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1 PONTO E LINHA SOB O PLANO: EXPLORANDO OS ELEMENTOS VISUAIS A PARTIR DO RECORTE FOTOGRÁFICO Fábio SALUM Fundamentos e princípios de uma poética em construção. Esse trabalho é uma reflexão teórica sobre minha própria produção poética, que se inicia por volta de 2002 e tem como problemática básica um estudo dos elementos visuais a partir da linguagem da fotografia. Esse não é um trabalho em poiética, que visa uma reflexão do ato de construir a obra, mas uma reflexão teórica sobre aspectos que aparecem em minha produção. As discussões escritas não servem de base a construção das obras, mas são reflexões e pensamentos que partem dessa produção. Os elementos visuais são os elementos básicos de constituição das imagens, segundo Fayga Ostrower podemos considera-los como os vocábulos da linguagem visual. São com apenas cinco elementos, linha, superfície, volume, cor e luz e nem sempre com todos reunidos que se formam, em suas variadas técnicas e estilos, todas as imagens. Os elementos visuais possuem características particulares, que lhe são próprias, sua principal diferença com a palavra, por exemplo, é que os elementos visuais não possuem significados pré-estabelecidos. Em si, eles não representam nada, não significam nada, não assinalam nada, eles só se caracterizam quando entram em um contexto formal, portanto só se caracterizam caracterizando o espaço. Durante a história da arte, foram duas correntes que durante o modernismo se preocuparam em compreender as possibilidades criadas por esses elementos, a linha da expressão, baseada nos estudos de Worringer e teorizada na corrente estética da Einfühlung e que compreendeu desde o movimento da arte nova até as intervenções contemporâneas da Body Art, passando pelo expressionismo, abstracionismo e pelo informalismo, e a linha da formatividade, que se baseou nos estudos de Konrad Fiedler, se teorizou na estética da visibilidade pura e compreendeu os movimentos cubista, suprematista, concretista, abstracionista formal, arte cinética e a op art chegando até a pós-modernidade sob o nome de pós-estruturalismo. Dentre todas essas propostas de estudos existe um que eu gostaria de salientar, os escritos de Wassily Kandinsky. Wassily Kandinsky e seus estudos da forma. Wassily Kandinsky nasceu em Moscou, Rússia, passou boa fase de sua infância em Odessa e mais tarde volta a capital onde estudou direito e economia na Universidade de Moscou, em 1892 casa-se com Anya Chimiakin e em 1986 muda para Munique onde inicia seus estudos em pintura. Kandisnky tinha a preferência de pintar paisagens coloridas ao ar livre ao invés de modelos considerando-os destituídos de caráter. Com a primeira guerra mundial parte para a suíça e depois para a Rússia onde se desentende com as teorias da arte e retorna a Alemanha, começa a lecionar na Bauhaus até 1933 quando a escola é fechada pelos nazistas, a partir daí muda-se para a Paris onde vive até o final de sua vida. Já em 1910 Kandinsky começa a produzir suas primeiras telas abstratas, influenciado pela música do compositor Arnold Schönberg com quem manteve correspondência entre 1911 e 1914. Kandinsky acreditava que a pintura não precisava se deter na cópia da realidade, como a música a pintura contava com elementos expressivos e se estes elementos não representasse nada poderia funcionar para a exterioridade de sentimentos. Acreditava que

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PONTO E LINHA SOB O PLANO: EXPLORANDO OS ELEMENTOS VISUAIS A PARTIR DO RECORTE FOTOGRÁFICO

Fábio SALUM

Fundamentos e princípios de uma poética em construção. Esse trabalho é uma reflexão teórica sobre minha própria produção poética, que se

inicia por volta de 2002 e tem como problemática básica um estudo dos elementos visuais a partir da linguagem da fotografia. Esse não é um trabalho em poiética, que visa uma reflexão do ato de construir a obra, mas uma reflexão teórica sobre aspectos que aparecem em minha produção. As discussões escritas não servem de base a construção das obras, mas são reflexões e pensamentos que partem dessa produção.

