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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL CAMILA GARCIA KIELING ENTRE A LANÇA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO (1838-1840) Porto Alegre 2010

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO …repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/2108/1/000422990-Texto... · do jornal está inserida no contexto da Revolução

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL

    CAMILA GARCIA KIELING

    ENTRE A LANA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO

    (1838-1840)

    Porto Alegre

    2010

  • CAMILA GARCIA KIELING

    ENTRE A LANA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO

    (1838-1840)

    Dissertao apresentada como requisito para obteno do ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Orientador: Professor Dr. Antonio Hohlfeldt

    Porto Alegre

    2010

  • K47e Kieling, Camila Garcia Entre a lana e a prensa: conhecimento e realidade no

    discurso do jornal O Povo (1838 - 1840) / Camila Garcia Kieling. - 2010.

    249f. ; 27 cm. Dissertao (mestrado) Programa de Ps-Graduao em

    Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, 2010.

    1. Comunicao. 2. Jornalismo impresso. 3. Imprensa Brasil

    histria. 4. O Povo anlise do discurso. 4. Revoluo Farroupilha imprensa histria. I. Ttulo.

    CDU 070(091)(043.3)

    Catalogao na fonte: Paula Pgas de Lima CRB 10/1229

  • CAMILA GARCIA KIELING

    ENTRE A LANA E A PRENSA: CONHECIMENTO E REALIDADE NO DISCURSO DO JORNAL O POVO

    (1838-1840)

    Dissertao apresentada como requisito para obteno do ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    Aprovada em____de__________de________.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Antonio Hohlfeldt PUCRS

    ______________________

    Prof. Dr. Moacyr Flores FURG

    ______________________

    Prof. Dr. Juremir Machado da Silva PUCRS

    ______________________

  • Dedico este trabalho aos meus pais, Delmar e Vera.

  • RESUMO

    Nossa pesquisa apresenta uma anlise das relaes entre conhecimento e realidade atravs do discurso do jornal O Povo, o primeiro peridico oficial da Repblica Rio-Grandense, que circulou de 1838 a 1840, na cidade de Piratini e depois em Caapava, no Rio Grande do Sul. A publicao do jornal est inserida no contexto da Revoluo Farroupilha, uma das revoltas provinciais que marcaram o perodo regencial brasileiro.

    Para tanto, nossos referenciais tericos so a Sociologia Fenomenolgica de Alfred Schutz, em seu interesse nas relaes entre conscincia e realidade, a noo de dispositivo, apresentada por Maurice Mouillaud, e a Anlise do Discurso de Patrick Charaudeau, atravs da sua teoria da enunciao.

    Aplicada ao campo da Comunicao, a Fenomenologia v os fenmenos miditicos como mediadores das subjetividades, reforando ou confrontando os significados construdos na vida cotidiana. Atravs dos meios de comunicao, possvel entrar em contato com as relevncias e tipificaes presentes em determinada sociedade. Nosso objeto de anlise foi o discurso presente no jornal, visto como uma situao de comunicao, ou seja, o encontro de quatro sujeitos da fala submetidos a um contexto de expectativas, onde determinados contratos e estratgias esto em jogo.

    As 160 edies dO Povo, jornal Poltico, literrio e ministerial da Repblica Rio-Grandense, permitem analisar alguns dos significados partilhados pelos revolucionrios republicanos na vida cotidiana, como a questo da legalidade, a influncia do pensamento liberal, a participao dos escravos, a constituio dos smbolos ptrios, a viso do papel feminino na sociedade. Alm disso, a pesquisa revela procedimentos e caractersticas especficos dos jornais brasileiros da primeira metade do sculo XIX, um momento em que houve, nas palavras de Morel (2003), uma verdadeira exploso da palavra pblica.

    Palavras-chave: Comunicao, Histria da imprensa brasileira,

    Revoluo Farroupilha, O Povo, Anlise do Discurso, Sociologia Fenomenolgica.

  • ABSTRACT

    Our research is an analysis of the relations between knowledge and reality, using the discourse of newspaper O Povo, the first official newspaper of the Rio-Grandense Republic, which circulated from 1838 to 1840, first in Piratini and afterwards in Caapava, cities of the state of Rio Grande do Sul. The publication of O Povo was inserted into the context of the War of the Farrapos, one of the provincial rebellions that marked Brazils regency period.

    In order to accomplish this analysis, we used as theoretical references Alfred Schutzs Sociological Phenomenology on account of its interest in the relations between consciousness and reality, the concept of device, as it was presented by Maurice Mouillaud, and the enunciation theory in Patrick Charaudeaus Discourse Analysis.

    Phenomenology, as applied to the field of Communication, understands mediatic phenomena as mediators between subjectivities, reinforcing or confronting the meanings constructed in daily life. It is possible, through the media, to come into contact with the relevancies and typifications present in a particular society. Our subject of analysis was the discourse practiced by O Povo seen as communication situation, that is, the meeting of four discourse subjects inside an expectational context, where certain contracts and strategies are at play.

    160 issues of the political, literary and ministerial newspaper O Povo, allowed us to analyse some of the meanings shared by republican revolutionaries in their daily lives, such as the question of legality, the influence of liberal thought, the participation of slaves, the establishment of patriotic symbols, the opinion on womens role in society. Moreover, this research revealed procedures and characteristics particular to Brazilian newspapers in the first half of the nineteenth century, a time when there was, in the words of Morel (2003), a true explosion of the public voice.

    Keywords: Communication, History of Brazilian press, War of the

    Farrapos, O Povo, Discourse Analysis, Sociological Phenomenology.

  • SUMRIO INTRODUO ............................................................................................................. 09 1 A IMPRENSA OITOCENTISTA EM PERSPECTIVA ............................................... 13

    1.1 O Perodo Regencial: um laboratrio de prticas polticas e sociais .......... 16 1.2 Sculo XIX: jornalismo, poltica e opinio ................................................... 23 1.3 Imprensa na Histria e Histria na Imprensa: modos de ler ....................... 30

    2 AS MLTIPLAS HISTRIAS DA REVOLUO FARROUPILHA .......................... 37

    2.1 A historiografia sul-rio-grandense e a Revoluo de 1835 ......................... 38 2.2 O Cotidiano na Repblica Rio-Grandense .................................................. 49 2.3 A Revoluo Farroupilha: momentos decisivos .......................................... 55

    3 A SOCIOLOGIA FENOMENOLGICA E A ANLISE DO DISCURSO COMO LENTES ....................................................................................................... 71

    3.1 Fenomenologia Schutziana: uma ponte entre o conhecimento e o mundo da vida ............................................................................................. 73

    3.1.1 Traos biogrficos .............................................................................. 73 3.1.2 A sociabilidade na obra de Schutz ..................................................... 75 3.1.3 Husserl, Weber, Bergson: trs influncias ......................................... 77 3.1.4 A atitude natural, o mundo da vida e seus significados ..................... 81 3.1.5 Relevncia e Tipificao: Conceitos-chave ....................................... 86

    3.1.6 A Fenomenologia Social e a Teoria da Comunicao ....................... 91

    3.2 A Anlise do Discurso como tcnica ........................................................... 96 3.2.1 A Anlise do Discurso de Patrick Charaudeau ................................ 100 3.2.2 O discurso nos textos miditicos...................................................... 106

    4. NAS VEREDAS DA OPINIO, O JORNALISMO .................................................. 114

    4.1 O Povo e seu dispositivo ........................................................................... 114 4.2 O Povo e a situao de comunicao ....................................................... 125 4.3 Mundo da vida, relevncias e tipificaes no cotidiano da Repblica Rio-Grandense .................................................................... 135

    4.3.1 Os Brasileiros Americanos ............................................................... 138 4.3.2 A Galegalidade versus a Repblica de Pilha-tinim ..................... 141 4.3.3 O que pode e o que no pode: eis a questo da legalidade ............ 146 4.3.4 Os smbolos da Revoluo .............................................................. 151 4.3.5 Mulheres: o belo sexo entre os farroupilhas .................................... 158 4.3.6 Os escravos do Imprio e os escravos de cor ................................. 163 4.3.7 Os planos para o futuro atravs dos textos de doutrina .................. 170 4.3.8 O Povo e seu status miditico ......................................................... 175

    CONCLUSO ............................................................................................................. 184 REFERNCIAS .......................................................................................................... 191 APNDICE A Tabela do jornal O Povo ................................................................ 195

  • INTRODUO

    Esta pesquisa teve incio com a vontade de estudar os discursos

    jornalsticos e literrios do sculo XIX que tivessem como tema a Revoluo

    Farroupilha, interesse surgido durante as aulas de um ps-graduao em

    Literatura Brasileira. A idia era realizar um estudo interdisciplinar, j que nosso

    campo de origem a Comunicao, com o objetivo de entender as relaes

    entre os modos de produo e os efeitos discursivos nas manifestaes

    jornalsticas e literrias sobre o tema.

    O primeiro passo foi pesquisar o corpus, e ento entramos em

    contato com o jornal O Povo, primeiro peridico oficial da Repblica Rio-

    Grandense. Com as aulas e a convivncia no programa de Ps-Graduao da

    Famecos, e tambm com a necessidade de reduzir o foco do trabalho, a

    pesquisa mudou, principalmente porque uma dificuldade mostrou-se constante:

    justificar o estudo de um objeto que no se insere na perspectiva de

    comunicao de massa. Afirmao controversa, que fez surgir outras

    perguntas: o que se produziu nos peridicos da primeira metade do sculo XIX

    pode ser classificado como jornalismo ou constitua-se apenas de opinio e

    propaganda poltica? Quais parmetros podem ser utilizados para essa

    definio? Ao aprofundar o contato com o jornal O Povo, surgiram ainda outras

    dvidas: qual o papel de um peridico oficial naquele momento histrico?

    Como o discurso oficial foi articulado com as idias e com a realidade cotidiana

    da poca?

    Centrando-nos nesses questionamentos, optamos por deixar de lado

    o cruzamento com a literatura, pois entendemos que a j estava estruturada a

  • 10

    pesquisa. Com a reviso bibliogrfica, descobrimos outros pesquisadores

    interessados em um olhar cultural sobre jornais do sculo XIX, e que circulam

    com naturalidade pela Comunicao e pela Histria, como Ana Paula Goulart,

    Marcello Basile, Marco Morel, Marialva Barbosa e Tnia Regina de Luca. Estes

    primeiros referenciais tericos foram essenciais no delineamento da pesquisa,

    j que nos permitiram entender que nossas desconfianas e perguntas tinham

    fundamento e relevncia cientfica.

    A partir desse momento, foi possvel, em conjunto com nosso

    orientador, definir os referenciais metodolgicos e a teoria, alm montar o

    sumrio que serviu de meta para as leituras e para a produo do texto da

    dissertao.

    Das perguntas iniciais, mais genricas, centramos nossa pesquisa

    nos seguintes problemas:

    Como articular Jornalismo e Histria de forma a perceber os

    peridicos em sua dimenso cultural, e no entend-los apenas

    como uma fonte da verdade ou apenas reflexo de uma infra-

    estrutura scio-econmica?

