109

4 SOCIABILIDADE DE RESISTÊNCIA: CONSTRUÇÕES E

CONTRADIÇÕES NO EXTREMO SUL PAULISTANO ..................................

119

4.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA DE CAMPO........ 119

6. CONCLUSÕES ............................................................................................... .. 163

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 180

ANEXOS .................................................................................................................. 186

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INTRODUÇÃO

Este é um trabalho inserido e implicado no tempo presente.

Retomamos nossos estudos acadêmicos no curso de Doutorado em torno das

questões sobre a atividade dos movimentos de luta social no contexto paulistano, mas

vinculado às pautas gerais dos trabalhadores, como os direitos humanos, o direito à terra

e ao trabalho, a violência histórica contra as nações indígenas e, no cenário menor, no

debate da categoria profissional, a do assistente social.

O retorno ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social com o

tema “Atividades artísticas e lutas democráticas na construção da sociabilidade de

resistência” decorreu de uma particular inquietação, que é permanente: a resistência e a

participação política dos trabalhadores na defesa de outra lógica societária. Este é o viés

que nos fez estudar a Política Social no trabalho de conclusão de curso na graduação em

Serviço Social, a contribuição do trabalho do assistente social para as decisões judiciais

na área da justiça da infância e da juventude no mestrado, bem como mobiliza a nossa

atuação profissional e engajamento político nos movimentos sociais.

Nossa trajetória nos levou ao tema da resistência, que é permanente em nossa

vida profissional e militante. Assim, estudá-la decorreu desse processo, e os

procedimentos teórico-metodológicos foram se construindo ao longo desse período.

Temos acompanhado a precarização das condições de trabalho para todos, o que

inclui os assistentes sociais. Focando esta categoria, existe um discurso dominante e que

se contradiz: faz-se a defesa dos direitos, mas afirmando sua condição de trabalhadores,

é comum ouvir muitos assistentes sociais justificarem sua impotência frente à violação

de direitos dos usuários de serviços onde atuam, afirmando não poderem enfrentar

profissionalmente tal realidade por sua necessidade de manutenção dos empregos, que

são suas fontes de sobrevivência. Ao mesmo tempo, nossa militância nos movimentos

sociais nos permite contato constante com muitas formas de enfrentamento.

Há alguns anos houve maior visibilidade do debate sobre a Ditadura Civil-

Militar de 64 no Brasil, evidenciando as lacunas para o avanço da democratização da

sociedade brasileira. Para este estudo, importa-nos debater a ideia de que naquele

período houve confronto até que os direitos fossem restituídos, sempre com lutas

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sociais. De fato, houve confrontos seríssimos, com perseguições, torturas,

desaparecimentos forçados e mortes, mas não necessariamente que havia uma sociedade

brasileira anterior a 64 que fosse efetivamente democrática e garantidora de direitos.

Portanto, outro vetor analítico que muito nos provoca é a crítica à forma como a

democracia brasileira vem sendo apresentada. Entendendo, com Marx, que as categorias

expressam modos de ser da realidade, temos nos questionado, ao longo das nossas

vivências, a respeito da “democracia formal".1 No decorrer dos estudos, o tema da

democracia tomou vulto na sociedade e, nesta finalização, tem sido pauta de debates

não somente no Brasil, mas no mundo.

Dentre os sujeitos que protagonizam atualmente a crítica para o aprofundamento

da democracia, chamou-nos a atenção aqueles que atuam com atividades artísticas,

muito similares às realizadas na década de 1960 e mesmo durante a Ditadura citada.

Problematizamos que a ebulição de atividades artísticas na atualidade não é uma

expressão isolada da conjuntura, mas que está compondo uma crítica à democracia

formal diante do fato de esta não estar garantindo a alteração dos altos níveis de pobreza

e de desigualdade social.

Com esses elementos, refletimos sobre a atividade artística e de resistência da

classe trabalhadora para qualificar nossas análises sobre a sociedade, entendendo que

essas questões compõem dimensões relevantes da vida social contemporânea. Deste

modo, preservadas as suas particularidades, pensamos que a aproximação reflexiva com

os jovens que desenvolvem atividades artísticas de resistência contra o status quo

poderiam iluminar nossos debates e possibilitar a construção (coletiva) de

enfrentamentos.

Ao verificar forma e conteúdo, buscamos entender essas categorias teóricas

(trabalho, atividade artística, democracia) defendendo que existe uma sociabilidade de

resistência construída cotidianamente, apesar dos limites impostos pela sociedade

capitalista. Não nos interessa o enfoque da sobrevivência, mas debater a vivência

coletiva de sujeitos que contribuem para uma sociabilidade de resistência com o seu

trabalho remunerado, e também daqueles que realizam tais atividades como fonte

secundária de recursos financeiros (embora muitos também atuem de forma militante,

tendo uma única – as vezes nenhuma, como algumas mulheres que trabalham nos

1 Expressão adotada por Ellen M. Wood (2006), que será tratada no Capítulo II.

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cuidados dos filhos e família – mas militam nestes coletivos. Maria Lúcia Silva

Barroco2 nos instigou com suas elaborações teóricas, provocando a reflexão sobre a

possibilidade de realizar atividades críticas mesmo no contexto a alienação:

[...] dada a contraditoriedade da história, a alienação coexiste com a práxis

emancipadora, evidenciando o movimento de afirmação e negação das

potencialidades e possibilidades humanas; de criação e perda relativa de

valores; de reprodução da singularidade alienada e da genericidade

emancipadora. (BARROCO, 2003, p. 36)

Nessa coexistência interessa-nos compreender as contradições históricas, em

direção à práxis emancipatória. Nossa tese é que existe uma sociabilidade de resistência

na contemporaneidade que expressa inclusive a necessidade de maior democratização

na sociedade brasileira. A resistência se apresenta de diversas formas, e no caso,

adotamos a atividade artística por ser também uma forma de práxis e tema fundamental

para a discussão da vida social.

Ao nos envolvermos nessas ações coletivas, fomos constatando uma maior

visibilidade dos grupos que realizam atividades artísticas de combate à lógica

mercantilista que abarca todas as dimensões da vida social. Ao tomar parte na fruição

dessas atividades, muitas questões e reflexões surgiram, colocando-nos a relevância de

aprofundar sua análise.3 E, na condição de trabalhadora, também nos indagávamos

como outros sujeitos produziam, a partir do trabalho artístico, expressões

questionadoras da ordem capitalista, ao mesmo tempo em que precisavam garantir sua

sobrevivência por meio das propostas governamentais de financiamento da política

cultural. Em nossa hipótese, esses sujeitos ilustram bem a práxis emancipatória apesar

dos ditames do capital e do seu largo alcance ideopolítico. Ou seja, por meio do

confronto por meio de outras linguagens favorecem os debates e ações em torno da

emancipação política tendo como horizonte a emancipação humana – que será possível

somente pela superação da sociedade capitalista.

Em 2008 pudemos acompanhar uma atividade programada, ministrada pelo

professor Celso Frederico,4 que nos provocou inúmeras questões e afinidades reflexivas.

2 Não é usual nos trabalhos acadêmicos adotar o nome completo do autor, mas optamos por assim faze-lo

na primeira ocorrência para melhor identificação, inclusive favorecendo visualizar o gênero do mesmo,

que consideramos relevante. 3 Situo a experiência particular de ter assistido a peça “A Saga do Menino Diamante”, elaborada a partir

da tese de Mauro Iasi. Vide nota 9. 4 Docente titular da Universidade de São Paulo (USP), realizada junto ao Programa de Estudos Pós-

Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP.

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Desde então (re)tomamos a coragem de perseguir uma antiga vontade de estudar

a arte, mas contextualizando-a neste momento de vida, com nossas experiências

profissionais, pessoais e políticas.

Durante a vivência universitária dedicamo-nos ao estudo dos temas artísticos,

mas que não podiam compor matéria da formação profissional, apesar de termos tido o

privilégio de cursar uma disciplina “Meios de Comunicação de Massa”,5 que nos

proporcionou elementos cruciais para analisar os atuais debates sobre o tema. A

universidade pública, ao menos naquele período, permitia-nos conciliar a vida

acadêmica com a militância no movimento estudantil, que nos favorecia escolhas.

Tivemos uma rápida passagem pelas atividades com o professor de teatro, brilhante,

mas que devido a uma questão de saúde foi afastado daquela universidade. Nossa

contribuição ateve-se essencialmente à pesquisa histórica, na falta de talento (e desejo)

para a dramaturgia. Como membro do Diretório Acadêmico,6 pudemos organizar,

juntamente com o presidente do diretório, ciclos de filmes com um projeto junto à

videoteca do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita

Filho”, UNESP. Organizamos ainda a Semana da Arte em 1993, com apresentações dos

estudantes dos três cursos. Porém, a inauguração da Semana ocorreu na mesma ocasião

em que se iniciou uma greve nas universidades públicas do Estado de São Paulo e, com

isso, nossa prioridade foi o engajamento na greve. Foi um momento muito interessante e

de possibilidades de escolhas, que certamente contribuiu para nossa formação

individual, mas de que tomamos consciência apenas com o aumento da maturidade.

Ao participar da atividade com o professor Celso Frederico pudemos adensar

estudos a partir de reflexões provocadas pelos docentes Maria Lúcia Martinelli, Maria

Lúcia Barroco e José Paulo Netto. Encorajamo-nos, assim, a buscar esse caminho de

pesquisa, que não destoa de uma caminhada como militante e que restaura a vontade de

estudar esse tema vinculado à defesa da emancipação humana.

a) Aspectos teórico-metodológicos

5 Bacharelado em Serviço Social, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP),

entre 1991-1994, Campus de Franca/SP. 6 Por questões de posicionamento, optei por militar não no Centro Acadêmico, mas no Diretório, que

agregava os três cursos existentes (História, Direito e Serviço Social), embora já militasse também no

movimento de Serviço Social.

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As aproximações intelectivas do presente trabalho foram feitas por caminhos

turbulentos e com a tentativa de, neste momento, ter um olhar acadêmico sobre a ação

dos trabalhadores da cultura que militam contra a lógica capitalista. Foi por esse

caminho que buscamos elementos políticos, mas não a priori e, desse modo,

participamos, nos dois primeiros anos, de muitas atividades específicas dos

trabalhadores e coletivos da área de cultura.

O Serviço Social tem como fundamento do seu projeto ético-político

profissional hegemônico atual o ideário da emancipação humana como horizonte da

construção de outra lógica societária, orientada pela perspectiva crítica pautada na

ontologia do ser social. Inserido nas lutas por direitos, o assistente social tem sofrido os

impactos da mercantilização da educação e os pactos com os ditames das agências

internacionais, tendo o Brasil adotado as premissas do Protocolo de Bologna, com as

práticas mais nefastas a um projeto de educação. No caso da formação especializada, há

efetivo aligeiramento do seu processo, com ênfase instrumental voltada aos interesses

do mercado. O Serviço Social tem como maior empregador o setor público e suas

“parcerias” com organizações sociais, não governamentais, que são, na prática,

terceirizações de serviços, que para diminuir custos precariza os direitos do trabalhador

como nunca visto. O Estado, cada vez mais conduzido pelos interesses do capital, ao

consolidar políticas sociais com tais determinações, passa a definir as ações dos mais

diversos trabalhadores das profissões especializadas e/ou regulamentadas. No caso do

Serviço Social, avaliamos que o impacto dessa tendência recai sobre a atuação

burocratizada e instrumental dos assistentes sociais, que ficam à mercê das definições

das políticas governamentais (e nem sempre de Estado), e, com sua baixa organização

sindical, acabam por ser “eficientes” para tais propósitos. A ausência de uma Política

para a Cultura (como veremos no Capítulo III) parece ser um elemento importante para

avaliarmos a tendência do Serviço Social contemporâneo de ser demandado para

cumprir ações e atividades dos programas de governo, de forma cada vez mais

pragmática, atendendo às regulações dos Ministérios e outras esferas do executivo e do

judiciário onde atuam os profissionais. Evidencia-se que o Serviço Social é pressionado

para responder de forma pragmática nas atividades profissionais, perdendo a densidade

do projeto ético-político e a direção voltada para a construção coletiva de outra lógica

societária.

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Partimos do estudo sobre a sociabilidade, a arte de resistência em tempos

democráticos, e chegamos a um olhar mais centrado. Permaneceu como centralidade a

sociabilidade de resistência. Entendemos ser profícuo adensar as reflexões e alianças

estratégicas para a defesa de direitos humanos na perspectiva crítica, apropriando-nos

do conhecimento de uma forma de sociabilidade, crítica e de resistência à sociedade

capitalista, e não apenas de sobrevivência dos sujeitos. Não apresentamos, portanto, um

estudo estético ou a respeito das particularidades das diversas expressões artísticas.

Visamos, antes, estudar a atividade artística como uma expressão da sociabilidade de

resistência ao capitalismo e seu ethos, oferecendo elementos para a defesa de uma

cultura de democratização.

Nas diversas formas de registro (livros, documentários, filmes, etc.) articulando

os temas arte e política, é comum encontrarmos referências ao contexto de

enfrentamento das ditaduras. O mesmo ocorre no Brasil e na literatura que retrata o

tema: ao se referir à atividade artística realizada em resistência política, em geral está-se

tratando do tema em torno de questionamentos a diferentes expressões do autoritarismo.

O tema vem sempre carregado das bandeiras de liberdade: de expressão, do corpo, de

sobrevivência, de circulação, etc. Embora o uso do termo resistência seja associado aos

regimes ditatoriais, vem se tornando usual a utilização desse termo no contexto

democrático, como o brasileiro.

Não se trata, obviamente, de coincidência: entendemos que nesta fase do

capitalismo, em que as mais diversas organizações e nações reiteram as denúncias sobre

a destruição do planeta, coloca-se como necessidade a efetivação de mudanças radicais

e urgentes. Com a derrocada do socialismo real e o discurso do fim da história, vivemos

processos de desmobilização e de ofensiva neoconservadora, orientadas pelo ideário

neoliberal. Na dinâmica que é contraditória temos também o germe da reorganização,

exigindo balanços críticos sobre as estratégias dos trabalhadores.

É possível problematizar que o Serviço Social tem ainda poucas elaborações

teóricas sobre a atividade artística na perspectiva do projeto ético-político da profissão,

que vem se consolidando nos últimos 30 anos.7

7 A título de registro, no XIV Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (realizado em outubro de 2013)

tomamos contato com a pesquisa orientada pela Doutora Vera Núbia dos Santos, a qual sistematizou com

suas orientandas de graduação um levantamento quantitativo sobre as apresentações com o tema da a arte

em eventos nacionais de Serviço Social entre 2000 e 2010. Não foi possível, contudo, abarcar o referido

artigo que coincidiu com a finalização do nosso estudo.

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Assim, entendemos que

[...] só existe uma ciência unitária, a ciência da história, que concebe a

evolução da natureza, da sociedade, do pensamento, etc., como um processo

histórico único, procurando descobrir as leis gerais e as leis particulares (isto

é, aquelas que são específicas de determinados períodos) desse processo.

(LUKÁCS, in MARX, 2010, p.11).

Para nossa reflexão, buscamos levantar indicadores para nortear nossa reflexão,

ainda verificando o caminho que construiríamos em relação ao Serviço Social.

Realizamos inicialmente a revisão documental abrangendo o banco de dados da

Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pesquisa – CAPES, identificando, a partir de

palavras-chaves, as ementas das produções de mestrado e doutorado tendo como área de

conhecimento o de Serviço Social. Desse levantamento realizado no banco de dados até

05 de novembro de 2011 identificamos:

Palavras-chaves Ética e Serviço Social: 3 dissertações (UFRN, UFPA, PUC-SP)

e 1 tese (PUC-SP).

Palavras-chaves social, assistente, cultura: 1 dissertação (PUC-SP) e 1 tese

(PUC-SP). Destas, avaliamos que a tese de José Paulo Netto traz elementos para

o debate proposto.

Palavras-chaves Serviço Social, competência, cultura: 4 dissertações (UFPE,

PUC-SP, UFRJ, UERJ)

Palavras-chaves Serviço, assistente, Arte: 2 dissertações (UNESP, PUC-RJ) e 1

tese (UNESP). Nenhuma delas apresenta afinidades de estudos com nossa tese.

Palavras-chaves (expressão exata) Serviço Social Arte: 2 dissertações (PUC-RS

e PUC-RJ) – sem nenhuma afinidade de estudos. 1 tese (PUC-SP) de Vera Núbia

Santos, com afinidades de pesquisa.

Palavra-chaves artístico, serviço social: nenhuma ocorrência

Palavras-chaves democratização, arte: nenhuma ocorrência

Palavra-chave Arte, apenas na área de Serviço Social: 2 teses (PUC-SP), com

nova ocorrência de Vera Núbia Santos, e de Osmar Pancera, que tem como

enfoque a socialização da cultura e a educação popular.8

8 Em agosto de 2013 acessamos o site da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificando alguns

Trabalhos de Conclusão de Curso de Graduação em Serviço Social com temas e ementários com

afinidades de pesquisa, observando como orientadores Doutora Mavi Pacheco, Doutor Marcelo Braz

Moraes dos Reis e Doutor Luis Eduardo Acosta Acosta. Embora de significativo interesse, não buscamos

a leitura do material, dado nosso projeto de pesquisa. Contudo, apontamos este dado que consideramos

importante ao observarmos que os profissionais graduados e os pós-graduandos terão produções

vinculadas à graduação na área de Serviço Social.

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A título de uma nova aproximação, lançadas duplas de palavras-chaves arte –

Serviço Social; arte – resistência; resistência – Serviço Social, com última pesquisa em

outubro de 2013 no portal Domínio Público vinculado à CAPES, não foi obtido nenhum

resultado para teses e dissertações.

O levantamento no portal da CAPES ensejou um olhar sobre a pesquisa

acadêmica em Serviço Social, no nível de mestrado e doutorado, embora o estado da

arte neste campo não seja o objeto deste estudo. São interfaces que consideramos

necessárias, tendo adotado, portanto, em dois períodos, abordagens as quais trouxeram

elementos para a problematização em curso. Realizamos outros exercícios exploratórios

dos dados do Portal Domínio Público e observamos ausência de autores que

conhecemos, indicando que nem todos os dados de pesquisas realizadas, principalmente

com verba pública, estão lançados no Banco de Teses.

Neste processo, realizamos ainda a leitura crítica da análise sobre a efetivação

das Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço

Social (ABEPSS), a partir da pesquisa realizada sobre o tema em âmbito nacional por

essa mesma entidade, em 2008.9 Realizamos a leitura do vasto estudo, com a leitura do

relatório final, organizado por eixos (Fundamentos Históricos, Teóricos e

Metodológicos do Serviço Social; Trabalho e Serviço Social; Pesquisa) e por regiões

conforme a divisão da ABEPSS.10 Analisamos todos os eixos e toda a bibliografia,

podendo-se observar a indicação nas referências bibliográficas que abordam a questão

da arte em antropologia e em sociologia, mas não se evidenciando um enfoque

específico a respeito de arte e cultura. Identificamos algumas obras que abordam em

algum momento as questões sobre arte, cultura, resistência (como o clássico Ditadura e

Serviço Social, de Netto), não sendo possível, entretanto, identificar se tais conteúdos

ou correlatos são abordados especificamente. Apesar do longo tempo despendido nessa

A título de ilustração, as teses de doutorado de Janaína Bilate Martins, sobre o Teatro do Oprimido, e de

Isabel Cristina Chaves, sobre Arte, ambas sob orientação de Maria Lúcia Silva Barroco, não foram aqui

elencados. De Martins, por não haver cruzamento das palavras chaves e de Chaves por ainda não contar

no Banco de Teses pesquisado. 9 ABEPSS. Relatório final da Pesquisa Avaliativa da implementação das diretrizes curriculares do curso

de Serviço Social. São Luís, out/2008. Digitalizado. 10 A região SUL I agrega os Estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul; a Região SUL II,

Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul; a Região LESTE, reunindo Rio de Janeiro, Minas Gerais e

Espírito Santo; Norte, Nordeste e Centro-Oeste agregam os Estados conforme a divisão administrativa

federal.

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análise, o resultado não nos possibilitou alcançar uma conclusão segura e, por isso,

deixamos de mencionar no resultado deste trabalho.11

Avaliamos, frente aos exercícios realizados, que os dados obtidos no

levantamento junto ao Portal Domínio Público e o referido estudo do Relatório da

ABEPSS sugerem ser útil que os Núcleos e Grupos de pesquisa fomentem discussões

favorecendo a aproximação das pesquisas realizadas e em andamento em relação à

teorização nestes temas. Além disso, participamos com otimismo, no último Congresso

Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), numa sala de comunicações orais onde foram

apresentados trabalhos no eixo de Educação, Comunicação e Cultura/Ênfase em

Cultura. Naquela oportunidade, analisamos que os debates sobre os fundamentos

teórico-metodológicos em relação à arte aparecem com menor incidência no CBAS,

onde sabemos haver maior número de apresentações relativas a experiências

profissionais12.

Este ângulo nos direcionou para um aprofundamento dos estudos da ontologia

do ser social, caminho que acreditamos possibilitar avançar no entendimento das

contradições e das alternativas em direção à emancipação humana. Assim, esta

perspectiva orientou nossa investigação científica na busca de elementos para uma

melhor compreensão sobre o gênero humano e, para isso, apoiamo-nos, em grande

parte, em estudiosos marxistas.13

Inicialmente identificamos como possíveis sujeitos para esta pesquisa os

coletivos que adotam o Teatro de Grupo, em razão de suas particularidades de ação

coletiva e não por adotarmos o teatro como um dos elementos de estudo. Contudo, foi

necessário e fundamental realizar leituras sobre as expressões artísticas em geral,

aproximando-nos do debate de “forma e conteúdo” tão caro a muitos dos trabalhadores

da área e estudiosos desses temas. Fizemos leituras sobre a mercantilização e

privatização da cultura, verificando aspectos particulares na Europa, Estados Unidos14 e

11 Conforme as normas vigentes em relação à pesquisa, os documentos gerados em tal procedimento serão

mantidos sob os cuidados da pesquisadora pelo período de cinco anos, obrigatoriamente. 12 Nesta referida sala estavam presentes Martins e Santos, citadas na nota 15. 13 Entre 2012 e 2013 foram publicadas obras de Lukács em língua portuguesa no Brasil, quando já

havíamos avançado nos estudos a partir dos rigorosos estudiosos brasileiros. Tivemos acesso a

publicações de Lukács em espanhol e em italiano, que não são aqui mencionadas. 14 Charles, Christophe. A gênese da Sociedade do Espetáculo. Teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena.

Tradução Hildegard Feist. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. Trata-se de um livro muito

interessante, mas que ultrapassava o foco de nossos estudos.

Wu, Chin-Tao. Privatização da Cultura: a intervenção corporativa nas artes desde os anos 80. São Paulo,

Boitempo-Sesc/SP, 2006. Estudo minucioso da autora sobre o financiamento público das artes nos EUA e

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Brasil, a fim de nos aproximarmos dessas abordagens. Realizamos um

acompanhamento exploratório de algumas atividades culturais na cidade de São Paulo e

identificamos como sujeitos os espaços coletivos “Sacolão das Artes” e “Ventos do

Leste”.

Assim, diante do universo de possibilidades desses estudos (que exigiram

particularmente desta pesquisadora um contato inicial com muitos dos temas

estudados),15 aproximamo-nos do coletivo Dolores Mecatrônica e Artes,16 que trouxe

elementos que nos fizeram percorrer alguns espaços e atividades relacionadas ao Teatro

de Grupo. Participamos, por exemplo, da VI Mostra Latino-americana de Teatro de

Grupo, em 2011, onde ocorreram importantes debates sobre a resistência cultural

indígena, a identidade latino-americana e os regimes autoritários. No mesmo ano,

participamos do Ciclo de Debates da Companhia do Latão – Para uma história do Teatro

Político –, onde foram debatidos os seguintes temas:17 o teatro político na União

Soviética, o teatro político na República de Weimar, o teatro político nos Estados

Unidos e o teatro político na América Latina. A abordagem priorizou a análise histórica,

abrangendo questões da política, do Estado e da atividade artística e teatral como

mediação dessas lutas.

Inicialmente, buscamos aproximações ao tema em torno do Teatro de Grupo, por

identificar que haveria nessa expressão uma saturação mais complexa dos elementos

que poderiam nos auxiliar nesses estudos. Os elementos que identificávamos eram

Grã-Bretanha, parecendo-nos uma produção importante para o debate sobre a Política Cultural, o Estado e

a privatização globalizada da Cultura. 15 Além dos estudos realizados nas aulas e atividades, pudemos acompanhar algumas atividades dos

grupos artísticos engajados: produções artísticas, estudos, palestras, manifestações, publicações, etc.

Desde a apresentação do pré-projeto em 2009 até o primeiro trimestre de 2014 verificamos um grande

volume de atividades locais, nacionais e internacionais vinculadas ao que estamos denominando arte

engajada. Nesse contexto, duas editoras estão com publicações fundamentais para o debate da Arte no

campo marxista. São elas a Boitempo e a Expressão Popular, sendo que esta iniciou em 2010 a coleção

“Arte e Sociedade”, que pretende reeditar e editar publicações fundamentais para esse debate,

possibilitando o acesso amplo por meio de uma política de preços acessíveis aos trabalhadores. 16 Juntamente com outros coletivos que estão instalados no Centro Desportivo Comunitário Ventos do

Leste, num bairro da Zona Leste paulistana. A aproximação com o coletivo Dolores deu-se em função de

nossa participação no ano de 2009 na Comissão Organizadora do Seminário Nacional “30 anos do

Congresso da Virada”, que comemorou esse marco de afirmação do projeto hegemônico do Serviço

Social na perspectiva crítica e de ruptura com o conservadorismo. Dentre os grupos artísticos consultados,

esse coletivo, juntamente com o grupo Lona Preta e o Nhocuné Soul, realizou atividades culturais no

referido evento, ocorrido em outubro de 2009, no Auditório do Ginásio do Anhembi, na cidade de São

Paulo. Esses contatos foram decisivos para apresentarmos nosso projeto de pesquisa, ora concluído, com

as alterações naturais ao processo de investigação acadêmica. 17 Temas abordados respectivamente por: Iná Camargo Costa (docente aposentada da USP) e Valério

Arcary (USP); Heinz Dieter Heidemann e Sérgio de Carvalho; Maria Silvia Betti (USP) e Daniel Puglia

(USP) e José Arbex (Jornalismo, PUC-SP) e Tin Urbinatti.

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desde as concepções ético-políticas – em torno de princípios como liberdade,

solidariedade, coletividade, igualdade – até as metodologias de intervenção, como a

produção coletiva, o rompimento com hierarquias, o questionamento da ordem

preestabelecida e posição contrária à mercantilização das atividades artísticas. Como

unificador desses elementos importavam-nos as experiências que, ao se realizarem,

provocam novos modos de sociabilidade, assim como o questionamento radical da

lógica capitalista que torna tudo mercadoria.

Numa abordagem também histórica e crítica, o coletivo QUEM realizou o Ciclo

de debates: Ditadura, Democracia e Resistência para Quem, em 2011, composto de

quatro ciclos. Em função das atividades, optamos pelo encontro que discutiu “Arte

como Guerrilha?”, que na apresentação afirmava: “A instauração de regimes de exceção

na América Latina provocou uma série de manifestações artísticas de oposição às

ditaduras e de crítica à chamada ‘arte de museu’, considerada ideologicamente

comprometida com os interesses das classes dominantes. A proposta era fazer a arte

circular, invadindo espaços, passando de mão em mão, subvertendo os padrões estéticos

e políticos consoantes à ordem estabelecida”.18

Essas atividades propiciaram um aprofundamento de nossa crítica aos limites da

democracia que vivemos. A discussão do passado mais remoto, como no contexto da

Revolução Russa, da resistência operária-marxista nos Estados Unidos, da luta dos

povos indígenas, e das atuais críticas ao atraso brasileiro em relação à última Ditadura

(64) e às fragilidades da Comissão Nacional da Verdade (CNV), propiciou qualificar

nossa posição quanto à existência de uma democracia formal, mas que não se viabiliza

pelas próprias lacunas no processo de democratização e pelas particularidades da

história brasileira.

Se por um lado temos a herança cultural das gerações que fizeram a luta contra a

última Ditadura Civil-Militar, há lacunas sobre essa memória, principalmente para se

realizar um profundo balanço crítico sobre a ausência de transição democrática efetiva:

as estruturas do Estado, principalmente nos aparelhos de repressão (Polícia Civil,

Polícia Militar, Forças Armadas) se mantêm (conforme estudos de Zaberucha, 2011), e

se metamorfoseiam em políticas sociais, por exemplo, como as modalidades de

Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nos morros e favelas do Rio de Janeiro e o

18 Extraído do material de divulgação do evento.

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armamento indiscriminado da segurança privada e da Guarda Civil (a quem caberia

apenas preservar o patrimônio público).

Em função do III Plano Nacional de Direitos Humanos (III PNDH), aprovado

em 2008, na 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ocorreram muitos

questionamentos de segmentos religiosos mais conservadores, dos latifundiários, das

Forças Armadas e de grupos empresariais. Diante desses grupos, a Presidência da

República recuou e alterou o III PNDH; proporcionalmente inversa foi a reação

governamental às reivindicações dos grupos populares e científicos diante de pautas

nacionais como o patrimônio natural e o desenvolvimento econômico predatório e

opressor. O III PNDH foi alterado e instituído pelo Decreto nº 7.037 de 21 de dezembro

de 2009. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi organizada pelo governo, sem

nenhuma escuta aos sobreviventes e familiares de mortos e desaparecidos políticos da

Ditadura de 64. Nos últimos anos, contudo, esses temas foram fortemente retomados,

posto que o Brasil é um dos poucos que não fez seu “acerto de contas” com o passado

ditatorial. Nesse confronto, os membros da CNV potencializaram a criação das

Comissões nos mais diversos espaços: Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais,

universidades públicas. Esse processo teve repercussão pública, ainda que sem a

dimensão necessária (inclusive considerando que as grandes empresas de mídia, em

particular as redes de televisão, foram criadas pelas concessões públicas do período da

referida ditadura). O trabalho tem sido acompanhado pelo Ministério Público Federal,

que em algumas situações considera os documentos gerados como fonte para mover

representações judiciais pertinentes.

Essa conjuntura trouxe elementos importantes para o estudo proposto, ao mesmo

tempo em que reorientou o recorte de análise, procedimento científico necessário para o

aprofundamento das particularidades do tema.

Nesse processo, realizamos ao mesmo tempo os estudos bibliográficos centrados

nos autores marxistas, bem como análises conjunturais a partir das reflexões dos

trabalhadores, pesquisadores militantes e da política governamental sobre Cultura. Essa

questão nos exigiu discutir a Economia Criativa e algumas interferências que parecem

incomodar somente alguns grupos mais críticos a sua dinâmica.

Constatamos que coletivos que atuam com a ocupação de espaços públicos e

com autogestão expressam parte dessa crítica sobre a insuficiência da democracia

brasileira. Tais coletivos ocuparam espaços públicos, contra a vontade da gestão

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pública, e atualmente agregam vários grupos, inclusive de Teatro de Grupo, mas

também de ações cotidianas, como atividades pedagógicas com crianças, atendimento à

comunidade (grupo de mulheres, grupo de mães, etc.), com a particularidade de não se

identificarem com as organizações não governamentais (ONGs) típicas. Sua

característica particular nos parece, neste momento, ser o fato de terem ocupado o

espaço público reivindicando-o como tal e que sirva aos propósitos da comunidade

local. Contudo, os vários grupos também convivem com tensões e dificuldades,

compostos por indivíduos com diferentes demandas de sobrevivência e questões

ideológicas que os movem. Assim, optamos por considerar para nossos estudos o

coletivo “Sacolão das Artes”, mas como sujeito com o qual dialogamos, não como

objeto de estudo.

Com a participação nos movimentos sociais observamos que na Zona Sul

paulistana havia outro elemento de intensa força política: a luta pelo direito à moradia e

contra a especulação imobiliária. Nesta mesma direção, em 2012 ocorreu o Tribunal

Popular da Terra,19 que reuniu 700 pessoas de diversas regiões do país e da América

Latina, com transmissão via Internet e rádio para dezesseis países. Esta grandiosa

atividade aconteceu no Sacolão das Artes, onde tentou-se efetivar os princípios

defendidos pelo seu Coletivo, juntamente com os demais sujeitos que organizaram a

atividade, contando com apoiadores institucionais e individuais. Portanto, a interface

com o tema da terra e da moradia não foi uma escolha aleatória, nem compunha

inicialmente o projeto de pesquisa, mas foi resultado do movimento real que vem se

processando pelas lutas sociais. Participamos (muito singelamente) da organização de

tal atividade como militantes do Tribunal Popular, tendo contato com as diferentes

formas de luta (das institucionais às de ação direta como ocupações), com nações

indígenas, líderes zapatistas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas, inclusive alguns

que sofrem ações judiciais em seus países de origem. O Tribunal da Terra foi realizada

com autogestão em todas as atividades, com ciranda-infantil permanente possibilitando

o convívio de crianças em todos os ambientes, favorecendo a partilha no cuidado delas

tanto entre os pais presentes, quando dos demais adultos. A alimentação foi organizada

coletivamente, com doação de alimentos dos assentamentos e ocupações do Movimento

dos Trabalhadores Sem Terra, sendo priorizados os que não tinham recursos para arcar

com custos das refeições – mas praticamente todos puderam se alimentar no local.

19 Articulado pelas organizações que compõem o Tribunal Popular: o Estado no Banco dos Réus, que se

organiza desde 2008, e do qual esta pesquisadora faz parte.

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Todos os momentos possibilitaram a expressão cultural por meio de músicas, danças,

artesanatos, permeado por um ethos de respeito, solidariedade e aprendizagem.

Com esses elementos, iniciamos um diálogo com algumas lideranças do Sacolão

das Artes para as questões deste estudo. Entre outubro e dezembro de 2013

frequentamos as reuniões do Coletivo Gestor do Sacolão das Artes, que desde 2007 tem

administrado o espaço público ocupado por um conjunto de grupos, no extremo sul

periférico da capital paulista.

Neste percurso metodológico as concepções existentes dentre os sujeitos que

constroem o Sacolão das Artes sobre a sua ação coletiva possibilitaram analisar uma

experiência em andamento do que chamamos de uma sociabilidade de resistência.

Tomamos como material para a reflexão o conteúdo apresentado nas referidas reuniões,

as posições discursivas dos sujeitos coletivos durante as atividades, as manifestações

verbais ou por meio de documentos próprios e/ou registros e demais documentos

reunidos ao longo destes seis anos.

Após sistematizarmos nossa análise, realizamos um grupo focal visando debater

essa análise, submetendo-a aos sujeitos que acompanham e fazem parte do Sacolão das

Artes. Tal procedimento foi inspirado no livro de Dênis de Moraes que realizou sua

análise sobre a militância política de 64 e discutiu seu conteúdo com os próprios

sujeitos. Entendemos que submeter nossas análises primeiramente aos sujeitos pode ser

um desafio ainda maior quanto ao alcance da reflexão teórica comprometida com a luta

por uma sociedade que recuse a reificação e a mercantilização da vida. Sabemos que a

reflexão teórica acompanha o movimento da vida e, por isso, sempre contínua, mas

consideramos que este momento de partilha e construção coletiva foi significativo para

todos os envolvidos (participantes e pesquisadora), bem como foi uma mediação

importante na qual asseveramos nossa posição ética.

Neste sentido, esta tese tem como intenção contribuir para o debate do Serviço

Social, mas de forma incidental, não o adotando como foco de pesquisa. Porém, cabe-

nos algumas observações para reafirmar a relevância do debate da democratização no

campo da profissão, bem como da apropriação das várias dimensões da vida social, e

aqui pautamos a atividade artística.

b) Modo de exposição

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Diante da abordagem teórico-metodológica adotada, apresentaremos a tese em

quatro capítulos.

No primeiro capítulo abordamos a categoria trabalho, partindo da compreensão

de que é a categoria fundante do ser social. Buscamos elementos que nos propiciassem

articular esta análise, visando iluminar nossos estudos sobre o trabalho e a atividade

artística, que são formas de práxis. Partindo da concepção do trabalho como fundante do

ser social, discutimos sobre a sua transformação em trabalho alienado. Importou-nos

refletir sobre o desenvolvimento do ser humano e a dificuldade para sua plena

realização na sociedade capitalista. Discutimos nesse capítulo a atividade artística na

perspectiva da Ontologia do Ser Social, por meio das análises de leitores de Marx e de

Lukács, e também com a produção original desses intelectuais – embora com menor

incidência. Tais análises são adensadas ao tentarmos compreender a realidade atual,

inclusive dialogando com os sujeitos que se apresentam como “trabalhadores da arte ou

trabalhadores da cultura” e que, inseridos no Sacolão das Artes, defendem o “fazer

coletivo”.

No segundo capítulo buscamos elementos para a crítica adotando a concepção de

“democracia formal”, apoiando-nos especialmente em autores marxistas que se

dedicaram aos estudos e à militância contra a lógica capitalista. Se inicialmente, em

2009, ano em que comemoramos o marco de 30 anos do projeto ético-político

profissional que defendemos na perspectiva da construção coletiva de uma nova ordem

societária emancipatória, a nossa preocupação partia do incômodo diante dos discursos

derrotistas da categoria, neste ano de 2014, temos os mais diversos sujeitos discutindo a

insuficiência da democracia brasileira.20

No terceiro capítulo abordamos a lógica contraditória do capital, que expulsa a

classe trabalhadora mais precarizada para as regiões territorialmente distantes do centro,

oprimidas pela pressão da especulação imobiliária, ao mesmo tempo em que vem

realizando a chamada gentrificação21 e “investindo” em arte e cultura naquelas regiões.

Somam-se neste capítulo, portanto, os debates da questão urbana, com uma intensa

20 Ao concluirmos esta tese vivenciamos a Copa mundial que intensificou a criminalização da

manifestação política e da livre expressão. Reunimos neste capítulo as reflexões acerca das tensões

democráticas, apontando elementos que, em tese, podem iluminar as propostas profissionais e políticas

para uma democratização como processo. 21 No Capítulo 3 damos o devido tratamento a este termo.

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movimentação em torno do financiamento e da especulação imobiliária e a decisiva

institucionalização da Economia Criativa. Este é um bom exemplo do confronto entre a

apropriação privada da riqueza socialmente produzida. Como explica a teoria marxista,

em todos os complexos ocorre a interação entre opostos. Neste capítulo, somamos

elementos ao debate da democracia formal, a adesão do Estado brasileiro à tendência

internacional da Economia Criativa, que tem definido órgãos governamentais na esfera

federal, que se espraiam para as esferas estadual e municipal, mas sem criar uma

política de Estado para a cultura22. Este capítulo, portanto, é o contexto no qual

debatemos a identidade dos sujeitos que realizam sua ação profissional e/ou militante no

campo da cultura. Adotamos no presente trabalho a expressão trabalhadores da cultura e

trabalhadores da arte, de acordo com a autodefinição dos sujeitos com os quais

mantivemos diálogo e frente à abordagem teórica adotada. Esta definição nos

possibilitou avançar na compreensão do seu engajamento em uma atividade artística que

tem em seu conteúdo um questionamento à sociedade, contribuindo para a elaboração

estética que nos possibilita a suspensão do cotidiano imediato.

No quarto capítulo trouxemos elementos a partir dos discursos, vivências e

percepções de sujeitos que atuam no Sacolão das Artes, que provocam nosso otimismo

da vontade, como diz Gramsci, para enfrentar a realidade por dentro das contradições

existentes. Nele apresentamos uma forma de abordagem dos sujeitos, mas evitando ao

máximo torná-los objetos passivos de nossa interpretação. No capítulo explicamos

como se deu esse processo por meio de aproximações e diálogos. Parte dos sujeitos

debateram com lucidez e crítica as contradições da realidade (inclusive as deles), com

crítica ao capitalismo, à democracia formal e ao Estado burguês. Podemos afirmar que

encontramos sujeitos coletivos que contribuem para a sociabilidade de resistência, no

olho do furacão.

22 Em 2013 foi realizada a III Conferência Nacional de Cultura, tendo como pauta central a discussão do

Sistema Nacional de Cultura. Constatamos, entretanto, que a mobilização ainda se restringe aos artistas,

órgãos governamentais e entidades de artistas ou de produtores artísticos. Há inclusive muitos desses

trabalhadores que se recusam a participar da Conferência, mantendo um posicionamento crítico em

relação a todo o seu processo. Ou seja, ainda não se trata de um debate que possa se afirmar como de

“controle social”. Ainda que haja muitas questões em relação aos mecanismos de participação popular na

deliberação das políticas sociais, há que se considerar que no caso da Política Cultural há pouca

mobilização. Portanto, não nos ativemos a tal Conferência, tanto pelo momento cronológico em relação

aos nossos estudos, quanto por este mecanismo não ser foco dos debates que realizamos sobre a

democratização.

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26

Em algumas passagens do trabalho, trouxemos imagens de divulgação utilizadas

pelos sujeitos fazedores do Sacolão, que inclusive expressam parte de sua atividade

artística, de resistência e de formação política.

Com o propósito de expor nossos estudos para apreensão do movimento do real,

tentamos evidenciar que as atividades realizadas estiveram todas relacionadas com a

direção desta tese sobre a sociabilidade de resistência: desde o debate específico de

Direitos Humanos, até atividades acadêmicas ou similares voltadas à arte e à política.

Talvez tenhamos omitido passagens relevantes, diante do volume (e riqueza) de material

obtido, mas inclusive buscamos uma apresentação mais sintética, como exercício

próprio de elaboração teórica para uma tese de doutoramento.

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CAPÍTULO 1

TRABALHO E ATIVIDADE ARTÍSTICA

O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social,

política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o

seu ser, é o seu ser social que determina a sua consciência. (MARX, 2010, p.

97)

Para realizarmos o debate sobre o que denominamos sociabilidade de resistência,

é necessário tratarmos da categoria fundante do ser social: o trabalho. Partimos desse

patamar para também situarmos que tanto o trabalho, como a arte e a ciência são formas

de práxis. Num período em que se nega a centralidade do trabalho, fixando o olhar no

singular, negando-se a totalidade, este não é um debate supérfluo, ao contrário: é uma

exigência para aprofundarmos nosso olhar crítico frente a uma sociedade que em nome

da liberdade avilta o ser humano em todas as suas dimensões; que em nome da

democracia realiza arbitrariedades e opressões. Retomar o debate sobre o trabalho e a

arte é reafirmar nossa defesa da socialização da riqueza socialmente produzida pelo

gênero humano. Nesse sentido, situar o debate da arte e do trabalho é afirmar a

construção histórica e combater a negação da história e a desumanização. Interessa-nos,

no contexto da sociabilidade burguesa, afirmar a existência de uma expressão coletiva

que estamos denominando sociabilidade de resistência.

1.1.TRABALHO

Fonte: Sacolão das Artes, divulgação.

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Marx problematiza no conjunto de suas obras que a sociabilidade é fundada pelo

trabalho e que outras formas de práxis, como a arte e a ciência, compõem e propiciam o

movimento da história. Dessa feita, recorremos à Teoria Social de Marx para

apreendermos as contradições e determinações movidas e moventes da História. O

trabalho é uma condição de existência em qualquer sociedade humana, sendo que por

meio dele o homem responde às suas necessidades, tendo ele também a função de

mediatizar o intercâmbio com a natureza.

O primeiro impulso para o pôr teleológico provém do impulso de satisfazer

uma necessidade. No entanto, esse é um traço comum à vida tanto humana

como animal. Os caminhos começam a divergir quando entre necessidade e

satisfação se insere o trabalho, o pôr teleológico. (LUKÁCS, 2013, p. 78)

É, portanto, por meio do trabalho que ocorre o salto ontológico do ser natural

para o ser social, e é essa concepção que vai demonstrar que o homem é efetivamente

histórico e social. Ao tomar sua análise a partir do trabalho, Marx demonstrou que

existem dois elementos cruciais: a teleologia e a causalidade. Conforme explica Lukács:

[…] enquanto a causalidade é um princípio de automovimento que repousa

sobre si próprio e mantém esse caráter mesmo quando uma cadeia causal

tenha o seu ponto de partida num ato de consciência, a teleologia, em sua

essência, é uma categoria posta: todo processo teleológico implica o pôr de

um fim e, portanto, numa consciência que põe fins. Pôr, neste contexto, não

significa, portanto, um mero elevar-à-causalidade; ao contrário, aqui, com o

ato de pôr, a consciência dá início a um processo real, exatamente ao processo

teleológico. (LUKÁCS, 2013, p. 48)

Essa análise implica dizer que se há um ato de pôr, há um autor consciente. Toda

a natureza apenas se reproduz, donde “[...] uma ininterrupta transformação de suas

respectivas formas concretas, um contínuo ser-outro” (2013, p. 61); somente com o

homem atuando a partir do existente na natureza, dominando suas propriedades e seu

funcionamento produz o novo. Diz Lukács (2013, p. 56): “Natureza e trabalho, meio e

fim chegam, desse modo, a algo que é em si homogêneo: o processo de trabalho e, ao

final, o produto do trabalho”.

Marx demonstra-nos que é nesse processo de respostas às necessidades, no intercâmbio

com a natureza, consigo mesmo e com outros homens que o ser social pode se

desenvolver. Aqui cabe ponderar que não adotamos a perspectiva do marxismo vulgar

que elege o economicismo para explicar a sociedade capitalista. Explica-nos Friedrich

Engels a respeito das distorções que são feitas pelo marxismo vulgar, que ao interpretar

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a prioridade do fator econômico como único determinante, desconstrói a monumental

reflexão sobre a sociedade burguesa:

[...] De acordo com a concepção materialista da história, o elemento

determinante final na história é a produção e a reprodução da vida real. Mais

do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém

distorce isso afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele

transforma este propósito em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia.

A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que

se erguem sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados,

as Constituições que, depois de ganha uma batalha, a classe triunfante redige

etc., as formas jurídicas e inclusive o reflexo de todas essas lutas reais nas

cabeças dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias

religiosas e seu desenvolvimento ulterior até a conversão num sistemas de

dogmas – exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e

determinam, em muitos casos predominantemente a sua forma. Aqui está

presente a interação de todos estes fatores, na qual, através de toda a multidão

infinita de casualidades [...] acaba sempre por impor-se como necessidade o

movimento econômico. Se não fosse assim, aplicar a teoria a uma época

histórica qualquer seria mais fácil do que resolver uma simples equação de

primeiro grau. (ENGELS, 2010, p. 103-104)

Antes de avançarmos, cabe aqui uma ponderação quanto aos limites do estudo

que estamos expondo: é importante asseverar nos termos de Marx que, ao adotarmos

aqui a Teoria Social do comunista alemão como guia de análise23 deste referencial

teórico, ao mesmo tempo nos debruçamos sobre a crítica à forma que a frágil

democracia que vem se desenvolvendo no Brasil e voltamos um olhar intencional para a

resistência dos trabalhadores. Feita essa ressalva, passamos a observar algumas

passagens do percurso de Marx.

Na sua trajetória, Marx interessou-se pela arte desde o início da vida

universitária, quando estudou também direito e filosofia. Mas, em 1843 exila-se em

Paris, e deixaria esses estudos devido à sua militância política e jornalística.

Assim, foi a partir da teoria marxista que se explicitou o desenvolvimento

humano tomando a análise do trabalho, com o domínio do homem sobre a natureza, da

observação das relações entre homem e a natureza, e dele com os demais homens e

consigo mesmo. Nesse sentido, o pôr teleológico é a decisão da consciência – embora

apenas um dos elementos determinantes, mas fundamental para a direção em relação a

alternativas existentes ou a serem construídas.

23 Observamos nas reflexões críticas de Marx um alerta sobre o uso descuidado do termo materialista

pelos “jovens escritores alemães”, onde afirma que “nossa concepção de história é, sobretudo, um guia

para o estudo – não uma alavanca para construções à maneira dos hegelianos”. (Marx, 2010, p. 107). Essa

ideia de guia de estudo é absolutamente pertinente para o nosso percurso acadêmico e militante.

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O debate de Feuerbach sobre as elaborações de Hegel foram fundamentais para

Marx avançar em sua crítica. Se Hegel partia do pensamento para chegar ao ser,24

Feuerbach tinha o problema de, para combater essa perspectiva hegeliana, recusar as

mediações. Nessa inflexão, Feuerbach (FREDERICO, 2005, p. 30) adota uma

“ontologia empirista”, posto que nega as mediações.

Lukács apresentou a complexidade do pôr teleológico, explicitando que no

processo há a escolha dos fins, mas que isso deve considerar a causalidade natural e

transformá-la em causalidade posta. Afirma ainda que: “A crítica da mediação e da ideia

hegeliana da verdade como resultado leva Feuerbach a um empirismo, e à exaltação dos

sentidos, como caminho para se obter uma verdade evidente, revelada de uma vez por

todas, sem o recurso da mediação” (LUKÁCS, 2013, p. 33).

Frederico observa que a obra desse filósofo tem muitas contradições e

afirmativas inconclusas, e que tal dinâmica se evidenciou em grande parte de suas

reflexões. Segundo ele, Feuerbach entende que “o conceito de gênero humano resulta

exclusivamente do somatório dos indivíduos naturais, numa universalidade empírica

apreendida pela consciência” (FEUERBACH, ano, p. 36).

Ater-nos a essa construção teórica é importante para verificar que Marx, ao

realizar seus estudos, supera essas contradições, conforme afirma Frederico:

Marx, posteriormente, ao acertar suas contas com Feuerbach, volta à

perspectiva hegeliana da verdade como totalidade in progress, não se

confundindo com os seus momentos empíricos captáveis pela senso-

percepção. Mas acrescenta, diferentemente de Hegel e Feuerbach, que a

verdade do pensamento e dos sentidos, para realizar-se, precisa saltar para

fora de seu casulo e interferir na realidade, efetivar-se. (FREDERICO, 2005,

p. 40)

A criação e domínio dos meios é um fundamental patamar de desenvolvimento

social, “[...] isto é, daquele complexo que Marx chama de metabolismo do homem, da

sociedade, com a natureza, no qual não há dúvida de que o momento social não pode

deixar de ser frequentemente o momento predominante” (LUKÁCS, 2013, p. 57).

