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Por Núcleo Prisma UFSM 02 Por Núcleo Prisma Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 2, nº 2 | jul/dez. 2011 ISSN 2178-1842 www.nucleoprisma.com.br pesquisas em relações internacionais de santa maria

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Por Núcleo Prisma

UFSM

02

Por Núcleo Prisma

Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 2, nº 2 | jul/dez. 2011

ISSN 2178-1842

www.nucleoprisma.com.br

pesquisas em relações internacionais de santa maria

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ISSN 2178-1842

Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 2, nº 2 | jul/dez. 2011

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UNIVERSIDADEREITOR

Prof. Felipe Martins MüllerVice-Reitor: Prof. Dalvan José Reinert

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS – CCSHDIRETOR

Rogério Ferrer KoffVice Diretor: Mauri Leodir Löbler

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICASCHEFE

Uacauan BonilhaSubchefe: Adriano José Pereira

CORPO EDITORIALEDITOR RESPONSÁVEL

José Renato Ferraz da Silveira

EDITORES

Cristina Farias, Daniel do Nascimento Paim, Fernanda Maschio, Guilherme da Cruz Backes, Juliana Graffunder Barbosa, Leonardo Augusto Peres, Lia Fernanda da Rosa e Thales da Silva Carvalho.

CONSELHO EDITORIAL

Adayr da Silva Ilha (UFSM), Adriano José Pereira (UFSM), Gláucia Campregher (UFGRS), José Carlos Martines Belieiro Junior (UFSM), José Luiz de Moura Filho (UFSM), José Renato Ferraz da Silveira (UFSM), Marcelo Arend (UFSC), Paulo Gilberto Fagundes Vizentini (UFRGS), Ricardo Seitenfus (UFSM), Rita Inês Paetzhold Pauli (UFSM), Sérgio Alfredo Massen Prieb (UFSM), Uacauan Bonilha (UFSM)

Nota: Os trabalhos assinados exprimem conceitos da responsabilidade de seus autores, coincidentes ou não com os pontos de vista da redação da Revista.

Todos os direitos Reservados: Proibida a reprodução total ou parcial, sem a prévia autorização do Núcleo, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos ou videográficos. Vedada a memori-zação e/ou recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de quaisquer partes desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e §§, do Código Penas, cf Lei nº 6.895, de 17-12-1980) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreenção e indenizações diversas (arts. 122, 123, 124 e 126, da Lei nº 5.988 de 14-12-1973, Lei dos Direitos Autorais).

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PARECERISTAS

Alfredo Gugliano (UFRGS)Doutorado em Ciencias Políticas y Sociología

(Universidad Complutense de Madrid)

[email protected]

Álvaro Augusto de Borba Barreto (UFPEL)Doutorado em História (PUC-RS)

[email protected]

André Luiz Reis da Silva (UFRGS)Doutorado em Relações Internacionais

[email protected]

Antônio Carlos Lessa (UnB)Doutorado em História das Relações

Internacionais (UnB)

[email protected]

Antônio Manoel Elibio Júnior (UFSC)Doutorado em História Social Política (Unicamp)

e pós-doutorando em Ciência Política e Relações

Internacionais (UFP)

[email protected]

Ceres Karan Brum (UFSM)Doutorado em Antropologia

[email protected]

Danilo da Cás (IESB)Doutorado em Pedagogia (Universidade Estadual

Paulista – Marília) e Doutorado em Pedagogia (USC)

[email protected]

[email protected]

[email protected]

Diorge Alceno Konrad (UFSM)Doutorado em História Social

[email protected]

Fernando da Silva Camargo (UFPEL)Doutorado em História (PUC-RS)

[email protected]

[email protected]

Graciela De Conti Pagliari (UFSC)Doutorado em Relações Internacionais (UnB)

[email protected]

Jerônimo Siqueira Tybusch (UFSM)Doutorado em Direito

[email protected]

Léo Rodriguez Peixoto (UFPEL)Doutorado em Sociologia (UFRGS)

[email protected]

Mônica Salomón (UFSC)Doutorado em Ciência Política (Universidad Autónoma

de Barcelona)

[email protected]

Norma Breda dos Santos (UnB)Doutorado em História e Política Internacional (Institut

Universitaire de Hautes Études Internationales - Suíça)

[email protected]

Reginaldo Teixeira Perez (UFSM)Doutorado em Ciência Política (Instituto Universitário de

Pesquisas do Rio de Janeiro)

[email protected]

Sebastião Peres (UFPEL)Doutorado em Educação (UFMG)

[email protected]

Thiago Rodrigues (UFF)Doutorado em Relações Internacionais

[email protected]

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Interação/Universidade Federal de SantaMaria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Departamento de Ciências Econômicas - Vol. 2, n. 2 (jul/dez. 2011) - Santa Maria, 2011

Semestral.ISSN: 2178-1842Vol. 2, n. 2 (jul/dez. 2011)

CDU 327

Ficha catalográfica elaborada porMaristela Eckhardt - CRB-10/737Biblioteca Central da UFSM

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS

07

Dimitri Silva Nunes de OliveiraRômulo Barizon Pitt

O RECONHECIMENTO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA E O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL FATORES

DOMÉSTICOS E EXTERNOS

09

27

55

97

123

141

159

Os editores

APRESENTAÇÃO

Melina Mörschbächer

OS PARTIDOS POLÍTICOS E A FORMAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL MEDIANTE A SOCIABILIDADE POLÍTICA

Valéria Ribas do Nascimento

O NOVO DIREITO INTERNACIONAL: APORTES RELACIONADOS AO CONSTITUCIONALISMO MULTINÍVEL

DE FERRAJOLI

Adriana Hartemink Cantini

OS PARADIGMAS EDUCATIVOS DA FORMAÇÃO PARA O EMPREGO E APRENDIZAGEM PERMANENTE NA UNIÃO

EUROPÉIA: O DIREITO DO TRABALHO EM CONSTRUÇÃO

Edson José Neves Júnior

RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ÍNDIA: RESGATE HISTÓRICO E POTENCIALIDADES ESTRATÉGICAS ATUAIS

Athos Munhoz Bruno Gomes Guimarães

Bruno MagnoRaoni Fonseca Duarte

Rômulo Barizon Pitt

CAMINHANDO ENTRE GIGANTES: A INSERÇÃO INTERNACIONAL DOS TIGRES ASIÁTICOS E DOS PAÍSES

DA ASEAN

Bruno Gomes GuimarãesIgor Amazarray

O EXERCÍCIO DO SOFT POWER: FUTEBOL E O CASO BRASILEIRO

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APRESENTAÇÃO

Até há pouco tempo, as relações internacionais permane-ceram na condição de assunto quase exclusivo da competência dos diplomatas e dos policy makers. O Itamaraty herdou do Império a tra-dição da diplomacia portuguesa, com posição inigualável na Amé- rica Latina.

Hoje, sem dúvida, a Universidade brasileira tem dado importante salto qualitativo. Multiplicaram-se iniciativas de ensino, pesquisa, extensão e publicações diante da agenda internacional.

A revista InterAção é fruto dessa preocupação com o interna-cional, revelando o impacto, os paradoxos, as razões, as insuficiências, a esperança e a frustração com tudo que nele brota e viceja.

A InterAção nasceu em uma reunião acadêmica, ocasião em que o docente e os discentes desejavam ampliar a oferta de oportu-nidades de participação de alunos em projetos de ensino, pesquisa e extensão, ansiavam por incentivos à formação de grupos de trabalho que integrem alunos e professores da graduação e da pós-graduação, onde a a disseminação da produção de conhecimento fosse estimula-da, como meio de expandir a inserção do curso e das relações inter-nacionais em âmbito local e regional. Simplesmente, nasceu em um momento em que todos desejavam crescer.

O primeiro e o segundo passo dessa longa caminhada foram dados. Vemos que a qualidade de uma revista concretiza-se pelos es-forços e pelos trabalhos bem direcionados. O conteúdo dos textos demonstra a exigência e o rigor intelectual de um periódico que veio para ficar.

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Neste segundo número, apresentamos os artigos previamente analisados por um corpo de pareceiristas independentes, que julgaram os textos de modo imparcial – procedimento já adotado no primeiro número e que será seguido na restante trajetória.

Agradecemos aos autores que submeteram seus artigos. E, desde já, colocamos a revista InterAção à disposição da comunidade acadêmica das Relações Internacionais, seja a brasileira, seja a mundial.

Os Editores

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ARTIGOS

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OS PARTIDOS POLÍTICOS E A FORMAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL MEDIANTE A SOCIABILIDADE POLÍTICA

Melina Mörschbächer1

Resumo

O presente artigo visa resgatar elementos teóricos que lo-calizam as instituições partidárias como centrais na constituição de um modelo democrático de Estado. A partir desse entendimento, são destacados estudos no campo da cultura política com ênfase no con-ceito de capital social. A proposta que emerge do resgate conceitual e teórico exposto é a de apresentar de que modo os partidos políticos podem vir a legitimar e justificar a sua existência por meio da pro-moção de valores e de atitudes que se configuram no âmbito da con-fiança, da cooperação e da ampliação da participação política. Posto que o nível de capital social de uma sociedade reflete na qualidade de sua democracia, há uma reflexão acerca da carência de determinadas práticas no modo de fazer política dos partidos brasileiros para que uma nova cultura política instaure-se.

Palavras-chave: Partidos políticos; cultura política; capital social; sociabilidade política.

1 Acadêmica do curso de Ciências Sociais (Licenciatura) da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).E-mail: [email protected]

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Abstract

The present article claims for theoretical elements which have the political institutions as central for the constitution of a democra-tic State. With this kind of knowledge studies in the field of Political Science are underlined with highlight in the concept of social capital. The purpose that emerges from the conceptual and theoretical rescue exposed here is presenting the way in which the political parties can legitimate and justify their existence through the promotion of values and attitudes concerning of trust, cooperation and widen of the po-litical participation. Given that the level of social capital of a society reflects in the quality of its democracy, there is a reflection about the lack of certain practices in the way of doing politics by the Brazilian parties for the establishment of a new political culture.

Keywords: Political parties; political culture; social culture; political sociability.

INTRODUÇÃO

É decorrente nos atuais debates do campo da Ciência Política um questionamento acerca da funcionalidade e, mesmo, da essencia-lidade dos partidos políticos. Nesse sentido, é válido enfatizar que não existe um consenso no que diz respeito à definição dessas instituições. A presente análise tem como objetivo central abordar um posicio-namento cuja referência principal encontra-se na área de estudos da cultura política e, especificamente, no conceito de capital social.

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O debate que se refere a novos espaços de participação - fo-mentados pós-Constituição de 1988 no Brasil -, ao estabelecer uma nova relação no âmbito de negociação política entre Estado e socie-dade civil, é um novo impulso para que se pense em formas alter-nativas de a sociedade sentir-se representada e incluída no processo político, não apenas eleitoral, mas também de gestão pública. A ta-refa de mediação dos partidos políticos, apesar de problematizada e questionada, costuma ser apresentada como insubstituível de maneira quase que consensual na academia - ao optar-se por escrever a favor de um sistema democrático de governo.

A despeito, então, de estudos que indicam novos caminhos para a organização democrática, no presente estudo, buscou-se re-constituir os porquês da existência de partidos em um projeto político que visa a uma ampla participação popular, bem como o seu papel político num sentido de qualificar tal pretensão pela descentralização do poder de gestão do que se entende como público.

Inicialmente, a tarefa foi apresentar modelos interpretativos a respeito de partidos políticos. Após a formulação desse panorama, deli-mita-se a investigação em uma perspectiva político-cultural, o que de-manda análises de posições e de comportamentos do plano partidário.

Resultante das premissas e interpretações, das quais se optou por utilizar, emergem conclusões e questionamentos no que tange a um entendimento específico de sociabilidade política – a qual en-volve um interesse por parte dos cidadãos comuns (aqui entendidos como eleitores) e, também, por parte dos agentes políticos (entendi-dos como indivíduos partidários).

O caso brasileiro é um exemplo revelador, quando o intuito é

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abordar os mais diversos aspectos do relacionamento entre represen-tantes políticos e seus representados. O país, caracterizado comumen-te como detentor de uma política clientelista e autoritária2, goza de uma defasagem significativa no que se refere à confiança nas institui-ções e naqueles que as representam (BAQUERO, 2000).

Comprovadamente, esse é um déficit que tem sido observado de modo generalizado em nossa realidade, porém, as razões particula-res que se apresentam como determinantes em realidades específicas não devem ser ignoradas. Em outras palavras, as condutas culturais justificam decisões políticas do mesmo modo que o contrário tam-bém ocorre. Sendo assim, é preciso averiguar de que modo as estru-turas partidárias são organizadas no sentido de incentivar um com-portamento político participativo, através da agregação de interesses, disponibilização de informações e de promoção da educação política.

1 Mediação no mundo político: os partidos políticos na construção de um

modelo de Estado democrático

Atualmente, cria-se um espaço para o questionamento do desempenho e, inclusive, da necessidade de existência dos partidos políticos no contexto global – a exemplo dos estudos realizados por autores como Crotty (1994) e Broder (1972) (BAQUERO, 2000).

2 Terminologias utilizadas de modo decorrente na academia com o intuito de ca-racterizar um perfil histórico brasileiro - que foi superado ou ainda se mantém – comumente não são suficientemente conceituadas (o que retrata uma carência de precisão e de delimitação do que se pretende abordar em determinados estudos).

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Não é de competência do presente estudo refutar a importância dos partidos políticos e, muito menos, apresentar opções de sistemas ins-titucionais com a suposta inexistência de tais organizações. Todavia, a problemática da funcionalidade e do real papel que têm ocupado os partidos políticos – tanto institucionalmente quanto no imaginário coletivo – tem muito a contribuir, quando o objetivo é elucidar as relações existentes entre partidos políticos e eleitores.

Para isso, é imprescindível realizar um resgate teórico para que a realidade abordada seja localiza dentro de um plano conceitual e, as-sim, possa ser analisada de modo mais consistente e legítimo. A obra “A vulnerabilidade dos partidos políticos e a crise da democracia na Amé-rica Latina”, escrita no ano de 2000 pelo cientista político Marcello Baquero, é bastante útil a esse tipo de análise por apresentar debates teóricos sobre a eficiência na tarefa de mediação no mundo político, via partidos. O estudo, que se concentra nos resultados da crise partidária na América Latina através de uma abordagem histórico-comparativa, trata da conceitualização de partido político, das funções atribuídas a esse, seu papel histórico, sua estruturação e suas ideologias.

Segundo Baquero (2000), a noção a respeito de partidos po-líticos na história mundial é apresentada sob três óticas que, certa-mente, trazem aspectos centrais para o entendimento de partido: a teoria institucional (representada por Duverger, tendo como base a expansão do eleitorado e a permanência de um grupo determinado no poder); a de situação histórica (representada por Joseph La Palombra e Myron Weiner, em que se buscam respostas em momentos histó-ricos determinados); e a do desenvolvimento (aquela que relaciona a modernização ao surgimento de partidos políticos – os quais seriam

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os responsáveis por organizar novos interesses frente ao Estado).Apesar da importância e da necessária referência às teoriza-

ções apresentadas, o autor argumenta que há uma carência de ques-tões fundamentais no que concerne à relação entre o político e o eco-nômico, assim como o reconhecimento da dinâmica e dos processos internos dos partidos políticos.

No campo da Ciência Política, ainda que não exista um con-senso a respeito da conceitualização de partidos políticos, há um posicionamento bastante decorrente que relaciona o surgimento da disciplina com a reflexão a respeito dessas instituições, reiterando a essencialidade delas para a manutenção da democracia.

Entretanto, é deveras comum na recente bibliografia da dis-ciplina apresentar posicionamentos críticos - assim como estatísticas -, retratando a desconfiança dos cidadãos nas organizações partidárias (BAQUERO E BORBA, 2008; MOISÉS, 2005). Desse modo, sur-gem estudos a respeito da cultura política com ênfase em conceitos que têm a pretensão de revelar a importância de uma relação de confiança entre os agentes, bem como desses em relação as suas instituições po-líticas – a exemplo do conceito de capital social (PUTNAM, 2007).

A constatação de uma crise dos partidos políticos e, tam-bém, da instabilidade de sistemas políticos institucionalizados é uma pauta atual no debate acadêmico. É importante ressaltar que existem controvérsias a respeito da crise das instituições políticas. No entan-to, tratando-se do caso brasileiro – ao qual este estudo refere-se -, é possível apontar autores que afirmam relativa estabilidade do sistema político nacional (LIMA, 1997; NICOLAU, 1996).

Assim, o estudo opta por reiterar a ainda existente centralida-

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de dos partidos políticos.

“Do ponto de vista teórico, a multiplicidade das funções atribuídas aos partidos políticos no pro-cesso de construção e manutenção de sociedades politicamente estáveis tem gerado um consenso de que seria impensável uma democracia sem eles” (SHATTSNEIDER apud BAQUERO, 2000).

Os partidos políticos são analisados no sentido de questionar e de verificar a realização de algumas de suas atribuições originais bem como a percepção de atores sociais a esse respeito. A relação entre re-presentantes e representados merece atenção no momento em que não se percebe a representação como legítima. A esse respeito pode ser con-siderado o caso específico brasileiro e mesmo o seu legado histórico marcado por características como o personalismo e o clientelismo.

A perspectiva de crise dos partidos políticos e a incapacidade funcional desses ganha relevância quando se constata que:

“No se trata de una crisis simplemente en la insti-tucionalidad formal de los partidos políticos, sino que se há abierto, asimismo, una profunda brecha entre la superficie, aparentemente estable, de las estructuras partidárias y la manera en que estas estructuras articulan, convocam y reflejam a los actores y las dinâmicas de la sociedad en el mo-mento presente” (CAVAROZZI e MEDINA, p. 10, 2003).

2 Os partidos políticos e o incentivo à participação: a formação de capital

social

Aceitando os partidos políticos como atores centrais na dinâ-

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mica da política democrática, é preciso optar por um entendimento de democracia. Deve-se, fundamentalmente, traçar as variáveis que compõem o comportamento político dos cidadãos. Sendo assim, es-tudos que enfatizam a existência de uma cultura política (DALTON 2000; INGLEHART, 2002; NORRIS, 2002; PUTNAM, 2007) que determina ou, ao menos, influencia fortemente os rumos da democra-cia - um sistema que visa à ampla participação popular - têm muito a somar em uma análise pretensa de orientações para o comportamento dos atores sociais que compõem sistemas de caráter democrático.

Em contrapartida a uma perspectiva de determinismo econô-mico, pode-se observar um conjunto de estudos (BAQUERO, 2003; PUTNAM, 2007) que ressaltam as diferenças na vida cívica de uma comunidade como fator fundamental para explicar o êxito ou o fracasso no processo de desenvolvimento e de democratização. Em outros ter-mos, trata-se de considerar: a participação cívica; o nível de igualdade política; a solidariedade, a confiança e a tolerância entre os indivíduos; e a natureza das associações existentes (estruturas sociais de cooperação).

Sob uma ótica de caráter dos cidadãos, essa perspectiva já se apresenta nas obras de Maquiavel, que ressalta as obrigações dos ci-dadãos (assim como Montesquieu). Essa “escola republicana” de hu-manistas cívicos é contrastada pela perspectiva liberal de Hobbes e de Locke, que não parte do princípio de que os cidadãos detenham um comportamento virtuoso, enfatizando, assim, o individualismo e os direitos individuais (PUTNAM, 2007). A comunidade cívica sustenta-se através do ideal de vantagens partilhadas. Como ressaltou Tocqueville, os cidadãos buscam o “interesse próprio corretamente entendido” (PUTNAM, 2007).

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Utilizando essa perspectiva – que considera o comportamen-to dos agentes –, toma-se como base o estudo de Robert Putnam a respeito de Capital Social. O conceito de “Capital Social” em Put-nam é construído e consagrado através de sua obra “Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna”. A obra é centrada na compreensão do desenvolvimento e do desempenho das instituições democráticas. De início, Putnam se concentra em examinar a nova organização política da Itália, na primeira metade dos anos 1970, que determinou a criação de governos regionais – os quais passaram a ter autoridade sobre uma grande parcela dos assuntos públicos.

Após uma análise inicial, que inclui um estudo comparativo dessa nova dinâmica no norte e no sul do país – refletindo, assim, reali-dades muito distintas de desenvolvimento –, propõe-se um significado mais amplo das constatações feitas. São abordados aspectos fundamen-tais da democracia, do desenvolvimento econômico e da vida cívica.

Ao considerar fatores de cultura política, há um resgate de teorias e de autores que enfatizam o ideal de comunidade e de par-ticipação cívica. O autor, através de várias técnicas de pesquisa, visa localizar a importância da cultura e da participação políticas (a natu-reza dessa) no processo de desenvolvimento. O êxito de um governo democrático não poderia, pois, resumir-se ao crescimento econômico ou ao incremento tecnológico.

Dentro dessa discussão sobre desenvolvimento e modernida-de, regiões cívicas e não-cívicas, emerge o conceito de Capital Social – que se refere a “características da ação social, como confiança, nor-mas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da socie-dade, facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM, 2007).

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Putnam considera a incapacidade dos indivíduos de organi-zação e de cooperação para o mútuo proveito, mas apresenta, tam-bém, alternativas e práticas que facilitam a confiança coletiva. Consi-derando que os indivíduos reagem racionalmente ao contexto em que vivem – reforçam determinadas práticas -, existiriam ciclos viciosos e virtuosos no que tange ao Capital Social.

O Capital Social, como já apresentado, pode ser expresso de diversas formas e através de organizações (e orientações) distintas. É importante identificar o modo como se processam tais comporta-mentos, através de quais associações os interesses de uma sociedade podem ser mobilizados e, por fim, transformados em um sistema de confiança mútua e de ganho conjunto.

Putnam em sua teorização afirma que membros de associações estão mais aptos a desenvolver consciência política e confiança social.

“Diz-se que as associações civis contribuem para a eficácia e a estabilidade do governo democrático, não só por causa de seus efeitos ‘internos’ sobre o individuo, mas também por causa de seus efeitos ‘externos’ sobre a sociedade. No âmbito interno, as associações incutem em seus membros hábitos de cooperação, solidariedade e espírito público. (...). No âmbito externo, a ‘articulação de interesses’ e a ‘agregação de interesses’, como chamam os cien-tistas políticos deste século, são intensificadas por uma densa rede de associações secundárias” (pp. 103-104, 2007).

O autor também distingue quais as atividades mais propensas a gerar a eficácia de um governo democrático. Ademais, Putnam consi-dera as intituições às quais os italianos dão maior grau de importância

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- ao decorrer do período abordado em seu trabalho -, que são: igrejas, sindicatos e partidos políticos, apregoando que a primeira não colabora para a formação de capital social, a segunda o faz, enquanto a terceira, as organizações partidárias, pode ou não gerar esse benefício social.

Deixando de lado, nesse momento, outros âmbitos participa-tivos que o autor expõe e analisa – a exemplo de clubes desportivos, atividades culturais e recreativas – e também atitudes que fomentam tal interesse pela vida em sociedade – número de leitores de jornal, comparecimento às urnas, votação em referendos, entre outros –, en-fatiza-se a possibilidade das organizações partidárias apresentarem-se como elementos constitutivos de uma sociedade mais democrática. Considerando que o sucesso da democracia está diretamente associa-do aos níveis de capital social de determinada realidade (PUTNAM, 2007), Baquero e Borba argumentam:

“Atualmente, a ciência política continua, prepon-derantemente, a enfatizar as instituições políticas, principalmente os partidos, como essenciais para o fortalecimento democrático. Se, por um lado, este posicionamento é quase unânime, por outro lado, não há um consenso sobre as qualidades e a influência que os partidos têm tido na promoção de uma cultura política mais democrática ou mais participativa” (2008).

3 Sociabilidade política: a dívida dos partidos políticos para com a socie-

dade brasileira

Pode-se dizer que a participação dos cidadãos em assuntos políticos é o que legitima a existência de um sistema democrático.

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Estudos recentes no campo das ciências sociais apresentam, porém, um panorama do comportamento brasileiro, caracterizado por uma rejeição à política e, princialmente, aos partidos políticos (BAQUE-RO, 2000; BAQUERO E BORBA, 2008).

Existem perspectivas distintas para entender a problemática da democracia brasileira - e, também, a nível mundial. Atribui-se, frequentemente, a responsabilidade por um sistema

despolitizado a questões de engenharia política - apregoando revisão e mudança das regras eleitorais e, até mesmo, do sistema elei-toral como um todo. Esse ideal de “aprendizagem institucional” é de-fendido por autores como Rustow (1970), Miller e Seligson (1994) e Karl e Schmitter (1993) (INGLEHART e WELZEL, 2009). Outra variável destacada é a que encara o legado histórico como constitutivo de uma mentalidade de subordinação e não disposta ao enfrentamen-to político reivindicatório.

Todavia, a análise com base na cultura política e, mais especi-ficamente, no conceito de capital social possibilita aqui adentrar em um aspecto mais direcionado, mas que se apresenta como elemen-to estruturante central da democracia – como foi apresentado neste artigo, até então. Trata-se da forma como os partidos políticos têm retribuído a seus representados aquilo que se constitui como maior sentido da democracia, o espaço para a participação política. Sendo o partido político uma instituição central dentre aquelas que confor-mam a dinâmica do Estado democrático, espera-se desse a criação do elo entre o Estado e a sociedade civil.