    De que forma o dispositivo do jornal O Povo revela noes de

    procedimentos jornalsticos caractersticos da primeira metade do

    sculo XIX?

    Em vista do referencial metodolgico de Alfred Schutz, de que

    forma o discurso presente no jornal O Povo desempenha um

    papel de articulador entre conhecimento e realidade?

    Estimulados por esses questionamentos, nossos objetivos so:

    Tensionar alguns conceitos que articulam Jornalismo e Histria,

    buscando entender de que forma esses discursos so

    construdos no intuito de produzir palavras para crer, na

    expresso de Pesavento (2006);

    Elaborar um levantamento acerca da Sociologia Fenomenolgica

    de Alfred Schutz e descrever a tcnica de Anlise do Discurso de

    Patrick Charaudeau;

  • 11

    Promover um levantamento histrico e historiogrfico a respeito

    da Revoluo Farroupilha (1835-1845);

    Conectar o jornal O Povo ao seu dispositivo e a sua situao de

    comunicao, de acordo com as teorias de Maurice Mouillaud e

    Patrick Charaudeau, a fim de analisar as particularidades da

    construo de um peridico da primeira metade do sculo XIX;

    Examinar de que forma conhecimento e realidade, e as

    relevncias e tipificaes esto articuladas nos textos do jornal.

    A fim de atingir esses objetivos, estruturamos nosso trabalho em

    quatro captulos: trs deles tericos, e um ltimo, de anlise. No primeiro

    captulo, dedicamo-nos contextualizao histrica do perodo regencial,

    destacando o preponderante papel dos peridicos nessa etapa da histria

    brasileira. Tambm aprofundamos algumas caractersticas dos jornais da

    primeira metade do sculo XIX e, finalmente, tensionamos a relao entre

    Jornalismo e Histria, em suas semelhanas e diferenas na ligao com o

    tempo e os fatos. So referenciais importantes para este captulo os autores

    interessados no olhar cultural sobre os peridicos do sculo XIX, citados

    anteriormente.

    No captulo 2, apresentamos um panorama da vasta produo

    historiogrfica sobre a Revoluo Farroupilha, apoiando-nos, principalmente,

    nas obras de Ieda Gutfreind e Moacyr Flores. Este ltimo tambm a fonte

    principal de um breve levantamento de caractersticas do cotidiano da

    Repblica Rio-Grandense. Na etapa final, elencamos alguns dos principais

    episdios da Revoluo Farroupilha (1835-1845), trazendo a perspectiva de

    diferentes historiadores, como Alfredo Varela, Dante de Laytano, Sandra

    Pesavento e Moacyr Flores.

    No captulo 3, realizamos a descrio das opes tericas e

    metodolgicas que norteiam nossa pesquisa. A Sociologia Fenomenolgica,

    sedimentada por Alfred Schutz, serve de guia, preocupada com o terreno da

    sociabilidade, da intersubjetividade e da ao da conscincia na interpretao

    do mundo cotidiano. Essa abordagem, aplicada pelo autor portugus Joo

    Carlos Correia (2005) no terreno da comunicao, v os discursos miditicos

    como mediadores das subjetividades e articula noes da teoria do jornalismo,

  • 12

    como os valores-notcia, com o sistema de relevncias e tipificaes de Schutz.

    O discurso presente nas pginas do jornal a ponte para entender a provncia

    de significados dos republicanos rio-grandenses e, para acess-la, optamos

    por utilizar como tcnica a Anlise do Discurso, tal como proposta por Patrick

    Charaudeau.

    No captulo 4, chegamos anlise propriamente dita, onde

    discutimos em profundidade as principais caractersticas do dispositivo do

    jornal O Povo, enquadrando-o em uma situao de comunicao e destacando

    algumas das principais relevncias e tipificaes presentes em suas pginas.

    Destacamos, nesta etapa, a realizao de um levantamento, em forma de

    tabela, de todas as 160 edies do jornal, apresentada no Apndice A.

    Por fim, articulamos o levantamento realizado na anlise dO Povo

    com seus status miditico, procurando desvendar seu sistema de relevncias e

    seu papel como mediador de subjetividades, cumprindo, finalmente, os

    objetivos de nossa pesquisa.

  • 1 A IMPRENSA OITOCENTISTA EM PERSPECTIVA

    Uma Repblica no pode existir sem um povo virtuoso1

    A afirmao que utilizamos como epgrafe fala da relevncia da

    educao para o processo republicano, afirmativa expressa nas pginas do

    jornal O Povo, nosso objeto de estudo. A educao seria parte de um

    processo, onde o povo reconhece suas necessidades e procura entender o

    melhor jeito de remedi-las. Esse ideal demonstra com propriedade a relao

    complexa entre o mundo das idias e a vida cotidiana: preciso conhecer para

    experimentar e experimentar para conhecer.

    Nosso estudo concentra-se na anlise das relaes entre

    conhecimento e realidade atravs do jornal O Povo, publicado de 1838 a 1840.

    Trata-se do primeiro peridico oficial da Repblica Rio-Grandense, o governo

    que dominou parte do territrio da Provncia de So Pedro do Rio Grande do

    Sul, entre 11 de setembro de 1836 e 1 de maro de 1845, durante a

    Revoluo Farroupilha (1835-1845), conflito que surge no contexto de

    diferentes revoltas das provncias perifricas durante o perodo regencial.

    O confronto entre farrapos e legalistas deu-se para alm dos

    campos de batalha, refletindo-se tambm nos jornais. Apesar de incipiente (o

    primeiro jornal da provncia, o Dirio de Porto Alegre, data de 1827), a

    imprensa sul-rio-grandense tambm representou a grande agitao poltica do

    perodo regencial brasileiro: As publicaes peridicas serviam ento s duas

    causas em conflito, pois tanto farroupilhas quanto legalistas organizaram uma 1 O Povo, n. 155, p. 654. Todas as referncias ao jornal tm como base a edio fac-similada publicada pelo Museu e Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul, em 1930.

  • 14

    srie de peridicos atravs dos quais defendiam suas idias e atacavam-se

    mutuamente (ALVES, 2000, p.19).

    O Povo foi o mais longevo peridico oficial da Repblica Rio-

    Grandense. Circulou entre 1838 e 1840, e comeou a ser editado na cidade de

    Piratini, somando 160 edies. Os equipamentos necessrios para a impresso

    foram comprados pelo Ministro da Fazenda Domingos Jos de Almeida, com o

    produto da venda de 17 escravos (HARTMANN, 2002). O primeiro redator dO

    Povo foi Luiz Rossetti, um italiano refugiado no Brasil, partidrio do movimento

    Jovem Itlia2, que pretendia a unificao de seu pas. De acordo com

    Riopardense de Macedo (1994), autor do precioso levantamento Imprensa farroupilha, o italiano ajudou a produzir uma propaganda republicana de bom nvel que j ensaiava crticas aos processos prprios da burguesia (p. 7).

    luta poltica, econmica e militar, somou-se a peleja simblica,

    provocadora de grandes gestos e paixes, os quais repercutiram de diversas

    formas na vida cotidiana da sociedade sulina, incluindo a imprensa. Se

    Napoleo Bonaparte dizia que trs pasquins raivosos so mais perigosos que

    mil baionetas (BONES, 1996, p. 122), parece que os farroupilhas entenderam

    bem o recado, tratando de produzir suas prprias verses dos fatos.

    Acessvel de forma completa atravs da edio em fac-smile

    produzida em 1930, pelo ento Museu e Arquivo Histrico do Rio Grande do

    Sul (hoje Museu Julio de Castilhos), O Povo vem sendo utilizado como uma

    rica fonte para o estudo histrico da Revoluo Farroupilha, pois, como jornal

    poltico, literrio e ministerial da Repblica Rio-Grandense, registrou em suas

    pginas uma grande quantidade de informaes, como decretos, ofcios e

    manifestos da poca.

    O que nos interessa nessa dissertao, porm, a dimenso

    simblica do discurso produzido no jornal, visto com olhos do pesquisador no

    tempo presente, lacuna j assinalada por Riopardense de Macedo, no seu

    Imprensa farroupilha, ao comentar as apagadas cores das comemoraes do sesquicentenrio da Revoluo, em 1985:

    2 O movimento Jovem Itlia foi fundado por Giuseppe Mazzini, em 1831, em Marselha. Dissidente da Carboneria, sua inteno era promover a insurreio popular republicana, com a participao do povo, que os liberais evitavam (BONES, 1996, p. 82). Em 1832, passa a publicar um jornal homnimo ao movimento, onde afirma: As revolues tm que ser feitas pelo povo e para o povo. No podem ser mera substituio de uma aristocracia por outra (BONES, 1996, p.82-83).

  • 15

    Faltou, no entanto, um novo trabalho de interpretao de fontes primrias, um mergulho na grande Revoluo com as preocupaes do presente, uma monografia que recuperasse a informao, especialmente aquelas experincias para os dias de hoje; enfim, faltou um trabalho de recriao de documentos para a realidade presente (MACEDO, 1994, p. 15).

    O historiador Nelson Werneck Sodr, autor do clssico Histria da imprensa no Brasil (1999), tambm aponta a importncia do uso dos jornais como fonte de pesquisa no estudo da Revoluo:

    Sem a leitura de O Povo, que circulou de 1838 a 1840, de O

    Mensageiro, que circulou de 1842 a 1843, da Estrela do Sul, que circulou em 1843 e uns poucos mais, a histria farroupilha incompleta. Nessas folhas, impressas quase sempre sob condies extremamente difceis, o movimento ficou espelhado, em todos os seus traos, os gerais e os particulares (SODR, 1999, p. 131).

    Longe de querer suprir a ausncia apontada por Riopardense de

    Macedo, nossa inteno contribuir para a discusso, utilizando instrumentos

    do campo da Comunicao. Desta forma, acreditamos cooperar para um

    movimento de renovao do olhar sobre os peridicos produzidos na primeira

    metade do sculo XIX. Ao iniciar essa jornada, torna-se necessrio entender

    mais a fundo o perodo regencial no Brasil, que se destaca pela riqueza de

    confrontos e de alianas entre grupos de interesses diversos, o que foi vivido

    de forma intensa pela imprensa da poca. Utilizamos, para este fim, o trabalho

    de historiadores que se preocuparam em valorizar os jornais como fonte de

    pesquisa, em adequao ao propsito do nosso estudo.