[…] em suma, o ponto no qual o trabalho se liga ao surgimento do

pensamento científico e ao seu desenvolvimento é, do ponto de vista da

ontologia do ser social, exatamente aquele campo por nós designado como

investigação dos meios. […] A consequência disso é que, em cada processo

24 “Hegel, afirma Feuerbach, parte do pensamento, do predicado do ser para, daí, chegar ao ser. Portanto,

em Hegel o pensamento é o sujeito e o ser é um predicado do pensamento. Ou ainda: a própria natureza é

uma realidade derivada da ideia abstrata, de um Deus oculto, anterior a tudo e a todos, que, como na

teologia, desponta como criador.” (FREDERICO, 2005, p. 30)

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singular do trabalho, o fim regula e domina os meios. No entanto, se

considerarmos os processos de trabalho na sua continuidade e

desenvolvimento histórico no interior dos complexos reais do ser social,

teremos certa inversão nessa relação hierárquica [...]. Uma vez que a

investigação da natureza, indispensável ao trabalho, está, antes de tudo,

concentrada na preparação dos meios, são estes o principal veículo de garantia

social da fixação dos resultados dos processos de trabalho, da continuidade na

experiência de trabalho e especialmente seu desenvolvimento ulterior. É por

isso que o conhecimento mais adequado que fundamenta os meios

(ferramentas, etc.) é, muitas vezes, para o ser social, mais importante do que a

satisfação daquela necessidade (pôr do fim). (LUKÁCS, 2013, p. 57)

Feuerbach tem reflexões significantes ao criticar a filosofia hegeliana “que

mistifica as relações entre o pensamento e a realidade, espírito e natureza, ao fazer da

realidade, do mundo natural, uma mera alienação da Ideia”. (FREDERICO, 2005, p. 41)

Marx avança25 ao combater tal mistificação, afirmando que a realidade é

composta por elementos da natureza, com os quais o homem se relaciona, e também por

meio deles cria novas relações consigo mesmo e com outros homens. Nesse processo,

criam-se não apenas relações materiais e objetivas, mas espirituais, subjetivas e

intersubjetivas. Todas essas relações são fundadas pelo trabalho. De acordo com

Lukács:

No trabalho estão contidas in nuce todas as determinações que,

como veremos, constituem a essência do novo no ser social. Desse modo,

o trabalho pode ser considerado o fenômeno originário, o modelo de ser

social; parece, pois, metodologicamente, mais vantajoso iniciar pela análise

do trabalho, uma vez que o esclarecimento de suas determinações resultará

num quadro bem claro dos traços do ser social. (LUKÁCS, 2013, p. 44)

Na luta pela existência nasce o trabalho humano, e nesse processo

implicam complexos articulados à autodeterminação humana. Lukács (2013, p. 45)

afirma que foi mérito de Engels tratar o trabalho como “centro da humanização do ser

social”, ao investigar as condições biológicas provocadas no “salto do animal ao

homem”. Nos processos da existência e pela sua reprodução o homem vai consolidando

o trabalho. É conhecida a elaboração de Marx ao comparar a aranha e o tecelão, a

abelha e o arquiteto, explicitando a capacidade exclusiva do homem de representar

idealmente todo o processo. Diz Lukács: “Desse modo é enunciada a categoria

ontológica central do trabalho; através dele realiza-se, no âmbito do ser material, um pôr

teleológico enquanto surgimento de uma nova objetividade” (LUKÁCS, 2013, p. 47).

25 Em 1844, a mudança nos rumos de suas investigações repôs seu interesse pela arte, como transparece

nas páginas dos Manuscritos econômico-filosóficos. Para Marx, então, debate-se com a dupla influência

de Hegel a Feuerbach, fato que marcará profundamente as suas incursões na estética. (Frederico, 2005, p.

23)

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Numa abordagem empirista,26 poderíamos afirmar que o homem é

movido pela necessidade, mas isso nos igualaria aos outros animais. Porém, “os

caminhos começam a divergir quando entre necessidade e satisfação se insere o

trabalho, o pôr teleológico”. (LUKÁCS, 2013, p. 78)

Os pores teleológicos colocam em movimento as cadeias causais, e o trabalho,

ainda no estágio inicial, é movido visando valores de uso. O trabalho, ao tornar-se cada

vez mais social, vai exigindo a cooperação entre os homens, mas preservando este

objetivo fundamental de responder à necessidade – individual e de grupos. O trabalho

realiza a intervenção sobre a natureza, construindo conhecimentos ao observá-la e

dominá-la; nesse processo atua sobre outros homens, provocando e influenciando a sua

adesão.

Os atos conscientes podem se tornar automáticos, mecânicos, mas isso não os

iguala aos instintivos. Os atos conscientes, mesmo quando se tornam condicionados e

fixos, podem também ser revogados ou alterados.

Portanto, por meio do trabalho processam-se a consciência sobre a

natureza, as causalidades espelhadas e/ou postas, e o conhecimento dos outros homens e

de si mesmo. Essa dinâmica não é linear, mas determinada por múltiplos fatores,

desenvolvendo o ser social, com avanços, recuos e transformações.

A importância de reconhecer esse desenvolvimento histórico não reside

em dominar a compreensão de todas as suas fases, mas na percepção de que a história se

processa independentemente de termos ou não consciência de cada movimento que a

compõe.

Lukács fundamenta que Marx apresenta a categoria ontológica central do

trabalho e que “[...] assim, o trabalho se torna o modelo de toda práxis social, na qual,

com efeito – mesmo que através de mediações às vezes muito complexas –, sempre se

realizam pores teleológicos, em última análise, de ordem material”. (LUKÁCS, 2013, p.

47), advertindo, porém, “que não se deve exagerar de maneira esquemática esse caráter

de modelo do trabalho em relação ao agir humano em sociedade" (LUKÁCS, 2013, p.

47), o que levaria a uma abordagem mecanicista.

[...] O fato simples de que no trabalho se realiza um pôr teleológico é uma

experiência elementar da vida cotidiana de todos os homens, tornando-se isso

um componente imprescindível de qualquer pensamento, desde os discursos

cotidianos até a economia e a filosofia. O problema que aqui surge não é

26 Nos textos tem sido corrente o uso do termo empiricista, mas adotamos aqui empirista, termo correto

da língua portuguesa.

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tomar partido a favor do caráter teleológico do trabalho ou contra ele; antes, o

verdadeiro problema consiste em submeter a um exame ontológico

autenticamente crítico a generalização quase ilimitada – e novamente: desde a

cotidianidade até o mito, a religião e a filosofia – desse fato elementar.

(LUKÁCS, 2013, p. 47)

NETTO (1981) explica que Marx alcançou essa elaboração teórica

partindo do estudo sobre a produção da mercadoria, e que

[...] é a análise marxiana da “célula econômica” capitalista que propicia duas

realizações teóricas de grande alcance: a captação ontológico-histórica do

trabalho como constitutivo do ser social e a tomada da dimensão econômico-

social particular da sociedade burguesa. (NETTO, 1981, p. 39)

Analisando o modo de produção capitalista, o marxismo elucida a ruptura que o

mesmo gera entre o trabalho e o livre desenvolvimento humano.

Essa ruptura entre o trabalho criador do mundo e do homem e os seus produtos é

um elemento que nos instiga. Conforme elucida Netto (1981, p. 56), Marx demostra que

quanto mais riquezas produz, mais o trabalhador empobrece. Sendo esse processo

desenvolvido pela sociedade capitalista, o trabalho reduz-se à produção de valores de

troca, de mercadorias. Assim, o trabalho alienado constitui a “forma histórica do

trabalho na sociedade capitalista” (p. 57, grifo nosso). Netto sintetiza essa passagem da

elaboração de Marx a respeito da alienação:

O que Marx faz aqui é a fundamental distinção entre as duas modalidades de

atividade prática do ser genérico consciente: a atividade prática positiva, que

é a manifestação da vida (Lebensäusserung), e a atividade prática negativa,

que é a alienação da vida (Lebenstäusserung); fazendo-o ele distingue

nitidamente – e contra Hegel – objetivação de alienação: a objetivação é a

forma necessária do ser genérico no mundo – enquanto ser prático e social, o

homem só se mantém como tal pelas suas objetivações, pelo conjunto de suas

ações, pela atividade prática, enfim; já a alienação é uma forma específica e

condicionada de objetivação. (NETTO, 1981, p. 56-57)

O marxismo desvendou como o modo de produção capitalista mistifica os

produtos do trabalho, impedindo que os homens se reconheçam como produtores.

Seguindo essa reflexão, Netto afirma que Marx considera a práxis como totalidade das

objetivações e “[...] funda a alternativa para situar a alienação como fenômeno e

problema prático-social” (NETTO, 1981, p. 60). Com tal investigação, o marxismo

desvendou como o modo de produção capitalista mistifica os produtos do trabalho,

impedindo que os homens se reconheçam como produtores. Com essa análise, Marx

explica o fetichismo:

[…] A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma de

igualdade dos produtos do trabalho como valores; a medida, por meio da

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duração, do dispêndio da força humana de trabalho toma a forma de

quantidade de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os

produtores, nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos assumem a

forma de relação social entre os produtos do trabalho. Uma relação social

definida, estabelecida entre homens, assume a forma fantasmagórica de uma

relação entre coisas. Chamo isso de fetichismo, que está sempre grudado aos

produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável

da produção de mercadorias. (MARX, apud NETTO, 1981, p. 41)

Netto (1981) problematiza esse processo ao defender que para desmontar “a

mistificação engendrada pelo fetichismo” além de verificar a determinação da

quantidade do valor pelo tempo de trabalho, é fundamental garantir o método em Marx,

posto que “para penetrar a factualidade que o fetichismo põe, a teoria deve recuperar a

processualidade histórica real. Ou seja, é-lhe indispensável tomar as formas sociais

estabelecidas como produtos históricos”. (Netto, 1981, p. 43) Nesse sentido, o método

nos orienta e possibilita desmistificar o real, buscando a processualidade não apenas

para a sua compreensão, mas para a mudança dessa realidade construída pelos atos

humanos.

Netto explica que Marx evidenciou que “a tendência a definir o caráter

produtivo ou improdutivo do trabalho pelo seu conteúdo material é debitada,

prioritariamente” à concepção fetichista, que é particular e inerente ao modo de

produção capitalista (NETTO, 1981, p. 52).

Na elaboração marxiana27 está implicada a alienação como fenômeno que se

desenvolve a partir de condições determinadas da criação humana. “Marx estava seguro

de ter encontrado na alienação econômica a raiz do fenômeno global da alienação”,

esclarece Konder (2009, p. 43),28 porém, salienta que Marx nunca reduziu a alienação

(que tem diversas expressões, dimensões e atinge tanto explorados quanto exploradores)

à alienação econômica. Entretanto, o estudo da alienação econômica proporciona

elementos para a observação das outras formas de alienação, as quais são fundamentais

para não nos reduzirmos ao economicismo, indevidamente atribuído ao marxismo

histórico-dialético.

Lukács lançou-se, durante toda a vida, a sistematizar o legado marxista que

elaborou os fundamentos ontológicos do ser social, os quais nos permitem

problematizar a relevância da arte como uma das dimensões da vida social e, por isso,

possibilitadora de conhecimento sobre o ser social.

27 Adota-se a expressão marxiana para referir-se à obra original de Marx, enquanto marxista é adotado

para tratar deste conteúdo por intérprete deste autor. 28 Utilizamos a segunda edição, tendo a primeira sido lançada em 1965.

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1.2. A ATIVIDADE ARTÍSTICA E A PERSPECTIVA ONTOLÓGICA29

No texto “Introduções às ideias estéticas de Marx”,30 Lukács afirma que as artes,

como as outras produções humanas, somente podem “ser compreendidas e analisadas

no quadro histórico geral de todo o sistema” (LUKÁCS, 2010, p. 12), recusando que a

arte, a ciência e seus ramos tenham uma história autônoma, que decorra de sua dialética

interior, posto que todas essas criações humanas são determinadas pelo

desenvolvimento de toda a história da produção social, e somente com essa base

poderemos avançar no esclarecimento científico universal e também de cada campo

particular.

Com base nas elaborações marxianas, importa-nos o caráter histórico e

hominizador da Arte, tomando como base a tese de Marx de que “A formação dos cinco

sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até nossos dias” (MARX, 2010, p.

135).

Consideramos importante para o debate da sociabilidade de resistência na

atualidade, contexto em que temos as teses do fim do trabalho,31 vez que tal perspectiva

repercute fortemente sobre os projetos societários. A defesa de que é fundamental a

concepção do ser social, na sua condição de sujeito histórico. A problematização da arte

como ato humano implicado pelas condições materiais e simbólicas/imateriais de cada

contexto exige aprofundar o senso comum que atribui a criação artística à metafísica. É

fato que existem e existiram indivíduos extraordinários, únicos, na política, nas artes e

na ciência. Porém, são casos excepcionais: a realidade ordinária é a evidência de que o

ser social desenvolve sua subjetividade e sua criatividade inserido nas determinações

históricas.

Estudar a sociedade contemporânea refletindo sobre a atividade artística de

resistência32 não foi uma opção aleatória, mas uma opção sugerida pela evidência que se

tem colocado em relevo nos últimos anos. O enfrentamento dessa postura mistificadora

29 Elementos deste capítulo foram trabalhados em comunicações apresentadas em eventos de pesquisa, a

saber: XX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social: desafíos del contexto

latinoamericano al trabajo social, Córdoba, 2012, e no XIII ENPESS – Encontro Nacional de

Pesquisadores em Serviço Social: Serviço Social, acumulação capitalista e lutas sociais: o

desenvolvimento em questão, Juiz de Fora, 2012. Nesses dois eventos do ensino e pesquisa em Serviço

Social pudemos dialogar com outros pesquisadores, amadurecendo o recorte de nossa análise. 30 Utilizamos a versão incluída na obra Cultura, arte e literatura. Textos escolhidos. São Paulo: Expressão

Popular, 2010. 31 Cf. TEIXEIRA, F. Marx no século XXI. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2009. 32 Abordaremos esta categoria no Capítulo III

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diante da criação humana é antes uma defesa do humanismo e da história. Conforme

explica Marx (2010, p. 99), “o ponto de partida são os homens realmente ativos e do seu

processo de vida real deduzimos também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e

suas incidências”.

Lukács problematiza que “[...] na vida cotidiana os fenômenos frequentemente

ocultam a essência de seu próprio ser, ao invés de iluminá-la” (LUKÁCS, 1979, p. 25),

o que exige observar as contradições em cada complexo, e não apenas descrever e

explicar o “fenômeno”. Lukács esclarece ainda aspectos da perspectiva teórico-

metodológica que são adotados a partir da vida concreta.

[...] Do ponto de vista ontológico, portanto, trata-se de compreender o ser-

precisamente-assim de um complexo fenomênico em conexão com as

legalidades gerais que o condicionam e das quais, ao mesmo tempo, ele

parece se desviar. (LUKÁCS, 1979, p. 111)33

O materialismo-histórico e dialético impõe, deste modo, nossa busca constante

da realidade, não cabendo “previsões” ou definições prévias. Assim, debatemos aqui o

trabalho, e sua análise no sistema capitalista o tornando alienado, articulando-o no

conjunto das demais categorias, evitando-se uma hierarquização dentre elas.

[...] A recusa da hierarquia no terreno ontológico liga-se estreitamente à

questão da relação entre o valor econômico e os demais valores (sociais).

Com o adjetivo “social”, queremos provisoriamente diferenciar – mas apenas

em termos abstratos e programáticos – nosso modo de considerar o valor do

modo que é próprio do idealismo (em geral transcendente). Reafirmamos: a

necessidade social que põe os valores é, com igual necessidade ontológica, ao

mesmo tempo pressuposto e resultado do caráter alternativo dos atos sociais

dos homens. No ato da alternativa, contem-se necessariamente também a

escolha entre o que tem valor e o que é contrário ao valor; temos assim, por

necessidade ontológica, tanto a possibilidade de escolher o que é contrário ao

valor, quanto a possibilidade de errar, mesmo tendo escolhido subjetivamente

o que é valioso. (LUKÁCS, 1979, p. 155-156)

A concepção materialista de Lukács entende o homem e o conhecimento como

devir, por ser a realidade um devir. Apoiando-se na elaboração marxiana, indica a

particularidade da análise sobre a arte:

Por um lado, ele [Marx] relaciona a arte com a totalidade das relações sociais;

por outro, vê que a intenção de uma obra de arte, de um artista, de um gênero

artístico, não pode evidentemente se dirigir à totalidade extensiva de todas as

relações sociais. (LUKÁCS, 1979, p. 135)

33 Em algumas passagens utilizamos o texto de 1979, traduzido por Carlos Nelson Coutinho, sendo que a

obra completa Para uma Ontologia do Ser Social I, contendo esta parte, foi publicada em dezembro de

2012.

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Vivemos uma fase da história com crescentes conflitos decorrentes da crise da

sociedade capitalista, sendo noticiados a reorganização social e o aparecimento de novas

organizações com fundamentos irracionalistas, que resgatam explicitamente ideais

fascistas e neonazistas, e um conjunto de práticas que trazem em si os valores desses

ideários. Não por acaso nos parece tão relevante estudar os referidos autores inseridos

na luta política de sua época. Conforme pondera Frederico (1997, p. 46), Lukács

manteve-se “fiel” ao marxismo, o que lhe permitiu entender a arte numa perspectiva

ontológica. Observando a trajetória de dois intelectuais revolucionários, Frederico nos

possibilita articular seus posicionamentos teóricos e ético-políticos:

O fato de esses dois personagens [referindo-se a Lukács e a Brecht] serem

figuras importantes no movimento comunista internacional [da sua época]

talvez ajude a explicar relacionamento tão tenso. Cada um deles elaborou

concepções sobre a estética que confluíam para uma política cultural: em

Lukács, a defesa da herança cultural e da grande cultura burguesa como

patrimônio de toda a humanidade; em Brecht, a necessidade de politizar a arte

e romper com os modelos herdados da tradição burguesa. (FREDERICO,

1997, p. 46)

Konder (1996) problematiza que, independentemente das avaliações diversas

que tenhamos da obra de Lukács, nas suas construções, mudanças e revisões, é preciso

reconhecer seu engajamento explícito para que valores estéticos não fossem

utilitariamente adotados na luta política, e que

[…] ele se empenhou, reiteradamente, em preservar algum espaço para um

valor estético que não fosse dissolvido, utilitariamente, num emprego

estritamente político. Lukács sabia que a produção artística tem uma

dimensão política, porém, sabia igualmente que o uso pragmático da arte na

ação política, mesmo quando realizado em nome da revolução, acabava por

prejudicar tanto a arte como a política. (KONDER, 1996, p. 30)

Além de Konder, Netto, Frederico e Coutinho debatem as “problemáticas” das

elaborações de Lukács. Não sendo aqui a matéria central, parece-nos necessário apenas

afirmar este olhar refinado da perspectiva ontológica para a compreensão crítica de que

a arte proporciona um conhecimento particular, tanto porque um nível elevado da

criatividade é genuína práxis humana, quanto pela dinâmica da atividade artística

exprimir o modo de ser da sociedade. Essa é uma questão central, como explica Konder:

Admitido o valor cognoscitivo da arte, seremos forçados a concluir que ela

proporciona um conhecimento particular que não pode ser suprido por

conhecimentos proporcionados por outros modos diversos de apreensão do

real. Se renunciarmos ao conhecimento que a arte – e somente arte – pode

nos proporcionar, mutilamos a nossa compreensão da realidade. (KONDER,

1967, p. 10)

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38

Compreendermos as atividades artísticas na perspectiva ontológica nos

possibilita aprofundar a reflexão sobre as ações humanas, inclusive enfrentando a

concepção metafísica diante dos atos humanos e no contexto científico. É uma busca da

análise concreta do que é a liberdade humana, frente às determinações históricas.

Realizamos essa análise partindo da categoria ontológica central da teoria

marxista que é o trabalho, o qual funda o ser social. Outras dimensões são

desenvolvidas por meio do trabalho, e no caso da atividade artística, tomamo-la no

mesmo sentido com que Marx explica a arte:

Com essa compreensão das objetivações humanas, Marx entende a arte como

um desdobramento do trabalho: mais uma novidade apresentada pelos

Manuscritos econômico-filosóficos. As duas atividades – trabalho e a arte –

inserem-se no processo das objetivações materiais e não materiais que

permitiram ao homem separar-se da natureza, transformá-la em seu objeto e

modificá-la em conformidade com os seus interesses vitais. Como uma das

formas de objetivação do ser social, a arte possibilitou ao homem afirmar-se

sobre o mundo exterior pela exteriorização de suas forças essenciais. Liberta

da premência da necessidade imediata pela ação do trabalho produtivo, a

atividade artística surge em seguida como uma nova forma de afirmação

essencial que o homem pode modelar "segundo as leis da beleza". Ela é um

novo campo de atuação que guarda uma relação de continuidade com o

processo material, mas possui uma especificidade, “leis” próprias, impondo

uma relação determinada entre a ideia e a matéria e exigindo um referencial

teórico específico para ser analisada. (FREDERICO, 2005, p. 44-45)

E ao mesmo tempo em que está contida e implicada na produção material, a

atividade artística abarca dimensões específicas, inclusive em relação à subjetividade.

Para Marx é por meio da riqueza objetivamente desenvolvida do ser que é possível

desenvolver a

[...] riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido musical, o olho que

descobre a beleza da forma; em síntese, os sentidos capazes de gozos

humanos, sentidos que se afirmam como forças essenciais do homem).

Porque não somente os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos

espirituais – os sentidos práticos (vontade, amor, etc.) numa palavra, o

sentido humano, – a humanidade dos sentidos – se constitui pela existência

do seu objeto, pela existência da natureza humanizada.” (MARX, 2010, p.

135)

Atribuímos importância à atividade artística que compõe a resistência aos

valores capitalistas por compreendermos que há uma dimensão estética da vida humana

que lhe dá sustentação e continuidade. A reflexão sobre a criação humana é fundamental

para enfrentar a perspectiva fetichista, como analisa Vázquez:

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[...] de acordo com Marx, tão somente uma mudança das relações sociais

pode fazer com que o trabalho do homem recobre seu verdadeiro sentido

humano e que a arte seja o meio de subsistência material, física. Daí resulta

que a salvação da arte, em última instância, está não na própria arte, mas na

transformação revolucionária das relações econômico-sociais que tornam

possível a degradação da produção artística ao fazê-la cair sob a lei geral da

produção mercantil capitalista. (VÁZQUEZ, 2011, p. 82)

Não se trata de uma teoria estética marxista, mas da dimensão estética do

desenvolvimento da sociedade e, portanto, do ser social. Desse modo, entendemos que,

ao refletirmos sobre o conteúdo das diferentes expressões artísticas, é exigência

metodológica considerarmos o contexto e os fundamentos da sociedade. Ao

reconhecermos que a atividade artística é uma objetivação do ser social temos uma

perspectiva que favorece apreender o movimento desse sujeito. Assim como o

marxismo não é um conjunto de normas e regras estáticas, pré-concebendo o objeto, o

mesmo se coloca para uma reflexão sobre as criações artísticas. Não é um conjunto de

normas de dever-ser. Refletir sobre a atividade artística supõe buscar os seus

fundamentos e contradições, que estão inseridos nessa sociedade capitalista.

Pesquisar a resistência popular, além das suas estratégias de sobrevivência, é

também buscar compreender as manifestações das forças criativas do ser social. A

atividade artística, a organização política, a construção de laços numa sociedade do

efêmero, do descartável e do imediato, são todas expressões dessas forças criativas. São

dimensões particulares que revelam um cotidiano de enfrentamento das mazelas que

vão se banalizando.

A atividade artística se insere nas contradições da lógica capitalista,

desenvolvendo-se inclusive como reação e não apenas submetida aos ditames do capital.

Vázquez afirma que a produção capitalista por princípio não favorece a arte, ao mesmo

tempo em que floresce não por mérito dessa produção, mas a despeito dela.

(VÁZQUEZ, 2011, p. 151-152)

Salientamos, assim, que, ao defendermos a compreensão da atividade artística

como um dos elementos para uma melhor apreensão crítica da realidade social, temos

como horizonte a totalidade dos fundamentos sócio-históricos. Sendo certo que a

apreensão da realidade se faz com aproximações sucessivas, ao reconhecermos o

trabalho artístico como forma de práxis e objetivação social, podemos abranger aspectos

diversos da vida social que expressam a resistência dos trabalhadores. Sendo a arte uma

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objetivação do ser social, temos como pressuposto a relevância da apreensão de suas

particularidades.

De acordo com Frederico (2005)

A arte [...] educa o homem fazendo-o transcender a fragmentação produzida

pelo fetichismo da sociedade mercantil. Nascida para refletir sobre a vida

cotidiana dos homens, a arte produz uma “elevação” que a separa

inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a operação de retorno. Esse

processo circular produz um contínuo enriquecimento espiritual da

humanidade. (FREDERICO, 2005, p. 114)

Frederico explica ainda, em suas aulas, que a subjetividade é “o canal por onde

flui o social”, sendo a arte, portanto, uma expressão construída no processo de

objetivação do indivíduo frente às condições objetivas de vida, valores e história que

compõem a construção da subjetividade. Resume que, para Marx, a arte é

antropormorfizadora.

Para Marx, a arte não “supera” o trabalho e nem é superada por qualquer

outra forma de objetivação: as diferentes modalidades da objetivação humana

não comportam nenhuma hierarquia. [...] A inversão materialista repõe

noutros termos o problema do conteúdo da arte. De mero sinal, expressão do

desenvolvimento do Espírito na filosofia hegeliana, a arte passa a ser

interpretada em Marx como manifestação das forças essenciais do homem.

(FREDERICO, 2005, p. 45)

Temos tido a preocupação de debater o utilitarismo nas práticas sociais e a

perspectiva idealista que coloca a arte como “inspiração”, algo transcendente ao ser

social, como uma das formas de negar a sua historicidade.

Como explica Konder:

A arte é um modo particular de totalização dos conhecimentos obtidos na

vida. Lukács opina no sentido de que a ciência funda a nossa consciência

histórica, ao passo que a arte funda a nossa autoconsciência histórica. A arte

antropomorfiza o real em sua representação: a ciência desantropomorfiza. A

arte faz com que revivamos as experiências de todas as épocas e nos

reconheçamos imediatamente nelas. Através da arte, participamos de novas

relações humanas, vemo-nos envolvidos em novas situações humanas que

nos solicitam reações de tipo especial. “Nas grandes obras de arte – escreve

Lukács – os homens revivem o presente e o passado da humanidade, a

perspectiva de seu desenvolvimento, mas não os revivem como fatos

exteriores, cujo conhecimento pode ser mais ou menos importante, e sim

como algo de essencial para a própria vida, como momento importante para a

própria existência individual (deles, dos homens)”.

Por isso, a arte jamais é inteiramente neutra em face dos conflitos humanos

que representa [...] Segundo Lukács, toda boa arte defende a integridade

humana – a humanitas – contra as tendências que a atacam, a dilaceram, a

envilecem ou a adulteram. (KONDER, 1967, p. 150-151)

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Percorrendo as reflexões sobre as diferentes linguagens para refletir a realidade,

como música, cinema, teatro, literatura, etc., levantamos a relevância de

problematizarmos, ainda que incidentalmente, o problema da forma e conteúdo. Trata-se

de uma maneira de tensionarmos os estudos sobre a instrumentalidade profissional,

inclusive. Partimos do pressuposto de que uma perspectiva teórico-metodológica

implica a ação cotidiana do profissional, a sua conduta acadêmico-científica e a

abordagem junto aos sujeitos envolvidos em seu trabalho. Ao dissociarmos forma e

conteúdo, temos incoerências que influenciam de forma determinante o

desenvolvimento da ação profissional. Nesse sentido, apreender essas questões favorece

elaborações teóricas que podem elucidar as particularidades do trabalho na área social (e

não somente do Serviço Social).

Assim sendo, para aprofundar teoricamente a questão da forma e do conteúdo da

ação humana, podemos nos apoiar em Konder:

Para Lukács, a relação entre os problemas básicos da forma (tomada a forma

em sua acepção ampla de estrutura e analisada ao nível do gênero) e os

problemas básicos do conteúdo é uma relação dialética e não deve ser

encarada em termos reducionistas. A transformação da forma não é um

epifenômeno da transformação do conteúdo: a forma possui as suas próprias

exigências e a sua peculiar eficácia. Na medida em que uma determinada

forma artística se estrutura de maneira a permitir que se experimente, de

modo imediato e concreto, as relações humanas reais enfocadas em uma obra

de arte, tanto mais segura é a sobrevivência dessa obra. (KONDER, 1967, p.

149)

Aparentemente, esses debates sobre forma e conteúdo parecem se restringir às

discussões estéticas. Porém, os intelectuais marxistas que aprofundaram essas reflexões

possibilitaram encontrar mediações cruciais para entender o ser social e projetar ações.

Os debates da estética podem deixar de reconhecer que a arte é uma forma de práxis e

não identificar dimensões fundamentais sobre o ser social. Ao mesmo tempo, ao

recusarmos as determinações sócio-históricas da arte, facilmente caímos na análise

desistoricizada que nega o ser social. Há aqui uma tensão importante entre a História e

as determinações do ser social; é o que Konder chamou de fetiche da liberdade criadora

do artista, que atinge diretamente os valores humanos, que são socialmente

determinados.

Mal compreendido, o caráter livre da atividade criação artística, serviu para

que alguns autores erigissem sobre ele uma autêntica religião da arte,

absolutizando e fetichizando a liberdade criadora do artista. E essa

fetichização da liberdade criadora do artista, assumindo cores de religião da

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arte, passou a servir a uma perspectiva ideológica reacionária – a do

esteticismo – segundo a qual os valores fetichizados da beleza ficavam

colocados acima dos valores humanos. (KONDER, 1967, p. 11, grifos do

autor)

A humanidade tem acompanhado o poder da ideologia, em geral em situações de

dominação. Bernardo34 tem em sua tese o capítulo O fascismo como estética, no qual

desenvolve importantes análises sobre ideologia, forma e conteúdo, e historiciza a

relação dialética das práticas que contradizem o discurso, mas que por sua sistemática

favorecem esse mascaramento. Refere que “Todo movimento político que se situe acima

das classes e pretenda conciliá-las tem que recorrer a símbolos” (BERNARDO, 1998, p.

352). Ecléa Bosi (1993) demonstra como o campo de concentração em Theresienstadt

foi uma eficaz propaganda do regime nazista, cuja artificialidade foi apresentada no

filme “O Führer oferece uma cidade aos judeus” mostrando ao mundo como os judeus –

artistas e cientistas – e suas crianças eram bem cuidados. Criada como uma cidade

artificial, o local foi conhecido como Campo de Terezin, dizimou artistas, jovens,

crianças e idosos. Do mesmo modo que o fez em todos os campos nazistas.35 E a autora

arrisca-se:

Se é que podemos emitir algum juízo [sobre os campos nazistas] – e creio que

não podemos – ele deve alcançar os princípios de uma sociedade criminosa

que expandiu sua ideologia como o ar que o cidadão comum respirava. Uma

pergunta cabível teria sido: – Como eu agiria se estivesse lá? Ou mesmo: –

Como ajo agora, quando a mentira social afirma sua existência? (BOSI, 1993,

p. 14)

O texto de Bosi ilustrou as perversidades que o ser humano foi capaz de cometer,

mas não como acusação; antes, como alerta. Ao mesmo tempo, revelou no minucioso

estudo a capacidade de resistência do sujeito. Em Campos de Terezin percebe-se que a

sobrevivência buscou na arte, no convívio, na partilha de conhecimentos, na

solidariedade, os instrumentos para manter a resistência, até a derrubada do nazismo

pelo Exército comunista, com o intuito de deixar testemunhos sobre a crueza humana.

34 Cf. João Bernardo. Labirintos do Fascismo. Tese de doutorado. Faculdade de Educação - Unicamp.

Campinas, 1998. Importante referência para este debate é o texto “Nietzsche como precursor da estética

fascista”, de Lukács, in: Arte e Sociedade. Escritos estéticos -1932-1967, p. 121-160. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, 2009.

35 Terezin era um município tcheco com 3.498 habitantes que foram evacuados por Heydrich para a

implantação do gueto. Desde 1941 começaram a chegar comboios repletos. Com o tempo são encerradas

no campo 139.654 pessoas. Dessas, 33.430 vão morrer ali, 86.934 serão deportadas para o leste onde

83.500 perecem. Ecléa Bosi. Os Campos de Terezin. In: Dossiê Memória. Estudos Avançados da USP,

Nº13, São Paulo: 1999, p. 11. Tivemos contato com esse texto na militância contra as atrocidades

perpetradas pela Fundação do Bem-Estar do Menor, que inclusive sofreu condenação pelo Tribunal

Permanente dos Povos (1999). Em algumas ocasiões tivemos a ousadia de associar o uso da propaganda

de governo da época – guardadas as devidas proporções – ao do regime nazista.

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As experiências de resistência política são inúmeras e em graus diferentes,

permeadas pela luta identitária, por direitos, etc. Situações como as anteriormente

descritas revelam-nos a força das atividades artísticas para o convívio e a sobrevivência.

Outro exemplo, na América Latina, é a luta dos povos indígenas que, ao se afirmarem,

também defendem sua história e sua identidade cultural.

A atividade artística pode contribuir para a disseminação de valores contrários à

exploração e ao aviltamento dos direitos humanos, mas não necessariamente. Não ocupa

e nem substitui outras forças, como a organização política, e nem reverterá a lógica

econômica, por terem naturezas particulares. A humanidade testemunha que a atividade

artística tem esse poder de elevar o sujeito, que está preso às suas necessidades

cotidianas, a outro patamar, em que se reconhece como gênero humano e, como tal,

herdeiro de todo o legado histórico do homem.

Desse modo, as elaborações de Karl Marx são fundamentos para a compreensão

do movimento da história:

Na produção social de sua vida, os homens contraem determinadas relações

necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que

correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças

produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a

estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma

superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas

de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo

da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem

que determina o seu ser, mas, pelo contrário, é o ser social que determina a

sua consciência.[...]

Assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do julgamento que ele

se faz de si mesmo, da mesma maneira não se pode julgar uma época de

transformação a partir de sua própria consciência; pelo contrario, é preciso

explicar essa consciência a partir das contradições da vida material, a partir

do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de

produção. (MARX, 1978, p. 129-130)

A Teoria Social de Marx constituiu-se numa teoria por realizar uma análise

sistemática da sociedade burguesa, apresentando os elementos para o estudo de suas

dimensões. Os estudos marxistas verificam que Marx qualifica a particularidade da arte,

tomando-a como objetivação social. Ou seja, Marx realiza uma análise ontológica a

partir das forças sociais em movimento, ou seja, da práxis, incluindo-se nela a arte. Sua

análise pauta-se pelo “caráter social concreto da sociedade” e, por isso, torna-se

imprescindível apoiar-se nos componentes sociais que particularizam as diferentes

formas de práxis. Conforme explica Lukács:

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[...] Mas, se se quer fazer justiça à sua concepção, é preciso destacar desde

logo que as condições da desigualdade da arte são qualitativa e radicalmente

distintas das que têm lugar no direito [...] E isso corresponde plenamente à

indicação metodológica de Marx [...] Nesse âmbito, é preciso trazer à luz

desde o início os componentes sociais que tornam desigual o particular

fenômeno do desenvolvimento artístico. Ao fazer isso, nas notas

fragmentárias que estamos examinando, Marx parte do caráter social concreto

da sociedade sobre cujo terreno nasce aquela obra de arte que é tomada em

consideração. [...]

O que ele tem em mente aqui é, porém, muito mais do que uma simples

recusa da vulgarização. Por um lado, ele relaciona a arte com a totalidade das

relações sociais; por outro, vê que a intenção de uma obra de arte, de um

artista, de um gênero artístico, não pode evidentemente se dirigir à totalidade

extensiva de todas as relações sociais, mas se realiza por necessidade objetiva

de escolha, já que para um determinado ato de pôr artístico têm importância

dominante determinados momentos da totalidade. [...] Em segundo lugar, a

análise da gênese não revela um simples nexo causal entre base e estrutura

(no caso a arte). [...] A conexão causal, naturalmente, existe sempre; mas,

para o conceito marxista de gênese, tem importância decisiva saber se esse

tipo de determinabilidade favorece ou obstaculariza o nascimento de uma

arte. (LUKÁCS, 1979, p. 134-136)

Da mesma forma, buscamos compreender a totalidade dessas relações sociais, na

qual as expressões artísticas favorecem a resistência contra um mundo fragmentado e

aviltador do ser social. As elaborações de Lukács a partir da obra marxista possibilitam

um debate sobre o ser social e a História pelo ângulo da produção artística como forma

de práxis e objetivação humana.

1.3. A ATIVIDADADE ARTÍSTICA E A SOCIABILIDADE DE RESISTÊNCIA

NA ATUALIDADE

Apreendidos esses elementos teóricos, consideramos importante para os

trabalhadores o entendimento sobre as dimensões da vida social, que exige a reflexão

dialética. Nos termos de Konder, se deixarmos de conhecer a arte como parte dos

conflitos resultantes da divisão da sociedade de classes podemos perder elementos da

dimensão da vida social. Afirma ainda que “[...] estaremos renunciando a um

inestimável tesouro de conhecimentos relativos ao mundo, à vida, ao homem e –

também – ao drama da alienação do homem”. (KONDER, 2009, p. 167, grifos nossos)

Com diferentes denominações, a discussão sobre arte e resistência tem sido

abordada em pesquisas e nos meios de comunicação tradicionais e alternativos,

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indicando a relevância de situarmos nossos posicionamentos teórico-políticos sobre o

tema.

Lukács foi um intelectual que viveu numa conjuntura extremamente adversa e se

empenhou na “refundação do marxismo”, trazendo uma abordagem sistemática sobre o

ser social, o humano genérico, e a ação coletiva emancipatória. Nos termos do filósofo

italiano Guido Oldrini, o que vai se manter tanto na Estética quanto na Ontologia será a

reflexão materialista e dialética sobre o gênero humano, expresso no processo de luta de

classes e da apropriação da riqueza humana.

De fato, como fundamento da doutrina marxista de Lukács permanece, até os

últimos trabalhos, incluídas a Estética e a Ontologia, o pressuposto –

irrenunciável para o marxismo – de que a “configuração da conformidade

com a espécie” é “determinada em cada caso pelas circunstâncias histórico-

sociais”; que “a consciência de que o indivíduo pertence à espécie humana

não suprime as relações sociais com a classe”; que a espécie, o “gênero”, é,

“por sua natureza ontológica, um resultado de forças em luta recíproca postas

em movimento socialmente: um processo de lutas de classe na história do ser

social” e, por outro lado, reciprocamente, esse processo somente ganha

significado à luz da teoria de seu desenvolvimento em direção ao "gênero".

(OLDRINI, 2002, p.74)

A expressão "arte engajada" tem sido adotada muitas vezes, referindo-se ao

período de resistência a ditaduras políticas, sendo esse seu uso corrente. Não utilizamos

esse sentido nesta pesquisa, que debate criticamente o atual contexto político brasileiro,

particularmente o paulistano. Autores como Holanda36 e Gaspari37 registraram e

organizaram publicações nas quais realizam um debate histórico sobre os fundamentos e

as tendências políticas das atividades artísticas. Em entrevista, Holanda38 explicita um

posicionamento com o qual concordamos: que as expressões "arte engajada" e "arte de

resistência" continuam atuais, com particularidades como as novas tecnologias,

articulações e redes sociais virtuais. No entanto, atemo-nos aos fundamentos da análise

da sociedade.

A expressão “arte de resistência” é adotada em literaturas que também

questionam as contestações críticas ou mesmo que a adotam na relação da

36 H. B. de HOLANDA. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 1960-70, 2ª ed. São Paulo,

Brasiliense, 1981. 37 E. GASPARI e H. B. HOLANDA. 70/80 Cultura em trânsito. Da repressão à abertura. Rio de Janeiro,

Aeroplano Editora, 2000. 38 Entrevista com Heloísa Buarque de Hollanda sobre o livro '70/80 Cultura em trânsito. Disponível em

http://aeroplanoeditora.com.br/entrevista-com-heloisa-buarque-de-hollanda-sobre-o-livro-7080-cultura-

em-transito/. Acessado em 25/04/14.

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"micropolítica cotidiana". Mazzetti39 traça um panorama e, apoiando-se em autores

como Negri, afirma que os coletivos e ativistas artísticos não devem "repetir,

simplesmente, as ações e as estratégias organizacionais já sedimentadas de luta contra a

exploração capitalista da sociedade" e valoriza que "[...] as modalidades comunicativas,

colaborativas e expressivas tornam-se, em si mesmas, práticas de resistência, capazes de

estabelecer novos arranjos subjetivos, novos modos de ser e estar no mundo".40

Embora esse autor aparentemente indique uma ação "além da exploração

capitalista da sociedade", sua reflexão pauta-se na tendência que nega os fundamentos

mesmos da contradição desse sistema. Portanto, contrapomos essa posição à de Debord:

A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido, da

sociedade dividida em classes; o que equivale a dizer que ela é o poder de

generalização que existe à parte, como divisão do trabalho intelectual e

trabalho intelectual da divisão. [...] Ao ganhar independência, a cultura

começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é ao mesmo

tempo declínio de sua independência. A história, que cria a autonomia

relativa da cultura e as ilusões ideológicas a respeito dessa autonomia,

também se expressa como história da cultura. (DEBORD, 2011, p. 119-120)

CHAUÍ41 apresenta o entendimento de que a cultura popular é aquela produzida

no mesmo processo da cultura dominante, inclusive nas formulações que são repostas

para resistir a esta. As referências na literatura científica para introduzir o debate sobre

cultura partem geralmente do sentido etimológico da palavra. Assim, temos a

possibilidade de análise a partir do termo latino colere, relativo ao cultivo e ao cuidado

das plantas, dos animais e tudo o que decorre do trabalho com a terra. Derivam desse

sentido, agricultura, e o cuidado com a criança, puericultura. O entendimento de

cuidado e preservação também parece presente nas relações metafísicas, com os deuses,

para quem são realizados cultos.

Eagleton (2011), pesquisador inglês, também traz para a palavra cultura a

referência à lavoura, ao cultivo agrícola, para gradativamente ir deixando de ser

relacionada a processos materiais, associando-se às questões do espírito. Essa mudança

semântica expressa a mudança histórica da humanidade, que de rural passa a ser

hegemonicamente urbana. Assevera, porém, um paradoxo importante: os habitantes

urbanos passam a ser consideradas as pessoas "cultas", e aqueles que lavram o solo não

39 Resistências criativas: os coletivos artísticos e ativistas no Brasil. In: Revista Lugar comum, nº 25-26,

mai/dez, 2008, p.105-120. Rio de janeiro, UFRJ/LABT e C/ESS e Rede Universidade Nômade. 40 Ibidem, p. 106. 41 Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1986.

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o seriam; "aqueles que cultivam a terra são menos capazes de cultivar a si mesmos. A

agricultura não deixa lazer algum para a cultura" (EAGLETON, 2011, p. 10).

Eagleton problematiza no debate sobre a cultura as contradições da sociedade,

que vai modificando seu modo de produção e reprodução.

Neste único termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e

determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. [...]

trata-se menos de uma questão de desconstruir uma oposição entre cultura e

natureza do que de reconhecer que o termo "cultura" já é uma tal

desconstrução. (EAGLETON, 2011, p. 11)

De forma dominante, a expressão cultura tem sido adotada em diversas frentes

para "elevar a cultura acima da política – ser homens primeiro e cidadãos depois". Ou

seja, "transformando indivíduos em cidadãos apropriadamente responsáveis e de boa

índole. Essa é, embora em um nível um pouco mais elevado, a retórica das aulas de

Educação Cívica” (EAGLETON, 2011, p. 17).

Consideramos esta posição inadequada, pois a cultura e a educação adotadas

neste sentido direciona não para o pleno desenvolvimento, mas a dominação dos

sentidos, o controle dos comportamentos. A ideia de cultura está impregnada dessa

formação "prévia", que garantiria a "paz", negando inclusive que a democracia é

movida pela diversidade e conflito de posições.

[...] Aqueles que proclamam a necessidade de um período de incubação ética

para preparar homens e mulheres para a cidadania política são também

aqueles que negam a povos colonizados o direito de autogovernar-se até que

sejam “civilizados” o suficiente para exercê-lo responsavelmente. Eles

desprezam o fato de que, de longe, a melhor preparação para a independência

política é a independência política. (EAGLETON, 2011, p.17)

Essa retórica é evidenciada nos discursos que fundamentam as diferentes

propostas de políticas sociais, em particular, a de educação. Discursos sobre a

resolutividade “dos problemas sociais” por meio da educação em geral escamoteiam os

severos conflitos gerados nas relações de produção e reprodução social capitalistas. A

ideia de educar as crianças e adolescentes, formar o “sujeito do futuro”, construir

indivíduos cordatos, não violentos, seguidores da lei, da moral hegemônica, não exige

questionar as questões estruturais da sociedade.

Eagleton expressa que há hegemonicamente a vinculação de "cultura" com

"civilização". Analisando particularidades regionais, avalia que, no século 18, havia o

entendimento de que os franceses tinham o monopólio de ser civilizados "como

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processo gradual de refinamento, porém que problematiza as diversas formas de

entendimento de Cultura”, concluindo que "é ao mesmo tempo ampla demais e restrita

demais para que seja de muita utilidade” (EAGLETON, 2011, p. 51). Ao longo da sua

obra A ideia de cultura42 problematiza as várias concepções do termo, que são tão

variadas quanto contraditórias, concluindo que “[...] Se a esquerda dos anos 30 havia

subvalorizado a cultura, a esquerda pós-moderna supervalorizou-a. Com efeito, parece

que o destino desse conceito é ser ou reificado ou reduzido” (EAGLETON, 2011, p.

180).

Chauí observa que no Brasil dois pontos de vista sobre cultura buscavam

conciliar-se: um era fruto da ilustração, e fazia a defesa da educação da sensibilidade do

povo tosco; o outro, inspirado pelo romantismo, pautava que a elite deveria ser

humanizada, dada sua superioridade. A partir daí, problematiza as perdas analíticas das

abordagens em questão: [...] Românticos e ilustrados pensam a Cultura Popular como

totalidade orgânica, fechada sobre si mesma, e perdem o essencial: as diferenças

culturais postas pelo movimento histórico-social de uma sociedade de classes. (CHAUÍ,

1986, p. 24).

Para a concepção de sociabilidade de resistência no atual contexto de um Estado

democrático de direito encontramos afinidade com os fundamentos do debate de Chauí

sobre a Cultura Popular, problematizando as origens autoritárias do Brasil e o

enfrentamento da desigualdade inerente ao processo capitalista, em que são as ações

coletivas que exigem o direito à participação política, provocando a emergência

sociopolítica dos trabalhadores.

Chauí examinou alguns aspectos da Cultura Popular como resistência, que pode

tanto ser difusa, de manifestações individuais, espontâneas, quanto coletivas ou grupais,

no que encontramos concordância de nossa análise com sua elaboração:43 “Não nos

referiremos às ações deliberadas de resistência [...], mas às práticas dotadas de uma

lógica que as transforma em atos de resistência” (CHAUÍ, 1986, p. 63, grifo nosso).

42

[...] a "civilização" francesa incluía tipicamente a vida política, econômica e técnica, e a "cultura"

germânica tinha uma referência mais estritamente religiosa, artística e intelectual. [...] A "civilização"

minimizava as diferenças nacionais, ao passo que a "cultura" as realçava. A tensão entre "cultura" e

"civilização" teve relação muito forte com a rivalidade entre Alemanha e França. EAGLETON, 2011, p.

20. 43 Embora tivéssemos conhecimento dessa obra, somente na finalização de nossa tese retomamos essa

leitura, identificando que continha uma elaboração que qualificava nossas análises ao longo deste

processo de pesquisa de forma muito pertinente.

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Essa definição é a que melhor expressa o que percebemos como sociabilidade de

resistência vivenciada pela população que mora na periferia paulistana. Existem na

periferia vários coletivos, e estes, trabalhando em rede, possuem um projeto para

efetivar uma ação política e de luta contra o capitalismo. Porém, há simultaneamente

ações cotidianas que são dotadas de uma lógica de resistência sem necessariamente estar

organizada para tal finalidade. Voltaremos a essa questão no segundo capítulo.

A atividade artística, como desdobramento do trabalho, está contida na cultura,

que expressa as contradições na totalidade da vida social. Com menor ousadia, não

realizamos aqui o debate da estética, mas importam-nos as expressões artísticas de

resistência.

Enfim, a resistência é tratada na literatura ao se abordar o processo político de

recusa aos autoritarismos e de enfrentamento tanto em relação às questões cotidianas, ao

corriqueiro, quanto às mobilizações mais amplas e com pautas macrossocietárias.

Assim, adotamos o termo resistência na perspectiva da luta contra o capitalismo –

englobando práticas que expressam sociabilidade de resistência, mas sem o objetivo

realizar o estudo sobre nenhum sujeito ou agrupamento em particular. Diante disso, não

localizamos nenhum estudo que trate especificamente da expressão sociabilidade de

resistência e neste trabalho trazemos elementos da realidade que a qualificam, posto que

analisamos as práticas de resistência no contexto da mesma cultura burguesa, para

resistir a ela.

Sendo a história um processo não linear do movimento das contradições da

sociedade, a realidade nos oferece indicadores de que persiste uma sociabilidade

resistente a essa lógica. Assim sendo, estamos denominando de sociabilidade de

resistência não outra sociabilidade, mas uma prática em confronto com o ethos

capitalista e, portanto, com os seus valores. Consideramos fundamental para o Serviço

Social o reconhecimento e a valorização dessas práticas que se consolidam como atos

de resistência.

1.4. HISTÓRIA E ATIVIDADE ARTÍSTICA

Embora não seja o objetivo desta pesquisa fazer um debate sobre a História a

partir da vasta bibliografia disponível sobre a questão da arte e das suas expressões, ao

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realizamos estes estudos, observamos importantes fatos históricos e consideramos que

algumas notas são necessárias para a análise proposta. Trata-se de um recurso

metodológico que visa realizar articulações entre os fatos históricos e possíveis

teorizações.

Importa aqui situar a concepção de cultura, que vem de cultivar e colher, portanto, a

partir da sua base material. A atividade artística é parte da cultura e, conforme já citado,

esteve a serviço da magia e da religião, adquirindo gradativamente sua independência.

Alguns momentos históricos nos parecem particularmente relevantes para esta reflexão.

A começar pelo balanço do legado de cultura da pólis grega, na qual o universo de

produções artísticas se faz num contexto político em que somente homens brancos e

livres têm poder de dirigir aquela sociedade, excluindo-se pessoas escravizadas,

mulheres e crianças, mas é importante registrar também uma análise sobre o

Renascimento. Na obra O homem do Renascimento, Agnes Heller problematiza que o

Renascimento foi um processo de transição da sociedade, no qual o desenvolvimento do

indivíduo e do gênero humano (que ela chama espécie) mais se aproximaram entre si.

Fazemos aqui toda a ressalva quanto à gravidade da sociedade grega ter se sedimentado

sobre o escravismo e negação de cidadania a mulheres e crianças, restringindo-se o

poder político aos homens brancos e livres. Porém, o fato de haver maior uniformidade

de direitos (excluindo-se todos os sujeitos supracitados...) teria favorecido o

florescimento de grandes obras artísticas, que são reconhecidas até a atualidade. Marx

problematiza que a importância do debate sobre o desenvolvimento artístico reside nesta

problematização: como certas épocas o favorecem e por que certas obras são admiradas

e inspiradoras mesmo com o passar das épocas.

Hobsbawm (2004) na obra A Era das Revoluções: 1789/1848, trata da “dupla

revolução”: a Revolução Industrial inglesa, a partir de 1760, e a Revolução Francesa de

1798, e em tal contexto aponta seu impacto sobre as artes, afirmando que ninguém pode

negar o extraordinário florescimento nessa área. Ao abordar a “civilização europeia”, o

que nos parece relevante é a análise histórica articulada ao modo de produção. Ao

elencar uma amostra relevante de autores e produções, apresenta duas evidências.

A primeira delas é a difusão extraordinariamente grande dos acontecimentos

artísticos entre as nações. [...] O segundo fato evidente é o excepcional

desenvolvimento de certas artes e gêneros como a música e a literatura (e

nesta, do Romance), o que não se evidencia na pintura e na escultura.

O que determina o florescimento ou o esgotamento das artes em qualquer

período ainda é muito obscuro. Entretanto, não há dúvida de que entre 1789 e

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1848, a resposta deve ser buscada em primeiro lugar no impacto da revolução

dupla. Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade nessa

época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa

inspirava-o com seu exemplo, que a revolução industrial com seu horror,

enquanto a sociedade burguesa, que surgiu de ambas, transformava sua

própria experiência e estilos de criação. (HOBSBAWM, 2004, p. 354)

Trata-se de um debate tenso, ilustrado pelas contradições desses processos. Não

temos, portanto, a pretensão de abordar as particularidades de cada região e sua

conjuntura. Consideramos necessário, porém, identificar as tendências gerais

fundamentadas na análise que aprofunda a relação entre o modo de produção, a

economia e a política com as expressões artístico-culturais como parte desse processo.