Os elementos visuais são os elementos básicos de constituição das imagens, segundo Fayga Ostrower podemos considera-los como os vocábulos da linguagem visual. São com apenas cinco elementos, linha, superfície, volume, cor e luz e nem sempre com todos reunidos que se formam, em suas variadas técnicas e estilos, todas as imagens. Os elementos visuais possuem características particulares, que lhe são próprias, sua principal diferença com a palavra, por exemplo, é que os elementos visuais não possuem significados pré-estabelecidos. Em si, eles não representam nada, não significam nada, não assinalam nada, eles só se caracterizam quando entram em um contexto formal, portanto só se caracterizam caracterizando o espaço.

Durante a história da arte, foram duas correntes que durante o modernismo se preocuparam em compreender as possibilidades criadas por esses elementos, a linha da expressão, baseada nos estudos de Worringer e teorizada na corrente estética da Einfühlung e que compreendeu desde o movimento da arte nova até as intervenções contemporâneas da Body Art, passando pelo expressionismo, abstracionismo e pelo informalismo, e a linha da formatividade, que se baseou nos estudos de Konrad Fiedler, se teorizou na estética da visibilidade pura e compreendeu os movimentos cubista, suprematista, concretista, abstracionista formal, arte cinética e a op art chegando até a pós-modernidade sob o nome de pós-estruturalismo. Dentre todas essas propostas de estudos existe um que eu gostaria de salientar, os escritos de Wassily Kandinsky. Wassily Kandinsky e seus estudos da forma.

Wassily Kandinsky nasceu em Moscou, Rússia, passou boa fase de sua infância em

Odessa e mais tarde volta a capital onde estudou direito e economia na Universidade de Moscou, em 1892 casa-se com Anya Chimiakin e em 1986 muda para Munique onde inicia seus estudos em pintura. Kandisnky tinha a preferência de pintar paisagens coloridas ao ar livre ao invés de modelos considerando-os destituídos de caráter. Com a primeira guerra mundial parte para a suíça e depois para a Rússia onde se desentende com as teorias da arte e retorna a Alemanha, começa a lecionar na Bauhaus até 1933 quando a escola é fechada pelos nazistas, a partir daí muda-se para a Paris onde vive até o final de sua vida.

Já em 1910 Kandinsky começa a produzir suas primeiras telas abstratas, influenciado pela música do compositor Arnold Schönberg com quem manteve correspondência entre 1911 e 1914. Kandinsky acreditava que a pintura não precisava se deter na cópia da realidade, como a música a pintura contava com elementos expressivos e se estes elementos não representasse nada poderia funcionar para a exterioridade de sentimentos. Acreditava que

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como as notas musicais, as cores e os elementos da pintura poderiam falar diretamente aos sentidos.

Kandinsky publicou diversos escritos, contudo sua teoria se resume basicamente a dois deles, “Do espiritual na arte”, onde ele introduz sua teoria, fala sobre o ser interior e faz a ligação entre as cores, suas características expressivas e as notas musicais, e o livro “Ponto e linha sobre o plano”, onde ele teoriza a forma e suas construções a partir de impulsos interiores. Os desenhos a seguir, por exemplo, são parte do livro “Ponto e linha sobre o plano”. Pode-se perceber a minúcia de Kandinsky ao tentar demonstrar todas as forças que podem atingir para a criação das linhas (Fig. 1 e 2).

Figura 1 - Desenho de Kandinsky que mostra os contrastes entre as linhas

– Ponto e linha sobre o Pano – Página 71

Figura 2 – Exemplos e teorização de Kandinsky sobre a linha ondulada – Ponto e Linha sobre o Plano – página 76

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Ainda nesse livro, Kandinsky teorizou sobre as formas e as superfícies, não apenas relacionando-as enquanto unidades perceptivas mas atribuindo-lhes valores referências. Cada tipo de forma se caracterizava por ter um valor próprio podendo ainda atribuir-lhes comparativos (Fig. 3 e 4)

Figura 3 – Estudo de Kandinsky sobre o par de superfícies originalmente opostas

– Ponto e linha sobre o Plano – página 73

Figura 4 – Comentário de Kandinsky sobre as cores básicas repartidas nas formas básicas correspondentes – Ponto e linha sobre o Plano – página 84

A Figura 5, foi extraída do Livro “Curso da Bauhaus” (1996) e é um esquema que

demonstra a diferença de uma arte que aprende por seus valores próprios e uma arte que dialoga com outra, ou seja o diálogo entre a pintura e a música.