  • 16

    1.1 O PERODO REGENCIAL:

    UM LABORATRIO DE PRTICAS POLTICAS E SOCIAIS

    As regncias no Brasil tm comeo com a abdicao de D. Pedro I,

    em 7 de abril de 1831. A renncia do monarca, que havia proclamado a

    independncia do pas nove anos antes, em 7 de setembro de 1822, foi o ponto

    alto de uma srie de fatores, entre eles a inflao e o aumento no custo de vida

    que colocaram elites, classe mdia e o povo em geral do mesmo lado. A

    incipiente imprensa brasileira, que havia desembarcado no pas em 1808, junto

    com a Famlia Real portuguesa, teve um papel decisivo na derrocada do

    Imperador. De acordo com Silva (1992), os jornais, em sua maioria de

    oposio, atacavam violentamente D. Pedro I e o assassinato do jornalista

    opositor Lbero Badar3 funcionou como plvora para agitaes, passeatas,

    discursos, quebra-quebras e ataques generalizados aos portugueses.

    No campo poltico, a monarquia, recm-instalada aps a

    independncia, encarava enfrentamentos externos e internos. A Guerra

    Cisplatina colocava Brasil e Argentina em confronto pelo territrio que hoje

    corresponde ao Uruguai. Em 1826, a Assemblia Geral Legislativa do Imprio

    do Brasil, que correspondia Cmara dos Deputados, e o Senado comeavam

    suas atividades, abrindo um canal para a manifestao dos diversos interesses

    polticos em jogo, o que se refletiu tambm na imprensa (MOREL, 2003).

    Em termos econmicos, a situao tambm no era fcil. A inflao

    onerava cada vez mais a populao e, alm disso, uma das principais fontes

    de renda do governo monrquico, a cobrana de impostos sobre produtos

    importados, enfrentava o descontentamento dos fornecedores no

    contemplados com a taxa diferencial oferecida Inglaterra. O Tratado de

    Aliana e Amizade com este pas foi renovado em 1827, o que garantia uma

    taxa de 15% sobre os produtos ingleses, em detrimento dos 24% cobrados

    sobre os derivados de outros pases (MOREL, 2003). Com a presso externa,

    o que preponderou foi o nivelamento por baixo, causando uma forte queda de

    arrecadao. As tentativas de aumentar os impostos sobre os produtos

    3 Giovanni Battista Lbero Badar escrevia no jornal O Observador Constitucional, surgido em 1829.

  • 17

    internos eram barradas na Cmara dos Deputados, o que causou ainda mais

    desgaste poltico entre o governo monrquico e as lideranas das provncias.

    Nesse cenrio, os produtores de caf do Rio de Janeiro e do Vale do Paraba

    representavam 44% do total das exportaes, nmero que explicita a sua

    relevncia poltica (SILVA, 1992).

    A grave crise econmica e financeira fez com que o Brasil buscasse

    ainda maiores emprstimos com a Inglaterra (que comearam em 1824), o que

    agravou a dvida externa. Entre a populao em geral, acirravam-se os nimos

    entre brasileiros e portugueses, revelando-se um acentuado anti-lusitanismo.

    As relaes com a Europa pareciam mesmo estremecidas. Morel (2003, p. 14-

    15) destaca a relevncia dada pelos jornais da poca a um caso de troca de

    agresses entre um fazendeiro brasileiro e marinheiros franceses em setembro

    de 1830. O incidente, divulgado com detalhes de cunho xenfobo (brasileiro

    de merda e mulato tem que baixar a cabea para os franceses, entre outros

    insultos, fizeram parte do entrevero), beirou o incidente diplomtico. O anti-

    lusitanismo passa a fazer parte de um sentimento de repulsa generalizada

    contra o Velho Mundo, num processo de afirmao da identidade brasileira

    como Americana.

    Em meio a essa polmica, continua Morel (2003), aportam no Brasil

    navios franceses tremulando a bandeira azul, branca e vermelha da Revoluo

    Francesa e no mais o pano branco com a flor-de-lis, smbolo da monarquia

    restaurada. So reflexos dos levantes ocorridos em Paris, em julho de 1830,

    conhecidos como as Trs Jornadas de Julho, que depuseram o rei Carlos X e

    coroaram o Duque Lus Felipe de Orlans, conhecido como rei cidado. O

    fato provocou uma rpida (e conveniente) mudana de referncia em relao

    Frana:

    A Frana passou a ser designada pela mesma oposio liberal

    como a Ptria das Luzes, da civilizao, e exemplo de liberdade para o mundo. A assimilao Carlos X Pedro I foi imediata. Nas cidades brasileiras ocorreram festejos pela queda do monarca... francs, com aluses pouco sutis ao imperador do Brasil. A oposio subia de tom (MOREL, 2003, p. 16).

  • 18

    Atravs da anlise da imprensa da poca, Morel (2003) mostra

    esses episdios e pondera as interpretaes historiogrficas tradicionais, que

    afirmam ser o liberalismo na Frana mais avanado que o do Brasil, e que teria

    influenciado o fim do Primeiro Reinado. O autor destaca que, pela palavra da

    imprensa, as propostas liberais entre os brasileiros mostravam-se mais

    ousadas, mesmo em relao soberania do monarca e ao direito de

    resistncia dos povos: os influenciados acabaram escolhendo, por seus

    prprios critrios e interesses, que tipo de influncia valorizar (p. 17).

    Cada vez mais isolado politicamente em um crculo conservador, D.

    Pedro I passa a enfrentar a insurreio civil e militar. Entre os dias 11 e 14 de

    maro de 1831, ocorrem no Rio de Janeiro violentos confrontos entre

    portugueses e brasileiros, episdio conhecido como Noite das Garrafadas.

    Aconselhado por Benjamin Constant, o monarca busca a sada da abdicao

    em nome do prncipe herdeiro, colocando em seu lugar uma Regncia, no dia 7

    de abril de 1831.

    De abril a junho desse ano, o comando da Nao esteve a cargo da

    Regncia Trina Provisria, composta pelos senadores Nicolau de Campos

    Vergueiro e Jos Joaquim Carneiro de Campos, e pelo brigadeiro Francisco de

    Lima e Silva (SILVA, 1992). Entre as suas primeiras resolues, ocorrem

    alguns avanos liberais, como a suspenso temporria do Poder Moderador, e

    o ato que proibia os regentes de dissolver a Cmara dos Deputados. A

    abdicao movimenta a engrenagem das foras polticas, fazendo andar o

    carro da revoluo, na expresso de Bernardo Pereira de Vasconcelos

    (MOREL, 2003). Os interesses se dividiam sobre como dar continuidade ao

    processo poltico no Brasil: Havia basicamente trs respostas [para a

    revoluo]: negar (absolutistas ou ultramonarquistas), completar e encerrar

    (vertente conservadora do liberalismo) e continuar (vertente revolucionria do

    liberalismo (p. 21). Para este autor, tratar o perodo regencial apenas como

    uma troca do poder entre as mos da elite uma viso empobrecedora. O

    poder centralizador estava enfraquecido, e o que aconteceu foi uma exploso

    da palavra pblica como nunca ocorrera no territrio (que se pretendia)

    brasileiro (p. 24). O poder de deciso passaria a ser visto como o resultado da

    negociao entre foras polticas e no apenas pela vontade de um soberano.

    Frente aos sinais de fraqueza da monarquia, emergem os partidos

  • 19

    polticos no perodo regencial. importante destacar que, nesta poca, a

    noo de partido poltico diferente daquela consolidada durante o sculo XX,

    no tipo ideal de partido-mquina. Num momento de integrao nacional, de

    consolidao do Brasil como ptria independente, a formao partidria

    remetia a uma separao, a uma diviso no seio de foras que deveriam lutar

    conjuntamente por uma identidade brasileira. Morel (2003) explica o significado

    de um partido poltico naquele perodo:

    Um partido poltico, na primeira metade do sculo XIX, era mais

    do que tomar um partido e constitua-se em formas de agrupamento em torno de um lder, atravs de palavras de ordem e da imprensa, em determinados espaos associativos ou de sociabilidade e a partir de interesses ou motivaes especficas, alm de se delimitarem por lealdades ou afinidades (intelectuais, econmicas, culturais, etc.) entre seus participantes (p.32).

    Estabelecida essa noo, a historiografia assinala, grosso modo, a

    existncia de trs partidos que disputavam entre si o poder: Partido

    Restaurador (ou Caramuru), que defendia a volta de D. Pedro I e a instalao

    do absolutismo; Partido Liberal Moderado (Chimango), representante da

    aristocracia rural, que defendia a monarquia escravista, ou seja, o liberalismo

    moderado das elites; e o Partido Liberal Exaltado (Jurujubas ou Farroupilhas),

    que propunha de forma mais veemente a liberdade das provncias (SILVA,

    1992).

    O historiador Marcello Basile (2006), ao analisar a imprensa

    publicada na Corte durante o perodo regencial, busca matizar a questo do

    separatismo na viso desses trs grandes grupos polticos, entendendo que,

    pelos jornais, as intenes manifestadas eram muito mais dirigidas ao intuito de

    reforar os laos nacionais do que promover a separao entre as provncias.

    Assim, traou um panorama do posicionamento pblico de moderados,

    exaltados e caramurus.

    Entre os moderados, atravs da leitura de jornais como Aurora

    Fluminense, O Independente e O Homem e a Amrica, Basile (2006) entende

    que se situavam entre o absolutismo e a democracia, defendendo algum tipo

    de limitao ao poder dos governantes atravs da participao do povo. E a

  • 20

    noo de povo, que divergia da plebe, era entendida atravs do princpio da

    maioria dos capazes de Guizot, ou seja: os indivduos deveriam ter condies

    jurdicas e oportunidades iguais, mas, no campo poltico, a representao

    deveria ficar a cargo dos homens interessantes por suas luzes e talentos, ou

    por suas riquezas4 (p. 63). Ao mesmo tempo, deixavam claro que essa

    distino nada tinha a ver com a cor da pele, e os direitos de cidadania

    poderiam ser estendidos a homens negros e mulatos livres. Apesar de terem

    apoiado a Revoluo de 7 de Abril ao lado dos exaltados, rechaavam o

    regime republicano, entendendo-o como anrquico e fragmentrio da nao.

    J os exaltados, atravs da Nova Luz Brasileira, O Filho da Terra, O

    Repblico e Sentinela da Liberdade, entre outros, defendiam o liberalismo

    radical. A igualdade social seria um dos pilares da construo da nao, donde

    manifestavam uma forte postura anti-aristocrtica. Tambm utilizavam a diviso

    povo e plebe, mas, neste caso, a plebe era constituda pelos aristocratas e os

    ricos ociosos. O povo seria constitudo por todas as pessoas livres,

    independente de cor, renda, instruo ou sexo, abarcando, aqui a concepo

    de cidado. Ao defender a incluso das mulheres entre os participantes da vida

    pblica, foram alm das propostas polticas da poca, incluindo a Revoluo

    Francesa, como assinalou Morel (2003). Defendiam tambm a imediata

    incluso dos negros e mulatos livres e libertos nao, mas nem por isso

    defendiam a imediata abolio da escravatura. Apesar do veio inclusivo, uma

    das principais caractersticas do discurso expresso nos peridicos exaltados

    era um agressivo anti-lusitanismo.