O historiador Agulhon (1968) entende sociabilidade como uma associação que independe de sua existência perene ou efêmera e

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de seu nível de institucionalização. O indivíduo participa de grupos onde se insere em relações amplas e, concomitantemente, restritas. Envolve-se, então, em relações sociais gerais estruturadas pela orga-nização e em relações mais específicas, que dizem respeito ao modo como se dá a convivência com os demais participantes do grupo.

Posto que a sociabilidade é a dinâmica organizatória da vida, a tese aqui apresentada infere que a forma como se organizam os partidos políticos determina se esses se constituem, ou não, enquanto propagadores de características como a confiança, a cooperação e a participação na vida comunitária.

Atualmente, fenômenos como os partidos denominados ca-tch-all têm demonstrado a postura negativa que os partidos políticos têm assumido – a qual tem base estritamente no interesse eleitoral. O teórico Otto Kirchheimer afirma que essa nova configuração par-tidária implica em menor ênfase na ideologia política, forte apoio a lideranças, menor participação de militantes, inexistência de uma orientação específica (a exemplo da defesa de uma classe ou de uma religião) e busca para conquistar um grupo volumoso e heterogêneo de possível apoio eleitoral (LAPALOMBARA e WEINER, 1966).

A proposta, então, a partir das constatações apresentadas no presente trabalho, é de que a organização partidária receba maior ên-fase nos estudos da Ciência Política. Deve-se averiguar de que modo os partidos brasileiros tem retribuído aos seus eleitores os votos que lhes garantem legitimidade como representantes de uma gama de in-teresses e de demandas da sociedade

brasileira. Para tal fim, devem ser analisadas, tanto de modo quantitativo quanto qualitativo, as atitudes dos partidos políticos no

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sentido de incentivar a participação política, de disponibilizar a in-formação necessária para que os cidadãos tenham condições de iden-tificar seus interesses comuns e compartilhados, tendo como objetivo final entender a dinâmica política – essa com o dever de fazer jus ao princípio de participação democrática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, é possível constatar uma defasagem sig-nificativa no que diz respeito à confiança e à participação em institui-ções partidárias, quando se considera o Estado brasileiro. O desinte-resse crescente nessa forma tradicional de associação – em ambientes de caráter democrático – comumente é associado a características de uma nova realidade que tende a configurar-se em escala global, à modernização, que apresenta valores que transcendem questões ma-teriais da existência humana (INGLEHART e WELZEL, 2009). Nesse sentido, afirma-se que as associações partidárias possuem uma estrutura hierárquica que não condiz com os novos interesses dos ci-dadãos democráticos.

Todavia, estudos recentes como o de Baquero e Borba (2008) esclarecem que na realidade brasileira o déficit de participação não se encontra restrito às organizações partidárias. O estudo realizado no município de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, indica que os indivíduos tampouco têm procurado por outros âmbitos parti-cipativos. Tal tendência reflete, de fato, uma crescente apatia política.

Assim, a ideia que se pretendeu referendar neste estudo sobre cultura e participação políticas foi que as alternativas devem emergir

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dos próprios partidos políticos, como meio de resolver uma crise de legitimidade, assim como uma crise democrática mais ampla – a qual implica na busca de maiores condições de sociabilidade política, de igualdade de direitos e de tolerância cultural.

É necessária uma busca no sentido de identificar quais as pos-sibilidades de partidos políticos conformarem-se, enquanto organi-zações mais horizontais e receptivas em relação a demandas sociais e a interesses coletivos. Mas também espera-se que tal instituição tenha uma iniciativa no sentido de fomentar uma nova cultura polí-tica. O estudo de Robert Putnam (2007) faz algumas assertativas no que concerne a práticas individuais que podem sinalizar mudanças, em um sentido positivo, nos níveis de capital social, destacando – a sua época e contexto específicos – o acesso à informação (leitura de jornais) e o comparecimento a votações alternativas às eleições repre-sentativas (a exemplo de referendos).

É importante compreender as características da sociedade brasileira para, então, tipificar quais as atitudes que levam os indiví-duos a tornarem-se mais interessados em assumir uma estratégia de ganho conjunto, cooperando uns com os outros. O resgate de orien-tações específicas é essencial, quando se compreende que a cultura política “(...) é produto tanto da história coletiva do sistema político como da história de vida dos membros desse sistema. Sendo assim, está enraizada nos acontecimentos públicos e nas orientações priva-das” (BAQUERO e PRÁ, 2007).

Constatada uma série de atitudes que podem levar a mudan-ça de postura política em uma sociedade, a consequência lógica é a de identificar quão disseminado tal comportamento encontra-se no

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meio partidário e quais as reais possibilidades dessas emergirem em configurações atuais da política brasileira. O capital social deve ser, portanto, percebido como um meio de alcançar o desevolvimento, que não se restringe a mero desenvolvimento econômico, refletindo, assim, fortemente nas configurações políticas, sociais e culturais de dada sociedade.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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O NOVO DIREITO INTERNACIONAL: APORTES RELACIONADOS AO CONSTITUCIONALISMO

MULTINÍVEL DE FERRAJOLI

Valéria Ribas do Nascimento1

O problema fundamental em relação aos direitos do homem, não é tanto o de justificá-lo, mas o de protegê-lo. (Norberto Bobbio)

Resumo

O estudo do Direito na contemporaneidade é marcado prin-cipalmente por características evidenciadas no período Pós-Segunda Guerra Mundial, sendo cabível a firmar que está surgindo o que se pode denominar de novo Direito Internacional para a pessoa hu-mana ou para a humanidade como um todo. O “jus gentium” bus-ca a superação do positivismo jurídico desacreditado, reconhecendo que acima da vontade dos Estados está a consciência humana. Nes-se mesmo sentido, Luigi Ferrajoli afirma que o constitucionalismo tradicional, voltado apenas à perspectiva interna comporta uma au-sência de eficácia nos diversos níveis de poderes estatais levando ao

1 Doutora em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), com período de pesquisa na Universidade de Sevilha; Mestre em Direito Público pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC); Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Professora Adjunta de Direito Constitucional e Direito Comunitário e da Integração da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Integra o Grupo de Pesquisa Núcleo de Direito Informacional (NUDI-UFSM), inscrito no CNPq. Endereço para correspondência: [email protected].

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risco de fazer das Leis Fundamentais simples fachadas, com meras funções de “mistificación ideológica del conjunto”. Justamente com o intuito de responder a esses problemas, Ferrajoli elaborou a teoria que leva o nome de “garantismo”, nascida no direito penal como uma constatação ao desrespeito dos direitos humanos e fundamentais. Posteriomente, apresenta o constitucionalismo multinível, como uma prosposta voltada a necessária conexão entre o direito constitucional e o internacional. Destaca-se que não se pretende esgotar o assunto, mas sim apresentar um outro horizonte que deve ser trabalhado na perspectiva cosmopolita.

Palavras-chave: Novo Direito Internacional, consticionalismo, hu-manidade, direitos humanos e fundamentais.

Abstract

Contemporary law studies are mainly marked by characte-ristics of post-Second World War period, and it is possible to state that a new International Law has been emerging for people or for humanity as a whole. The jus gentium seeks to overcome the discredi-ted legal positivism, and it recognizes that above the will of the States there is the human conscience. In this sense, Luigi Ferrajoli states that the traditional constitualism, that is only directed to the internal perspective, comprises an absence of efficacy in the several levels of state powers, raising the risk of taking Fundamental Laws as a mere facade with the simple role of “mistificación ideológica del conjunto”. In order to reflect on this point, Ferrajoli has created a theory called

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garantism from criminal law as evidence of disrespect to human and fundamental rights. Later, he presents the multilevel constitutiona-lism as a proposal aimed at linking constitutional and international law. We do not intend to exhaust the subject, but to present another view to be considered in the cosmopolitan perspective.

Keywords: New International Law, constitucionalism, humanity, hu-man and fundamental rights.

INTRODUÇÃO

Inicialmente vale salientar que para Ferrajoli, a teoria garantista pode ser percebida através de diferentes concepções, baseando-se na re-definição do modelo normativo de direito, da crítica do direito e da po-lítica (FERRAJOLI, 2000, p. 851-2). Todas essas abordagens buscam fugir do legalismo e avançar em termos democráticos. Ademais, para fugir do que ele chama de “anarquia planetária”(FERRAJOLI, 2007, p. 554), propõe uma ordem internacional baseada em um modelo federa-do, com determinadas alterações no conjunto atual da Organização das Nações Unidas. Busca a defesa de uma esfera pública global heterôno-ma, baseando-se em um aumento da descentralização de poder.

A formação de uma nova esfera pública seria pleiteada por uma democracia global, almejada pelo lado oposto àquele que foi se-guido na construção da democracia constitucional dos ordenamen-tos nacionais. Ele defende uma refundação do direito internacional através de vínculos entre legislações que estabelecem repartições em diferentes níveis – multiníveis – de competência. Dentre os empe-

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cilhos ao constitucionalismo multinível, Ferrajoli coloca a indispo-nibilidade das grandes potências e dos impérios multinacionais em submeterem-se a limitações de qualquer tipo.

A dúvida que persiste ao ler a obra do autor italiano é sobre o progressivo “constitucionalismo muttilivello senza Stato” (FERRA-JOLI, 2007, p. 558). Não existe empecilho sobre a correta exposição do autor no tocante à construção de uma esfera pública global e ao reconhecimento do pluralismo dos ordenamentos. Entretanto, mos-tra-se complicado concordar com a teoria de um constitucionalismo sem Estado. O papel do Estado é importante ao constitucionalismo, mesmo que seja em níveis diferenciados, como quer Ferrajoli. Quiçá, o desafio seja identificar qual o nível e o comprometimento de cada Estado neste processo.

1 O garantismo e o constitucionalismo

A teoria garantista apresenta três acepções diversas, mas re-lacionadas entre si: “modelo normativo de direito; teoria do direito e crítica do direito; filosofia do direito e crítica da política”. Segundo a primeira, o garantismo designa um modelo normativo do direito, precisamente porque ligado ao direito penal, no que toca a estrita legalidade, princípio basilar do Estado de Direito que, no plano epis-temológico, se caracteriza como um sistema cognoscitivo ou de poder mínimo; no plano político, como uma técnica de tutela capaz de mi-nimizar a violência e maximizar a liberdade; no plano jurídico como um sistema de vínculos impostos à vontade punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. “En consecuencia, es garantista

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todo sistema penal que se ajusta normativamente a tal modelo y lo satisface de manera efectiva” (FERRAJOLI, 2007, p. 851-2).

Mas, essa acepção, apontada por Ferrajoli, deve ser observada a partir de graus, ou seja, segundo ele “al tratarse de um modelo límite, será preciso hablar, más que de sistemas de garantistas o antigarantis-tas tout court, de grados de garantismo (...)”(FERRAJOLI, 2007, p. 851-2). Isso quer dizer que, se os princípios constitucionais são efeti-vamente implementados, existe um grau alto de garantismo, enquanto que, se não são respeitados, ocorre um baixíssimo grau de garantismo. Alem disso, pode-se medir a bondade de um sistema constitucional mediante os mecanismos de invalidação e reparação idôneos para as-segurar a normatividade dos mencionados direitos. Daí que é men-cionada uma máxima: “una Constitución puede ser avanzadísima por los principios y los derechos que sanciona y, sin embargo, no pasar de ser un pedazo de papel se carece de técnicas coercitivas (…)”(FER-RAJOLI, 2007, p. 852). Isso significa a necessidade de garantias que permitam o controle e a neutralidade das funções estatais em busca de um direito legítimo. Em outro sentido, o grau de garantismo é medido pelo grau de efetividade das normas constitucionais.

A segunda acepção que trata da teoria e crítica do direito de-signa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas não somente entre si, mas também com relação à existência ou vigência das normas. Nessa linha de orientação, a palavra garantis-mo expressa uma aproximação teórica que mantém separados o ser e o dever ser no direito, incluindo uma questão teórica central, baseada na divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos e práticas operativas (FERRAJOLI, 2000, p. 851).

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Sergio Cademartori refere que, nesta segunda abordagem, garantismo direciona-se às teorias da validade, da efetividade e da vi-gência normativa, compreendidas como diferentes entre si. Isto é que permite a percepção da diferença entre “ser e dever-ser” no direito, verificando-se a dissonância existente entre os modelos normativos (tendencialmente garantistas) e as práticas efetivas (tendencialmente antigarantistas) como seu problema central. Quanto aos primeiros, pode-se dizer que são válidos, mas ineficazes e, quanto às práticas, são inválidas, porém eficazes. Assim, Ferrajoli apresenta redefinições dos conceitos tradicionais de vigência, validade, legitimidade e eficácia (CADEMARTORI, 2006, p. 97-8).

É sabido que existem diferentes conceitos para vigência, vali-dade e eficácia, mas, para muitos dos mais reputados autores, a noção de validade corresponde à noção simplista de existência jurídica, ou seja, é fruto de um procedimento previsto em norma superior (KEL-SEN, 1998; HART, 2007; BOBBIO, 2003). Porém, esse critério não leva em consideração o fato de que o Estado Constitucional incor-pora princípios étíco-políticos que exigem uma redefinição com base em critérios de legitimidade internos. Assim, o garantismo estabelece uma importante distinção entre quatro predicados que podem se im-putar às normas: justiça, vigência, validade e eficácia (efetividade):

a) uma norma é justa quando responde positi-vamente a determinado critério de valoração ético-político (logo, extrajurídico);b) uma norma é vigente quando é despida de vícios formais; ou seja, foi emanada ou pro-mulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo com o procedimento prescrito;

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c) uma norma é válida quando está imuni-zada contra vícios materiais; ou seja, não está em contradição com nenhuma norma hierar-quicamente superior;d) uma norma é eficaz quando é de fato ob-servada pelos seus destinatários (e/ou aplica-da pelos órgãos de aplicação) (CADEMAR-TORI, 2006, p. 101-2).

Segundo Cademartori, a relevância dessa distinção está no

fato de que as qualidades apresentadas são totalmente dissociadas en-tre si, sendo a finalidade da distinção justamente salientar a diferença entre vigência e validade. “Por exemplo, uma norma pode ser justa e no entanto não observada (não eficaz) e vice-versa, uma norma pode ser observada embora injusta”. Para Ferrajoli, ainda pode acontecer que “uma norma seja vigente e eficaz mesmo sendo inválida, como pode acontecer que uma norma seja válida mas nem por isso eficaz” (CADEMARTORI, 2006, p. 102).

Já a terceira acepção se liga à filosofia do direito e da política. Logo, o garantismo designa uma filosofia política que desperta no di-reito uma carga de justificação externa conforme os bens e interesses cuja tutela e garantia constitui precisamente a finalidade de ambos. Com efeito, neste último sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre um ponto de vista interno e outro externo, quer dizer, entre ser e dever ser (FERRAJOLI, 2000, p. 853).

Pelo que foi exposto, é possível verificar que Ferrajoli não nega um certo viés positivista, denominado-se como positivista crí-tico. Essa posição é diversa daquela concebida por Gustavo Zagre-belsky, que nega a contribuição iluminista ao movimento que hoje se

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denomina neoconstitucionalismo (ZAGREBELSKY, 2007)2. Ao contrário, o garantismo de Ferrojoli caracteriza-se por ser

uma crítica do direito positivo vigente, não meramente no panorama externo, mas também no interno, posto que ataca aspectos relaciona-dos à efetividade e à validade. Como afirma o próprio autor:

Este planteamiento, que bien podemos llamar po-sitivismo crítico, se refleja en el modo de concebir el trabajo del juez e del jurista, y pone en cuestión dos dogmas del positivismo dogmático: la fidelidad del juez a la ley y la función meramente descriptiva y avalorativa del jurista en relación con el derecho positivo vigente (FERRAJOLI, 2000, p. 872).

A partir das reflexões apontadas, a estrutura garantista con-

siste em incluir valores como limites ou deveres em níveis mais altos do ordenamento constitucional, com a finalidade de limitar os demais poderes do Estado. Mas, uma vez incorporados aos níveis mais altos,

2 Miguel Carbonell acredita que existem três distintos níveis a serem analisados ao tratar de neoconstitucionalismo. Dentre eles está a época histórica, pois este novo movimento constitucional pretende explicar um conjunto de textos constitucionais que surgem depois da Segunda Guerra Mundial, mais particularmente a partir dos anos setenta do século XX. Em segundo lugar, estão as práticas jurisprudenciais, que exigem dos juízes novos parâmetros interpretativos. Aqui, entram em jogo técnicas hermenêuticas apoiadas em princípios constitucionais e em diferentes teorias, como a da ponderação, a da proporcionalidade, a da razoabilidade, a da maximização dos efeitos normativos dos direitos fundamentais, dentre outras. O terceiro e último nível está ligado a novos desenvolvimentos teóricos, que partem do sentido material de textos constitucionais para tentar explicar os fenômenos jurídicos. Podem-se citar várias doutrinas, como por exemplo, a de Ronand Dworkin, Robert Alexy, Gustavo Zagrebelky, Luigi Ferrajoli, Carlos Nino e Luis Prieto Sanchís (CARBONELL, 2007).

poderes

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os valores são confiados aos órgãos judiciais para apreciação. De fato, o poder de disposição através de valorações livres,

que no Estado Absoluto era admitido desde baixo pelos fatos, no Estado de Direito encontra-se excluído desde baixo, mas deve ser admitido a partir de cima. “En todos casos, con los valores no caben exorcismos: si se expulsan por la puerta, entran de nuevo por la ven-tana. Y en el fondo está bien que así sea”( FERRAJOLI, 2000, p. 872). Ferrajoli quer dizer que estas aporias do garantismo não têm nada de supreendentes; apenas exigem que se criem distâncias entre as pro-messas normativas e as práticas efetivas do ordenamento.

Essa reinterpretação do contratualismo clássico, funciona como um esquema de justificação do Estado, enquanto instrumento de tutela dos direitos fundamentais. Nesse sentido, para Ferrajoli, as diversas crises pelas quais passa o Estado, como por exemplo a crise do princípio da legalidade, da estrutura do Estado de Bem-Estar So-cial e do próprio Estado Nacional, não podem dar margem a nenhum tipo de descodificação, deslegislação ou de desregulamentação, mas, ao contrário, deve ocorrer uma aproximação do direito ao concreto funcionamento das instituições jurídicas. Por isso, o direito relaciona--se com uma realidade – não natural, mas artificial - construída atra-vés dos homens, os quais têm responsabilidade com a humanidade. A alteração em diversos planos do modelo positivista clássico, proposta por Ferrajoli, além de abarcar a teoria do direito, em que propõe uma revisão aos planos da existência, validade e eficácia, como foi ora de-monstrado, alcança também o plano da teoria política, em que há uma revisão da concepção puramente procedimental da democracia e o reconhecimento da dimensão substancial.

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Para Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori e Sergio Cademartori quando se trata da relação entre Estado de Direito e Democracia deve-se ter sempre presente a associação realizada por Norberto Bobbio e Luigi Ferrajoli, sendo que a natureza de tal vín-culo diz respeito ao alcance do conceito de democracia. Bobbio con-sidera que é preciso não confundir Estado de Direito e democracia. Em que pese um juízo a respeito da segunda, dever sempre considerar a existência ou não da primeira. Para Ferrajoli, que trabalha a partir das noções de Bobbio, ocorre a ampliação do conceito de Estado de Direito cruzando todos os poderes à tutela substancial de direitos: “o Estado de direito não surge só historicamente antes do democrático (...), mais do que isto, este Estado é axiologicamente anterior ao Es-tado democrático” (CADEMARTORI; CADEMARTORI, 2006, p. 145). Na verdade, os juristas brasileiros estão chamando a atenção para o aspecto substancial da democracia, defendido por Ferrajoli.

Se comprende (...) que una tal dimensión substan-cial del Estado de derecho se traduce en dimensi-ón sustancial de la propria democracia. En efecto, los derechos fundamentales constituyen la base da la moderna igualdad, que es precisamente una igualdad en droits, en cuanto hacen visibles dos características estructurales que los diferencian de todos los demás derechos, a empezar por el de propiedad: sobre todo su universalidad, es decir, el hecho de que corresponden a todos y en la mesma medida, al contrario de lo que sucede con los de-rechos patrimoniales, que son derechos excludendi alios, de los que un sujeto puede ser o no titular y de los que cada uno es titular con exclusión de los demás; en segundo lugar, su naturaleza de indis-ponibles e inalienables, tanto activa como pasiva, que los sustrae al mercado y a la decisión política,

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limitando la esfera de lo decidible de uno y otra y vinculándola a su tutela y satisfacción (FERRA-JOLI, 2006, p. 23).

Dessa forma, a constitucionalização dos direitos fundamen-tais serve para injetar uma dimensão não apenas formal, mas subs-tancial no próprio direito - como ciência social - e na democracia. Ferrajoli traz algumas redefinições para soberania popular: “una ride-finizione della sovranità popolare: a) come garanzia negativa; b) come somma dei diritti fondamentali” (FERRAJOLI, 2007, p. 9). É patente a superação da democracia apenas em sua perspectiva representativa pelo voto nas urnas; assim, mesmo referindo o primeiro significado como representativo da democracia política, surge o segundo signi-ficado compatível com o paradigma democrático constitucional que está associado ao direitos fundamentais. Para Ferrajoli:

(...) La formula la sovranità appartiene al popolo vuele quinde dire, cioè di tutte le persone di cui il popolo si compone: appartiene, in brevi, a tutti e a ciascun cittadino, in quanto equivale alla somma di quei poteri e contro-poteri di tutti – i diritti politici, i diritti civili, i idiritti de libertà e i diritti sociali – che sono i diritti fondamentali constitucionalmente stabiliti (…) (FERRAJOLI, 2007, p. 9).

Esses direitos fundamentais não estão total disposição dos cidadãos, mas justamente devem ser analisados no caso concreto. E, precisamente, porque estão previstos na Constituição, podem ser usa-dos também pelo mercado e pela política, formando “la ‘esfera de lo indecidible que’ y de lo ‘indecidible que no”; atuando como fatores não somente de legitimação, mas também e, sobretudo, como fato-

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res de deslegitimação das decisões e das não decisões (FERRAJOLI, 2006, p. 24). Aqui entra, novamente, a discussão em torno do papel dos juízes e da sua legitimação democrática.

Para Ferrajoli, atualmente, a sujeição do juiz à lei já não é como no Estado Legislativo, baseado no velho paradigma positivis-ta. Ao contrário, a jurisdição constitucional deve ser pautada pela lei válida ou coerente com a Constituição. Ademais, esta legitimação do Poder Judiciário não tem nada a ver com a democracia política, ligada à representação. “No deriva da la voluntad de la mayoría, de la que asimismo la ley es expresión”. O fundamento é unicamente a intangi-bilidade dos direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2006, p. 27). Essa pertinente colocação quer dizer que a legitimação democrática dos juízes deriva da própria função de garantidor dos direitos fundamen-tais, em que se baseia a ideia de democracia substancial.

Nessa linha de orientação, os princípios da igualdade e da legalidade se unem - “como la otra faz de la misma medalla – con el segundo fundamento político de la independencia del juez: su función de averiguación de la verdad procesal, según las garantías del justo proceso.”(FERRAJOLI, 2006, p. 27).

Há que se concordar com o autor quando se refere ao im-portante papel dos juízes nas democracias constitucionais contem-porâneas, principalmente nos países “em via de desenvolvimento”, em que o processo político eleitoral é muitas vezes dominado por fatores econômicos e pela mídia, nem sempre neutra e imparcial. Observa-se que Ferrajoli, mesmo estando inserido em um contexto cultural diferenciado, em um continente já em franco processo de integração, critica as doutrinas procedimentalistas e consensualistas.

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Veja-se longa transcrição da obra:

Aquí, de nuevo, no juega el principio de mayoría. Es más, no sólo resulta extraño, sino que está en contradicción con el fundamento específico de la legitimación del poder judicial. Ninguna mayoría puede hacer verdadero lo que es falso, o falso lo que es verdadero, ni por tanto, legitimar con su consenso una condena infundada por haber sido decidida sin pruebas. Por eso me parecen inacep-tables y peligrosas para las garantías del justo pro-ceso y, sobre todo, del proceso penal las doctrinas consensualistas y discursivas de la verdad que – na-cidas en el contexto de disciplinas muy diferentes, como la filosofía de las ciencias naturales (Kuhn), o la filosofía moral o política (Habermas) – algu-nos penalistas y procesalitas querrían importar ahora en el proceso penal, quizá para justificación de esas instituciones aberrantes que son las nego-ciaciones sobre la pena. En efecto, ningún consen-so – ni el de la mayoría, ni el del imputado – pue-de valer como criterio de formación de la prueba. Las garantías de los derechos no son derogables ni disponibles. Aquí, en el proceso penal, no valen otros criterios que los ofrecidos por la lógica de la inducción: la pluralidad o no de las pruebas o confirmaciones, la ausencia o presencia de contra-pruebas, la refutación o no de las hipótesis a la de la acusación (FERRAJOLI, 2006, p. 27-28).