Entende-se, assim, que tanto as artes gerais (música, literatura, pintura etc.), como a

engenharia e a arquitetura são expressões desse processo.

Na ebulição de tantas transformações e confrontos com o preestabelecido, havia

artistas que atuavam profissionalmente (sob encomenda, como os engenheiros e

arquitetos, em geral) e aqueles que Hobsbawm denominou gênios: “[...] Os gênios eram,

portanto, em geral, não só incompreendidos, mas revolucionários.” (HOBSBAWM,

2004, p. 362)

Essa sociedade em processo permanente, vivendo mudanças drásticas naquele

contexto, apresentava uma intensidade de tendências. Hobsbawm alerta sobre as

perspectivas que anunciam ideias de mudanças, mas recorrem a valores nostálgicos e

reacionários.

[...] O resultado mais duradouro desta crítica romântica foi o conceito de

'alienação' humana, que iria desempenhar um papel crucial em Marx, e a

insinuação da perfeita sociedade do futuro. Entretanto, a crítica mais eficaz e

poderosa da sociedade burguesa viria não daqueles que a rejeitavam (e com

elas as tradições dos clássicos: ciência e racionalismo do século XVII) no

todo e a priori, mas sim daqueles que levaram as tradições do pensamento

clássico burguês a suas conclusões antiburguesas...] É significativo que o

jovem Marx, formado na tradição alemã (isto é, primordialmente romântica),

se tenha transformado no criador do marxismo só quando combinou seu

pensamento com a crítica socialista francesa e a teoria totalmente a-romântica

da economia política inglesa. E foi a economia política que forneceu a

essência de seu pensamento amadurecido. (HOBSBAWM 2004, p. 363-364)

O desenvolvimento artístico expressa aspectos da sociedade, tendo impactos

determinantes nas suas formas e conteúdos. A perspectiva marxista reflete aspectos da

sociedade, tendo igualmente impactos determinantes nas suas formas e conteúdos. A

perspectiva marxista, ao articular as forças produtivas e a dimensão da cultura, portanto,

das instituições, das expressões artísticas, das ideias, etc., possibilita uma apreensão

ampla e sistemática da sociabilidade.

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Segundo Frederico (2013), tratando da evolução crítica de Lukács, o salto que

podemos realizar por meio da arte, ao compreendê-la no processo de objetivação e

construções intersubjetivas, é crucial para disputar os valores societários.

Marx demonstrou que o trabalho se realiza com duplo movimento, um voltado à

transformação da natureza, para a realização dos valores de uso, e outro em função da

consciência de outros homens. Lukács aborda esse processo adotando a expressão

“posições teleológicas primárias e secundárias”, o que nos leva à discussão da ideologia.

Segundo Frederico, falando de Lukács:

Se na Estética a arte era enfocada como uma objetivação básica, um processo

de exteriorização das forças essenciais do homem, agora, na Ontologia, a arte

é situada no terreno conflitivo da persuasão, do convencimento, da ação

sobre a consciência alheia, vale dizer, da ideologia. Isto é: a arte deixa de ser

vista apenas como afirmação ontológica (objetivação) para ser posta no

interior da esfera intersubjetiva, local de disputa entre os valores de uma

sociedade cindida. (FREDERICO, 2013, p. 163, grifo nosso)

Ocorreram momentos históricos revolucionários que propiciaram experiências

que tensionaram essas análises e nos fornecem elementos para conhecer as estratégias e

alternativas construídas em outro contexto e processo, mas que têm como elemento

comum a resistência. Por exemplo, Iná Costa Camargo resgatou44 fatos da Revolução

Russa que deixaram um legado para as atividades culturais contemporâneas.45 Naquele

período, a população russa era analfabeta em sua esmagadora maioria e não havia ainda

energia elétrica. Assim sendo, as técnicas adotadas sofriam determinações dessa

realidade. Iná Costa referiu em palestra que, em 1920, havia cerca de 1.800 “clubes”

dirigidos por militantes bolcheviques e que eram voltados à formação política. Esses

clubes administravam 1.810 teatros e 911 círculos dramáticos. Em 1927, havia se

ampliado para 3.500 clubes, com 75 mil círculos, com cerca de 2 milhões de integrantes

(dos quais, 200 mil vinculados ao teatro). Essa forma de organização cultural atingia

100 milhões de pessoas ao ano, com uma notória dinâmica de novas participações.

Entretanto, após este período, a dominância stalinista passou a combater essas formas

de organização. Um forte movimento de resistência se contrapõe, e em 1928 o “Blusa

Azul” agrega 7 mil coletivos com certa de 7 a 30 pessoas cada, cujo objetivo era criar

cerca de 20 mil espetáculos e multiplicar grupos. Havia 80 fora do país. O fundamento

44 Debate no Brava Companhia, realizado em 05/12/2009, acessado em 25/06/2011 e Ciclo de debates da

Companhia do Latão – Para uma História do Teatro Político, com o debate O teatro político na União

Soviética, por Iná Camargo Costa e Valério Arcary, de 17/06/2011. 45 São exemplos disso o Teatro Jornal, o Agitprop, peça dialética, peça alegórica, certificação, colagem de

textos, montagem literária, melodrama revolucionário, cabaré vermelho, marionete vermelho.

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dessa resistência organizada era a Ética Proletária, em que trabalhadores rurais e

urbanos integravam todo o processo. Maiakóvski apoiava especificamente esse grupo.

Em 1934 é decretado o Realismo Soviético e em 1935, ocorre o Congresso em

Defesa da Cultura. Nesse processo, segundo Frederico,46 “a arte soviética secou e virou

mera propaganda”, sendo que o Estado a apoiou para garantir sua interferência e

comando no conteúdo das atividades. Com o apoio estatal, pôde-se observar a

organização de grupos profissionais, que ao invés de coletivos, mostraram-se

massificadores. Considerando a complexidade e a referência que foi e é a Revolução

Russa, entendemos que são recortes, mas ilustram a relevância do reconhecimento

dessas lutas populares, que contribuem para as leituras da vida contemporânea,

possibilitando nossa teorização a partir do concreto vivido.

Esse processo contraditório repercute na Alemanha, que “era uma excrecência na

Europa”.47 Era um país feudal, sem modernização, comandado por senhores da terra

com o apoio do Estado e que conheceu o capitalismo sem conhecer a democracia e a

participação popular. Esse processo, conhecido como via prussiana, será tensionado

com a radicalização cultural. A Alemanha tinha um jornal operário, no qual todos os

trabalhadores construíam a notícia. Nesse contexto, reforça-se objetivamente a produção

literária dos trabalhadores. Erwin Piscator48 era a referência para o chamado “Teatro

Épico”, que privilegiava o contexto sociopolítico do drama, e no ano de 1924 Bertold

Brecht passou a trabalhar com ele, em Berlin, desenvolvendo as Peças Didáticas. Há,

então, o desenvolvimento da técnica, mas conduzido pelo conteúdo vinculado ao

proletariado industrial.

Estes processos ilustram as tensões vividas, onde o modo de produção interfere

nas relações sociais de modo determinante, inclusive no conteúdo de suas atividades

artísticas. Configurava-se um mundo novo, com determinações diversas e esta realidade

exigia elaborações teóricas suficientes para explicar e orientar as ações políticas. Netto

refere que o marxismo positivista foi adotado pela Terceira Internacional, exposto no

livro Tratado de Materialismo Histórico de Nikolai Bukharin, obra duramente atacada

tanto por Gramsci quanto por Lukács. Este faz sua crítica em 1925, três anos após a

apresentação do Tratado que era tido como “uma bíblia do materialismo histórico”.

46 Nota de aula em 14/09/12 47 Nota de aula em 14/09/12 48 Erwin Friedrich Maximilian Piscator foi diretor e produtor teatral alemão e, como Bertolt Brecht, foi

um dos expoentes do teatro épico, gênero que privilegia o contexto sociopolítico do drama.

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Segundo Netto, a crítica dos dois autores é convergente49 em pontos essenciais, afirma

que “[...] Bukharin não supera o materialismo burguês (‘vulgar’) e confunde técnica e

relações sociais” e cita a seguinte afirmativa de Lukács:

A teoria de Bukharin, que se aproxima consideravelmente do materialismo

burguês das ciências naturais [...] termina assim frequentemente, em sua

aplicação concreta à sociedade e à história, por cancelar o elemento decisivo

do método marxista, ou seja, o que consiste em subsumir todos os fenômenos

da economia e da “sociologia” às relações sociais entre os homens. A teoria

ganha assim a marca de uma falsa objetividade: torna-se fetichista. (apud

NETTO, 2011, p. 156)

Netto (2011) avalia que as teses mais importantes de Lukács e também de

Gramsci são suas elaborações da maturidade, desenvolvida em meio a conflitos sociais

e intensa participação política, que lhes possibilitou também a autocrítica em relação ao

idealismo juvenil.

Esses dois autores fazem suas reflexões sobre questões da ontologia do ser

social, e “[...] ambos atribuem ao conceito de práxis [...] uma posição central em suas

reflexões” (NETTO, 2011, p. 157), ainda que Gramsci tenha como categoria central a

Política e Lukács, o Trabalho.

Se por um lado Coutinho identifica as convergências, o mesmo intelectual

problematiza as divergências entre esses dois autores no campo da teoria do

conhecimento. Gramsci se colocaria contrário à Teoria do Reflexo, e apoiado nas Teses

de Feuerbach desenvolve sua análise sobre “o papel ativo da subjetividade na

construção do conhecimento, inclusive do conhecimento da natureza”, mas Netto

observa que em várias passagens dos Cadernos do Cárcere são evidenciadas posições

idealistas.

Retomando em Netto (1981), a práxis é uma categoria central para compreender

a ação daqueles trabalhadores da cultura que exercem, contraditória e simultaneamente,

trabalho assalariado e atividade de resistência. Neste estudo, interessa-nos esse trabalho

na cultura que pode ser o exercício de alguma atividade artística ou a formação político-

cultural.

Assim, avaliamos que somente o materialismo dialético nos permite

problematizar essa questão neste ângulo. Tanto o trabalho, quanto a atividade artística,

são formas de práxis, ambos inseridos nas contradições e na relação dialética entre

49 Importante registrar que Netto identifica convergências de análise, mas coloca-se criticamente à posição

de Coutinho quanto a conciliar o pensamento de Lukács e Gramsci.

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alienação e processos emancipatórios. A práxis tem uma função central na estrutura

ontológica da teoria social de Marx, que, conforme NETTO (1981, p. 60), considera o

“[...] homem como ser prático e social e a práxis como a totalidade das objetivações do

ser social, constituída e constituinte”.

Apoiada em Netto (1983, 1985, 1996, 2010), a problematização sobre as

elaborações de Lukács e Gramsci elucida aspectos desses marxianos para avançarmos

em nossa reflexão. Diz o autor:

[...] Mas, se o marxismo juvenil de Gramsci e Lukács é marcado por fortes

traços idealistas, não é difícil perceber que tal idealismo tem uma justificação

relativa: esse foi o modo encontrado pelos dois autores para se contrapor com

ênfase ao marxismo positivista e determinista que predominou na época da

Segunda Internacional. As críticas à interpretação positivista de Marx são

explícitas na fase juvenil dos dois autores e permaneceriam ao longo de sua

produção teórica da maturidade. (NETTO, 2011, p. 155)

Ainda estudando os intelectuais críticos, Frederico refere que Brecht e Walter

Benjamin vivenciaram o mundo polarizado entre fascismo e comunismo, momento

fundamental para a discussão da sociedade em construção. Benjamin elaborou um artigo

sobre o assunto para Adorno, que teria se incomodado com o conteúdo comunista e a

perspectiva revolucionária. Abriram-se graves tensões e brechas para o discurso fascista.

Em tal contexto, a indústria cultural vai se ampliando, expressando a sociabilidade da

sociedade industrial que vai estendendo seu domínio.50

A elaboração teórica desses intelectuais-militantes nos interessa para a reflexão

que visa enfrentar a cena contemporânea, onde há intensa mobilização política que

adota diferentes expressões artísticas. Buscamos neles elementos que nos possibilitem

avançar na compreensão da história recente e aperfeiçoar a luta anticapitalista. Temos

acesso à literatura e às informações sobre aquele período histórico, interessando-nos

avançar nas conquistas do gênero humano.

Considerando esses elementos, Frederico analisou que nos embates da

“vanguarda”, que lutava contra a separação entre a arte e a vida cotidiana, vai se

aproximando a indústria cultural, que então cumpre o que a primeira pretendia. Essa

contradição da vida concreta impõe novos desafios, que se agravam.

50

Há contribuições relevantes na produção de Adorno, mas suas reflexões não seguem uma perspectiva

sistemática e de totalidade, o que permite incoerências no conjunto de seus escritos fragmentados. Deste

modo, esclarecemos que nessa pesquisa não adotamos suas reflexões como referência, nem pudemos

realizar estudos aprofundados a respeito.

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A indústria cultural parte do ponto determinante que é a produção, e cria um

objeto para o sujeito: o produto artístico. Essa indústria cultural vai, portanto, consolidar

esse produto que aparentemente une a arte e a vida cotidiana, quando na verdade a

primeira amplia seu alcance na condição de mercadoria. Diante da radicalidade da

análise ontológica, verifica-se, portanto, não a objetivação, mas a alienação se

ampliando e retirando a dimensão antropomorfizadora da arte.

O livro A sociedade do espetáculo, publicado em 1967, foi uma das produções

de Debord de maior repercussão e foi uma espécie de unanimidade entre os jovens do

maio de 68 francês.51 Contudo, na sua perspectiva crítica, esse autor repudiou que a

juventude tenha adotado sua obra como espécie de cartilha, moldando o próprio

protesto. Debord faz sua crítica radical à sociedade apassivada, como expressão da sua

alienação.

Nesse rolo compressor inserem-se desde as atividades básicas de transmissão cultural,

como a escolarização, até os momentos episódicos de fruição artística. Ampliam-se os

serviços e a chamada “economia criativa”,52 que em diferentes momentos esteve e está a

serviço da dominação dos espaços urbanos.

Essas aproximações entre as histórias de diferentes países ilustram tendências e elementos

que auxiliam nossas análises sobre arte e resistência. Interessa-nos, assim, compreender

as processualidades vinculadas à produção econômica e à direção política no confronto

da luta de classes.

Coutinho teoriza sobre essas relações afirmando que

[...] só é possível entender plenamente os fenômenos artísticos e ideológicos

quando estes aparecem relacionados dialeticamente com a totalidade social

da qual são, simultaneamente, expressões e momentos constitutivos.

Enquanto marxistas, Lukács e Gramsci nos ensinam a ver nas formas e nas

ideias algo mais do que as leis da escrita ou a coerência do discurso: formas e

ideias são também expressão condensada de constelações sociais, meios

privilegiados de produzir espiritualmente as contradições reais e, ao mesmo

tempo, de propor um modo novo de enfrentá-las e superá-las. (COUTINHO,

2011, p. 9)

51 "Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo temo o resultado e o projeto do modo de

produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o

âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou

propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da

vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que

decorre dessa escolha. Forma e conteúdo do espetáculo são, de modo idêntico, a justificativa total das

condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo também é a presença permanente dessa

justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna" (DEBORD,

2011, p.15) 52 Trataremos especificamente do tema no Capítulo III.

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O trabalho e a atividade artística, como formas de práxis, podem conduzir a uma

experiência de positivação de valores emancipatórios, mas também podem levar à

negação do valor. A análise histórica nos mostra experiências nas quais se evidenciaram

que forma e conteúdo artísticos podem levar à opressão dos sujeitos e criar barreiras

para o desenvolvimento do gênero humano. Ao buscarmos os elementos teóricos sobre a

atividade artística realizada por sujeitos que se apresentam como trabalhadores da

cultura, sendo ou não assalariados, em contexto de questionamento à realidade vivida,

problematizamos diferentes momentos da consciência crítica sobre a condição de vida.

Alguns sujeitos realizam declaradamente ações anticapitalistas, outros, desejam

participar da construção de eventos que reduzam o sofrimento cotidiano possibilitando a

fruição artística. Intrinsicamente, temos desafios para pensar forma e conteúdo como

implicações dessas escolhas.

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CAPÍTULO 2

LUTAS DEMOCRÁTICAS E DEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL: TENSÕES

Ao vivenciarmos, nos últimos anos, muitas evidências na mobilização social,

exigindo-se os mais diversos direitos fundamentais previstos em legislações, mas não

efetivados, deparamos com estratégias variadas: desde as tradicionais ações em torno do

Poder Legislativo e do Executivo, na participação das instâncias de controle social das

políticas públicas, às novas movimentações de massa e fenômenos decorrentes das

novas tecnologias de comunicação.

Tem-se um marco político importante em junho de 2013 quando ocorreram

intensas mobilizações em torno da tarifa do ônibus, em que, sob todos os alardes de que

não teria efeito, uma vez que partiu de movimentações massificadas e sem lideranças

políticas no comando, os atos pela revogação ou redução do valor da tarifa se

espalharam pelo Brasil. Principalmente nas grandes capitais, mas também em cidades

pequenas, foram revogados os aumentos de tarifas do transporte coletivo. Essas

mobilizações foram fortemente reprimidas, havendo muitos feridos nas manifestações.

Um fato emblemático na cidade de São Paulo foi o aumento da participação diante das

graves violências cometidas contra os jovens. A mídia, a princípio, vociferava em favor

da repressão policial, mas sob a pressão da realidade, tiveram de mudar o seu tradicional

discurso. De certo modo, havia também uma intensa participação da chamada classe

média, o que parece ter sido determinante. Com o intuito de mostrar que a violência

ocorre cotidianamente nas periferias, foram organizadas passeatas com milhares de

participantes da Zona Sul e Leste da capital, de que participaram moradores que não vão

à Paulista ou ao Palácio dos Bandeirantes, mas que caminharam junto com os jovens

pelas ruas de sua vizinhança. Essas mobilizações estão sendo discutidas e estudadas,

havendo as mais diferenciadas hipóteses em tais análises. Há, entretanto, um elemento

fundamental que é a heterogeneidade das forças políticas existentes, com uma expressão

reacionária preocupante. Posições de defesa da Ditadura Militar, grupos neonazistas e

com posições religiosas fundamentalistas têm sido evidentes. Não é surpresa a

existência de tais agrupamentos, mas suas manifestações expõem o quanto há que se

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enfrentar no que se refere ao conservadorismo e reacionarismo que se apresentaram

nesse cenário político que exige mudanças. Esses agrupamentos pautam valores e ações

que retrocedem às conquistas democráticas. As diferenças, porém, nem sempre são

polarizadas. Há uma série de nuances que mascaram e dificultam a percepção dos

retrocessos que são pregados no conjunto de suas proposições.

Essas cenas têm sido comuns no Brasil, que é a 7ª economia mundial, mas

mantém a concentração de renda, estando o país em 3º lugar entre os países com maior

desigualdade social conforme a Organização das Nações Unidades (ONU) e que, entre

99 países, é o 4º que mais “assassina” crianças e jovens.53 Tal cenário exige reflexão

sobre a democratização enquanto processo permanente, nos termos de Lukács (2008) e

Coutinho (2011; 2011a). As manifestações artísticas com conteúdo e forma similares

aos dos processos revolucionários e/ou de resistência podem ser expressões da

necessidade de democratização. É nesse cenário de desigualdade e mobilização dos

trabalhadores que buscamos discutir criticamente a democracia brasileira.

A democracia é um tema discutido por autores clássicos e sempre atualizado.

Sua defesa parece caber nos mais antagônicos discursos, exigindo cautela ao nos

filiarmos a esta ou àquela perspectiva teórica e política.

Pensando nesses discursos e projetos, um dos autores em que nos apoiamos é

Carlos Nelson Coutinho, que observa em Rousseau elementos sobre legitimidade:

[...] não é possível entender de modo adequado o pensamento de Rousseau se

não for levado em conta que o seu conceito de legitimidade – tal como o dos

gregos e ao contrário do de Locke e dos liberais – refere-se ao conjunto da

ordem social e não apenas ao seu nível especificamente político. A

legitimidade proposta por Rousseau é uma legitimidade quanto aos conteúdos

e não somente quanto aos procedimentos. (COUTINHO, 2011, p. 30)

Seguindo as análises de Rousseau, o autor reflete que esse processo político e

social vai exigir uma “remodelação da sociedade como um todo” e vai provocar a

“construção de um novo tipo de indivíduo humano” (COUTINHO, 2011, p. 31).

Rousseau trouxe os elementos que distinguem “vontade geral” (interesses comuns) e

“vontade de todos” (soma dos interesses privados, vontades particulares). Afirma

Coutinho que com essa análise “[...] Rousseau colocou um claro ponto de discriminação

entre o liberalismo e a democracia”.

53 WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2012. Crianças e Adolescentes no Brasil. Rio de Janeiro: Flacso

Brasil, CEBELA, 2013. Um riquíssimo conjunto de pesquisas podem ser localizados em

www.mapadaviolencia.org.br

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O limite dessa concepção denominada utópica por Coutinho é a direção

idealista, quando Rousseau

[...] vê o processo de elevação ao nível do interesse comum como fruto de um

movimento essencialmente ético, e não como resultado da tomada de

consciência de interesses objetivamente comuns, gerados no plano das

relações sociais de produção da vida material e espiritual. (COUTINHO,

2011, p. 36)

Rousseau tende, conforme Coutinho, a um “idealismo moralizante”, polarizando

público e privado, comum e individual, e assim “não enxerga gradações ou mediações

reais entre o interesse singular e o interesse universal” (COUTINHO, 2011, p. 37).

Hegel também foi um leitor de Rousseau, mas na sua trajetória realizou

reflexões sobre a democracia e se mostrou um

[...] pensador profundamente avesso a qualquer utopismo moralizante que se

baseasse na proposta de um dever ser abstrato e subjetivo. [...] e coloca aqui

um problema real: a vontade geral tem uma base objetiva, ou seja, sofre um

processo de determinações histórico-genéticas que transcende a ação dos

indivíduos e seus projetos volitivos singulares. (COUTINHO, 2011, p. 43-45)

O autor nos mostra, assim, que para Hegel a vontade geral é um componente do

mundo ético, e “não resulta de um postulado moral, não é mero resultado da ação

‘virtuosa’ dos indivíduos ouvindo a ‘voz da própria consciência’, como pensava

Rousseau, mas se apoiava numa comunidade objetiva de interesses” (COUTINHO,

2011, p. 45).

Hegel aprofunda-se nessa análise, demonstrando que a primeira forma de

comunidade é a família, na qual se apreendem normas para a ação individual nas

relações comunitárias. A outra esfera interativa e universalizadora seria o Estado,

mediado pela “sociedade civil-burguesa”. Existe aparente similaridade entre a análise de

Hegel e a de Adam Smith sobre a conciliação de interesses. O primeiro, nos termos de

Coutinho, introduz as questões sobre o empobrecimento, já anunciado no Discurso

sobre a desigualdade de Rousseau, e “antecipa o debate sobre a alienação da classe

trabalhadora no capitalismo, que viriam a ser posteriormente desenvolvidas por Marx”

(2011, p. 47).

Coutinho vai nos demonstrar que Adam Smith afirma a harmonização dos

interesses egoístas como caminho para a realização do bem de todos, com a mão

invisível gerando a ação automática do mercado, e que para Locke o bem de todos será

garantido com a criação do governo para regulamentar os conflitos, pactuando-se

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contratos, sem nenhuma esperança de que essas relações alterem o comportamento dos

homens, mas apenas realizando um controle para evitar a “natureza” do homem lobo do

homem. Sintetiza Coutinho:

[...] Poderíamos assim dizer que, enquanto a "mão invisível" smithiana, no

quadro do pensamento liberal, é o aspecto objetivo da formação da "vontade

de todos", o contrato lockeano é a sua expressão subjetiva. Em ambos os

casos, contudo, estamos diante não da “vontade geral” no sentido de

Rousseau, mas sim daquilo que o pensador genebrino chamou de “vontade de

todos”. Ora, é precisamente por causa do seu empenho em descobrir as

formas objetivas e subjetivas desse outro tipo de vontade – a vontade geral

ou universal – que Hegel, revelando-se assim ligado à problemática de

Rousseau, afasta-se do pensamento liberal clássico. (COUTINHO, 2011, p.

46-47)

Entretanto, Hegel apresenta contradições importantes em suas elaborações.

Dentre elas, a recusa da soberania popular, negando a democracia direta e mesmo as

formas de representação, afirmando na obra Filosofia do direito, com uma posição

arbitrária do pensamento, que o monarca representaria essa soberania. Concebe a

burocracia como portadora da vontade geral, a cujo ingresso dar-se-á por mérito e

competência. Assim, “[...] termina por negar a necessidade e a possibilidade de

constituição de uma esfera pública que socialize e democratize o poder” (COUTINHO,

2011, p. 51).

O jovem Marx, ao realizar a Crítica à filosofia do direito de Hegel enfrenta as

contradições do pensamento hegeliano. O que define como sociedade civil-burguesa,

que desenvolve a burocracia como mecanismo para expressar a vontade geral, “não

conhece um real interesse comum” (COUTINHO, 2011, p. 59). No desenvolvimento

desses embates estaria a base da descoberta de que a sociedade se divide em classes

sociais, e não apenas em corporações. Superando o pensamento vigente, Marx

desenvolverá análises não com a finalidade de aprofundar mecanismos para mediar as

relações entre público e privado, mas demonstrando a necessidade de superação das

relações antagônicas expressas na divisão de classes, possibilitando a construção de uma

sociedade fundada na propriedade social dos meios de produção e o fim da propriedade

privada.

Para tanto, explica:

Marx tenta mostrar os meios de solucionar a tarefa através de uma nova

investigação da sociedade civil-burguesa, capaz de apreender determinações

que escaparam à arguta, mas ainda insuficiente, análise hegeliana. Para evitar

o utopismo de Rousseau, reproduzido pelos primeiros socialistas, será preciso

descobrir – na própria realidade atual da sociedade civil-burguesa – a

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presença de um possível portador material do projeto da vontade geral. Ou,

mais precisamente; de uma classe social cujos interesses particulares

contenham em si a possibilidade de uma verdadeira universalização.

(COUTINHO, 2011, p. 63-64)

Marx, ao realizar seus estudos de Jurisprudência, História e Filosofia, realiza

uma “revisão crítica da filosofia do direito de Hegel” e refere que:

[...] Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações

jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a

partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral

do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações

materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de

“sociedade civil” (bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses

do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa (bürgerliche

Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Política. [...] O resultado geral

a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus

estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da

própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e

independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem

a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas

materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura

econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma

superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais

determinadas de consciência. O modo de produção da vida material

condiciona o processo em geral da vida social, política e espiritual. Não é a

consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu

ser social que determina sua consciência. (MARX,1978, p. 129-130)

Netto constata que Lukács nunca esteve alheio à dimensão política, seja na vida

prática, seja na elaboração teórica:

[...] no pós-56, o filósofo chega ao estágio culminante da sua reflexão política

[...]: a democracia defendida por ele, e qualificada como socialista, propõe-se

como a via para a reconversão das sociedades soviética e do Leste em

formações societárias compatíveis com o projeto emancipador que animou o

pensamento marxiano e marxista antes da sua perversão pelo dogmatismo e

pelo sectarismo. (NETTO, 2011, p. 19)

As formas de resistência popular exercidas na atual democracia brasileira

provocam e exigem reflexão, ao se aproximarem das expressões de engajamento, por

exemplo, no contexto da Ditadura Civil-Militar de 64. Podemos verificar o crescente

movimento de organização popular, e particularmente, os realizados em torno de

atividades estético-políticas, em geral compostos por jovens. O questionamento à

formulação e gestão da política cultural também tensiona a democracia participativa

inaugurada na Constituição Brasileira de 1988. Os participantes dos Conselhos, estes

em geral consultivos, começam a ter uma maior politização; no caso dos trabalhadores

da arte verificam que o financiamento das atividades por meio da chamada renúncia

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fiscal não apenas incide sobre os processos criativos, mas sobre a concepção de

democracia no país. Muito se debateu a respeito da democracia participativa, que seria

esta incidência por meio de Conselhos, que mobilizam conferências municipais,

estaduais e nacional, mas cujas deliberações na maioria das vezes não são cumpridas,

seja por omissão, ficando apenas nos documentos, ou por ação de governos na direção

contrária ao que foi deliberado. A questão da democracia participativa foi tema muito

debatido nas discussões políticas e acadêmicas, expressando inclusive o grande volume

de energia que se dispensou e se dispensa a este mecanismo de participação.

Lukács (2011) traz fundamentos nos quais nos apoiamos em relação à defesa da

democratização como processo, com vistas a aprofundar a crítica à lógica capitalista

visando a sua superação – e não ajustamentos. É fato que a democracia contemporânea

que vivenciamos no Brasil tem os fundamentos da história deste país, mas não está

desvinculada da história mundial, particularmente ocidental e latino-americana. Nem

tampouco estamos aqui equiparando a luta atual à dos militantes e pesquisadores que

precisaram combater regimes como o nazismo ou outras formas totalitárias.

Entendemos que os elementos culturais do pensamento conservador e patrimonialista,

bem como outras ramificações dele decorrentes, estão inseridos no cotidiano, por isso

mesmo, são parte de uma cultura geral. Por esse caminho, optamos por adotar aqui a

categoria da democratização como questão-chave que possibilita ampliar a luta pela

ruptura com a lógica capitalista e seu ethos.

Consideramos apropriada a elaboração de Lukács para o debate da democracia

do ponto de vista ontológico:

[...] as considerações que faço aqui têm como ponto de partida, na trilha de

Marx, o fato de que toda formação econômica, de um ponto de vista

ontológico, é algo dotado de uma legalidade necessária e, ao mesmo tempo,

de um ser-precisamente-assim histórico; portanto, de acordo com seu ser

social, formas estruturais – como, em nosso caso, a democracia – só podem

ser constituídas do mesmo modo. Por isso, busco aqui tratar a democracia (ou

melhor, a democratização, dado que também neste caso segundo uma

abordagem ontológica, trata-se sobretudo de um processo e não de uma

situação estática) de um ponto de vista histórico, como concreta força política

ordenadora daquela particular formação econômica sobre cujo terreno ela

nasce, opera, torna-se problemática e desaparece. A distoricização, aqui como

alhures, cria sempre fetiches, avaliados positiva ou negativamente, que não

esclarecem, mas, ao contrário, obscurecem e confundem os processos sociais

concretos (e as leis que os regem). Também a respeito destas questões, fala-

se frequentemente da democracia como de uma situação estática, deixando-se

de lado, ao caracterizar tal situação, o exame das orientações evolutivas reais,

embora somente deste modo seja possível uma correta conceituação do

problema. Para sublinhar isso, preferi usar o termo “democratização” em

vez de “democracia”. (LUKÁCS, 2011, p. 85, grifo nosso)

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Portanto, adotamos aqui essa concepção de democratização na perspectiva de

ampliar a partilha de poder e de riqueza socialmente produzida.54

Nesta direção, é relevante a análise que faz Ellen Meikins Wood, apoiada na

produção de Gramsci e de Marx, trazendo elementos importantes explicando sua

concepção de democracia formal:

[...] A questão é antes que a associação do capitalismo com a "democracia

formal" representa uma unidade contraditória de avanço e recuo, tanto um

aperfeiçoamento quanto uma desvalorização da democracia. A "democracia

formal" é com certeza um aperfeiçoamento das formas políticas a que faltam

liberdades civis, o domínio do direito e o princípio da representação. Mas é

ela também, e ao mesmo tempo, uma subtração da substância da ideia

democrática, aquela a que se liga histórica e estruturalmente ao capitalismo.

(WOOD, 2006, p. 216)

Entendemos que esta “democracia formal” é bastante pertinente ao contexto

brasileiro, em que estamos mergulhados em contradições. Anualmente ocorrem dezenas

de conferências previstas na Constituição Federal como mecanismo de participação e

controle social (do Estado pela sociedade), sem que avancemos efetivamente em

questões estruturais. De fato, muitas das deliberações serão depois inviabilizadas por

todo tipo de argumentação jurídica, ou mesmo por colidirem com outras

regulamentações das próprias políticas setoriais. Além disso, há um grande investimento

de recursos públicos para a mobilização e participação. Inúmeras questões somam-se,

onde a tal sociedade civil que compõe estes conselhos participa a cada novo evento, sem

ao menos monitorar a efetivação das decisões anteriores. Bastante elucidativo o debate

de Wood ao tratar deste tipo de mobilização:

O conceito de “sociedade civil” está sendo mobilizado para servir a tantos e

tão variados fins que é impossível isolar uma única escola de pensamento

associada a ele; mas surgiram alguns temas comuns. “Sociedade Civil” é

geralmente usado para identificar uma arena de liberdade (pelo menos

potencial) fora do Estado, um espaço de autonomia, de associação voluntária

e de pluralidade e mesmo conflito, garantido pelo tipo de “democracia

formal” que se desenvolveu no Ocidente. [...] também pretende reduzir o

sistema capitalista (ou a “economia”) a uma de muitas esferas na

complexidade plural e heterogênea da sociedade moderna. [...] pode designar

a própria multiplicidade contra as coerções do Estado e da economia

capitalista; ou, o que é mais comum, ele pode englobar a “economia” numa

esfera maior de instituições e relações não estatais. (WOOD, 2006, p. 208)

54 Não é demais lembrar que temos dentre os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do

Assistente Social em vigor a “Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socialização da

participação política e da riqueza socialmente produzida”.

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Wood desenvolve sua análise indicando as tendências de distinguir a sociedade

civil, “espaço não-estatal, regulado pelo mercado, controlado pelo poder privado ou

organizado voluntariamente”, e Estado, com seus “órgãos militares, policiais, legais,

administrativos, produtivos e culturais” (2006, p. 208-209), o que conduz à análise que

coloca político contra social, direito público contra direito privado, propaganda

instrumental do Estado e liberdade de expressão da opinião pública. Vários fatores, de

acordo com a autora, contribuíram para esse entendimento, havendo um forte impacto

da Europa Oriental, com as crises dos Estados comunistas, e também impacto da

influência da percepção das limitações da socialdemocracia. Portanto, é preciso

apreender as mediações nessas análises, evitando-se cair numa afirmação panfletária.

Wood acrescenta:

Neste caso, o perigo está no fato de a lógica totalizadora e o poder coercitivo

do capitalismo se tornarem invisíveis quando se reduz todo o sistema social

do capitalismo a um conjunto de instituições e relações, entre muitas outras,

em pé de igualdade com as associações domésticas e voluntárias. Essa

redução é, de fato, a principal característica distintiva da “sociedade civil”

nessa nova encarnação. O efeito é fazer desaparecer o conceito de capitalismo

ao desagregar a sociedade em fragmentos, sem nenhum poder superior,

nenhuma unidade totalizadora, nenhuma coerção sistêmica [...] (WOOD,

2006, p. 210)

A ênfase na participação social no Brasil contemporâneo expressa esse tipo de

percepção, mitificando a sociedade civil e desconsiderando que o Estado brasileiro é

expressão dessas relações capitalistas. Perde-se, portanto, o avanço na perspectiva da

esquerda histórica, ajustando mecanismos de participação social ao Estado sem

questionar sua funcionalidade ao capitalismo. Não se trata de assumir uma leitura

maniqueísta, mas buscar as contradições existentes nas diferentes defesas da

democracia.

Dentre as “novidades” da relação entre público e privado está o que Wood

chama de “reino privado inteiramente novo” (2006, p. 217), que se expressa numa rede

particular que assume funções coercitivas, policiais, administrativas do Estado, com a

transferência dessas funções, bem como uma nova divisão do trabalho que entrega ao

imperativo do mercado toda a regulação da exploração e apropriação da riqueza social.

Sob o discurso das identidades, das liberdades, negando-se a processualidade histórica

(e suas contradições!) afirma-se a conquista de uma democracia abrangente. Nega-se,

no fundo, a análise histórica ao se afirmar que a subjetividade humana não pode ser

apreendida na análise “economicista” que marcaria a obra marxiana. Ao se afirmar a

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mera adequação do capitalismo às “novas identidades”, às “subjetividades”, busca-se

retirar a concepção de classes e luta de classes, mas sem dizê-lo. A palavra de ordem é a

defesa da pluralidade, voltando-se ao engodo de se defender a coexistência das

“diferenças”, que, na prática, é a forma de perpetuar desigualdades. Concluímos esta

parte da reflexão com Wood: retira-se a concepção de classes e luta de classes, mas sem

dizê-lo. A palavra de ordem é a defesa da pluralidade, voltando-se ao engodo de se

defender a coexistência das “diferenças”, que na prática, é a forma de se perpetuar

desigualdades. Concluímos esta parte da reflexão com Wood, que, como Coutinho

(2011), nos alerta sobre esse discurso da defesa do pluralismo:

[...] O novo pluralismo afirma ter sensibilidade única às complexidades do

poder e das diversas opressões; mas, tal como a variedade antiga, ele tem o

efeito de tornar invisíveis as relações de poder que constituem o capitalismo,

a estrutura dominante de coerção que interfere em todos os planos de nossa

vida pública e privada. (WOOD, 2006, p. 223)

2.1. REFLEXÕES SOBRE O BRASIL: VOLTANDO ALGUNS PASSOS

A história brasileira demonstra que a perspectiva democrática sofre ataques

permanentes. Florestan Fernandes, em sua obra A revolução burguesa no Brasil elucida

a formação brasileira, que preservou uma cultura autoritária que vai se “adequando” ao

longo dos tempos. Refere o autor que no Brasil:

[...] as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial não só

se moldaram à sociedade subsequente: determinaram a curto e a largo prazos,

as proporções e alcance dos dinamismos econômicos absorvidos do mercado

mundial. Elas se revelaram bastante plásticas em face do que se poderia

chamar de reorganização do mercado colonial, adaptando-se rapidamente à

dupla polarização dos negócios de exportação e de importação, controlados

economicamente por um centro hegemônico externo, mas dirigidos

politicamente a partir de dentro. No entanto, as mesmas estruturas mostraram-

se pouco elásticas e por vezes até rígidas na absorção dos dinamismos

econômicos que eram centrais para a expansão interna do capitalismo.

(FERNANDES, 1975, p 150)

Essa realidade é perceptível ao se verificar a atuação da Inglaterra quanto à

escravização e ao tráfico de pessoas, que atendeu a interesses e contou com apoio da

“aristocracia agrária”. A industrialização no Brasil não enfrentou o “mundo agrário”

como nos outros países, sendo negociada pela elite que aqui se estabeleceu.

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A perspectiva de análise que adotamos exige que façamos um percurso sobre

aspectos fundamentais do histórico recente do Brasil e o desenvolvimento da chamada

redemocratização pós-Ditadura de 64 (nesta expressão, inclui-se a falsa ideia de retorno

de um período realmente democrático).

Segundo Cunha, o vínculo político entre civis e militares é relativamente

recente, posto que ao longo do Império e até 1930, os primeiros mantinham

“desconfiança” nessa relação e assim majoritariamente conduziam as pastas militares.

Essa desconfiança se acirrou quando da criação da Guarda Nacional que era

“instrumento de domínio das elites latifundiárias e que veio a ser extinta somente na

primeira década do século XX” (CUNHA, 2010, p. 6).

Apoiado nos estudos de João Quartim de Moraes, Cunha verifica que a Guerra

do Paraguai foi um “divisor de águas” nesse processo. Em sua pesquisa identifica a

existência de disputas de projetos no Brasil:

Nessa fase, digladiavam-se três projetos para a nação: o primeiro, da cafeeira,

que veio a ser hegemônica no quadriênio Prudente de Morais e finalizado na

virada dos anos 1930; o segundo, positivista/jacobinista com nuanças

variadas, que configuraria o florianismo como expressão maior e com o

epílogo jacobinista na derrota da terceira expedição de Moreira César em

Canudos; e por fim, os republicanos históricos e sua expressão maior, Silva

Jardim, em sua maioria desapontados com a configuração republicana que se

consolidava, gradualmente foram estabelecendo uma rotação ao civilismo e,

posteriormente, com trajetórias diferenciadas, ao anarquismo, ao socialismo

e, nos anos 1920, ao marxismo. (CUNHA, 2010, p. 18-19)

Nesse contexto ocorreram embates importantes entre civis (oligarquia) e

militares, ocorrendo intervenção das Forças Armadas na política. Cunha observa que em

1885 ocorre a “primeira anistia [política] de nossa história, tendo como expressão

conciliadora Prudente de Morais” (2010, p. 19), quando se possibilitou a retomada do

controle político dessas instituições militares, que estavam muito desprestigiadas. O

elemento que nos parece importante nessas análises é que essa marca de uma anistia

parcial, limitada, direcionada aos setores que interessava, permanece ao longo da

história brasileira.

Essas pesquisas sobre as revoltas e os motins nas instituições das Forças

Armadas ilustram as influências das ideias socialistas e a articulação entre as condições

de classe e a organização política de resistência. Verifica-se nesses estudos críticos a

permanência da parcialidade das ações oficiais em torno das revoltas e da anistia,

identificando-se a anistia e exclusão de alguns, e anistia e promoção de outros.

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Registramos tais passagens para ilustrar a relevância de identificar a capacidade de

questionar os fundamentos dos conflitos gerados pelo autoritarismo e desigualdade, ao

mesmo tempo em que essa desigualdade tem sido mantida não por acaso, mas pela

justificação dada por aqueles a quem ela interessa. A Revolta das Chibatas, que teve em

suas bases os subalternos e marujos, e a Revolta dos Anjos, formada pelos filhos da

elite, sendo ambas no interior da Marinha, têm um elemento em comum que na

concepção destes demonstrava que a Escola Naval apresentava um tratamento

“incompatível com os princípios da dignidade” (CUNHA, 2010, p. 25). Porém, ao

analisarmos essas duas revoltas, verificamos imensa divergência societária.

Sinteticamente, podemos afirmar que a liderança da esquerda, presente nesses processos

militares, estava, em geral, defendendo valores socialistas ou nacionalistas, mas na

perspectiva de uma legalidade democrática com vistas às mudanças estruturais; e que a

direita reivindicava direitos de grupos e buscava manter a cultura do privilégio. Nessa

direção, Cunha observa a implicação de posições da “esquerda militar” e dos setores da

“direita militar”:

Na perspectiva da esquerda militar, assim como dos subalternos, marinheiros

e praças, as rebeliões por eles conduzidas eram comumente vistas como

motins, casos de indisciplina ou, mais grave, traição à pátria; porém, aquelas

conduzidas por setores da direita militar comumente foram valorizadas como

atos patrióticos, e seus participantes, com pouco ou nenhum risco pessoal,

sequer tiveram consequências maiores para o prosseguimento das suas

carreiras. (CUNHA, 2010, p. 39)

Coutinho (2011), ao examinar a história brasileira, destaca que no período

colonial a organização da cultura estava vinculada à administração burocrática da

colônia e da Igreja enquanto aparelho ideológico daquele Estado. Tanto a Independência

quanto a construção da República foram feitas sem participação de outros sujeitos e

provocadas por interesses das famílias que dominavam política e economicamente o

país. Os chamados intelectuais atuavam na sustentação dessas relações num período em

que a sociedade civil organizada era praticamente inexistente. Tratava-se de uma forma

de cooptação e de obtenção de status. Conforme explica o autor, “A posse da cultura era

um meio de distinção para homens livres, mas não proprietários, que não queriam se

dedicar a um trabalho efetivo, já que o trabalho era marcado pelo estigma da condição escrava.

Ser intelectual era ser ocioso”. (COUTINHO, 2011, p. 21).

Contudo, nos anos de 1920, com a sociedade brasileira tornando-se mais

complexa, com o desenvolvimento do capitalismo como modo de produção dominante,

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com os reflexos da “abolição” do escravismo, com a criação de associações operárias e

o surgimento da imprensa operária de predominância anarquista, há um início de

sociedade civil. Em 1922 foi fundado o Partido Comunista Brasileiro (PCB). A

interlocução com a luta internacionalista foi fundamental para a organização dos

trabalhadores brasileiros, com forte diálogo com os anarco-sindicalistas italianos.

Coutinho realiza estudos sobre a formação do Brasil que ajudam a levantar

caminhos de análise esclarecedores sobre as raízes políticas e econômicas do país:

Na literatura marxista existem dois conceitos extremamente fecundos para

analisar vias “não clássicas” de passagem para o capitalismo, ou, numa

linguagem menos precisa, para a “modernidade”: o de “via prussiana”,

elaborado por Lênin com o objetivo principal de conceituar a modernização

agrária; e o de “revolução passiva”, utilizados por Gramsci nos Cadernos do

Cárcere e tornados públicos somente no final dos anos de 1940.

(COUTINHO, 2011, p. 202)

Para compreender a relevância política dos comunistas no Brasil, é importante

considerarmos as análises de Coutinho, que esclarece a respeito das divergências nas

análises do PCB em relação às posições de Caio Prado e de Florestan Fernandes:

[...] De modo extremamente esquemático, poderíamos resumir assim essa

“imagem” [imagem do Brasil] pecebista: segundo ela, o Brasil continuaria a

ser um país “atrasado”, semicolonial e semifeudal, bloqueado em seu pleno

desenvolvimento para o capitalismo pela presença do latifúndio e da

dominação imperialista. Em consequência, careceríamos ainda de uma

“revolução democrático-burguesa”, que deveria ser feita a partir de uma

“burguesia colonial” supostamente anti-imperialista e antifeudal.

(COUTINHO, 2011, p. 223-224)

Explica Coutinho, a respeito da influência do modelo, que se fazia a análise dos

países periféricos por volta do final da década de 20, e esclarece que: “[…] tanto Caio

Prado quanto Florestan rompem com essa visão: para eles, o Brasil contemporâneo é

um país plenamente capitalista, que já teria experimentado, portanto, uma ‘revolução

burguesa’ [...] mas de tipo ‘não clássico’.” (COUTINHO, 2011, p. 224).

Será Florestan, contudo, que nos possibilitará avançar na análise ao adotar

mediações para identificar traços particulares da industrialização e urbanização no

contexto de dependência ao capitalismo internacional. Com o desenvolvimento tardio

do capitalismo dependente e subdesenvolvido, período em que internacionalmente há

uma crescente luta entre o imperialismo e o socialismo, a burguesia brasileira fez a sua

opção de classe e vai “[…] se aliar às velhas classes dominantes e aos segmentos

militares em vez de tentar um compromisso permanente com as classes subalternas,

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compromisso que, se realizado, implicaria uma ampliação dos direitos de cidadania

entre nós” (COUTINHO, 2011, p. 231).

É importante frisar que na perspectiva materialista-histórica não cabem

“previsões matemáticas”, posto que em cada contexto exista uma série de variáveis. Os

casos do Japão e da Alemanha ilustram bem essa impossibilidade de apresentar

previsões, sendo países que também adotaram vias não clássicas, tiveram um

desenvolvimento capitalista tardio, mas consolidaram-se como países imperialistas. O

que importa é conhecer o tipo de cultura que vai sendo construído ao longo do século

20 no Brasil, tendo como premissa que o modo de produção e o desenvolvimento das

forças produtivas determinam o ser social – e sua consciência.

Buscamos aqui entender essa articulação entre as ações estético-políticas e a

disputa de projetos.

A passagem dos anos 1950/1960, com efeito, nos revela tempos de euforia

desenvolvimentista, de acelerada politização da sociedade, de amplos debates

sobre a eficácia revolucionária da arte, de explosão de reivindicações dos

trabalhadores urbanos e rurais, de sonhos com uma Sierra Maestra que nos

livrasse do imperialismo, do latifúndio e da miséria. [...]

Sem falar na bossa nova e na renovação temática do teatro brasileiro. Grupos

como o Arena de São Paulo e o Oficina traduziam nos palcos o mesmo

sentido do Cinema Novo, segundo Glauber: “Queremos filmes de combate na

hora de combate”. (MORAES, 2011, p. 20)

A formação por meio da chamada arte engajada55 não tinha limites territoriais ou

ambientais. Qualquer espaço poderia ser cenário de formação e apresentação de peças

teatrais, projeções de filmes, realização de shows musicais. É incontestável a relevância

dos Centros Populares de Cultura (CPCs) criados pela União Nacional dos Estudantes –

UNE, em 1961.

[...] O importante era ir onde o povo estivesse, com espetáculos que

refletissem suas aspirações e necessidades imediatas. Os inimigos a

denunciar eram o capitalismo, as elites gananciosas, o imperialismo, o

latifúndio, a corrupção e a exploração dos trabalhadores pelo capital. O

caminho dos artistas e intelectuais do CPC era o da “arte popular e

revolucionária”. (MORAES, 2011, p. 22-23)

No segundo semestre de 1963 o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho avaliava que

os espetáculos exageravam no discurso que se tornava ineficaz, propondo mudanças na

55 A expressão arte engajada foi adotada nesse contexto de enfrentamento à Ditadura Civil-Militar, tendo

como fundamento a ação política. É associada a esse período, embora também utilizada de forma corrente

entre os que se definem trabalhadores da arte e da cultura.

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práxis político-cultural do movimento. Representantes desse movimento e ex-

integrantes do CPC têm posições diferenciadas nas avaliações sobre esse processo.

Concordam, porém, que havia o real interesse de garantir acesso à arte e à cultura, e de

disputar os rumos do país.

Nesse sentido, o golpe civil-militar de 1964 seguiu um caminho que não deveria

causar surpresas, pois a escolha foi condizente com o conservadorismo político-

econômico do Brasil e o confronto crescente com a disputa de projeto para o Brasil.

Segundo Elio Gaspari (2000, p. 18-21), a hegemonia cultural que o PCB mantinha

desde 1945 foi sendo corroída ao longo do período. A Ditadura fechou os principais

institutos e organizações de cultura, como o CPC da UNE, o Instituto Superior de

Estudos Brasileiros (ISEB) e decretou a dissolução do Comando dos Trabalhadores

Intelectuais (CTI). O processo de resistência à ditadura potencializou “fatores objetivos

que levam a uma diferenciação social e, como tal, à construção de uma autêntica

sociedade civil entre nós” (COUTINHO, 2011, p. 30).

Coutinho pondera que “[...] a ditadura brasileira não foi uma ditadura fascista

'clássica', ou seja, um regime reacionário com base de massas organizada.” (2011, p.

31) Embora contando com parcela importante da sociedade apoiando o golpe, ocorreu o

que alguns autores vão chamar de consenso passivo. Contudo, para dar sequência ao

projeto autoritário, o regime viu-se obrigado a rever suas estratégias com uma

“autorreforma”, mas mantendo o monopólio decisório. Nesse processo, o

desenvolvimento capitalista impulsionou diferentes setores da sociedade, dentre eles o

“trabalho intelectual” (2011, p. 32) e suas produções culturais. Aquele intelectual da

elite, que mantinha sua condição por meio das relações pessoais, passa a vivenciar a

condição de assalariado. Tal realidade determinou que, para sobreviver como

trabalhador e para produzir cultura, era necessário lutar pela liberdade de expressão e

criação, ou seja, era imperativo lutar por uma sociedade democrática.

Ventura vai problematizar que, com as transformações impostas pela Ditadura de

64 no Brasil, os impactos na cultura vão se tornando expressivos, com maior influência

do Ato Institucional nº 5 – AI-556 –, em dois planos:

56 O Ato Institucional nº 5, o AI-5, foi o quinto decreto do governo militar, concedendo poderes amplos ao

presidente da república que, com base neste instrumento, fechou o Congresso Nacional por quase um ano,

cassando direitos individuais, permitindo a “autoridades militares” efetivarem prisões arbitrariamente,

tendo jornalistas, artistas e políticos como alvos principais.