    Em sua maioria republicanos e federativos, os exaltados viam na

    revoluo o meio justo e legal de garantir a liberdade da nao (embasados

    teoricamente pelo direito de resistncia dos povos tirania e opresso,

    preconizado por Locke e Rousseau), mas sem cunho separatista. Pelo

    contrrio, a revoluo era antes vista como uma forma de regenerar a nao e

    mant-la integrada (BASILE, 2006, p. 78 grifo do autor), atravs da noo de

    soberania.

    Os caramurus posicionavam-se entre o liberalismo clssico e o 4 O Independente, n. 64, 14 mar. 1832. Apud BASILE, Marcello. Projetos de Brasil e contruo nacional na imprensa fluminense (1831-1835). In: NEVES, Lcia Maria Bastos, MOREL, Marco e FERREIRA, Tania Maria Bessone (Orgs.). Histria e Imprensa Representaes culturais e prticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj, 2006.

  • 21

    absolutismo, atravs das pginas de jornais como A Trombeta, Caramuru e O

    Carij. A viso de cidadania era bem similar dos moderados, distinguindo

    povo e plebe. Apesar da posio conservadora, posicionavam-se contra a

    discriminao dos negros e pardos, mas ignoraram solenemente, em seus

    peridicos, a questo da abolio. Quanto s mulheres, os caramurus

    preferiam sua atuao no apoio aos cidados, e no uma participao efetiva

    na vida poltica. Para eles, o governo ideal e as bases da unidade da nao

    estavam representados, respectivamente, no primeiro reinado de D. Pedro I e

    na Constituio de 1824. O Carij afirmava que o 7 de abril foi um dia de luto

    e trouxe ao Brasil a sua maior catstrofe5 (BASILE, 2006, p. 85).

    O embate de idias travado atravs dos peridicos no deixa

    dvidas de que o debate poltico na nova cena pblica passou a extrapolar o

    mbito das elites. As temticas tambm revelam diversidade: discutia-se a

    abolio da escravatura e a redistribuio de terras. A esfera pblica cultural e

    literria se amplia com o aumento do pblico leitor e da circulao de

    impressos.

    De 1831 a 1835, durante a Regncia Trina Permanente, o poder

    ficou com os liberais moderados que, se por um lado esmagaram as agitaes

    civis e militares que pipocavam pelo pas, atravs do mando do autoritrio

    padre Diogo Feij, ministro da Justia e criador da Guarda Nacional, por outro

    promoveram algumas reformas liberais atravs do Ato Adicional de 1834. O Ato

    foi, na verdade, um acordo entre os trs partidos e acabou por conceder maior

    autonomia s provncias, mas no avanou no sentido de reforma tributria,

    ponto central das divergncias, uma vez que a gesto dos recursos continuou

    centralizada nas mos do governo imperial. Os Caramurus sofreram forte abalo

    com a morte de D. Pedro I neste mesmo ano, enfraquecendo o partido.

    A aproximao no durou muito e, j na primeira eleio para

    regente uno, em 1835, os liberais moderados racham com a indicao do

    radical Feij ao cargo. Feij vence as eleies com uma margem pequena de

    votos, ao mesmo tempo que importantes revolues, como a Farroupilha (Rio

    Grande do Sul 1835-45), a Cabanagem (Gro-Par, 1835-39), a Sabinada

    5 O Carij, n. 6, 21 mar. 1832. Apud BASILE, Marcello. Projetos de Brasil e contruo nacional na imprensa fluminense (1831-1835). In: NEVES, Lcia Maria Bastos, MOREL, Marco e FERREIRA, Tania Maria Bessone (Orgs.). Histria e Imprensa Representaes culturais e prticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj, 2006.

  • 22

    (Bahia, 1837-38) e a Balaiada (Maranho, 1838-41) estouram no pas. O

    descontentamento generalizado, e as sedies fundavam-se nas mais

    diversas bases sociais, desde abastados estancieiros at escravos.

    Com o racha dos moderados, os polticos se reagruparam no Partido

    Progressista (criado por Feij, numa tentativa de golpe) e Partido Regressista

    (cujo nome dispensa maiores explicaes) que, com a inevitvel renncia do

    ex-Ministro da Justia, chega ao poder atravs do regente Pedro de Arajo

    Lima, em 1838, que, conseqentemente, revisa as reformas liberais de 1834

    (SILVA, 1992).

    No final das contas, regressistas e progressistas queriam a volta do

    Poder Moderador, o que significava o restabelecimento da ordem. Em 1840,

    um novo acordo (o Golpe da Maioridade) levou ao jovem D. Pedro II um pedido

    para que assumisse o trono, o qual foi prontamente atendido. O mesmo ano

    marca o fim do jornal O Povo e o incio, no Brasil, do Segundo Reinado.

    A Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, apesar de

    perifrica (tanto poltica quanto geograficamente) em relao Corte,

    experimenta de forma intensa esse grande laboratrio de formulaes e de

    prticas polticas e sociais que constitui o perodo regencial brasileiro, nas

    palavras de Morel (2003, p. 9). Durante nove anos (de 1836 a 1845), instituiu-

    se em parte do seu territrio o governo da Repblica Rio-Grandense, que teve

    que se sustentar de forma financeira, poltica, militar, moral e simblica.

    Conforme o levantamento de Flores (2004), so muitas as

    justificativas fornecidas pela historiografia para o gesto extremado de separar-

    se do Imprio, como veremos mais adiante, no captulo 2. O fato que, no dia

    11 de setembro de 1836, o general Antonio de Souza Neto proclamou:

    Camaradas! Ns que compomos a 1 Brigada do exrcito

    liberal, devemos ser os primeiros a proclamar, como proclamamos, a independncia desta provncia, a qual fica desligada das demais do Imprio e forma um Estado livre e independente, com o ttulo de Repblica Rio-Grandense e cujo manifesto s naes civilizadas se far oportunamente. Camaradas! Gritemos pela primeira vez: Viva a Repblica Rio-Grandense! Viva a Independncia! Viva o exrcito republicano rio-grandense! (FLORES, 2004, p. 63)

  • 23

    Em uma provncia afastada das decises do poder central e palco de

    conflitos de fronteira permanentes (a formao militar de Bento Gonalves, um

    dos maiores lderes da Revoluo Farroupilha, deu-se dentro da Guarda

    Nacional, criada pelo Ministro da Justia e regente Diogo Feij), Flores (2002)

    explica que a idia de formar uma nova Nao tinha razes de existir, pois s

    a obedincia ligava os Rio-Grandenses ao poder central. Da mesma maneira

    que o Brasil se separou de Portugal em 1822, os Rio-Grandenses queriam se

    separar do Brasil, em 1836 (p. 10). Houve ento uma ruptura, que teve de ser

    mantida atravs do uso de diversas armas, entre elas a prensa tipogrfica.

    Assim, acreditamos que O Povo, como primeira experincia de comunicao

    impressa do governo da Repblica Rio-Grandense, tem muito a nos dizer, tanto

    no plano discursivo, como em relao aos fazeres e saberes do jornalismo da

    poca. Para tanto, torna-se necessrio mergulhar mais a fundo na imprensa

    oitocentista, em como se deu o nascimento da imprensa no Brasil e sua

    articulao com os eventos polticos da poca.

    1.2 SCULO XIX: JORNALISMO, POLTICA E OPINIO

    Ao mesmo tempo fascinado por ela e seu crtico mordaz, o escritor

    Honor de Balzac deixou em seus escritos um relato passional, mas

    contundente, sobre a imprensa francesa moderna. L, o jornalismo

    desabrochou de forma progressiva durante a Restaurao da monarquia

    (1814-1830), aps a queda de Napoleo Bonaparte, e culminou com as

    revolues de 1830, que aconteceram na Europa como um todo e, como

    vimos, provocaram reflexos na opinio pblica e nos caminhos polticos do

    Brasil. Em 1836, mile de Girardin lana o jornal La Presse e inova a forma de

    viabilizar financeiramente o jornalismo, ao diminuir pela metade o valor da

    assinatura para aumentar a circulao do jornal e, conseqentemente, ganhar

    mais dinheiro com publicidade e anncios. De acordo com a nota da edio

    francesa de Os jornalistas, esses fatores levam a imprensa a um salto no s quantitativo, mas tambm permitiram-lhe

  • 24

    [...] exercer uma influncia que ela jamais havia conhecido anteriormente. Os jornalistas, verdadeiros reizinhos adulados, fazem tremer os governos, fazem e desfazem as reputaes, suscitam invejas e rancores. E, mais freqentemente do que se imagina, transformam sua influncia em vantagens materiais da forma mais abjeta (2004, p. 18 grifo no original).

    Parece que, mesmo na longnqua Repblica Rio-Grandense, a

    pecha de vendido ou interesseiro, em relao aos jornais e jornalistas, est

    mesmo imbricada com a gnese da profisso. O prprio prospecto de

    apresentao dO Povo traz o seguinte questionamento:

    E agora perguntamo-nos: todos esses jornais sem vida, e sem

    alvo, a no ser aquele vergonhoso do lucro, verdadeiras torres de Babel, onde se v a soberba, e a confuso; e que saem corajosamente, para todo o Imprio, a cada dia, no sei se, mais para experimentar a constncia, do que para cansar a excessiva vontade dos assinantes, cumpriro eles a santidade de seus deveres? (O Povo, n. 1, p. 2)

    Assim, ao analisar o comportamento dos jornalistas da primeira

    metade do sculo XIX, Balzac (2004) cataloga-os como um botnico,

    separando os tipos em gneros, sub-gneros e variedades. Usa o termo

    publicistas para caracterizar o primeiro gnero de homens que compem as

    redaes, definindo-os da seguinte forma:

    Publicista, este nome outrora atribudo aos grandes escritores

    como Grotius, Puffendorf, Bodin, Montesquieu, Blackstone, Bentham, Mably, Savary, Smith, Rousseau, tornou-se o de todos os escrivinhadores que fazem poltica. De generalizador sublime, de profeta, de pastor de idias que era outrora, o Publicista agora um homem ocupado com os compassos flutuantes da Atualidade. Se alguma espinha aparece na superfcie do corpo poltico, o Publicista a coa, a desdobra, a faz sangrar e tira dela um livro que, quase sempre, uma mistificao. O publicismo era um grande espelho concntrico: os publicistas de hoje o quebraram e tm todos um pedao que eles fazem brilhar aos olhos da multido (2004, p. 31).

    O grande espelho concntrico que foi quebrado pelos novos

    publicistas pode ser entendido como uma metfora das transformaes que

  • 25

    aconteciam na sociedade francesa da poca e tambm pode ser comparada,

    mutatis mutandis, com as agitaes do perodo regencial brasileiro. Se, antes,

    apenas os grandes generalizadores sublimes tinham a palavra, a imprensa

    torna pblica a expresso de diferentes vises polticas, os compassos

    flutuantes da Atualidade, o que no ocorre sem conflitos.