É necessário deixar claro que as divergências entre as posturas substancialistas (que abrangem as questões de Estado voltadas aos conteúdos materiais da Constituição, atentando à mudança no “status quo” da sociedade, defendendo o papel da justiça constitucional na efetivação dos direitos fundamentais) e procedimentalistas (que aco-plam a noção de democracia procedimental, baseada em Habermas e no ideal do consenso) não devem ser entendidas como oposições

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radicais, a ponto de se pensar que o substancialismo não é pluralista ou que o procedimentalismo é baseado em formalismos. “Também não se pode pensar que uma é democrática, e a outra não, ou que os procedimentalistas não estão preocupados com a concretização dos direitos fundamentais e com a preservação da Constituição”. Na ver-dade, como Streck argumenta, os caminhos é que são diferentes, por-que calcados em paradigmas filosóficos distintos (STRECK, 2009, p. 35-36).

Partindo dessa postura substancialista, Ferrajoli, igualmen-te, refere que o modelo garantista está sendo continuamente atacado; primeiro, pela própria incoerência e falta de plenitude gerada pelas constantes violações a direitos fundamentais; segundo porque o Es-tado Democrático de Direito, não consegue dar conta das demandas por direitos sociais, difusos e coletivos; e por último, pela alteração no sistema de fontes do direito, já que existe o ingresso de legislações in-ternacionais nos ordenamentos internos (FERRAJOLI, 2006, p. 30). Pelo exposto, percebe-se que estão ocorrendo importantes alterações na estrutura do constitucionalismo que está na base da função mesma do direito, como sistema de garantias (FERRAJOLI, 2002, p. 53). Por isso, é urgente que a cultura jurídica avance, para um processo de integração internacional, mas com a devida atenção aos pilares constitucionais.

2 Por um Constitucionalismo de direito internacional ou por um direito

internacional voltado ao constitucionalismo?

É sabido que o paradigma constitucional nasceu e perma-neceu, até o momento, atrelado à forma do Estado Moderno. No

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entanto, segundo Ferrajoli, esta ligação entre Estados, Constituição e garantia de proteção aos direitos fundamentais é totalmente con-tingente e não reflete nenhuma necessidade teórica (FERRAJOLI, 2002, p. 53).

Naturalmente, como já foi mencionado neste trabalho, a glo-balização acarretou a urgência de se pensar novos padrões para en-frentar as diferentes crises pelas quais passa o Estado e o constitucio-nalismo. Nessa perspectiva, Ventura expressa que, atualmente, existe uma “caixa de ressonância de eventos no plano global”. Sabe-se que os governos condicionam-se mutuamente pelas organizações inter-nacionais e, além disso, pela atuação das corporações transnacionais. Da mesma forma, os indivíduos reagem a fatos e gestos, devido à facilitação da comunicação pelos meios tecnológicos, principalmente à internet. Os movimentos sociais participam em redes cada vez mais amplas. Assim, o papel do direito internacional atua justamente na busca por uma passagem da “opinião pública” para a “esfera públi-ca”, ou seja, na produção de uma tecnologia jurídica capaz de dotar de maior legitimidade o processo de tomada de decisões na esfera mundial (VENTURA, 2009, p. 18; VENTURA, 2003; VENTURA, 2008,. p. 223-240.

Da mesma forma, Ferrajoli expõe certos motivos para se de-senvolver um constitucionalismo de direito internacional, já que, para ele, as crises do Estado podem ser superadas em sentido progressivo, com uma despotencialização e deslocamento para o plano internacio-nal das bases do constitucionalismo: “não apenas as sedes da enuncia-ção dos princípios, como já aconteceu com a Carta da ONU e com as Declarações e Convenções sobre direitos humanos, mas também de

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suas garantias concretas.” (FERRAJOLI, 2002, p. 53). Para corroborar suas afirmações, Ferrajoli coloca alguns ar-

gumentos de Francisco de Vitoria, como a hipótese do “totus orbis” (mundo inteiro) – a humanidade, no lugar dos Estados, como refe-rencial unificador do direito. Para o jusfilósofo contemporâneo esta possibilidade hoje pode ser realizada por meio da elaboração de um constitucionalismo mundial, apto a oferecer a tutela das várias Car-tas de direitos fundamentais. Estes documentos devem ser levados a sério como cultura jurídica e política, cuja garantia deve ser feita pela ONU e pelos Estados que dela fazem parte (FERRAJOLI, 2002, p. 54). É interessante pontuar que Ferrajoli destaca a necessidade de despotencialização dos Estados para que o direito internacional se fortifique. A questão que se apresenta é se não seria vantagem, em curto prazo, a fortificação dos Estados e o desenvolvimento do di-reito internacional sob o viés neoconstitucional, ou seja, atentando pela primazia dos direitos e das garantias substanciais inseridas nas próprias Constituições estatais.

Ferrajoli reitera que não se está pensando de forma alguma num improvável governo mundial. Mas, simplesmente, imagina-se a perspectiva indicada há mais de cinquenta anos por Kelsen, em seu livro “La paz por medio del derecho”, no qual se desenvolveu uma li-mitação efetiva da soberania dos Estados através dos instrumentos de garantias jurisdicionais contra violações à paz e aos direitos humanos ou fundamentais (FERRAJOLI, 2002, p. 53).

Segundo as bases kantianas, Ferrajoli defende a antinomia entre o direito e a guerra, chegando a dizer que há uma contradição de bases terminológicas:

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(...) La guerra può essere giustificata com ragio-ni extra-giuriche, di tipo economico, o politico o perfino morale. Ma non può mai essere qualificata legale, per la contraddizione che non lo consente tra diritto e guerra. Il diritto, infatti, è regolazio-ne dell’uso della forza, laddove la guerra – al pari della criminalità omicida e di ogni altra form di violenza selaggia – è violenza sregolata. Per questo, poiché la sola foza qui potulata come permessa dal diritto è quella sottoposta a regole, la guerra, in quanto uso sregolato della forza, è, all`interno di qualsiasi ordinamento giuridico, vietata (FERRA-JOLI, 2007, p. 499).

Assim, o direito é um instrumento de busca pela paz, isto é, deve ser uma técnica para solução pacífica das controvérsias. Porém, obviamente que ainda existe um longo caminho pela frente para que essa paz se efetive.

Vale observar a seguinte citação de Vitoria: “sendo uma repú-blica parte do mundo inteiro..., acredito que, se a guerra for útil a uma só província ou república, mas danosa para o mundo ou para a cristan-dade, por isso mesmo tal guerra é injusta” (FERRAJOLI, 2002, p. 56).

Ferrajoli sublinha quatro sugestões pontuais, começando por uma reforma da Corte Internacional de Justiça de Haia, atualmente, com uma atuação de pouquíssima relevância. Dentre as propostas es-tão: a) aumento de competência que gira apenas em torno das con-trovérsias entre Estados, sendo que a extensão deve abarcar também os julgamentos de responsabilidade em matéria de guerras, ameaças à paz e violações dos direitos fundamentais; b) obrigatoriedade da sua jurisdição, hoje ainda subordinada à aceitação preventiva dos Estados; c) reconhecimento, também, aos cidadãos da capacidade postulatória perante a Corte; d) introdução da possibilidade de responsabilização

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pessoal dos governantes por crimes de direito internacional (FER-RAJOLI, 2002, p. 56).

Cita, ainda, a necessidade de um paulatino desarmamento dos Estados e a proibição de armas como bens lícitos. Indica outra afir-mação de Vitoria sobre os direitos dos povos, que no passado foram enunciados em benefício dos conquistadores e que deveriam hoje ser reconhecidos como forma de ressarcimento dos povoados aborígines depredados no passado. Registra-se a citação do doutrinador italiano:

o ius migrandi para nossos países ricos e de neles adquirir cidadania por força do simples título, proclamado por Vitoria, de todos nós sermos homens, e ergo videtur quod amicitia inter homines sit de iure naturali, et contra na-turam est vitare consortium hominum innoxio-rum (é, portanto, evidente que a amizade dos homens faz parte do direito natual, e que é contra a natureza evitar o consórcio dos ho-mens probos) (FERRAJOLI, 2002, p. 57).

É possível verificar uma fina ironia no texto de Ferrajoli, ao relatar que os direitos naturais, em que foram baseados os direitos hu-manos das primeiras declarações dos Estados Modernos, eram reco-nhecidos a todos os seres humanos (com exceção dos direitos políticos). Naquele tempo, em que foram prometidos a todos, não se imagina-va que os homens e mulheres do Terceiro Mundo pudessem chegar à Europa e pedir para serem levados a sério em nome da reciprocida-de (FERRAJOLI, 2002, p. 57). Hoje, depois de terem se aproveitado dos benefícios, é difícil aos Estados revisitarem seus conceitos para, a partir deles, exercer a tolerância e a aceitação do outro e do diferente,

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simplesmente por pertencer à espécie humana. Está completamente correto Ferrajoli quando afirma a urgência de reconhecer o caráter su-pra-estatal dos direitos humanos e garanti-los não apenas dentro, mas também fora e contra os Estados, mas isso não retira a importância do constitucionalismo interno desenvolvido por cada país.

Nesse sentido, merece destaque a dimensão normativa da ci-ência jurídica. Ferrajoli diz-se positivista crítico, porque, mesmo re-provando o racionalismo iluminista não desconsidera os benefícios da razão. Até, por esse motivo, ressalta que, graças à manutenção da racionalidade nas formas de direito internacional positivo, já se tem, em outras palavras, “uma Constituição embrionária no mundo” (FERRAJOLI, 2002, p. 60-1). O que isso quer dizer? Significa sim-plesmente que os valores cosmopolitas como proibição à guerra, di-reitos dos homens e dos povos, que inicialmente surgiram ligados aos valores burgueses, formais, do Estado Moderno, depois da Segunda Guerra Mundial adquirem nova conotação, impondo-se como hori-zonte axiológico e deontológico nas Constituições contemporâneas.

É mais fácil a procura pelo relacionamento harmônico entre o direito internacional e o direito constitucional com vistas à efetividade e ao fortalecimento dos instrumentos internos de proteção aos direitos fundamentais, do que a busca por um novo Leviatã internacional.

3 Apontamentos sobre o constitucionalismo multinível correlato ao

cosmpolitismo policêntrico e considerações finais

Contra a ideia de um globalismo jurídico unicêntrico, Fer-rajoli propõe um cosmopolitismo jurídico policêntrico e pluralístico,

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baseado principalmente nas distinções entre as funções governo e a legitimidade de representação política, asseguradas sobretudo através das instituições estatais, infraestatais e supraestatais. Ele afirma que esse é um modelo bem distante da atual estrutura da ONU, que cor-responde, na verdade, a um frágil modelo confederado (FERRAJO-LI, 2007, p. 553). Percebe-se que a proposta apresentada não é apenas uma referência utópica, já que a correspondência com a realidade está exposta em seu texto:

(...) Oggi, di fato, le funzioni di governo mondia-le sono detenute ed exercitate soprattutto da un governo locale, quello della superpatenza statu-nitense; laddove le funzione di garantizia – ove riguardino aggressioni globali a diritti e beni fon-damentali come la pace, la sicurezza, la sussistenza e la salvaguardia del l’ambiente – sono di fatto im-possibili a livello locale e sono d’altro canto prive, a livello internazionale, delle corrispondenti insti-tuzioni di garanzia (FERRAJOLI, 2007, p. 553).

Com isso, é factível a aplicação de sua teoria. Vive-se um pe-ríodo em que algumas superpotências, como os Estados Unidos, exer-cem um poder muito grande sobre o restante dos países, o que leva a agressões globais de diferentes dimensões, sem a correspondente pro-teção internacional. Até mesmo a ONU apresenta, em determinados momentos, posições parciais, tendo em vista os interesses, mesmo que de forma indireta, dos Estados que formam o Conselho de Segurança.

Assim, ocorre que os Estados e a própria sociedade deparam--se com um tipo de “anarquia planetária”. Mas como enfrentar o di-lemas que envolvem o embate entre diferentes espécies de Leviatãs?

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Ferrajoli apresenta uma alternativa a essa regressão da ordem inter-nacional à guerra global infinita, que seria a transformação gradual do modelo confederado ao modelo federado (FERRAJOLI, 2007, p. 553). Tratar-se-ia de uma necessidade jurídica de fechar as lacunas que existem quanto à proteção dos direitos e garantias fundamentais:

(...) Si tratta di um obbligo non solo universale (omniu) in capo a tutti gli Stati e alle Nazioni Uni-te, ma anche assoluto (erga omnes), dato che vinco-la gli Stati non solo nei confronti dei loro popoli e dei loro cittadini, ma di tutti popoli e di tutti gli esseri umani del mondo: di un principio, quindi, di solidarietà insieme attiva e passiva, consistente nei doveri assoluti de garanzia cui sono tenuti i primi, correlativamente ai diritti universali di cui sono titulari i secondi (...) (FERRAJOLI, 2007, p. 553).

Na defesa do universalismo dos direitos humanos ou funda-mentais e na busca pela paz, devem atuar tanto os constitucionalistas como os internacionalistas. Por isso, a sugestão é que se reconstrua uma “esfera pública global”, onde o sentido do público seja diverso do atual, para efetivação desses direitos, já que isso dificilmente ini-ciará pela esfera privada, onde opera mais fortemente a economia. Para Ferrajoli: “la esfera pubbica è infatti una esfera eteronoma, e può essere prodotta solo dalla politica e dalla sua capacità di regolare e governare l’economia invertendo l’attuale suditanza della prima alla seconda” (FERRAJOLI, 2007, p. 555).

Hoje, a esfera pública edificada sobre os tradicionais Estados e depois sobre as instituições internacionais e supranacionais consiste numa rede intrincada e confusa, que edifica um “labirinto” formado

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por sucessivas acumulações e estratificações. Essa desagregação é per-cebida, igualmente, na falência da estrutura hierárquica e piramidal em que se baseavam os Estados. A antiga estrutura é substituída por um desenho fragmentado, desorganizado e heterogêneo de organi-zações públicas e parapúblicas, supra, inter ou transnacionais, carac-terizadas de forma puntiforme e reticular e, obviamente, incapazes de dar conta de um sistema econômico e social desterritorializado, composto, ainda, por muitas empresas multinacionais (FERRAJOLI, 2007, p. 553).

Há que se concordar com o autor quando afirma que a atual globalização configura-se pela regressão às formas pré-modernas:

Il pluralismo degli ordinamenti, la loro concorren-za, la confusione e l’anarchia delle fonti che carat-teizzano l’attuale assetto dei rapperti tra Stati, isti-tuzioni sovranazionali e insituzioni internazionali ricordano gli analoghi fenomeni che caratterizza-rono i sistiemi giuridici premoderni, parimenti contrassegnati dalla convivenza in un medesi-mo territorio e dalla soggezione delle medesime persone a più ordinamenti: la Chiesa, l’Impero, i principati, le municipalità, le corporazioni e simili (FERRAJOLI, 2007, p. 556).

Como foi possível verificar, existe um infindável número de forças concorrentes, o que leva à descentralização de poder como acontecia na Idade Média. A diferença é que, hoje, a ordem interna-cional dispõe do que Ferrajoli denomina de Constituições embrioná-rias – a Carta da ONU e as diversas Cartas de direitos –, que eviden-ciam normativamente o paradigma de um constitucionalismo global (FERRAJOLI, 2007, p. 556). A formação de uma nova esfera pública

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e de uma democracia global deve ser buscada pelo lado oposto àquele que foi seguido na construção da democracia constitucional dos or-denamentos nacionais. Não se deve observar o Estado Constitucional sob o prisma Estado Legislativo de Direito, mas sim pleitear a refun-dação do direito internacional através de vínculos entre legislações que estabelecem repartições em diferentes níveis – multinível – de fontes de competência. Ademais, deve-se buscar a separação entre instituições de governo e instituições de garantia; bem como a neces-sária reabilitação do princípio da legalidade como limite e vínculo a todos os poderes, sejam públicos ou privados (FERRAJOLI, 2007, p. 556). Obviamente, que esse projeto universalístico apresenta enormes dificuldades jurídicas, políticas, sociais e culturais.

Dentre os obstáculos ao constitucionalismo multinível, Fer-rajoli cita a indisponibilidade das grandes potências e dos grandes impérios multinacionais em submeterem-se a limitações de qualquer tipo. Por outro lado, sobre o plano teórico, refere que o principal pro-blema é o da correspondência entre a natureza dos dilemas e os ní-veis de competência para solucioná-los em seus diversos planos de atuação. É claro que os assuntos ligados à paz, ao desarmamento e à proteção do equilíbrio ecológico do planeta, bem como à implemen-tação dos direitos sociais, são questões de nível global, o que leva à exigência de instrumentos de proteção globais, mas também locais (FERRAJOLI, 2007, p. 556-7). Pelo que foi exposto até o momen-to, é verificável que Ferrajoli mantém as atribuições do Estado como sendo de fundamental importância para o desenvolvimento do cons-titucionalismo multinível.

Nesse sentido, conforme redação literal da obra do referido autor:

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La costruzione di uma sfera pubblica globale se-condo el paradigma federale costringe percià a ripensare sia lo Stato che l’ordine internazionale. Essa non implica affatto uma riduzione del ruo-lo garantista degli Estati, ma al contrario la sua integrazione ai livelli sovrastatali, ove quel ruolo sia negato o violato o impedito o indebolito dagli odieni processi di globalizzazione (FERRAJOLI, 2007, p. 557).

Ferrajoli não está flexibilizando a teoria garantista, já que mantém a importância dos Estados como agentes fundamentais na implementação dos direitos fundamentais, apenas refere que, se não o fizeram, poderão ocorrer intervenções supranacionais.

Em suma, o declínio da antiga soberania estatal é “un cololla-rio di qualunque ordinamento internazionale, tanto più se modellato nelle forme garantiste della democrazia constituzionale”. Isto signi-fica que é preciso a refundação interna das democracias ocidentais, assim como a fundação de uma democracia da ordem internacional. Aqui está a chave da ideia de Ferrajoli, ou seja, é importante uma refundação que comporte um aumento da esfera pública, através de múltiplas combinações – “di sussidiarietà, di divisione, di separazione” – e através de diversos níveis de instituições, buscando o alargamento do direito internacional ao paradigma da democracia constitucional (FERRAJOLI, 2007, p. 557)3. Não existe dúvida sobre a correta ex-

3 Sob a mesma perspectiva, ou seja, da busca por uma aproximação do Direito constitucional ao Direito Internacional, caminha a teoria da interconstitucionalida de-senvolvida por Joaquim José Gomes Canotilho. (CANOTILHO, 2006).

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posição do autor de que a construção de uma esfera pública global supõe o reconhecimento do pluralismo dos ordenamentos. Por isso, é difícil concordar com a teoria de um constitucionalismo sem Estado, o papel do Estado sempre existirá no constitucionalismo, mesmo que seja em diferentes níveis, como quer Ferrrajoli.

Mesmo não concordando com a terminologia “constituciona-lismo sem Estado”, expõem-se os cinco elementos, apresentados pelo doutrinador italiano, para estruturação desta proposta: o primeiro é que deve existir um espaço autônomo, reservado à Constituição; o segundo, derivado do primeiro, se refere aos direitos fundamentais, de caráter individual ou social, bem como o princípio em defesa da paz, que deve possuir caráter universal; o terceiro é a manutenção dos princípios da legalidade e de submissão ao direito; o quarto ele-mento conexo com os outros três, relaciona-se ao funcionamento de governo, atentando, para importância da efetivação das garantias; já o quinto elemento liga-se ao modelo federado.

Essa articulação busca a perspectiva multinível da esfera pú-blica e dos poderes, a qual vai acrescentar à tradicional separação ho-rizontal entre funções de governo e funções de garantia a divisão e/ou a separação vertical entre níveis federais e estatais (FERRAJOLI, 2007, p. 560). Com a multiplicação dos centros de poder, Ferrajoli pretende lançar um antídoto para a involução monocrática da demo-cracia em nível nacional e internacional.

Ainda, vale mencionar outras duas condições inseridas na refe-rida obra “Principia iuris”, que são necessárias para o desenvolvimento do paradigma federalista transferido para as relações internacionais. A primeira é que não se deve imaginar a mesma estrutura estadista

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própria do Estado federal, já que este é apenas uma variante do velho Estado nacional soberano. O novo modelo se caracteriza por uma rede de relações entre ordenamentos federados, o qual possui um grau de divisão e separação de poder em diferentes níveis. A segunda condição está na base social da federação (FERRAJOLI, 2007, p. 561-2).

Pelo que foi exposto, constata-se que o complicado modelo proposto por Ferrajoli está, realmente, inserido na complexa socie-dade atual, em que o tempo já não é mais o mesmo da Antiguidade, da Idade Média e da Modernidade, para usar a terminologia históri-ca comumente utilizada. Certamente, é uma proposta profícua e que renderá muitos desdobramentos. A crítica que se faz é sobre a posição do ente estatal neste contexto, já que Ferrajoli não quer flexibilizar o garantismo, mas, ao mesmo tempo, menciona a possibilidade de um constitucionalismo sem Estado. Particularmente, quiçá em curto pra-zo o mais plausível seja a recuperação do Estado como pressuposto para o próprio desenvolvimento de um constitucionalismo sob o viés cosmopolita.

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OS PARADIGMAS EDUCATIVOS DA FORMAÇÃO PARA O EMPREGO E APRENDIZAGEM PERMANENTE NA UNIÃO EUROPÉIA: O DIREITO DO TRABALHO EM CONSTRUÇÃO

Adriana Hartemink Cantini1

Resumo

Este trabalho apresenta um estudo interdisciplinar que enfoca a perspectiva dos Direitos Humanos e Fundamentais dos trabalhado-res, a formação para o emprego e a aprendizagem permanente e por toda a vida na sociedade do Conhecimento e da Globalização. De-monstra a relação existente entre Direito do Trabalho e Educação, na perspectiva do direito à formação para o emprego como um direito social exigível. Para tanto, utiliza as teorias educacionais revolucionárias de Jacques DELORS, em os quatro pilares para a educação do futuro, de Edgar MORIN em os sete saberes necessários para a educação do futuro e de Paulo FREIRE, que defende a idéia de que a formação profissional deve ser parte integrante do processo educativo e é uma questão política. Buscando compreender essas temáticas e com foco na aprendizagem permanente e por toda a vida para o trabalho, retoma as normas internacionais dos principais Organismos intergovernamentais

1 Bacharela em Direito, Advogada, Especialista em Metodologia do Ensino Superior e Formação de Professores em disciplinas especializadas de Direito e Legislação, Mestra em Educação (PUC/RS) e Doutora em Direitos Humanos (USAL/ES). Profes-sora nas áreas de Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direitos Humanos e Fundamentais

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sobre a formação para o emprego e a aprendizagem permanente e ao longo da vida, destacando alguns conceitos importantes que irão per-correr toda a discussão: aprendizagem permanente, empregabilidade, competência e qualificação profissional. Buscando aliar conhecimentos educacionais e jurídicos, já que se trata de um estudo interdisciplinar, olha para a União Européia no intento de compreender o processo de construção do Instituto da Aprendizagem e da formação profissional. Nesse sentido, traz à tona os principais documentos emitidos pela UE para orientar os Estados membros a unificarem os seus Sistemas de for-mação facilitando o exercício do direito à mobilidade laboral dos seus trabalhadores. Trabalha a perspectiva da sociedade do Conhecimento que leva a UE a buscar políticas públicas capazes de tornar o bloco a economia mais dinâmica e avançada do mundo e alcançar o pleno em-prego. Todo esse empenho é revelado com base no Memorando Sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida, que está fundamentado nas teorias educacionais expressas anteriormente e que serão o pano de fundo da elaboração das normas jurídicas que orientam esse novo Sistema. Na Espanha, trabalha a formação para o emprego como um direito indivi-dual do trabalhador buscando afirmar essa posição doutrinária através da busca da legislação pertinente e das doutrinas publicadas a respeito. Verifica como o processo de construção das normas relativas à forma-ção profissional é encaminhado e quais são os atores envolvidos nessa tarefa. Ao final, apresenta conclusões significativas em relação à temá-tica abordada reafirmando a idéia inicial da interdisciplinaridade entre o Direito do Trabalho e a Educação, mais especificamente, a formação para o emprego, retomando as teorias educacionais expressas no início do trabalho.