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[...] Com a censura prévia agindo no interior do campo cultural – cortando,

expurgando ou simplesmente vetando –, pôde exercer-se um rigoroso

trabalho de prevenção; com os outros poderes que transcendem a cultura –

cassação, expulsão, aposentadoria e prisão –, pôde instaurar-se um inapelável

mecanismo de punição. (VENTURA, 2000, p. 43)

O que Ventura vai denominar “vazio cultural”57 abrange, além de toda a

opressão, a saída do Brasil de intelectuais brasileiros que passam a exercer suas

pesquisas e atividades em outros países e a própria cultura democrática é ceifada. E esta

nos parece ser a questão central que deixou raízes ao longo do desenvolvimento do

Brasil e que fica marcada na última ditadura. Ventura retoma em 1971 o debate sobre o

AI-5 e a censura, explicando o uso daquela expressão:

O vazio [cultural] era mais uma metáfora para descrever com certa exatidão o

quadro cultural dos anos 1969/1971, em que as correntes críticas, dominantes

entre 1964 e 1968, se tornaram marginais, perdendo em grande parte a

possibilidade de influir diretamente sobre o seu público anterior.

(VENTURA, 2000, p. 59)

Grande parte das empresas de televisão foram criadas no período da Ditadura e

no de abertura58 (embora as ditas concessões tenham continuado fortemente no governo

Sarney, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988). Além da criação dessas

empresas, a criação da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A), em 1969, que

se apropriou das discussões sobre a importância de uma organização do gênero, passou

a ditar todas as regras sobre atividades relacionadas ao cinema. Ou seja, um conjunto de

57 Texto escrito em julho de 1971. 58

A TV Tupi foi criada em 18 de outubro de 1950, por Assis Chateaubriand e a TV Record em 23 de

maio de 1953. Em 1956 nove capitais tinham emissoras ligadas ao grupo de Chateaubriand. Em 24 de

abril de 1965 é criada a Rede Globo de Televisão, no Rio de Janeiro. Em 13 de maio de 1967, a TV

Bandeirantes; em 15 de junho de 1969, a TV Cultura, que passa para o controle da Fundação Padre

Anchieta, e em 25 de janeiro de 1976, a TV Gazeta, estas três na cidade de São Paulo. Em 22 de outubro

de 1975, Silvio Santos criou a TVS no Rio de Janeiro, e em 19 de agosto de 1981, o Sistema Brasileiro de

Televisão, SBT. Citamos as maiores empresas, que ilustram o seu crescimento. Um dado relevante é que a

origem da televisão no Brasil tem como marco a ação empresarial em aliança com o poder político. Essa

realidade se manteve no período democrático e, segundo matéria na Folha de São Paulo citada em

documento da Intervozes, durante os sete anos e meio do governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-

2002) foram autorizadas 357 concessões educativas sem licitação. Disponível em:

<http://www.intervozes.org.br/arquivos/interrev001crtodnc>, acesso em 21/01/2014. Em 2012, sob muita

pressão, a Presidente Dilma sanciona um decreto que regulamenta as licitações, mas não regula a situação

das empresas que não cumpriram nem as normas da concessão e nem as regras da Constituição de 1988,

em que consta que a licença será de 15 anos, e que para a renovação deverão ser reavaliadas. Em agosto

de 1995 foi criado o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o qual, reunindo vários

Comitês regionais, elaborou um Projeto de Lei com o intuito de regulamentar os artigos 5, 21 e 220 a 223

da Constituição Federal e movimenta-se para obter 1.300.000 assinaturas para apresentá-lo como projeto

de iniciativa popular, com o nome de PL Mídia Democrática.Disponível em: <www.fndc.org.br> acesso

em 22/02/2014.

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decisões foram possibilitando a criação de programas de televisão e atividades do

cinema que passaram a moldar o pensamento brasileiro.

Analisando a história da formação brasileira, Coutinho levanta elementos-chaves

para explicar nossa formação histórica e, portanto, social.

[...] a tendência ao confusionismo ideológico, ao ecletismo teórico

objetivamente “moderado” (no qual elementos progressistas são

“temperados” com elementos reacionários), não resulta simplesmente de uma

escolha subjetiva dos intelectuais, de um eventual oportunismo constitutivo

deles, mas sim, de condicionamentos objetivos de nossa formação histórica e

social. (COUTINHO, 2011, p. 52)

Com tais reflexões, o autor propõe que para a superação dessas tendências é

necessária a integração orgânica dos intelectuais com a luta das classes subalternas,59

colocando-se como sujeitos efetivos nesse processo. Desse modo, entendemos que em

tal conjuntura havia uma sociabilidade de resistência, propiciada pela organicidade às

lutas e com espaços para vivências críticas. Não se trata de construir um mundo

paralelo, mas justamente de resistir com a construção de ações coletivas que disputam

os sentidos da própria luta política. Nominamos de sociabilidade de resistência à luta

por dentro da lógica capitalista, que contribui para a consolidação de práticas e valores –

portanto, de cultura –, contra-hegemônicos ao status quo.

Um destes processos de confucionismo, a nosso ver, foi a interferência do

governo federal na mudança do conteúdo do III Programa Nacional de Direitos

Humanos, o PNDH-III, aprovado em 2008 na ocasião da 11ª Conferência Nacional de

Direitos Humanos, com amplos debates. Para atender reações contrárias especialmente

em relação à legalização do aborto, à retirada de símbolos religiosos do espaço público,

à reforma agrária e à constituição da Comissão da Verdade, o governo federal alterou o

que fora decidido em processo democrático.60

59 Conforme Gramsci, entendendo-a no processo de dominação e no complexo político-cultural de

distorção, mascaramento ou invisibilização da história dos sujeitos dominados e explorados. 60 O III PNDH foi instituído pelo Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009 e alterado pelo Decreto

presidencial nº 7.177, de 13/05/2010. Essa reação contrária foi uma clara demonstração do

conservadorismo que tem preservado as violações de direitos; sob pressão, o governo federal atuou

rapidamente para responder à agroindústria-latifundiária, à grande mídia e à Igreja mais conservadora,

publicando o decreto que, em resumo, retirou pautas de forma arbitrária, violando todo o processo de

debates.Uma das respostas da sociedade civil organizada contra o decreto foi a Campanha Nacional em

Defesa da Integralidade e pela Implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos III. Os

defensores da Ditadura afirmam que a criação da Comissão da Verdade é “inadequada”, uma vez que os

seus agentes cumpriram ordens de Estado.

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Estas alterações foram realizadas não apenas pela reação contrária, mas

atendendo-se a forças políticas conservadoras, tendo como centro de tensão os crimes

da Ditadura. Para compreender esta questão, nos baseamos em Netto, que analisando a

história esclarece como o golpe de 1964 estava inscrito em “um mosaico internacional”

de golpes de Estado, os quais

[...] movendo-se numa moldura de uma substancial alteração na divisão

internacional capitalista do trabalho, os centros imperialistas, sob o

hegemonismo norte-americano, patrocinaram, especialmente no curso dos

anos sessenta, uma contrarrevolução preventiva em escala planetária.

A finalidade da contrarrevolução preventiva era tríplice, com seus objetivos

particulares íntima e necessariamente vinculados: adequar os padrões de

desenvolvimento nacionais e de grupos de países ao novo quadro de inter-

relacionamento econômico capitalista, marcado por um ritmo e uma

profundidade maiores da internacionalização do capital; golpear e imobilizar

os protagonistas sociopolíticos habilitados a resistir a esta reinserção mais

subalterna no sistema capitalista; e, enfim, dinamizar em todos os quadrantes

as tendências que podiam ser catalisadas contra a revolução e o socialismo.

(NETTO, 2004, p. 16)

Assim, o desenvolvimento capitalista redimensionava esses traços econômico-

sociais, refuncionalizando-os para não ter de operar transformações estruturais. Em tal

projeto exigia-se que as forças populares continuassem excluídas das decisões políticas.

A socialização da política, de fato, continua até hoje como um dos maiores desafios da

democratização brasileira.

O que nos parece relevante para nossa análise é observar que essa lógica

conservadora tem sido a tônica na condução política, adjetivando como conciliação o

que é na verdade impunidade e parcialidade diante de sujeitos e ações

fundamentalmente diferenciadas. Trata-se do que é denominado como transição

conservadora/conciliatória. Zaverucha (2010, p. 45) observa que na Constituição

Brasileira de 1988 a parte que se refere às Forças Armadas, Polícias Militares Estaduais,

Sistema Judiciário Militar e de segurança pública em geral continuaram como na

anterior (1967) e suas emendas (1969). Tal fato não deve surpreender quando

observamos como tais forças se mantiveram na condução do processo de

redemocratização do país!

O trabalho da redação da Constituição foi dividido em oito grandes

comissões e várias subcomissões, além da Comissão de Sistematização,

criada para organizar os relatórios finais das oito comissões. O presidente

desta comissão foi o deputado Bernardo Cabral, conhecido por seu trânsito

nas hostes militares, e que viria a ser o ministro da Justiça do governo Collor.

A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições

se encarregou dos capítulos ligados às Forças Armadas e à segurança pública.

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Era presidida pelo senador Jarbas Passarinho, coronel da reserva, que serviu

como ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Médici e Figueiredo.

Foi um dos signatários, em 1968, do Ato Institucional nº 5 que fechou o

Congresso, inaugurando um dos períodos mais autoritários da história

brasileira. (ZAVERUCHA, 2010, p. 45-46).

Essas são expressões do poder político e econômico mantidas pela elite que, no

golpe de 1964, consolidou sólidas bases para sua manutenção. Zaverucha verifica nos

fatos históricos que no período de maior repressão política, em torno de 69, houve uma

reversão crucial no poder policial: se antes a Polícia Militar tinha o papel secundário,

ficando aquartelada e atuando em ações específicas, passou a ter papel prioritário,

cumprindo função ostensiva e investigativa (esta, papel da Polícia Civil).

O golpe de 1964 atuou contra ações objetivas que demonstravam a possibilidade

de mudanças de base da sociedade brasileira. O longo período ditatorial teve como

fundamento a tarefa de retomar a direção social da elite oligárquica e seus operadores.

Estas questões, por tais determinações, continuam interferindo nas relações de poder no

Brasil.

Conforme elucida Netto:

O desfecho de abril foi a solução política que a força impôs: a força bateu no

campo da democracia, estabelecendo um pacto contrarrevolucionário e

inaugurando o que Florestan Fernandes qualificou como “um padrão

compósito e articulado de dominação burguesa”. Seu significado

imediatamente político e econômico foi óbvio; expressou a derrota das forças

democráticas, nacionais e populares; todavia, o seu significado histórico-

social era de maior fôlego: o que o golpe derrotou foi uma alternativa de

desenvolvimento econômico-social e político que era virtualmente a reversão

do já mencionado fio condutor da formação brasileira. (NETTO, 2004, p. 25)

O golpe militar deixou marcas profundas que estão preservadas em muitas

legislações com as quais convivemos na atual democracia. Entretanto, as estratégias são

muito mais perversas e eficazes, criando mecanismos de participação popular que

efetivamente não alteram a dinâmica mercantilizada e a condução dos rumos do país. O

golpe civil-militar de 1964, portanto, foi reacionário e possibilitou o conservadorismo

político.

Denuncia Zaverucha:

Em momentos de crise orgânica, isto é, quando a hostilidade e o antagonismo

entre grupos questionam a legitimidade do sistema, a classe dirigente pode

perder o controle da sociedade civil. Então, ela necessita do apoio da

sociedade política e dos militares para lograr manter sua dominação por meio

da coerção. A Constituição é acionada para garantir o uso legal das

instituições coercitivas. Por isso mesmo, não convém aos dirigentes alterar as

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cláusulas constitucionais que dão autonomia ao funcionamento dos militares. (ZAVERUCHA, 2010, p. 74-75)

O texto clássico “Balanço do Neoliberalismo”, de Perry Anderson (1995, p. 9-

23), permite-nos um sobrevoo pelo tema, no plano mundial, analisando o nascimento da

política neoliberal logo após a II Guerra Mundial e o seu avanço na construção de uma

articulação política em torno da defesa do livre mercado e da concorrência como

fundamentos da igualdade e da liberdade do cidadão, somada ao forte combate da

regulação do mercado pelo Estado. Essa direção persiste por cerca de 20 anos, quando a

grande crise econômica de 1973 ganha mais elementos contra a regulação, afirmando

que as raízes da crise decorriam do poder excessivo dos sindicatos que pressionavam

por direitos e que o movimento operário sofria uma “pressão parasitária” exigindo que o

Estado aumentasse os “gastos sociais”. (ANDERSON, 1995, p. 10) Nesse contexto,

afirmava-se que a saída era romper com a força dos sindicatos, garantir a estabilidade

monetária e criar reformas fiscais favorecendo os agentes econômicos, reduzindo os

“gastos com bem-estar social” e com a “restauração da ‘taxa natural’ de desemprego, ou

seja, a criação de um exército de reserva de trabalhadores” (ANDERSON, 1995, p. 11).

O autor problematiza que esta programática foi intensamente trabalhada durante

a década de 70 e que ao final daquele período surgiram condições políticas favoráveis

com a eleição em 1979 de Margareth Thatcher, na Inglaterra; com Ronald Reagan sendo

eleito nos Estados Unidos em 1980; com Kohl derrotando o regime social liberal na

Alemanha em 1982 e, em 1983, a Dinamarca ficando sob o controle da direita. Resgata

a situação que se foi construindo à direita em todos os países do Norte da Europa

Ocidental, com exceção da Suécia e da Áustria. Ao analisar o desenvolvimento político

e econômico, inclusive na derrota dos programas progressistas nos seus primeiros anos

de governo, Anderson verifica que “O que demonstravam estas experiências era a

hegemonia alcançada pelo neoliberalismo como ideologia” (ANDERSON, 1995, p. 14).

Alguns poucos países resistiram até o final da década de 80 à economia neoliberal,

como os já citados Suécia e Áustria e, na Ásia, o Japão. O programa neoliberal

conseguiu êxito em suas pautas de contenção e redução da taxa de inflação e aumento

da taxa de lucros. A base desse êxito foi a derrota do movimento sindical e a contenção

dos salários, o que gerou um alto nível de desemprego. Associados a isso, “a tributação

dos salários mais altos caiu em 20% em média nos anos 80”, conforme a Organização

para a Cooperação e Desenvolvimento Económico- OCDE, e os valores da bolsa

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aumentaram quatro vezes mais rapidamente que os salários. Contudo, embora com êxito

em todas essas programáticas, não houve crescimento. Essa situação aparentemente

paradoxal explica-se pela taxa de acumulação ter sido beneficiada por novas condições

institucionais dirigidas para o capital, que não ampliou o parque de equipamentos

produtivos (trabalho morto). Evidenciou-se, assim, que o programa neoliberal criou

ventos absolutamente favoráveis à especulação financeira, muito mais vantajosa que o

investimento produtivo. Ao mesmo tempo, o Estado ainda tinha um peso alto no custo

social, uma vez que se ampliaram as necessidades sociais em função do desemprego e o

aumento demográfico dos aposentados.

Nesse período de graves condições sociais, o ideário político neoliberal

sustentou os países em crise no início de 90. Aliado a esta ambiência ideopolítica,

Anderson esclarece que:

[...] Uma das suas razões fundamentais foi claramente a vitória do

neoliberalismo em outra área do mundo, ou seja, a queda do comunismo na

Europa Oriental e na União Soviética, de 89 a 91, exatamente no momento

em que os limites do neoliberalismo no próprio Ocidente tornavam-se cada

vez mais óbvios. (ANDERSON, 1995, p.17)

Os “novos arquitetos das economias pós-comunistas do Leste” mantinham

“desprezo total pelo keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e,

em geral, por todo modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra.

Essas lideranças políticas preconizam e realizam privatizações muito mais amplas e

rápidas do que haviam sido feitas no Ocidente” (ANDERSON, 1995, p. 18). Essa

postura trouxe inegavelmente um brutal empobrecimento de grande parte da população

que, vale salientar, tinha condições de um bom nível civilizatório, com serviços básicos

de qualidade, educação e vida cultural. Do nosso ponto de vista, esses são aspectos que

nos indicam a severidade de uma política autoritária, afetando negativamente os direitos

fundamentais do ser humano.

O ideário neoliberal alastrou-se pela América Latina, com outras variantes,

mantendo o desmonte da organização sindical inclusive pelo caminho da cooptação de

lideranças e das privatizações maciças. Essa ambiência foi extremamente favorável à

especulação financeira no Brasil, assim como à entrada de empresas multinacionais na

esfera dos serviços e com forte impacto na economia imobiliária. Aqui as áreas

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estratégicas, como comunicação e energia sequer tinham algum tipo de controle social,

não havendo inclusive resistência organizada para disputar a opinião pública.

Parece-nos que mais uma vez a América Latina, e especialmente o Brasil,

vivencia a repetição da história como farsa. Se na década de 80 os Estados Unidos e a

Inglaterra realizaram todas as ações citadas e tantas outras em ofensa à maioria da

população, tal fato se repetiu rapidamente nos países da Europa Ocidental e, na década

de 90, mais uma vez “tardiamente”, o Brasil foi solo fértil para o que já se havia

mostrado possível, e com agravantes. O país não fez reforma agrária (uma das bases da

política liberal) e nem garante educação como direito universal. Ainda que os índices de

alfabetização e inserção escolar apontem para a cobertura quase total da população

jovem, é de conhecimento público o fracasso da política de educação. Esses elementos

nos fazem problematizar a democracia brasileira e buscar entender sua dinâmica

contraditória na efetivação de direitos, na afirmação da emancipação política, e

aprofundar a leitura sobre as disputas de projetos societários.

Têm sido crescentes as críticas de intelectuais e movimentos de luta social que

questionam os atuais rumos da política governamental expressa nas políticas setoriais e

as alianças que são realizadas entre governo e sociedade civil organizada. Do mesmo

modo, parece haver um esgotamento das tentativas de garantir-se o controle

democrático dessas políticas por meio de conselhos formados entre membros do

governo e membros da sociedade civil.

Observando o movimento recente da participação política, em que os governos

têm sido determinantes nas agendas de reivindicação popular, há indicadores inegáveis

da fragilidade da democracia que se vem desenvolvendo.

Nesta conjuntura de enfrentamento à manutenção dos “segredos” da Ditadura

civil-militar, verificamos a permanência de estruturas administrativas do Estado na

manutenção de uma lógica autoritária. Identifica-se a presença, em todos esses

momentos, com maior ou menor organização, de intelectuais e artistas.

O período destes estudos também “coincidiu” com vários eventos de grande

relevância política: de defesa do cumprimento integral da versão original do PNDH-III;

de articulação pela efetivação da Comissão da Verdade e de suas atribuições;

visibilidade da ampliação das denúncias contra a violência do Estado, principalmente

por seu aparato repressivo como a Polícia Militar e as ocupações das Forças Armadas,

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com crescente organização dos Comitês pela Desmilitarização da Polícia e da Política,

frente à violência cometida contra os manifestantes em vários momentos. Em 2011

aconteceu a Primavera Árabe, com importante repercussão no mundo, apresentando

formas diferenciadas de luta política; tivemos as “jornadas de junho de 2013”, que

começaram com o protesto contra as tarifas, levantando-se o movimento Passe Livre a

partir de São Paulo e em cascata por outras grandes cidades. Em contraponto,

vivenciamos uma forte e brutal reação do Estado por meio de suas polícias.61

Estes fatos expressam uma parte do processo das lutas democráticas no

confronto com os limites para a efetivação dos direitos (e nem estamos pensando em

termos de radicalização destes). Chamadas como “vem pra rua, vem”, “por uma

sociedade sem catracas”, permite-nos levantar alguns elementos sobre esta realidade,

considerando-se inclusive que xenofóbicos, neonazistas e outros também se

apresentaram na cena democrática. É preciso considerar, contudo, que estão presos

desde um jovem de 25 anos (o primeiro a ser preso neste contexto), que vivia em

situação de rua, lideranças e manifestantes críticos à realidade na defesa de direitos. Não

temos notícias de que alguém tenha sido detido ou acusado por crime de intolerância ou

61 Acirraram-se, nos últimos anos, as fortes tensões e questionamento contra o Governo Federal, que em

função da COPA de 2014, tem se posicionado em favor de legislações restritivas de direitos. Os projetos

de Lei 728/2011 (“AI-5 da COPA”) e 3.714/2012 pretendem tipificar o crime de terrorismo no Brasil com

um texto que pode ser utilizado para enquadrar movimentos sociais organizados, que para lutar

promovem legitimamente a ocupação de terras no campo e na cidade, a paralização de vias e demais

formas de ação direta. Prevê, ainda, a proibição de greves três meses antes dos eventos. Outras legislações

federais, como a Lei Geral da Copa (Lei 12.663, de 05/06/2012, que dispõe sobre as medidas relativas à

Copa das Confederações FIFA 2013, à Copa do Mundo FIFA 2014 e à Jornada Mundial da Juventude

2013 regulamentam esses megaeventos, inclusive prevendo o julgamento de atos cometidos próximos aos

estádios. A “lei das organizações criminosas” (Lei nº 12.850/13), em vigor desde setembro de 2013,

define organização criminosa: “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e

caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou

indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas

máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. Sob essa lei dezenas

de manifestantes foram presos, alguns por suspeição de que cometeriam algum protesto. O Comitê

Nacional da COPA e os regionais levantam críticas ao constatarem que por efeito dessa ação liderada pelo

governo federal já existem nos municípios “leis de segurança”, “leis de isenção fiscal”, “leis de restrição

territorial”, “leis de transferência de potencial construtivo”, etc., todas voltadas ao interesse privado,

protegendo os contratos da FIFA e outras empresas. Por meio dos Comitês locais, identifica-se que nas 12

cidades que sediaram a COPA em 2014 e no Rio de Janeiro, que sediará as Olimpíadas em 2016, estão

ocorrendo severos impactos, dentre os quais a remoção forçada de 150.000 a 170.000 pessoas

(<www.portalpopulardacopa.org.br>; há pesquisas que indicam 250.000 remoções forçadas

(<www.comitepopularsp.wordpress.com>). Esses dados são aproximativos, havendo falta de

transparência nos dados informados pelos governos. Esses estudos são realizados e acompanhados por

pesquisadores e militantes renomados que atuam com a questão urbana, mobilidade e violência,

demonstrando a seriedade da situação. A Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada do

Conselho de Direitos Humanos da ONU, a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, docente da Universidade

de São Paulo (USP), tem sido uma dessas pesquisadoras críticas a todo este processo. O anexo 01 traz o

infográfico da ONG Artigo 19, que atua no mundo em defesa da liberdade de expressão, com informações

sobre os projetos de lei em tramitação no Brasil.

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práticas do gênero. Juristas e intelectuais de relevo têm-se posicionado pela ausência de

fundamento constitucional para a criação de legislações como o PL antiterror, e

principalmente de tipificação de crimes nas leis aprovadas no contexto citado, como a

Lei Geral da COPA – Lei 12.662/12, e outros projetos de lei em andamento. Não cabe

aqui aprofundamento sobre essas questões, mas as mesmas compõem a nossa reflexão

sobre a insuficiência ou desrespeito aos instrumentos democráticos existentes e a

persistência do arbítrio. A crescente criminalização dos movimentos sociais e o avanço

da penalização no Brasil é explícita. Seus impactos são os mais diversos: são jovens

feridos, detidos, humilhados, e essa “justiça” se ampliando na sociedade, havendo nos

últimos meses inúmeros casos de linchamentos, espancamentos, etc., cometidos por

populares contra pessoas acusadas de furtos ou outros delitos.

Dentro da nossa inquietação em busca dos caminhos da contradição, buscamos

entender que as mobilizações democráticas têm sido acompanhadas por um amplo

número de intervenções artístico-políticas pelo país. No caso de São Paulo, evidenciam-

se muitas tensões que têm gerado conflito entre agrupamentos com posições divergentes

sobre o papel do Estado na criação de mecanismos de participação dos produtores.

Contudo, um inumerável rol de expressões artísticas tem dialogado com essas lutas

democráticas, ora retomando elementos do passado recente, como a Ditadura, ou com

intervenções diretamente inseridas nas manifestações das ruas. Este contexto, ao nosso

ver, tem sido favorável para fortalecer as propostas coletivas e a luta contra a

mercantilização da arte e da cultura.

Se observarmos as políticas sociais posteriores ao Consenso de Washington e as

configurações das contrarreformas no contexto brasileiro, o direito à cultura tem sido

afirmado como direito individual, nos mesmos trilhos da perspectiva hegemônica liberal

utilizada para o debate sobre os Direitos Humanos. Há grupos que defendem que a

Cultura e a Educação transformariam o país, sem considerar as determinações político-

econômicas que numa sociedade de classes perpetua a desigualdade social.

No período pós-Ditadura de 64 as políticas sociais foram palco de lutas, em que

se exigia a participação popular na construção de avaliações, indicadores, etc., para que,

de forma democrática e participativa, fossem deliberadas as ações e os investimentos

em cada área. As políticas de saúde, educação, assistência social, previdência social,

habitação, emprego têm sido palco para a definição do orçamento e, gradativamente,

vêm sendo alteradas, de forma regressiva, as suas configurações. A literatura

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especializada vem demonstrando o quanto a participação popular ficou relegada a

segundo plano, muito mais pautada pelas decisões governamentais do que dirigida pelas

demandas populares.

A respeito das incoerências e incompatibilidades do ponto de vista da

organização do Estado, afirma Gilberto Bercovici:

A chamada “Reforma do Estado” da década de 1990 não reformou o Estado.

Afinal, as “agências independentes”, que, na realidade, não são

independentes, foram simplesmente acrescidas à estrutura administrativa

brasileira, não modificaram a administração pública, ainda configurada pelo

Decreto-Lei nº 200/1967, apenas deram uma aura de modernidade ao

tradicional patrimonialismo que caracterizava o Estado brasileiro. A “reforma

regulatória” consiste em uma nova forma de “captura” do fundo público, ou

seja, a “nova regulação” nada mais é do que um novo patrimonialismo”.

(BERCOVICI, 2011, p. 89)

A Constituição Federal de 1988 tem, conforme esta análise, aspectos formais que

são antagônicos para a efetivação da democracia, evidenciando a necessidade de debates

e mudanças. Nessa direção, buscamos problematizar essas questões no contexto do

regime democrático brasileiro, que tem na atual Constituição Federal a referência legal

mais abrangente. A redemocratização tardia, a permanência de instituições e legislações

criadas ou modificadas pela Ditadura Militar são elementos que não podem ser

desconsiderados na luta por direitos sociais na atual conjuntura. Vale observar que,

originalmente, a Carta Magna tinha 250 artigos e já havia sofrido alterações, com 67

emendas até 2012, havendo muita controvérsia diante das mudanças provocadas, as

quais acarretaram redução de direitos dos trabalhadores. A Constituição Federal

aprovada decorreu de ampla mobilização e de acordos, tendo inclusive como base uma

grande derrota: ao invés de haver participação direta de todos os brasileiros, foi

aprovada por uma Assembleia Constituinte, composta por parlamentares que em sua

maioria representam as famílias que sempre detiveram domínio político e econômico.

Além desses, representantes dos militares e da Igreja também compuseram essa “união”

por um Brasil “redemocratizado”.

O desenvolvimento capitalista, com tal moldura, apenas redimensionava esses

traços econômico-sociais, refuncionalizando-os para não ter de operar transformações

estruturais. Em tal projeto exigia-se que as forças populares continuassem excluídas das

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decisões políticas. A socialização da política, de fato, continua até hoje como um dos

maiores desafios da democratização brasileira. Haja vista os chamados conselhos de

políticas setoriais e de direitos que, em grande parte, apenas atendem à funcionalidade

do Estado no capitalismo contemporâneo.

Não por acaso, temos visto o avanço de execuções sumárias (as praticadas por

agentes do Estado), de chacinas, de milícias clandestinas, etc.62 Tem sido constante a

realização de operações das Forças Armadas, especialmente do Exército, nos bairros das

grandes cidades, seja em função das greves de trabalhadores das mais diversas áreas

sócio-ocupacionais, seja para a “pacificação” de favelas. Essa tendência parece ser cada

vez mais explícita e com subterfúgios para ganhar a simpatia da população que, tão

massacrada pela violência gerada pela desigualdade social, recebe-a como uma

intervenção estatal que lhes garante “paz”. Quando crianças ou idosos são mortos nessas

operações, rapidamente outra grande operação retoma os holofotes da mídia para

enaltecer a “ordem”. Atualmente verificamos a burocratização dos chamados conselhos

de direitos e de políticas setoriais em grande parte voltada à legitimação das pautas

governamentais, totalmente adaptados à burocratização que impede ou obstaculiza a

democratização da política.

Nesse contexto, os sujeitos que desenvolvem atividades artísticas buscam a

valorização do seu “produto” no mercado, demonstrando o “poder metabólico do

capital”. Há outros, contudo, que demonstram que a inserção dos trabalhadores da

cultura e da arte contribuem nos rumos de uma política cultural de Estado, exigindo que

fossem eles e não o governo a pautar as áreas que deveriam ter investimento. Além

disso, esta política deve considerar a particularidade das diferentes expressões artísticas,

não podendo apenas ser uma lógica da eficácia empresarial ou até mesmo de

indicadores à sombra de outras políticas setoriais.

Atualmente temos acesso a uma importante parte da produção de Lukács,

possibilitando aprofundar análises sobre essa perspectiva que fundamenta nossa crítica e

enfrentamento à mercantilização de todas as dimensões da vida e à tendência a uma

análise subjetivista. Apropriando-nos do pensamento de Lukács, arriscamo-nos a

afirmar que o processo de democratização deve disputar formas e conteúdos para que a

62 Existem reações do ponto de vista institucional, vinculadas ao PNDH-III, às Conferências de Direitos e

à Comissão da Verdade, mas também ao crescimento de movimentos como o Tribunal Popular: o Estado

no Banco dos Réus (organizado em 2008), o Comitê Popular da Copa e o Comitê pela desmilitarização da

polícia e da política, todos presentes em vários Estados sem vínculo partidário.

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construção coletiva das possibilidades para o convívio nos possibilite nossa

humanização. Esta é uma tarefa coletiva cotidiana, que em graus diferentes pode ser

efetivada para combatermos a reprodução dos valores que também sustentam essa

lógica opressora.

O sujeitos que realizaram a resistência no período da Ditadura de 64, ou nos

contextos das revoluções burguesas, foram sujeitos construídos naqueles processos e

momentos históricos. Seu legado é concreto. Assim como nós vivemos o

neoconservadorismo e as propostas reacionárias, temos lutas pulverizadas pelo país, em

torno do sofrimento cotidiano. As recentes manifestações desde junho de 2013 no Brasil

estão sendo analisadas positivamente, pois possui vários novos elementos. Todos estes

fatores são certamente referências para nossa elaboração teórica, confrontada com o

movimento dos sujeitos reais e, portanto, da História.

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CAPÍTULO 3

A PERIFERIA E A PRESSÃO DO CAPITAL

A partir da abordagem anterior sobre as categorias trabalho, atividade artística e

democracia, apresentamos nossas reflexões colocadas sobre alguns aspectos

socioeconômicos da Zona Sul paulistana. Os dados levantados, foram particularmente

da região abrangida por Santo Amaro e, mais especificamente, do Parque Santo

Antônio, identificando tensões na análise de tais informações ao se discutir a situação

urbana daquele território. Temos os indicadores imobiliários afirmando a valorização da

região, situação que é opressora aos que cotidianamente vivem e transitam naquele

território. Esta valorização não se expressa em efetiva melhoria das condições básicas

para a permanência dos moradores da região, pelo contrário, este processo expulsa a

população local.

Sendo uma área importante para os negócios imobiliários, há intervenção do

Estado contribuindo para tal valorização, mas apontaremos alguns indicadores para

problematizar as contradições dessa situação.

Moradores que lá estão desde a década de 70 vivenciaram as mudanças ao longo

dos anos. A intensa mobilização social existente na região é, inclusive, fruto de tal

período e iniciada a partir das demandas cotidianas. Nesse período vivenciou a

organização liderada pelo movimento contra a carestia, com forte presença das

Comunidades Eclesiais de Base, orientadas pela Teologia da Libertação,63 e, como em

muitos outros lugares, surgiram muitas lideranças femininas. Os moradores com

participação nesse processo recordam-se de que as atividades artísticas sempre

estiveram presentes nessas mobilizações. Ao mesmo tempo, evidenciava-se a ausência

de espaços culturais na região, gerando também a mobilização nesse setor.

63 As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) surgem no Brasil na década de 70, mobilizada pela

Teologia da Libertação (TL), tendência supradenominacional que defende a justiça social, tendo impulso

principalmente em função da condição social, econômica e política da América Latina. Em tal período,

houve importante atuação contra a Ditadura, com participação forte de intelectuais ligados à Igreja

Católica, que propiciou apoio inclusive material, com a proteção de militantes e lideranças perseguidos

pelo regime. Com a abertura democrática, as CEBs vão sendo enfraquecidas, e gradativamente as

lideranças da TL passam a ter menor prestígio e espaço na Igreja, sendo a TL inclusive combatida por

setores majoritários em função da ideologia tida como comunista.

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Essas mobilizações trouxeram elementos críticos que o cotidiano alienado

falseia e acoberta. No processo de organização das necessidades cotidianas e das

reivindicações por direitos, vão sendo sistematizadas as necessidades e as alternativas.

Esse conjunto de demandas por direitos estava associado à defesa da redemocratização,

explicitando-se que o acesso aos direitos deve ser efetivado com a criação de serviços

descentralizados. Exigiu-se que a melhoria das condições de vida fosse viabilizada com

o desenvolvimento local. A presença feminina é determinante nesse processo, pois por

meio de suas demandas vão se afirmando as pautas de reivindicações: regularização

fundiária, creche, transporte, saúde, educação e cultura.

A periferia, que era exposta pela mídia como produtora de violência, passa a

construir sua autoimagem por meio desse conjunto de mobilizações. A defesa da

qualidade do transporte esteve vinculada ao acesso ao trabalho e aos serviços públicos

que ficavam longe das moradias periféricas. No caso da cultura, reivindicava-se a

criação de espaços na periferia. Essas reivindicações estiveram presentes ao longo do

período, com diferentes formas de negociação.

Na década de 90 e seguintes tivemos a fortíssima tendência da chamada

higienização do centro, com o discurso de valorização das áreas nobres da cidade. Essa

dinâmica foi desenvolvida em muitas cidades na década de 60, como Paris, Berlim e

Nova Iorque, e foi definida como gentrificação e amplamente desenvolvida no centro da

cidade de São Paulo. O termo gentrificação é a tradução do termo inglês gentrification,

que no dicionário Michaellis consta como “enobrecimento: migração de pessoas de

classe média para uma região anteriormente desvalorizada de uma cidade”. Nos termos

de Arantes:

[...] a gentrificação é uma resposta específica da máquina urbana de

crescimento a uma conjuntura histórica marcada pela desindustrialização e

consequente desinvestimento das áreas urbanas significativas, a terceirização

crescente das cidades, a precarização da força de trabalho remanescente e,

sobretudo, a presença desestabilizadora de uma underclass fora do mercado.

E nessa transição dramática também se põe em funcionamento, com a mesma

eficiência, a máquina de fabricar consenso. (ARANTES, 2000, p. 32)

Aparentemente nova, o problema da higienização com a expulsão da população

das áreas centrais pode ser melhor compreendida com fundamentos nas reflexões sobre

o Direito à Cidade e a gentrificação, que há décadas foram teorizadas por autores

brasileiros e estrangeiros. O debate apenas ocupou maior visibilidade nos últimos anos,

impulsionado pelas denúncias de violências diversas na área central da cidade de São

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Paulo. A gentrificação passa a compor a agenda acadêmica e do movimento social,

abarcando, portanto, vários ângulos sobre o desenvolvimento e o direito à cidade.

A discussão que se coloca possui várias dimensões. Tratemos neste momento da

questão de fundo que é a pressão da lógica da reprodução do capital na periferia, dado o

dito esgotamento de espaços nas regiões centrais e a própria dinâmica da gentrificação,

termo que, conforme Arantes, é utilizado de forma envergonhada, pois não assume

verdadeiramente os seus propósitos, e

[...] por isso mesmo escamoteada pelo recurso constante ao eufemismo:

revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, promoção,

requalificação, até mesmo renascença, e por aí afora, mal encobrindo, pelo

contrário, o sentido original de invasão e reconquista, inerente ao retorno das

camadas afluentes ao coração das cidades. (ARANTES, 2000, p. 31)

Ao realizar a análise do desenvolvimento urbanístico em cidades como Berlin,

Barcelona, Bilbao e Paris, Arantes apresenta particularidades e tendências. Essas

cidades possuem alguns traços similares, dentre eles, o fato de terem sido espaços de

conflitos importantes ou, nos termos da autora, cidades que deixaram de ser “uma

cidade-problema e podem vir a ser uma confiável cidade-negócio” (ARANTES, 2000,

p. 60). Essa é a lógica que passa a conduzir todo o processo, da formulação das políticas

públicas ou projetos sociais (de ONGs e empresas) à repressão pelo Estado. Realizando

o estudo das particularidades de cada cidade-negócio acima citadas, Arantes apresenta

elementos que possibilitaram a ela concluir que essa perspectiva de cidade-negócio tem

origem nos Estados Unidos, localizando a lógica de urbanização do período de 1850 a

1930, reforçando a lógica da exploração da propriedade do solo, gerando em torno disso

“uma legião de profissionais caudatários de um amplo arco de negócios” (ARANTES,

2000, p. 27) que atuam sistematicamente na fabricação de consensos em torno da

afirmativa de que o crescimento gera uma ampla oferta de empregos. No centro dessa

movimentação, afirma Arantes, está a classe rentista que vai assumindo feições

particulares da época.

Nesse processo a questão da terra é um elemento determinante, conforme

estudos sobre a análise da renda fundiária orginalmente teorizada por Karl Marx. A

propriedade privada da terra por si só não desencadeia a renda fundiária. Marx

demonstra como a terra, que não é um produto do trabalho, pode ter preço e ser

valorizada. Explica David Harvey:

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[...] a renda fundiária, capitalizada como juro sobre algum capital imaginário,

constitui o “valor” da terra. O que é comprado e vendido não é a terra, mas o

direito à renda fundiária produzida por ela. O dinheiro exposto é equivalente a

um investimento que rende juros. O comprador adquire um direito sobre as

receitas futuras e antecipadas, um direito sobre os frutos futuros do trabalho. O

direito à terra se torna, em resumo, uma forma de capital fictício. (HARVEY,

2008, p. 471)

Os dados apresentados a seguir referem-se à região da Zona Sul de São Paulo,

que vem apresentando confrontos importantes e organização popular. Em matéria no

jornal Folha de São Paulo - FSP64 afirma-se que há escassez e alta de preços dos

imóveis nas áreas centrais, gerando maior valorização nas periferias. O aumento dos

valores são percentualmente superiores, conforme o quadro abaixo.

Editoria de Art/Folhapress

Especialistas do mercado imobiliário e empresas ligados ao sindicato do ramo

apontam que de 1994 a 2005 o mercado de imóveis mantinha-se estável, e as empresas

possuíam altos recursos em caixa, mas não haveria condições no país para o

desenvolvimento da área. As dificuldades quanto à mão de obra, a carência de terrenos e

64 Bairros distantes do centro de São Paulo lideram valorização em 2012, publicada em 23/05/2013.

http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2013/05/1282992-bairros-distantes-do-centro-de-sao-paulo-

lideram-valorizacao-em-2012.shtml

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a fragilidade dos órgãos públicos estariam prejudicando o mercado imobiliário, que teria

déficit de produtos. Na área imobiliária iniciou-se, em 2006, o investimento via IPO

(initial public offering), que é a abertura de capitais na Bolsa de Valores. Nesse contexto

foi criado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Lula, iniciado

em janeiro de 2007, cujos principais investimentos foram em infraestrutura, tendo

realizado cinco novas fases até 2013. Há muitas controvérsias em torno desse programa,

uma vez que estão incluídos serviços que legalmente são obrigações do Poder

Executivo, ou seja, enquanto ações do Estado. Assim, há argumentos de críticos que

apontam que se trata de uma estratégia de propaganda eleitoral. Em 2009, foi criado

também o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), o qual, segundo os dados do

governo, entregou, até o final de 2013, cerca de 1,4 milhão de moradias (casas e

apartamentos), de cerca de 3 milhões de moradias contratadas por intermédio da Caixa

Econômica Federal. Trata-se de um programa de grande cobertura e de significado

muito importante para a população diante do maior sonho do brasileiro, que é a casa

própria. Contudo, estudos demonstram que se avolumam os problemas enfrentados

pelos moradores, principalmente por aqueles que, não tendo uma vivência anterior de

morar em condomínios e nem de ter despesas com consumo de água, energia elétrica,

taxa de condomínio, etc., além da mensalidade do financiamento com a Caixa

Econômica Federal, encontram dificuldades em gerenciar sua aquisição. Rolnik et alii65

(s/d), em artigo que aborda a questão com dados até 2007, apresenta uma conclusão

crítica sobre a opção governamental em adotar este tipo de ação. Rolink, como relatora

Especial da Organização das Nações Unidas – ONU, mantém essa criticidade no

Relatório sobre o Direito à Moradia Digna, publicada em agosto de 2012.66

Se a aplicação desses recursos ocorrer sem política fundiária, mecanismos de

controle social e incremento na capacidade de gestão territorial, poderemos assistir à

repetição de cenários já vividos em nossas cidades quanto à abundância de crédito

imobiliário e fontes de financiamento do desenvolvimento urbano, combinadas com a

baixa capacidade de controle do uso e ocupação do solo, produzindo um modelo

65 Solo urbano e habitação de interesse social: a questão fundiária na política habitacional e urbana do

país. http://raquelrolnik.files.wordpress.com/2013/04/solo-urbano-e-his-rolnik-nakano-cymbalista.pdf,

acesso em 21/01/14. 66 No site www.direitoamoradia.org podem ser acessados todos os relatórios apresentados à ONU pela sua

Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada, esta criada em 2000. Rolnik foi relatora até 01 de

junho de 2014. Sob nomeação do Conselho de Direitos Humanos, o mandato da relatoria é de três anos e

não é remunerado, recebendo do Alto Comissariado de Direitos Humanos todo o apoio de recursos

humanos, logística e assistência à pesquisa.

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caracterizado pela segregação, exclusão socioterritorial e precariedade urbano-

ambiental.

O debate do Estatuto das Cidades,67 que é o marco regulatório da reforma

urbana, sofreu muitos ataques e, no caso de São Paulo, o Plano Diretor68 ficou bastante

prejudicado, ficando atrelado ao MCMV e a outras pautas referentes ao

desenvolvimento urbano e ao direito à cidade. Tanto o MCMV quanto o PAC estão se

efetivando sem respeitar o processo participativo decisório e não foram submetidos aos

debates dos Conselhos de Habitação. Rolnik (2007) apresentou indicadores e tendências

que se comprovaram na realidade, principalmente relacionados ao investimento público

para a predominância do crédito imobiliário, uma das faces da financeirização das

políticas sociais. O processo de valorização imobiliária não é um acaso: houve por parte

do empresariado, do mercado financeiro e também do Estado, uma espécie de consenso

na linha de desenvolvimento. Essa valorização é impulsionada pelo PAC, que injeta

recursos públicos na infraestrutura, e pelo MCMV, que garante o desenvolvimento de

negócios com mediação de um banco estatal.

Todos esses elementos compõem a complexidade da análise sobre a dinâmica da

sociedade e seus conflitos, apresentando as questões como pertencimento,

terra/moradia, especulação/lucratividade, transformação de direitos em mercadorias, etc.

Aquilo que Arantes problematizou evidencia-se atualmente, inclusive porque

estruturalmente a sociedade mantém os mesmos fundamentos, potencializando-se a

lucratividade também nas regiões territorialmente periféricas.

Harvey, em Condição pós-moderna: um estudo sobre as origens da mudança

cultural, desenvolveu um quadro de análises sobre as práticas espaciais no processo de

experiência do espaço e do tempo. Da abordagem deste autor é especialmente

importante para o estudo aqui proposto o que se refere às “implicações na produção

cultural” (Harvey, 2008, p. 202). Observando as práticas espaciais materiais (o que é

vivido), representações do espaço (o que é percebido) e espaços de representação (o que

67 Cf. R. ROLNIK 10 anos do Estatuto da Cidade: das lutas pela reforma urbana às cidades da Copa do

Mundo. <http://raquelrolnik.files.wordpress.com/2013/07/10-anos-do-estatuto-da-cidade.pdf>. Acesso em

21/01/14. 68 A este respeito manifestou-se Rolnik: “Acredito que, se quisermos vislumbrar uma vida melhor para os

habitantes de São Paulo, transformações urbanísticas profundas serão necessárias. Essas não se realizarão

jamais através deste – ou de outro – Plano Diretor, mas aprová-lo pode abrir caminhos”. Artigo em

http://raquelrolnik.files.wordpress.com, acesso em 22/07/14. O Plano Diretor de São Paulo foi aprovado

em 14/07/14, e exigirá uma série de mudanças, mas depara-se com muitas dificuldades para enfrentar a

força política do empresariado.

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é imaginado), Harvey discutiu esses aspectos do espaço que são tensionados pela

apropriação e uso, pelo seu domínio e controle, pela sua produção, pela acessibilidade e

distanciamento. Tais elementos, como o próprio autor adverte, não podem ser

entendidos em si mesmos ou na sua restrita relação, mas contextualizando-os histórico-

culturalmente.

Esses aspectos ilustram a construção ideopolítica sobre a periferia, não cedendo

ao gosto das análises fragmentárias encantadas com o recorte da realidade e com o novo

objeto de estudos. Não há uma periferia à parte do sistema global, mas processos

particulares da periferia que resiste, que resgata instrumentos de luta e que constrói no

seu cotidiano novas expressões de luta num tempo-espaço simbólico e concreto do

tempo presente. A periferia ainda carrega aquela concepção marcada pela abordagem do

período da Guerra Fria, quando se referia a países periféricos como aqueles que estavam

à margem das grandes potências. No Brasil correntemente adota-se como adjetivo ao

que está territorialmente distante do centro (sendo que centro aqui simboliza poder

político e econômico). A perspectiva crítica, que vem se tornando tendência, entretanto,

é qualificar como periférica não apenas a localização geográfica, mas considerando o

modo de vida frente às dificuldades que enfrentam (sobrevivência), agregando ainda o

sentido de resistência e criação de uma cultura particularizada. Assim, é usual a

referência de que "o centro da cidade é a periferia" ao se denunciar os milhares de

pessoas vivendo nas ruas, por diversos motivos. Do mesmo modo, no caso da capital

paulista, bairros centrais expressam as condições que estavam associadas à periferia:

falta de moradia, moradias precárias, desemprego, serviços de saúde ausentes ou

precários, homicídios por fatores externos, etc. Assim, pode-se inferir que um quadro

geral de violação de direitos não está localizado geograficamente, mas associado

diretamente ao movimento do capital. A cultura condensa contradições, e a articulação

tempo-espaço contribui decisivamente para as dinâmicas particulares em cada contexto.

Como explica Harvey:

As práticas estéticas e culturais têm particular suscetibilidade à experiência

cambiante do espaço e do tempo exatamente por envolverem a construção de

representações e artefatos espaciais a partir do fluxo da experiência humana.

Elas sempre servem de intermediário entre o Ser e o Vir-a-ser.

É possível escrever a geografia histórica da experiência do espaço e do tempo

na vida social, assim como compreender as transformações por que ambos

têm passado, tendo por referência condições sociais e materiais. [...] Aí, as

dimensões do espaço e do tempo têm sido sujeitas à persistente pressão da

circulação e da acumulação do capital, culminando (em especial durante as

crises periódicas de superacumulação que passaram a surgir a partir da

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metade do século passado) em surtos desconcertantes e destruidores de

compressão do tempo-espaço. (HARVEY, 2008, p. 293)

Portanto, não são outros brasileiros, nem outra realidade, mas sujeitos numa

chamada periferia que vem se construindo com uma autoimagem positiva a partir da

consciência sobre a injustiça social. Não nos atrevemos aqui a dizer que há uma

consciência de classe para si, mas há momentos que estão consolidando, com altos e

baixos, esse posicionamento, começando pela consciência de classe em si. Nesse

sentido, adotamos o termo periferia não como um fenômeno com um processo singular,

mas como uma particularidade de um processo histórico, que na atual conjuntura

paulistana é a região territorialmente afastada do centro e do acesso a direitos. Podemos

pensar regiões longe do centro, como por exemplo na Zona Oeste paulistana, mas que

não condensa esse conjunto de ausências e violações de direitos, não nos remetendo ao

entendimento da expressão periferia como atualmente está entendido no debate político.

Ao observarmos ainda as manifestações políticas na periferia temos conteúdos

que versam ainda de uma multiplicidade de posições sobre a periferia, como nos explica

Frederico:

A publicização do termo periferia deu ensejo, assim, à sua apropriação por

diferentes campos discursivos que buscavam, cada qual a seu modo,

cristalizar um significado, conferir-lhe um conteúdo. Esse esforço

diferenciado de ressignificação da palavra periferia faz lembrar Bakhtin que

via no signo linguístico “a arena da luta de classes”. (2013 a, p.240)

Portanto, ao nos apoiarmos na leitura da realidade da periferia o fazemos sem

perder de vista estas diferentes posições, às vezes misturadas, mas que em geral

sugerem uma politização esvaziada do termo, ou mesmo um enaltecimento fetichizado.

Ainda que sob a bandeira de defesa de direitos, há um discurso corrente que autonomiza

a periferia, deixando de contextualizá-la historicamente. Frederico (2013 a) traz

elementos sobre a visibilidade da periferia a partir da década de 90 e analisamos que a

“arte periférica” se apresenta fetichizada. Há uma articulação entre este enaltecimento

do pertencimento à periferia, quase como um encantamento onde todos serão aceitos,

mas cada um no seu lugar. Esta valorização da periferia é bastante útil aos interesses

dos empresários e especuladores, bem como do governo. São desenvolvidas novas

formas de valorização do valor, e as atividades artísticas compõem esse processo,

embora seja usualmente afirmado somente o caráter positivo, negando-se ou

escamoteando o interesse econômico. O desenvolvimento urbano apresenta elementos

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que nos permitem afirmar, não somente agora, mas ao longo da história, que há esta

articulação com a cultura, conforme analisado por ARANTES (2000) e HARVEY

(2003). Nesta direção, ARANTES afirma que

[...] Rentabilidade e patrimônio arquitetônico-cultural se dão as mãos, nesse

processo de revalorização urbana – sempre, evidentemente, em nome de um

alegado civismo (como contestar?...). E para entrar neste universo dos

negócios, a senha mais prestigiosa – a que ponto chegamos! (de

sofisticação?) – é a Cultura. (p. 31)

Se por um lado podemos observar o aumento dos empreendimentos imobiliários,

não se efetiva a ampliação dos serviços públicos de cultura. Podemos observar nas

informações oficiais do município que houve crescimento na área privada e não da

pública. No gráfico abaixo temos a comparação de tais dados, o que é compatível com a

tendência sinalizada no debate que apresentamos sobre a Economia Criativa.

A afirmativa de que há uma melhoria na política cultural depara-se com esta

realidade na capital: praticamente nulo é o crescimento de oferta de equipamentos de

cultura, há ênfase nos programas de financiamento que não estruturam esta política, não

houve avanço na articulação dos serviços existentes e a dinâmica interna nos

equipamentos continua fechada à participação popular.

Centros Culturais, Espaços Culturais e Casas de Cultura

Município de São Paulo

2001 a 2004, 2006 a 2008, 2010, 2012

Rede Mantenedora 2001 2002 2003 2004 2006 2007 2008 2010 2012

Total 47 57 57 57 65 72 85 90 92

Federal - - - - 1 1 1 1 1

Estadual 11 11 11 12 13 13 18 18 18

Municipal 22 20 20 20 18 19 25 25 27

Particular 14 26 26 25 33 39 41 46 46

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura

Elaboração:MDU/D ipro

A localização geográfica demonstra com dados objetivos que a periferia

realmente vive a ausência ou dificuldade de acesso à cultura, ou seja, tanto pela

distância territorial quanto de efetivação de direitos.