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Figura 5 – esquema de Kandinsky para demonstrar o aprofundamento das artes – Curso da Bauhaus – página 19

Assim percebe-se em Kandinsky uma minuciosa atenção as problemáticas da forma e

de seus processos de construção, mais do que isso, vê-se a forte tendência de um pensamento espiritualista que acabou por percorrer toda a história da abstração. Para Kandinsky, a forma, não era apenas um elemento, mas uma força detentora de sentido e repreta de complicações. O recorte e a fragmentação na fotografia.

Quando se trabalha com a linguagem da fotografia é preciso levar em conta a

importância do recorte ocasionado pelo enquadramento, pelo zoom. Em fotografia é ele quem define o espaço fotográfico e consequentemente a imagem que será ampliada e vista.

Recortar é cortar formando (como se diz quando se recortam figuras num papel). A ação de recortar pode incidir sobre o mundo, sobre uma imagem e sobre um plano. Aqui se pretende pensar o corte como ato mas também como o efeito de cortar. Os efeitos do corte e do recorte isolam, intervalam, fragmentam, estilhaçam. A ideia de corte e suas inflexões são potências. Podem produzir conflitos, sentidos positivos ou negativos: podem operar criações, destruições, reconstruções. (RAUSCHER, 2003. p. 8)

Para Phillip Dubois o gesto do corte fotográfico separa uma imagem no espaço e no

tempo, nesse sentido a foto se parece como uma fatia, “uma fatia única e singular do espaço-tempo” (DUBOIS, 1993. p. 161), é uma marca subtraída da continuidade, um “pequeno bloco de estando lá, pequena comoção do aqui-agora, furtada de um duplo infinito”(op. cit.).Temporalmente a imagem fotográfica detém, imobiliza capta da realidade continua um único instante. Espacialmente separa, fraciona, isola uma porção do espaço.

Sendo um corte, um fragmento, uma porção a imagem fotográfica implica sempre em um resto, em algo que fica excluído, no fora de campo da imagem. Essa relação do campo com o fora de campo é característica de sua relação indiciária, sendo uma extração do referente fica implícita sua presença. ”Sabe-se sempre que este ausente está presente, mas fora-de-campo.”(DUBOIS, 1993. p. 179).

Em fotografia há várias formas de lidar com essa relação, o trabalho “A mão encantada” (Fig. 6) de Ralph Gibson, por exemplo, estimula a imaginação ao colocar uma mão que sai por detrás de uma porta. Gibson na verdade tem várias experiências nesse sentido o trabalho “Mary Ellen e mão” (Fig. 7) ele introduz sua mão na composição, como se fosse dar as mãos a mulher fotografada, denunciando dessa forma o próprio fotografo que normalmente permanece escondido por detrás da câmera.

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Figura 6 – Ralph Gibson – A mão encantada

Figura 7 – Ralph Gibson – Mary Ellen e mão

Existem ainda casos em que os fotógrafos tentam desvincular de fato a imagem do

lugar de onde ela foi retirada, é o caso, por exemplo, da série equivalências de Alfred Stieglitz (Fig. 8 e 9), sabemos que são imagens do céu, contudo não sabemos ao certo se foram tiradas na vertical, na horizontal, o ponto exato do céu a que elas foram retiradas.

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Figura 8 – Alfred Stieglitz – Série equivalências.

Figura 9 – Alfred Stieglitz – Série equivalências.

As imagens de Stiglitz, apesar de muito abstratas, ainda remetem a um espaço

conhecido, de qualquer maneira sabemos que são fotografias de nuvens. As nuvens sempre chamaram a atenção dos fotógrafos por seus desenhos, da vida cotidiana comum às nuvens possuem valores abstratos por natureza, a simplicidade de seus desenhos acabam por enfatizar as linhas, formas e cores. Contudo, esses elementos abstratos podem ser encontrados em qualquer ambiente cotidiano, basta que o recorte fotográfico distancie a imagem registrada da figuração significante da realidade. A Figura 10, por exemplo, é uma imagem qualquer que peguei em meu computador, dessa simples imagem podemos retirar diversos desenhos que excluído a figuração valorizam os elementos da configuração (Fig 11)

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Figura 10 – Imagem de um quarto

Figura 11 – Imagem de um quarto que fragmentos que valorizam os elementos da composição

Mais do que apenas definir o espaço fotográfico e a relação entre o dentro e o fora de

campo, o recorte espacial em fotografia determina a composição.

