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Por aquelas escadas subiu feito uma diva i CAIO FERNANDO ABREU Foi mesmo amor à primeira vista. Naquela manhã de 1982, pelas escadas que levavam à “Nau dos Insensatos” – como Caio Graco batizara a redação do Leia Livros, um mezanino da antiga editora Brasiliense na General Jardim, plena Boca do Lixo em São Paulo –, por aquelas escadas de madeira subiu Ana C. feito uma diva. Linda, loura, pescoço de Audrey Hepburn mas “certo ar de Mia Farrow”, como ela mesma se auto-retratou em um poema, um único brinco indiano na orelha esquerda. Nervosa, irônica, crispada, inteligentíssima. Atenta demais, quem sabe? Talvez tenha sido amor correspondido também, pois através do correio imediatamente começamos a nos escrever. Os meus livros, os dela, editados artesanalmente por Heloísa Buarque de Hollanda, traduções, artigos para o velho e bom Leia, contos, poemas, Ana C. em Sampa em fins-de-semana fin-de-siècle, com Reinaldo Moraes e Maria Emília Bender íamos a restaurente japoneses (ela adorava saquê), ao Spazio Pirandello, Frevinho, o antigo Longehamps do grande balcão anos 50 e falávamos, falávamos sem parar. As cartas ficaram insuficientes, vieram os interurbanos – ela usando a Rede Globo, no Rio, onde trabalhava, eu a Brasiliense, em São Paulo. À noite, quando começou a longa crise, outros telefonemas em desespero: “Me sinto emparedada”, repetia sempre. Um pouco por ela, mudei para o Rio, para o Hotel Santa Teresa, no alto do morro. A crise continuava. Certa vez, no apartamento de nossa amiga astróloga Graça Medeiros, segurei- a na janela à beira do salto. Quase bati nela. Noutra, segurei-a tentando jogar-se em frente aos automóveis da Gávea. Ela quase me bateu. Não, nunca fomos amantes: nossas praias eram outras,

Por Aquelas Escadas Subiu Feito Uma Diva

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Ana C por Caio F

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Por aquelas escadas subiu feito uma divaiCAIO FERNANDO ABREUFoi mesmo amor primeira vista. Naquela manh de !"#$ pelas es%adas que levavam &Nau dos Insensatos' ( %omo Caio )ra%o *ati+ara a reda,o do Leia Livros$ um me+anino da anti-a editora Brasiliense na )eneral .ardim$ plena Bo%a do /i0o em 1o 2aulo ($ por aquelas es%adas de madeira su*iu Ana C. 3eito uma diva. /inda$ loura$ pes%o,o de Audre4 5ep*urn mas &%erto ar de 6ia Farro7'$ %omo ela mesma se auto8retratou em um poema$ um 9ni%o *rin%o indiano na orelha esquerda. Nervosa$ ir:ni%a$ %rispada$ inteli-ent;ssima. Atenta demais$ quem sa*em$ pois atrav>s do %orreio imediatamente %ome,amos a nos es%rever. Os meus livros$ os dela$ editados artesanalmente por 5elo;sa Buarque de 5ollanda$ tradu,?es$ arti-os para o velho e *om Leia$ %ontos$ poemas$ Ana C. em 1ampa em @ns8de8semana fn-de-sicle$ %om Reinaldo 6oraes e 6aria Em;lia Bender ;amos a restaurente Aaponeses Bela adorava saquCD$ ao 1pa+io 2irandello$ Frevinho$o anti-o /on-ehamps do -rande *al%o anos EF e 3alGvamos$ 3alGvamos sem parar.As %artas @%aram insu@%ientes$ vieram os interur*anos ( ela usando aRede )lo*o$ no Rio$ onde tra*alhava$ eu a Brasiliense$ em 1o 2aulo. H noite$ quando %ome,ou a lon-a %rise$ outros tele3onemas em desesperoI &6e sinto emparedada'$ repetia sempre. Um pou%o por ela$ mudei para o Rio$ para o 5otel 1anta =eresa$ no alto do morro. A %rise %ontinuava. Certa ve+$ no apartamento de nossa ami-a astrJlo-a )ra,a 6edeiros$ se-urei8a naAanela *eira do salto. Kuase *ati nela. Noutra$ se-urei8a tentando Ao-ar8se em 3rente aos automJveis da )Gvea. Ela quase me *ateu. No$ nun%a 3omosamantesI nossas praias eram outras$ se > que me entendem. Durante quaseum ano$ ela 3orAou sui%;dios %otidianos ao mesmo tempo sin%eros e 3raudulentos.A 9ltima ve+ que a vi 3oi numa noite de setem*ro$ quando eu %ompletava LE anos. )ra,a %onse-uiu levG8la at> o alto de 1anta =eresa e$ por mais de duas horas$ Ana C. no disse nada. /enta$ %on%entrada$ apenas to%ava$ um por um$ todos os o*Aetos do meu quarto. E me olhava. 2ro3unda$ atent;ssima$ remota. 2are%ia uma despedida. 2ou%o depois tento o sui%;dio pra valer e 3oi internada numa %l;ni%a ina%ess;vel$ para onde li-uei tentando 3alar %om ela e a psi%analista re%usou8se$ di+endo que &os ami-os eram os prin%ipais %ulpados'. 1er;amos< 6as lo-o nJs$ que a amGvamos tanto$ ser;amos assim uns love killers