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Fonte: Secretaria Municipal da Cultura/Guia da Folha de São Paulo

Os dados acima analisados somam-se à estruturação da chamada Economia

Criativa no Brasil que tem sido determinada pelas referências internacionais, criando

estruturas administrativas mas sem se estabelecer uma política nacional. O Sistema

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Nacional de Cultura tem seu mérito em organizar os fluxos e criar definições básicas

para a organização das políticas nas três esferas. Porém, este sistema é opcional,

contribuindo para as negociações políticas entre os governos, em detrimento de uma

política de Estado. Ao propor uma organização sob o discurso de autonomia dos

municípios e estados, possibilita uma série de arranjos em torno de interesses.

Verificamos esta tendência ao nos deparamos com a permanência das disputas por

verbas por meio de emendas parlamentares, conforme apresentamos no terceiro

capítulo. Neste sentido, evidencia-se que esta característica da política ao mesmo tempo

que condiciona a efetivação da política, não a estabelece enquanto estatal e permanente.

Consideramos relevante reconhecer que a periferia é parte da totalidade

construída pelos atos humanos, a partir da materialidade determinada e sua realidade

somente será transformada ao se transformarem as mediações existentes nesta sociedade

capitalista. Há particularidades da luta na periferia, mas para a superação das violações

que lá se adensam, é preciso enfrentar as contradições gerais da sociedade. Mauro Iasi

problematiza:

[…] O sujeito histórico marxiano não é o homem iluminista, nem o indivíduo

do liberalismo, nem uma história abstraída de sua entificação humana. São os

seres humanos concretos e determinados que moldam o mundo, na mesma

medida em que são moldados por uma materialidade que, em parte, é

objetividade e, em parte, é uma subjetividade objetivada, por ser fruto da ação

anterior dos seres humanos. (IASI, 2011, p. 70)

Agregado a essas condições de vida, o sujeito que vive as dificuldades

decorrentes inclusive de sua localização geográfica, assume sua identidade como um ser

da periferia; no caso dos trabalhadores da cultura não é diferente, potencializando em

seu discurso a busca de uma vida melhor, tendo dentre vários direitos, a defesa da

cultura e do lazer. Não se trata, contudo, de atribuir meramente uma vontade aos

indivíduos, caindo na concepção fetichizada da liberdade do trabalhador da cultura. São

os fatores sociopolíticos que se somam contribuindo para a consciência crítica em

relação à realidade. A atividade artística pode ser um desses instrumentos e, portanto,

um terreno em disputa. A crescente organização coletiva nas regiões periféricas expressa

parte desta identidade, havendo também grupos que afirmam uma singularidade como

uma arte própria da periferia, com certo repúdio às formas artísticas tradicionais ou

consideradas da “elite” ou da burguesia.

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Vigora uma concepção do senso comum de que a fruição e a produção artística

são privilégios de alguns, reforçada pela ausência de direitos fundamentais. Assim,

embora existam conflitos importantes na construção de uma política pública para a

cultura, esta parece ter menor evidência devido à busca de outras políticas para a

satisfação das necessidades mais fundamentais.

3.1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA E RENÚNCIA FISCAL

O lugar aparentemente secundarizado da política cultural também foi

consolidado pela própria história brasileira. Contudo, conforme recuperamos no

capítulo 2, há mecanismos discretos por dentro de outras dinâmicas políticas que dão

direção para a questão da arte e da cultura no Brasil. Na atual conjuntura parece-nos

importante considerar alguns elementos: a Lei Rouanet, o movimento social de defesa

da Cultura, que apresenta a PEC 150/2003, o Sistema Nacional de Cultura e o PL que

cria o ProCultura.

A Lei Rouanet é o nome como ficou conhecida a Lei de Incentivo à Cultura, que

adotou o nome do secretário da pasta, Sérgio Paulo Rouanet. Efetivou o Programa

Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), possibilitando que empresas (pessoas jurídicas)

ou pessoas físicas possam destinar recursos para projetos culturais. O Pronac é formado

por três mecanismos: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), o Incentivo Fiscal

(Mecenato) e o Fundo de Investimento Cultural Artístico (Ficart). Segundo a definição

legal, o Pronac pretende facilitar os meios de acesso à cultura, estimular a

regionalização da produção artístico-cultural brasileira, proteger as manifestações para

garantir sua diversidade, priorizar o produto cultural do Brasil e desenvolver o respeito

aos valores culturais de outros povos e nações.

A crítica em relação ao chamado incentivo fiscal baseia-se no argumento

também existente em mecanismos utilizados em outras áreas, como da infância e

adolescência, que pratica a doação casada ou condicionada. Em todas essas

modalidades, a empresa ou indivíduo destina parte do imposto devido à aplicação

naquele setor, por meio de renúncia fiscal. Explica Costa e Carvalho sobre o histórico

dessa questão:

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[…] em 1995 foi aprovada uma primeira regulamentação da Lei Rouanet

autorizando a ampliação dos resgates do imposto devido permitidos na

formulação anterior; em 1996 é criado o Sistema Financeiro da Cultura para

organizar a renúncia fiscal [nas três esferas]. Isto é: cada esfera da

administração pública renuncia a seus respectivos impostos, como IPTU e

ISS (Lei Mendonça), ICMS (leis estaduais) e IR (Rouanet).

Em 1997 a nova regulamentação da Lei autorizou a dedução total do imposto

e “o Estado paga tudo e o capital exerce a sua liberdade de escolha”. (COSTA

E CARVALHO, 2008, p. 18)

A legislação da atual democracia brasileira começou a ser alterada muito antes

da atual Constituição cidadã. De acordo com COSTA E CARVALHO (2008), em 1985,

quando o governo desvinculou o Ministério da Cultura do Ministério da Educação,69 já

estava sendo preparada a institucionalidade para que a cultura fosse conduzida pelo

capital. Era necessário criar formas de viabilizar o caminho para os investidores. É

importante lembrar que o Ministério da Cultura chegou a ser extinto em 1990, tornando-

se uma Secretaria vinculada à Presidência da República, cujo secretário foi justamente

Rouanet. Com o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, foi recriado o

Ministério da Cultura, e a agenda neoliberal no âmbito do governo federal se

estabeleceu. Concordamos, inclusive, com a avaliação destes autores de que o governo

Lula manteve essa opção pela política neoliberal.

Não é objeto de nosso estudo o levantamento das diversas modalidades de

“financiamento” das políticas culturais, mas sim, considerar os estudos e

posicionamentos dos trabalhadores da cultura que exigem recursos públicos e

participação popular (dos trabalhadores e dos fruidores da arte) na construção de suas

ações. Tomamos como referência, portanto, as posições contra o discurso neoliberal

adotado pelos governos desde Collor e aprimorado na perspectiva da economia criativa.

3.2. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CULTURA E A ECONOMIA CRIATIVA

Chin-Tao Wu (2006),70 pesquisadora taiwanesa, desenvolveu sua tese de

doutoramento pesquisando o desenvolvimento da política cultural nos Estados Unidos e

na Grã-Bretanha desde 1980, demonstrando o impacto da política neoliberal que,

69 No item 3.3.1. voltaremos ao tema tratando especificamente da organização ministerial. 70 Especialista em arte e cultura contemporânea, é pesquisadora da Academia Sinica, em Taiwan, e

pesquisadora honorária da Universidade College, na Inglaterra. É colaboradora das publicações New Left

Review e New Statesman.

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apoiada nas formas históricas de mercantilização da arte, realiza estratégias para a

privatização no pós-guerra.

[...] As políticas públicas e o compromisso ideológico de [Ronald] Reagan e

[Margareth] Thatcher foram radicais, não apenas por terem alterado de modo

significativo o papel do Estado nas formações políticas e na cena social nos

dois países, mas também por se afastarem fundamentalmente de seus

predecessores, de seus próprios partidos, que haviam endossado, em público,

o desenvolvimento contínuo dos serviços sociais na década de 1960.

“Limitação do governo”, "desregulamentação”, “privatização” e “cultura

empresarial”, de várias formas e graus, eram as palavras-chaves da época e o

padrão ideológico do regime político nos dois lados do Atlântico. (WU, 2006,

p. 25)

Conforme apontamos no Capítulo 1 – TRABALHO E ATIVIDADE

ARTÍSTICA, essa dinâmica foi fortemente vivenciada na América Latina. Decorrente

ainda do domínio internacional sobre os rumos do país, observamos o uso corrente do

termo Economia Criativa, o qual já está incorporado à linguagem de especialistas e

órgãos do Ministério da Cultura no Brasil. O site “Economia Criativa”71 traz algumas

definições sobre a área:

[...] “Indústrias Criativas” é parte integrante do conceito de “Economia

Criativa”. Pequenas e médias empresas pertencentes às “Indústrias Criativas”

foram descritas em um relatório de abril de 1998 elaborado por uma força-

tarefa do governo do Reino Unido como sendo a força motriz do futuro

econômico do Reino Unido. São o tema de novas políticas e estruturas de

desenvolvimento econômico em países através da Europa, estando no coração

de estratégias de desenvolvimento regionais em Berlin, Milão, Helsinki,

Frankfurt, Lyon e Rotterdam.

Segundo o referido site, em setembro de 2002 foi realizado o I Fórum

Internacional das Indústrias Criativas, organizado na cidade de São Petersburgo, na

Rússia, onde se definiu como Indústrias Criativas:

[...]aquelas que têm sua origem na criatividade individual, habilidades e

talentos que têm potencial de riqueza e criação de empregos através da

geração e da exploração da propriedade intelectual. Assim, “Indústrias

Criativas” é o termo utilizado para descrever a atividade empresarial na

qual o valor econômico está ligado ao conteúdo cultural. “Indústrias

Criativas” une a força tradicional da chamada cultura clássica com o valor

agregado do talento empresarial e os novos talentos da mídia eletrônica e da

comunicação. (grifo no original)

71 http://www.economiacriativa.com/ec/pt/ec/ind_cria_cult.asp. Acesso em 28/10/2013

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O Fórum teria definido as “Categorias da Indústria Criativa” nos seguintes itens:

- Mídia e espetáculos ao vivo: filme, software de entretenimento interativo e

serviços de computação, Música, Artes Cênicas, Edição e Televisão e Rádio;

- Design e visual: Propaganda, Arquitetura, Artesanato, Design, Design de

Moda e Artes Visuais;

- Patrimônio Histórico: Mercado de artes e antiguidades, Patrimônio

Histórico e Museus e Galerias.

3.2.1. Relatório sobre Economia Criativa e a política governamental

De modo similar a outras áreas, documentos internacionais sistematizam e

pressionam a orientação da política nos diferentes países. Nessa direção, o primeiro

Relatório sobre Economia Criativa da ONU foi publicado em 2008 e o segundo, em

2010, denominado “Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável”, ao qual

nos referiremos aqui como Relatório de 2010. Produzido sob a coordenação da

UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento) e

pela Unidade Especial para Cooperação Sul-Sul do Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), expressa que “o comércio mundial de produtos e serviços

criativos permaneceu relativamente sólido em um momento em que os níveis gerais de

comércio internacional caíram” (p. xv).

Na apresentação da versão em língua portuguesa do Relatório de 2010, temos

que:

As indústrias criativas são definidas pela Conferência das Nações Unidas

para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) como os ciclos de

criação, produção e distribuição de bens e serviços que usam a criatividade e

o capital intelectual como principais insumos. Elas compreendem um

conjunto de atividades baseadas no conhecimento que produzem bens

tangíveis e intangíveis, intelectuais e artísticos, com conteúdo criativo e valor

econômico.

No caso do Brasil, a temática da economia criativa surge a partir de 2004,

com a realização, durante a XI Conferência da UNCTAD em São Paulo, de

um painel dedicado exclusivamente à questão das Indústrias Criativas na

perspectiva dos países em desenvolvimento. No governo Dilma Rousseff, o

Ministério da Cultura avançou com a institucionalização da Secretaria da

Economia Criativa, em junho de 2012, cuja missão é conduzir a formulação,

a implementação e o monitoramento de políticas públicas para o

desenvolvimento local e regional, priorizando o apoio e o fomento aos

profissionais e aos pequenos e microempreendimentos criativos brasileiros.

(p. xvi)

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O Relatório de 2010 refere que a expressão “Indústrias Criativas” teria sido

utilizada em 1994 na Austrália, no relatório Nação Criativa, tendo depois ganhado

projeção em 1997, quando legisladores do Departamento de Cultura, Mídia e Esporte do

Reino Unido estabeleceram a Força-Tarefa das Indústrias Criativas. O desenvolvimento

das tecnologias móveis tem sido um elemento-chave que influencia a definição da

chamada Economia Criativa e seus derivados, criando novos “produtos”, que também se

tornam obsoletos em pouco tempo. A UNCTAD adota a seguinte definição para as

Indústrias Criativas (2010, p. 8):

- são os ciclos de criação, produção e distribuição de produtos e serviços que

utilizam criatividade e capital intelectual como insumos primários;

- constituem um conjunto de atividades baseadas em conhecimento, focadas,

entre outros, nas artes, que potencialmente geram receitas de vendas e

direitos de propriedade intelectual;

- constituem produtos tangíveis e serviços intelectuais ou artísticos

intangíveis com conteúdo criativo, valor econômico e objetivos de mercado;

- posicionam-se no cruzamento entre os setores artístico, de serviços e

industrial;

- constituem um novo setor dinâmico no comércio mundial.

No Relatório de 2010 consta o seguinte quadro (p. 8), que traz a classificação

para as indústrias criativas, que vão orientar a organização e o planejamento da política

pública:

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Fonte: UNCTAD

O relatório é bastante detalhado em suas 423 páginas, e traz “dez mensagens

principais” (p. XXIII), afirmando:

I- que apesar da crise de 2008, as exportações mundiais de produtos e serviços

criativos obtiveram taxa de crescimento anual de 14% em seis anos consecutivos;

II- que houve aumento do comércio Sul-Sul, sendo que as exportações de

produtos criativos da região Sul para o mundo corresponde a 43% do total;

III- que “uma mistura de políticas públicas e decisões estratégicas é essencial

para direcionar o potencial socioeconômico da economia criativa a fim de gerar ganhos

de desenvolvimento”;

IV- que são necessárias “ações interministeriais harmonizadas, a fim de

assegurar que instituições nacionais, uma estrutura regulatória e mecanismos de suporte

sejam colocados em vigor para o fortalecimento das indústrias criativas e relacionadas”;

V- que no contexto das redes sociais e tecnologias flexíveis, é determinante a

regulação da “propriedade intelectual”;

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VI- ser fundamental o investimento público para a ampliação da banda larga no

Sul, para dar vazão aos produtos criativos;

VII – nesse mesmo sentido, ser necessário regular redes e propriedade;

VIII- que o desenvolvimento mundial das cidades criativas deve estar alinhado,

tornando “objetivos culturais e sociais como instrumentos de comércio, tecnologia e

turismo”;

IX- que grande parcela da população, ainda que em meio à crise, investe sua

renda em “memoráveis experiências de vida que estão associadas a status, estilo, marcas

e diferenciação”, o que definiria um estilo de vida contemporâneo;

X- que “cada país deve formular uma estratégia viável para promover sua

economia criativa com base nos pontos fortes e fracos de sua própria realidade”.

Essa conclusão não poderia ser mais contraditória: o Relatório traz desde as

concepções até as formas de elaboração de políticas e indicadores, defendendo a

presença do Estado com o financiamento nessa área, orientando as estratégias e a

flexibilidade na relação com a força de trabalho, utilizando o discurso das redes sociais

e das parcerias quando é útil, e assegurando a presença do Estado para o financiamento

do setor produtivo, por meio tanto de infraestrutura quanto de regulações, inclusive

legais, quando sabemos que a referida crise de 2008 recaiu fortemente sobre os

trabalhadores, “justificando” a flexibilização das relações de trabalho (emprego). Trata-

se de uma programática que recorre ao Estado para obtenção dos recursos públicos, mas

se recusa a cumprir regulações dos direitos do trabalho e similares. O texto de

apresentação da versão em língua portuguesa demonstra que o Brasil vem seguindo essa

cartilha, com a criação da Secretaria de Economia Criativa vinculada ao Ministério da

Cultura.

As expressões Indústria Criativa, Economia Criativa, produtos e serviços

criativos, tornaram-se correntes nos documentos da gestão pública brasileira,

incorporando a definição de “interação dos 5 Cs” que seria um processo de intersecção

de "Capital Cultural, Capital Social, Capital Humano, Capital Estrutural e Institucional",

produzindo "Manifestações de Criatividade". A ideia de interação é de interferência e

influência mútua, afirmando-se por meio dessa definição das “várias” formas de capital.

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3.2.2 Elementos sobre a influência da perspectiva da Economia Criativa no Brasil

Mencionamos brevemente no item 3.1 sobre a separação do Ministério da

Educação (MEC) e aqui se faz necessário explicitar a situação após 1985, período de

redemocratização do Brasil. Em tal contexto, passaram a existir dois Ministérios, um da

Educação (MEC) e outro da Cultura (MinC). Em 1990 este último foi extinto, criando-

se uma Secretaria de Cultura vinculada à Presidência da República. Após o

impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, o MinC foi retomado, em

novembro de 1992, no governo de Itamar Franco. Nos dois governos de Fernando

Henrique Cardoso observa-se uma tônica à flexibilização das leis de incentivo e o

crescimento da produção cinematográfica em função da Lei do Audiovisual. A

privatização das empresas estatais que historicamente funcionavam como mecenas teve

forte impacto na produção cultural, inclusive havendo denúncias sobre projetos que

captavam recursos, mas nunca eram concluídos. Ao mesmo tempo, a tendência da ótica

do marketing provocou repúdio daqueles que defendiam projetos de produção que não

estavam alinhados a essa perspectiva. A lógica neoliberal na cultura trouxe ainda o

debate sobre as diferenças regionais, havendo concentração de recursos em regiões com

maior “competitividade” econômica. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-

2010) manteve o MinC sob a orientação da renúncia fiscal. Ocorreram tensões

importantes sob o comando do Ministro Gilberto Gil, que tentou disputar a

regulamentação de uma agência controladora do audiovisual e a criação da Televisão

Pública, ambas pautas do Ministério das Comunicações. A atual estrutura regimental do

MinC é regida pelo Decreto nº 7.743, de 31 de maio de 2012.72

As informações que selecionamos no referido Relatório ilustram a posição

assumida pelos países orientados por esse modelo da Economia Criativa, que parece

adotar procedimentos quantitativos, ainda que o documento apresente suas

"justificativas" sobre a fragilidade diante de processos particulares de produção,

observando-se as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. É

adotada como parte da Economia, reproduzindo as classificações sociológicas, sendo

também entendida como subsistema. Assim, os apologistas da "Economia Criativa"

tendem na sua opção teórica a não considerar a totalidade, legitimando a dinâmica

72 Anexo 02 contém a estrutura e o organograma do MinC.

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capitalista, negligenciando uma crítica à exploração do trabalho e das suas realizações

objetivas e simbólicas. Observamos em seu discurso a justificativa de procedimentos de

análise quantitativos declarando a dificuldade de identificar aspectos políticos e

subjetivos, numa alegação racionalizadora.

O Portal Brasil,73 que divulga as ações do governo federal, publicou uma matéria

intitulada “Economia Criativa cresce mais que o PIB no Brasil”, onde inicia a análise

nos termos do Relatório de 2010, afirmando que “A cultura pode ser usada para

incentivar o desenvolvimento econômico justo e sustentável de um país”. A matéria

informa que

[...] pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam uma

participação de 7% de bens e serviços culturais no PIB mundial, com

crescimento anual previsto em torno de 10% a 20%. No Brasil, o crescimento

médio anual dos setores criativos (6,13%) foi superior ao aumento médio do

PIB nacional (cerca de 4,3%) nos últimos anos.

O portal informa que existem atualmente no Brasil 320 mil empresas voltadas

para a produção cultural, o que representaria quase 6% das empresas brasileiras,

oferecendo 3,7 milhões de empregos formais e 8,5% dos postos de trabalho. Dentre os

dados que sinalizam o tipo de “produtos” existentes, informa-se que somente 21% das

cidades brasileiras possuem salas de teatro, e apenas 9%, salas de cinema.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD)74 2012,

no ano de 2007, 4,6% da população ocupada era da área da cultura, mas em 2012 houve

uma menor participação, caindo para 3,7%. Ou seja, em tal período há um crescimento

da chamada Economia Criativa e também do percentual de pessoas ocupadas, mas

houve redução de pessoas empregadas na área da cultura. Segundo análise do portal

Agência Brasil75 sobre a PNAD 2012:

[...] o número de trabalhadores com carteira assinada nas atividades

relacionadas à cultura chegou a 39,8% dos ocupados em todas as atividades

(1,5 milhão). Na população ocupada como um todo esse percentual era

39,3% do total (37,2 milhões). O estudo mostra que a maior participação de

trabalhadores com carteira assinada no setor cultural influenciou a elevação

do percentual de contribuintes para a Previdência de 46,3% em 2007 (1,9

milhão de pessoas) e para 55,8% em 2012 (2 milhões de trabalhadores).

73 http://www.brasil.gov.br/cultura/2013/02/economia-criativa-cresce-mais-que-o-pib-no-brasil 74 Conforme a publicação em http://www.brasilcultura.com.br/cultura/ibge-cultura-perdeu-126-de-

trabalhadores-em-cinco-anos. Acessado em 20/11/2013. 75 http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-10-18/numero-de-trabalhadores-do-setor-

cultural-cai-126-entre-2007-e-2012. Acessado em 20/11/2013. Este portal indica a queda de 3,9% de

trabalhadores da área, mas o percentual correto é o acima indicado, 3,7%.

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O rendimento médio real mensal dos ocupados em atividades culturais foi

estimado em R$ 1.553,00 em 2012, valor superior ao rendimento da

população ocupada no total das atividades produtivas (R$ 1.460,00). (grifos

nossos)

O fato que sintetiza esse movimento do trabalho é que entre 2007 e 2012 houve

queda de 12,6% de trabalhadores da cultura, mas também houve crescimento do

contrato formal, observado com a arrecadação da Previdência Social.

Conforme as classificações de atividades e serviços da área de cultura

anteriormente citadas, pode-se identificar o crescimento dos lucros nesse setor, mas com

ampliação dos produtos e não necessariamente de vagas de emprego. O Relatório

menciona dois impulsionadores da Economia Criativa: tecnologia e turismo.

Na Pnad 2012 verificou-se o perfil dos trabalhadores da cultura, identificando

que 20,8% possui nível superior, margem muito acima do perfil geral dos empregados,

que chega a 14%. A maioria é branca (57,5%) e do sexo masculino (53%). A população

jovem de 16 a 24 anos que está ocupada é de 16,9%, e na área da cultura, 21,7%. Os

trabalhadores da cultura são jovens e com nível de formação formal superior à média

nacional. Este é um elemento importante: jovens têm uma inserção significativa nesse

setor, que, por outro lado, não vem consolidando seguranças trabalhistas. Portanto, a

chamada área da cultura vem crescendo em produtividade e lucros, mas o número de

trabalhadores ocupados nesse setor vem sendo reduzido. O impacto da tecnologia no

processo de comercialização é um fator relevante e relacionado às categorias que

apresentam maior crescimento. Vejamos: se houve um grande aumento da produção

cinematográfica, não houve um impacto na construção de salas em municípios que não

as possuem. O acesso aos filmes pode se dar pela aquisição de cópias em DVD,

inclusive das chamadas cópias-piratas. O crescimento da produção cinematográfica,

com excelente qualidade de conteúdo e de seus efeitos, é acompanhado por inúmeros

produtos vinculados aos personagens e ao enredo do filme. São variáveis novas na

produção e circulação de mercadorias.

O Relatório traz um quadro que destaca o Carnaval brasileiro (p. 38),

informando como o trio elétrico surge no país, e como foi se transformando, e que no

período de 1980 torna-se um “catalizador”, reunindo pessoas que compram pacotes para

acompanharem o bloco escolhido. Citando essa realidade de mercantilização, o

Relatório descreve positivamente essas mudanças e a exclusão por meio da

“reintrodução de uma hierarquia na ocupação do espaço público”, tendo o modelo sido

exportado para várias cidades, que passam a ter no carnaval um “grande negócio”.

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Analisar os argumentos da Economia Criativa é uma forma de iluminar este

debate, posto que é verificável o quanto foi criada artificialmente, visando potencializar

a lucratividade e não necessariamente o desenvolvimento humano, o direito ao lazer, à

cultura, etc.

Os dados orçamentários ilustram parte da movimentação política em torno do

tema, verificando-se um valor de emendas parlamentares bastante significativo,

principalmente considerando que em geral esses valores não são direcionados aos

projetos que sofreram cortes no orçamento, mas para atividades pontuais, como eventos.

Essa dinâmica das discussões legislativas não tem como foco uma política cultural, mas

passa por ela incidentalmente, pois o que importa é a atividade que passa a ser associada

ao mandato do parlamentar.

Pudemos levantar os dados orçamentários do Ministério da Cultura, que, assim

como as demais áreas que não possuem percentual obrigatório, são ampliados mediante

emendas apresentadas por parlamentares.

2010 2011 2012 2013 2014

Valor do orçamento na

LDO 1,3 bi 1,6 bi 1,79 bi 3 bi 2,59 bi

Somado com emendas

parlamentares 2,2 bi 2,13 bi 2,1 bi 3,5 bi 3,26 bi

Esses dados ilustram bem o funcionamento da pequena política, em que a

ampliação dos recursos serve a interesses particulares, sem contribuir para a

consolidação de uma Política de Estado, permanente, instituinte de direitos. A cada novo

ano ocorrem novas negociações entre os “interessados”.

Outro recorte sobre a política é a observação das secretarias que compõem o

Ministério da Cultura, que são seis.76 As Secretarias de Políticas Culturais e a Secretaria

76 O Ministério da Cultura possui em sua estrutura regimental seis secretarias que atuam em suas

respectivas competências para a elaboração e implementação de ações que objetivam garantir o acesso da

população às políticas e bens culturais.

A Secretaria de Políticas Culturais (SPC) tem entre suas competências subsidiar e coordenar a

formulação, a implementação e a avaliação das políticas públicas do Ministério. Ela também se articula

com os Ministérios da Educação e da Comunicação para integrar as políticas públicas de cultura e as

políticas públicas de educação e comunicação nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal.

A Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC) tem dentre as suas atribuições planejar,

coordenar, monitorar e avaliar políticas, programas, projetos e ações para a promoção da cidadania e da

diversidade cultural brasileira. Também compete à SCDC, promover e fomentar programas, projetos e

ações que ampliem a capacidade de reconhecimento, proteção, valorização e difusão do patrimônio, da

memória, das identidades, e das expressões, práticas e manifestações artísticas e culturais.

A Secretaria do Audiovisual (SAV) propõe a política nacional do cinema e do audiovisual, bem como

políticas, diretrizes gerais e metas para o desenvolvimento da indústria audiovisual e cinematográfica

brasileira. A SAV formula políticas, diretrizes e metas para formação e capacitação audiovisual, produção,

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de Economia Criativa foram criadas em 2010 e tiveram a seguinte situação orçamentária

entre 2011 e 2013:

Os outros setores vivenciam a mesma situação nessa disputa por recursos e não

por uma proposta articulada. Há uma particularidade no caso da cultura, que se refere às

leis de incentivo e de renúncia fiscal, como a Lei Rouanet.77 No quadro abaixo78 estão

distribuição, exibição, preservação e difusão de conteúdos audiovisuais e cinematográficos brasileiros,

respeitadas as diretrizes da política nacional do cinema e do audiovisual e do Plano Nacional de Cultura.

A Secretaria de Economia Criativa (SEC) propõe, conduz e subsidia a elaboração, implementação e

avaliação de planos e políticas públicas para o desenvolvimento da economia criativa brasileira. A SEC

ainda planeja, promove, implementa e coordena, entre outras ações, o desenvolvimento da economia

criativa brasileira.

A Secretaria de Articulação Institucional (SAI) promove a articulação federativa por meio do Sistema

Nacional de Cultura, e cuida da integração de políticas, programas, projetos e ações culturais executadas

pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com a participação da sociedade. Articula-se com

órgãos e entidades públicas e privadas visando ao desenvolvimento cultural, social e econômico do país,

entre outras competências.

A Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC) é responsável por formular diretrizes gerais e

dar publicidade aos critérios de alocação e de uso dos mecanismos de fomento e incentivo à cultura e do

Fundo Nacional da Cultura, em conjunto com as outras unidades do Ministério. A SEFIC também, entre

outras competências, desenvolve, propõe e executa mecanismos de fomento e incentivo para programas e

projetos culturais, além de planejar, coordenar e supervisionar a operacionalização do Programa Nacional

de Apoio à Cultura – PRONAC. fonte: www.cultura.gov.br 77 O mecanismo de incentivos fiscais da Lei n° 8.313/1991 (Lei Rouanet) é uma forma de estimular o

apoio da iniciativa privada ao setor cultural. O proponente apresenta uma proposta cultural ao Ministério

da Cultura (MinC) e, caso seja aprovada, é autorizado a captar recursos junto a pessoas físicas pagadoras

de Imposto de Renda (IR) ou empresas tributadas com base no lucro real visando à execução do projeto.

Os incentivadores que apoiarem o projeto poderão ter o total ou parte do valor desembolsado deduzido do

imposto devido, dentro dos percentuais permitidos pela legislação tributária. Para empresas, até 4% do

imposto devido; para pessoas físicas, até 6% do imposto devido.

Ministério da Cultura - MinCSecretaria Executiva - SESubsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração - SPOA Coordenação Geral de Orçamento, Finanças e Contabilidade - CGOF

Execução Orçamentária SPC / SEC - 2011 a 2013R$ 1,00

Total 23.265.184,38 18.879.773,93 20.339.137,87 17.290.894,06 26.197.491,39 20.785.028,55

Unidade Gestora 2011 2012 2013

Dot Atualizada Empenhado Dot Atualizada Empenhado Dot Atualizada Empenhado

Subtotal - SPC 7.446.733,96 7.199.990,09 4.898.026,59 2.825.518,94 5.988.182,91 4.592.542,69

Secretaria de Políticas Culturais / Direta 3.973.075,96 3.726.332,09 4.898.026,59 2.825.518,94 4.534.751,22 4.239.111,00

Secretaria de Políticas Culturais / FNC 3.473.658,00 3.473.658,00 - - 1.453.431,69 353.431,69

Subtotal - SEC 15.818.450,42 11.679.783,84 15.441.111,28 14.465.375,12 20.209.308,48 16.192.485,86

Secretaria da Economia Criativa / Direta 13.318.450,42 9.179.783,84 10.441.111,28 9.465.375,12 18.244.628,96 14.727.806,34

Secretaria da Economia Criativa / FNC 2.500.000,00 2.500.000,00 5.000.000,00 5.000.000,00 1.964.679,52 1.464.679,52

Fonte: Siafi Gerencial

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os valores aplicados por meio dessa Lei, os quais ilustram que tem havido aumento no

investimento público, principalmente pela União, mas há vias paralelas no

desenvolvimento da política cultural.

O Tribunal de Contas da União (TCU) verificou em sua fiscalização que em

2011, por exemplo, mais de 70% dos valores obtidos pela Lei Rouanet foram aplicados

nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. O caso do grupo canadense Cirque du Soleil,

que em 2006 foi autorizado a captar R$ 9,4 milhões em sua apresentação no Brasil e

teve ingressos por até R$ 370,00, provocou certo alarde. Porém, ao longo dos anos,

continuamos a ver situações parecidas, argumentando-se, inclusive, que os investidores

estariam realizando o que a legislação permite. Em artigo79 publicado no caderno

A dedução concorre com outros incentivos fiscais federais, sem, contudo, estabelecer limites específicos,

o que poderá ser aplicado em sua totalidade no incentivo à cultura. A opção é do contribuinte. Fonte:

www.minc.gov.br> Acesso em 02/03/2014. 78 LIMA, P. Rouanet em queda? Disponível em: www.culturaemercado.com.br. Acesso em 22/03/2014. 79 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/126984-rouanet-banca-igreja-ponte-oktoberfest-e-festa-da-

mancha-verde.shtml

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Mercado, do jornal Folha de São Paulo, Ricardo Mioto retomou, em setembro de 2012,

o que vem sendo dito há tempos: que a Lei Rouanet foi criada para gerar autonomia e

investimento para a produção cultural, mas são as empresas estatais BNDES (Banco

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Petrobrás, Vale do Rio Doce e

Banco do Brasil que mais utilizam os recursos existentes. Refere que por ano o Estado

deixa de receber cerca de 1,2 bilhão de reais, e para ilustrar o significado de tal cifra,

compara que todas as universidades federais juntas têm o orçamento anual de 2 bilhões

de reais. As empresas privadas que mais captam os recursos são o Itaú Cultural,

Fundação Roberto Marinho e Time For Fun, que “promovem” eventos para as classes A

e B. Recursos foram utilizados para reformar pontes e imóveis com valor cultural, mas

também para igrejas católicas: catedral de Campinas, R$ 7 milhões para reformar;

catedral de Brasília, R$ 25 milhões. Em São Paulo, as igrejas da Santa Ifigênia e de

Santo Amaro tiveram juntas aprovação de R$ 9 milhões. Outros projetos aprovados em

várias cidades totalizam mais de R$ 26 milhões. Entram ainda nesse conjunto de

patrocínios, festas como a Oktoberfest e torcidas organizadas. Por enquanto, é a

Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) que realiza a avaliação dos pedidos.

Em agosto de 2013 um projeto pleiteava R$ 2,8 milhões de reais para um desfile em

Paris, sendo o proponente o estilista paulista Pedro Lourenço. Com sete votos contrários

e sete abstenções, foi negado o pedido. Cinco dias depois o proponente entrou com um

recurso, e a Ministra da Cultura, Marta Suplicy resolveu o impasse de meses, em dois

dias, aprovando o projeto. Piorando essa situação, noticiou-se que a empresa

responsável pelo projeto pertence a uma consultora do Ministério de Cultura.

Há muito que alterar na institucionalidade do Estado brasileiro, que não será

resolvido apenas por novas legislações. Está em tramitação o PL 6.722/2010, proposto

pelo Executivo, que visa criar o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura

(ProCultura) e extinguir a Lei Rouanet, tendo como principal preocupação a distribuição

dos recursos aos Estados e Municípios, bem como aos pequenos produtores e

independentes. A lógica da legislação continua sendo a renúncia fiscal.

As críticas de trabalhadores da área cultural a este PL80 focam principalmente a

questão da renúncia fiscal, conforme a entrevistada Fernanda Azevedo explicita: “O

80 O PL 6.722/2010 foi apensado ao PL 1.139/2007, que propunha alterar o §7 da Lei Rouanet, para

garantir a descentralização da aplicação dos recursos. Em 19/05/2012 foi realizado o primeiro seminário

[ou o nome oficial, como abaixo] na cidade de São Paulo sobre o projeto do ProCultura, e os movimentos

e trabalhadores repudiaram a articulação entre o mercado e o governo, montando um ato com café da

manhã em frente ao local do evento. Em 17/08/213 aconteceu o II Seminário Procultura do Ministério da

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projeto81 mantém a matriz liberal que se iniciou com a Lei Sarney em 1986. Para nós,

cultura é um direito social, portanto, é uma obrigação do Estado garantir seu

financiamento direto”.

O PL do ProCultura prevê a alteração da legislação, estabelecendo três faixas de

renúncia fiscal: 40% do valor poderá ser de patrocínios, e de 60 a 80%, de doações.

80% dos recursos do Fundo Nacional de Cultura serão destinados a projetos da

sociedade não vinculados a copatrocinadores ou ao poder público, combatendo a lógica

de marketing e imagem da empresa. O FNC deverá garantir pelo menos 10% para os

Estados, e os projetos serão aprovados concorrendo em seleção pública.

3.3. A POSIÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA NA CAPITAL PAULISTA

Muitos grupos e coletivos de atores, alguns deles atuando desde o período

anterior à Ditadura de 64, mantiveram suas concepções e posições, questionando ao

longo de sua existência a política cultural brasileira. O importante legado tanto da luta

pela democratização, quanto da gestão municipal de São Paulo da Prefeita Luíza

Erundina (1989-1992), com Marilena Chauí no cargo de Secretária Municipal de

Cultura, manteve os trabalhadores do teatro mobilizados. A gestão de Chauí, que "[...]

pautara as ações de política cultural pela noção de cultura como direito dos cidadãos, há

de ter inspirado os artistas que naquele momento deram início às discussões sobre a

cultura em São Paulo", afirmam Costa e Carvalho (2005, p. 20). Um marco político

nesse sentido foi o Manifesto Arte Contra a Barbárie, de maio de 1999. O manifesto foi

construído coletivamente, e seus signatários são principalmente grupos de teatro

formados entre os anos 80 e 90, mas também “veteraníssimos” como o União & Olho

Cultura (MinC) com empresários e produtores culturais, num evento privado no Hotel Jaraguá na Cidade

de São Paulo, e que foi repudiado pela Rede Cultura de Solidariedade Autônoma (RECUSA), com um

Ato-esculacho que recusou “a política do cafezinho às portas fechadas, trabalhadores da cultura, ativistas,

agitadores culturais e integrantes de movimentos populares se organizavam num café de rua – “Café

Batucada: também quero decidir!” – para denunciar as negociações do MinC e dialogar com a população

sobre cultura como direito e não como mercadoria.Disponível em: www.passapalavra.org.br, acessado em

14/03/2014. A carta do movimento consta nos anexos desta pesquisa.

Foi publicada a Instrução Normativa nº 01, de 24 de junho de 2013, do MinC que estabelece

procedimentos para apresentação, recebimento, análise, aprovação, execução, acompanhamento e

prestação de contas de propostas culturais relativas ao mecanismo de incentivos fiscais do Programa

Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC. 81 Projeto de lei que cria Procultura é “esculachado”. Disponível em:

http://www.brasildefato.com.br/node/9621. Acessado em 18/04/2014.

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Vivo, criado em 1966. Segundo eles, a experiência demonstrava que o tipo de teatro que

realizavam não interessava aos profissionais de marketing responsáveis pela destinação

das verbas governamentais, visto que eram direcionadas ao orçamento publicitário de

empresas.

O Movimento Arte contra a Barbárie demarcou o debate sobre a organização de

grupos de teatro em torno da reflexão sobre o sentido e o impacto de seu trabalho para a

sociedade. Lançaram o “Manifesto Arte contra a Barbárie” em maio de 1999, discutindo

o direcionamento das políticas públicas na área cultural, em particular, do teatro. A

repercussão foi estrondosa, atingindo o objetivo de seus signatários quanto à

mobilização da sociedade civil para a discussão.

Manifesto ARTE CONTRA A BARBÁRIE

O teatro é uma forma de arte cuja especificidade a torna insubstituível

como registro, difusão e reflexão do imaginário de um povo.

Sua condição atual reflete uma situação social e política grave. É

inaceitável a mercantilização imposta à cultura no País, na qual predomina

uma política de eventos.

É fundamental a existência de um processo continuado de trabalho e

pesquisa artística.

Nosso compromisso ético é com a função social da arte.

A produção, circulação e fruição dos bens culturais é um direito

constitucional, que não tem sido respeitado.

Uma visão mercadológica transforma a obra de arte em “produto

cultural”. E cria uma série de ilusões que mascaram a produção cultural no

Brasil de hoje.

A atual política oficial, que transfere a responsabilidade do fomento da

produção cultural para a iniciativa privada, mascara a omissão que transforma

os órgãos públicos em meros intermediários de negócios. A aparente

quantidade de eventos faz supor uma efervescência, mas, na verdade, disfarça

a miséria de investimentos culturais a longo prazo que visem à qualidade da

produção artística.

A maior das ilusões é supor a existência de um mercado. Não há

mecanismos regulares de circulação de espetáculos no Brasil. A produção

teatral é descontínua e no máximo gera subemprego. Hoje, a política oficial

deixou a cultura restrita ao mero comércio do entretenimento. O teatro não

pode ser tratado sob a ótica economicista. A cultura é o elemento de união de

um povo que pode fornecer-lhe dignidade e o próprio sentido de nação. É tão

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fundamental quanto a saúde, o transporte e a educação. É, portanto, prioridade

do Estado.

Torna-se imprescindível uma política cultural estável para a atividade

teatral. Para isso são necessárias, de imediato, ações no sentido de:

Definição de estrutura, do funcionamento e da distribuição de verbas

dos órgãos públicos voltados à cultura.

Apoio constante à manutenção dos diversos grupos de teatro do País.

Política regional de viabilização de acesso do público aos espetáculos.

Fomento à formulação de uma dramaturgia nacional.

Criação de mecanismos estáveis e permanentes de fomento à pesquisa

e experimentação teatral.

Recursos e políticas permanentes para a construção, manutenção e

ocupação dos teatros públicos.

Criação de programas planejados de circulação de espetáculos pelo

País.

Esse texto é expressão do compromisso e responsabilidade histórica dos seus

signatários com a ideia de uma prática artística e política que se contraponha

às diversas faces da barbárie – oficial e não oficial – que forjaram e forjam

um País que não corresponde aos ideais e ao potencial do povo brasileiro.

Cia. do Latão, Folias D´Arte, Parlapatões, Patifes & Paspalhões, Pia Fraus,

Tapa, União & Olho Vivo, Monte Azul e Aimar Labaki, Beto Andretta, Carlos

Francisco Rodrigues, César Vieira, Eduardo Tolentino, Fernando Peixoto,

Gianni Ratto, Hugo Possolo, Marco Antonio Rodrigues, Reinaldo Maia,

Sérgio de Carvalho, Tadeu de Souza e Umberto Magnani.

Sete meses depois, foi lançado o “Segundo Manifesto” (1999-a), onde consta a

avaliação sobre o direcionamento dos recursos públicos na área:

No setor privado os investimentos realizados, com raras exceções,

beneficiaram os próprios investidores aumentando o seu "patrimônio físico"

ou abatendo o "imposto a pagar", sem contudo realizar nenhum papel social

de fomento, circulação ou socialização do bem cultural. (COSTA E

CARVALHO, 2008, p. 24-25)

O terceiro Manifesto foi lançado em 26 de junho de 2000, no qual,

concentrando-se nas críticas contra a renúncia fiscal que possibilitou o uso de recursos

públicos em interesses das empresas, avaliam, em termos de impacto, que “Essa política

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não trouxe nenhum benefício à produção em geral: não barateou o preço dos ingressos,

não ampliou o acesso aos bens culturais e principalmente não garantiu a produção

continuada das Artes Cênicas”.

No Terceiro Manifesto também reafirmam seu “compromisso ético com a função

social de nosso ofício e de nossa Arte”, avaliando que “A produção artística vive uma

situação de estrangulamento que é resultado da mercantilização imposta à cultura e à

sociedade brasileiras” cujo “resultado a nação sente diariamente. É o aumento da

violência e da selvageria”. (COSTA E CARVALHO, 2008, p. 29)

O Movimento Arte contra a Barbárie denunciava que o Fundo Nacional de

Cultura, que deveria fomentar a produção artística que não se regia pela “lei de

mercado”, não destinou os recursos para tal finalidade. Reivindicavam a criação de

programas permanentes para artes cênicas nas três esferas e organizaram encontros

públicos para o debate sobre política cultural, chamados de Espaço da Cena, e sobre os

fundamentos éticos do trabalho cênico. (COSTA E CARVALHO, 2008). Nesse processo

surgiu o Grupo de Trabalho para elaboração de uma lei. Depois de realizar pesquisas

sobre as legislações da Itália, Argentina e Canadá, o grupo concluiu que a melhor

alternativa era a criação de um instrumento municipal que, no caso da cidade de São

Paulo, foi a Lei 13.279/02, Lei de Fomento ao Teatro.

Segundo os participantes do Grupo de Trabalho, a nova lei tinha três objetivos

estratégicos: assegurar a sobrevivência dos grupos de teatro; romper com a lógica

neoliberal de ênfase à mercantilização e lucratividade da cultura; e aprofundar o debate

sobre a função da arte. A Lei de Fomento ao Teatro foi promulgada em janeiro de 2002

e a articulação entre os grupos foi mantida. Seis grupos selecionados para receber

recursos na primeira edição pactuaram quanto à destinação de parte do orçamento para a

publicação de um jornal para manter a exposição das pautas do Movimento Arte contra

a Barbárie. Suas publicações manteriam o viés crítico, debatendo o sentido coletivo do

fazer teatral, a crítica à cultura do favor, trabalho e sobrevivência. Encerram-se as

publicações em dezembro de 2003, no sétimo número do jornal.

O Movimento Arte contra a Barbárie deu sequência aos debates, preocupado

inclusive com os grupos de teatro que não conseguiam acessar os recursos do Programa

de Fomento. O documento "Fomento. Programa Público. Continuidade" foi elaborado

por Luiz Carlos Moreira e buscou abranger as dúvidas dos diferentes grupos. Defende-

se no documento que o Programa é estruturante, exigindo a apresentação de um Plano

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de Trabalho, visando a realização de um trabalho continuado. A diferença central entre

esse documento e a Lei é que esta colocava como critério de julgamento a dificuldade

de sustentação no mercado. Moreira refere que esse tipo de teatro implica relações de

trabalho e técnicas de criação; que a formação de público esteja relacionada à

continuidade e, assim, ao estabelecimento de vínculos com a população, e que esta

passe a se posicionar na defesa do seu direito ao acesso à cultura. Portanto, também se

exige uma projeção de ampliação dos investimentos para combater a descontinuidade

ou a estagnação de um grupo que seria privilegiado por receber o recurso financeiro.

Essa produção artística que combate a lógica da mercantilização precisa enfrentar,

portanto, a relação de trabalho e propriedade.

Há uma tensão no entendimento entre ser um “artista” ou um “trabalhador”. A

expressão trabalhador da cultura parecia-nos já inicialmente adequada e, mediante a

análise dos discursos, avaliamos ser pertinente adotá-la, verificando que contém uma

concepção teórico-metodológica e ético-estético-política de horizonte anticapitalista,

abrangendo a crítica ao modo de produção e os aspectos patrimonialistas, mercantilistas

e sexista-machistas. Essa concepção é adotada por vários indivíduos e sujeitos coletivos,

que se definem como trabalhadores da cultura, trabalhadores da arte, trabalhadores-

artistas.

Observamos que diferentes coletivos artísticos – do teatro, do hip-hop, do

grafite, da literatura, dos saraus, etc. –, adotam esse discurso ético-político, recusando a

mera criação de temas (ou mercadorias) para sua atividade artística. Essa posição de

enfrentamento ao mercado e à lógica empresarial é parte de seu projeto, diferentemente

de grupos que adotam repertórios com conteúdo crítico, porque este já se tornou um

produto viável junto ao mercado. Por exemplo, o discurso feminista se faz presente em

muitas peças teatrais, mas sem que esse conteúdo seja necessariamente parte do projeto

ético-estético-político do grupo, sendo apresentado como um produto para o mercado

cultural.

Dessa forma, o Movimento Arte contra a Barbárie, embora encampado

inicialmente pelos grupos de teatro, trouxe esse debate e provocou uma intensa

movimentação na área cultural. Observando a permanência dos grupos signatários do

primeiro Manifesto na cena política, nas suas produções e participação social, percebe-

se a atualidade de sua agenda. Esses coletivos continuam lutando contra as leis de

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incentivo fiscal mediante renúncia fiscal e defendendo uma política permanente de

cultura, como direito do cidadão.

A exploração da cidade, que se torna mercadoria a ser consumida, e a cultura

como mote de restaurar mais vida (“revitalização”) ao cotidiano são, portando, dois

fatores que não são novos, mas expressam a intensificação da reificação e alienação

gerada pelo capitalismo. O movimento dos trabalhadores da cultura soma-se, portanto,

às lutas democráticas, exigindo o reordenamento desta lógica ditada pela lucratividade.

Ponderamos essa relação entre a propriedade da terra, a especulação do mercado

imobiliário, a expulsão da população inclusive da periferia, enquanto conjunto

decorrente da pressão do movimento do capital, o qual utiliza-se de quaisquer

instrumentos para sua realização. O investimento na arte e na cultura objetiva a

expansão do capital e, para tanto, também vai interferindo fortemente na organização do

Estado – feição política da sociedade.

A PEC82 150/2003 é uma proposta legislativa dos trabalhadores da cultura com

posição crítica em relação à mercantilização e privatização da cultura. Nessa PEC é

previsto o repasse anual de 2% do orçamento federal, 1,5% do orçamento dos estados e

do Distrito Federal e 1% do orçamento dos municípios, de receitas resultantes de

impostos, para a cultura. Embora com discurso governamental de apoio a este PEC, esta

tramita há onze anos, tendo parecer favorável pela Comissão de Constituição, Justiça e

Cidadania (CCJC) em 2005, e desde março de 2011 aguarda o cumprimento do

requerimento de diversos parlamentares para a inclusão na ordem do dia da Câmara dos

Deputados. Ao mesmo tempo, o PL do ProCultura foi aprovado na CCJC em 01 de abril

de 2014 e seguirá para o Senado. Em 17 de abril de 2014 foi aprovada no Senado a

emenda 49, que inclui na Medida Provisória 627/2013,83 a qual põe fim à cobrança do

Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da

Seguridade Social (Cofins) sobre as atividades culturais oferecidas por grupos e artistas

cooperados.

Essa movimentação ilustra as tensões existentes entre as concepções e forças

políticas no desenvolvimento da política cultural. Existe previsão de participação da

82 PEC significa Proposta de Emenda Constitucional, que é uma atualização, uma emenda pontual à

Constituição Federal. É uma das propostas que exige mais tempo para preparo, elaboração e votação, uma

vez que modificará a Constituição Federal. Exige quórum de três quintos dos Deputados Federais e

Senadores, tramitando em dois turnos de votação em cada uma das Casas legislativas, Câmara dos

Deputados e Senado Federal. 83 Esta MP inclui diversas mudanças tributárias.

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sociedade civil organizada em órgão de controle da gestão, com composição paritária.

Apesar desse cenário moroso, complexo, parece-nos contraditório que a adesão ao

Sistema Nacional de Cultura seja opcional. Inclusive, a previsão de existência do

modelo CPF (conselho, plano e fundo) está contida na PEC 150. Portanto, essas

propostas legislativas exigirão compatibilização de suas características.

Observamos que a perspectiva da Economia Criativa desenvolve sua análise e a

defesa marcada pela lucratividade final, considerando as condições dos trabalhadores

como apenas mais um dos elementos do desenvolvimento, não havendo um olhar

específico para suas condições e direitos. Além disso, afirmam que os órgãos oficiais

deparam com maior dificuldade no campo das Artes Cênicas, que formam um subgrupo

de atividades realizadas em palco, ao vivo, por artistas, tendo interação com música,

trajes e radiodifusão, abrangendo “formas tais como teatro, ópera, poesia, dança, balé,

concertos, circo e teatro de marionetes, que são geralmente apresentadas para fins

culturais, de entretenimento, educativos e comerciais” (UNCTAD, p. 141). O Relatório

refere serem atividades imateriais e intangíveis, adotando a criação de mecanismos que

moldem e condicionem a análise da produção cultural.

O Relatório de 2010 demonstra a ênfase dada à culturalização da economia,

realizando a criação de um sujeito para o objeto: um público sensibilizado para o

consumo desses produtos. Harvey (2005) refere que no período pós-fordista realiza-se a

produção flexível, em que as novas tecnologias produtivas vão permitir uma aceleração

na produtividade, ao mesmo tempo em que explora novos nichos de mercado

especializados, de pequena escala, com aceleração no tempo de giro de produção, que é

a “chave da lucratividade capitalista” (p. 148). Alerta, contudo, que essa redução de

tempo de giro de produção exigiu a redução no tempo de giro de consumo, observando

o tempo de vida de vários produtos, de vestiário a computadores. De fato, na atualidade,

vivenciamos a agilidade com que os produtos se tornam obsoletos, especialmente os

relacionados à tecnologia e à comunicação, como já mencionamos anteriormente.