    Jos Marques de Melo (2006), ao comentar a questo da

    objetividade jornalstica, explica que ela se faz presente desde o momento em

    que o jornalismo adquiriu autonomia social, processo que se deu com as

    revolues burguesas na Europa e com a Independncia Americana. A idia de

    que todos os homens pudessem ter acesso s informaes e tambm

    tornarem-se seus divulgadores foi um importante passo para as noes de

    liberdade individual e de democracia. A famosa primeira emenda Constituio

    Americana, de 1791, afirma: O congresso [...] no limitar a liberdade de

    palavra nem de imprensa. O artigo 11 da Declarao dos Direitos do Homem e

    do Cidado, aprovada em 1789 pela Assemblia Nacional Constituinte da

    Frana, tambm declara: A livre comunicao de idias e opinies um dos

    direitos mais preciosos do homem. Todos os cidados podem, dessa forma,

    falar, escrever e imprimir com liberdade.

    A comunicao social massiva est relacionada, ento, com o

    processo de urbanizao acelerado durante o sculo XIX (HOHLFELDT, 2002).

    Nesse primeiro momento, a prtica do jornalismo na Europa assume duas

    caractersticas distintas: na Frana, predominou a face opinativa e, na

    Inglaterra, firmou-se um jornalismo objetivo (MARQUES DE MELO, 2006). Na

    matriz inglesa, fincou-se a noo de que os fatos so sagrados e que os jornais

    e jornalistas tm o dever de primar pela fidedignidade, exatido e preciso na

    narrativa dos mesmos. A opinio pode existir, desde que em um espao

    demarcado no jornal (MARQUES DE MELO, 2006).

    Com o passar do tempo, ambas as vertentes, francesa a inglesa,

    sofreram mutaes. O jornalismo pasquineiro, repleto de adjetivos e com

    linguagem virulenta foi a grande influncia dos primeiros jornais brasileiros.

    Mas a matriz objetiva acabou se sobrepondo e deu origem grande imprensa

    diria que conhecemos hoje, onde informao e opinio tm seus espaos

    delimitados; porm, cada vez mais cresce o posicionamento que considera

    essa objetividade um mito.

  • 26

    Podemos afirmar, ento, que um dos principais impulsos iniciais da

    atividade jornalstica foram as disputas polticas, o que, na Provncia de So

    Pedro, no foi diferente. O processo de independncia e a consolidao do

    Estado Nacional brasileiro foi combustvel para a solidificao e a diversificao

    das publicaes no Brasil. Os grupos polticos passam a perceber e a utilizar a

    relao entre os peridicos e a opinio pblica, fomentando a atividade. Na

    Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, o primeiro jornal, O Dirio de

    Porto Alegre, surge em 1827, patrocinado pelo presidente da Provncia,

    Salvador Jos Maciel e, de acordo com Francisco Rdiger (1998), a folha

    constitua no mximo um boletim oficial, que servia basicamente publicidade

    governamental e publicao dos atos da administrao. Para este autor, que

    entendemos compartilhar do olhar de Nelson Werneck Sodr, a doutrina e a

    opinio foram preponderantes na imprensa desde seu nascimento at a

    dcada de 30 do sculo XX, o que retardou, at essa data, a formao de um

    estatuto prprio para os jornalistas e jornais. Eles s conquistaram uma

    autonomia do processo poltico ao integrarem-se ao processo capitalista, ou

    seja, quando as redaes tornaram-se verdadeiras empresas, com carter

    lucrativo.

    Assim, para fundamentar seu estudo sobre a histria do jornalismo

    sul-rio-grandense, Rdiger (1998) tensiona, apoiando-se em Habermas, as

    concepes marxista e weberiana sobre a imprensa. A primeira a considera um

    produto direto do capitalismo; a segunda, um instrumento no processo de

    construo do Estado moderno. Habermas, aparentemente, combinou as duas

    concepes no clssico Mudana estrutural da esfera pblica (1962) (p. 14),

    ao afirmar que tanto a revoluo comercial quanto a ascenso da sociedade

    burguesa foram influncias decisivas para a publicao sistemtica de

    informaes.

    De forma que o Estado, com o intuito de se comunicar com a classe

    ascendente, foi o patrocinador dos primeiros jornais, gerando um processo de

    politizao da burguesia que fomentou o desenvolvimento de [...] uma

    imprensa crtica e independente que, no contexto mais geral de formao do

    capitalismo industrial, acabaria sendo pea essencial no ciclo das revolues

    burguesas (RDIGER, 1998, p. 14). No Brasil, o nascimento da imprensa

    ocorre sob esse mesmo modelo, ou seja, atravs da promoo do Estado, em

  • 27

    1808, com a chegada de D. Joo VI ao pas, que passa a publicar, em

    setembro desse mesmo ano, a Gazeta do Rio de Janeiro. Mas o ttulo de

    primeiro jornal do Brasil do Correio Brasiliense, editado por Hiplito Jos da

    Costa, em Londres, e lanado em 1 de junho de 1808. Este objeto de

    diferentes interpretaes entre os estudiosos da imprensa brasileira.

    importante salientar que, nesse momento, e at 1821, quando Dom Pedro I

    decreta o fim da censura prvia, o uso da tipografia era uma prerrogativa oficial

    do Estado, o que justifica a sede inglesa do Correio. A ttulo de ilustrao,

    destacamos aqui as vises de Sodr (1999) e Juarez Bahia (1990) sobre

    nossos peridicos de estria. Para o primeiro autor, o Correio Brasiliense

    representava o ponto de vista da burguesia inglesa (SODR, 1999):

    Representavam [refere-se ao Correio e Gazeta], sem a

    menor dvida, tipos diversos de periodismo: a Gazeta era embrio de jornal, com periodicidade curta, inteno informativa mais do que doutrinria, formato peculiar aos rgos impressos do tempo, poucas folhas, preo baixo; o Correio era brochura de mais de cem pginas, geralmente, 140, de capa azul escuro, mensal, doutrinrio muito mais do que informativo, preo muito mais alto.

    [...] Trata-se [referindo-se especificamente ao Correio], assim, de

    uma finalidade moralizadora e no modificadora, tica e no revolucionria (p. 22-23).

    Bahia (1990) revela uma viso divergente de Sodr:

    [...] durante quase quinze anos, Hiplito da Costa edita o

    Correio Brasiliense ou Armazm Literrio, em Londres, onde vive como exilado. Seu jornal moderno, dinmico, crtico. Mensrio, impe-se pela opinio e pela informao poltica. Costa tornou-se patrono da imprensa brasileira (p. 9).

    [...] [...] a Gazeta vai publicando interminveis relatos dos sucessos

    nas frentes portuguesa e espanhola, relacionando cansativos feitos dos valeroros soldados de Sua Majestade, pouco se dando vida local, enquanto o Correio Brasiliense exprime uma aguda viso crtica dos fatos polticos, econmicos e sociais que envolvem o Brasil (p. 14).

    Essas amostras so indcio das diferentes interpretaes s quais a

    imprensa oitocentista no Brasil d a ler, o que provoca uma pergunta essencial

  • 28

    para nossa dissertao: afinal, em que medida a relao dessas publicaes

    com os movimentos polticos poda a sua representatividade da realidade

    cotidiana6? Em outras palavras: ser que o discurso oficial, ou poltico, ou

    opinativo, ou publicista desses jornais, impediu que fossem representantes do

    cotidiano da sociedade em que estavam inseridos? No nosso entendimento,

    no.

    Na Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, Rdiger (1998, p.

    18-19) informa que, no curto espao de oito anos, entre o aparecimento do

    Dirio de Porto Alegre, em 1827, e o incio da Revoluo Farroupilha, em 1835,

    foram lanados 32 jornais. De forma generalizada, esses peridicos

    caracterizavam-se por um tamanho pequeno (28 X 18 cm), tiragem em torno de

    400 exemplares, circulao de duas a trs vezes por semana, e venda feita

    atravs de assinaturas ou direto na tipografia. O contedo dos jornais era

    eminentemente poltico-partidrio e de linguagem [...] extremamente virulenta,

    no poupando idias, nem pessoas (p. 18).

    O autor informa que os homens de imprensa da poca no so

    propriamente os polticos, mas os donos de tipografia, que reuniam mltiplas

    funes (muitas vezes, todas as funes) na feitura dos jornais. Francisco das

    Neves Alves (2000) traz outros detalhes da figura que comandava a produo

    dos impressos:

    Os escritores pblicos responsabilizavam-se por praticamente

    todas as tarefas ligadas elaborao dos peridicos, j que redigiam a notcia, selecionavam a transcrio, revisavam as provas, gerenciavam a tesouraria e a distribuio da folha e, em alguns casos, faziam mesmo, s vezes de tipgrafo, no intento de manter acesa a flama jornalstica que acompanhava as disputas polticas (ALVES, 2000, p. 19-20).

    Os jornalistas (ou escritores pblicos, ou publicistas) movimentavam-

    se de acordo com oportunidades de negcio, sem ter ligao poltica definitiva:

    De fato, esses homens, como seu prprio tempo, no tinham

    um conceito preciso de jornalismo, restringiam sua atividade direo dos

    6 No sentido da Sociologia Fenomenolgica de Alfred Schutz, que aprofundaremos no captulo 3.

  • 29

    peridicos, confundiam as prticas editoriais com prestao de servios grficos e assim reduziam o periodismo transmisso de contedos com os quais propriamente no tinham preocupao (RDIGER, 1998, p. 22).

    Baseando-nos nas caractersticas apontadas pelos autores,

    podemos afirmar que parte da historiografia no concede imprensa

    oitocentista o estatuto de jornalismo, assentando-o na noo de literatura

    pblica; e nem o ttulo de jornalista aos que a elaboraram, prevalecendo as noes de publicista ou escritor pblico.

    Essa abordagem apontou aspectos importantes da imprensa

    oitocientista, ao relacionar sua estreita vinculao com os modos de produo

    econmica e fazeres polticos da poca. Sem negar a precariedade tcnica e

    nem o contedo eminentemente poltico desses jornais, parece-nos que a

    leitura da imprensa oitocentista, de forma menos generalizada, pode levar a um

    novo tensionamento da abordagem do tema. Nesse sentido, o pesquisador

    admite que os jornais eram, sim, tribunas ampliadas, na expresso de

    Benjamin Constant (BAHIA, 1990, p. 36), mas conectados com a realidade

    social cotidiana na qual eram produzidos.

    O lugar da imprensa foi privilegiado nas discusses sobre os rumos

    da nao durante o perodo regencial. Como indica a anlise de Basile (2006),

    a virulncia da linguagem e a firmeza das posies polticas dos diferentes

    grupos que se manifestaram atravs da imprensa no foram capazes de calar

    uma vontade de integrao nacional e de reconhecimento e compartilhamento

    da heterogeneidade da nao brasileira.