A partir do momento em que o ato fotográfico opera um recorte na continuidade do espaço referencial, essa porção de espaço levantada, transposta para a película e depois para o papel, começa a organizar-se de maneira autônoma. O recorte forneceu-lhe um quadro, e esse quadro vai se tornar enquadramento, organização

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interna do campo a partir da referencia das bordas do quadro. Qualquer quadro institui necessariamente um sistema de posicionamento dos elementos presentes em seu espaço com relação aos limites que o circunscrevem. Em outras palavras, qualquer recorte fotográfico situa uma articulação entre um espaço representado ( o interior da imagem, o espaço de seu conteúdo, que é o plano de espaço referencial transferido para a foto) e um espaço de representação (a imagem como suporte de inscrição, o espaço do continente, que é construído arbitráriamente pelos bordos do quadro). É essa articulação entre espaço representado e espaço de representação que define o espaço fotográfico propriamente dito. (DUBOIS, 1993. p. 209)

Kandinsky nos falava de um ponto e linha sobre o plano pois trabalhava com a pintura.

A pintura se define como uma superfície mais ou menos que o pintor, aos poucos, os signos, cabe ao pintor apenas inserir seu sujeito.

Espaço fechado, autônomo, completo logo de inicio, onde o pintor pode progredir aos poucos, onde pode construir conforme sua vontade, fabricar progressivamente sua imagem no enclausuramento do campo. O pintor faz mancha de óleo, Diz Denis Roche, a partir de algo ao redor do que nada há. E nada é amputado do mundo por sua construção. (DUBOIS, 1993. p. 178)

Já para a fotografia

O espaço fotográfico não é determinado, assim como não se constrói. Ao contrário, é um espaço que deve ser capturado (ou deixado de lado), um levantamento do mundo, uma subtração que opera em bloco. O fotografo não está em condição de preencher aos poucos um quadro vazio e virgem, que já está ali. Seu gesto consiste em subtrair de uma vez todo um espaço “pleno”, já cheio, de um contínuo. Para ele, a questão do espaço não é colocar dentro, mas arrancar tudo de uma vez. Problema de extração, de saída de uma contigüindade infinita, e isso – temos de insistir – qualquer que seja a construção preliminar da qual a “cena” foi o objeto e quaisquer que sejam os arranjos e manipulações depois do golpe (corte) (reenquadramento, ampliação, montagem etc.). Em outras palavras, bem aquém de qualquer intenção ou de qualquer efeito de composição, em primeiro lugar o fotografo sempre recorta, separa, inicia o visível. Cada objetivo, cada tomada é inelutavelmente uma machadada (golpe de machado) que retém um plano do real e exclui, rejeita, renega a ambiência (o fora de quadro, o fora de campo, de que voltaremos a falar daqui a pouco) Sem sombra de dúvida, toda a violência (e a predação) do ato fotográfico procede essencialmente desse gesto do CUT. Ele é irremediável. É ele e só ele que determina a imagem, toda a imagem, a imagem como todo. No espaço literalmente talhado de uma vez e ao vivo pelo ato fotográfico, haja ou não encenação, tudo acontece por inteiro de uma só vez. Em sua condição de principio, esse é de fato o golpe do corte. (DUBOIS, 1993. p. 178)

Assim, ponto e linha sob o plano: explorando os elementos visuais a partir do recorte

fotográfico.

Referências BECKETT, Wendy. História da Pintura. Tradução de Mário Vilela. São Paulo – SP: Editora Ática, 1997. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzer. Campinas – SP: Papirus, 1993. FUSCO, Renato de. História da arte contemporânea. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editora Presença, 1988.

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JANSON, H. W.; JANSON, Anthony F. Iniciação a história da arte. Tradução de Jeffereson Luiz Camargo. São Paulo – SP: Martins Fontes, 1988. KANDINSKY, Wassliy. Curso da Bauhaus. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. KANDINSKY, Wassliy. Ponto e linha sobre o plano. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. RAUSCHER, Beatriz. Corte, fragmentação e estilhaçamento como potências. Revista da Univille. Joinville: SC, 2003