Seguindo essa tendência, a “valorização” do centro exigiu o investimento de

recursos públicos que beneficiaram as empresas e corporações, bem como a contratação

de instituições para os serviços necessários. Nesse mesmo período temos a criação da

Virada Cultural em 2005 que agrega shows artísticos diversos, concentrados em 24

horas e sem continuidade. A mesma dinâmica foi criada em 2007 com a Virada Cultural

Paulista, na qual o Governo do Estado realiza parcerias com os municípios e com o

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SESC-SP. A Virada Cultural Paulista em 2013 abrangeu 26 cidades paulistas84 e

segundo as informações do governo do Estado de São Paulo propiciou cerca de mil

atividades apresentadas em 150 palcos e espaços alternativos. “Vitórias e impasses no

gigantismo da Virada Cultural”85 da cidade de São Paulo foi tema de debate promovido

pelo jornal O Estado de São Paulo, em 2010, com um empresário, um antropólogo, um

produtor e duas atrizes. Mariana Senne, atriz, problematizou a questão orçamentária:

A Virada está trabalhando com um orçamento de R$ 8 milhões [em 2010]

para um evento de 24 horas. No teatro, nós temos a Lei do Fomento, que

poderia ser um modelo de uma ação pública continuada, que tem R$ 11

milhões durante o ano inteiro. São contemplados 50 grupos, que podem

atender a uma população bastante grande, que chega perto dos números

absolutos da Virada. É um exemplo de política pública que é de continuidade.

Parece que, por mais que as intenções sejam positivas, a Virada não é uma

política pública.

Outro participante do debate, o produtor Alexandre Youssef, destaca que:

A Virada Cultural se inspirou na Nuit Blanche francesa, que teve uma origem

muito diferente. Foi criada por Jacques Lang, quando ele era ministro da

Cultura do governo Mitterrand, ao mesmo tempo em que ele criava as

Maisons de la Musique, que são aquelas casas de música amplificadas de que

ele construiu milhares no território francês, que tinham palco para música,

para teatro, para multimídia. A Nuit Blanche é um maravilhoso evento,

agregado às ações de pulverização dos espaços e ações culturais em todo o

território francês, que se transformou numa política pública revolucionária.

Pondera, contudo, que essa política estimulada pelo Estado visava superar a

estagnação na área cultural, revelando talentos e com continuidade. Como muitos

críticos mais moderados com relação à Virada, defendem seus pontos fortes, mas

ponderam que é necessária uma política permanente, não apenas o evento de 24 horas.

Nesse sentido, fóruns de cultura e sobre cultura estão debatendo, especialmente

no extremo das regiões Sul e Leste da cidade de São Paulo, um projeto de lei específico

(“Fomento Periferia”) para desenvolver a política pública nessa direção, inspirado na

Lei de Fomento ao Teatro. Esse é outro recorte importante do movimento social na

cidade de São Paulo, permeado por contradições, que certamente será um dos pontos

84

Assis, Americana, Araçatuba, Araraquara, Barretos, Bauru, Botucatu, Campinas, Caraguatatuba,

Diadema, Franca, Indaiatuba, Jundiaí, Marília, Mogi das Cruzes, Mogi Guaçu, Mogi Mirim, Piracicaba,

Presidente Prudente, Registro, Santa Bárbara D’Oeste, Santos, São Carlos, São João da Boa Vista, São

José do Rio Preto e São José dos Campos. 85 www.estadao.com.br/noticia_imp.php?req=arteelazer,vitorias-e-impasses-no-gigantismo-da-virada-

cultural, 551424,0.htm 1/5

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nevrálgicos da consolidação de um Sistema Nacional de Cultura, que, se por um lado se

propõe estabelecer uma política nacional, por outro, está em andamento de forma

“optativa” aos governos municipais e estaduais. Os elementos apontados nos permitem

problematizar que estamos numa outra forma de fazer a política de governo, pois a

característica de ser opcional volta-se muito menos para enfrentar as diferenças

regionais de modo estruturante do ponto de vista do pacto federativo, e muito mais para

consolidar as agendas governamentais e de interesses de segmentos.

A experiência do Movimento Arte contra a Barbárie é lembrada nos debates que

tratam da importância de ser garantido orçamento próprio e específico para as

particularidades das diferentes manifestações artísticas e da realidade local,

considerando-se as questões estruturais (equipamentos, urbanização, transporte,

iluminação, etc.) e características da população.

Não se trata, portanto, apenas de uma defesa de orçamento e políticas, mas

simultaneamente o exercício da mobilização e afirmação dos direitos e resistência. Os

sujeitos possuem diferentes origens e concepções, decorrendo dessas divergências

disputas de recursos e de projeto político mais amplo sobre a cultura. Os fóruns e redes

vêm se articulando, com diferenças nas concepções sobre política pública e autonomia

diante do governo, mas nem sempre de forma explícita. Há um esforço em torno da

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identidade enquanto sujeitos culturais da periferia, que conforme apontamos

inicialmente, é um potencial positivo, mas também um risco quanto à fragmentação ou à

idealização da própria periferia, como algo à parte de todo o sistema. Exige-se muita

cautela, que para se afirmar não se caia numa luta fragmentária, como caminham muitos

movimentos, pulverizando as bandeiras e dividindo a classe.

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Capítulo 4

SOCIABILIDADE DE RESISTÊNCIA: CONSTRUÇÕES E CONTRADIÇÕES

NO EXTREMO SUL PAULISTANO

1 Festa de aniversário de 6 anos (2013).

Fonte: Sacolão das Artes, divulgação.

Neste capítulo apresentamos elementos que consideramos significativos para

problematizar a sociabilidade de resistência, ilustrada pelo processo de lutas do Sacolão

das Artes.

4.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA DE CAMPO

Ao realizarmos os estudos desta tese, fomos perseguindo elementos postos na

realidade, o que nos levou ao Sacolão das Artes, junto ao qual desenvolvemos uma

pesquisa de campo que se somou aos procedimentos teórico-metodológicos adotados

para a elaboração do presente trabalho.

Os dados que debatemos neste capítulo foram analisados com base nos

documentos elaborados em momentos coletivos do Sacolão das Artes, em artigos de

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jornais, em textos de alguns sujeitos coletivos, no conteúdo das reuniões do Coletivo

Gestor, e no acompanhamento de atividades. Além disso, realizamos três entrevistas em

grupo (com um dos que chamamos fundadores, um que está no espaço há cerca de 3

anos, e um grupo que interrompeu as atividades em 2013) e duas entrevistas individuais

representando coletivos diferentes. Após estudar esses dados, sistematizamos uma

análise preliminar que submetemos a um grupo focal.

Não localizamos nenhuma outra denominação específica sobre esse

procedimento, tendo-nos, entretanto, inspirado no livro de Moraes,86 levando então o

conteúdo para o grupo focal, com o qual debatemos três grandes blocos de análise.

Salientamos que a releitura do grupo focal visou submeter parte da análise

realizada a um grupo focal com os membros do Sacolão tendo como critério serem

sujeitos que participaram das reuniões do Coletivo Gestor e/ou das entrevistas. Este

grupo focal foi projetado como um momento de síntese coletiva. Essa nossa escolha

implica, inclusive, uma crítica sobre a posição ética em não apenas dar uma devolutiva

aos sujeitos sobre os resultados da pesquisa, mas, num movimento anterior, submeter-

lhes nossas análises preliminares sobre eles para que pudessem opinar. Como a

pesquisa é um processo de abstração a partir do real, a cada movimento de análise

podemos aprofundar e mesmo rever o que foi elaborado. Desse modo, priorizamos esse

momento de escuta e análise dos sujeitos coletivos fazedores do Sacolão das Artes sobre

o que ora apresentamos.

O grupo focal foi realizado com quatro coletivos e um grupo, composto por oito

pessoas87 (que ora nominaremos participantes), atingindo o proposto no projeto de

pesquisa. O material organizado foi apresentado oralmente nos seguintes blocos:

- Histórico do Sacolão das Artes

- Vivência do coletivo: existe uma sociabilidade de resistência?

- Contribuição para a cultura democratizante

Após a apresentação de cada bloco de análise, abrimos para o debate do grupo

focal, acolhendo suas problematizações, correções e acréscimos. Consideramos esse

86 MORAES, D. de. A Esquerda e o Golpe de 64, 3ª ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011. Ao

explicar a organização desse livro, o autor refere que o terceiro capítulo “consistiu em levar nossas

avaliações anteriores à apreciação crítica dos personagens”. 87 No dia agendado para realizarmos o grupo focal houve uma forte chuva, que ocasionou grande atraso, o

que comprometeria a atividade. Os cinco coletivos presentes aceitaram reagendar, embora um deles

informasse sua impossibilidade de comparecer na data reagendada. Assim, dois sujeitos coletivos, que

estiveram no primeiro momento, não compareceram.

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procedimento de reflexão interessante, pois possibilitou ouvir os sujeitos acerca de

nossa reflexão teórica, cuidando para que não tivéssemos distorções de entendimento e

para que os registros neste trabalho acadêmico estivessem o mais próximos possível do

apresentado pelos participantes, pelos documentos e pela captura dos discursos nas

reuniões. Saliente-se que não adotamos a pesquisa participante ou a pesquisa-ação,88

uma vez que não tínhamos como objetivo a intervenção na realidade dos participantes

do Sacolão das Artes. A tese foi elaborada por meio de estudo exploratório,

fundamentada em pesquisa bibliográfica e documental, e para a pesquisa de campo

utilizamos as técnicas de entrevista grupal, individual, observação e grupo focal. Uma

das contribuições deste registro foi a de organizar algumas informações históricas,

sistematizar nosso ponto de vista e problematizar questões que eventualmente possam

ser úteis para esse sujeito coletivo, o Sacolão das Artes.

Parece-nos relevante o fato de os participantes terem expressado se sentir

reconhecidos, valorizados e integrantes desse movimento reflexivo, apresentando uma

avaliação positiva em relação a esse procedimento que é aparentemente similar ao

tradicional grupo focal, mas que entendemos ter inovado ao realizá-lo, visando, ao

submeter as nossas análises, uma nova síntese coletiva.

Verificamos, nas reuniões e em algumas atividades, que podíamos, para fins de

análise, organizar três agrupamentos geracionais. Não nos ativemos à descrição por

estratos etários por uma opção também teórico-metodológica, tendo tais elementos

como secundários, focando a sociabilidade pelo convívio e não necessariamente pela

divisão artificial de seus componentes. Com essa opção, temos três grandes tendências

gerais no perfil sociopolítico dos sujeitos:

- Pessoas que se construíram na comunidade e enfrentaram de alguma maneira a

Ditadura de 64, seja por morarem naquela região, seja por comporem as mobilizações

organizadas;

88 “Pesquisa participante é aquela em que o pesquisador, para realizar a observação dos fenômenos,

compartilha da vivência dos sujeitos pesquisados [...] de forma sistemática […] coloca-se numa pesquisa

de identificação com os pesquisados” e “A pesquisa-ação é aquela que, além de compreender, visa

intervir na situação, com vistas a modificá-la” (SEVERINO, 2007, p. 120).

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- Pessoas que eram crianças e jovens no período da Ditadura e no processo de

redemocratização, o que lhes propiciou contato com essas mobilizações, mas não

necessariamente um engajamento;

- Jovens e adolescentes que estão vivenciando o período de mobilização dos

últimos quinze anos, incorporando-se aos movimentos sociais e que reconhecem a

trajetória dos indivíduos e da “comunidade da Zona Sul”.

Diante desse mosaico de experiências, particularidades e inserção no Sacolão

das Artes, qualificamos, a partir dos discursos, onze sujeitos coletivos que estavam em

atividade em 2012 e 2013 e, a título de análise, os agrupamos da seguinte forma:

cinco possuem atividades organizadas e realizadas coletivamente, de forma

continuada, com partilha de iniciativas e decisões, e com participação nas

reuniões do Coletivo Gestor, tendo ou não inserção em outras regiões e

experiências além do Sacolão;

quatro agrupamentos estavam voltados à realização de atividades, a partir de

uma pessoa ou subgrupo de referência que convida os demais; essa referência

exerce um papel de comando e/ou de liderança, embora na rotina discutam as

decisões e ações a realizar;

dois grupos deixaram de realizar atividades no Sacolão. Um deles é o grupo de

mulheres, que se organizavam em outros espaços feministas antes do Sacolão

das Artes. Mantiveram sua atuação a partir da pauta feminista e defendem a

autonomia das mulheres, adotando a economia solidária como estratégia.

Presentes desde a criação do Sacolão, na entrevista verbalizaram a dificuldade

em construir novas lideranças e desde 2012 tentam se reorganizar. O outro

grupo atua com educação popular e passou a intervir em outro espaço e em uma

escola, anunciando a manutenção da parceria, mas não mais ocupando o

Sacolão.

Observamos e entrevistamos indivíduos e sujeitos de nove dos onze coletivos

que compunham o Sacolão das Artes, uma vez que dois alteraram sua forma de

participação, e sintetizamos a seguir as características que nos parecem melhor informar

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sobre os nove sujeitos coletivos, apresentando-as para fins de ilustração desse conjunto

e com o intuito de situar a existência desses sujeitos coletivos.

Os dados e as reflexões trazem parte do discurso dos sujeitos coletivos que

participaram de entrevistas, reuniões e atividades no Sacolão das Artes.

A opção metodológica de não expor a identidade individual justifica-se por não

ser um estudo sobre esses sujeitos, portanto, não tendo aprofundamento nessa direção89

e por não querer comprometer o estudo proposto. Visamos identificar características-

chaves para ilustrar suas particularidades que dialogam com a tese sobre a existência de

uma sociabilidade de resistência explicitada por suas opções estético-políticas e

organizativas.

I. Dois sujeitos fundadores

2 Fonte: Brava Cia., Divulgação.

89 Ao desenvolvermos os procedimentos metodológicos, verificamos que se, por um lado, a não

identificação dos sujeitos coletivos e dos participantes lhes propicia sigilo e não exposição diante das

tensões existentes nas relações e na comunidade, por outro, não lhes possibilita visibilidade política.

Realizamos a qualificação com o nome e a designação por letras, de modo a ilustrar a composição

coletiva, motivo pelo qual ao longo do trabalho trataremos como Coletivo e respectiva letra. Este foi mais

um mecanismo para tentar que o leitor não tivesse a leitura direcionada por grupos que possuem maior

reconhecimento público, e aqui provoquemos pela leitura de nossa exposição uma “imagem” do Sacolão

das Artes como conjunto de Coletivos. De todo modo, evitamos qualquer forma de registro que

acarretasse exposição individual que lhes causasse algum tipo de risco.

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Coletivo A – Brava Companhia: composto por pessoas que participavam de um

grupo teatral com outro nome e que realizava atividades culturais na região. A

convite de lideranças da ocupação passou a integrar o Sacolão desde o seu

início. Possui participação assídua no Coletivo Gestor e em todas as ações

político-organizativas do espaço. Composto por trabalhadores que não exercem

exclusivamente suas atividades no Sacolão, são trabalhadores da cultura, mas

vivenciam a situação de precarização, não tendo vínculo previdenciário. Com

clara concepção anticapitalista, defendem e exercitam o trabalho coletivo e a

ruptura com a hierarquia, avaliando a dificuldade em defender uma forma de

organização totalmente diferente da existente na sociedade de modo geral.

Defendem a ocupação do espaço público e expressam dúvidas em relação aos

impactos reais na vida da população. Acessaram recursos da Lei de Fomento,

que propiciaram condições para a realização de atividades continuadas, que são

apresentações, formação de público, debates de formação. Evidenciam em seus

discursos elementos do Teatro de Grupo, fundamentos bretchinianos e citaram

Lukács em um de seus artigos.

Coletivo B – Corpo e Cultura: um dos grupos que existem desde o início da

ocupação, liderado por uma funcionária pública municipal que trabalha no

local, cedida para administrar o espaço. Os participantes comparecem para as

atividades, organizam o espaço na chegada e no término da atividade, tendo

entendimento de que é um espaço coletivo. A pessoa que lidera este coletivo é

muito importante para o funcionamento do Sacolão das Artes, mas não há

participação de outras pessoas nas reuniões, nem ação delas além da

participação no grupo. Realizam apresentações para a comunidade dentro dos

eventos do Sacolão e externos a ele.

II. Três sujeitos com mais de 3 anos de participação

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3 TruPé na Rua. Divulgação.

Coletivo C – TruPé na Rua: um grupo de jovens realizava uma formação num

programa governamental que foi encerrado abruptamente, situação em que

buscaram um espaço para a continuidade da formação. No processo de

conhecimento e participação, consolidaram-se laços entre os participantes, que

se identificam com o projeto político do Sacolão das Artes, onde estão desde

2011 e no qual encontraram um espaço aberto (física e politicamente) para a

continuidade dos ensaios e atividades. Desde então, realizam atividades

sistemáticas com crianças e adolescentes, tendo uma repercussão importante na

vizinhança. O grupo atua em outros espaços da Zona Sul, com formação

cultural e apresentações. Desenvolve a arte circense junto a crianças e

adolescentes, realiza atividades no espaço do Sacolão das Artes e externas a ele,

como estratégia de aproximação e politização. Coerentemente à tradição

circense, os jovens partilham conhecimentos e técnicas, partilha essa associada

ao princípio do apoio mútuo que as atividades circenses exigem, afirmando-o

como base para a sua existência sociopolítica.

Coletivo D – Tribunal Popular: movimento que se organizou em 2008, realizou

atividades políticas com considerável repercussão nacional e, por ter militantes

que são moradores da região, implantou atividades de formação política e

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cultural. Em 2011 realizou o Tribunal Popular da Terra, de que participaram

militantes latino-americanos, e em 2013 deram início à Universidade Livre

Popular no Sacolão das Artes. Alguns participantes das atividades estão se

incorporando ao movimento, por afinidades e demandas políticas. O movimento

defende a ampla participação no Sacolão, problematizando a necessidade de

maior organicidade entre o projeto e a intervenção. Seus membros não possuem

financiamento e nem vínculos empregatícios relacionados à atividade,

entendendo-se como militantes. Em suas atividades, incorporam

ações/intervenções culturais como mediação, mas também como pauta da

própria defesa dos povos indígenas, quilombolas, bem como o combate à

destruição da cultura originária e tradicional. A maioria dos participantes têm

inserção partidária de esquerda, o que influencia suas escolhas teóricas e

políticas, mantendo uma forte crítica aos governos em vigor, ao Estado burguês,

com grande questionamento e certa rejeição aos mecanismos de representação

democrática existentes, avaliando que o Estado tem sido um grande violador de

direitos, por ser submetido aos interesses de grupos política e economicamente

privilegiados.

Coletivo E – Movimento Luta Popular: seus membros organizam-se em

diversas localidades e adotaram o Sacolão das Artes para ações e formação

política e cultural. Seguem a luta direta (ocupações, manifestações, etc.) e a

organização coletiva sem hierarquia. Atuam em várias frentes no Sacolão das

Artes e fora dele, possuindo forte articulação com outros sujeitos coletivos. No

Sacolão, desenvolvem atividades culturais como o Sarau Candeeiro, de

periodicidade mensal, e mantêm atividades com crianças. Assim como o Grupo

A e a liderança do Grupo B, evidenciam domínio do funcionamento do Sacolão

das Artes, explicitando posições e intencionalidade de impactar a consciência e

levar à mobilização política. Em suas ações e na sua participação no Coletivo

Gestor colocam-se rigorosos com a coerência do fazer coletivo e afirmam-se

anticapitalistas. Dentre seus membros também há militantes partidários, e

podemos observar a opção de realizar a organização da população indo até seus

locais de moradia e convivência. Expressaram, assim como os Coletivos A, D e

G, a percepção de que as atividades organizadas coletivamente afirmam seus

princípios em defesa de uma sociedade sem classes, sendo esse processo uma

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mediação fundamental para a formação crítica. Demonstram ter maior

sistemática nos debates e na elaboração de suas estratégias visando vivenciar

essas defesas com maior coerência.

III. Sujeitos com menos de dois anos

Grupo F – Consulado do Vinil: presentes no Sacolão há cerca de um ano,

realizam festas abertas à comunidade, arrecadando recursos financeiros

mediante a venda de bebidas para subsidiar as atividades. Têm como objetivo

oferecer lazer e entretenimento, realizando apresentações com convidados de

outras regiões, visando divulgar gêneros musicais. Expressaram o desejo de

formar adolescentes e jovens, mas sem projeto elaborado para tal finalidade.

Trata-se de um grupo que possui o conhecimento musical e o manejo dos

equipamentos, não expressando ideais político-organizativos. Expressam a

preocupação de provocar a interação intergeracional e apresentar referências

para o público jovem. Não se vinculam a discussões politizadoras ou de

intenções similares, focando suas ações na possibilidade de ofertar espaço

agradável de lazer e cultura. Recebem outros grupos periféricos com

considerável reconhecimento, propiciando trocas de suas atividades artísticas.

Salientamos que não houve retorno às nossas solicitações de entrevista,

mantendo contato apenas nas reuniões. Portanto, no caso deste coletivo, o que

temos são observações e registros de falas, sem abordagem direta.

3 Fonte: Sacolão das Artes. Divulgação.

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Coletivo G – Brinquedoteca – Projeto Aqui que a gente brinca: neste período de

existência manteve quatro pessoas no grupo e um dos membros problematizou a

denominação a eles dada de coletivo, pois entende serem um grupo, inclusive

por restringirem sua existência ao Sacolão. O grupo atuou mediante aprovação

de projetos financiados por meio de edital do Programa VAI, mas manteve a

brinquedoteca mesmo sem o financiamento. Apresentam discurso coeso,

direcionado politicamente, tendo como questão-chave o lúdico e o brincar para

o desenvolvimento da criança e do adolescente, e para o envolvimento dos

demais atores da comunidade local. Com dinâmica mais livre e espontânea, atua

com os elementos que surgem desse processo, tendo levado espetáculos que

articulam o brincar, a arte e a troca de conhecimentos. A partir das crianças,

conseguem ter relações com a comunidade local, mas enfrentando, como os

demais, as fragilidades dos adultos, decorrentes das difíceis condições de vida.

IV. Dois sujeitos que se afastaram em 2013 e 2014

Coletivo H – Coletivo Katu: grupo voltado à educação popular, realizou

atividades por menos de dois anos e passou a sediar suas ações em outro espaço

público da região, declarando manter articulação com o Sacolão das Artes. Atua

de forma militante, sem vínculos empregatícios, sendo formado por professores

da rede pública. Permaneceu pouco mais de um ano no Sacolão das Artes.

Coletivo I – Maria Mariá: grupo que tem origem nas lutas da década de 70,

formado por mulheres, pautado em economia solidária como estratégia de luta

contra o machismo e o patriarcado, considera que a dependência econômica

favorece a manutenção de vínculos da mulher com o cônjuge/companheiro

agressor. Encontra-se em fase de reavaliação de suas ações, tendo

descontinuado suas atividades em 2013. Agrega mulheres que compõem a

memória de resistência da Zona Sul.90

90 Algumas destas lideranças possuem a memória de mais de 40 anos da região, contando com riqueza de

informações sobre o desenvolvimento e as lutas democráticas. Entendemos que os posicionamentos

radicalmente contra o capitalismo de jovens que atualmente fazem o Sacolão de fato, como um deles

menciona, carrega o legado de tantos sujeitos que com níveis diferenciados de apreensão da dinâmica da

sociedade, compõem a resistência.

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Colocadas estas considerações, mantemos o uso das expressões trabalhadores da

arte e trabalhadores da cultura, com o mesmo sentido, e utilizaremos os termos Coletivo

A até Coletivo G ao invés de tratarmos pelo “nome fantasia” de cada um. Consideramos

um recurso de linguagem que nos permite evidenciar o nosso entendimento de que são

Coletivos que compõem o Sacolão, sem serem homogêneos, propiciando que essa

terminologia simbolize uma identidade.

a) Contextualizando o Sacolão das Artes: aspectos históricos e ideopolíticos

A valorização da memória da luta popular pode ser uma forma de resistência e,

nesse sentido, este recorte sobre o Sacolão das Artes visa registrar momentos que

expressam essa forma de enfrentamento da realidade. Trata-se de história viva, sendo

possível tirar dela algumas conclusões, mas sempre inacabadas, por estar em

movimento.

Historicamente, o Sacolão das Artes é uma conquista obtida por um

movimento organizado de pessoas envolvidas com os processos políticos,

sociais e culturais da região (por exemplo, o Clube de Mães). No que diz

respeito ao espaço, os protagonistas dessa luta são a Rede Social São Luiz e,

sobretudo, a União de Moradores do Jd. Antonieta, Parque Santo Antônio e

adjacências, cuja labuta pela transformação do Sacolão hortifrutigranjeiro,

abandonado desde muito tempo, em um espaço sociocultural, já durava 3

anos. Na esteira desses movimentos, e não menos importantes, surgem outros

atores nesse mesmo cenário de luta pela ocupação do espaço: são os grupos

artísticos e produtores culturais da região. (SACOLÃO DAS ARTES, 2013)

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O Sacolão das Artes insere-se num contexto mais amplo de mobilizações da

Zona Sul paulistana. Os registros históricos dos movimentos informam que os

trabalhadores se organizaram no Parque Santo Antônio em torno da organização do

bairro, liderada pelas mulheres, e das lutas sindicais, com o confronto entre o chamado

grupo pelego e outro que se denominou Oposição Sindical. A importância da luta que

nasce do cotidiano de dificuldades pode ser ilustrada pela carta que surgiu da conversa

das pessoas que se questionaram e tomaram decisões:

[...] Duas mulheres do Nakamura estavam lavando roupa e falaram: “Puxa

vida! Não temos nem o que comer direito. Será que a gente não podia

escrever uma carta ao presidente?” Aí surgiu essa ideia e chegou até a

coordenação dos clubes de mães. Que as mulheres estavam pensando em

escrever uma carta ao presidente da República, para ver se ele fazia alguma

coisa em favor da classe pobre, porque a inflação estava alta, tudo era muito

caro. Era uma saída nossa, tentar escrever uma carta, que dizia que nós, mães

da periferia, estávamos desesperadas com a alta do custo de vida, e

escrevemos essa carta. Aí saiu na imprensa. O deputado Freitas Nobre, que

era do MDB, leu no Congresso Nacional. Ficou conhecida, o rádio falava...

Isso numa época de ditadura, vejam só... (Odete Marques). (RAIMUNDO,

s/p, 2013)91

A carta,92 que nasceu das mobilizações do que ficou conhecimento como

Movimento Contra a Carestia, inicialmente reuniu, em 1976, cinco mil pessoas no

Colégio Santa Maria e, em 1978, aproximadamente o mesmo público no Colégio

Arquidiocesano. Em 27 de agosto de 1978, reuniu vinte mil pessoas na Praça da Sé

(marco zero da cidade de São Paulo) e repercutiu no país todo. Uma das autoras passou

a sofrer perseguições da Ditadura e, com o agravamento do regime, o grupo eliminou

todos os documentos. A formação política e a unidade foi a forma de se protegerem

mutuamente. Quando eram abordadas para saberem quem era “a cabeça do

movimento”, respondiam: [...] “Nós, as mulheres da periferia. A vida tá tão ruim pra

todas, não tem uma cabeça”. A gente era muito fiel, muito unida, e não dava a cabeça de

ninguém (Odete Marques). (RAIMUNDO, s/p, 2013)

O Parque Santo Antônio é essa construção de resistência e, na atualidade, a

presença de lideranças católicas vinculadas à luta social persiste, apesar de serem

91 CEDEM, julho 2010, Ano XXII, n° 257. Localizamos referências a esta memória por meio do Centro

de Documentação e Memória da UNESP – CEDEM. Um “livro-reportagem” de autoria de Jo Azevedo

sobre o Clube de Mães teria sido publicado em 2011, mas não o localizamos. Os dados ora apresentados

foram acessados em http://www.unesp.br/aci/jornal/257/ciencias-humanas.php, no artigo “A saga do

Clube de Mães da Zona Sul. O CEDEM preserva a memória de entidade que promoveu o Movimento do

Custo de Vida em plena Ditadura”, In: Jornal da Unesp, de Julho 2010 - Ano XXII, n° 257. 92 Anexamos a “Carta ao Presidente” nesta tese, considerando seu valor histórico.

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poucas. Existem muitas organizações não governamentais na região realizando

atendimento social, principalmente de crianças em atividades de contraturno escolar.

Assim, a memória do Sacolão das Artes é apresentada como parte de um período

mais recente das lutas locais, porém com raízes em uma história local de grande

mobilização política. Possui fortemente duas características: a primeira é a cultura de

participação política; a segunda é a presença de grupos artísticos e produtores

culturais da região.

O Sacolão das Artes tem elaborado documentos que registram sua memória e

afirmam sua origem, perspectiva e identidade, como vemos a seguir: “Desde sua

inauguração, o Sacolão das Artes é coordenado por um grupo de pessoas formado por

integrantes dos grupos sediados e companheiros engajados com o processo de ocupação

do espaço”. (SACOLÃO, 2011a, s/p)

Ao longo da sua história foram sendo criadas formas de gestão, tendo

consolidado o entendimento de um grupo que realize a gestão a partir de um exercício

de construção e avaliação permanente. No documento é explicitado que esse Coletivo

Gestor

[...] legitima-se na gestão com base num processo histórico de resistência e

militância, por meio do qual se pode, além de manter aberto o diálogo com a

comunidade em suas diversas atividades socioculturais, fomentar debates e

conversas acerca de temas que perpassam o cotidiano, a filosofia, a política e

outras áreas afins da natureza humana, com o objetivo de se produzir um tipo

de conhecimento capaz de analisar de maneira crítica o momento histórico em

que se insere. (Sacolão das Artes, 2011a, s/p)

Em setembro de 2010, três anos após a ocupação do espaço, realizaram uma

atividade com o intuito de avaliar, realizar balanço e aprofundar a ação que vinham

desenvolvendo. No documento “Proposta do novo modelo de gestão do Sacolão das

Artes” temos elementos de crítica sobre o movimento apresentado pelos participantes:

Desde o início do processo algumas demandas para uso do espaço foram

apresentadas e quase todas foram incorporadas ao trabalho de construção do

Sacolão, porém ao mesmo tempo em que a construção e participação nas

decisões eram coletivas, os trabalhos ainda permaneceram a cargo do mesmo

Grupo Gestor do início do processo. Assim, a prática demonstrou que havia

um grupo de pessoas que gerenciava o espaço e outro grupo que usava o

espaço para fins de ensaios, apresentações, etc. Na época isso foi avaliado

dentro do coletivo e definiu-se que para estar no sacolão era necessário o

envolvimento em todos os níveis de trabalho e que o trabalho necessitava de

pessoas envolvidas no espaço e com o espaço. Neste processo alguns grupos

se afastaram e outros permaneceram. (SACOLÃO DAS ARTES, 2010)

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Evidencia-se a preocupação sistemática entre os fundamentos desse projeto e a

ação efetivamente realizada, buscando formas de consolidar a atuação conjunta.

Observamos que nos documentos afirma-se que o projeto do Sacolão das Artes compõe

a “luta pela superação da sociedade capitalista” cujo processo de construção afirme o

“fazer coletivo”, a “emancipação da classe trabalhadora”, declarando-se como

“categoria de trabalhadores da arte e da cultura” que se opõe aos “mecanismos de

dominação de classe”. Estes termos são adotados de forma corrente, explicitando a

adesão a uma direção ético-política e o desafio de sua efetivação. A sua identidade

declarada como trabalhadores da arte e da cultura e o entendimento da luta de classes na

construção do Sacolão é pacífico. O fazer coletivo é um momento de explicitação e

objetivação dos posicionamentos, e é notável a defesa de uma relação não hierárquica

dessa forma de organização, o que colide com a sociabilidade vigente, suscitando

conflitos e tensões para sua efetivação. Esses conflitos não são relacionados aos

fundamentos e à adesão: os que se colocam como fazedores do Sacolão têm

concordância com esses posicionamentos. A dificuldade está em concretizar essa forma

de construção coletiva, uma vez que há determinações universais e objetivas, em geral

relacionadas não só à sobrevivência material, mas também aos desdobramentos da

opção de compor o Sacolão. Dentre os conflitos que emergem na vida desses

trabalhadores verificamos a pressão familiar em relação aos jovens militantes, e também

sobre as mulheres que militam. Ainda que estas contem com um companheiro que

respeite a militância e também atue politicamente, relatam que os demais familiares, e

até os outros militantes, as oprimem com suas posições machistas – às vezes veladas,

outras diretas. A naturalização do fato de a mulher cuidar dos filhos leva ao

questionamento (explícito e implícito) quando a mãe deixa os filhos com parentes ou

vizinhos para viver sua ação política. Vale notar que os próprios Coletivos não realizam

um debate sistemático sobre a questão de gênero, sobre as opressões decorrentes da

ausência de ações efetivas para materializar a visão crítica sobre a histórica violência do

machismo e do sexismo. Por outro lado, numa reunião membros do Coletivo F, dois

homens, relataram suas dificuldades em realizar algumas atividades, problematizando:

“Será que homem é mais fresco mesmo?”, referindo com certo humor a fragilidade

diante de algumas situações, quando foi discutida rapidamente (apesar da riqueza do

momento) sobre a cultura sexista-machista que torna natural o que é, na verdade,

cultural.

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No “Encontro Pedagógico” realizado em 2010 avaliaram que havia uma vontade

de construir um espaço de gestão coletiva e pública, mas que houve desacordo quanto à

legitimação do histórico das origens do próprio Sacolão. De certo modo, com a

aproximação de novos grupos e pessoas, sem uma apropriação dessa forma de auto-

organização coletiva, criaram-se na prática diferenças e descompassos no nível de

engajamento e autonomia de cada sujeito envolvido, o que gerou maior ou menor

implicação nas tarefas de cuidado e manutenção rotineira. O Coletivo Gestor discutia

então as ideias e as propostas abertamente, conferindo “a todos os participantes do

processo a responsabilidade em igual nível pelo Sacolão e isto muitas vezes gerou

grandes frustrações e desgastes dentro do espaço, no processo de trabalho”.

(SACOLÃO, 2010, s/p)

Com o debate permanente, tensionado pelas demandas e contradições da

conjuntura, o Coletivo Gestor deu continuidade às reuniões para aprimorar seu projeto

político e os “trabalhadores e trabalhadoras do Sacolão” formularam os seguintes

princípios:

◦ Todo trabalho realizado no Espaço busca realçar as características

sociais da vida humana, ou seja, há uma intensificação do caráter coletivo de

organização da vida.

◦ O Sacolão das Artes fomenta uma reflexão crítica acerca das relações

de trabalho, cujo eixo central encontra-se na tentativa de autonomia dos

meios e modos de produção evidenciada na organização dos grupos que

sediam o Espaço.

◦ O Sacolão se posiciona contrário ao discurso de apropriação privada

de bens materiais e/ou simbólicos.

◦ Não é intenção do Sacolão qualquer ação que vise à acumulação

lucrativa de capital. Todo dinheiro que, por ventura, circule no Espaço deve

ser destinado à manutenção da continuidade das ações.

◦ Toda produção de conhecimento no Espaço deve ser crítica e

compartilhada, uma vez que conhecimento é poder, e este não deve ser

monopólio de nenhum indivíduo ou grupo específico.

◦ Todos os trabalhos realizados no Sacolão têm autonomia para existir

desde que estejam de acordo com o pensamento e a história do Espaço.

◦ Os acordos firmados e por firmar no Sacolão privilegiam a

coletividade em detrimento do individualismo.

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◦ A busca pela coerência entre discurso e prática deve ser uma constante

perceptível no cotidiano dos grupos e pessoas dentro e fora do Espaço.

(SACOLÃO, 2011 a, s/p)

Esse conjunto de princípios busca orientar e provocar uma vivência coletiva

diferente das práticas cotidianas existentes em qualquer espaço, numa sociedade cada

vez mais imediatista e individualista. É uma carta de princípios que parece pôr à prova o

próprio Sacolão das Artes, posto que há necessidade de apropriação não apenas de seu

conteúdo, mas da vivência efetiva do que nela se afirma. A dificuldade centra-se na

materialização desses princípios e valores, muitas vezes havendo choque de opiniões

entre os sujeitos fazedores do Sacolão. Decorrentes desse conjunto de princípios,

podemos destacar posicionamentos tais como “intensificar a organização coletiva da

vida”, “crítica às relações de trabalho” vigentes, “contrários à apropriação privada de

bens materiais e simbólicos”, autogestão, autonomia, “produção de conhecimento crítica

e compartilhada”, “coletividade em detrimento do individualismo”, “coerência entre

discurso e prática”.

A elaboração desse documento deve ter exigido um grande exercício de análise e

posicionamentos, constituindo uma síntese que fundamenta e orienta o projeto do

Sacolão das Artes.

Coerentemente, o fato de os grupos realizarem suas atividades e pouco

participarem das ações dos demais, assistindo ou colaborando na sua construção, foi

pauta de reuniões em que se aprofundou a efetivação do projeto político do Sacolão,

retomando um dos elementos centrais para esse tipo de intervenção estético-política: a

construção de um convívio que se fundamenta em valores e práticas que não

vivenciamos na sociedade burguesa. A cultura da partilha, da solidariedade, da

horizontalidade das relações, da recusa da hierarquia, etc., vai na contramão da

realidade. Não se trata de mera “adesão” a esse projeto, mas da defesa de uma

sociabilidade pautada em outros valores.

Não é preciso discutir a tese de que não se faz “a revolução em um só país” e

nem se acredita que o Sacolão das Artes se isole da totalidade social. Porém, é

recorrente em suas falas que a referência de poderem ter momentos de diferenciação

frente à mercantilização, podendo pactuar ações coletivas, tem favorecido o

desenvolvimento dos sujeitos (como veremos adiante, em fazer coletivo). Essa posição é

apresentada pelo Coletivo E, numa convocação para um ato cultural da consciência

negra e contra o genocídio da nação Guarani-Kaiowá:

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Alguns coletivos culturais de luta, com uma perspectiva crítica a qual

também reivindicamos, realizaram uma ação direta de questionamento à

propriedade e à apropriação privada daquilo que é público.

Assim começa nossa relação com este povo de resistência. No último

período, as relações se estreitaram e lá será um lugar onde terá acomodação

de nossas iniciativas de formação política e cultural. 93

Outro momento de parada para organização do Sacolão aconteceu em

2012, quando foram realizadas assembleias durante cerca de um mês no Parque Santo

Antônio e culminou na Plenária no Sacolão das Artes, ocasião em que foi deliberado o

documento “Comunicado Público: Plenária Popular P. S. A. [Parque Santo Antônio]

(17/03/2012)”. O objetivo era exigir respostas ao alto número de acidentes e

atropelamentos nas imediações, reivindicando a instalação de semáforos; conclusão da

canalização do Córrego dos Freitas, para evitar as periódicas enchentes no Canão;

necessidade de um Posto de Saúde para a região; descaso com a limpeza pública e

nenhum apoio para a cooperativa de reciclagem de lixo; solicitação de mudança do local

do ponto de ônibus, que ocuparia o espaço onde tem sido descartado imenso volume de

lixo.

Essas reivindicações eram demandas concretas de todos os moradores e por isso

houve uma mobilização importante. Porém, com o tímido avanço na sua concretização e

a dificuldade em manter a mobilização, as reuniões da comunidade foram se

esvaziando. O documento “Pequeno histórico do Sacolão das Artes”, organizado por

Max Raimundo (2013, s/p), apresenta “quase uma conclusão”, em que o coletivo analisa

essa passagem:

[…] Não estávamos organizados para fundir o Coletivo Gestor ao Coletivo

Comunitário; as pautas se misturaram e todos nós ficamos perdidos quando o

Coletivo Gestor deixou de lado as pautas políticas que lhe eram pertinentes.

Apresenta-se a mais nova crise do nosso modo de organização, apresenta-se a

necessidade de rever o funcionamento do Coletivo Gestor do espaço.

(RAIMUNDO, 2013, s/p)

Esse novo momento realizou um balanço dos seis anos de ocupação, com a

realização de reuniões que em outubro de 2013 culminaram num encontro de

planejamento. Em tal período, as reuniões do Coletivo Gestor aconteceram

semanalmente, às terças-feiras, e em dezembro focaram a avaliação das ações e o

planejamento do trabalho, com destaque maior para a efetivação do uso compartilhado

93 Publicado em http://lutapopular.sarava.org/node/2, acessado em 10/09/2013.

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do espaço, exigindo-se o reconhecimento das particularidades de cada manifestação

artística e o seu funcionamento.

Nos debates voltou-se a discutir a necessidade de maior envolvimento dos

indivíduos e grupos com o Sacolão como um todo, para que realmente fosse viabilizada

uma gestão coletiva. Havia uma tensão sobre a atribuição de importância para cada

atividade, com a tendência de considerar mais importante a “atração” do público do que

o impacto sociocultural e político pretendido pelo projeto do Sacolão das Artes.

Evidenciou-se essa tensão de formas diversas. Houve considerações sobre a importância

da presença contínua das mulheres, por exemplo, na ginástica, atividade que traz

impactos em si (voltada para a saúde das participantes). Outros problematizaram o fato

de a Escola de Samba realizar um trabalho que não envolve os participantes com o

projeto do Sacolão das Artes, tendo inclusive se tornado similar às outras escolas de

samba, onde há conflitos dos mais variados, em geral, de poder e de lucro. Esse debate

parece ter-se inibido diante da aproximação e do andamento da preparação do Carnaval

e não foi retomado. Nesse sentido, observamos que a exigência da coerência entre

discurso e prática encontra dificuldade em se efetivar. Há um melindre devido às

relações pessoais, que parecem sobrepor-se à dimensão política.

Evidenciou-se que os grupos voltados à realização de atividades sem ter alguma

articulação com a formação política têm maior dificuldade em se apropriar das

concepções do Sacolão. Declaram interesse em contribuir com a comunidade local,

oferecendo cultura e lazer, mas, sem as motivações e os fundamentos desse fazer,

mostram-se distantes dos princípios do Sacolão das Artes e não visam atuar em questões

como o enfrentamento ao ideário capitalista.

Os problemas apresentavam-se com aparências mais pragmáticas, como por

exemplo: deixar o espaço organizado ao final das atividades ou a presença para

prestigiar o trabalho dos outros coletivos. Evidenciava-se o conflito entre a perspectiva

do “fazer coletivo” com o uso momentâneo do ambiente, posto que o Sacolão das Artes

oferece um grande espaço, sem criar burocracias, nem custos. Pairaram no ar

questionamentos quanto à utilização do espaço, o que, em função de não se avançar no

debate sobre a dimensão do público, parece impedir uma reflexão consequente e que

favoreça a organização dos Coletivos.

Um dos grupos (que não está entre os 9 acima listados), num momento de forte

discussão numa das reuniões, disse que talvez concluísse seu projeto e em 2014 deixaria

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o espaço, afirmando haver dificuldade no seu grupo quanto ao entendimento da

perspectiva política do Sacolão das Artes e quanto a estarem presentes nas reuniões e

demais articulações (com a comunidade, entre os sujeitos fazedores do Sacolão, nas

ações junto ao poder público), restringindo-se ao uso do espaço para seus ensaios

musicais e a apresentação do trabalho, sem implicar-se na rotina e na gestão. Esse grupo

realiza atividades de modo intensivo (ensaios) e também oferece atividades, mas tem

uma presença menos coletiva na gestão, delegando a articulação a um representante, o

que foi questionado em reuniões. Esse representante, contudo, é uma pessoa de

referência na região, por ser morador há décadas, sendo muito conhecido pela sua

atuação com música. Além disso, o seu grupo possui estrutura formal que funciona fora

do Sacolão, realizando inclusive comercialização de produtos da organização e captação

de recursos para sua atividade, os quais não são compartilhados com o Coletivo do

Sacolão. Deste modo, entendemos que este grupo permanece realizando as suas

atividades apesar de estar em conflito com dois princípios estruturantes do projeto do

Sacolão. Esse e outros momentos indicam que a dimensão do público é vivida com

ambiguidade. Alguns entendem que aquilo “é de todo mundo”, mas no sentido de

desresponsabilização e de propriedade de que eu faço uso e não tenho que dar

satisfações a ninguém. Essa é uma concepção usual, do senso comum, sobre a ideia de

público, mas é totalmente diversa da concepção de convívio e partilha que identificamos

nos fundamentos do Sacolão das Artes. O entendimento sobre o que é a natureza

pública mostra-se de grande relevância para a efetivação do projeto do Sacolão das

Artes, mas apareceu nos debates de forma incidental, sem maior aprofundamento;

evidenciou-se no conteúdo dos conflitos e não dentro de uma discussão sistemática.

O Coletivo F atua com música e organiza e promove bailes, ocasião em que

vende bebidas e também divulga o seu trabalho externo ao Sacolão; um dos líderes

desse grupo possui um programa de rádio. Encontra-se há pouco mais de um ano no

Sacolão das Artes e em suas participações nas reuniões expressou a dificuldade

daqueles que chegam em entender a dinâmica e o funcionamento do Sacolão das Artes.

A situação foi discutida momentaneamente, mas não houve nenhuma ação específica,

até a conclusão de nosso trabalho no local, que respondesse a essa situação. Somado a

tudo o que analisamos, tais elementos indicam que há um acúmulo sobre os

posicionamentos no debate político, mas há lacunas nas estratégias para que novos

sujeitos possam se apropriar desse processo.

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Entre 2012 e 2013 também participaram do Sacolão grupos que obtiveram

recursos do Programa Valorização de Iniciativas Culturais – VAI94 e do Programa de

Fomento ao Teatro. A dificuldade em relação ao VAI é a mesma de todos os que se

utilizam desse Programa: é um incentivo para atividades pontuais, não havendo

financiamento continuado. Porém, em períodos não cobertos por esses programas, tanto

os grupos que tiveram recursos quanto os que não possuem financiamento, mantiveram

de alguma forma ações no local e participação em reuniões.

Um elemento bastante significativo para a identidade do Sacolão é a relação com

as crianças, cuja presença expressa as contradições da vida cotidiana, apresentando

reflexos da vida da família, que enfrenta jornadas de trabalho precárias e longas.

Debatemos sobre a circulação dessas crianças no ambiente, indagando sobre os pais que

não entram ou que apenas permitem que os filhos fiquem no espaço sem maior

envolvimento. Ponderamos nossa leitura sobre o estresse, a sobrecarga das famílias,

mas nossa percepção foi de que as crianças parecem ficar no espaço de forma

desprotegida, pois circulam mesmo quando não há atividades; ao mesmo tempo

pareceu-nos que se deposita uma confiança desmedida nos adultos que ali se encontram.

O Coletivo G explicou como lida com as crianças:

A gente tem o hábito de buscar as crianças em casa e levar de volta, porque a

família não vem. Estabeleceu-se uma relação de confiança. Mas não sei até

que ponto é uma confiança neste sentido que estamos conversando. As

famílias têm questões bem parecidas [entre elas], mas que talvez de outros

lugares podem ser vistas como um desleixo, um distanciamento e há casos

que assustam.

Ter a confiança de um pai totalmente embriagado... Até que ponto é uma

confiança? Ele sabe o que está acontecendo? Até que ponto ele sabe o que

está fazendo? (Participante 10)

Os participantes do Coletivo G referem que essa situação de uso abusivo de

álcool por parte dos adultos e jovens é constante. Discutimos sobre a questão do álcool

e das drogas, os reflexos na população e os participantes problematizam o grande

número de bares e igrejas neopentecostais, avaliando a ausência de equipamentos

sociais de lazer e cultura na região.95 Observam que há elementos de miséria muito mais

graves que em bairros vizinhos. Há diferenças entre as favelas e dentro da mesma

favela. “Esse pedaço nosso... tem que fazer uma pesquisa, porque a miséria é grande”.

94 Criado pela lei 13.540/2003 e regulamentado pelo decreto 43823/2003, com a finalidade de apoiar

financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa

renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. 95 Vide anexo 2, com o mapa de Centros Culturais, Casa de Cultura, Espaços Culturais, Galerias de Artes

e Museu no Município de São, até 2012.

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(Participante 4). Há divisões entre os moradores, dentro da mesma favela, e em seu

discurso tentam se diferenciar dos que moram onde há tráfico de drogas, por exemplo.

Cruzam-se vários fatores para os pais “confiarem” nas pessoas que estão identificadas

com o Sacolão das Artes:

Os pais colocam este limite: daqui pra lá vocês não vão [referindo-se às áreas

da favela]. Mas quanto aos pais confiarem [nos militantes do Sacolão] é um

pouco do que foi falado. É estrutural. Já construído, já tem isso: de acreditar

que dentro da instituição... da organização... a escola já passa essa sensação

de que é dentro da escola que meu filho vai ser educado. E muito se volta a

esse papel, para essa responsabilidade, para dentro dessas instituições,

organizações. Essa visão é colocada também para dentro do Sacolão como

uma instituição que tem por obrigação até de educar o filho, uma

transferência da responsabilidade. E não é muito pensada. Não é pensada

nem por nós.

Por ser espaço público [a família pensa que] está em total segurança. Isso não

deixa de ser um conforto para as famílias. São homens e mulheres que

trabalham de oito a dez horas por dia. Antes estar lá […] que ficar sozinho

em casa. Não sei se está em casa ou não. Se vai cair no córrego ou se vai ser

aliciado pelo tráfico. [..] De todos os males, o menor. […] (Participante 7)

Um fator complexo foi o fato de a Companhia de Engenharia e Tráfego – CET

ter alterado o ponto final de linhas de ônibus para a lateral do Sacolão, prejudicando o

uso do mesmo espaço para estacionamento por moradores e frequentadores de bares dos

arredores. Assim, essas pessoas passaram a usar o pátio do Sacolão, que é destinado

para as crianças brincarem. Com os carros disputando o espaço, começaram atritos com

acusações e até agressão a uma criança por dano a um veículo. Esse fato foi muito

debatido, visando proteger as crianças devolvendo-lhes o local destinado ao seu uso.

Nesse contexto, veio à tona a incompreensão de moradores que chegam a ter rejeição

pelo trabalho desenvolvido, acreditando que são “hippies”, “drogados” e que fazem mau

uso do espaço. O encaminhamento dado foi um mutirão de limpeza e organização do

espaço externo, com atenção particular ao pátio, tendo o objetivo de dar visibilidade ao

cuidado e tentando sensibilizar a população local. Ao final do mutirão, colocou-se uma

corrente para que o pátio continuasse livre para as brincadeiras.

b) Políticas públicas e arte: contradições

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Assim como nas outras concepções teóricas, há níveis de apreensão em relação

às contradições das políticas públicas que, ao mesmo tempo em que viabilizam parte

das reivindicações por direitos, realizam o controle da sociedade. Nos sete anos de

ocupação do Sacolão, ocorreram muitas tensões, inclusive com tentativas reiteradas da

subprefeitura de proibir a ocupação pelos grupos, de transformar o espaço em Unidade

Básica de Saúde. Dadas tais circunstâncias, caminhou-se em 2013 para a regularização

do uso do espaço. Esse cenário exigiu unidade dos participantes, que se queixam da

baixa adesão da comunidade e dificuldade dos novos Coletivos, sendo esta uma das

grandes contradições da experiência em andamento. Refere a liderança de um dos

Coletivos:

Tivemos muitos problemas com a subprefeitura quando não concordavam

com nosso pensamento. […] E aí teve as brigas e a gente não conseguia

avançar muita coisa... Surgiu o teatro aqui, o forte e depois a gente começou a

observar mais a região [...] trazer outros grupos para fazer parte do que a

gente pensava, do que a gente queria [...] O modo de fazer que nem todo

mundo tem essa disposição, de fazer parte com a gente, que é ser militante de

fato. [...] Puxa, como é estar no Sacolão, né? Você tem que cuidar, tem que

abrir, tem que varrer, tem que fazer uma série de coisas... e você não tem

retorno financeiro. […] Daí, tem que acreditar... no que é discutido... no

pensamento dessas pessoas que já fazem parte, primeiro da luta. Como é

passar para eles, e que eles se sintam parte disso, e isso também gera certa

resistência [no sentido de rejeição] e gera alguns conflitos.