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Palavras chave: Aprendizagem Permanente; Direitos Sociais; Políti-cas Públicas; Qualificação; Competência Profissional

Resumen

Este trabajo presenta un estudio interdisciplinario que se centra en la perspectiva de los Derechos Humanos y fundamentales de los trabajadores, la formación para el empleo y la formación per-manente y a lo largo de la vida en la sociedad del Conocimiento y de la Globalización. Muestra la relación entre el Derecho del Trabajo y Educación, teniendo en cuenta el derecho a la formación para el empleo como un derecho social exigible. Para eso, utiliza las teorías revolucionarias de educación de Jacques DELORS en los cuatro pi-lares para la educación del futuro, Edgar MORIN en los siete sabe-res necesarios para la educación del futuro y Paulo FREIRE, lo qual aboga por la idea de que la formación profesional debe ser parte del proceso educativo y es un asunto político. Tratando de entender estas cuestiones y centrada en el aprendizaje permanente y a lo largo de la vida para el trabajo, incorpora los estándares internacionales de las principales Organizaciones intergubernamentales en materia de for-mación para el empleo y aprendizaje permanente, poniendo de relieve algunos conceptos importantes que van a salir en debate: el aprendi-zaje permanente, la empleabilidad, las competencias y las cualificacio-nes profesionales. Al combinar el conocimiento jurídico y educativo, ya que es un estudio interdisciplinario, mira a la Unión Europea con un intento de comprender el proceso de creación del Instituto del Aprendizaje. En este sentido, trae a colación los Documentos per-

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tinentes expedidos por la UE para orientar los Estados miembros a unificar sus sistemas de formación lo que permite el ejercicio del de-recho a la movilidad laboral de sus trabajadores. Trabaja la perspectiva de la sociedade del Conocimiento que lleva a la UE a adoptar políti-cas públicas para hacer que el bloque sea la economía más dinámica y avanzada del mundo y logre el pleno empleo. Todo este esfuerzo se revela basado en el Memorándum sobre el Aprendizaje Permanente, que se basa en las teorías educativas expresadas anteriormente y que será el telón de fondo para la elaboración de normas jurídicas que rigen este nuevo Sistema. En España trabaja la formación para el empleo como un derecho individual de los trabajadores, afirmando la posición doctrinal mediante la localización de la legislación y de las doctrinas publicadas al respecto. Muestra que ese es un proceso en construcción y revela quienes son los actores involucrados en esta tarea. Al final, presenta conclusiones importantes sobre el tema dis-cutido, reafirmando la idea inicial de la interdisciplinariedad entre el Derecho del Trabajo y Educación, más concretamente, la formación para el empleo, volviendo a las teorías educativas expresadas en el comienzo de la tesis.

Palabras claves: Aprendizaje Permanente, Derechos Sociales, Políti-cas Públicas; Calificación; Competencia Profesional.

INTRODUÇÃO

Nestes tempos de globalização, novos paradigmas do pensa-mento científico trazem profundas implicações em todas as ciências,

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especialmente às sociais e humanas. As relações trabalhistas são repen-sadas e as bases jurídicas que as fundamentam revistas, exigindo-se um reposicionamento do trabalho e a conseqüente reorganização das nor-mas que tutelam suas relações. Os Estados passam por crescente aglu-tinação para enfrentar os desafios desse novo mercado, criando normas que permitem a livre circulação de pessoas e de capitais. Diante da crise de paradigmas em relação ao trabalho, onde a empregabilidade traz consigo a necessidade dos trabalhadores se adaptarem às novas exigências, aprendizagens renovadas ganham importância e a formação para o emprego é repensada. A tendência internacional é a valorização das competências profissionais através dos processos de aprendizagem permanente e ao longo da vida. Para BOBBIO2 esses novos tempos vividos, causam certa insegurança jurídica porque sentimo-nos, por ve-zes, à beira do abismo e da catástrofe impende, por causa da rapidez dos processos técnicos ou pela sensação de encurtamento do tempo.

Na Europa, novas Diretrizes são impostas com a renovação da Estratégia de Lisboa para o Crescimento Econômico e o Empre-go (2008-2010), levando os Estados membros a elaborarem Políticas Públicas voltadas para a formação e qualificação dos seus trabalhado-res. Essas ações demonstram claramente o papel dos Estados no con-texto da nova Era que para MORIN3 leva ao pensar global conside-rando o contexto de unificação regional como única forma possível de

2 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e apre-sentação de Celso Lafer. 5º reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, (p.231).3 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 8ª edição. São Paulo: Cortez: Brasília DF: UNESCO, 2003, (p.77).

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resolver os problemas comuns podendo ser a solução para enfrentar esses novos tempos. A Era da pós-modernidade definida pelo autor e a crise de paradigmas, gera um caos necessário à criação humana, possibilitando a busca de soluções conjuntas capazes de superar os problemas comuns. No campo jurídico laboral as soluções parecem ser a de investimentos em capital humano para garantir a inclusão social dos trabalhadores onde o papel do Estado ganha especial rele-vância e PEREZ LUÑO4 defende que o modelo ideal de Estado seja o do Estado social de Direito, onde os Poderes Públicos assumem a responsabilidade de proporcionar aos cidadãos, as prestações e servi-ços adequados para que eles mesmos possam suprir suas necessidades vitais, logo, implementar Políticas de fomento à formação profissional para o emprego passa a ser também tarefa do Estado,

Identificar os paradigmas da formação para o emprego e da aprendizagem permanente, considerando a mens legislatoris dos ins-trumentos jurídicos relativos a formação para o emprego e as quali-ficações profissionais na União Européia e na Espanha é a proposta desse trabalho5. A contribuição para o debate se dá na medida em que olharmos a temática numa perspectiva humanista, onde o Direito é

4 PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. Madrid: Edi-torial Tecnos, 2004,(p. 125). 5 O presente trabalho é uma síntese da tese intitulada “A Formação para o Emprego e a Aprendizagem Permanente na União Européia: um estudo sobre a cons-trução do ordenamento jurídico espanhol”, realizada dentro do Programa de Douto-rado Pasado y Presente de los Derechos Humanos e apresentada no Departamento de Direito do Trabalho e Trabalho Social da Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca (USAL) em 2010. A tese foi orientada pelos Professores Doutores Enrique Cabero Morán e Eduardo Martín Puebla.

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percebido como um processo em construção coletiva e permanente, ético e democrático, com a finalidade de preservar os direitos míni-mos, universais e fundamentais da pessoa humana e garantir a sua dignidade e sobrevivência num mundo novo e cada vez mais exigente em relação ao trabalho.

A fundamentação teórica que embasa nossa reflexão perpas-sa pela compreensão dos Marcos orientativos sugeridos pela União Européia no processo de educação e de formação para o trabalho e o emprego. Esses paradigmas que geraram a elaboração de normas jurídicas específicas foram os sugeridos pela UNESCO, através das obras coordenadas por Jacques DELORS - Educação um Tesouro a descobrir e Edgar MORIN - Os sete Pilares da Educação do Fu-turo -, além dos trabalhos já desenvolvidos por juristas na Espanha, como Eduardo Martín PUEBLA, e no Brasil como o educador Paulo FREIRE, tendo como foco a aprendizagem permanente e ao longo da vida para o trabalho. Tratamos de demonstrar assim, a estreita relação da educação e da formação profissional com o mundo do trabalho e do Direito, enfatizando a multidisciplinaridade que a temática exige.

1 Os Processos Educativos Contemporâneos e a Aprendizagem Perma-

nente: Paradigmas Educativos

No seu significado semântico, os processos constituem-se, num constante avançar, podendo ser entendidos como um conjunto de ações que objetivam uma meta. A idéia de processos educativos no contexto da sociedade do Conhecimento, tem como foco a concepção de pessoa como ser incompleto e inacabado que tem a necessidade de aprender

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por toda a vida. Nesse constante caminhar de uma educação direcio-nada ao homem e a mulher que trabalham, pode-se dizer que a esco-larização e todos os seus aspectos teóricos e práticos - como o processo de aprendizagem a que são submetidos durante a vida, os métodos de ensino dessa aprendizagem, as avaliações realizadas e o sistema edu-cacional como um todo -, fazem parte do proceso educativo. Este, é determinado por fatores sociais, políticos, econômicos e pedagógicos sendo definido de acordo com o contexto histórico-social, partindo dos esquemas educativos primários, nas relações que o aprendiz estabelece antes de iniciar sua aprendizagem e perpassando pela aprendizagem propriamente dita. Assim, os procesos educativos contemporâneos en-volvem a atualização e reciclagem de saberes, que por último, podem ser direcionados a um fim específico, nesse caso em estudo a emprega-bilidade. Três doutrinadores que defendem idéias convergentes, embora utilizem terminologias diversas para expressá-las: Paulo FREIRE (re--aprender), Edgar MORIN (saberes) e Jacques DELORS (pilares) de-sembocam para um mesmo conceito: o da aprendizagem permanente e por toda a vida que aqui direcionam-se a aprendizagem permanente para o emprego, tidos como os paradigmas educativos dessa nova Era.

1.1 Paulo FREIRE e a Re-aprendizagem

O educador Paulo FREIRE6 defende a idéia de que a formação profissional, como parte integrante do processo educativo, pode aconte-

6 FREIRE, Paulo. Política e Educação. Coleção questões da nossa época, nº 23, 5ª edição. São Paulo: Cortez, 1997, (p.01).

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cer em vários locais e não apenas na escola tradicional que conhecemos. Para ele a educação liberta e, se focada no homem e na mulher enquan-to seres inacabados e em constante busca, é capaz de humanizá-los. Assim, quando defendemos a idéia da criação de locais extra-escolares onde seja possível formar o trabalhador, entendemos que os processos educacionais devem cumprir um papel social que não busque apenas a inserção no mercado de trabalho, mas, criem situações que possibi-litem um olhar crítico aos acontecimentos do cotidiano. O constante questionamento sobre que tipo de cidadão/trabalhador se quer formar e quais as necessidades do mercado de trabalho, deve percorrer todas as práticas educativas direcionadas à formação e o emprego. Ao trazer à tona a discussão a respeito dos processos educativos contemporâneos e defendê-los como meio de socialização e inserção no trabalho, perce-bemos que essa ação será viável, quando se partir da práxis da aprendi-zagem não como mera transmissão de conhecimentos, onde, na teoria Freiriana o sujeito que aprende assume o papel de alguém que se auto--educa e, consequentemente, irá intervir no meio em que está inserido. Ele não é um mero objeto da aprendizagem, mas, um sujeito capaz de escrever sua própria história em um processo de aprendizagem dia-lético e dialógico. FREIRE critica àqueles que defendem a educação operária como mera transmissão de saberes, alegando que a educação e a formação devem ser capazes de permitir a independência de quem apreende e a compreensão de que ele é capaz de intervir no curso da história do mundo7.

7 Op. Cit. Nota Anterior (p.102).

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1.2 Jacques DELORS e os Quatro Pilares da Educação do Futuro

Em 1993 a Organização das Nações Unidas para a Edu-

cação, Ciência e Cultura (UNESCO) convocou uma comissão de quatorze especialistas de diversas áreas do conhecimento e diferen-tes contextos culturais para refletir sobre a educação para o século XXI e Jacques DELORS foi nomeado presidente dessa Comissão. Geraram um documento mundialmente conhecido como Relató-rio Delors8, prevendo que a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao logo da vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é adquirir os instrumentos da compre-ensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os ou-tros em todas as atividades humanas; e, finalmente, aprender a ser, via essencial que integra os três pilares precedentes. Estas quatro vias do saber constituem apenas uma - a da aprendizagem perma-nente e por toda a vida -, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, relacionamento e permuta9.

O pilar aprender a conhecer, segundo o Relatório, visa o do-mínio dos instrumentos que dão acesso aos conhecimentos, porque

8 No Brasil o Relatório Delors foi compilado em um livro publicado pela editora Cortez (São Paulo) em 1999 com o título de “Educação: um tesouro a descobrir” e apresen-tou uma síntese do pensamento pedagógico oficial da humanidade.9 DELORS, Jacques (Org.). Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNES-CO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 10ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006; (pp. 89/90).

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atualmente, com a facilidade na comunicação e no acesso à infor-mação, saber conhecer e organizar essas idéias que são colocadas no mundo virtual e natural, requer o domínio de habilidades que levem ao aprender e ao conhecer. Significa descobrir ferramentas próprias para enfrentar as mudanças velozes do mundo globalizado desenvol-vendo a capacidade de adaptação e aprendendo a aprender.

O aprender a fazer, tido como o segundo pilar necessário para a educação do futuro, está mais ligado à formação profissional e a empregabilidade. Entram nesse contexto, os desafios da inserção laboral e profissional mediante a aprendizagem permanente e a reci-clagem de saberes. Nesse último quesito, é possível identificar a teoria Freiriana com a idéia da re-aprendizagem10.

O aprender a viver juntos, constitui um dos grandes desafios da modernidade, pois, requer o exercício da tolerância e da compreen-são das diferenças e do outro, do sentimento de pertença à humanidade e da responsabilidade social. No mundo do trabalho demonstra o sen-timento de partilha de responsabilidades, manifestada pelos processos

10 Para FREIRE a re-aprendizagem requer, entre outras coisas, a rigorosidade metó-dica capaz de levar ao que ele denomina de conhecimento certo, que é aquele onde o sujeito que aprende é capaz de tornar-se independente e intervir no curso da história do mundo. Trazendo essa compreensão para a formação para o emprego, se diz que “O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania, que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas, também, com sua luta política em fa-vor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana. Naturalmente, reinsisto, o empresário moderno aceita, estimula e patrocina o treino ‘técnico’ de seu operário. O que ele necessariamente recusa é a sua forma-ção que, envolvendo o saber técnico e científico indispensável, fala da sua presença no mundo. Presença humana, presença ética, aviltada toda vez que transformada em pura sombra.”(FREIRE, Paulo. Política e Educação... Op. Cit. Nota 05. (p.102).

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coletivos de negociação sindical e de construção do diálogo social. O aprender a ser tem por objeto a realização da pessoa en-

quanto membro da sociedade, cidadão, trabalhador, indivíduo e in-ventor da sua própria história. Refere-se a um processo dialético de construção permanente e por toda a vida, onde a consciência da ne-cessidade da aprendizagem contínua deve se tornar efetiva.

A aprendizagem sugerida por DELORS através da UNES-CO de aprender a fazer apresenta-se como prioritária em relação ao emprego e constitui-se na maior novidade do Relatório, pois, pela primeira vez na história, essa temática recebeu um tratamento oficial. Para muitos estudiosos do tema, o Relatório apresenta-se de forma bastante generalista, mas, acreditamos que ele foge ao padrão cartesiano, estrutural ou positivista, sugerindo um movimento dia-lético na aprendizagem a partir da modificação de comportamentos dos aprendentes, considerados como sujeitos desse processo. Basta observar que a palavra aprender está presente em todos os quatro pilares: aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a conviver e aprender a ser. Assim, retomamos a teoria Freiriana onde se afirma que ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão mediatizados pelo mundo11. Para ele o processo educacional é substancialmente auto--educação onde o aprender é o centro, e não o ensinar, convergindo o pensamento Freiriano com a proposta de DELORS e da UNES-CO para a educação do futuro.

11 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, (p.79).

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1.3 Edgar Morin e os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro

As idéias revolucionárias de Edgar MORIN12 tornaram-se mais conhecidas no meio acadêmico quando, em 1999, foi também convidado pela UNESCO, para repensar a educação para o século XXI, elaborando uma obra onde sistematizou um conjunto de refle-xões para servir como ponto de partida dessa tarefa. Nela, abordou os temas que considerou fundamentais para uma educação contempo-rânea e que, muitas vezes, são ignorados ou deixados à margem dos debates sobre Política Educacional. Ele sugere que se revisem as prá-ticas pedagógicas da atualidade e abram espaço para novos processos educativos, considerando a necessidade de situar a importância da educação na totalidade dos desafios e incertezas dos tempos atuais, em especial, no que se relaciona à formação para o trabalho. Enun-ciou sete saberes indispensáveis à aprendizagem e a formação: 1º) as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; 2º) os princípios do conhecimento pertinente; 3º) ensinar a condição humana; 4º) ensinar a identidade terrena; 5º) enfrentar as incertezas; 6º) ensinar a com-preensão e 7º) ensinar a ética do gênero humano.

O primeiro saber importa aceitar que o conhecimento com-porta erro e ilusões e que a mente humana está sujeita a falhas e enga-nos. É necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos huma-nos, dos seus processos e modalidades, das disposições tanto psíquicas

12 MORIN, Edgar. Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 3ª. ed. São Paulo: Cortez. Brasília, DF: UNESCO, 2001.

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quanto culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão, para ensinar a mente a combater os erros e buscar a lucidez vital. O processo de formação deve fazer compreender que não há conhecimento que não esteja ameaçado de erro ou ilusões, que não existem verdades absolu-tas e todas as percepções que temos do mundo e das coisas, derivam de traduções e reconstruções que fazemos, com base nos estímulos e incentivos que nossos sentidos captaram. O conhecimento cientí-fico pode ser um poderoso meio para deter os erros e lutar contra as ilusões, entretanto, os paradigmas que controlam as ciências, podem ser sujeitos às ilusões e nenhuma teoria científica está imune eterna-mente contra o erro e as verdades que se promulgam o são, até que novas verdades as contradigam. Quando o inesperado se manifesta é preciso ser capaz de rever as teorias e as idéias, em vez de deixar o fato novo entrar à força num ambiente (ou instância, ou teoria) incapaz de recebê-lo. Trazer essa primeira idéia de MORIN para o mundo da formação para o emprego consiste em afirmar que a educação profis-sional deve orientar o trabalhador a compreender que o domínio das habilidades específicas adquiridas em determinado curso de forma-ção, pode, a qualquer tempo, ser modificada e ele deve estar preparado para essa situação, adaptando-se ao novo e recebendo a nova teoria.

O segundo saber refere-se ao conhecimento pertinente que ele considera uma necessidade do mundo atual, intelectual e vital. Revela que esse é um dos problemas universais de todo o cidadão e do trabalhador do novo milênio: Como ter acesso as informações e or-ganizá-las? Como perceber e conceber o Contexto, o Global (relação todo/partes) o Multidimensional, o Complexo? Antes de sugerir a forma de resolver essa questão, explica que o Contexto envolve o conjunto de

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informações ou dados e que não se pode conhecê-los de forma iso-lada, é preciso situá-los. Em relação ao Global, diz que seria mais do que o contexto, o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional. Assim, uma sociedade é mais que um contexto, é o todo organizador do qual fazemos parte. Sobre o Multidimensional, explica que as sociedades humanas e os seres hu-manos são unidades complexas. O ser humano é ao mesmo tempo, biológico, psíquico, afetivo, social e racional e a sociedade, por sua vez, comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica e religiosa. Dessa maneira, o conhecimento pertinente deve ser capaz de reco-nhecer esse caráter multidimensional. O Complexo, para MORIN, é quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo e há um tecido independente, interativo e inter-retroativo entre o ob-jeto de conhecimento e seu contexto, partes e todo, todo e partes em si, onde, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Trazendo suas idéias para nosso estudo, convém afirmar, que a for-mação para o emprego, deve abordar esse entendimento, para que o trabalhador não fique alheio ao mundo que o cerca e as necessidades do mercado onde está ou irá se inserir. Porém, acrescentamos as idéias de FREIRE, de que se deve considerar esse trabalhador como um ser humano incompleto que irá agir na multiplicidade do meio de forma política, intervindo no curso da história onde está inserido. MORIN afirma que o desenvolvimento de aptidões gerais da mente, permite melhorar o desenvolvimento das competências particulares ou espe-cializadas. Logo, os cursos de formação para o emprego devem prever o estudo de conhecimentos genéricos para facilitar o desenvolvimen-to das habilidades específicas para o trabalho.

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O terceiro saber consiste em ensinar a condição humana, compreendendo o ser humano como um ser complexo que é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico. Restau-rar a identidade humana para que se tome consciência da identidade complexa e da identidade comum a todos os seres humanos, reforçan-do a idéia de que todo o conhecimento deve ser contextualizado para que seu objeto seja pertinente (retoma ao segundo saber), alegando que quem somos é inseparável de onde estamos, de onde viemos e para onde vamos. Ao interrogar essa condição humana, questionamos nossa posição no mundo e a nossa missão, ou, como diria FREIRE, nossa vocação e humanização. MORIN traz os três circuitos que considera fundamentais para a vida do homem e da mulher enquanto pessoas: o circuito cérebro/mente/cultura; o circuito razão/afeto/pulsão e o cir-cuito indivíduo/sociedade e espécie. Nesse último, retoma a impor-tância do respeito a autonomia individual, a participação na sociedade que, para FREIRE, é a participação política e também o sentimento de pertencer à espécie humana. Acrescenta ainda que, há uma unida-de humana e uma diversidade. A unidade está nos traços biológicos da espécie e a diversidade na individualidade do ser. Entendemos, nesse contexto que a formação para o trabalho deve abordar essa te-mática e proporcionar a discussão sobre quem somos nós – pessoas humanas que trabalham, que produzem e tem habilidades e vocação distintas, apesar de serem integrantes da mesma espécie.

O quarto saber consiste em ensinar a identidade terrena por-que considera que o conhecimento sobre o desenvolvimento da era planetária deve ser indispensável e converter-se em um dos objetos da educação. Compreender que a comunicação entre os continentes

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inicia-se no século XVI e demonstrar a solidariedade do mundo a partir de então, sem ocultar as opressões e as dominações que ainda permanecem, torna-se necessário para perceber que os problemas são comuns a toda humanidade, já que se partilha de um destino comum e os problemas de vida e de morte são os mesmos. Conhecer ain-da as denominadas contra-correntes que podem mudar o curso dos acontecimentos, é fundamental para desenvolver esse saber. O autor destaca como contra correntes a ecológica em oposição as catástrofes técnicas e industriais; a qualitativa em oposição ao quantitativo e a uniformização generalizada; a resistência a vida prosaica e puramente utilitária em defesa da vida poética, do amor e da paixão; a resistência a primazia do consumo padronizado em oposição ao consumismo desenfreado e ao minimalismo. A isso, ele acrescenta mais duas con-tra correntes que ainda considera tímidas, que são a de emancipação em relação à tirania ainda presente do dinheiro e a reação ao desen-cadeamento da violência. Essa compreensão permite entender onde estamos e está intensamente ligada ao saber anterior.

O quinto saber consiste em enfrentar as incertezas e sinto-niza-se com o primeiro saber, onde trabalhamos a idéia das cegueiras do conhecimento, pois, o conhecimento não deve ser entendido como absoluto ou dogmático, é preciso compreendê-lo como algo em cons-tante construção. Ensinar essas incertezas, os princípios e as estraté-gias que permitem enfrentar os imprevistos e o inesperado e apresen-tar novas formas para resolver problemas antigos, significa ensinar a desenvolver novos meios de executar antigas tarefas, quando o ines-perado acontece. Essas temáticas estão diretamente relacionadas com a necessidade de o trabalhador estar preparado para o novo, que pode

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se manifestar em situações de desemprego iminente, de subemprego e até mesmo da necessidade do trabalho autônomo. O ensino das incertezas também está relacionado às características de empregabili-dade13 que se quer, atualmente do trabalhador.

O sexto saber consiste em ensinar a compreensão. A pala-vra compreender, do latim, compreendere, significa colocar junto todos os elementos de explicação, ou seja, não ter somente um elemento de explicação, mas diversos. A compreensão humana que refere vai além disso porque, na realidade ela comporta uma parte de empatia e iden-tificação. MORIN divide em dois o problema da compreensão: um pólo planetário que compreende a compreensão entre humanos, os encontros e relações que se multiplicam entre as pessoas, as culturas e os povos de diferentes origens; e um pólo individual que compreen-de as relações particulares entre próximos e que estão cada vez mais ameaçadas pela incompreensão. Para ele, o axioma - “quanto mais pró-ximos estamos, melhor compreendemos”- é apenas uma verdade relativa

13 A palavra empregabilidade está relacionada à adequação profissional às novas ne-cessidades dinâmicas do mercado de trabalho. Ela surge no contexto da globalização porque, com o advento das novas tecnologias, da abertura das economias, da inter-nacionalização do capital e das constantes mudanças, o ambiente das organizações exige empresários e profissionais capazes de responder às novas necessidades. Em gestão de pessoas, o termo criado remete à capacidade profissional de estar empre-gado, além da capacidade de proteger sua carreira frente aos riscos inerentes ao mer-cado de trabalho absolutamente imprevisível. MINARELLI estabelece os seis pilares da empregabilidade que, segundo ele, podem garantir a segurança profissional da pessoa, denominando-as também de competências: adequação da profissão à vocação, com-petências, idoneidade, saúde física e mental, reserva financeira e fontes alternativas de aquisição de renda e relacionamentos. MINARELLI, José Augusto. Empregabilidade: como ter trabalho e remuneração sempre. 19ª Ed. São Paulo: Gente, 2009.

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que pode ter a oposição de um axioma contrário - “quanto mais es-tamos próximos, menos compreendemos -,” já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos, ciúmes, agressividades, mesmo nos meios aparentemente mais evoluídos intelectualmente. A grande inimiga da compreensão é a falta de preocupação em ensiná-la. Na realidade, isto está se agravando, já que o individualismo ganha um espaço cada vez maior nessa nova Era. Estamos vivendo numa sociedade indivi-dualista, que favorece o sentido de responsabilidade individual, que desenvolve o egocentrismo, o egoísmo e, consequentemente, alimenta a autojustificação e a rejeição ao próximo. A redução do outro, a visão unilateral e a falta de percepção sobre a complexidade humana são os grandes empecilhos da compreensão, além da indiferença.