    Assim, em sua feitura, tanto na forma quanto no discurso, esses

    impressos so portadores de vestgios da realidade cotidiana que d acesso ao

    pesquisador a uma certa sensibilidade, como afirma Pesavento (2008):

    Capturar as razes e os sentimentos que qualificam a

    realidade, que expressam os sentidos que os homens, em cada momento da histria, foram capazes de dar a si prprios e ao mundo, constituiria o crme de la crme da histria, a meta buscada por cada pesquisador! Funcionaria como o reduto mais ntimo da enargheia, essa impresso de vida ou fora vital deixada pelos homens no mundo (p. 185-186).

  • 30

    Os grandes feitos e os protagonistas j foram, de alguma forma,

    privilegiados, destacados das fontes primrias para a narrativa histrica. Resta,

    como aponta Barbosa (2004), abordar os annimos, as particularidades, o

    comezinho, os vestgios, os restos que o passado legou ao presente e que

    podem ilumin-lo.

    1.3 IMPRENSA NA HISTRIA E HISTRIA NA IMPRENSA: MODOS DE LER

    A imprensa, como fonte de conhecimento, vem sendo abordada de

    diferentes formas pelo campo cientfico. Passou de matriz da verdade

    falsificadora da mesma: em um momento de cunho historicista ou positivista da

    historiografia tradicional, os peridicos foram tratados como fontes

    privilegiadas, por constiturem uma porta de acesso do pesquisador

    verdade. Mais tarde, os estudos crticos enxergaram nos jornais a questo

    ideolgica e suas imbricaes socioeconmicas, abordando-os como reflexo de

    uma infra-estrutura e falsificadores da verdade (MOREL e BARROS, 2003, p.

    8). Na atualidade, ocorre a renovao da importncia da imprensa como

    referencial interativo na complexidade de um contexto (MOREL e BARROS,

    2003). Ela passa a ser considerada fonte documental (na medida em que

    enuncia discursos e expresses de protagonistas) e tambm agente histrico

    que intervm nos processos e episdios, em vez de servir-lhes como simples

    reflexo (p. 9).

    As pesquisas renovam, ento, o modo de ler os peridicos e sua

    relao com o contexto. O atual estudo dos primeiros jornais brasileiros, a partir

    da chegada da Famlia Real ao pas, em 1808, faz-se atravs de um olhar

    cultural, que serve tanto para o campo da Comunicao quanto o da Histria,

    ao redimensionar o objeto como fonte para as memrias de um tempo

    escoado7, apresentando vises distintas de um mesmo fato e despontando

    7 Tempo escoado, na expresso de Sandra Pesavento: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da histria: Uma leitura sensvel do tempo. In.: SCHLER, Fernando, AXT, Gunter e SILVA, Juremir

  • 31

    como agente histrico que intervm nos processos e episdios, e no mais

    como um simples ingrediente do acontecimento (NEVES, 2006, p. 10).

    A historiadora e pesquisadora da Comunicao, Marialva Barbosa

    (2007), ao comentar a relao entre meios de comunicao e a histria, aponta

    um eixo de anlise que contempla, numa perspectiva histrica, as dimenses

    interna e externa do processo comunicacional, considerando a dimenso

    processual da histria e a comunicao como sistema, no qual ganha relevo o

    contedo, o produtor das mensagens e a forma como o pblico entende os

    sinais emitidos pelos meios (p. 16). Nessa perspectiva, o discurso da imprensa

    oitocentista passa a ser visto como um universo de possveis (BARBOSA,

    2007, p. 15).

    Riopardense de Macedo (1994) percebeu e destacou esse universo

    sistmico, ao estudar a imprensa farroupilha:

    fcil perceber que a imprensa, mesmo que esta seja oficial,

    rgo vinculado administrao, fornece tambm informaes de carter no administrativo. E entende-se que o peridico, mesmo quando propriedade de um indivduo ou grupo oligrquico, est envolvido por posies contrrias em relao a outros peridicos; alm disso, pela riqueza de informaes que obrigado a fornecer, no pode fugir ao clima geral dominante na poca.

    Porque, em verdade, o peridico vive realmente o clima, reproduz, mesmo que no queira, o calor dos acontecimentos, de vrios acontecimentos que se cruzam e se inter-relacionam em um sistema de informaes (p. 23-24, grifo do autor).

    Assim, a nfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores

    explicativos dos primeiros tempos da imprensa, no parecem suficientes para

    explicar a complexidade e compreender as caractersticas de tal imprensa,

    gerada numa sociedade em mutao, do absolutismo em crise (MOREL, 2008,

    p. 1). Desta forma, entendemos que o nascimento dos peridicos no Brasil deu-

    se em um rico caldo de cultura social, poltico, econmico e cultural, que teve

    como impulso inicial a chegada da Famlia Real portuguesa ao pas. Da para

    diante, os jornais, mesmo que de propriedade de governos ou representantes

    declarados de ideais polticos, sempre estiveram imbricados com a circulao Machado da (Orgs.). Fronteiras do Pensamento Retratos de um mundo complexo. So Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008.

  • 32

    das idias e com a realidade cotidiana da sociedade, atravs de artigos de

    opinio, notcias, crnicas, poesias, anncios. Os papis incendirios8 foram

    constantemente alimentados pela lenha dos extraordinrios do dia-a-dia, e

    tambm pelas grandes transformaes sociais, como os movimentos pela

    independncia ou, mais tarde, a peleja entre o Imprio e os movimentos

    republicanos.

    No campo da Comunicao, o olhar mais abrangente sobre os

    jornais do sculo XIX, alm de permitir novas abordagens em relao ao

    discurso, ao texto que est posto, traz em si desafios epistemolgicos e

    metodolgicos relativos materialidade e organizao dos contedos dos

    impressos. Entre eles, est a questo: como definir parmetros tericos para

    analisar textos que so anteriores consolidao da Comunicao como

    disciplina cientfica e que, grosso modo, no se encaixam nas categorias do

    jornalismo tal como o conhecemos hoje?

    Tnia Regina de Luca (2008) cita, como exemplo dessas

    dificuldades, a consulta s edies em fac-smile do Correio Braziliense, jornal

    fundado por Hiplito Jos da Costa, de circulao mensal (entre junho de 1808

    e dezembro de 1822):

    O leitor acostumado aos matutinos atuais talvez se surpreenda

    com o formato, mais prximo de um livro, com o nmero de pginas, que podia chegar a 150, com a extenso dos artigos, que se prolongavam por vrios nmeros, e com a diviso interna da matria, que podia incluir as seguintes sees: poltica; comrcio e artes; literatura e cincias; miscelnea e correspondncia. H mesmo dvidas a respeito da melhor forma de caracterizar o Correio, no faltando aqueles que consideram mais apropriado cham-lo de revista (LUCA, 2008, p. 131).

    Em vista desse estranhamento, produzido pelas distncias culturais

    e temporais entre o pesquisador e o objeto da pesquisa, pretendemos que um

    dos exerccios desta dissertao seja o tensionamento das categorias relativas

    materialidade e organizao dos contedos presentes no jornal O Povo. Ao

    8 Referncia s primeiras manifestaes impressas ou manuscritas que, desde o sculo XVIII, na Frana, causavam comoo e disse-que-disse na vida urbana, manifestando uma noo de opinio pblica, na viso da historiadora Arlette Farge (Morel, 2003, p. 12).

  • 33

    mesmo tempo que problematiza a questo, Luca (2008) apresenta alguns

    caminhos para elabor-la: [...] as diferenas na apresentao fsica e

    estruturao do contedo no se esgotam em si mesmas, antes apontam para

    outras, relacionadas aos sentidos assumidos pelos peridicos no momento de

    sua circulao (p. 132).

    Assim, torna-se importante, na anlise de um peridico da primeira

    metade do sculo XIX, de forma ainda mais profunda do que se tratssemos de

    um veculo contemporneo ao tempo vivido pelo pesquisador, o deslindamento

    das condies tcnicas de produo desses jornais e de sua funo social,

    dentro de aspectos como

    [...] a forma como os impressos chegaram s mos dos leitores, sua aparncia fsica (formato, tipo de papel, qualidade da impresso, capa, presena/ausncia de ilustraes), a estruturao e diviso do contedo, as relaes que manteve (ou no) com o mercado, a publicidade, o pblico que visava atingir, os objetivos propostos (LUCA, 2008, p. 138 grifos da autora).

    Esses elementos, entre tantos outros, contribuem para dotar o objeto

    de sentido, a fim de que se esclarea o lugar que o peridico ocupa em seu

    tempo, mas, tambm, para relativiz-lo em relao s perguntas desde o lugar

    do pesquisador. Da mesma forma, a questo da neutralidade e da objetividade

    permeia o uso dos textos de imprensa como fonte de pesquisa. No campo da

    Comunicao, como indica Marques de Melo (2006), a questo da objetividade

    da imprensa contempornea j no a mesma que se pretendia na

    modernidade inglesa ou francesa, pois parece estar restrita ao domnio de uma

    tcnica e, portanto, vive como que num campo apriorstico da atividade

    jornalstica. Sabemos que a neutralidade e a imparcialidade podem e/ou devem

    fazer parte do texto do jornalista, mas, em sua totalidade, so uma quimera.

    Assim, ao estudar qualquer tipo de texto ou discurso, devemos ter em mente

    que as ferramentas de anlise do pesquisador devem instrumentaliz-lo para

    lidar com essa realidade:

    Pode-se admitir, luz do percurso epistemolgico da disciplina

    [Histria] e sem implicar a interposio de qualquer limite ou bice ao uso

  • 34

    de jornais e revistas, que a imprensa peridica seleciona, ordena, estrutura e narra, de determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar ao pblico. O historiador, de sua parte, dispe de ferramentas provenientes da anlise do discurso que problematizam a identificao imediata e linear entre a narrao e o prprio acontecimento, questo, alis, que est longe de ser exclusiva do texto da imprensa (LUCA, 2008, p. 139 grifos da autora).

    De forma que as noes de narrativa e de interpretao mostram-se

    essenciais no jornalismo e na histria. Pesavento (2006), ao analisar os

    discursos da histria e da memria, afirma que eles criam imaginrios de

    sentido a partir do real. Fices plausveis, verossmeis, socializadas,

    temporalizadas na sua feitura e na sua recepo. Palavras para crer (p. 6

    grifo nosso). Da mesma forma, o discurso jornalstico configura, em seus

    modos de feitura e de leitura, palavras para crer, ou seja: aquilo que est posto

    nesse tipo de texto quer, sob uma srie de circunstncias, referir o real. E ele

    tambm lido de forma a referir o real e, nesse momento, tambm submetido

    a outras circunstncias que o recriam, torcem, ampliam, ficcionalizam, num

    processo catrtico (PESAVENTO, 2006). Barbosa sintetiza esse pensamento

    ao afirmar:

    a partir de convenes culturais que classificamos os textos

    com pretenso verdade e os textos ficcionais. Devemos considerar, portanto, que todo texto estruturado de modo narrativo e, como tal, sujeito ao regime de interpretao que se aproxima das narrativas cotidianas com as quais estruturamos a nossa vida (2007, p. 20-21).