Pra gente esses sete anos têm sido... como posso dizer... muito ricos. Você

conviver com uma diversidade, com coletivos com várias linguagens, e você

conseguir mesmo aos trancos e barrancos fazer as coisas e acontecer.

(Participante 9)

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Um aspecto que problematizamos foi o uso público do espaço por meio dessa

ocupação, e a relação do Sacolão com o poder público local. Embora a manutenção da

estrutura, a isenção das tarifas de água e eletricidade e do IPTU, sejam demandas

superadas, a rotina do espaço fica a cargo dos participantes do Sacolão. Os participantes

consideraram problemático que uma senhora de quase setenta anos trabalhe na limpeza:

funcionária terceirizada da Prefeitura, vai ao Sacolão duas vezes por semana. Essa

situação também é desconfortável para o Coletivo, porque colide com a perspectiva do

projeto defendido. Avaliamos que há dificuldade em avançar no que significa o uso

público e nas novas práticas em relação a essa ocupação. Os Coletivos que compõem o

Sacolão das Artes ponderaram em momentos distintos e também no grupo focal que não

é adequado pagar uma pessoa para realizar a limpeza do espaço, pois isso vai contra a

posição de uma relação não hierarquizada e contra os fundamentos do fazer coletivo.

Essa é uma das situações cotidianas que colocam o projeto do Sacolão à prova.

Observamos que esse e outros assuntos na relação com o poder público parecem

ter dificuldade de avançar. Identificamos alguns fatores que geram a dificuldade:

fragilidade na concepção sobre a relação política com o governo; dificuldade de

organização e coesão entre os participantes; e receio de que ocorra uma vinculação do

Sacolão das Artes com o “governo”, o que interferiria na sua autonomia política. Esses

fatores aparecem nos discursos, nem sempre de forma explícita, mas nas entrelinhas.

Aqui se evidencia fragilidade na concepção de autonomia política, que é tangenciada

em parte pela não apropriação do projeto político do Sacolão e, principalmente, por

demonstrar que chegaram a um nível de seu desenvolvimento, exigindo-se dar

sequência à sua efetivação.

Questões como essas ilustram os obstáculos ou dificultadores para uma

experiência como o Sacolão das Artes conseguir avançar. Em relação à política cultural,

um tema importante é o entendimento do financiamento via editais, da política pública e

da lógica capitalista. Ao mesmo tempo em que se avalia que o VAI e a Lei de Fomento,

possibilitaram aos grupos periféricos avançar, há críticas sobre a fragilidade de uma

política participativa nesse setor, havendo inclusive maior dificuldade para os grupos

menos consolidados (estrutura, equipamentos, formação, etc.)

O Coletivo D realiza suas ações em vários outros espaços de militância e salienta

como realiza essas ações:

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[...] não tem nenhuma vinculação financeira com o Estado, ou qualquer grupo

financeiro. Está ligado diretamente ao processo de elevação de consciência da

classe, que nas ações da classe é necessário ter autonomia financeira para que

não se desvie do objetivo.

Fazendo uma crítica em relação ao uso que se faz dos espaços de luta, mesmo

que propiciando acesso a alguns direitos, apresenta uma avaliação do seu coletivo:

A dependência econômica tem desviado o foco da luta, que acaba se tornando

luta pela sobrevivência, que tem na militância profissionalizada a sua

sobrevivência, o que acaba fazendo com que o militante defenda o interesse

de quem o paga e não os interesses daquele de quem ele argumenta defender

os interesses.

Há uma tensão permanente na disputa de projeto de sociedade, posto que ao

mesmo tempo em que se realiza resistência no Sacolão das Artes, recorre-se às normas

vigentes que favorecem ações por meio do financiamento, embora esse mesmo mecanismo

crie ou imponha limites. A inserção de novos interessados inclui, assim, formação instrumental

para que possam concorrer junto aos editais, ao mesmo tempo em que precisam ter alguma

estrutura para a própria atividade.

c) Trabalhador da cultura

No grupo focal apresentamos a análise dos dados obtidos, dentre eles, alguns

dados da pesquisa do IBGE sobre os trabalhadores da cultura, e os presentes se

mostraram bastante interessados em debater tais elementos, identificando-se

especialmente quando criticamos a ausência dos direitos trabalhistas e previdenciários.

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Os indicadores sobre o desenvolvimento socioeconômico e a linguagem corrente

adotam o termo “trabalho” no sentido de “emprego” e/ou “ocupação”, que para nossa

análise se traduz como trabalho alienado.

Nesse sentido, alertamos para o fato de que há uma incidência importante sobre

o perfil dos “fazedores do Sacolão” quanto à sua ocupação, que são em sua maioria

trabalhadores de outros setores (professores, profissionais autônomos, prestadores de

serviços) e que no Sacolão realizam atividades artísticas. Esse elemento sugere que há

uma subestimativa do número de trabalhadores que atuam com atividades artísticas por

meio das quais obtêm recursos financeiros para sua sobrevivência como principal fonte

de renda.

Esses jovens se apresentam como trabalhadores da cultura não necessariamente

no sentido do “emprego” onde estão inseridos, mas por entenderem realizar atividades

culturais voltadas para a comunidade onde vivem ou que escolheram para apresentar

tais ações. Esse posicionamento de se considerarem membros da classe trabalhadora, a

articulação entre arte e trabalho contra o capitalismo e seus valores, impregnados em

todas as dimensões da vida humana, são elementos de extrema relevância na

sociabilidade de resistência. Ao conceberem as diferenças entre o trabalho, categoria

fundante do ser social, e a exploração capitalista da força de trabalho que gera a

alienação, evidenciam a unidade no projeto político hegemônico do Sacolão das Artes,

ainda que se evidenciem níveis díspares sobre o entendimento dessa complexa questão.

Explicitam essa posição em um dos documentos analisados:

Portanto, no intuito de fortalecer sua trincheira na guerra contra a

mercantilização do pensamento, o Sacolão das Artes aposta em parcerias

táticas, afinadas com os princípios de luta da classe trabalhadora, às quais se

une para a realização de trabalhos emancipatórios, acreditando na capacidade

das pessoas de contribuição para uma vida mais digna e dissociada da lógica

de exploração; em prol de um modo de organização não hierárquico, centrado

na troca de saberes, na ampliação do conhecimento crítico produzido ao

longo da história e na arte e cultura como ferramenta de desenvolvimento

humano em prejuízo de uma educação que, tradicionalmente, quer formar

homens e mulheres, no seio da classe trabalhadora, para servir de mão de obra

barata e, ainda assim, serem senhoras e senhores polidos, resignados, bem

educados, incapazes de se levantar contra a ordem vigente que oprime a todos

nós, trabalhadores. É contra essa perspectiva da educação do “Sim, senhor

patrão” que o projeto pedagógico do Sacolão das Artes, na esteira do trabalho

sociocultural, tenta desmentir toda e qualquer ação que torne o homem um ser

resignado, tal como o movimento intencionalmente ingênuo, exacerbado de

romantismo, que apregoa, através dos meios de comunicação, a intensificação

do sentimento humano em prejuízo das relações políticas, sem revelar que são

estas relações que condicionam o tipo de sentimento humano que deve ser

intensificado. Nesse sentido a busca pela democratização do controle dos

meios e modos de produção e comunicação é o foco do processo histórico do

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Sacolão das Artes, que, para tanto, propõe atividades coletivas de

investigação e intervenção social na tentativa de desmistificar as relações de

poder e controle que por vezes operamos tacitamente. (SACOLÃO DAS

ARTES, 2011a, s/p)

Essa passagem evidencia posicionamentos, escolhas ético-políticas e aponta os

desafios que enfrentam ao atuarem contra a lógica dominante. Trazem, como em outros

momentos, a concepção de democratização que defendemos. Implicam-se, ao final, na

desmistificação das relações de poder, por meio de suas práticas e alianças.

Ao debatermos as condições do mundo do trabalho, os direitos trabalhistas,

férias, acidentes de trabalho, etc., pudemos aprofundar o debate sobre a ausência e

violação de direitos. Levantaram, por exemplo, que essas questões trabalhistas e

previdenciárias não são debatidas, sendo recorrente a perspectiva do

“empreendedorismo”. Por exemplo, o Programa VAI prevê que os projetos financiados

devem ter duração máxima de oito meses. Ainda que a principal justificativa – que

consideramos relevante – seja a de beneficiar jovens (18 a 29 anos) em condição de

vulnerabilidade que vão atuar na periferia, o financiamento parece empenhar recursos

públicos atuando na lógica de mercado, como problematizado ao tratarmos da

Economia Criativa. Embora exista avaliação positiva por alguns trabalhadores sobre a

importância do edital do Programa VAI para a inserção inicial nesse meio e a

apresentação do seu trabalho, não localizamos indicadores que estabeleçam uma

correlação entre o jovem que recebeu a verba do VAI com a sua colocação no mercado

de trabalho. Há relatos individuais96 que valorizam o fato de terem realizado um

trabalho que deu a cada um projeção para tornar-se oficineiro ou educador, mas não um

emprego com os devidos direitos.

Discutindo com os sujeitos contemplados pelo VAI, mencionou-se que o

programa não considera o tempo investido para a elaboração dos projetos (sendo que há

grande dispêndio de tempo no trabalho que será submetido a análise, podendo ser

rejeitado). Essa condição de apresentar projetos é similar ao que ONGs submetem suas

propostas ao buscar financiamento, por exemplo, nos fundos municipais dos Direitos da

Criança e do Adolescente, ou da Assistência Social, com esta grande diferença: quem

elabora o projeto possui algum tipo de vínculo com remuneração junto àquela ONG (e,

eventualmente, possui um voluntário). Portanto, esta é uma das ações desenvolvidas que

96 Relatos observados em debates sobre o assunto, mas sobre os quais não nos debruçamos por não

corresponderem ao escopo deste estudo.

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caem na lógica do “empreendedorismo” e da competitividade, e repercute diretamente

na qualidade de vida e de produção desses trabalhadores.

Na reflexão sobre serem trabalhadores ou militantes da cultura, os participantes

do Coletivo A, durante a entrevista grupal, manifestaram que se percebem como

trabalhadores não-produtivos, no sentido de não gerarem diretamente mais valia

(valorização do capital).

Tanto com o Coletivo A, como com o Coletivo C (ambos em entrevista grupal) e

posteriormente no grupo focal, indagamos se consideram que tais atividades contribuem

para a reposição da força de trabalho, de uma forma diferente do alimento ou do sono,

por exemplo, mas que compõem a vida do ser social. Esse aspecto se mostrou muito

fecundo, trazendo vários elementos pertinentes ao mundo do trabalho, como a

precarização e o apelo que se faz para que os indivíduos realizem um “trabalho social”

para “ajudar”.

Consideramos relevantes a análise de Iasi (2011) na abordagem sobre o trabalho

doméstico, que é o trabalho não pago. Em sua análise, ao se desconsiderar essa

condição de trabalho não pago, nega-se que o trabalho doméstico contribua

decisivamente para a reprodução da força de trabalho. Essa análise nos auxilia a

problematizar a importância de aprofundar analogicamente a situação dos militantes da

cultura, combatendo-se uma postura voluntarista numa relação ingênua com a sociedade

e com o Estado. Ao desenvolver sua atividade artística, que nem o Estado nem o

mercado vão realizar, pode contribuir apenas para o apaziguamento das tensões

cotidianas. Não há necessariamente um problema em contribuir com a redução dos

tensionamentos e conflitos: a problemática reside em tornar essa a finalidade, sem

aventar-se a busca da superação dos motivos e das formas de expressão desses conflitos.

Consideramos ainda problemático que se realizem acriticamente tais atividades, o que

contribui para mascarar a exploração e a desigualdade social. Apontamos aqui a

relevância de atividades críticas à exploração capitalista e à desigualdade social, por

meio das quais os indivíduos possam desenvolver os seus sentidos e possam ter a

suspensão do cotidiano alienado e alienante. Entendemos que essa tensão sobre o

apaziguamento dos conflitos é uma questão presente nas mais diversas profissões,

inclusive, a de professor e de assistente social.

Portanto, reconhecer a relevância da atividade artística em si mesma não nos

parece suficiente; inclusive por isso não nos ativemos aqui à sua descrição, mas à

análise de seus processos na particularidade de uma resistência política, estética e,

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portanto, cultural. Posicionamos nosso olhar partindo do entendimento de que é crucial

a análise crítica para desvelar se tais ações contribuem para a reprodução da força de

trabalho e amortecimento dos conflitos. Esses elementos corroboram nossa hipótese

sobre a importância do debate crítico a respeito da concepção e da efetivação dos

valores democráticos tendo como horizonte outro projeto societário, sem opressão e

exploração de classe, etnia e gênero.

Portanto, essa é uma questão importante para os trabalhadores da arte,

principalmente na luta contra o capitalismo. Além de Iasi (2011), encontramos

elementos em Melo (2013) sobre os afazeres domésticos como trabalho não pago, que

nos favorecem articular elementos sobre o trabalho que gera valores de uso e/ou que

geram mais valia. É pacífico o entendimento de que na atividade artística realizada no

Sacolão das Artes temos um processo de trabalho que gera valores e favorece a

reprodução espiritual dos sujeitos sociais. Por outro lado, surge a necessidade de estudar

como essas atividades artísticas, ao reduzir superficialmente a expressão das tensões e

conflitos existentes, acabam por contribuir com a valorização imobiliária, que favorece

o capital e expulsa os mais vulneráveis dos territórios.

Esse foi um ponto de debate valorizado no grupo focal. Os coletivos

concordaram sobre a relevância de reconhecerem o processo de gentrificação, bem

como a de um aprofundamento sobre a especulação imobiliária e os impactos desta na

vida daquela população, inclusive com as “ofertas” de financiamentos expressamente

privados ou mediados pelo Estado, com programas como Minha Casa, Minha Vida.

Temos aqui uma série de mediações que não podemos aprofundar teoricamente,

mas que nos permitiram, ao longo desta tese, identificar alguns elementos centrais para

tal estudo: a gentrificação e a especulação imobiliária nesta região da Zona Sul

paulistana, as conquistas e concessões no tocante ao orçamento público voltado aos

grupos artísticos da periferia, a institucionalização da proposta da economia criativa,

pautada pelos organismos internacionais.

Nesse sentido, o projeto do Sacolão das Artes tem caminhado de forma plural,

mas parece estar no limite de suas possibilidades de avançar, ou se tornar o que

chamaram de um “supermercado de eventos”. Ao se arriscar a ser plural e não garantir a

direção política que estabelece na sua criação e nos princípios elaborados coletivamente,

temos fortes indícios de que poderá perder a sua história e os seus propósitos.

Os sujeitos do Coletivo A têm se dedicado à formação, à pesquisa e às peças

teatrais abordando o mundo do trabalho, a mercantilização da arte e temas próximos.

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Essas questões são cotidianas em suas vidas, havendo um trabalho sistemático e intenso.

Trata-se de um dos coletivos que têm maior destaque e que demonstram adesão

intelectual e efetiva aos princípios que os sujeitos coletivos estabeleceram como norte

para o Sacolão. Os membros deste coletivo acessam editais mais amplos, como a Lei de

Fomento ao Teatro e têm mantido suas ações também por meio desse financiamento,

além de outras inserções de trabalho. Com uma experiência mais consolidada dentro

dessa forma de política pública têm discutido sua condição como trabalhadores e

valorizado essa posição.

Tem um termo que a gente acha que aproxima, ao invés de usar artista, usar

trabalhador da arte, da cultura, e no [nosso] caso trabalhador do teatro, porque

existe essa discussão... como a gente não gera mais valia? Mas isso pode nos

distanciar da classe a que a gente pertence. Como gente que é filho de

trabalhadores, nascemos na classe trabalhadora... a gente se coloca como

trabalhador do teatro. (Participante 1)

Vivendo cotidianamente a insegurança no mundo do trabalho, o participante 2

afirma que: “A precarização da nossa condição de trabalho é próxima da realidade de

qualquer trabalhador... ou até pior! [...] A gente não tem CLT, não tem direitos

trabalhistas. Se eu ficar doente, ou pago um hospital ou eu morro!”.

Diante dessas contradições, o participante 1 ressalta que essas questões são

debatidas pelo movimento de trabalhadores da cultura, cujas análises dão rumos

bastante diferenciados às ações políticas. “Há então esta corrente dentro do movimento

do teatro que diz que somos trabalhadores, e outra que não. Que não somos como um

trabalhador da construção, por exemplo.”

Essa polarização das discussões reafirma a relevância de discutirmos o trabalho

como categoria fundante do ser social, com a evidência de que no processo capitalista

esse trabalho se torna alienado. No primeiro capítulo, ao abordarmos a categoria

trabalho, indicamos as questões que nos parecem chaves para iluminar essa polêmica

sobre os trabalhadores da cultura. Torna-se importante problematizar a produção do

lucro e da mais valia no trabalho produtivo. Recorrendo a Marx, essas questões

levantam elementos para o enfrentamento do trabalho alienado.

Um ator, inclusive um palhaço, pode ser, portanto, um trabalhador produtivo

se trabalha a serviço de um capitalista (de um empresário), ao qual restitui

uma quantidade maior de trabalho do que a que recebe dele sob a forma de

salário, enquanto um alfaiate que vai à casa do capitalista para arranjar-lhe as

calças, criando não mais que um valor de uso, não é mais que um trabalhador

improdutivo. O trabalho do ator se troca por capital, o do alfaiate, por lucro.

O primeiro cria mais-valia; o segundo apenas consome lucro.

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A distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo se estabelece

aqui sempre a partir do ponto de vista do capitalista e não do ponto de vista

do trabalhador. (MARX, 2010, p. 151)

Consideramos, assim, que o debate sobre o trabalho produtivo ou improdutivo

tem a sua relevância por expressar a relação social e concreta da produção. Como

afirma Marx “Temos aqui uma determinação do trabalho que não deriva do seu

conteúdo ou de seu resultado, mas da sua forma social concreta”. (MARX, 2010, p.

151) Nessa direção, é fundamental não se retomar, sob o discurso crítico, o velho

voluntarismo que desconsidera a totalidade desse processamento histórico.

Consideramos fecundo aproximar-nos da referência marxiana de trabalho

associado, onde homens livres decidem o quê, como e por quê produzir:

[…] o reino da liberdade só começa ali onde termina o trabalho imposto pela

necessidade e pela coação dos fins externos; permanece, portanto, mais além

da órbita da produção material propriamente dita. [...] A liberdade, neste

âmbito, só pode consistir em que o homem socializado – os produtores

associados – regule racionalmente o seu intercâmbio material com a natureza,

ponha-o sob seu controle em vez de deixar-se controlar por ele como por um

poder cego que realize com o menor gasto possível de energia e nas

condições mais adequadas e mais dignas da sua natureza humana. (MARX,

2010, p. 169)

O participante 1 reforça as tensões no debate sobre o trabalho, mencionando um

termo que seria utilizado por Ricardo Antunes, o antivalor,97 que em sua compreensão

seria o trabalho que não gera mais valia. Com esse viés, o participante 1 evidencia as

preocupações com a elaboração teórica e inclusive acadêmica.

Quando Marx faz a análise da classe trabalhadora no séc. XIX, que é

diferente do que tem hoje. De alguma forma ele amplia esse termo, e Antunes

coloca também dentro dessa classe aquele trabalhador que não gera valor

retirado da mais-valia e do trabalho não pago. Dentro disso a gente se coloca

como trabalhadores da cultura.

Uma das preocupações, que é produzir um pensamento político, já vai nessa

posição autocrítica do Sacolão […] Já tem a periferia como um foco de

produção cultural muito grande. Tem vários estudos sobre isso. Tem um

lugar que nós, que somos trabalhadores da cultura, vivemos uma pressão, que

é o mercado, e a gente está premido entre esses dois pontos [produção

cultural da periferia e mercado], e o outro [lugar] que é a inclusão social – o

assistencialismo, que está ligado à ideia de ONG e que nos cobra, que é a

política que se conhece após o neoliberalismo. Temos a política social que

está relacionada a isso. A gente tenta não ser isso, tenta ir para outro caminho,

o que dificulta inclusive o diálogo com a comunidade. É muito mais fácil esse

diálogo da lógica dominante, do que o que a gente tem e tenta propor.

(Participante 1, grifo nosso)

Este participante expressa a crítica do Movimento dos Trabalhadores da Cultura,

que questiona a perspectiva do “mercado de produção cultural”, por também entendê-lo

como uma forma como a política neoliberal se apresenta. Os trabalhadores da cultura

97 Não realizamos nenhum estudo sobre essa expressão.

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consideram que o Estado se desresponsabiliza de uma política cultural participativa e

permanente, mantendo a velha forma de vínculo com as ONGs, o que definem como

assistencialista.

Há um enaltecimento social em respeito aos “artistas populares”, mas eles não

são reconhecidos quanto à realização de um serviço para a sociedade. Elementos

contraditórios se entrecruzam nesse processo: o fetiche da liberdade criadora (Konder),

do preconceito sobre o artista (desocupado) e a negação de sua condição de trabalhador.

Por outro lado, o debate contínuo sobre a gestão do espaço e do projeto do Sacolão das

Artes tem possibilitado elaborar sua história e registrar a memória de luta como

elementos para o desenvolvimento de sua ação estético-política:

Nessa perspectiva e com um projeto arquitetônico ainda por materializar-se,

o Sacolão das Artes já é considerado um espaço de referência na cidade de

São Paulo por seu processo de construção de conhecimento crítico; pelo seu

caráter diferenciado e contra-hegemônico de produção, pautado pelo fazer

coletivo; pelo posicionamento crítico aos modelos de promoção individual de

uma sociedade espetacular, transformadora das relações humanas em

relações mercantis e por ações em cuja origem está a luta pela superação da

sociedade capitalista, numa dinâmica que compreende o conflito de ideias

entre os grupos sediados e um modo não dogmático e processual de lidar com

o saber. Tudo isso – o que ainda é pouco – rendeu ao Sacolão das Artes o

reconhecimento de coletivos de arte e luta espalhados por todo o território

nacional e internacional, com os quais estreita laços em ações que visam à

emancipação da classe trabalhadora à qual pertence como categoria de

trabalhadores da arte e da cultura, cuja práxis busca dissipar a separação

entre força física e força intelectual, imposta pela divisão capitalista do

trabalho. (SACOLÃO DAS ARTES, 2011a, s/p, grifos nossos)

c) “O fazer coletivo”

Os militantes que atuam no Sacolão das Artes qualificam sua atividade como “o

fazer coletivo”. Esse é um dos elementos que se apresentaram no início da elaboração

do presente trabalho, e que captamos ao observar o teatro de grupo. No Sacolão das

Artes essa referência torna-se mais complexa na medida em que são sujeitos que atuam

a partir de um projeto político com perspectiva de crítica à lógica capitalista, e que

possuem uma diferença importante em relação à apropriação desses valores, princípios e

estratégias

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Esses sujeitos operam com focos diversos: o teatro, a música, a dança, o circo, o

lúdico do brincar e do contar histórias, a formação política, a poesia, a economia

solidária, a atividade corporal, a gastronomia. Esse fazer coletivo exige o

reconhecimento do outro para poder partilhar dos espaços, das atividades, do apoio

mútuo. Portanto, a autogestão e a autonomia estão implicadas no elemento maior que é

o convívio e a unidade, sendo um exercício complexo. Além disso, não se trata de

coletivos que existem para compor uma espécie de organização institucional. São

coletivos formados tanto por trabalhadores da arte/cultura, quanto por trabalhadores que

sobrevivem da venda de sua força de trabalho em outras atividades onde não possuem

relação com a arte e a cultura, e que militam no tempo disponível.

Os coletivos demonstraram, em diferentes momentos dos nossos contatos, a sua

adesão aos princípios do Sacolão, principalmente em relação à organização coletiva, à

partilha de responsabilidades, à autonomia dos indivíduos e à não-hierarquização das

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funções. Porém, entre a adesão política e a efetivação do projeto há muitas mediações

no cotidiano.

Como unidade, os participantes apresentam uma avaliação crítica a respeito da

realidade, das dificuldades dessa ação estético-política, e afirmam a relevância desse

projeto político.

A cada ano houve um experimento de gestão, com a entrada de pessoas

novas. Tem sido percebido como um modelo de gestão. [Temos uma] certeza:

a gente tem que fazer esse espaço funcionar de forma diferenciada. Estamos

no espaço, então todos que estão nele precisam agir para além do espaço. No

começo todos participavam de tudo. Se configurou um grupo que estava em

tudo. Vamos formar um Coletivo Gestor reivindicando a legitimidade de estar

neste lugar pelo [seu] histórico... para além do pensamento individual de cada

grupo, e [que] esse Coletivo Gestor pensasse o grupo como um todo, e os

respectivos grupos fossem construindo o espaço. A proposta da gestão era que

fosse coletiva – esse termo está muito comum agora (risos), mas algo que

fosse fora do padrão que a gente vê no Estado, etc. (Participante 1)

Ao problematizarem o uso indiferenciado dos termos, como gestão coletiva, os

membros do Coletivo A ponderaram sobre as formas de apropriação do discurso e da

ação crítica, exigindo cautela em não reproduzir discursos sem efetiva ação, havendo

uma preocupação constante nos diálogos e nos documentos com a “coerência” entre o

que se discursa e as atitudes. Esse entendimento é apresentado nos documentos

estudados, expressando a materialização do projeto político. O registro da memória

revela também a direção do projeto do Sacolão das Artes como podemos verificar na

passagem abaixo:

Cientes do desenvolvimento capitalista da sociedade, cujo alicerce se

encontra no projeto burguês de cidadão, o qual tem por meta a autonomia

individual que confunde liberdade com individualismo e usa o trabalho como

meio de exploração em massa, a posse como demonstração de competência,

o dinheiro como um fim em si mesmo em um processo de acumulação

desenfreada, e o monopólio do conhecimento como forma de manutenção do

poder... Cientes disso, os trabalhadores do Sacolão das Artes buscam uma

alternativa de produção material e simbólica da vida na contramão desse

pensamento hegemônico, fazendo-lhe oposição e declarando guerra aberta ao

sistema capitalista. (SACOLÃO DAS ARTES, 2011-a, s/p)

Ao problematizarmos os princípios e objetivos do Sacolão das Artes, alguns

participantes lembraram que houve uma posição do poder público em defender um

modelo que poderiam pautar para o restante da cidade. “A secretaria municipal afirmou

que existe um modelo do Sacolão, mas a gente ficou com o pé atrás. Não tem como

fazer uma cartilha, porque está em movimento o tempo todo”. (Participante 2)

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Ao debatermos os conflitos e as lutas sociais, solicitamos que explicitassem suas

posições sobre a necessidade ou não de uma formação política específica para essas

finalidades, ou se entendiam que o próprio processo é formativo.

As duas coisas em movimento. No começo era mais radical: só pode

participar do Sacolão se for de forma integral. Realizar atividade, participar

da reunião coletiva, das reuniões da prefeitura, limpar e organizar. Na prática

a gente perdeu pessoas, porque é difícil fazer isso. (Participante 1)

Essa vivência revela-se formadora quando os participantes conseguem fazer a

autocrítica em relação ao afastamento das pessoas, buscando compreender a situação

vivenciada e traçar alternativas coletivas para que, mantendo o projeto político, possam

criar formas de efetivá-lo. Esse é um grande desafio para os fazedores do Sacolão que

defendem sem titubear os fundamentos deste projeto, tendo clareza de que realizam uma

luta contra-hegemônica. Ou seja, estão conscientes de que, inclusive, há tensões internas

que evidenciam divergências não necessariamente elaboradas racionalmente e

expressadas verbalmente. São atitudes cotidianas, conflitos aparentemente pequenos,

mas que denunciam a necessidade de aperfeiçoar a forma de luta contra o capitalismo e

o ideário neoliberal. O entendimento sobre esse ideário apresenta-se na crítica à

precarização das condições de vida, da privatização, da ausência de respeito aos direitos

sociais, principalmente de trabalho, moradia e saúde.

O fazer coletivo afirmado no Sacolão das Artes tem como fundamento a análise

materialista histórica e dialética da sociedade. Com esse debate, foi possível discutir as

particularidades de cada expressão artística, de cada coletivo e das individualidades.

Esse tipo de situação demonstra que a postura democrática é fundamental para o fazer

coletivo. A pactuação, o reconhecimento do outro e o estabelecimento da unidade na

diversidade é pressuposto para que essa proposta se materialize.

A formação é [feita] por meio das atividades e na participação da gestão do

espaço. Propor sua atividade específica, participar da organização do espaço,

da mobilização para a ação política com a subprefeitura, etc. Contudo,

avaliou-se que havia particularidades que ampliam o nível de envolvimento.

Este processo foi pedagógico para nós. (Participante 2)

Diante da postura democrática foi possível se abrir para a crítica e repensar as

estratégias. Essas vivências são certamente desgastantes, porque conflituosas, mas

demonstram a relevância de um projeto que oriente as ações coletivas. Não era possível

pensar um espaço coletivo e de resistência sem a participação democrática e

democratizante. Conforme o balanço de um dos participantes: “Fomos revendo. Não dá

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para ser assim. Isso foi um processo pedagógico. A gente aprendeu na prática que não

dava para ser tão radical de cara. Era preciso respeitar, ouvir mais as pessoas.

Compreender, para ter mais gente aqui dentro”. (Participante 1)

Levantamos o problema de que existem muitos coletivos que afirmam existir

uma “identidade periférica”, o que não sugere homogeneidade. Apontamos no grupo

focal que o Sacolão apresenta complexidade por agregar um universo heterogêneo de

sujeitos, o que torna mais complexa sua organização, e o jovem interlocutor concorda

com a análise, complementando:

É um espaço que consegue aglutinar uma série de manifestações... é um dos

únicos, né? (indagando aos demais) […] que funcionam desta forma. [...]

Aqui não tem só o espaço físico, mas tem a ideologia. Que para fazer parte,

no mínimo você tem que conhecê-la ou botar fé nesta ideologia, que dá para

fazer desse jeito. (Participante 10)

Levantamos aqui que a forma e o conteúdo exprimem a unidade do projeto

Sacolão das Artes. Sem essa forma de gestão do fazer coletivo, e os princípios que o

fundamentam, essa experiência não existiria. Com esse tensionamento de análise,

consideramos que há um universo de possibilidades reflexivas e formativas no projeto

do Sacolão das Artes como concretude da disputa de projeto societário.

Nessa direção, outra participante oferece a sua análise sobre essa dinâmica e

seus aspectos ideológicos:

A gente até voltou a conversar sobre isso... Acho que isso é um pouco

ideológico. Na prática a gente busca isso, mas não necessariamente é dessa

forma. Existe essa preocupação, mas ainda em alguns momentos não tem

tanta coletividade, em alguns momentos isso acontece, acontece de ser

diferente. Mas a busca por isso é constante no Sacolão. [A razão] por que não

acontece é até pela forma do uso dos coletivos... Tem coletivo que está aqui

de segunda a domingo; outros têm alguma atividade pontual; tem gente que

chegou agora. Não participou desse processo desde [o ano de] 2007, é mais

lento o processo... aí não é tão coletivo assim. (Participante 9)

Portanto, esse fazer coletivo tem sido estratégico, evidenciando a afirmação de

memória e de resistência, e de construção continuada. Esse conjunto de elementos

indica que a fragilização desse fazer coletivo pode, assim, ampliar o risco de esse

projeto não ser compreendido ou de se desprender da luta contra o capitalismo.

É possível identificar, no discurso dominante dos participantes, que as

características do Sacolão foram fundamentais para a afirmação e consolidação da

identidade coletiva dos que lá atuam. Estabeleceu-se uma dinâmica de construção

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mútua, gerando uma identificação e identidade, num exercício de sociabilidade contra-

hegemônica ao padrão vigente.

A gente só se organiza assim por estar no Sacolão e por saber que o Sacolão

funciona assim. Usa o espaço também como morador do entorno. A gente usa

a ideologia do Sacolão para ser esse grupo.

A gente funciona aqui... começou a trabalhar juntos por conta do Sacolão

existir. Havia uma demanda para as crianças [um projeto anterior atuava com

as crianças]. (Participante 10).

Sem o Sacolão, alguns grupos referem que não teriam se construído e/ou se

mantido com essa identidade de resistência. Observamos que quanto mais clara a

posição sobre as intencionalidades políticas de cada coletivo, mais se atua como um

sujeito agregador, em que as relações e a direção política dos seus membros parecem

impulsionar um projeto político continuado. Ao mesmo tempo, a riqueza do

engajamento no projeto do Sacolão se expressa na angústia e preocupação dos coletivos

de não adotarem a práxis artística como mero instrumento da política. Essa posição se

expressa nos debates sobre o financiamento e o engessamento das ações possíveis.

Houve referência crítica à burocratização que alguns editais e programas podem causar.

Há evidente discurso e decisões que expressam esse posicionamento, afirmando-se a

relevância de não reproduzirem o que está posto nas políticas pontuais de cultura.

Concordaram, assim, que o discurso sobre a “cultura periférica” pode cair na

abordagem que segrega, que retira a história da luta da classe trabalhadora, pode cair na

sua sobrevivência, no seu cotidiano e nas agendas democráticas por direitos. Pode

qualificar seus sujeitos como o “outro”, não reconhecendo o processo de exploração e

opressão que gera essa realidade. Colocamos para debate a nossa percepção de que com

o discurso enaltecedor da periferia, pode-se raptar a história e a totalidade dos

processos. Há particularidades que qualificam o que seja a periferia paulistana

atualmente, inclusive no caso da Zona Sul, com importante influência da cultura

nordestina. Isso é visível nas cores, na organização da decoração das moradias, nos

saraus, no cordel, na alimentação. Porém, são trabalhadores, muitos deles descendentes

de migrantes e que vivem naquela região em função do alto custo da moradia.

O fazer coletivo aparece de forma consistente no discurso e posição do Coletivo

A, ao debater que há uma identidade entre os “fazedores de cultura” que não pensam a

cultura como mercadoria, defendendo que o processo de construção da atividade torna-

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se formador dos sujeitos. Essa é uma posição expressa nos documentos do Sacolão das

Artes que reitera sua luta contra o capitalismo e seu ideário.

Essas posições são vivenciadas pelos sujeitos em sua inserção no Sacolão das

Artes, como podemos verificar no discurso de uma jovem universitária:

O circo surgiu muito por acaso na minha vida. Tem a ver com minha

formação, que nunca foi voltada para a cultura. [...] Também não tinha esse

olhar de coletividade, de um ajudar o outro. Minha ideia era achar um lugar

para treinar. […] A ideia de coletivo mesmo foi despertar aqui no Sacolão.

[...] Até hoje tenho essa questão. Não dá para vir aqui e pensar só em mim,

tem que pensar em todo o coletivo. (Participante 5)

Deste modo, evidencia-se que o que é afirmado nos documentos do Sacolão das

Artes, produzidos coletivamente ou que registraram suas reuniões, é uma prática real e

tem provocado e/ou consolidado posicionamentos contra o capitalismo e seu ideário.

Essa vivência tem sido, portanto, intencional e fundamentada em elaboração teórica.

Verificamos que se apoiam em análises teóricas que favoreçam uma leitura

crítica da realidade e a consciência sobre as contradições da realidade.

Levando-se em consideração os princípios capitalistas de sociedade e cidadão

apontados mais acima, os trabalhadores do Sacolão das Artes vão primar por

valores que se contrapõem ao cultivo hegemônico de uma sociedade

mercantil. A saber, o Sacolão das Artes se posiciona contrário aos

mecanismos de dominação de classe dentro da sociedade capitalista da qual,

dialeticamente, faz parte. (SACOLÃO DAS ARTES, 2011 a, s/p, grifo nosso)

Vivenciando essas contradições, os participantes do Coletivo C referem-se em

vários momentos ao “trabalho com o corpo”, “com arte”, “aprender a fazer gestão, fazer

projetos”. Argumentam, como a liderança do Coletivo B, que o trabalho que realizam

engloba também a saúde física e mental, tendo esses dois grupos um olhar

particularizado ao defender que o lazer e a participação cultural contribuem para a

qualidade da saúde física e mental.

Um dos componentes do Coletivo C, que tem cerca de 40 anos, ou seja, está

numa faixa etária diferenciada do restante do grupo, que tem entre 20 e 30 anos, por

sugestão dos integrantes mais jovens relatou a sua trajetória como uma explicitação do

encontro de indivíduos que, tendo diferentes caminhos, se identificaram e estão

atualmente engajados no mesmo projeto coletivo, ilustrando a sua construção artística e

política nas ações de cultura.

Eu tive um lampejo de consciência da importância de trabalhar na

coletividade e com pensamento coletivo. Você pode estar num coletivo e não

estar no pensamento coletivo. O coletivo me dá uma coisa... É diferente do

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pensamento de você estar num coletivo... Eu estar aqui no Sacolão é eu estar

aqui numa humildade do fazer, no trabalho em si, e na arte...

Por exemplo, falando na estética... é uma visão diferente de um nordestino ou

de um nortista... como a raiz do Bumba meu boi não está no Paraná....é uma

coisa que vai sendo importada.

No processo de reflexão, componentes do grupo salientaram a importância de

uma troca mais orgânica e sistemática entre eles, como estratégia de reconhecimento da

complexa variedade de expressões artísticas e de como a construção da atividade

artística implica a formação dos indivíduos. O mesmo participante refletiu sobre as

particularidades regionais, em que há raízes das expressões que vão sendo

“importadas”, ainda que do próprio território brasileiro, que é continental. Nesse

processo, referiu de forma bastante lúcida a relação que se estabelece nas influências

culturais e nos processos de resistência regional.

No Paraná, por exemplo, é uma colonização paulista... não é carioca... é

paulista... quem vai para a UEL98 é paulista. É uma coisa boa a gente se

misturar... [...] No coletivo você tem as influências, podem ter discordâncias,

e é algo que não é bem trabalhado. [...] Somos resistência, e trabalhamos

numa cultura que é nossa. (Participante 8)

Esse participante frisou a relevância do debate democrático, ao afirmar que as

influências e as discordâncias não são aprofundadas, seja no debate interno, seja na

própria produção. Explicita a identidade: “somos resistência”, deixando pistas sobre a

relevância de melhor compreender que o trabalho é feito a partir dessa “cultura que é

nossa”.

Esses sujeitos revelam um tensionamento permanente, em que defendem o

processo democrático, plural, mas orientado pela resistência contra a lógica capitalista.

Referiram-se a experiências existentes, bastante exitosas no que se refere a ter um

público expectador, como nos eventos do poder público, nas apresentações em

equipamentos públicos, que inclusive garante subsídios financeiros para a sobrevivência

do trabalhador da cultura. Poderiam realizar muitas atividades nessa direção, captando

recursos ou mesmo vendendo ingressos para as apresentações, e formas similares.

Porém, nos termos do participante 2, o Sacolão das Artes, na concepção defendida, “não

pode ser um supermercado de eventos”. Essa é uma posição de efetiva resistência à

lógica capitalista e recusa da Sociedade do Espetáculo, nos termos de Debord. O projeto

idealizado pelo Sacolão das Artes visa combater a lógica de mercantilização de todas as

98 Universidade Estadual de Londrina.

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dimensões da vida, sabendo-se que é impossível ficar imune ao funcionamento do

capitalismo. Seu fazer coletivo é um ato de resistência, implicado em contradições,

como tentamos ilustrar, tendo como orientação a disputa da direção ético-política desta

sociedade. Não se trata de produzir produtos culturais, mas da construção dos sujeitos

por meio de outra forma de convívio e de relação política entre os sujeitos. Essa posição

traz a recusa de tornar os sujeitos expectadores passivos de uma sociedade que se

pautou no ter, ao invés do ser e, que Debord avança ao dizer, em 1967, que a Sociedade

do Espetáculo pauta-se no parecer, numa ampliação do processo de alienação.

Verificamos que parte dos membros do Coletivo D e E faz a defesa da luta

direta, ou que alguns tratarão de democracia direta (em oposição à democracia

representativa). Com esse posicionamento, cada indivíduo compõe as mobilizações

auto-organizadas e sem um líder a seguir, reivindicando a alteração da lógica vigente na

sociedade.

Há desdobramentos importantes nesse espaço sociocultural autogerido. Uma

auto-organização exige que os sujeitos tenham desenvolvido condições, habilidades e

capacidades para conviver no espaço com uma lógica contra-hegemônica. Essas

mediações são fundamentais para a ação pretendida pelo Sacolão, que ao final de nossos

contatos encontrava-se entre a avaliação de sua história e estratégias e a conjuntura atual

de debates sobre o financiamento para a política cultural.

O projeto do Sacolão das Artes disputa contra a perspectiva hegemônica da

“produção cultural” e da “Economia Criativa”, sem perder de vista as determinações

desta sociedade. Seus sujeitos necessitam conviver e obter parte dos recursos para sua

sobrevivência em outros espaços. Realizam pesquisas e disputam recursos públicos,

bem como disputam a perspectiva estético-política com seu trabalho artístico. Estão

numa posição mais vulnerável, menos atraente para novos militantes que aspiram

inserção no mercado artístico, bem como disputam a formação de público que foi

condicionado a participar das expressões artísticas de outra forma (consumindo-as como

mercadoria). O fazer coletivo que defendem é uma provocação de sentidos e a tentativa

de construir um novo objeto artístico, bem como de influenciar o sujeito sensível a esse

novo objeto.

Observamos colocações dos participantes mais jovens que estão engajados no

Sacolão das Artes, realizando sua atividade artística com propostas para o coletivo,

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verificando a intensidade com que essa práxis se faz presente construindo o que

denominamos sociabilidade de resistência:

Sou fruto desses caras, disso tudo que está acontecendo, e achei que poderia

participar. […] O Sacolão é um espaço democrático, para ter todo mundo

fazendo junto, e pela necessidade de ter outras pessoas também fazendo.

[…] A minha experiência, o que eu tenho para falar é isso: do que aconteceu

aqui desde a década de 90... deste lado da Zona Sul... falando pelas cores dos

ônibus, que tem o lado lilás, azul, e aqui é... marrom? Aqui é magenta! [risos]

Mas de uma continuação de um espaço que foi aberto por algumas pessoas

“pós” isso que você descreveu.99

Outro elemento que observamos nos discursos dos participantes mais atuantes é

justamente a preocupação em valorizar o legado dos moradores que exerceram liderança

e/ou que estiveram ou estão em outras lutas locais. Identificamos a necessidade de

coesão das leituras e das ações, pois em um dos documentos elaborados pelo Coletivo

Gestor mencionava-se que foi rejeitada a permanência de figuras históricas à frente das

ações. Essa é uma pendência de debates no Coletivo, que tem sido postergada devido às

tensões entre os envolvidos.

Uma jovem refere que é difícil entender tudo o que está acontecendo. “Só

entende o que se passa no Sacolão quem está lá!”

Refletimos sobre o tensionamento permanente entre o projeto político e a

vivência do Sacolão das Artes, a busca de não reproduzir a lógica das reproduções

sociais. Em suas preocupações e planejamento de intervenção consideram como

princípios a coletividade, a não reprodução das formas opressoras das relações de

trabalho, a busca do compartilhamento das tarefas, desde a elaboração até a avaliação.

O Sacolão não é entendido aqui dentro... mas não é entendido em vários

aspectos. [...] Mesmo fazendo todas essas ações a partir dessa proposta do

Sacolão. É debatido intensamente aqui dentro... mas às vezes fica só na

conversinha... não se faz a parte prática [...] Lá fora às vezes não se percebe o

mínimo do mínimo da ideologia do Sacolão. [...] Sua crítica a toda ordem do

capital, da sociedade. [...] Acho isto aqui um espaço revolucionário, de

cultura e de luta. Através da Cultura é que se passam algumas informações

sobre o que é este mundo [...]. (Participante 10)

Debateram de forma crítica as várias determinações e o poder metabólico do

capital, que implicam na totalidade, analisando que vivenciam dificuldades que também

afetam outros trabalhadores da cultura que atuam em espaços coletivos:

99 Referindo-se à década em 90 e anos seguintes.

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Acho que é bem isso [...] mas não é uma condição só do Sacolão, de não ser

entendido. [...] Outros espaços de ocupações de cultura, outros coletivos...

com proposta crítica [...] sofrem a mesma coisa.[...] A gente se cobra muito,

se cobra pra caramba: o quanto a gente não consegue avançar, em trazer a

comunidade, a comunidade se apropriar....

A gente é militante da cultura, mas muito internalizado dentro do espaço. [...]

Mas a gente tem que se tornar um militante da cultura que não está preso ao

espaço [...] tem que ser igual o cara da Associação de bairro, que vai de porta

a porta [...] tem de estar muito próximo das pessoas. Muito do que o Luta

Popular constrói é nessa linha [...] sabe da situação das famílias [...] toma

uma cerveja, um café. O Antônio (nome fictício): apesar de ele não ter essa

consciência crítica nem do espaço, nem da sociedade em que vivemos, a

gente constrói a luta com ele. A partir da construção dessa relação é que a

gente traz as pessoas. Outro dia o Antônio perguntou o que é teatro. Ele tem

50 anos e disse que ia ver o teatro, mas não sabia o que era. (Participante 4)

O participante 10 reflete angustiado sobre o que é melhor para a comunidade

local e se há sintonia entre a luta do Sacolão e as demandas dos demais moradores: “A

gente está lutando para mudar este mundo. Tem gente que acha que isso aqui deve virar

uma UBS. Até que ponto não devia mesmo ser uma UBS?”.

A participante 7 referiu-se ao Sarau do Binho, que existe há 15 anos na região, e

que é realizado em muitos espaços públicos, na comunidade, na praça. Essa

legitimidade aproxima-se da resistência como prática, como citamos de Chauí.

Evidenciando a relevância do movimento de luta por direitos, a representante do

Coletivo E referiu que perceberam a importância do trabalho cotidiano na militância

para a formação política. Observaram na militância, por meio da ocupação por moradia,

que os sujeitos se organizavam lá dentro e assumiam tarefas que nunca fizeram; no

intuito de que a situação melhorasse permaneceram e assumiram responsabilidades de

forma proativa e consciente. Ou seja, foram ampliando a visão crítica pela necessidade

e pela luta:

Dentro dessa ação caminhavam para uma visão mais crítica. A gente fazia

ocupações grandes e quem saia de lá e acabava se agregando ao movimento

com esse olhar mais [crítico] para a sociedade eram essas pessoas que

estavam envolvidas com essas atividades organizativas. E foi com essa

pegada que a gente veio para cá [Sacolão].

Outra forma de aproximação com a comunidade tem sido a própria pesquisa do

espaço e da organização da atividade na qual principalmente crianças e adolescentes

foram apresentando os locais da vizinhança, devidamente autorizadas pelos pais, por

meio da conversa. Deste modo, são construídas atividades no processo, que não apenas

visam a realização artística, mas, por meio dela, influenciar a formação sociopolítica

dos sujeitos.

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A transmissão de informações entre os grupos etários, na relação intergeracional

parece ter favorecido a visibilidade das ações do Sacolão, ainda que sem um

entendimento mais politizado. Contudo, do mesmo modo, o discurso da “obrigação” do

Sacolão, entendido como um equipamento do serviço público, apareceu muito

residualmente. Nas reflexões foram evidenciadas diferenças – aparentemente por falta

de maior sistemática de definições – em que o processo democrático do Sacolão é

entendido de uma forma voluntarista em contraponto aos militantes que defendem uma

ação mais planejada:

A gente sabe das nossas dificuldades. Precisamos decifrar como desamarrar

esses nós. [...] A gente já avançou bastante. [...] Hoje tem mais público e as

pessoas já sabem mais sobre o Sacolão. [...] É no cotidiano. (Participante 7)

Mas tem que ser uma prática pensada. [...] A gente tem que acompanhar as

transformações sociais. (Participante 4)

Nessa direção, a mesma participante reforça a necessidade de outras

informações, mencionando a relevância de nossa análise sobre os dados da especulação

imobiliária e a pressão na periferia, que apresentamos como elementos para o debate do

grupo focal.

É muito importante isso... o quanto nossa região está sendo empurrada num

processo da especulação imobiliária, e que transita, está de mãos dadas com

essas políticas de cultura, programa juventude viva, vindo cá para dentro... no

Sacolão a gente ainda não conseguiu avançar muito. [...] Estamos limitados

na discussão mínima, no Fomento da Cultura. [Por outro lado] não adianta a

gente ficar discutindo a lógica do capital se não consegue discutir nossa

relação com o bairro. (Participante 4)

O coletivo avalia que os movimentos sociais e as experiências artísticas na

comunidade estão favorecendo a crítica sobre o fato de as atividades ficarem

“aprisionadas” na estrutura física do Sacolão. Desse modo, demonstram que essa

experiência do Sacolão está em constante movimento. Refletiram que o objetivo é dar

impulso para a participação crítica e a luta por direitos, “senão ia ser algo

assistencialista” (participante 4) e estariam “fazendo o que o governo tem que fazer”

(participante 7). Nessas ações, há decisões que têm implicações no projeto e, desse

modo, em quem permanece ou se afasta do Sacolão.

Por isso tem os movimentos aqui. A gente está na periferia e tem uma

história que vem de muito tempo. [...] Vamos fazer isso com arte, com

literatura, para a luta, que pode ser mais amena, com amor. [...] Esse

caminho, esse caminhar, faz com que o indivíduo se sinta participante,

atuante. [...] A gente pensa num mundo que ainda não é nosso. A gente quer

que essa luta nos una... mas, às vezes, nos afasta. (Participante 7)

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Os participantes relatam sua consciência e posicionamento quanto à forma e ao

conteúdo do Sacolão das Artes, e durante as ações levam informações sobre o que está

acontecendo no país: “tudo o que a gente faz, é parte da luta”. (Participante 4)

Ponderamos no debate do grupo focal sobre a forma e o conteúdo de cada

projeto, provocando que pudessem discutir os pontos em comum e as suas

particularidades. Todos os grupos têm esse olhar da pesquisa, do conhecer, da troca. E

as particularidades têm um campo amplo, pois a ideia do Sacolão também é impulsionar

as experiências:

A gente tem um viés, a gente brinca de uma forma específica, e a gente tenta

se alinhar com o Sacolão. A gente se dá a liberdade de experimentar. [...] A

gente se permite fazer maluquices. (Participante 10)

Aqui é um lugar que é possível. É possível experimentar, é possível...

A avaliação positiva da vivência no Sacolão e da construção de uma

sociabilidade contra-hegemônica aparece nos discursos:

O Sacolão é um experimento. A gente tá tentando construir um processo que é

diferente do que está colocado lá fora. Não é que a gente deixa de ser coletivo,

é ser coletivo de uma forma diferente. Tem duas situações: tem coletivo que

está aqui mesmo, pensando nesse contexto, pensando como construir esta

estrutura social, este trabalho; mas também existe uma preocupação no fazer

coisas para esta Comunidade Santo Antônio que também está sendo privada

dos direitos, do acesso ao recurso da cultura, da arte no geral. [Refere que é

um princípio de seis anos atrás] (Participante 4)

Há uma valorização do espaço e do pertencimento à periferia, com suas

particularidades:

Acho que a gente experimenta, porque esse espaço é um grande experimento.