O sétimo e ultimo saber refere-se a ensinar a ética do gênero humano. Fala em antropo-ética que nada mais é, do que retomar o imperativo categórico de Kant que prevê como ação ética a de agir de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal. Traduzido também, mais tarde, por AREND14, ao preconizar que o fato de que o homem é capaz de agir, significa que se pode esperar dele o ines-perado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. Não desejar para os outros aquilo que não quer para si, traduzindo-se para a teoria de MORIN, significa dizer que, devemos levar em conside-ração três elementos: o indivídulo, a sociedade e a espécie. É nessa discussão que ele defende a interligação urgente destes elementos,

14 AREND, Hannah. A Condição Humana. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense Univer-sitária, 1992, (p. 190).

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para que se busque o paradigma perdido que é a natureza humana. Para tanto, é preciso desenvolver o conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertença à espécie humana. trabalhar para a humanização da humanidade; efetuar a du-pla condição do planeta – obedecer à vida, guiar a vida; realizar a uni-dade planetária na diversidade; respeitar, ao mesmo tempo, no pró-ximo, a diferença e a identidade consigo próprio; desenvolver a ética da solidariedade; da compreensão; ensinar a ética do género humano.

Esses paradigmas do pensamento pedagógico atual estão pre-sentes nas Políticas Públicas implementadas pela União Européia e Espanha que levam a construção de um ordenamento jurídico laboral destinado a formação para o emprego. Por detrás das normas jurídi-cas destinadas formação profissional, encontram-se as intenções do legislador corroboadas com o novo pensamento pedagógico oficial da humanidade.

2 As Políticas Comunitárias de Formação para o Emprego e Aprendizagem

Permanente na União Européia

A Comissão Europeia publicou, em 1995, o Livro Branco15 sobre a educação e a formação, onde expressou a importância da for-mação e da aprendizagem permanente e ao longo da vida, para que

15 Livro Branco sobre a Educação e a Formação - Ensinar e aprender - Rumo à Livro Branco sobre a Educação e a Formação - Ensinar e aprender - Rumo à sociedade cognitiva. COM(95) 590, Novembro de 1995. Disponível para consulta em <http://europa.eu/documents/comm/white_papers/pdf/com95_590_fr.pdf> (Livre blanc sur l’éducation et la formation)>.

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se mantivesse a competitividade e a luta contra a exclusão social. As idéias expressas foram, mais tarde, compliladas no Memorando sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida16, um Documento de trabalho da Comissão Européia que convocou para um importante debate sobre a temática, tanto a nível individual como institucional. No final do Memorando, estão expressas as idéias chave para serem consideradas nessa estratégia de ação: garantir o acesso universal a aprendizagem contínua para a obtenção e renovação das competências dos cidadãos; aumentar o investimento em recursos humanos; criar métodos efica-zes para a aprendizagem ao longo da vida valorizando a aprendizagem não formal e informal; aconselhar e informar sobre as oportunidades de aprendizagem ao longo da vida e oferecer essas oportunidades a todos os cidadãos. Entretanto, foi o Tratado de Amsterdã17 que se de-dicou de forma mais detalhada a questão social e laboral, salientando o problema do desemprego e dos direitos do cidadãos, trazendo a necessidade de se criar Políticas comunitárias para a geração de em-pregos e inciando o debate em torno das ações capazes de preparar a União Européia para se tornar a economia globalizada mais moderna e competitiva do mundo.

O Memorando afirma que existem três categorais básicas de atividades de aprendizagem: a aprendizagem formal decorrente dos sistemas formais de ensino e que conduz a obtenção dos diplomas e qualificações reconhecidas; a aprendizagem não-formal, que ocorre

16 COMISSÃO EUROPÉIA (2000). Memorando sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida. Bruxelas, 30.10.2000, SEC (2000), 1832.17 Tratado de Amsterdã. Jornal Oficial nº C 340 de 10 de novembro de 2007.

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paralelamente aos sistemas de ensino e formação e não conduz, ne-cessariamente a aquisição de certificados e diplomas e a aprendiza-gem informal, que é um acompanhamento natural da vida quotidia-na. Embora o primeiro tipo de aprendizagem seja a que é reconhecida pela sociedade e pelo mercado de trabalho, o Memorando alerta que a dimensão da aprendizagem ao longo da vida deve destacar também as outras aprendizagens adquiridas além do ambiente de ensino formal, que são as duas últimas.

O Processo de Copenhague18 iniciado em novembro de 2002 teve a finalidade de acordar numa Declaração sobre a melhoria da co-operação Européia no domínio da educação e formação profissional (EFP). Essa Declaração foi considerada a resposta ao apelo do Con-selho Europeu de Barcelona de março 2002, para que se tomassem medidas práticas no domínio da educação e formação profissional, consideradas as discussões e Resoluções anteriores sobre a temática. O Processo é integrante da Estratégia de Lisboa e foi criado para que a formação profissional se desenvolvesse contribuindo para o avanço das ações e políticas de aprendizagem ao longo da vida e para a oferta de mão de obra altamente qualificada, observada a meta de tornar a Europa uma das economias mais competitivas do mundo basea-da no Conhecimento. O principal objetivo é melhorar a qualidade e atratividade do ensino e da formação profissional, desenvolvendo um verdadeiro mercado de trabalho Europeu, como um complemento

18 Processo de Copenhague: Novas Prioridades e Estratégias para a Educação e For-mação. Informações disponíveis em <http://ec.europa.eu/education/policies/2010/vocational_en.html>. Acesso em 12.12.2008 às 15hs.

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essencial para o mercado único de bens e serviços e da moeda única. Assenta-se em grande parte numa mão de obra qualificada, adaptável e móvel, capaz de usar as suas qualificações e competências como moeda comum em todo o espaço Europeu. Na prática, o processo de Copenhague funciona em quatro níveis: No nível Político visa in-fluenciar as pessoas que tem poder de decisão política a destacar a im-portância do EFP, facilitando o acordo relativo aos objetivos e metas comuns para a União Européia, sendo palco privilegiado de discussão das iniciativas e modelos nacionais e da partilha dos bons exemplos e práticas a nível Europeu. Em cada Estado o processo contribui para reforçar o enfoque no ensino e na formação profissional, inspirando reformas nacionais. Em relação aos instrumentos comuns, busca de-senvolver princípios comuns orientados para a transparência e quali-dade das competências e qualificações e facilitando a mobilidade dos aprendentes e trabalhadores. O processo traça o caminho em direção a um mercado de trabalho e a um espaço Europeus de EFP comple-mentar ao Espaço Europeu do Ensino Superior. A aprendizagem mútua se refere a apoiar as ações de cooperação Européia estimulan-do a aprendizagem mútua, permitindo aos países participantes refle-tirem as suas políticas à luz das experiências dos outros países e pro-porcionando o enquadramento para o trabalho conjunto, a partilha de idéias, experiências e resultados. O nível relativo ao envolvimento de todos os atores/agentes, reforça a necessidade da participação de diferentes sujeitos no processo para contribuir a elaboração e perse-cução de objetivos comuns.

Até o presente momento, a opinião geral é de que o processo de Copenhague, muitas vezes discutido e revisado, está tendo êxito e

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vem resultando na elaboração de importantes instrumentos de apoio à sua implementação. Entre os resultados mais visíveis atingidos des-de 2002, consideram-se as iniciativas de elaboração do Marco Euro-peu de Qualificações Profissionais (EQF), do Sistema de Créditos e de Formação Profissional (ECVET) e do Quadro de Referência Eu-ropeu para a Garantia da Qualidade (QREGQ) como fundamentais para que a mudança se opere.

2.1 Os Instrumentos Jurídicos Orientativos

2.1.1 O Marco Europeu de Qualificações para a Aprendizagem Perma-

nente (EQF)

O Marco Europeu de Qualificações19 (EQF) conhecido pela sua sigla em inglês European Qualifications Framework é uma iniciati-va que permite estabelecer uma linguagem comum em toda a Europa para descrever as qualificações profissionais, permitindo comparar, tanto a educação geral, a formação profissional como a universitária, adquiridas em países distintos e proporcionadas pelos variados site-mas de educação e formação. A intenção é permitir as organizações setoriais internacionais estabelecer correspondências entre seus sis-temas de qualificações sendo um ponto de referência Europeu co-

19 CONSEJO EUROPEU. Recomendación do Parlamento Europeo y Consejo sobre el establecimiento de um Marco de Referencia Europea de Garantia de la Calidad en la Educación y Formación Profesionales, de 18 de junio de 2009. Publicado no Diário Oficial da UE 2009/C 155/01.

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mum, demonstrando assim, a relação entre as qualificações setoriais e os sistemas nacionais de qualificação, melhorando a mobilidade e a integração social dos trabalhadores e das pessoas em processo de aprendizagem.

Em anexo ao Documento que criou o EQF há uma série de definições sobre algumas expressões chave que contém, esclarecendo que qualificação é o resultado formal de um processo de avaliação e validação que se obtém, quando um organismo competente estabe-lece que a aprendizagem de um indvíduo superou um determinado nível de conhecimento previsto. Como o enfoque do EQF está nos resultados da aprendizagem, revela que essa expressão significa o que uma pessoa sabe, compreende e é capaz de fazer ao concluir um determinado processo de aprendizagem, se definindo em termos de conhecimentos, destrezas e competências. Acerca das competências, prevê que é a capacidade demonstrada para utilizar os conhecimen-tos, as destrezas e as habilidades pessoais, sociais e metodológicas em situações de trabalho, estudo e no desenvolvimento profissional e pes-soal, com base no EQF, descrevendo como manifestações de respon-sabilidade e de autonomia do sujeito que apreende. Os conhecimen-tos, por sua vez, são os resultados das informações compreendidas graças a aprendizagem e revelam o acervo daquilo que a pessoa sabe, dos princípios, das teorias e das práticas em um determinado campo de trabalho ou estudo em concreto, descritos no EQF como conhe-cimentos teóricos ou práticos. A destreza consiste na habilidade para aplicar os conhecimentos e utilizar as técnicas a fim de completar tarefas e resolver problemas. No Marco, a destreza aparece como cog-nitiva (fundada no uso do pensamento lógico, intuitivo e criativo) e

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prática (fundada na destreza manual e no uso de métodos, materiais, ferramentas e instrumentos).

O enfoque dado na Recomendação remete-nos para as teorias de Jacques DELORS, onde os pilares do conhecimento centram-se no ser e no fazer. A teoria de FREIRE emerge quando o Documento con-sidera a aprendizagem como uma manifestação no indivíduo do ponto de vista lógico e prático, destacando o denominado homem aprendente. As idéias de MORIN são expressas quando o trabalhador tem reco-nhecidas as suas qualificações através de um processo de validação con-sistente em saberes necessários para uma prática útil e válida. A Reco-mendação classifica as qualificações profissionais em oito níveis que são utilizados para comparar e vincular as qualificações dos distintos países e setores formativos. Em cada nível, descreve o que se conhece (saber para DELORS), o que compreende e é capaz de fazer uma pessoa (saber fazer para DELORS), sem importar onde, como e quando esses conhe-cimentos foram adquiridos. Trabalha ainda, o enfoque nos resultados da aprendizagem, considerando a pessoa como agente do seu próprio conhecimento e habilidade (FREIRE). Esses oito níveis de qualificação estão hierarquizados e abarcam todas as qualificações possíveis que se podem conquistar durante a vida, através de diferentes meios, sejam eles o ensino escolar formal e obrigatório, o ensino superior, a aprendizagem informal, não formal ou a prática laboral. Em cada nível estão descritas os conhecimentos (saberes), as habilidades (saber fazer) e as competên-cias profissionais e pessoais (ser). Nessa última, busca-se identificar o grau de autonomia, responsabilidade e a capacidade de aprendizagem, as habilidades comunicativas e sociais (aprender a viver juntos) e o nível de competência para o exercício da atividade profissional.

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2.1.2 O Sistema Europeu de Créditos do Ensino e da Formação Profis-

sional (ECVET)

O ECVET foi criado porque as autoridades competentes, as or-ganizações e os atores implicados no processo de aproximação dos siste-mas de ensino e formação profissional na Europa são numerosos e diver-sos, dificultando a harmonização das qualificações. Facilitar a mobilidade laboral dos trabalhadores no âmbito Europeu, estabelecendo princípios comuns relativos à identificação e a validação dos resultados das apren-dizagens não formais e informais20 é o principal objetivo do ECVET. O ECVET (European Credit Sistem for Vocational Education and Training) é um sistema que estabelece um marco metodológico comum para facilitar a transferência de créditos de aprendizagem realizados de um sistema de qualificação para outro, dentro dos países que compõem a UE. Forma parte de um conjunto de iniciativas Européias como o Europass21 e o Eu-res22 e cumpre as previsões contidas na Carta Européia para a Mobilida-

20 Conclusões do CONSELHO sobre a garantia da qualidade a educação e na forma-ção profissional, 9599/04, EDUC 117 SOC 252, 18 de Maio de 2004. Disponível em <http//ec.europa.eu/education/policies/2010/doc/vetquality_en.pdf>. 21 Denominado también Europass Training, es un proyecto iniciado por el Consejo de Europa. Se trata de un documento que certifica los periodos de experiencia de trabajo fuera del país, así como los periodos de formación. O Europass fué estableci-do pela Decisión n.º 2241/2004/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Dezembro de 2004, que institui um quadro comunitário único para a transparência das qualificações e competências.22 A rede EURES (Serviços Europeus de Emprego) visa facilitar a livre circulação de trabalhadores nos países do Espaço Económico Europeu e integra os serviços públicos de emprego, os sindicatos e as organizações de empregadores. A parceria é coordenada pela Comissão Européia e suas principais funções: a) informar, orientar e

p

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de23. A Recomendação de criação do ECVET descreve as qualificações profissionais considerando os resultados das aprendizagens e associan-do a elas pontos de crédito, trazendo ainda definições que esclarecem o significado de: qualificação, unidade dos resultados da aprendizagem e pontos de crédito, o que facilita a sua aplicação24.

2.1.3 O Quadro de Referência Europeu de Garantia da Qualidade (QREGQ)

A finalidade do QREGQ é realizar uma avaliação sistemática e contínua do sistema para gerar a confiança mútua entre os variados sistemas de EFP Europeus, envolvendo a realização de avaliações in-ternas e externas a serem definidas pelos Estados membros, permitindo o feedback necessários sobre os progressos e retrocessos25. O Quadro

prestar aconselhamento aos trabalhadores potencialmente móveis sobre as oportu-nidades de emprego, bem como sobre as condições de vida e de trabalho no Espaço Econômico Europeu; b) prestar apoio às entidades empregadoras que pretendam re-crutar trabalhadores de outros países e c) prestar o devido aconselhamento e orienta-ção aos trabalhadores e às entidades empregadoras nas regiões transfronteiriças. A página oficial do Eures pode ser acessada no endereço eletrônico <http://ec.europa.eu/eures/>.23 RECOMENDACIÓN (CE) nº 2006/961/CE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 18 de diciembre de 2006, relativa a La movilidad transnacional en la Comunidad a efectos de educación y formación: Carta Europea de Calidad para la Movilidad [Diario

Oficial L 394 de 30.12.2006]. 24 RECOMENDACIÓN del Parlamento Europeo y del Consejo realtiva a la creación del Sistema Europeo de Créditos para la Educación y la Formación Profesionales (ECVET). Bruselas, 09.04.2008 [SEC (2008) 442 SEC(2008) 443]. Disponível en <http://euro-lex.europa.eu>.25 RECOMENDACIÓN del Parlamento y del Consejo sobre El estabelecimiento de um Marco de Referencia Europeo de Garantia de la Calidad en la Educaión y Formación

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traz, em seu conteúdo, um ciclo de qualidade que deverá ser implemen-tado em quatro fases: fase de estabelecimento dos objetivos da política e dos objetivos do planejamento; fase de execução; fase de avaliação pro-priamente dita e fase de revisão. Estas duas últimas servirão para retro-alimentar o sistema e organizar as mudanças e adaptações necessárias.

O paradigma chave presente no Documento é a aprendizagem permanente e ao longo da vida considerada um meio para inserção e reinserção no mercado laboral com qualidade. O ciclo de avaliação que se quer implementar vai garantir, além da qualidade e eficácia de ditos sistemas, a possibilidade de modificar para a melhora, de acordo com os dados colhidos no decorrer do processo e com as necessidades identifica-das. A idéia é efetuar um controle de qualidade através do diálogo cons-tante com os envolvidos no processo: formandos, formados, empregados, empregadores, professores, formadores, enfim, as pessoas que integram o mercado laboral. Não se trata de um processo fechado ou imposto, mas surgido de ampla discussão e debate na Comunidade, com o objetivo de afrontar as mudanças emergidas pela sociedade do Conhecimento.

3 A Formação para o Emprego e a Aprendizagem Permanente na Espanha

3.1 Um Direito Individual do Trabalhador

A Constituição Espanhola declara a Espanha como um Estado social, onde a promoção do homem ocorre através do trabalho e, no seu

Profesionalis, de 18 de junio de 2009. Publicado no Diario Oficial de la Unión Européa 2009/C 155/01.

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artigo 4026, coloca sob a responsabilidade dos Poderes Públicos a criação de uma política de formação e readaptação profissional. A FP se enqua-dra dentro dos princípios reitores da política social e econômica que, por um lado está condicionada a fatores externos que determinam disposi-ções para seu o desenvolvimento, e, por outro, introduz uma garantia de defesa diante das outras políticas e de interesses que possam entrar em conflito com ela. Estão incluídas aqui, a formação regrada (dirigidas aos jovens), a formação ocupacional (dirigida aos desempregados) e a formação contínua (dirigida aos trabalhadores em atividade). Os desti-natários dessa proteção são aquelas pessoas que se preparam para o exer-cício de uma atividade profissional e as que, estando em plena atividade laboral queiram trocar de profissão ou adequar seus conhecimentos a nova realidade tecnológica do mercado de trabalho. O cumprimento das obrigações relativas à aprendizagem profissional, seja ela de readaptação ou de reciclagem, traz consigo também, um âmbito de responsabilida-de para que o trabalhador mantenha-se atualizado do ponto de vista educativo-laboral e outro, para que o empresário facilite, promova ou permita esse processo de aprendizagem27.

26 CE Artigo 40 - 1. Los poderes públicos promoverán las condiciones favorables para el progreso social y económico y para una distribución de la renta regional y personal más equitativa, en el marco de una política de estabilidad económica. De manera especial realizarán una política orientada al pleno empleo.2. Asimismo, los poderes públicos fomentarán una política que garantice la formación y readapta-ción profesionales; velarán por la seguridad e higiene en el trabajo y garantizarán el descanso necesario, mediante la limitación de la jornada laboral, las vacaciones periódicas retribuidas y la promoción de centros adecuados27 PRADOS DE REYES, Francisco Javier. Contrato de Trabajo y Formación Profesional: consecuencias laborales y sociales de la integración de España en la Comunidad Europea. V Jornadas Universitárias Andaluzas de Derecho dei Trabajo y Relaciones

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O direito ao trabalho está contemplado na necessária vincula-ção do artigo 35.1 com o artigo 40 da CE, dentro do Capítulo III do Título I De los Princípios Rectores de La Política Social y Econômi-ca. A vinculação das figuras do pleno emprego ao direito ao trabalho já aparece em diversos Documentos internacionais, especialmente em Convênios da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Carta Social Européia. As referências da CE em matéria de política de emprego podem ser sintetizadas quando se recomenda aos Poderes Públicos a garantia da formação e da readaptação profissional (art. 40.2), porque parece que se está incluindo junto à política estrita-mente econômica, também uma política educativa: se trataria assim, de atuar não só sobre a oferta de emprego, mas também sobre a pró-pria demanda, igualmente. O limite que implica o reconhecimento do direito a livre eleição da profissão e do ofício (art. 35.1) deve ser considerado, observando, conforme sugere SASTRE IBARRECHE, as seguintes condições: a) obriga a que as medidas em que se traduza dita política educativa, tenham um caráter incentivador ou de estí-mulo e não coercitivo; b) mesmo que o texto Constitucional não ex-presse as modalidades de ação econômica para a consecução do pleno emprego, a menção repetida (arts. 40.1 e 131.1) ao desenvolvimento regional, conduz a articular programaticamente ambos objetivos, ten-do em conta o princípio da solidariedade inter regional consagrado nos artigos 02 e 138; c) a específica atenção prestada aos grupos so-ciais com superiores dificuldades de colocação no mercado de traba-

Laborales, celebradas en Sevilla, 15 y 16 de diciembre de 1986. Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, s/d, (pp 112-113).

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lho. Assim, o artigo 48 obriga os poderes públicos a promover “las condiciones para la participación libre y eficaz de la juventude en el desarrollo político, social, económico y cultural”, enquanto que o ar-tigo 49 postula a respeito aos deficientes (portadores de necessidades especiais) físicos, sensoriais e psíquicos, a realização de uma política de prevenção, tratamento, reabilitação e integração, amparando-lhes, especialmente para o desfrute dos direitos a que esse Título outorga a todos os cidadãos28.

Neste sentido e em sintonia com as Diretrizes da UE a Es-panha passou a desenvolver e implementar uma série de políticas di-rigidas à formação para o emprego e a aprendizagem permanente, considerando os paradigmas educativos de um direito do trabalho em construção.

3.2 O Subsistema de Formação para o Emprego

O Real Decreto 395/2007, de 23 de março, publicado no BOE nº 87 de 11 de abril do mesmo ano, regula as distintas iniciativas de formação que se configuram na criação do Subsistema de Forma-ção Profissional para o Emprego (SFPE). A Norma prevê o regime de funcionamento do SFPE, as formas de financiamento, a estrutura organizativa e a participação institucional. São cinco os grandes obje-tivos previstos: a) favorecer a formação durante a vida produtiva dos trabalhadores ocupados e dos que se encontram desempregados, para

28 SASTRE IBARRECHE, Rafael. El Derecho al Trabajo. Madrid: Trotta, 1996, (p.84).

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melhorar sua capacitação profissional e seu desenvolvimento pesso-al; b) proporcionar aos trabalhadores os conhecimentos e as práticas adequadas às competências profissionais requeridas no mercado de trabalho e as necessidades das empresas; c) contribuir para a melhoria da competitividade e da produtividade das empresas; d) melhorar a empregabilidade dos trabalhadores, especialmente daqueles que tem maiores dificuldades de acesso ao mercado de trabalho e de manter--se nos postos de trabalho e emprego oferecidos e e) promover as competências profissionais adquiridas pelos trabalhadores, através de processos formativos (formais e informais), valorizando a experiência laboral, para que seja objeto de reconhecimento pelo Estado e pelas empresas. Especialmente esse último objetivo, reflete o paradigma da aprendizagem permanente e por toda a vida sugerido pela UE, o que nos leva a entender a formação para o emprego como um processo de construção permanente e coletivo, onde a norma jurídica vai se adaptando às necessidades da formação profissional.

O texto do Decreto reconhece a importância da participação dos Atores Sociais no processo e também reforça o respeito à auto-nomia das Comunidades Autônomas, reconhecendo sua competência na participação e coordenação das ações formativas. Busca satisfazer os objetivos traçados na Estratégia Européia para o Emprego (EEE)29,

29 Após a inclusão do título “Emprego” no Tratado da União Europeia (UE) em 1997, inclusão do título “Emprego” no Tratado da União Europeia (UE) em 1997, os Chefes de Estado e de Governo lançaram, a Estratégia Europeia de Emprego com o objectivo de coordenar as políticas nacionais em matéria de emprego. A EEE insti-tui uma supervisão multilateral que incita os Estados-Membros a fomentar políticas mais eficazes neste domínio, melhorando a empregabilidade, o espírito empresarial,

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sintonizar seu ordenamento jurídico às Diretrizes Européias e aos paradigmas propostos. Destacam-se as iniciativas capazes de mate-rializarem a formação profissional para o emprego em iniciativas de formação da demanda, formação da oferta, formação em alternância com o emprego e as ações de apoio e acompanhamento à formação. Cada uma delas com objetivos próprios e destinatários específicos.

Todo esse sistema envolve um conjunto de normas e instru-mentos que dão base para as ações políticas e o desenvolvimento e integração das ofertas de formação profissional, através do Catálogo Nacional das Qualificações Profissionais (CNCP)30 e de um Catálogo Modular de Formação Profissional. Faz parte também desse conjun-to, os procedimentos para o reconhecimento, avaliação e certificação das competências profissionais; as iniciativas de avaliação que buscam a melhora e o aperfeiçoamento do sistema e a orientação e informa-ção a respeito da formação profissional. Com o objetivo de favorecer e facilitar o desenvolvimento profissional aproximando-o das neces-sidades do mercado de trabalho, o sistema visa articular diferentes qualificações e modos de reconhecimento de saberes.

a adaptabilidade e a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho Europeu. Informações retiradas do endereço eletrônico <http://europa.eu/legislation_sum-maries/employment_and_social_policy/community_employment_policies/c11318_pt.htm> em 20.10.2009 .30 El Catálogo Nacional de Cualificaciones Profesionales (CNCP) es el instru-mento del Sistema Nacional de las Cualificaciones y Formación Profesional que orde-na las cualificaciones profesionales, susceptibles de reconocimiento y acreditación, identificadas en el sistema productivo, en función de las competencias apropiadas para el ejercicio profesional. Disponível para consulta em <http://www.educacion.es/educa/incual/ice_catalogoWeb.html>

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os esforços internacionais no sentido de levar os Estados Eu-ropeus a legislarem o direito de aprender para o emprego, não são recentes. Há muito, os Organismos internacionais como a ONU (Or-ganização das Nações Unidas), através da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e da OIT (Organização Internacional do Trabalho), entre outras, tem legislado e discutido a respeito.