    Assim, a histria ou o jornalismo, na medida em que esto

    impregnados pela ao humana, pelos contextos, pelos resultados, pelas

    finalidades, no podem romper com a narrativa. Tanto o passado longnquo,

    quanto os acontecimentos cotidianos de uma contemporaneidade, ao serem

    narrados, esto, irremediavelmente, no passado e no podem ser revividos,

    seno de forma discursiva. E ao terem contato com o leitor, esses discursos

    so novamente protocolados em uma tradio: as regras e os sentidos

    lingsticos, a cultura, o contexto, as experincias individuais.

  • 35

    Marialva Barbosa e Ana Paula Goulart Ribeiro (2005), no artigo O

    que a histria pode legar aos estudos de jornalismo, realizam uma articulao

    entre as disciplinas, entendendo que elas, mesmo em suas diferenas,

    complementam-se. Os textos do jornalismo, em sua temporalidade, esto

    encharcados de conscincia do presente e, portanto, da conscincia da

    universalidade refletida (BARBOSA e RIBEIRO, 2005, p. 3).

    Nesse sentido, as autoras postulam que uma das maiores

    contribuies que a teoria da histria pode dar aos estudos de jornalismo o

    uso da viso crtica, que seria capaz de transformar sua teoria em uma ponte

    para o entendimento dos problemas do presente, assim como a histria o faz

    com os problemas do passado: A mesma viso crtica, se aplicada aos

    estudos do jornalismo, pode transformar sua teoria numa espcie de mdium

    para lidar com os problemas do presente (BARBOSA e RIBEIRO, 2005, p. 6).

    Assim, histria e jornalismo atuam num processo simbitico em que,

    para entender o passado, desvela-se, atravs dos peridicos, o que era

    presente; e para orientar o presente, busca-se no passado o caminho traado

    at aqui. Histria e jornalismo iluminam-se mutuamente.

    O leitor-pesquisador tambm faz parte desse jogo das narrativas e

    das interpretaes. J mencionamos que os peridicos assumiram diferentes

    funes em diferentes linhas de pesquisa cientfica. Da mesma forma, os

    impressos servem para responder perguntas distintas, localizadas no tempo

    em que o pesquisador vive. Percebemos que h, ento, um cruzamento de

    perspectivas temporais que devem ser consideradas pelo pesquisador ao

    estudar o tipo de narrativa jornalstica como o que nos propomos aqui, situada

    na primeira metade do sculo XIX: o tempo histrico em que o discurso foi

    produzido; o tempo escoado em que ocorreram os fatos que ele descreve

    (lembramos, os eventos no podem ser revividos); e o tempo da leitura do

    pesquisador, que abre a narrativa a todo um novo mundo de significados.

    Sobre este ltimo, Riopadense de Macedo (1994) afirma haver trs tipos de

    comportamento temporal do historiador: o tempo dos anais, em que o autor

    procura de todas as formas no ultrapassar as dimenses do fato histrico; o

    tempo do cronista, em que o autor acrescenta seu prprio conhecimento sobre

    os fatos; e o tempo histrico, quando levado em considerao o

    conhecimento sobre o que se passou depois dos eventos, estudando-os em

  • 36

    uma perspectiva temporal.

    Barbosa (2004), ao indicar alguns caminhos para a escritura de uma

    histria da imprensa, toma de Paul Ricoeur a noo de que o passado tinha

    um futuro, e acrescenta que ns somos o futuro desse passado (p. 7). Assim,

    no cabe ao pesquisador cobrar, do alto do seu conhecimento posterior, um

    certo comportamento de suas fontes. Ao contrrio, a riqueza da contribuio da

    histria para o jornalismo, como j foi dito, reside na viso crtica que ilumina o

    presente e no no movimento inverso, que usa o presente para olhar o

    passado e encerrar os peridicos do sculo XIX no julgamento da censura, do

    oficialismo e da falta de objetividade. A autora sintetiza essa constatao em

    uma simplicidade cortante: Para eles, ns ramos o desconhecido, o futuro, o

    inteligvel. E eles para ns mortos que transformamos em vivos continuaro

    sendo sempre o passado, o desconhecido, o inteligvel (p. 10).

  • 2 AS MLTIPLAS HISTRIAS DA REVOLUO FARROUPILHA

    De hoje em diante os Boletins das operaes de Campanha sero dados neste Jornal e s sero avulsos quando a matria ou circunstncias assim o exigirem; no s pela economia de papel e servios, como ainda para conhecimento de nossa Histria Militar, visto ser mais fcil a conservao de colees do jornal que a de avulsos destacados.9

    A Revoluo Farroupilha, como episdio icnico da formao

    cultural, poltica e econmica de nosso estado, destaca-se pela multiplicidade

    de relatos e pelas diferentes metodologias utilizadas no tratamento das fontes.

    Como depreendemos da epgrafe, O Povo tinha noo de sua relevncia

    documental para o labor histrico. Em vista da vastido do tema, nosso

    objetivo, neste captulo, traar um panorama conciso do episdio, destacando

    aspectos do cotidiano da Repblica Rio-Grandense, alm de apontar algumas

    das abordagens para as quais ele j serviu de tema. Essa escolha se justifica

    pelo fato de que nosso objeto de anlise, o jornal O Povo, abordado aqui pelo

    vis da comunicao e seu discurso conectado com o cotidiano. Isso faz com

    que nossa anlise remeta reiteradamente a diferentes episdios que so, do

    ponto de vista do pesquisador, histricos, mas a busca de esclarecimento para

    esses eventos aparece a partir do prprio texto, em outras palavras, quando o

    texto pede.

    Assim, deixamos de lado o confronto de verses e optamos por

    basear este levantamento principalmente no trabalho de historiadores

    contemporneos no-filiados perspectiva tradicionalista (ou ao seu combate

    declarado) como: Sandra Pesavento (1985 e 1997), Moacyr Flores (1989,

    1990, 2000, 2002 e 2008) e Ieda Gutfreind (1998), sem deixar de lado o

    9 O Povo, n. 67, p. 286.

  • 38

    consagrado Histria da grande revoluo, obra em seis volumes publicada em 1933 pelo historiador Alfredo Varela e que ainda hoje considerada obra

    essencial para o estudo do conflito; alm do acessvel Histria da Repblica Rio-Grandense (1936), de Dante de Laytano.

    Em um primeiro momento, dedicaremo-nos a um levantamento de

    diferentes tendncias da historiografia sul-rio-grandense, dando destaque aos

    historiadores que se preocuparam com a Revoluo Farroupilha. Em seguida,

    contextualizaremos alguns detalhes da realidade cotidiana da provncia de So

    Pedro do Rio Grande do Sul, na primeira metade do sculo XIX (geografia,

    comrcio, dados populacionais, educao etc.), apoiando-nos, principalmente,

    na obra Repblica Rio-Grandense: Realidade e utopia, de Moacyr Flores (2002). Finalmente, estabeleceremos uma breve cronologia dos principais fatos

    que marcaram a Revoluo.

    2.1 A HISTORIOGRAFIA SUL-RIO-GRANDENSE E A REVOLUO DE 1835

    Combinando os trabalhos de historiografia de Gutfreind (1998) e

    Flores (1989), possvel produzir um sinttico, porm eficiente, panorama de

    algumas das tendncias de maior relevo daquilo que j se escreveu sobre a

    Revoluo Farroupilha.

    Gutfreind (1998), entendendo que o discurso histrico integrado s

    caractersticas de seu momento de produo e orientao intelectual, observa

    pelo menos duas grandes matrizes ideolgicas na historiografia rio-grandense:

    a platina e a lusitana. Na primeira, situam-se os historiadores que do nfase

    s relaes e influncias ibricas da regio do Prata na formao histrica da

    provncia, dando destaque importncia da rea das Misses Orientais e seus

    povoados jesuticos no sculo XVII. A matriz lusitana tende a minimizar a

    influncia platina, defendendo a supremacia da cultura portuguesa.

    Flores (1989), por sua vez, procura sistematizar as tendncias da

    elaborao do pensamento histrico (p. 11). Nesse sentido, divide a produo

  • 39

    historiogrfica nas categorias: liberalismo, positivismo, determinismo

    sociolgico, historicismo, regionalismo e tradicionalismo, histria cultural,

    e materialismo histrico e situa, dentro de cada uma delas, os autores que

    julgou de maior destaque nessas determinadas tendncias.

    Duas grandes obras, consideradas de orientao lusitana por

    Gutfreind (1998), so as pioneiras da historiografia sulina. As Memrias ecnomo-polticas sobre a administrao pblica no Brasil, de Antnio Jos Gonalves Chaves, vieram a pblico em 1822. J Jos Feliciano

    Fernandes Pinheiro, o Visconde de So Leopoldo, publicou em 1839 os Anais da Provncia de So Pedro, considerada a primeira obra escrita sobre o Rio Grande do Sul. A matriz lusa, que se fortificou a partir dos anos 1920, retomou

    e reforou a tinta da maioria dos pontos de vista deste autor, exaltando as

    caractersticas de valentia e audcia dos conquistadores das Misses, ao

    mesmo tempo em que esmaecia as relaes com a rea platina.

    Outras publicaes marcantes so os relatos de viajantes, como o

    botnico e naturalista francs Auguste de Saint-Hilaire, que esteve na Provncia

    de So Pedro entre 1820 e 1821; Nicolau Dreys, que viveu como comerciante

    na regio, entre 1817 e 1825, e publicou, em 1839, Notcia descritiva da Provncia do Rio Grande de S. Pedro do Sul; e Arsne Isabelle, com o seu Viagem ao Rio Grande do Sul (1833-1834), publicado em 1835. Os relatos no constituem uma matriz historiogrfica, tal como a situa Gutfreind (1998), j

    que apresentam impresses pessoais desses viajantes europeus, os quais, na

    maior parte das vezes, tendem a analisar os fatos partindo dos estranhamentos

    oriundos do contraste com sua prpria cultura, e no do rigor da anlise de

    fontes primrias. Mesmo assim, oferecem ainda hoje, para os historiadores,

    muitos elementos para o entendimento da vivncia cotidiana na provncia e

    suas implicaes com o contexto, dando acesso a uma sensibilidade de poca.