Apesar de a gente estar localizado na periferia, às margens da sociedade,

cada comunidade periférica tem um contexto diferente [...] tem relações

sociais que se dão de forma diferente. A gente tem uma criançada que ocupa

este espaço, que está ativamente querendo participar das coisas... até mais

que os adultos. Eles estão aqui de manhã, de tarde, de noite e se a gente não

mandar ir para casa não vão [risos]. De certa forma, a gente constrói, sim, o

Sacolão coletivamente, mesmo que a gente esteja com essa dificuldade, esse

conflito, que é o conflito social, mas é interno também. Que essa sociedade

[capitalista] está de fora pra dentro, e é de dentro para fora também. Não está

do lado de fora da gente... Está introduzida na nossa cabeça. Para

desconstruir isso gera, sim, um conflito, muitas vezes. Mas a gente consegue,

cada coletivo ou individualmente, trabalhar fazendo coisas que impulsionem

para que esse espaço continue existindo aqui, e resistindo nesta comunidade,

neste contexto difícil que a gente tem. (Participante 4)

Essas manifestações ricas de vida, de experiências, de angústias e de valores

foram registradas atribuindo-lhes o seu locutor, mas entendemos que são pertencentes a

sujeitos coletivos. Expressam muito do que pudemos acompanhar nas análises de

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documentos e dos contatos por meio dos procedimentos realizados; nós as colocamos

como sínteses provisórias de um movimento permanente da luta desses trabalhadores.

Destes, as falas demonstram a luta para afirmar o trabalho que seja realizador da

humanidade e, no caso, o trabalho e atividade artística, formas de práxis que podem ser

dialeticamente emancipadoras ou alienadoras/alienantes.

Muitas observações podem derivar de cada manifestação, cada indagação, cada

“resposta” que carrega também outros questionamentos. A riqueza dos sujeitos que

participaram, como representantes de um coletivo ou individualmente, sugere que essa

resistência na região periférica tem possibilitado a emergência de militantes e

trabalhadores da arte com visão crítica do ethos burguês. O desafio colocado é o de

enfrentar a tendência a mistificar o desenvolvimento desses sujeitos, afirmando sua

construção coletiva e todos os dilemas que tal condição gera. Como uma das

participantes expressou, muitos se afastaram. Mas os homens e mulheres fazedores do

Sacolão resistem.

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CONCLUSÕES

Em uma fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a

subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, o

contraste entre o trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho

não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando,

com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem

também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza

coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte

do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada

qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades.

MARX, K. Críticas ao Programa de Ghotha (1875) 100

A conjuntura no Brasil colocou em relevo nossa questão sobre as atividades

artísticas, as lutas sociais e a democracia. O debate crítico em relação à democracia

contemporânea tomou um vulto ainda maior e tenso na sociedade em geral, diante das

graves violações do Estado contra manifestantes, tanto independentes quanto

organizados, que estiveram nas ruas expressando suas posições. O período de junho de

2013 tornou-se mais emblemático na medida em que chegou a colocar cerca de um

milhão de pessoas manifestando-se simultaneamente em 150 municípios no país.

As primeiras reivindicações desse processo ocorreram em torno das tarifas do

transporte público, protagonizado pelo Movimento Passe Livre, cujo chamamento

motivou a retomada de tantas outras bandeiras. Um elemento central que se colocou

nesse sentido foi a unidade a partir das condições objetivas de vida. As péssimas

condições do transporte coletivo e o seu preço deram um primeiro sentido de unidade.

Por outro lado, ao longo dos dias, surgiu uma passeata de um grupo pró-ditadura,

apoiando que os militares assumissem o poder, reunindo cerca de 50 pessoas, segundo a

mídia. Ou seja, as ruas foram ocupadas por pessoas das mais diversas posições políticas,

com a emblemática ação dos “apartidários” que perseguiram e espancaram

manifestantes de esquerda, queimando literalmente suas bandeiras. A truculência da

Polícia Militar em São Paulo incentivou muitos a saírem de suas casas. Nos bairros da

periferia também aconteceram grandes manifestações exigindo melhorias nas condições

de vida, mas com ênfase na denúncia contra os policiais. Para enfrentar essas

manifestações os governos utilizaram-se das Forças Armadas, o que demonstrou a

100 In http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/gotha.html. Acessado em 25/01/2014.

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tentativa de impor a “ordem” a todo custo, inclusive com a ocorrência de morte, assim

como deixando muitos manifestantes e trabalhadores da comunicação feridos e

mutilados. No dia 14 de junho de 2013, numa manifestação contra a Copa do Mundo,

que começou de forma pacífica, chegou-se à detenção de 241 pessoas. Inúmeros

episódios demonstraram o despreparo das polícias em todo o Brasil, com uso de

artefatos que feriram e mutilaram participantes, incluindo-se muitos jornalistas e

cinegrafistas, como amplamente divulgado no mundo. Muitas frentes de análise estão

abertas, mas sem dúvida a democracia está posta em questão.

A violência cometida contra cada indivíduo e contra as organizações de

resistência no período da Ditadura deixou marcas profundas na cultura brasileira –, no

seu imaginário, nas suas instituições e nas suas práticas cotidianas. Entretanto, a

resistência também deixou um legado incomensurável. Nessa direção tecemos a crítica à

“democracia formal”, nos termos de Wood: por reconhecer a luta e a resistência de

gerações anteriores, que carregam heranças dos povos indígenas, dos africanos

escravizados, dos imigrantes de todo o mundo que vieram trabalhar nas férteis terras

verdejantes. Portanto, não se trata de minimizar as conquistas democráticas de 1988,

pelo contrário, trata-se de defender uma contínua democratização, mas exigindo a

efetiva ampliação da participação política, do enfrentamento à desigualdade, com vistas

a construir uma sociabilidade que não tolere mais a injustiça social.

A atual democracia brasileira é muito recente e exige muitas mudanças.

Sabemos, contudo, que ela possui limites ao seguir a lógica burguesa. Os estudos de

Wood compõem esta análise mostrando-nos os riscos de aderirmos, até sem perceber, à

“democracia formal” que se organiza para sustentar o capitalismo.

As lutas democráticas no Brasil englobam um grande universo de

reivindicações. O crescimento da crítica contra as decisões do governo foram se

avolumando, especialmente em função das violações contra os moradores das regiões

periféricas e a destinação de orçamento público para os megaeventos. Acompanhamos

ataques fortes contra o governo federal, sendo canalizados à figura da Presidente,

agregando críticas da esquerda à direita. O mesmo tom não foi utilizado contra governos

estaduais e municipais, que são os poderes locais que orquestram todo o aparato das

Polícias Militares em suas localidades.

O movimento contra as tarifas de transporte ganhou uma evidência importante,

pois trata da situação de toda a população: as péssimas condições e o alto valor do

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transporte coletivo impactam as condições de vida, o caos no trânsito, etc. ficando

marcada a bandeira “não é só por R$0,20” (valor do aumento no preço da passagem de

ônibus na cidade de São Paulo). O Comitê Popular da COPA, que vem há vários anos

organizando uma série de estudos e debates, propiciou uma discussão crítica a respeito

do desenvolvimento e da mobilidade urbana, denunciando a ameaça de remoção de

moradores de suas casas, em função dos megaeventos que podem reunir mais de 250

mil pessoas. Em 2013 foi notória a ação truculenta da Polícia Militar e a indevida

convocação do Exército, causando repúdio de todos que defendem a liberdade de

expressão e de participação política. Porém, muitas tensões se colocam, inclusive com a

permanência, ao longo dos últimos meses, da truculência contra manifestações, com

efetivação de prisões consideradas arbitrárias por juristas reconhecidos. Com esse

cenário, atualmente as bandeiras que têm dado unidade aos questionamentos mais

críticos são: “Lutar não é crime” e “Libertem nossos presos”.101

Partimos das observações em relação aos trabalhadores da arte, que

parecem realmente ser como sismógrafos, termo usado por Iná Costa, capturando com

maior sensibilidade os ruídos e os movimentos dos desejos humanos. Os

desdobramentos de análise deste estudo decorrem do movimento do real, e o que

chamamos de sociabilidade de resistência realiza a crítica às contradições da

“democracia formal” ganhou novos elementos nesta conjuntura.

De fato, acatamos a assertiva constatação de Coutinho (2011) de que os

trabalhadores da arte encampam desde sempre a crítica e a luta pela democracia, porque

a liberdade de expressão somente pode ser assegurada em um regime democrático

realmente aberto a ela. As bandeiras em torno da liberdade de expressão enfrentam a

criminalização da luta social, que tem se ampliado, e qualquer posicionamento pode ser

levado aos tribunais, mais uma vez demonstrando a serviço de quem se encontra o

aparato judiciário.

Em Lukács temos a defesa da democratização, reconhecendo-se a

processualidade histórica e a dinâmica permanente da construção das relações, ou como

o autor afirma, da democracia da vida cotidiana (NETTO, 2011, 20). Por outro lado, as

101 Em 2013, o primeiro acusado a ser preso foi um jovem de 25 anos, que vive em situação de rua, que

portava um vasilhame com desinfetante e outro com água sanitária. A Polícia Militar registrou o tipo de

substância existente, qualificando o desinfetante como sendo base para fazer um coquetel Molotov, e

mesmo a perícia informando ser impossível fazer tal artefato com aquela substância, o acusado foi preso e

teria uma pena de 5 anos de reclusão.

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atuais lutas no Brasil estão sendo feitas em torno de agenda teoricamente já conquistada,

como a liberdade de expressão e a de ir e vir, demonstrando assim os retrocessos ou a

inconsistência nas conquistas democráticas.

Parece-nos fundamental que essas evidências busquem radicalização nas pautas

democráticas, para que, articulando lutas específicas com lutas gerais, possamos

avançar no processo de democratização visando à superação da democracia burguesa.

Na década de 90 e seguinte, os movimentos sociais continuaram na esteira da

defesa das políticas públicas, impulsionados ainda pela conquista da Constituição

Federal de 1988, apesar de tantas perdas nas negociações e confrontos para sua

aprovação. Em tal período, os movimentos disputaram espaços nos Conselhos de

Direitos e de Políticas Setoriais e ao mesmo tempo defenderam a democracia

participativa por meio das Conferências de cada área. Embora sejam instrumentos

importantes para o debate público, entendemos que os avanços para a efetiva

participação democratizante e de conquistas estruturantes da política não foram

alcançados. Todo ano ocorrem inúmeras Conferências e atividades similares, de caráter

consultivo ou deliberativo, mas que esbarram nas prioridades governamentais. Assim,

esses instrumentos democráticos sequer são conhecidos pela maioria da população,

havendo inclusive esgotamento de representantes da sociedade civil naqueles espaços.

Esses mecanismos trouxeram poucas respostas ao sofrimento cotidiano, que se expressa

na falta de moradia digna, de trabalho decente, de transporte, de educação e saúde com

qualidade.

É fundamental considerar que, ao contrário do que muitos animadamente

defendem, não foram as redes sociais que criaram um imaginário convocador

(linguagem habitualmente utilizada pelas atuais ONGs, mas que aqui não se mostra com

tal potência), e nem foi o chamado nacionalista-democrático que levou multidões para

as ruas. A mobilização decorreu de inúmeros fatores, mas certamente, o elo central é a

unidade do mundo do trabalho. As péssimas condições e o alto preço do transporte

público simbolizaram esse sofrimento além da identificação entre os trabalhadores.

Malcolm Gladwell fez uma brilhante análise em 2010, com a qual tivemos contato

somente na finalização desta pesquisa, sem chance de aprofundá-la. Contudo, soma-se

perfeitamente ao conjunto de elementos que analisamos nos autores e na pesquisa de

campo. Quais os motivos que hoje fazem os jovens se arriscarem? O que mantém os

jovens trabalhadores da arte e da cultura atuando na periferia, sem recursos, e resistindo

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a “ganhar dinheiro” vendendo sua capacidade produtiva nessa área? Contrariamente ao

senso comum, vimos as cifras da Economia Criativa: 7% do PIB mundial, com

crescimento de lucros, mas redução de pessoas ocupadas neste setor. Ainda que os

espetáculos de teatro, de expressões tradicionais como o circo, ou folclóricas, que são

centenas neste vasto país continental, sejam de menor interesse, temos os elementos que

mostram como mesmo este conjunto pode ser comercializado juntamente com a mais

nova “peça” infantil. Em todas as áreas de consumo, a criança dita a conduta da família

quanto ao que vai comprar, e decisivamente a cultura é uma delas. Nesse processo,

forma-se o consumidor.102 Felizmente, muitos trabalhadores resistem a essa sedução:

salvam a si mesmos e à sua arte.

Os posicionamentos críticos e os elos de companheirismo (com conflitos

também, evidentemente) que se desenvolvem no Sacolão são elementos fundamentais

às ações coletivas. Todos aqueles que fazem um discurso derrotista, justificando sua

inércia, possivelmente se beneficiariam ao conhecer essas experiências estético-políticas

que articulam práxis fundamentais contra a alienação. Essas e outras experiências

parecem persistir porque são mantidas em função de haver uma causa pela qual lutar,

com a concepção de que é um processo coletivo e, com isso, poder potencialmente

desenvolver e fortalecer os laços de solidariedade de classe (que antes estava presente,

por exemplo, nos sindicatos). Essas experiências também podem auxiliar a reconhecer

afinal qual projeto se defende.

A melhoria das condições de miserabilidade no Brasil é inegável. Negar a

importância de milhões de pessoas terem alimento é negligenciar um aspecto importante

da nova conjuntura. Inclusive, analisar esse fato é uma exigência para avançarmos nas

agendas propositivas e mobilizadoras contra a barbárie. É preciso que o fato de pessoas

na sétima economia mundial passarem fome, não terem água potável, morarem nas ruas,

nos cause horror. O fato de a população carcerária ter saltado de quase meio milhão para

102 Ao final desta tese, tivemos contato com o artigo de Malcolm Gladwell, escrito em 14 de dezembro de

2010, intitulado “A revolução não será tuitada”. Nesse artigo, o autor se refere a um emblemático fato

ocorrido em fevereiro de 1960, quando quatro universitários negros se sentaram nas cadeiras de um

restaurante da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, assentos que eram reservados para brancos.

Resumidamente: o ato desses jovens repercutiu de tal modo que, ao final, havia 70 mil pessoas ao lado

deles. Esse fato mobilizou a luta pelos direitos civis no sul dos Estados Unidos. O autor, analisando

aquele período e cada um dos participantes, verifica que o que gerou unidade foi o fato de haver laços

fortes de relações pessoais, de companheirismo entre os jovens por terem vivido situações juntos. O

sofrimento e o vínculo forte os fez correr riscos altos. Disponível em:

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a-revolucao-nao-sera-tuitada.

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750 mil, de 2010 a 2013, é outro prisma desse conjunto de elementos. São muitos

ângulos de uma mesma realidade e uma análise descuidada nos levará a caminhos

equivocados. Porém, há pressa no ritmo dos jovens que saíram às ruas e que deixaram

todos, querendo ou não, inquietos. Na agenda de lutas, muitas contradições e

controvérsias são colocadas. Desde o tipo de pauta, de reacionário a libertário, ao tipo

de organização ou do indivíduo na multidão, com seu cartaz simbolizando o seu direito

de se expressar, revelando a individualização das demandas sociais. Se as manifestações

serão ainda uma pauta para intensos debates, um dado está posto: as condições de vida,

ilustradas pelo aumento da tarifa de ônibus, foram o estopim inicial das manifestações.

E são esses os mesmos jovens que estão encarcerados. A grande parcela da

população vivendo nos cárceres é negra e parda (54%), pobre e jovem (entre 18 e 29

anos). Com tantas ações do movimento social e de organizações tradicionais como a

Pastoral Carcerária, a Anistia Internacional, e mesmo órgãos como a Ordem dos

Advogados, o encarceramento da juventude continua – agora retomando a proposta

paulista de aumentar o tempo de internação dos adolescentes a quem se atribui ato

infracional.

Sabemos que a educação em si mesma e atividades culturais por si sós não

mudarão a realidade. Apresentamos os elementos e os argumentos existentes em torno

da prioridade da determinação econômica, inclusive na formação subjetiva do ser social.

Por outro lado, vigora a ideia dominante sobre a “natural” transformação por meio da

cultura, gerando uma série de ações moralistas e que, portanto, não atacam a questão da

efetivação de direitos e da defesa da igualdade. Problematizamos que vivemos uma

efervescência política nova. O sismógrafo captou os movimentos, mas eles ainda estão

em análise. Entretanto, a nossa aposta na sociabilidade de resistência caminha no olho

do furacão (o que implica no nível de apreensão destes novos elementos), reconhecendo

as lutas sociais e a adesão dos trabalhadores na empreitada contra o capital e

defendendo uma sociedade emancipada. Estamos trilhando experiências e estratégias

para a ampliação da participação, da democratização do poder, ou seja, estamos ainda

na agenda da emancipação política – e, lamentavelmente, com graves recuos.

A polícia brasileira, matando mais do que as guerras, é um ponto fundamental,

que expressa um conjunto de instituições que funcionam pautadas na eliminação do

“inimigo”. A criminalização das lutas sociais e da livre manifestação expôs o quanto o

direito de ir e vir está cerceado. Nas periferias e para a população afrodescendente esse

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direito sempre foi violado. Essa realidade explodiu, está posta na agenda da questão

urbana. O pertencimento e a mobilidade são frentes das lutas gerais.

O transporte está diretamente relacionado à mobilidade urbana e às condições de

vida dos trabalhadores. O trabalhador que somente tem a si mesmo, força de trabalho,

como mercadoria, se vê cada vez mais aviltado. Essa é a realidade da grande maioria

dos que vivem no Brasil, principalmente nas regiões periféricas. Essa realidade é a

rotina cotidiana dos fazedores do Sacolão das Artes e dos moradores que participam de

suas atividades.

O que está em questão não é ampliar o número de casas oferecidas pelo

PMCMV, mas o direito à cidade, conforme trouxemos pela análise dos dados de Rolnik.

Esta não é uma questão do Brasil, como apontam os Relatórios da ONU. Além disso, o

Brasil está vivenciando uma outra situação: a chegada de imigrantes e refugiados,

somando-se aos milhares de outros latino-americanos, na maioria indígenas, também

expulsos de seu país devido ao agravamento da violência do capital. Esta nova realidade

está impactando nas políticas sociais em forma de demanda, mas sem haver sequer

discussões institucionais para o enfrentamento da situação. Os trabalhadores da

educação, da assistência social e da saúde são os que mais se deparam com essa

realidade, sem que a política esteja se reorganizando.

O debate sobre a Economia Criativa trouxe-nos elementos objetivos sobre a

lógica que está sendo estruturada há anos no Brasil, e avaliamos ser uma temática

fundamental para as diferentes frentes de intervenção profissional, investigação

científica e militância política. Ao verificarmos os dados da Economia Criativa

podemos verificar que existe um forte investimento político para dar uma configuração

neoliberal à política cultural. Avaliamos negativamente o fato de o MinC possuir seis

Secretarias, e ser estabelecido um Sistema Nacional de Cultura que é facultativo. As

brechas que se abrem em todas essas propostas que caem na lógica de políticas de

governo, voltam a reproduzir a velha política de negociações, ficando à mercê dos

gestores da ocasião.

Nesse conjunto de questões nossa escolha de pesquisa não foi deliberada,

mas a consideramos um bom caminho de investigação, que abriu uma série de

possibilidades de estudos. No tema em questão, os dados obtidos corroboraram nossa

hipótese sobre a particularidade do significado da participação orgânica dos

trabalhadores da cultura em movimentos sociais na defesa de direitos fundamentais,

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como uma agenda de luta. Ou seja, sua inserção não é um tipo de contribuição pontual a

determinados movimentos, mas sua forma de engajamento político para o

enfrentamento da realidade. Seus processos criativos são engendrados por suas

expressões particulares (teatro, circo, sarau, etc.), dialogando com os conteúdos da

realidade.

Essa identidade é um elemento que particulariza os sujeitos com quem

dialogamos para compreender a sociabilidade de resistência. Não se trata de indivíduos

que apenas atuam com a arte/cultura em função de sua inserção no mercado de trabalho,

mas que demonstram para si mesmos, em sua trajetória e em seu discurso, sua condição

e posição de classe, atuando contra a lógica capitalista e seu ethos. Alguns declaram-se

trabalhadores da cultura, mas realizando suas intervenções de forma militante e

inseridos em coletivos.

Os sujeitos que efetivamente criaram e mantêm o Sacolão das Artes em

funcionamento são moradores do entorno e da região, tendo essa identidade de ser

daquele território, reconhecer e fazer parte das suas lutas. Ao longo dos quase sete anos

de existência têm investido no aperfeiçoamento do fazer coletivo, pois, ao mesmo

tempo em que é o procedimento de como se organizar e executar as tarefas, é,

simultaneamente, a construção do ser social.

Concluímos que, com todas as contradições existentes, esses sujeitos constroem

cotidianamente uma sociabilidade de resistência na contemporaneidade. São sujeitos

que estão inseridos em lutas mais amplas, mas também atuam com as demandas

cotidianas, como a defesa do direito à moradia, à livre expressão, à saúde e à educação

de qualidade, dentre outras.

A particularidade da expressão artística, nesse contexto, não é acessória: há

aspectos da sociedade que são captados primeiramente pela arte e, em alguns casos,

especialmente por ela. A realidade que pode ser analisada amplamente é matéria da arte

crítica, que apoiando-se no belo e na dor, nos propõe verdades no processo histórico.

Uma boa referência que demonstra esse processo é o modo pelo qual tomamos

conhecimento sobre como a criança foi “vista” na sociedade ocidental. Foi possível

resgatar a história do trato à criança por meio de análise das pinturas em telas, em peças

decorativas do ambiente doméstico e similares, em geral aparecendo incidentalmente,

não como foco central – exceto se tiver uma importância social (ser filho do rei, por

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exemplo). A criança apareceu em textos literários e mesmo em cartas e documentos,

mas ainda sem prioridade. Ao se referir a órfãos, eles são mencionados somente se os

pais tinham alguma relevância naquele contexto. Esses registros nos mostram que a

criança está por ali, por perto, e gradativamente vai ocupando algum espaço: recebendo

nome e roupas iguais aos dos adultos, aparecendo nas cenas do trabalho e nas situações

de violência. Ela sempre esteve por ali: o que vai se alterando é a forma pela qual os

adultos passam a se relacionar com ela. A ausência nas imagens expressa a sua

invisibilidade, sendo a criança menos importante que objetos – os quais, por sua vez,

eram retratados conforme o grau de sua importância.

Essas expressões dizem respeito às condições objetivas e subjetivas impregnadas

por aquele momento histórico. Nesse sentido, o conhecimento obtido por meio da arte

nos favorece capturar particularidades da dinâmica da vida social, suas tensões e

contradições. Além disso, podemos optar por este ou aquele enfoque, posto que é uma

escolha fundamentada em valores.

A resistência do Movimento dos Trabalhadores da Cultura e de uma série de

organizações coletivas têm sido fundamentais, como tentamos demonstrar no estudo.

Há um acirramento que se coloca em alguns espaços, mas como em todos os setores, há

uma grande confiança no governo do Partido dos Trabalhadores.

Contudo, a resistência nas regiões periféricas parece estar se ampliando (ou

tendo maior visibilidade), inclusive com a incorporação cada vez maior de um modo de

articular a ação política com a experiência estética. Nas ocupações mobilizadas pelo

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto tem havido uma preocupação de garantir a

unidade com a divisão de tarefas (denominadas brigadas) e também por meio de

sistemática formação cultural, em geral havendo uma brigada também para essa tarefa.

Assim, saraus, projeção de filmes com debates, bailes, oficinas culturais, etc. têm sido

comuns nesses espaços. O intercâmbio entre essas lutas tem sido bastante importante,

gerando vínculos e troca de informações.

Essas questões apareceram fortemente durante as reuniões e no grupo focal que

realizamos com o Sacolão das Artes. Vários sujeitos que realizam suas atividades no

Sacolão também estão envolvidos com outros espaços e movimentos. Bastante salutar é

a articulação entre militantes dos movimentos dos Sem-Teto e Sem-Terra; inclusive, o

MST existe há 25 anos, e é inegável seu legado para a construção da consciência de luta

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e da autonomia de organização, com as tradicionais brigadas e lealdade entre os

participantes.

No grupo focal problematizou-se a importância da organização para a discussão

e o planejamento, tendo os participantes problematizado que recusam uma conduta

voluntariosa e espontaneísta. Assim, vemos estratégias que vão sendo partilhadas entre

os movimentos, e que confirmam que nessas ações coletivas o processo formativo se faz

de modo orgânico, e não de modo artificial. No convívio vão se verificando as agendas

em comum e as divergências que vão transmitindo esse modo de fazer política, com

participação coletiva que propicia a experiência contra a lógica da concorrência e do

individualismo.

Essa ação política não é um convencimento ou uma sensibilização. É uma ação

que se constrói processualmente, com clara intencionalidade, mas que se tenta efetivar a

partir da vivência concreta e sistemática onde se estabelecem os acordos, firmando-se

alianças e relações de companheirismo.

Portanto, podemos afirmar que a pesquisa de campo demonstrou com pontos

fortes que o Sacolão propicia:

- a imensa riqueza da relevância do fazer coletivo que se estabelece por meio de

combinados conjuntos, com partilha e solidariedade, bem como pelo

reconhecimento das atividades do outro;

- o fortalecimento da identidade do sujeito que reside na periferia, não adotando

como única alternativa a saída daquele território, mas podendo viver no local

com dignidade;

- a desconstrução de valores machistas-sexistas, equalizando as tarefas que

podem ser feitas com igualdade;

- o exercício de partilha de poder e responsabilidade;

Diante do acúmulo de vivência e de debates do Sacolão, que se encontra num

momento de possibilidades de ter apoio de editais, do Programa VAI, dentre outros, se

não houver ousadia para garantir a unidade em torno dos seus princípios, avaliamos que

o coletivo poderá pôr em risco a história que construiu. À medida que a entrada e

permanência no Sacolão for em função desses projetos, perdendo-se a conexão com a

concepção maior, os conflitos tendem apenas a se deslocar de um sujeito para outro.

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Observamos em algumas reuniões a dificuldade de debater, inclusive pelas

implicações nas relações de convívio, quando alguma pessoa ou coletivo não está

cumprindo os princípios e os acordos traçados, ficando restrito à oferta de mais um

serviço. Essa é uma dificuldade da relação política que, se não amadurecida, poderá

conduzir o Sacolão a se tornar o que seus fazedores temem: um supermercado de

eventos.

Desse modo, adotar este ou aquele princípio não é o suficiente para a

viabilização do que propõem os membros do coletivo, demonstrando a relevância de

forma e conteúdo estarem unificados efetivamente nas ações realizadas. Isso, porém,

não é garantia de que os objetivos sejam todos ou integralmente alcançados – e nem é

essa lógica de gestão que eles buscam. Mesmo os aparentes insucessos são elementos

para se pensar e concretizar o projeto coletivo que elaboraram.

Quando iniciamos este processo de estudo, o tema da democracia parecia ser

algo suficientemente debatido, porém, a conjuntura foi explicitando questões que

havíamos observado de forma empírica e incipiente, as quais nos mobilizaram para o

aprofundamento do debate crítico. A primeira hipótese lançada era de que o crescimento

e/ou visibilidade das manifestações estético-políticas questionavam essa democracia

formal, cuja superação exige mudanças efetivas contra a tendência de se cair na

burocracia das estruturas oficiais.

No grupo focal foi debatido que na vizinhança, bem perto deles, existe um

grande equipamento público estadual chamado Fábrica de Cultura, onde há uma grande

oferta de atividades, mas onde os interessados se inscrevem para a realização das

propostas, sem poder incidir na elaboração das propostas de acordo com seus interesses.

Aqui novamente nos apoiamos no debate de forma e conteúdo, posto que na referida

Fábrica existe uma programação de excelente qualidade, mas que, em função da

dinâmica do Sacolão, muitos interessados preferem participar deste, ainda que a

estrutura institucional seja mais precária (organização física, acomodações, etc.).

Expressando o desejo de efetiva participação, multiplicam-se os saraus que se realizam

em bares, em espaços públicos, nas residências, em sua maioria, na periferia. Nesses

saraus, entre uma apresentação e outra, passam-se informações sobre as questões

importantes, as atividades de luta, as denúncias.

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O desejo de participação política, portanto, é a tônica. Nas ruas, contra as tarifas,

ou na elaboração das propostas de lazer e cultura, evidencia-se esse interesse que tem o

potencial da crítica à realidade em que estamos inseridos.

É nesse contexto contraditório que entendemos que o indivíduo se desenvolve

como ser social e no que se põe a relevância de debatermos a sociabilidade de

resistência. Portanto, não se trata apenas de descrever, e nem focar com um otimismo

ingênuo as chamadas estratégias de sobrevivência aos ditames capitalista e toda sua

ordem de valores (patrimonialistas, xenofóbicos, machistas), que esse sistema gera e

que aviltam as possibilidades do gênero humano.

Consideramos que a permanência dos sujeitos coletivos que fazem o Sacolão das

Artes decorre da valorização deles quanto à relação dialética que desenvolvem entre si,

trabalhadores da cultura, com os demais militantes e com o público participante. As

tensões nas reuniões e as dificuldades para efetivar o trabalho no Sacolão poderiam

desmotivar aqueles jovens e talentosos trabalhadores. Contudo, essa sua adesão ético-

politica em torno da luta por melhores condições de vida dos trabalhadores e, no caso,

da comunidade local, orienta suas ações.

Essa relação é permeada por confrontos, havendo em diferentes momentos

alguns embates, quando se denuncia haver um discurso sem coerência com a prática.

Um fato gravíssimo que registramos (mas não presenciamos) foi o conflito de um

trabalhador com uma criança, que teria causado algum dano (aparentemente mínimo) a

um automóvel estacionado no pátio em frente ao Sacolão. Diante da situação, pensou-se

uma forma de impedir que os moradores usassem aquele espaço, que é destinado para as

crianças brincarem. O debate sobre a atitude contra a criança, contudo, ficou relegado,

sugerindo dificuldade em lidar com essa questão.

Da mesma forma, verificamos que no período do final de ano os trabalhadores

que atuam no Sacolão geralmente também cessam suas atividades e o espaço ficou

fechado. Esta é uma evidência da não apropriação dos moradores na gestão coletiva do

espaço, sendo que é um momento muito importante para a população, pois é no final de

ano, que as crianças e adolescentes usufruem de férias escolares, demandando espaços

para brincar, ter lazer e convivência social. Além disso, as residências em geral são

pequenas, com acomodações modestas, e muitas vezes as crianças de famílias mais

empobrecidas ficam pelas ruas.

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Assim, reforçamos nosso entendimento de que a democratização deve incidir

nessas esferas da vida cotidiana A atividade estético-política realizada por diferentes

sujeitos coletivos, pautada na defesa de uma sociedade justa, igualitária, está sintonizada

com os valores democráticos. Neste sentido, problematizamos a sociabilidade de

resistência partindo de elaborações de teóricos com consistente produção nessa

temática. Lukács afirma que “A sociabilidade é um dado que acompanha, desde o

início, o processo pelo qual o homem se torna homem” (2011, p. 143), porém, afirma

que nas sociedades de classe, essa sociabilidade vai ser impregnada pela alienação.

Assim, quando observamos a experiência do Sacolão das Artes, importou-nos

problematizar a articulação entre os interesses imediatos cotidianos e as grandes

questões defendidas pelos seus fazedores.

Verificamos que os sujeitos que fazem o Sacolão entendem a sobrevivência do

ponto de vista das necessidades prementes como moradia, alimentação, saúde, mas

também do ponto de vista da cultura, das raízes, da história e da identidade. Esse

conjunto ilustra parte de seu projeto estético-político aliado à luta contra o capitalismo e

todo o seu ideário.

A riqueza dos documentos analisados, bem como das reuniões, atividades,

entrevistas e o debate no grupo focal ilustram as contradições, os dilemas, as conquistas

e desafios dos fazedores do Sacolão da Artes.

Deste modo, podemos afirmar que há debates cruciais a serem enfrentados para

que o projeto do Sacolão não sucumba à logica da burocracia:

- a relevância do debate sobre público e privado: constatamos aspectos que

demonstraram a contradição do Sacolão ao lidar com aquele espaço público, afirmando

valores de autonomia e liberdade, mas reproduzindo atitudes ainda de uma lógica

privada. O grande desafio que se colocam é a construção coletiva cotidiana, recusando a

reprodução da lógica existente na sociedade capitalista. Ainda neste sentido, existe um

tabu em relação ao Sacolão poder exigir o poder público (portanto, requisitando

servidores públicos) para auxiliar na manutenção do espaço. Uma grande oportunidade

de impactar no poder público e na sua democratização deixa de ser aproveitada.

Validamos a posição do Sacolão das Artes em condenar a lógica hierárquica e

fragmentada, e por isso mesmo, problematizamos que poderiam avançar em alternativas

para uma relação democrática e coletiva com servidores públicos;

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- os limites dessa experiência no contexto da sociedade capitalista: os sujeitos

demonstram, com níveis diferenciados de reflexão, ter consciência dessas limitações,

que em sua leitura serão superadas somente com a construção de outro projeto

societário. Afirmam reconhecer que atuam de forma contra-hegemônica e acreditam que

nesse processo de luta disputam com a ideologia dominante;

Alguns participantes revelam certa idealização, colocando que o Sacolão das

Artes é revolucionário. Concordamos quanto à relevância da experiência crítica, mas

sabemos que para um processo deste nível ter alcance e impacto mobilizador são

necessárias condições objetivas e subjetivas, que no nosso entendimento não estão

postas, ainda, na atual conjuntura. Porém, o Sacolão das Artes e experiências pautadas

na igualdade, no trabalho coletivo, na não hierarquização, etc. podem contribuir para o

enfrentamento da alienação e de vivências que propiciem o desenvolvimento de valores

emancipatórios.

Ocupado em 2007, carrega um legado histórico da região, de lutas democráticas,

de enfrentamento da Ditadura, de uma forte participação de mulheres. No seu histórico

verifica-se a maior adesão quando as pautas dialogam com as demandas objetivas do

cotidiano.

Há aspectos do convívio que trazem outras dificuldades. Os sujeitos coletivos

debateram as discriminações existentes entre os moradores do entorno, havendo muita

miséria, dependência química, tráfico de drogas e violência doméstica. Diante disso,

consideramos que os coletivos conquistaram a comunidade local, que tem outras

(poucas) alternativas no entorno, mas optam por participar da programação existente no

Sacolão, cujas atividades são de grande qualidade, mas algumas vezes contando com

condições materiais inferiores (acomodação, por exemplo).

Os elementos citados sobre a atividade artística nos provocam outras questões,

diante do crescimento da Economia Criativa que se apresenta como mecanismo para

uma política de cultura. Neste sentido, põe-se a relevância do debate sobre a

culturalização da economia, que não esteve no escopo de nossa análise (o que abriria

mais uma frente de aprofundamento), mas para o qual entendemos haver uma

sistematização que lhe promete fertilidade.

Assim como apontado pelo IBGE, o nível de escolaridade dos trabalhadores da

cultura é mais elevado do que a média. Vários fazedores têm nível superior e também

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pós-graduação. Inclusive, chamou-nos a atenção que duas participantes são estudantes

em universidades públicas.

A existência da sociabilidade de resistência contemporânea se mostra

incontestável, carregando em si o questionamento diante da desigualdade social. Porém,

muitas frentes de análise estão abertas. Dentre elas, permanece a tendência punitiva do

Estado brasileiro, ao reprimir violentamente essas manifestações. Foram cometidas

agressões, uso de armamentos, arbitrariedade na detenção e prisão de cidadãos,

motivando juristas a afirmar que vivenciamos situação análoga ao estado de exceção.

Muitas manifestações foram feitas contra a crescente criminalização da luta social, com

grande violência contra a ocupação de terrenos na área urbana e contra grevistas de

diferentes setores. Há quem atribua a “culpa” às redes sociais, mas tendemos a pensar

nelas como um instrumento poderoso, mas não suficiente para colocar um milhão de

pessoas nas ruas. E nem sonhamos que aquela multidão estivesse defendendo uma nova

sociedade, justa e igualitária.

Aqui cabe o alerta de Konder:

O pluralismo da ideologia da direita pressupõe uma unidade substancial e

profunda, inabalável: todas as correntes conservadoras, religiosas ou leigas,

otimistas ou pessimistas, metafísicas ou sociológicas, moralistas ou cínicas,

cientificistas ou místicas, concordam em um determinado ponto essencial.

Isto é: em impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem,

façam política e criem uma verdadeira democracia. (KONDER, apud

COUTINHO, 2011, p. 50)103

De uma forma muito sumária, podemos afirmar que a descrença na política toma

dois tons principais: um que defende a radicalização da política com ampla participação,

uma vez que o atual governo não tem atendido as demandas dos trabalhadores, e outro

que prega a inutilidade da política. Entre esses polos, há um mosaico de forças, ainda a

ser melhor qualificado, porém, apontando também riscos às conquistas da democracia,

ainda que limitada.

Conforme nossa posição teórica, entendemos que os levantes de junho de 2013

foram e ainda estão sendo importantes, mas sem sermos ingênuos: trata-se de

reivindicação por direitos e é possível politizar, agregando mais pessoas. Esse é um

legítimo exercício de democratização da sociedade. Nos termos de Coutinho, é preciso

103 Artigo publicado em 1979.

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“a construção de uma democracia de massas” e “autogestão dos organismos de difusão

cultural pelos próprios produtores culturais associados” (2011, p. 72).

Nesse contexto, o histórico do Sacolão e a representação da Zona Sul para as

lutas sociais, são elementos importantes e seus rumos dependerão muito de uma

radicalidade em torno dos fortes princípios contra o capitalismo e suas formas de

opressão.

É um momento importante que exige reforçar o direcionamento para a apreensão

de uma cultura de ocupação do espaço público. Nestes momentos discute-se a

pertinência de realizar formação política e a complexidade de realizá-la numa

perspectiva libertária e que não recaia em controle ideológico.

Ter a identidade de trabalhador da arte e da cultura é um ponto forte gerado pelo

movimento, com a expressa fundamentação marxista. Porém, sempre são necessárias

mediações. Se esses trabalhadores avançaram no entendimento de que é o seu modo de

ser que vem moldando sua consciência, com o fazer coletivo, com o legado do Teatro

de Grupo, a partir de experiências dos movimentos Sem-Teto e Sem-Terra que adotam a

estratégia de ocupação urbana e rural, parece-nos necessário ampliar o sentido de

pertencimento efetivo de todos os participantes.

Como avaliação das contradições, dentro da lógica da política social que se

efetiva para o controle social, e da Economia Criativa, avaliamos negativamente a

tendência de alguns membros do Sacolão, nos últimos meses, de aderir à proposta de

agentes culturais. Ao firmarem esse tipo de “parceria” sem um debate crítico, o ideário

do Sacolão pode ir perdendo sua proatividade de avançar na efetivação do seu projeto.

Entrando na rede da Economia Criativa, uma série de regramentos externos e não mais

construídos coletivamente colocarão em xeque a proposta. Esta não é uma previsão, mas

uma tendência que engoliu outros movimentos. A apropriação sobre o significado da

área cultural na economia é fundamental para um confronto que coloque exigências dos

trabalhadores da arte, que assim como nas outras áreas, produz riqueza material e

simbólica.

Neste sentido, entendemos que a proposta de uma lei municipal para o fomento

específico das atividades artísticas da periferia poderá ser muito importante, mas

mantendo-se a preocupação que vem sendo trabalhada quanto a não engessar os

processos criativos e a autonomia, aos moldes de muito do que se conquistou na Lei de

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Fomento ao Teatro no município de São Paulo. A lei para a periferia deverá estar atenta

também para não segregar sob o discurso da diferença.

O Sacolão tem o potencial de, com financiamento público, oferecer um

conhecimento refinado sobre o impacto da cultura naquela região. Mas, de uma

proposta que vem formando sujeitos críticos, que valorizam a cultura, o convívio, a

solidariedade, orientados hegemonicamente pela luta contra o capitalismo.

Num mundo globalizado, em que se prega e valoriza o individualismo,

experiências com a do Sacolão são muito importantes. Não porque ele seja eficiente e

produtivo, como deseja o capital e a gestão pública burocratizada. Mas, porque tenta

manter uma sociabilidade de resistência, miúda e consistente, contra o capitalismo e

seus valores. A pergunta que nos fazíamos diante de talentosos e jovens trabalhadores

da arte era justamente na tentativa de entender o que os mantinha no Sacolão. Essa

sociabilidade de resistência parece ser o vínculo que os mantém naquele espaço. Por

isso, se negociarem esses princípios que os sustentam, abrindo espaços para

simplesmente captar recursos ou ampliar a frequência, podem colocar em risco uma

história que, como tentamos apontar, é um legado, de lutas mais amplas. É um momento

em que o projeto do Sacolão está posto à prova.

Reconhecer a luta por uma política para a cultura é uma questão para os

movimentos sociais, para as profissões e para a academia. As mobilizações se

impuseram de forma contundente a pauta de discussões inclusive para a academia, que

se distanciava. Com todos os engessamentos na pesquisa acadêmica, tem havido maior

visibilidade das lutas sociais mais amplas. Os recursos tecnológicos e midiáticos

certamente contribuíram. Mas, porque estão também sendo apropriados pelos

trabalhadores e pela resistência contra a barbárie comandada pelo capitalismo. Novos

sujeitos estão em cena, com discursos desta contemporaneidade, que também nos impõe

olhar não de modo a focar fenomenicamente o presente, mas atento ao que é o

movimento real.

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ANEXOS

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ANEXO 1

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ANEXO 2

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ANEXO 3

ORGANOGRAMA DO MINISTÉRIO ESTADUAL DA CULTURA

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ANEXO 4

Projeto de lei que cria ProCultura é “esculachado”

Movimento protesta contra a associação entre o governo e iniciativa privada

para aprovar o projeto de lei que cria o Programa Nacional de Fomento e

Incentivo à Cultura

21/05/2012

Eduardo Campos Lima,

de São Paulo (SP)

O Movimento dos grupos de

teatro de São Paulo organizou

no último sábado (19) um

café de rua e um esculacho

popular em frente ao prédio

da Associação dos Advogados

de São Paulo (SP), onde

ocorria um seminário sobre o

projeto de lei que cria o

Programa Nacional de

Fomento e Incentivo à

Cultura - o ProCultura.

O seminário, organizado pelo

Centro de Estudos de Mídia,

Entretenimento e

Cultura (Cemec) e pelo site

Cultura e Mercado, contou com a participação do deputado Pedro Eugênio (PT/SE) e do

secretário-executivo do Ministério da Cultura, Vitor Ortiz, além de outros representantes do

governo e de organizações e empresas do mercado cultural.

“A primeira apresentação para São Paulo desse substitutivo – que pode ser aprovado do jeito

que está, sofrendo, talvez, algumas pequenas mudanças – foi em um evento privado”, aponta

Fernanda Azevedo, da Kiwi Companhia de Teatro. Para participar do seminário #Procultura, o

custo por pessoa era de R$ 350,oo.

Enquanto os debatedores do evento faziam um coffee break dentro do prédio, os manifestantes

do lado de fora compartilhavam um café da manhã, com alimentos trazidos pelos presentes,

enquanto gritavam palavras de ordem e faziam a leitura de documentos produzidos pelo

movimento.

Conforme esclarece Azevedo, o esculacho não tinha como alvo a organização do seminário. “A

gente não é contra a organização do evento pelo Cemec e pelo empresariado da cultura. Eles têm

o direito de se organizar, como nós também temos. O que acusamos é a promiscuidade entre o

Ato em frente ao prédio da Associação dos Advogados de São Paulo

Foto: Fernando Kinas

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poder público e a iniciativa privada. Nossos funcionários do Ministério da Cultura não poderiam

estar aí dentro, apresentando em primeira mão um plano público de cultura para o país”,

explica.

As críticas ao projeto de lei do ProCultura feitas pelo movimento têm como foco principal os

mecanismos de renúncia fiscal que ele estabelece. “O projeto mantém a matriz liberal que se

iniciou com a Lei Sarney em 1986. Para nós, cultura é um direito social, portanto, é uma

obrigação do Estado garantir seu financiamento direto”, argumenta Azevedo.

As próprias formas de obter verbas para o fundo público estão atreladas à privatização da

cultura. Uma delas é que 20% do que seria captado por meio de renúncia fiscal viria para o

fundo. Fernanda acrescenta que “essa possibilidade é uma inovação introduzida pelo deputado

Pedro Eugênio (PT). Nós, como defensores da cultura como um direito da população, teríamos

que torcer para que os projetos ganhassem dinheiro via projeto de isenção fiscal para que, então,

pudéssemos contar com esses 20% dentro do fundo público”.

Outro instrumento para captar recursos para o fundo seria a “Loteria da Cultura”, cujos ganhos

seriam parcialmente direcionados para a cultura. “A gente seria obrigado, então, a apoiar a

exploração da fé das pessoas para conseguir mais recursos para a cultura”. Além disso, o projeto

de lei fortalece o Ficart (Fundos de Investimento Cultural e Artístico), mecanismo que permite

que se use dinheiro do Fundo de Cultura para investimentos.

Para completar, todas as demandas específicas do movimento dos teatros de grupo, debatidas

há vários anos com o governo, necessitam de regulamentação. É o caso do Prêmio Teatro

Brasileiro. “Para o vale-cultura, por exemplo, que seria um valor de R$ 50 para o trabalhador

gastar na indústria cultural e que o patrão poderia abater do imposto de renda, estão criando lei

específica, porque dá visibilidade para o governo”, compara Azevedo.

O projeto de lei seguirá o trâmite legislativo nas próximas semanas. “O que temos que fazer

agora é pressão social”, aponta. O esculacho popular foi uma pequena mostra: ao saberem que o

protesto ocorreria, representantes do Ministério da Cultura propuseram, em cima da hora, uma

reunião com lideranças do movimento, um dia antes. O movimento recusou e manteve a

manifestação.

FONTE: http://www.brasildefato.com.br/node/9621. Acesso em 18/04/2014.

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ANEXO 5

CARTA AO PRESIDENTE

Ilmos. Senhores

Presidente da República, Senadores, Deputados Federais e Estaduais, Governador,

Prefeito, Vereadores, outras entidades e povo em geral.

Somos mães de família em desespero e, mais do que ninguém, sentimos os preços dos

alimentos, remédios, escolas, roupas, sapatos, condução e aluguel de casa. Estamos

cansadas dessa exploração.

Há muitas crianças por aí mal alimentadas, por isso, fracas, sem poder estudar, por

causa da alta do custo de vida, do salário baixo e da falta de vagas nas escolas.

Sendo o ANO INTERNACIONAL DA MULHER, nós, mulheres de São Paulo, nos

unimos e fizemos uma pesquisa sobre o custo de vida, porque esse é um dos principais

problemas do povo brasileiro.

O resultado de 2.000 pesquisas feitas por nó mostrou que, nos bairros onde moramos,

as famílias têm pouco mais de cinco pessoas em média, sendo que duas trabalham e

ganham juntas Cr$ 1.688,53 por mês. Só com a comida, gás e sabão, a família gasta

Cr$ 992,29. Com o que sobra, temos que pagar roupa, casa, condução, remédios,

materiais de limpeza e de escola. Desse jeito não dá mesmo.

O salário é apertado e o custo de vida sobe sem parar. De agosto de 1974 até agosto de

1975, só a comida subiu 49%. Para conseguir sobreviver, o pai de família é obrigado a

trabalhar quase dia e noite, faz muitas horas extras e quase não vê os filhos. Também a

mãe trabalha. Muitas crianças em idade escolar tem que fazer biscates como: carreto

na feira, engraxar sapatos, vender bugigangas na rua em vês de ir à escola. Isso tudo

está prejudicando nossas famílias.

Por isso resolvemos lembrar as autoridades para controlar o aumento do custo de vida

e aumentar o salário de acordo com as necessidades das famílias dos trabalhadores.

Para aguentar essa situação, nós mulheres precisamos trabalhar, mas não temos

creches para deixarmos nossos filhos. Eles ficam ou trancados em casa, se queimando,

se machucando, comendo sujeiras, ou soltos nas ruas, sem nenhuma proteção, correndo

o risco de serem marginais. E, olha, não é por falta de procurar. Sabemos que em

alguns bairros já tem creche da Prefeitura. Em muito outros, vários grupos de mães já

tentaram, por todos os meios possíveis, conseguir creche, sem nenhum resultado.

Por tudo isso, nós, junto com os nossos maridos e todas as pessoas que participam

conosco dessa preocupação, reivindicamos: controle do custo de vida, melhores

salários, creches e escolas para os nossos filhos.

São Paulo – Ano Internacional da Mulher – Novembro de 1975.

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IMAGENS DE DIVULGAÇÃO

Fonte: Sacolão das Artes. Divulgação.

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TruPé na Rua. Atividade em Escola da região.

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Programação do 1º semestre de 2014.

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Espaço interno.

Foto do pátio externo destinado para as crianças brincarem e para descarregar materiais. Na

ocasião da foto, estavam ocorrendo os conflitos por uso não autorizado por vizinhos.

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Trabalhadores da Cultura, é HORA DE PERDER A PACIÊNCIA:

Exigimos dinheiro público para arte pública!

Arte pública é aquela financiada por dinheiro público, oferecida gratuitamente, acessível a

amplas camadas da população – arte feita para o povo. Arte pública é aquela que oferece

condições para que qualquer trabalhador possa escolhê-la como seu ofício e, escolhendo-a, possa

viver dela – arte feita pelo povo. Por uma arte pública, tanto nós, trabalhadores da cultura, como

toda a população em seu direito ao acesso irrestrito aos bens culturais, exigimos programas – e

não programa único – estabelecidos em leis com orçamentos próprios. Exigimos programas que

estruturem uma política cultural contínua e independente – como é o caso do Prêmio Teatro

Brasileiro, um modelo de lei proposto pela categoria após mais de 10 anos de discussões. Por

uma arte pública exigimos Fundos de Cultura, também estabelecidos em lei, com regras e

orçamentos próprios a serem obedecidos pelos governos e executados por meio de editais

públicos, reelaborados constantemente com a participação da sociedade civil organizada e não

dentro dos gabinetes. Por uma arte pública, exigimos a imediata aprovação da PEC 236, que prevê

a cultura como direito social, e também imediata aprovação da PEC 150, que garante que o

mínimo de 2% ( hoje, 40 bilhões de reais) do orçamento geral da União seja destinado à Cultura,

para que assim tenhamos verbas que possibilitem o início de um tratamento devido à cultura

brasileira.

Por uma arte pública, exigimos a imediata publicação dos editais de incentivo cultural que foram suspensos,

e o descontingenciamento imediato da já pequena verba destinada à Cultura. Por uma arte pública, exigimos

o fim da política de privatizações e sucateamentos dos equipamentos culturais, o fim das leis de incentivo

fiscal, o fim da burocratização dos espaços públicos e das contínuas repressões e proibições que os

trabalhadores da cultura têm diariamente sofrido em sua luta pela sobrevivência. Por uma arte pública

queremos ter representatividade dentro das comissões dos editais, ter representatividade nas decisões e

deliberações sobre a cultura, que estão nas mãos de produtores e dos interesses do mercado. Por uma arte

pública, hoje nos dirigimos a Senhora Presidenta da República, Dilma Rousseff, ao Senhor Ministro da

Fazenda e às Senhoras Ministras do Planejamento e Casa Civil, já que o Ministério da Cultura, devido seu

baixo orçamento encontra-se moribundo e impotente. Exigimos a criação de uma política pública e não

mercantil de cultura, uma política de investimento direto do Estado, que não pode se restringir às ações e

oscilações dos governos de plantão. O Movimento de Trabalhadores da Cultura, chama toda a população a

se unir a nós nesta luta.

Fonte: Sacolão das Artes. Divulgação. Parte externa da FUNARTE em São

Paulo.Ocupação realizada em 25/07/2011.