As teorias trabalhadas por FREIRE (re-aprendizagem), por DELORS (pilares) e MORIN (saberes), convergem para a necessi-dade da aprendizagem permanente que traz consigo o conceito de educação e formação continuada. Essas definições não são novas, mas, vem ganhando relevância na medida em que se aceleram as transfor-mações no mundo do trabalho e na sociedade como um todo. A edu-cação que se realiza por toda a vida e de forma contínua é inerente a pessoa humana e está ligada a idéia de construção e reconstrução do ser. De um lado, envolve a aquisição de conhecimentos, aptidões e ha-bilidades específicas e, de outro, valores, atitudes e comportamentos. Essa forma de educação e de aprendizagem permanente ocorre em todos os momentos da vida humana, por isso, que se fala em educação formal, não-formal e informal.

Há cerca de meio século a educação era considerada atribui-ção da família, da igreja e da escola, não sendo questionada. Porém, na medida em que as sociedades contemporâneas apresentaram novas formas de organização da produção, de política e de participação das pessoas, a educação passou a ser uma preocupação de todos, porque

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se percebeu que ela não estava atendendo às demandas da sociedade. O paradigma da sociedade contemporânea é a mudança constante nas formas de relação social e nas formas de produção e este cenário acabou exigindo a flexibilidade dos processos educativos, a ampliação dos locais de ensino e aprendizagem e a necessidade de informação e formação contínua passou a ser preocupação não só das crianças, mas também dos jovens, adultos e velhos.

Além da atualização constante dos conhecimentos, imposta pelo próprio mercado de trabalho, a expectativa de vida aumentou significativamente, fazendo com que houvesse mais tempo disponível para exercer outras atividades, como as relacionadas à aprendizagem. Passou-se a valorizar outros ambientes de aprendizagem, além da es-cola e percebeu-se que as empresas poderiam assumir as tarefas de qualificação profissional e reciclagem de saberes. Os universos edu-cativos se ampliaram, mas não substituíram o ensino formal, comple-mentaram-no. A preocupação com a auto-aprendizagem tornou-se também a preocupação dos novos processos educativos que aposta-ram na função do ensino formal em garantir que o trabalhador adqui-risse a aptidão para aprender e re-aprender por toda a vida. Os locais extra-escolares de aprendizagem se tornam mais visíveis quando o tema é aprendizagem profissional, mas, é possível verificar também um crescimento das zonas de aprendizagem cultural, comunitária e ocupacional.

Outro campo importante onde a prática de ações em educa-ção continuada e aprendizagem permanente se tornou presente está relacionado a um amplo movimento que une a valorização e o respei-to aos direitos da pessoa humana. Foram incorporados ao pensamen-

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to de vários países, por forte influência da sociedade civil, pela ONU e outros Organismos internacionais, o discurso de que o acesso à for-mação e a aprendizagem permanente para o trabalho é um direito de todos. Essa inspiração internacional acabou ampliando o campo de atuação destas Organizações, incorporando também, ações paralelas de proteção e defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e am-bientais. Acreditam que se houver oportunidades sociais adequadas, as pessoas poderão efetivamente elaborar seu projeto de vida e auxiliar uns aos outros. As ações educativas nessa visão são meios que servem para aumentar a capacidade participativa nos processos de ampliação das liberdades e também o motor do desenvolvimento.

Nesta discussão, é preciso dizer que o campo teórico recente da análise da implementação dos Direitos Humanos, apresenta duas características que são especiais: a primeira delas refere-se ao fato de que o ser humano tem uma capacidade nata para aprender e para en-sinar e isso ocorre na medida em que ele evolui, porque, como parte de sua capacidade evolutiva. Nesse aspecto reforçamos a teoria de FREIRE que afirma ser o homem incompleto e inacabado e que, nessa conscientização, busca a aprendizagem de forma permanente, se educa e se auto-educa. A segunda característica está na condição de agente do ser humano, considerada condição importante para que os Direitos Humanos se efetivem. O próprio homem avalia os proces-sos e as políticas de implementação desses direitos, através do que se denomina de cidadania ativa, impulsionando e servindo de referência para a análise do poder público das ações que ele implementa.

Alguns teóricos costumavam diferenciar a educação/aprendi-zagem permanente da educação/aprendizagem continuada, dizendo

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que, a primeira envolveria a preparação para o trabalho e a segunda, a formação para a vida. Atualmente, não há que se diferenciar as for-mas de educar e aprender pois, trabalho e formação para a vida nos remetem ao conceito de sociedade educativa onde, de forma perma-nente e constante, como se disse anteriormente, ampliam-se os espa-ços educativos para proporcionar as pessoas o acesso mais amplo as aprendizagens. Partilham-se as responsabilidades com a formação e a educação para o trabalho e a sociedade educativa preocupa-se tam-bém com a formação em que a realização das potencialidades huma-nas tornam-se importantes práticas sociais. Retomando as ideais de MORIN, o estudo do amplo se torna necessário e acaba facilitando a compreensão do mais específico. Assim, os cursos de formação para o emprego devem contemplar também as temáticas que abarcam a for-mação genérica do trabalhador. Os paradigmas orientativos do novo modelo Europeu de formação profissional levaram à um processo permanente de construção do direito do trabalho fazendo com que os Atores Sociais e os próprios trabalhadores sejam os protagonistas desse novo processo.

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS

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RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ÍNDIA: RESGATE HISTÓRICO E POTENCIALIDADES ESTRATÉGICAS ATUAIS

Edson José Neves Júnior1

Resumo

As relações entre Brasil e Índia têm demonstrado crescimento

significativo nos últimos anos, de acordo com a tendência da cooperação

sentido Sul-Sul. Contribuiu para esse aprofundamento alguns fatores rela-

cionados à parceria histórica e contemporânea em fóruns internacionais de

negociação multilateral, como a atuação articulada no G-20, a formação do

Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul – IBAS, em 2003; e a cres-

cente participação coordenada no grupo BRIC. Em função desta recente

convergência, resta averiguar quais os limites colocados para essa aliança e

qual o grau de interdependência derivado de sua aproximação. Este artigo

parte da premissa que o crescimento da colaboração entre estes dois países

ocorre pela mudança na conjuntura mundial, onde um cenário multipolar

se consolida em oposição às tentativas de recuperação hegemônica operadas

pelos EUA, desde 2001, e também pelo aumento evidente das divergências

econômicas e políticas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Palavras-Chave: Relações Internacionais entre Brasil e Índia; Comércio

1 Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Relações Internacio-nais e Graduado em História, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-GS). Professor de História do Ensino Médio municipal. E-mail: [email protected]

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Brasil-Índia; Cooperação Sul-Sul; Fórum IBAS.

Abstract

The Brazil India relations have shown significant growth in recent years, according with the trend of South-South cooperation. Contributed to increase depth of this partnership several factors rela-ted to historical and contemporary alliances in international multila-teral negotiation, as articulated action on the G-20, the formation of the Dialogue Forum India, Brazil and South Africa - IBSA in 2003, and increasing participation coordinated in BRIC group. In light of this recent convergence, it remains to ascertain what are the limits placed for this alliance and what degree of interdependence derived from his approach. This paper assumes that the growth of cooperation between the two countries is the change in the world situation, where a multipolar scenario consolidates itself in opposition to attempts to rescues hegemonic role for U.S.A., operated since 2001, and also by enlargement of disagreements and economic policies between deve-loped and developing countries.

Keywords: International Relations between Brazil and India, India--Brazil trade, South-South Cooperation; IBSA Forum.

INTRODUÇÃO

No cenário internacional, conformado nas últimas duas déca-No cenário internacional, conformado nas últimas duas déca-das, que teve como acontecimentos determinantes o fim da Guerra Fria

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e os atentados terroristas de 2001, têm adquirido crescente importância os países que demonstram grande importância regional associada a fato-res tradicionais de prestígio político como uma significativa população, vasta extensão territorial e poderio militar. Brasil e Índia, em uma pers-pectiva geral, se apresentam como Estados deste tipo.

Chama atenção a progressiva aproximação operada entre estes dois atores na cena mundial, fazendo crer na possibilidade de atuação conjunta, o que se reflete, por exemplo, na criação do Fórum Índia, Bra-sil e África do Sul (IBAS), um organismo político intercontinental cria-do em 2003, e na constituição do Grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), a princípio apenas uma sigla, cunhada em 2001, mas que se tornou um grupo internacional, de fato, em maio de 20082. Contudo, é importante compreender as origens da aproximação entre Brasil e Índia e avaliar a sua real consistência.

Assim, este artigo tem por metas oferecer uma análise da histó-ria da cooperação bilateral entre Brasil e Índia, nas parcerias em espaços multilaterais de negociação internacional e na constituição e finalidades do fórum trilateral do IBAS e no grupo do BRIC. Para abordar as re-lações bilaterais utilizamos, basicamente, da diplomacia entre os dois países e de suas relações comerciais. Para os espaços multilaterais, avalio

2 O termo BRIC foi criado pelo economista Jim O´Neil, em 2001, por meio de um estudo intitulado Building Better Global Economic BRICs. Desde então, algumas reu-niões entre representantes dos países foram efetivadas, mas foi somente em maio de 2008, a partir de uma Reunião dos Chanceleres dos quatro países em Ecaterimburgo, é que o grupo se tornou formal, com seus integrantes declarando compartilhar de in-teresses comuns nas áreas da política e da economia e se comprometerem a realizar encontro anual para discutir temas pertinentes ao cenário internacional contemporâ-neo. (MRE, Informações Gerais sobre o Grupo BRIC).

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qual a importância das ações coordenadas em fóruns como a OMC (Or-ganização Mundial do Comércio), Conselho de Segurança das Nações Unidas e outros, e na criação do Fórum do IBAS e do grupo BRIC.

O resultado evidente na análise das relações entre Brasil e Índia é que, em termos históricos, a cooperação bilateral, nos quesitos diploma-cia e comércio exterior, foi muito reduzida e restrita à breves conjunturas de aproximação; ao contrário de atuações articuladas em espaços inter-nacionais multilaterais, como aqueles dedicados aos temas da economia e comércio, como a UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e OMC; e de segurança, como o Conselho de Segurança da ONU.

Breve História das Relações Diplomáticas entre Brasil e Índia.

No campo diplomático, as relações entre Brasil e Índia inicia-ram com a independência indiana, tendo do lado indiano personagens como Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru e da parte brasileira, o presidente Eurico Gaspar Dutra. Já em 1948, foi instalada a primeira embaixada indiana no Brasil, após visita e “apresentação de credenciais” do embaixador indiano Minoo Masani (VIEIRA, 2007, p. 52). Depois destes episódios de “inauguração” das relações entre os dois países, houve uma série de acontecimentos que, contudo, marcaram negativamente tais relações. Todos eles se referem à posição brasileira em relação às colônias portuguesas na Índia.

Ocorrida a independência indiana, restaram, contudo, alguns problemas territoriais não solucionados. Alguns deles reportavam às pequenas colônias portuguesas remanescentes de Goa, Damão e Diu,

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ainda pertencentes à Portugal, visto que a independência conquistada junto à Inglaterra não abrangia estes entrepostos incrustados na recém--criada União Indiana.

A Índia, por considerar aqueles territórios seus, solicitou a Por-tugal que cedesse formalmente a sua administração ao governo indiano. Portugal, por seu turno, receoso de que a libertação das colônias na Índia pudesse estimular a luta em suas outras possessões na África, rejeitou qualquer acordo com os indianos. O impasse só teve seu desfecho com a ocupação militar dessas áreas pelo exército indiano em 1961, passada mais de uma década de embates diplomáticos e duras negociações na Organização das Nações Unidas. Interessa trazer à análise esse fato pelo envolvimento que teve o Brasil ao longo do episódio e pela sua relevân-cia para as relações entre Brasil e Índia nos anos posteriores.

De acordo com o Tratado de Amizade e Consulta entre o Brasil e Portugal, celebrado no Rio de Janeiro, em 16 de novembro de 1953, os países se comprometiam a apoiar-se mutuamente em questões diplomá-ticas que “ferissem seus interesses” (RAMPINELLI, 2007, pp. 83-85). Dessa forma, quando a Índia mobilizou seus negociadores internacio-nais para obter apoio no caso das colônias portuguesas, o Brasil foi um empedernido defensor dos interesses portugueses, argumentando que Goa, Damão e Diu não eram colônias, mas sim parte do império portu-guês (Províncias Ultramarinas) e que por isso deveriam se manter sob a gestão lusitana. A ocupação militar dos antigos entrepostos portugueses pela Índia foi denunciada pelos representantes brasileiros como um “ato imperialista” dos indianos. Ainda na esteira das contendas diplomáticas, a representação do Brasil, insatisfeita com os resultados das divergên-cias políticas, partiu para a retaliação e proibiu, em 1962, a importação

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de material genético e de animais indianos para melhoria do rebanho zebuíno de criadores brasileiros, que era mestiço3. O governo indiano, respondendo, por sua vez, proibiu aos seus cidadãos que exportassem embriões e animais dessa raça para o Brasil (VIEIRA, 2007, p. 53-54).

As disputas diplomáticas e a “contenda dos zebus”4 marcaram por algum tempo as relações entre Brasil e Índia de modo negativo, porque os representantes diplomáticos da Índia passaram a considerar o Brasil como “submisso” aos interesses das antigas colônias e, poste-riormente, das grandes potências, incapaz de se insurgir contra sua me-trópole e ainda, mesmo depois de independente, advogar em favor dos antigos opressores europeus. O afastamento diplomático persistiu até a década de 1990, com exceção de algumas frustradas tentativas de reto-mar as relações entre os países5.

3 O material genético do rebanho zebuíno indiano é valorizado pelos criadores bra-sileiros porque os animais são originários daquele país e ainda porque são preser-vados naturalmente, pois os indianos os utilizam apenas para a produção de leite e tração, em virtude de ser considerado um animal sagrado. Informações constantes na página eletrônica <http://www.zebuonline.com.br/pt/index.php>, visitado em 25 de fevereiro de 2011. 4 Este termo não é usual na bibliografia, mas espelha este restrito incidente interna-cional envolvendo Brasil e Índia. Cabe lembrar que a questão não foi levada adiante perante qualquer instituição jurídica internacional, ficando restrita apenas às deter-minações internas de cada país. Contudo, mesmo com a proibição expressa aplicada pelos governos nacionais, produtores brasileiros e indianos continuaram a realizar negócios nesse campo, mas sem o amparo legal. O tráfico de material genético só teve fim com sua regulamentação intergovernamental na década de 1990. 5 Com vistas a restabelecer a aproximação ocorreu com a visita da governante in-diana Indira Gandhi, em 1968, no qual foram assinados acordos de cooperação que não saíram do papel. Na década de 1980 ainda foram celebrados mais alguns atos diplomáticos que acenaram para a possibilidade de estabelecimento de parcerias, mas esses acordos não eram mais do que intenções e, na prática, pouco significa-ram. (VIEIRA, 2007, p. 54)

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O singelo aumento das atitudes diplomáticas ao longo das últi-mas duas décadas pode ser mostrado por meio de dois recursos. Primeiro, mediante a análise da quantidade de “Atos Bilaterais Multitemáticos en-tre Brasil e Índia”, representados na Tabela 1, elaborada a partir de dados retirados da página eletrônica do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Segundo, pela observação das visitas governamentais realizadas por representantes brasileiros e indianos, no decorrer da década de 1990 até o ano de 2009. Os atos bilaterais firmados desde 1969 não significam, necessariamente, a execução das finalidades expressas em seus textos. Em outras palavras, Brasil e Índia demonstraram boa intenção diplomática ao assinarem os diversos acordos, mas a execução das determinações cons-tantes nos textos dependeria, em última instância, do esforço de setores governamentais e privados em mobilizar recursos para tal finalidade.

Tabela 1 - Atos Bilaterais* Multitemáticos Brasil – Índia (em vigor)

Fonte: dados do Ministério das Relações Exteriores (elaboração própria)* a definição de atos bilaterais, de acordo com o MRE, compreende Acordos, Decla-rações, Convenções, Memorandos, Agendas e Programas.** Dentre o número total de tipos de Atos celebrados há documentos intitulados Ajus-tes Complementares, que incrementam os atos anteriormente em vigor.

Ano Nº de Atos**1969 11970 11990 11992 31996 31997 11998 2

Ano Nº de Atos**2002 12004 12006 52008 62009 02010 0Total 25

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Sobre estes Atos, algumas considerações são necessárias quan-to a sua importância e conteúdo. Primeiro, o número de acordos cele-brados entre Brasil e Índia, se cotejados a outros tradicionais parcei-ros brasileiros, como Argentina e Estados Unidos, é numericamente muito menor. Em comparação com o número de atos bilaterais as-sinados com a Argentina, por exemplo, há uma desvantagem extre-ma: Brasil e Argentina assinaram mais de duzentos atos bilaterais no mesmo período apontado na tabela6. Portanto, em termos absolutos, as relações bilaterais com o governo indiano correspondem a cerca de dez por cento das relações com um parceiro brasileiro tradicional como a Argentina7.

A segunda consideração diz respeito aos acordos nas áreas de cooperação científica e tecnológica e os de cunho comercial. Basica-mente, estes são os atos que maior efetividade têm alcançado, prin-cipalmente por meio da exportação de etanol e da transferência de tecnologia para sua produção (acordos de 2006). Sobre os tratados comerciais, especificamente, ressalta-se a compra de aviões da Em-braer para integrar a forças aéreas indianas, que tiveram de diversi-ficar suas fontes de abastecimento em função da desintegração da União Soviética, seu tradicional fornecedor de produtos bélicos.

6 Para estabelecer essa proporção com maior precisão, considera-se apenas os atos bilaterais Brasil e Argentina a partir do ano de 1968 (visto que nenhum deles entrou em vigor em 1969, ano do primeiro acordo Brasil-Índia). Os primeiros acordos Brasil/Argentina datam da primeira metade do século XIX. 7 Obviamente, não se analisa o teor dos mais de duzentos acordos bilaterais com a Argentina. A comparação aqui proposta é evidenciada em termos absolutos e serve apenas para demonstrar a diferença entre parceiros internacionais na história das relações exteriores do Brasil.

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A terceira ponderação é relativa aos acordos para utilização pacífica de energia nuclear. Apesar dos recorrentes acordos nesta área polêmica, há certa precaução por parte do Brasil em implementá-los devido às distintas concepções que ambos os países têm a respeito do tema. A Índia desenvolveu armas nucleares e ocasionalmente realiza testes, para demonstrar seu poderio para o rival regional, o Paquistão. Os últimos “testes”, demonstrações explícitas de força, dataram de 1998 e foram alvo de críticas da diplomacia brasileira. O Brasil con-sidera o desenvolvimento desta tecnologia exclusivamente para usos pacíficos (ALTEMANI DE OLIVEIRA, 2006, p. 7-8).

Outra inferência, relacionada ao aumento do interesse mútuo das diplomacias brasileira e indiana, indica um significativo crescimen-to nas relações políticas diplomáticas entre os dois países, a partir do ano 2000. Esse crescimento pode ser atribuído justamente aos renova-dos interesses dos representantes políticos em incrementar as relações entre os países, mas não significa o estabelecimento de primazia entre eles. O aumento do número de atos bilaterais nos anos de 2006 e 2008, correspondendo praticamente à metade do total apresentado na Ta-bela 1, bem como o aumento das visitas diplomáticas (BALADÃO, 2009) são decorrência, principalmente, da aproximação oportunizada pelo Fórum de Diálogo IBAS e pelas reuniões dentro do Grupo BRIC e simbolizam a convergência conjuntural da política externa dos dois países. Não representam, contudo, uma reversão de tendências na polí-tica exterior brasileira e indiana, se comparado aos acordos com parcei-ros tradicionais. O grau de interdependência política entre estes países, embora crescente, continua pouco significante, visto que as parcerias internacionais entabuladas são resultado de aproximação recente e es-

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tão restritas à determinados campos de atuação. Um último indício da divergência entre as políticas externas do

Brasil e da Índia pode ser encontrado no trabalho elaborado pelo Cen-tro de Estudos das Negociações Internacionais (CAENI), vinculado ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, e coordenado pelo Prof. Dr. Amâncio Jorge de Oliveira, relacionado às posições dos integrantes do IBAS sobre temas vinculados ao Comércio, Segurança, Meio Ambiente, Direitos Humanos e outros, discutidos nas organizações internacionais (OLIVEIRA, et al, 2006). Segundo este estudo se conclui que Índia e Brasil tiveram, ao longo do período recortado, um grau relativamente baixo de interesses comuns.

O objetivo de analisar o fórum IBAS pelo CAENI surgiu da indagação sobre qual o grau de interesse dos países integrantes em promover uma coalizão ou cooperação entre nações “com baixo grau de interdependência socioeconômica” (OLIVEIRA, et al, 2006, p. 490). Segundo os próprios autores, baseados em teorias elaboradas para interpretar processos de integração e formação de coalizões, o IBAS não busca se configurar uma área onde figure uma “interdepen-dência endógena”, como nos processos de integração regional. Dese-jam sim, estabelecer parcerias “para lidar com problemas comuns, ou, ainda, de uma disposição governamental para induzir a ampliação da interdependência como forma de diversificação de parcerias, para além dos vínculos com grandes potências.” (OLIVEIRA, et al, Idem.)

De acordo com o “índice de correlação bivariado”8 aplicado

8 Sobre o Índice de Correlação Bivariado, explicam os autores: “Foram criados indica-dores que captam as preferências dos três países reveladas na OMC e na ONU. Cada

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para o conjunto de todos os temas, fica claro o diminuto grau de convergência internacional. Os diversos apontamentos estatísticos formulados pelo CAENI indicam que o Fórum permanente trilateral do IBAS é uma coalizão internacional permeada exclusivamente por interesses conjunturais comuns, geralmente, determinados pelos res-pectivos governos nacionais; e bastante frágil, quando consideradas as convergências bilaterais entre seus integrantes. Embora esteja claro que formas de cooperação Sul-Sul tenham a tendência a aumentar no decorrer dos anos, deve ter em conta que alguns dos principais países têm significativas divergências e objetivos distintos.

Relações Comerciais bilaterais Brasil-Índia

Em relação às trocas comerciais em períodos recentes pode-se concluir que, nos últimos anos, houve uma intensificação dos negócios entre Brasil e Índia. A Tabela 2 indica os números das transações nos últimos quinze anos, comparando as exportações entre os dois países. O que se nota é o vertiginoso crescimento das trocas comerciais, prin-cipalmente a partir do período de 2005/2006. Não por coincidência

voto na ONU e cada posição na OMC foram classificados segundo quatro categorias: voto a favor da resolução; voto contrário; abstenção; e ausência de prerrogativa de voto (para o caso de algum país não poder expressar suas posições nesses fóruns em algum período da amostra). Foram recolhidos dados para um período de onze anos (de 1994 a 2004). Foi utilizado o índice de correlação bivariado (entre dois países) para medir o grau de convergência ou divergência das preferências reveladas. Em uma escala de 0 a 1, quanto mais próximo de 1 for o resultado, maior a convergência de posicionamento do país em relação ao tema pesquisado. Quanto mais próximo de 0, maior a divergência de posicionamento do país em relação ao tema.” (OLIVEIRA, et al, 2006, p. 490-491)

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o incremento das transações comerciais bilaterais ocorre na sequência da instituição do Fórum Trilateral do IBAS, e também em função de outros mecanismos facilitadores, como a assinatura do acordo de co-mércio preferencial entre o Mercosul e a Índia, em 2004.

Tabela 2 - Exportações e Importações Brasil Índia – 1996 a 2010

Fonte: ALICEWEB/MDIC – Balança ComercialElaboração própria.

Embora significativo o aumento das transações, deve-se com-pará-lo com os valores individuais de exportação de Brasil e Índia. Os dados das exportações brasileiras destinadas à Índia estão contrastados

Exportações Brasil Índia Importações Índia BrasilSaldo

Ano Valor (em US$-FOB) Ano Valor

(em US$-FOB)

1996 184.915.784 1996 185.770.662 -854.878

1997 166.296.026 1997 216.153.816 -49.857.790

1998 144.886.031 1998 211.669.177 -66.783.146

1999 313.906.319 1999 170.041.723 143.864.596

2000 217.450.483 2000 271.355.071 -53.904.588

2001 285.407.449 2001 542.790.833 -257.383.384

2002 653.737.166 2002 573.183.730 80.553.436

2003 553.696.147 2003 485.743.944 67.952.203

2004 652.553.131 2004 556.069.715 96.483.416

2005 1.137.930.199 2005 1.202.914.200 -64.984.001

2006 938.889.310 2006 1.473.951.621 -535.062.311

2007 957.854.449 2007 2.169.274.206 -1.211.419.757

2008 1.102.342.120 2008 3.564.304.236 -2.461.962.116

2009 3.415.040.261 2009 2.191.096.530 1.223.943.731

2010 3.492.350.604 2010 4.242.386.853 -750.036.249

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em relação, primeiro, ao volume remetido ao continente asiático (ex-clusive Oriente Médio), segundo, ao volume total, o que permite re-presentar a relevância do mercado indiano para o Brasil no contexto da Ásia e do mundo; e terceiro, em comparação com alguns dos principais parceiros comerciais brasileiros. A tabela 3 indica esses números.