    Saltando no tempo, a valorizao historiogrfica da ligao com o

    Prata ocorre a partir do final do sculo XIX, com a publicao de obras

    motivadas pelo esprito republicano (GUTFREIND, 1998): em 1882, vm a

    pblico Histria popular do Rio Grande do Sul, de Alcides Lima e Histria da repblica rio-grandense, de Joaquim Francisco de Assis Brasil. Em 1897, aparece Rio Grande do Sul: Descrio fsica, histrica e econmica, de Alfredo Varela. Em comum, os escritos apresentam a nfase na especificidade

  • 40

    do Rio Grande do Sul, justificando a necessidade de um regime republicano e

    de laos federativos entre as provncias e, em graus diferenciados, destacavam

    relaes com a rea platina (GUTFREIND, 1998, p. 19). Alcides Lima

    defendeu as qualidades do povo sul-rio-grandense, salientou a influncia

    aoriana na composio da populao, alm de apresentar o ncleo social da

    estncia como o primeiro passo para a democracia. Assis Brasil aplicou o

    Mtodo de Taine (do influente historiador francs Hippolyte Taine, que viveu

    entre 1828 e 1893)10, produzindo sua anlise histrica atravs dos elementos

    meio, raa e momento. Destacou o carter altivo e corajoso do povo,

    determinado por elementos que vo da alimentao (a carne e o chimarro) at

    a influncia espanhola e a independncia econmica da provncia nas guerras

    de fronteira. Flores (1989) posiciona esses dois autores na tendncia liberal.

    O terceiro autor que d flego matriz platina, Alfredo Varela,

    destacado por Gutfreind (1998), por situar-se no momento em que o regime

    republicano j constitua uma realidade no Brasil, e fica clara, como aponta

    Flores (1989), a influncia positivista que se desenvolvia, em especial no

    governo do Rio Grande do Sul. Polemizou, ao defender a tese de que a

    Revoluo Farroupilha estava ligada aos movimentos platinos, afirmao que

    seus contemporneos rebatiam, localizando a inspirao dos farrapos na

    Revoluo Francesa. Deu nfase s biografias dos heris Bento Gonalves,

    Tito Livio Zambecari e Giuseppe Garibaldi, lanando mo de abundante

    documentao e do testemunho de descendentes dos farrapos. Tal como

    Alcides Lima e Assis Brasil, ressaltou a branda mistura racial na regio e a

    ntida diferena da paisagem sulina em relao ao restante do Brasil. Flores

    (1989) faz o seguinte comentrio sobre a obra de Varela:

    O texto em todas as obras confuso e descontnuo, a

    linguagem de epopia torna a leitura cansativa, as citaes fragmentadas de documentos nem sempre correspondem ao verdadeiro texto, pois o historiador muda palavras ao seu bel-prazer. As citaes de clssicos da literatura e da histria greco-romana quebram a continuidade, dando apenas demonstrao de erudio vazia.

    A grande utilidade de suas obras est na citao de documentos ao p da pgina, que paradoxalmente s vezes no correspondem interpretao dada por Varela (FLORES, 1989, p. 30).

    10 No Brasil, uma exemplar aplicao deste mtodo a obra Os sertes, de Euclides da Cunha (FLORES, 1989).

  • 41

    Mesmo tecendo essa crtica, Varela uma das referncias bsicas

    de Flores, autor que se destaca pelo aprofundamento dos diversos significados

    da Revoluo Farroupilha, atravs de uma criteriosa e contextualizada anlise

    de fontes primrias.

    Entendemos, pelo olhar proporcionado atravs da nossa

    metodologia e tcnica de pesquisa, que ser discutida no captulo seguinte,

    que um texto comporta diversos possveis interpretativos e, por isso,

    consideramos importante ressaltar que, atualmente, a obra de Varela tem

    embasado um grupo de estudos de cunho separatista, chamado Pampa Livre,

    que se ocupou de digitalizar e disponibilizar na Internet11, de forma gratuita,

    todos os seis volumes da Histria da Grande Revoluo. Gutfreind (1998) identifica que as obras de Alcides Lima, Assis Brasil

    e Varela so marcadas pela influncia poltica do Partido Republicano Rio-

    Grandense e nota que, a partir de 1920, a orientao historiogrfica volta-se ao

    sentimento de brasilidade (p. 23), que demonstra um esforo para criar uma

    imagem do Rio Grande do Sul que se assemelhe do Brasil (p. 24). Nesse

    contexto, destaca-se o interesse dos historiadores pela renovao do olhar

    sobre o perodo da Revoluo Farroupilha, dada a relevncia do conflito na

    definio (ou na falta dela) da identidade rio-grandense frente s influncias

    platinas e brasileiras. Esse foco justificado, de acordo com Gutfreind (1998),

    pela luta do Rio Grande do Sul por um espao na poltica nacional, culminando

    com a Revoluo de 1930 e a chegada de Getlio Vargas ao poder.

    Os anos 1920 foram marcados pela refundao do Instituto Histrico

    e Geogrfico do Rio Grande do Sul (IHGRS), da qual participaram, entre

    outros, Florncio de Abreu e Silva, Emlio Fernandes de Souza Docca, Joo

    Pinto da Silva, Alcides Maya e os autores j citados: Alcides Lima, Joaquim

    Francisco de Assis Brasil e Alfredo Varela. Naquele perodo, fica clara a

    influncia do pensamento positivista entre os membros do Instituto, mas

    Gutfreind (1998) esclarece que

    a caracterizao mais correta que se pode dar produo historiogrfica dos seus membros a do ecletismo terico, sem uma discriminao de filosofia especfica, comum a todos (...). Recusa-se a nomeao de

    11 No endereo www.pampalivre.info/alfredovarela/historia_da_grande_revolucao__alfredo_varela.htm.

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    historiadores positivistas para os membros do IHGRS, pois uma expresso homogeneizadora de um grupo que apresenta diversidades internas (p. 29).

    Ainda de acordo com a autora, se no possvel aproximar a

    produo historiogrfica dos membros do IHGRS em torno de uma filosofia

    especfica, factvel agrup-los no esforo de projetar o Rio Grande do Sul no

    Brasil e na relevncia dada ao espao geogrfico na formao do estado

    sulino.

    Ao lado de Alfredo Varela, Rubens de Barcellos e Joo Pinto da

    Silva so autores que do espao influncia platina na constituio do Rio

    Grande do Sul, e isso foi suficiente para criar polmica com a matriz lusitana.

    Joo Pinto da Silva, autor de Histria literria do Rio Grande do Sul (1924) e de A Provncia de So Pedro (1930), coloca a situao de fronteira como decisiva na fisionomia histrica do Rio Grande e, assim como Varela, v o

    embrio de uma sociedade democrtica no nas estncias (como afirmou

    Alcides Lima), mas nos acampamentos militares. Considerou o separatismo

    apenas terico e viu no gacho sul-rio-grandense semelhanas e diferenas

    em relao ao gacho platino, principalmente no que diz respeito ao

    caudilhismo, prtica que considerou inexistente no Rio Grande.

    Flores (1989), insere o trabalho de Rubens de Barcellos na linha do

    determinismo sociolgico, com influncia do pensamento de Durkheim, o que

    trouxe poucas mudanas ao fazer histrico: a influncia do meio geogrfico

    passou a ser substituda pelo determinismo dos fatos sociais (FLORES, 1989,

    p. 41). A obra de Barcellos tambm confere forte valor situao de fronteira e

    ressalta a predominncia da ascendncia aoriana sobre a populao. Nesse

    sentido, destaca a existncia de uma dicotomia entre a campanha e a cidade: a

    primeira aproximando-se do Prata e a segunda dando continuidade aos laos

    portugueses. Essa comparao entre a cidade e o campo bastante

    caracterstica do pensamento da poca, quando se destaca a obra Facundo, do argentino Domingo Sarmiento (GUTFREIND, 1998). Barcellos tambm

    minimiza o separatismo, considerando-o apenas um expediente para o alcance

    da Repblica: a Revoluo Farroupilha no difere dos demais levantes das

    provncias perifricas durante o perodo regencial. Em 1925, atravs dos

  • 43

    peridicos, Barcellos polemizou com Paulo Arinos, pseudnimo de Moyss

    Vellinho, a respeito da obra literria de Alcides Maya, o que provocou tomada

    de posies entre os intelectuais, e mostra a forte efervescncia nas

    discusses sobre a cultura rio-grandense.

    Mansueto Bernardi, jornalista, poeta e funcionrio da Livraria do

    Globo, foi um expoente dessa conscientizao sobre a importncia do debate

    acerca dos temas regionais e, ainda mais, da tomada de uma posio mais

    efetiva do Rio Grande do Sul no panorama brasileiro (GUTFREIND, 1998), fato

    que, discursivamente, apontou para textos polticos e histricos de cunho

    conciliatrio.

    Esse panorama deu fora matriz lusitana, que teve como

    expoentes Aurlio Afonso Porto, Emlio Fernandes de Souza Docca, Othelo

    Rosa, Moyss Vellinho, Dante de Laytano e Walter Spalding.

    Aurlio Porto, em seus primeiros escritos, filia-se matriz platina,

    destacando essa influncia na Revoluo Farroupilha. A partir da segunda

    metade dos anos 1930, dedicando-se ao estudo da regio das Misses, o autor

    parece mudar de opinio e passa a afirmar que o ponto em comum entre

    platinos e rio-grandenses era a presena indgena, suficiente para explicar as

    semelhanas entre os dois povos. Sobre a Revoluo Farroupilha, destacou o

    sentimento de brasilidade dos rio-grandenses, decisivo para a assinatura da

    paz com o Imprio.

    As pesquisas de Aurlio Porto resultaram na publicao de

    comentrios junto aos trs volumes do Processo dos farrapos e nos quatro volumes dos Anais do Itamaraty, que, somados, compem a srie Farrapos. No plano nacional, o autor contou com a grata contribuio de Alcides Bezerra, que tratou de aproximar a Revoluo Farroupilha dos levantes ocorridos no

    nordeste, integrando-a a uma perspectiva de construo da Repblica

    brasileira e redirecionando os valores que indicavam o separatismo,

    apontando-os para um patriotismo profundo (GUTFREIND, 1998). Porto,

    apesar de afirmar como seu intento a divulgao de um Rio Grande do Sul

    culto, cavalheiresco e elevado culturalmente, acabou por oferecer, em sua

    obra, uma imagem bastante tradicional, a do gacho da campanha: cavaleiro,

    belicoso, destemido. Em 1937, faz outra importante contribuio para o registro

    da histria do estado, com a publicao de dois grandes volumes intitulados

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    Terra farroupilha, onde, mais uma vez, procura destacar os aspectos lusitanos e brasileiros de nossa formao.

    O militar Emlio Fernandes de Souza Docca foi contemporneo de

    Aurlio Porto e compartiu com ele a viso abrasileirada da histria sul-rio-

    grandense. Sobre o tema da Revoluo Farroupilha, polemizou com Alfredo

    Varela, que lanou a sua Histria da grande revoluo em 1933, s vsperas do centenrio do conflito e concomitantemente ao governo do gacho Getlio

    Vargas, provocando artigos assinados por Docca na revista do IHGRS que

    condenavam a viso separatista e platina da histria do Rio Grande do Sul

    (GUTFREIND, 1998). Publicou, em 1935, O sentido brasileiro da Revoluo Farroupilha, onde afirmou que os revolucionrios sul-rio-grandenses foram inspirados pelo processo de independncia norte-americano. Nas tendncias

    apontadas por Flores (1989) foi classificado como positivista, o que se

    justifica pelo uso da trade de Taine e a crena absoluta nos do