Tabela 3 – Exportações Brasil Índia em perspectiva comparada (2004-

2010) (em US$)

Fonte: ALICEWEB/MDIC – Balança ComercialElaboração própria.

O que se conclui é que as negociações com a Índia, no perío-do indicado, é que, embora o volume de valores negociados esteja em vertiginoso crescimento, ele não se torna tão distinto se comparado ao total negociado com a Ásia e com todo o volume de transações bra-

AnoExportação Brasil-Índia

Exportação Brasil-Ásia

% em relação ao comércio Brasil-Ásia

Exportação Brasil-Mundo

% em relação ao total de

exportações do Brasil

2004 652.553.131 14.577.190.712 4,5 96.677.838.776 0,7

2005 1.137.930.199 18.565.977.366 6,1 118.529.184.899 1,02006 938.889.310 20.816.366.719 4,5 137.807.469.531 0,72007 957.854.449 25.086.433.209 3,8 160.649.072.830 0,62008 1.102.342.120 37.570.970.683 2,9 197.942.442.909 0,62009 3.415.040.261 40.239.044.462 8,5 152.994.742.805 2,22010 3.492.350.604 56.272.595.819 6,2 201.915.285.335 1,7

Principais parceiros comerciais do Brasil em 2010 (China, EUA, Argentina)Brasil-China (2010)US$ 30.785.906.442

(% do total geral: 15,2)

Brasil-EUA (2010)US$ 19.307.295.562 (% do total geral: 9,6)

Brasil-Argentina (2010)US$ 18.522.520.610 (% do

total geral: 9,2)

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sileiras. Pelo que se constata, apenas em três ocasiões o valor transa-cionado passa dos seis por cento em relação à Ásia e apenas em 2009 atinge cifra maior que dois por cento do total das exportações bra-sileiras. Se compararmos as exportações do Brasil com a Índia com as de Brasil e China, no ano de 2010, vemos que é três vezes menor. Além disso, como indicado no ano de 2008, onde se iniciou a cri-se econômica internacional mais recente (mais conhecida por “crise imobiliária dos EUA”), observa-se a fragilidade na parceria comercial Brasil-Índia, denotada pelo decréscimo em relação à tendência ante-rior, pelo menos no que se refere ao comércio brasileiro com a Ásia.

No sentido inverso do fluxo de exportações, ou seja, as ori-ginárias na Índia com destino ao Brasil (em comparação ao total de exportações indianas) se constata idêntica tendência e avaliação ao se observar as informações retiradas da página eletrônica do Departa-mento de Comércio do Governo Indiano. Para os períodos de 2006 a 2010, as exportações indianas para o Brasil representam apenas entre 1 e 1,5% em relação ao total exportado, conforme Tabela 4, a seguir.

Tabela 4 – Quadro de Exportações Índia Brasil - 2006 – 2010 (em US$)

Fonte: Governo Indiano - Department of Commerce, Export Import Data Bank

Uma possível interdependência política e econômica entre Bra-Uma possível interdependência política e econômica entre Bra-sil e Índia, pelo menos em se tratando da sua história diplomática e das

Anos 2006-2007 2007-2008 2008-2009 2009-2010Valor – Exp. para o Brasil 1.449.250,00 2.525.900,00 2.651.430,00 2.414.290,00

Valor – Exp. Totais 26.414.050,00 163.132.180,00 185.295.360,00 178.745.460,00% em relação ao total das

exportações indianas 1.14 1.54 1.43 1.35

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relações comerciais estabelecidas, não pode ser constatada. Apenas nos fóruns internacionais trilaterais e multilaterais as parcerias9 se mostra-ram mais significativas. Na seção subsequente é indicado e examinado o papel de liderança e parceria entre os dois países em fóruns multilaterais de comércio, financiamento e segurança, como o G-20 e o G-4, entre outros, e na instituição e consolidação de espaços políticos internacio-nais como o IBAS e o BRIC.

Brasil e Índia nos fóruns multilaterais

O destaque entre as relações Brasil e Índia está nas diversificadas formas de cooperação que esses países empreenderam no campo mul-tilateral. A participação e, notadamente, a liderança desses dois grandes Estados periféricos é constatada com certa regularidade nos organismos internacionais, políticos e econômicos, e suas rodadas de negociações.

A atuação articulada entre representantes governamentais bra-sileiros e indianos foi importante na criação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), na década de 1960. Também neste período, e como decorrência da mobilização dos países mais pobres ou, os naquela época integrantes do Terceiro Mundo, foi organizado o G-77, incluindo os países subdesenvolvidos e em de-senvolvimento. Teve especial destaque na criação deste amplo conjunto

9 Utilizam-se os termos “parceria” e “cooperação” quando se referem aos fóruns multilaterais porque se trata exclusivamente de associações objetivas, em temáticas internacionais, onde a unidade de posições se dá para atingir objetivos comuns. Es-sas parcerias não têm comprometimento internalizado e formalizado como o Merca-do Comum do Sul (MERCOSUL), por exemplo.

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de países a formação, por parte de potências médias, da ideia de não alinhamento na luta entre os blocos capitalistas e socialistas. A Índia participou ativamente na criação do Movimento dos Não Alinhados (MNA), o Brasil nunca o compôs formalmente, mas assistiu a algumas das suas reuniões como observador.

Ainda dentro da experiência e espírito da criação da UNCTAD e da organização do G-77, Brasil e Índia fundaram, com outros mem-bros, o G-24, em 1971. Este grupo, ainda ativo, visa formular proposi-ções aos organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial (BIRD/AID) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). A necessida-de da sua criação deriva da reação ao predomínio dos países que futura-mente integrariam o G-710 na definição de políticas de financiamento internacional. Considerava-se, à época, que tanto BIRD/AID, quanto FMI, não atendiam aos interesses dos países menos desenvolvidos e eram na verdade, organismos dedicados a manter a radical desigualdade econômica entre as nações, concedendo privilégios em forma de em-préstimos apenas àqueles que se “comportassem” de acordo com suas determinações. Esta tendência ficaria mais patente nas décadas de 1980 e 1990 quando FMI e BIRD impõem aos países pobres planos de refor-mas econômicas e sociais em troca de financiamento.

Outro grupo importante (e mais recente) criado em decorrência da liderança de Brasil e Índia, e também da China, foi o G-20, atuante nas rodadas de negociação da OMC destinadas à regular o sistema de

10 O G-7 foi criado em 1975 e incluía as maiores potências econômicas do mundo à época: EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá. Desde 1998 passou a ser o G-8 com a inclusão da Rússia.

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comércio e investimentos internacionais. Este articulado grupo é lide-rado por países considerados “em desenvolvimento”, como China, Áfri-ca do Sul, Argentina, Brasil e Índia. Sua atuação na OMC deu sinais de vida na Rodada de Doha, em 2001, quando os países em desenvol-vimento se organizaram para resistir às pressões dos países ricos para definir e aprovar pautas econômicas pouco interessantes. Contudo, foi somente na reunião interministerial de Cancún, em 2003, que o G-20 formalizou a coalizão diante da negligência dos países desenvolvidos em tratar das referidas questões agrícolas e priorizar temas relacionados ao comércio e economia, os chamados “Temas de Cingapura”.

O G-4 é outra associação mundial na qual Brasil e Índia tive-ram responsabilidade na formação. Além desses dois países conta tam-bém com a Alemanha e o Japão. Seu escopo é alterar a configuração do Conselho de Segurança da ONU, propiciando a elevação dos seus quatro membros (além de um país africano) à categoria de “permanen-tes” do CS. Portanto, se a proposta for aprovada, o CS passará a ter 10 países com direito ao poder de veto, ao contrário dos atuais cinco (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França). A intenção brasileira e indiana de integrar permanentemente o CS é sustentada por ambos devido ao papel chave que estes países desempenham na suas respectivas regiões. Do lado indiano, seu poder nuclear, combinado ao tamanho de sua po-pulação e ao “combate aos grupos terroristas” são argumentos levantados para justificar seu ingresso como membro permanente. Já o Brasil indica sua reiterada participação brasileira em forças de paz da ONU e sua liderança na criação da “Zona de Paz” (CERVO, 2008), na América do Sul como fatores definitivos de sua entrada no CS. Outro fator que con-tribui à candidatura brasileira é o fato de ter sido eleito em nove ocasi-

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ões na qualidade de membro provisório, detendo o recorde de presenças como integrante sem direito ao veto.

O Fórum permanente de discussões Índia, Brasil e África do Sul – IBAS foi oficialmente formado em 2003, como resultado da “Decla-ração de Brasília”. Desde sua criação alcançou objetivos significativos, como a criação de um Fundo Internacional de Combate à Fome e à Pobreza, ações de cooperação em Ciência e Tecnologia e propôs a po-lêmica instituição de uma Área de Livre Comércio que envolveria a Índia, o Mercosul e a SACU (integrado por África do Sul e parceiros regionais)11. Além das ações e propostas, o Fórum IBAS pretende abar-car em seu conjunto uma multiplicidade de temas de interesse mun-dial, como meio ambiente e direitos humanos. Com maior ênfase, está a questão da segurança internacional e subtemas derivados dela12, como terrorismo, imigração, tráfico de drogas, criminalidade, fome, epidemias e outros (DADA; KORNEGAY, 2007).

A história da aproximação dos países-membros do IBAS, con-tudo, está localizada no ano de 1997, quando se iniciou uma batalha

11 A Área de Livre Comércio Trilateral Índia-Mercosul-SACU foi proposta em outu-bro de 2007, resultado de cúpula do IBAS. A área incluiria, além da Índia, os países mercosulinos (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e os da SACU - Southern Africa Customs Union (Botsuana, Lesoto, Namíbia, África do Sul e Suazilândia).12 Convém considerar que o IBAS amplia o conceito de segurança internacional in-serindo em seu cerne matérias como a fome e as epidemias (de AIDS, por exemplo). Ademais, a iniciativa de tratar de tema tão sensível, e ainda redimensioná-lo, de-corre da intenção implícita de se contrapor ao conceito de segurança internacional defendido pela política externa estadunidense, pautada quase que exclusivamente no combate ao terrorismo. Também, a iniciativa de alargar a agenda de segurança mundial, incluindo a fome como causa da insegurança, denota a intenção tornar mais evidente as diferenças sociais entre o Norte rico e um Sul pobre.

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comercial e diplomática envolvendo África do Sul, Índia e Brasil contra, principalmente, os Estados Unidos, e também alguns países da União Européia, em torno do contencioso das patentes farmacêuticas, na qual as nações em desenvolvimento, articulados em torno de um propósito comum, a quebra da patente para o coquetel de remédios anti-HIV, obtiveram uma vitória ante os EUA que, por pressão da opinião pública interna e internacional, recuaram em suas exigências na OMC (OLI-VEIRA, 2005).

O grupo BRIC ou Aliança dos Países Baleia, a associação mais recente envolvendo Brasil e Índia, tem uma potencial importância polí-tica, pois reúne quatro grandes economias emergentes. Desde sua funda-ção formal em 2008, ainda não se implementou significativas medidas práticas, muito embora em seus discursos e comunicados, resultantes das três cúpulas realizadas em maio de 2008, junho de 2009 e abril de 2010, demonstrem crescentes interesses comuns sobre temas importantes li-gados ao sistema financeiro mundial, às questões de segurança, ao aque-cimento global e postulem uma atuação coordenada em organizações mundiais como o FMI, Banco Mundial, OMC. Resta evidente a impor-tância do diálogo entre os membros do grupo como forma de contestar a hegemonia americana, tanto no que se refere à definição da agenda internacional de negociações, quanto às decisões a serem tomadas.

Análise do atual contexto internacional e a ascensão das formas de co-

operação Sul-Sul

A cooperação Sul-Sul não pode ser classificada como um fe-nômeno recente nas relações internacionais. Mesmo durante o perío-

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do da Guerra Fria havia a percepção de que as clivagens entre capita-lismo e socialismo, orquestradas pelos líderes dos blocos controversos, atendiam a interesses específicos e não promoveriam, ao contrário do que se esperava, o crescimento econômico dos países periféricos e também não reduziriam as desigualdades entre os países localizados no hemisfério Norte e os desprovidos do Sul. O Movimento dos Não Alinhados, o G77 e outras manifestações terceiro-mundistas isoladas, atestam que a cooperação Sul-Sul já se ensaiava nas décadas de pleno conflito (indireto) entre os Estados Unidos e União Soviética.

Com o fim da Guerra Fria poderia se esperar uma eclosão es-petacular dessas articulações Sul-Sul em contraposição ao Norte, pois a luta ideológica não ocuparia mais a agenda internacional e as diferenças socioeconômicas se tornariam mais evidentes. Esse despertar dos “me-nos abastados”, contudo, não ocorreu por três motivos interligados.

O primeiro deles foi o obscurantismo geral em que caíram as nações menos desenvolvidas, plenamente contentadas com as maravi-lhas que a abertura dos mercados poderia vir a promover, sem a menor prova de que esse prometido aumento da riqueza geral pudesse, de fato, se concretizar. O segundo motivo foi a vinculação que os países sub e em desenvolvimento mantinham com as grandes potências capitalistas, obri-gando-os a preservar certos laços e comportamentos condizentes com a suposta “nova ordem”. E, o último motivo remete à diversidade de pro-jetos e propostas políticas e econômicas, muitas vezes contraditórias, que os países pobres apresentavam, inviabilizando certas alianças e coalizões.

Contudo, a reversão dessa conjuntura e a possibilidade de aproximação entre, pelo menos, um reduzido grupo de países em desenvolvimento se deu no fracasso dos projetos neoliberais imple-

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mentados ao longo da década de 1990 e na reorientação da política internacional americana operada desde fins de 2001, visando o res-tabelecimento da hegemonia política e econômica (enfraquecida) no cenário internacional13.

Ficou evidente para Brasil e Índia, ao primeiro pela experiência, e ao segundo pela observação, que a cooperação em torno de interesses comuns é condição indispensável para buscar uma colocação mais pro-veitosa no sistema internacional. Não se trata, pelo averiguado, de pro-jetar um mundo novo, de promover mudanças de ordem sistêmica, mas sim de alterar a “clássica” divisão entre periferia, semi-periferia e centro, proporcionando uma redistribuição internacional de poder, no cenário transformado pela globalização. Contudo, para que essa necessária par-ceria seja mais bem estruturada é mister comparar os dois países para averiguar quais são os fatores positivos e negativos para sua aproximação.

Na tentativa de oferecer um resumo sobre este ponto e es-quematizá-lo, e com base nas interpretações das leituras consultadas para este texto, foi elaborado o Esquema 1, que indica os fatores po-sitivos e negativos nas relações entre Brasil e Índia. Trata-se de um esquema simples que aponta apenas quais as características de cada país que podem aproximá-los ou afastá-los. Ressalve-se, contudo, que esses aspectos têm pesos diferentes no condicionamento das relações

13 A reversão da política exterior estadunidense aqui situada em 2001 faz referên-cia à tentativa, desde então, de localizar no cenário internacional um novo “inimigo total” contra o qual possa mobilizar apoiadores (ROJO, 2008). Trata-se da eleição do terrorismo, em lugar do comunismo de outrora, como fator agregador das lutas do Ocidente, proporcionando a reconstrução da hegemonia política internacional centra-da na América do Norte.

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exteriores. A opção pelo formato de “esquema” se destina à melhor visualização e maior objetividade.

Esquema 1 - Fatores potencialmente positivos e negativos nas relações

Brasil e Índia

Fonte: Elaboração própria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações bilaterais entre Brasil e Índia tiveram um incre-mento apenas em anos recentes. Contribuiu definitivamente para esta realidade a aproximação consubstanciada historicamente nos fóruns multilaterais e trilaterais e, também, a tendência de cooperação entre os países líderes do hemisfério Sul, em favor de interesses comuns em certas conjunturas. Contudo, suas dificuldades de convergência política em campos diversos, como mostrado pelo estudo do CAENI, associadas ao baixo grau de interdependência, fazem com que essa articulação bilateral seja lenta e controlada.

Fatores Positivos Fatores Negativos

• Interesses Comuns, de acordo com a Teoria da Inserção Internacional de Grandes Países Periféricos ou Potências Intermediárias (GUIMARÃES, 1998).• Grandes populações e territórios.• Histórica Cooperação Multilateral.• Forte característica industrial, com a intervenção estatal (indústrias de base).• Ausência de graves rivalidades históricas.• Tendência conjuntural de cooperação Sul-Sul.

• Formação histórica dos países.• Diferenças culturais.• Distância geográfica.• Passado de algumas divergências diplomáticas e políticas. • Projetos de desenvolvimento nacional diferentes.• Não possuem uma grande comunidade de “diáspora” do outro.• Modelos de Desenvolvimento Introjetados.

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Por outro lado, ao analisar as relações multilaterais o que se observa é a atuação de diplomacias conscientes das condições de seus países no cenário internacional. A atuação coordenada dos dois cor-pos diplomáticos foi decisiva para estruturar os diferentes Grupos) com objetivos múltiplos. A atuação do G20 principalmente produziu o entendimento por parte dos países desenvolvidos que o ambiente internacional da era da globalização já não mais partia de vinculações automáticas; os fez perceber que o “jogo de xadrez” da Guerra Fria perdera sua validade enquanto mecanismo de mobilização mundial. E, mais importante, a liderança organizada em Grupos de atuação em espaços multilaterais fez de Brasil e Índia atores conscientes do poder de barganha da maioria, em circunstâncias onde a democracia era praticada apenas no plano discursivo.

O que esperar dessa cooperação, tendo em vista os seus avan-ços e considerando as dificuldades conceituais para se classificar o sis-tema internacional (uni, multi, ou unimultipolar)? Pode-se especular que as alianças entre esses dois gigantes têm grande chance de serem marcadas pelo sucesso. Os recentes acordos políticos internacionais do IBAS e do BRIC reforçam essa tendência. Contudo, é inegável o peso do fator conjuntural na constituição de tais grupos e a ausência de laços históricos mais fortes entre os países-membros, o que pode-ria garantir sua integridade e maior capacidade de sobrevivência.

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CAMINHANDO ENTRE GIGANTES: A INSERÇÃO INTERNACIONAL DOS TIGRES ASIÁTICOS E DOS PAÍSES

DA ASEAN1

Bruno Magno**

Bruno Gomes Guimarães***

Rômulo Barizon Pitt****

Athos Munhoz*****

Raoni Fonseca Duarte******

Resumo

O artigo procura responder como os quatro Tigres Asiáticos e os países membros da ASEAN estruturaram as suas relações exte-riores para sobreviver entre as grandes potências que têm influência sobre a correspondente região asiática. Primeiramente, analisa-se o impacto da industrialização dos Tigres sobre os realinhamentos re-gionais e nas alianças internacionais. Logo após, é examinado o papel diplomático e econômico da ASEAN desde o fim da Segunda Guer-ra da Indochina e também as modificações ocorridas com a adesão

1 A pesquisa foi realizada com o apoio do UFRGS Model United Nations 2011.** Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS e pesquisador do Institu-to Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE).*** Graduando do curso de Relações Internacionais da UFRGS e Secretário-Geral do UFRGSMUN 2011.**** Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS e pesquisador do ISAPE.***** Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS e pesquisador do ISAPE.****** Graduando do curso de Relações Internacionais na UFRGS.

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de novos membros à organização. Por fim, responde-se a questão e expõem-se perspectivas àqueles países.

Palavras-chave: Tigres Asiáticos, ASEAN, inserção internacional.

Abstract

The article tries to answer how the four Asian Tigers and ASEAN member countries have structured their foreign affairs for surviving between the great powers that have influence over the cor-responding Asian region. Firstly, it’s analyzed the impact of the in-dustrialization of the Tigers over regional realignments and interna-tional alliances. After that, it’s examined ASEAN’s diplomatic and economic role since the end of the Second Indochina War and also the modifications that occurred with the entrance of new members in the organization. Finally, the question is answered and perspectives for those countries are exposed.

Keywords: Asian Tigers, ASEAN, international insertion.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo elucidar a questão de como os chamados “Tigres Asiáticos” — quais sejam: Cingapura, Coreia do Sul, Hong Kong e República da China (Taiwan) — e a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) estruturaram a sua política internacional para poder sobreviver entre as grandes

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potências com forte influência na região e como eles poderiam se comportar no futuro, buscando tendências para tal. Os países com-preendidos como grandes potências influentes, os “gigantes”, são, no- são, no- no-meadamente, a República Popular da China (RPC), o Japão, a União Soviética/Rússia, os Estados Unidos (EUA) e em menor grau a Índia. Para isso, dividir-se-á o trabalho em dois momentos, um específico sobre os quatro Tigres e outro sobre os países da ASEAN. No pri-meiro momento, serão verificados os realinhamentos regionais decor-rentes da industrialização dos Tigres, bem como o seu impacto nas grandes alianças internacionais. Logo após, será analisado o papel di-plomático e econômico da ASEAN desde o fim da Segunda Guerra da Indochina e também da adesão de novos membros à organização. Por fim, esses dois pontos serão comparados visando a responder a questão inicial e as perspectivas para o futuro são apontadas.

1 O impacto internacional da industrialização dos quatro Tigres Asiáticos

A região do Leste Asiático esteve sob o domínio direto ou indireto do Império Japonês do início do século XX até o final da 2ª Guerra Mundial. Com a derrota do Japão nessa guerra, os Esta-dos Unidos assumiram esse papel de aglutinador da região. Assim percebe-se o grande peso que essas duas grandes potências — Japão e Estados Unidos — tiveram (e têm) na região ao longo do período abarcado pelo trabalho.

Antes da industrialização dos quatro Tigres Asiáticos pro-priamente dita, ocorreu o chamado “milagre” japonês a partir do final dos anos 50, ganhando força expressiva durante os anos 60. Nesse

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período, o país cresceu continuamente a taxas bastante significativas e pôde reestruturar a sua economia, reinserindo-se com força na dinâmica do comércio mundial, sendo os Estados Unidos o parceiro primordial. O formidável desempenho econômico do Japão foi possi-bilitado pelo seu sistema de subcontratações inigualável até então, no qual as empresas cooperam entre elas para minimizar a competição entre pequenas e grandes empresas no mercado de trabalho. Uma vez esgotada a capacidade de expansão do sistema dentro do próprio país — os ganhos de produtividade já não eram mais suficientes para contrapor a tendência de queda da taxa de lucro —, ele se difundiu transnacionalmente, notadamente para os Tigres Asiáticos, a fim de desfrutar da abundante e competitiva mão de obra daqueles países (ARRIGHI, 1997).

Convém ressaltar que a expansão externa das firmas japone-sas foi antes fruto da necessidade do que da escolha, necessidades essas oriundas das crises do petróleo, da insustentabilidade do estado de bem-estar social nos EUA e do fim do padrão-ouro durante os anos 70. Assim sendo, uma nova divisão regional (até mesmo inter-nacional) da produção e do trabalho foi se estabelecendo na região (VIZENTINI & RODRIGUES, 2000). As multinacionais japone-sas se viram, então, dispostas a fazer concessões às exigências dos paí-ses que as receberiam no sentido de industrializá-los. Além disso, era do próprio interesse nipônico o estabelecimento, sob sua liderança, de pontos industriais estratégicos para o fornecimento de insumos e de componentes para as suas indústrias, a fim de diminuir a sua depen-dência dos Estados Unidos. Todas essas transformações alteraram de forma considerável a logística e a distribuição da produção industrial

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na região a partir da fragmentação da mesma entre diferentes centros industriais.

Desta feita, as tecnologias intensivas em mão de obra e de valor agregado mais baixo do Japão foram transferidas para os Tigres, enquanto que o polo dinamizador japonês se especializaria no desen-volvimento de tecnologia de ponta. Na década seguinte, seria a vez de os Tigres repassarem essas tecnologias para outros países, principal-mente aos da ASEAN e à China, com o objetivo de se focarem tam-à China, com o objetivo de se focarem tam- China, com o objetivo de se focarem tam-bém em técnicas mais avançadas de manufatura, bem como no setor de serviços (no financeiro especialmente). Esse processo econômico no Leste Asiático é conhecido por “gansos voadores”, termo revitali-zado por AKAMATSU (1962) não só para caracterizar essas décadas de 60 a 80, mas também o período durante o Império Japonês.

Contudo, essas mudanças na estrutura econômica implicaram também novos desafios para esses países. Internamente, eles sofre-ram pressões em prol da democratização, da melhoria das relações trabalhistas e também das condições sociais da população. Isto é, eles teriam de perder as supostas vantagens comparativas de serem regi-mes ditatoriais repressivos, assentados numa dinâmica de grande ex-ploração da mão de obra local e no controle estatal sobre a economia e voltado para o mercado externo.

Então, a industrialização dos Tigres Asiáticos pode ser vista como uma forma de manutenção de “ilhas” capitalistas de prosperi-dade a fim de reforçar o cordão anticomunista no Leste Asiático e baratear o fornecimento de bens fundamentais para as indústrias das economias capitalistas desenvolvidas. Os quatro países mais o Japão permaneceram “protetorados militares e clientes políticos” dos EUA,

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que se especializava no suprimento de proteção político-militar, en-quanto seus grupos dirigentes puderam se especializar na busca por lucro (ARRIGHI, 1997).

Além disso, outro impacto, mais sistêmico, foi o deslocamento do eixo dinâmico de acumulação capitalista do Atlântico para o Pacífi-co, mais especificamente para o Leste da Ásia. Os Tigres Asiáticos de-sempenharam papel fundamental nessa mudança após se consolidarem como plataformas de exportação, durante os anos 70 e 80. No início desse período de intenso desenvolvimento, esses quatro pequenos paí-ses exportavam produtos de baixo valor agregado e componentes bási-cos para os países centrais nesse sistema. Todavia, com o passar do tem-po, eles souberam se valer dos conhecimentos adquiridos (baseados na experiência japonesa) para se lançarem como atores dentro do mesmo sistema em que tinham posições inferiores e se tornarem novos polos irradiadores de capitais e de tecnologia. Por conseguinte, no alvorecer dos anos 90, os quatro Tigres alcançaram uma posição de desafiadores da liderança econômica japonesa na região.

2 Os Tigres no Pós-Guerra Fria

Os Tigres Asiáticos, já desde os anos 80, ao dar prossegui-mento ao processo dos “gansos voadores” fortaleceu o desenvolvi-mento da República Popular da China, pois todos eles apresentavam forte presença de uma diáspora chinesa atuante na indústria (embora com menor peso na Coreia do Sul). Assim, pode-se dizer que os Ti-gres incentivaram o surgimento de uma grande potência principal-mente nos anos 90. Hong Kong foi reincorporado ao território chinês

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em 1997, garantindo à RPC o controle direto de um dos principais portos e centros financeiros mundiais. Esse fato também simbolizou a chegada à condição de potência, bem como, juntamente com a rein-tegração de Macau em 1999, o fim do colonialismo no Leste Asiático. Entretanto, o processo de fortalecimento chinês na região deve ser também compreendido tendo em vista o Japão, que mergulhou numa estagnação econômica desde o início dos anos 1990 e não conseguia mais desempenhar o papel de grande e único polo fomentador dessa dinâmica econômica.

Não obstante, cada um dos Tigres adotou uma estratégia diferente para se adaptar a nova conjuntura internacional do Pós--Guerra Fria, em que o combate ao comunismo deixou de ser uma bandeira dos EUA. Hong Kong, apesar de manter leis próprias, após se reintegrar a China passou a desempenhar um papel central na estratégia de inserção chinesa na dinâmica comercial mundial, bem como na afirmação desse país como potência mundial. Taiwan também buscou uma integração maior com a RPC em termos eco-nômicos ao longo da década de 1990 e, embora ainda se recuse a ser reincorporada ao continente, houve uma aproximação da elite econômica do país com os chineses da RPC. Cingapura, dada a sua localização, procurou se articular mais (econômica e politicamen-te) com os países do Sudeste Asiático, e a ASEAN constituiu-se na peça fundamental dessa estratégia. Por fim, a Coreia do Sul, às voltas ainda com a questão da reunificação da península coreana, apesar de ter sido o mais afetado dos Tigres pela crise de 1997, buscou se inserir no jogo das potências da região, aproximando-se da China e investindo cifras expressivas em gastos militares. Cabe

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ressaltar também que o país, a fim de aumentar a sua relevância no sistema regional e mundial, dinamizou os seus investimentos mun-diais e viu alguns dos seus chaebols, conglomerados empresariais, se consolidarem como algumas das maiores empresas mundiais nos ramos em que atuam.

Além disso, cabe destacar o papel que a crise asiática de 1997 teve nessas economias, afetando-as com graus variados de intensida-de, contudo sinalizando para estes países que uma maior integração com o restante do continente se fazia necessária em prol de manterem a posição de atores relevantes na economia regional, uma vez que os EUA não se mostraram muito dispostos a arcar com os custos de uma ajuda financeira a países então já desenvolvidos. A China, portanto, se mostrou também como um parceiro estratégico, bem como os países do Sudeste Asiático. Além disso, eles precisaram abrir ainda mais as suas economias para a entrada de capitais externos e estimular o de-senvolvimento de outros ramos econômicos.

3 O Surgimento da ASEAN

A ASEAN foi fundada por Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia em 1967 em Bangcoc. Contudo, seus ante-cedentes advieram do Pós-2ª Guerra Mundial e do processo de des-ós-2ª Guerra Mundial e do processo de des-2ª Guerra Mundial e do processo de des-colonização. Com a derrota do Império do Japão e a decadência dos antigos Impérios Ocidentais, surgiu uma série de novos estados in-dependentes na Ásia Oriental, estados débeis marcados por proble-mas socioeconômicos e clivagens étnicas. Estas “imitações de estados” buscavam desesperadamente por uma forma de se legitimar interna-

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mente, mas principalmente por um meio de legitimação perante o Sistema Internacional ( JONES & SMITH, 2006, p. 44).

A dinâmica da Guerra Fria trouxe a oportunidade para esta legitimação. Primeiro, através da Conferência de Bandung em 1955 e a tentativa de estabelecer uma posição neutra para as ex-colônias. Em segundo lugar, para fins de legitimação interna, adotaram-se práticas paternalistas que procuravam tornar o povo coeso acerca de objetivos econômicos. Esse foi o caminho adotado pelos cinco países fundado-res da ASEAN.

Entretanto, os interesses estratégicos estadunidenses, a Se-gunda Guerra da Indochina e a penetração dos capitais japoneses via processo de subcontratação não permitiram a manutenção desta posição “não-alinhada”. Desta forma, após a Konfrontasi1, Sukarno é deposto com auxílio da CIA (VIZENTINI & RODRIGUES, 2000, p. 35–36), assumindo Suharto em 1965 que redefiniu a relação dos EUA com a Indonésia, Estado pino do Sudeste Asiático. Esse foi o pontapé inicial que levou à formação da ASEAN em 1967.

Sendo assim, a ASEAN surge como um bloco antissoviético, principalmente como forma de contenção da “ameaça vietnamita”, aliado da URSS. Porém, o anúncio da Doutrina Nixon em julho de 1969 em Guam, que afirma que os aliados estadunidenses devem cui-dar de sua própria defesa, acaba incentivando a regionalização em todo o mundo, e com a ASEAN não foi diferente. Agora a vaga alian-ça contra o comunismo era responsável por garantir a paz, a estabili-

1 Konfrontasi (1962-1966): Guerra não declarada entre Malásia e Indonésia pelo con-trole da ilha de Bornéu.

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dade na região e suas independências.Assim, a ASEAN acaba se tornando um dos protagonistas da

região, o que leva os estados deste bloco a mais uma vez tentar garantir sua independência de potências externas. Desta forma, surge em 1971, por iniciativa dos membros da ASEAN, a zona de paz, liberdade e neu-tralidade do sudeste asiático ou ZOPFAN. A ZOPFAN foi uma tenta-tiva de criar uma política externa independente para os países membros da ASEAN, mas na prática apenas corroborou o seu alinhamento com a China (RPC) e os EUA. Este alinhamento pode ser verificado pelo papel que a ASEAN desempenhou na questão da ocupação vietnamita do Camboja. Os membros da ASEAN foram contra o reconhecimento do governo da nova República Popular de Kampuchea, que substituiu o regime do Khmer Vermelho, promoveram a organização de um governo em exílio, que contou com a participação de Pol Pot apesar dos já conhe-cidos crimes contra a humanidade perpetrados durante seu governo, e viabilizaram o reconhecimento deste governo como o verdadeiro repre-sentante do Camboja pela ONU em 1982.

Apesar da aparente eficiência e pró-atividade da ASE-AN nessa questão, isso só deu resultado, porque coincidiu com os interesses sino-americanos ( JONES & SMITH, 2006, p. 55). Assim, constatamos que a ASEAN, durante a Guerra Fria, é um bloco unido por uma ideologia antissoviética relevante para a ma-nutenção da independência e integralidade territorial dos estados membros, mas que, por suas debilidades, são forçados a praticar bandwagoning com relação aos EUA e à RPC. Porém, a partir da década de 1990, ocorre um aumento da institucionalização deste bloco, alterando esse perfil.

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4 A Institucionalização do Sudeste Asiático

O contexto do final da década de 1980 proveu à ASEAN a oportunidade de cumprir seu objetivo de representar a totalidade dos países da região. A partir de 1989, a retração internacional da URSS teve como consequência imediata o fim do suporte estratégico fornecido ao seu aliado na Indochina, o Vietnã. Com tal virada con-juntural, o Vietnã começa a retirar sua presença militar do Camboja, que permanece em um quadro de guerra civil até o estabelecimento da administração da força de manutenção da paz das Nações Unidas através das decisões da Conferência de Paris.

Com o fim da ação desestabilizadora do Vietnã, a primeira metade da década de 1990 contou com uma série de iniciativas em prol da institucionalização do regionalismo, dentre as quais se desta-cam a criação da Área de Livre Comércio da ASEAN (ASEANF-TA) em 1992, do Fórum Regional da ASEAN (ARF) em 1994 e, fechando simbolicamente o ciclo, a adesão do Vietnã à organização em 1995. A entrada do Vietnã se explica pela percepção generalizada de que a ASEAN como instituição se confirmaria como um centro de decisão independente da cada vez maior influência chinesa (ABAD JR, 2003).

Sob o ponto de vista regional, o fim das ocupações militares e o exemplo de desempenho econômico dado principalmente por Cin-gapura transformam substancialmente a dinâmica local. Usando os termos de BUZAN & WAEVER (2003), a região passa de um esta-do de formação de conflitos para um arranjo securitário. Isto é, embo-ra o uso de violência em litígios interestatais não seja completamente

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descartado, como na instituição de uma comunidade aos moldes eu-ropeus, a estrutura regional favorece resoluções pacíficas. A principal moeda de poder é então o desempenho econômico pela consequente legitimação que traria para os governos frente o povo, fim que pode ser mais facilmente atingido através da cooperação.

A percepção do sucesso da “ASEAN Way” se verificou com a rápida consolidação do projeto de criar um arranjo político pan-asi-ático através do Fórum Regional. O Fórum conta com a participação de todos os atores relevantes para a segurança regional do Leste e Sul Asiáticos, assim representando a tentativa de exportar o modelo de normas e princípios diplomáticos mesmo para as grandes potências regionais. Mais importante, percebe-se a tentativa de cooptar a polí-tica externa chinesa para os princípios de soberania e não-intervenção cristalizados no Tratado de Amizade e Cooperação de 1976 (BEU-KEL, 2008).

O período dourado do padrão de abordagem diplomática apresentado se encerra em 1997 com a crise asiática. A crise econô-mica, que se iniciou na Tailândia e rapidamente contagiou as econo-mias vizinhas, afetou negativamente a reputação do projeto de de-senvolvimento econômico baseado na cooperação regional. Assim, a crise também teve efeitos na esfera doméstica, revertendo o processo da primeira metade da década e enfraquecendo a imagem dos go-vernos associados ao período anterior. É representativa a queda do regime de Suharto na Indonésia em 1998, que consolidou uma onda de fortalecimento da democracia no Sudeste Asiático.

Ainda em 1997, a primeira reunião do grupo ASEAN+3 mar-cou a nova realidade: de forma a preservar os ganhos institucionais,

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a organização se associou, ao mesmo tempo, às três grandes maiores economias do Leste Asiático: Japão, RPC e Coreia do Sul. O evento demarca o fim da primazia absoluta do modelo ASEAN+1, isto é, em que o bloco sempre negociava em conjunto com uma parte por vez. A crise asiática também selou a amálgama entre o Sudeste e o Leste Asiáticos, que apresentaram sintonia muito superior à destes com o Sul, apesar da “Look East Policy” promovida pela Índia.

Após a crise, a ASEAN perdeu relativamente seu papel como ator internacional, dando espaço para a diversificação das ações in-dividuais dos seus Estados-membros. No contexto do jogo com as potências extrarregionais, as respostas também se diversificaram: Ma-lásia e Vietnã firmaram acordos militares com a Rússia; Indonésia se aproximou do Japão e hoje ensaia uma parceria com a Coreia do Sul, entre outros.

A mescla econômica entre Sudeste e Leste também assumiu outra forma após a crise. Com a confirmação da lenta queda da eco-nomia japonesa, o modelo dos “gansos voadores” deu lugar à frag-mentação da rede produtiva. O fim da liderança do modelo japonês não significou necessariamente o surgimento de uma liderança aná-loga na RPC, e sim em uma mudança na relação entre as três grandes economias e os países emergentes do Sudeste. Embora o peso do in-vestimento direto chinês, por exemplo, ultrapasse os 50% no seu anti-go adversário, o Vietnã, a ação de empresas multinacionais japonesas e coreanas diversificam as opções e conferem algum grau de escolha aos países da ASEAN (HAMAGUCHI, 2008).

Ultimamente, dois novos fatores têm pesado na dinâmica dos países do Sudeste asiático com as potências extrarregionais. O pri-

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meiro é a ascensão indiana e a maturação do projeto de aproximação econômica com o Leste. Na medida em que a China começa a atuar no Oceano Índico, a Índia investe nas relações com possíveis parceiros na ASEAN por motivos econômicos e securitários, principalmente através dos Acordos Globais de Cooperação Econômica2, que, em comparação com o quadro dos acordos de livre comércio da ASEAN, possuem uma pauta de produtos e serviços muito mais abrangente. O segundo fator é a influência latente das normas e princípios da ASEAN, mesmo em um contexto regional que contempla a parti-cipação de grandes potências. Isto é, as instituições regionais criadas no começo da década de 1990, como a Cúpula do Leste Asiático e o ARF, ainda são os principais fóruns multilaterais nos temas que condizem à região da Ásia-Pacífico, muito embora não sejam dotadas de quaisquer formas de assegurar as suas decisões. Qualquer mudança neste aspecto teria consequências drásticas para a dinâmica regional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os países emergentes da Ásia-Pacífico, desde seu surgimen-to como Estados-nação no pós-2ª Guerra Mundial, sempre tiveram que lidar com as ambições e a influência de grandes potências, sejam elas regionais ou globais. Tanto os países da ASEAN como os Tigres Asiáticos procuraram sempre evitar a supremacia de uma só potência, sendo que o ator mais influente em dada região molda a atuação do país de forma antagônica. Assim, Coreia do Sul e Taiwan aderiram

2 Tradução livre de “Comprehensive Economic Cooperation Agreement”.

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completamente à retórica anticomunista pela ameaça de anexação por países socialistas; o Vietnã, enquanto a maior ameaça era um Sul que contava com o apoio estadunidense, contou com o apoio chinês — assim que este perigo se dissipou, reacenderam as tensões étnicas históricas entre vietnamitas e chineses. Cingapura, que após sua ex-pulsão da Federação Malaia contava com uma economia irrisória e com ameaça urgente tanto através da Malásia quanto da Indonésia, estabeleceu um programa de desenvolvimento que cooptou investi-mentos ao mesmo tempo em que resguardava alto grau de indepen-dência dos importados da região através do fomento à indústria. En-quanto os outros casos confirmam a lógica, a exceção ao argumento é Hong Kong, que, embora com uma economia representativa, nunca teve expressão política considerável.

Em suma, podemos observar que desde os anos 70, com a nascente interdependência econômica entre eles, o regionalismo se fortaleceu e os EUA, com a Doutrina Nixon, perderam espaço para a RPC e para o Japão, ou até mesmo para Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura (SHAMBAUGH & YAHUDA, 2008). Dos anos 70 aos 90, então, verifica-se que tanto os países da ASEAN quanto os Tigres souberam jogar com os interesses dos “gigantes” para poderem cami-nhar livremente, ou seja, conseguiram barganhar ante as potências para crescer economicamente, promover o desenvolvimento e manter sua autonomia. Entretanto, cabe ressaltar que não foi somente a atu-ação dos “gigantes” que figuram no topo da agenda dos países emer-gentes do Leste Asiático. Mesmo durante a década de 1970, a agenda da ASEAN já contemplava os perigos do desequilíbrio na Indochina com o expansionismo vietnamita nos vizinhos Laos e Camboja.

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Portanto, a questão que provavelmente moldará a dinâmica regional nos próximos anos é o quanto os países aqui estudados estão agindo contra a consolidação da hegemonia da RPC. Fica claro tam-bém que, enquanto se mantiver a ameaça de subordinação econômica a Pequim e quanto mais agressivo for o comportamento internacional sínico, maior importância será dada à participação estadunidense no Leste Asiático. Além disso, a ASEAN como organização figuraria como um dos pilares de um mundo multipolarizado sem enfrenta-mento direto com os interesses estadunidenses. Países como a Rússia e a Índia ainda não possuem força nem influência na região a ponto de alterar o quadro de alianças no Sudeste Asiático. Embora a Rússia figure como fonte de aparato militar, ela ainda não consegue prover parcerias estratégicas na profundidade das oferecidas pelos EUA. No que tange a Índia, apesar de ainda desempenhar uma presença mo-desta quando comparada com os demais atores, o país possivelmente tenderá a participar ativamente dos assuntos da região: a economia da ASEAN em conjunto já tem peso no comércio indiano quase em paridade com o da RPC.

Contudo, apesar da ascensão da RPC, os países apresentados continuarão procurando meios de conciliar os benefícios dos investi-mentos chineses com a manutenção da soberania nacional. O quadro apresentado, então, indica que a tendência é a manutenção da autono-mia, do mesmo modo que já foi realizado entre as décadas de 70 e 90.

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O EXERCÍCIO DO SOFT POWER: FUTEBOL E O CASO BRASILEIRO

Bruno Gomes Guimarães*

Igor Amazarray**Where politics, diplomacy and the business world have failed,

I believe that football can succeed. João Havelange1

Resumo

Com base no conceito de soft power, o artigo objetiva tratar do futebol como instrumento de poder estatal. O texto apresenta o futebol como um fator importante dentro do contexto internacional através principalmente de seu soft power e tem por objetivo mostrar que essa modalidade esportiva de fato funciona como instrumento estatal. Para demonstrar isso, o artigo analisa as ações do governo brasileiro envolvendo esse esporte, concluindo que o futebol é uma ferramenta primária, e não secundária, de soft power.

Palavras-chave: Relações Internacionais. Soft power. Esporte. Futebol.

Abstract

Based on the concept of soft power, this article aims to deal

* Graduando de Relações Internacionais pela UFRGS, bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq e Secretário-Geral do UFRGS Model United Nations 2011.** Graduando de Relações Internacionais pela UFRGS.1 apud BONIFACE, 2002, p. 9.

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with football as a source of State power. The text depicts football as an important factor in the international context mainly through its soft power, and its objective is to show that this sport actually works as an instrument of the state. In order to demonstrate this, the article anal-yses the Brazilian government’s actions involving this sport, conclud-ing that football is a soft power’s primary source, and not secondary.

Keywords: International Relations. Soft power. Sport. Football.

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, o papel do esporte nos trabalhos da área de relações internacionais tem sido negligenciado (no mínimo subva-lorizado) ou considerado irrelevante, ocupando um espaço marginal pela comunidade científica (ALLISON e MONNINGTON, 2002, p. 106–107; BECK, 2003, p. 389–391). Contudo, tendo em conta que os esportes estão presentes em todos os países do globo e que têm um alcance maior do que o da própria ONU2, esse suposto hábito de deixá-lo de lado em estudos internacionais deveria ser revisto.

Como Allison e Monnington (2002, p. 107) disseram: “(...) nós podemos notar que Estados utilizam o esporte de duas maneiras: para venderem-se e realçar suas imagens e para penalizar comporta-mentos internacionais que eles desaprovam.” (tradução nossa3). Além do mais, basta lembrar os nefastos jogos olímpicos de Berlim em

2 Por exemplo, em 2008 a ONU conta com somente 192 Estados-Membros, enquanto o Comitê Olímpico Internacional tem 205 países afiliados e a FIFA 208.

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1936 que serviram como propaganda dos nazistas (SHIRER, 1960; LARGE, 2007) e das Olimpíadas de Moscou de 1980 e de Los An-geles de 1984, que, devido à Guerra Fria, sofreram boicotes dos Esta-dos Unidos e da União Soviética, respectivamente. Não só isso, mas o tema é bastante atual, levando autores como Singh (2006) e Nye (2008) a comentar sobre como as Olimpíadas de Pequim de 2008 serviram para aumentar o prestígio chinês tanto nacional quanto in-ternacionalmente (e consequentemente seu soft power) ao mostrar a determinação de seu povo.

A atualidade do tema serviu como a principal inspiração para a elaboração do presente artigo. Este trabalho pretende ser um passo inicial ao estudo de como o esporte pode ser relevante para as Rela-ções Internacionais, ao gerar recursos políticos úteis (ALLISON apud BECK, 2003, p. 390) e, mais especificamente, como o futebol, o esporte mais popular do mundo, serve de recurso de soft power.

Primeiramente será exposto o conceito de soft power — a habilidade de obter resultados desejados sem ter que forçar os ou-tros através de ameaças ou pagamentos — de acordo com o que Nye, cunhador do termo, escreveu de 1990 até hoje. Também serão discuti-dos os meios para os Estados poderem exercê-lo, de acordo com Me-lissen (2005) e Nye (2004). Logo após, será mostrada a importância do futebol no mundo através de exemplos históricos, e, para finalizar, será feita uma análise das recentes ações governamentais brasileiras

3 (...) we can note that states have used sport in two principal ways: to sell them- (...) we can note that states have used sport in two principal ways: to sell them-selves and enhance their image and to penalize international behaviour of which they disapprove.

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envolvendo o esporte para averiguar a presença de soft power no meio futebolístico.

Soft power: Conceito, fontes e limitações

Mesmo que o conceito de poder nas relações internacionais não seja totalmente consensual, em algum grau concorda-se que po-der é a habilidade de obter os resultados desejados e stricto sensu a habilidade de influenciar os outros para obtê-los (NYE, 2004, p. 1–2). Na política internacional há três meios de realizar essa interação com os outros países: coerção, indução e cooptação, e a partir disso Nye (2004, p. 5) divide o poder em dois tipos: o hard power e o soft power, o primeiro sendo o poder de coagir e induzir, e o segundo o de cooptar. O hard power tem suas bases em ameaças e barganhas através dos po-deres econômico e militar para fazer com que os Estados façam o que se deseja, enquanto o soft power consiste em fazer com que os outros países queiram a mesma coisa que se procura obter, ou seja, moldar as preferências dos outros conforme as suas.

Entretanto, Nye (2004, p. 6) ressalta que soft power não é so-mente influenciar — visto que influência também pode ser realizada através de hard power — e nem persuadir, mesmo que esses sejam as-pectos importantes dele, mas é também atrair, e a atração leva muitas vezes à aquiescência. Nas palavras do autor:

se eu sou persuadido a seguir os seus objetivos sem qualquer ameaça ou troca acontecendo — em re-sumo, se meu comportamento é determinado por uma atração observável, porém intangível — o soft

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power está agindo. Soft power usa um tipo diferente de moeda (nem força, nem dinheiro) para engen-drar cooperação: uma atração a valores em comum e à justiça e dever de contribuir para alcançar esses valores (NYE, 2004, p. 7, tradução nossa4).

Dessa forma, o soft power cria um ambiente propício para que os outros países desenvolvam preferências semelhantes ou então que tenham interesse em seguir os mesmos objetivos. As fontes de soft power de um país para criar esse ambiente são inúmeras, mas as prin-cipais, de acordo com Nye (2004, p. 11; 2006), são a cultura (em luga-res onde ela é atrativa para os outros), os valores políticos (praticados tanto interna quanto internacionalmente) e a política externa (quan-do vista como legítima e havendo uma autoridade moral). Todavia, os valores políticos fazem parte da cultura nacional, e por isso usaremos apenas uma distinção entre cultura e políticas governamentais exter-nas e internas.

A cultura de uma nação é uma fonte mais efetiva de soft po-wer quando seus valores são bastante abrangentes e universais, pois possuem uma maior capacidade de atrair outras culturas — através de meios populares e de elite —; porém, se a do outro país for muito rígida e tiver valores muito específicos, é improvável que a do primei-ro consiga exercer qualquer atração. Um exemplo disso seria a cultura brasileira, mais especificamente o carnaval: enquanto essa festividade

4 If I am persuaded to go along with your purposes without any explicit threat or exchange taking place—in short, if my behavior is determined by an observable but intangible attraction—soft power is at work. Soft power uses a different type of cur-rency (not force, not money) to engender cooperation—an attraction to shared values and the justness and duty of contributing to the achievement of those values.

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atrai pessoas no mundo todo em países ocidentais, em países árabes onde a cultura muçulmana é muito rígida e as mulheres devem cobrir seu corpo para sair em público, ela é vista como ofensiva e ultrajante e, portanto, não exerce atração alguma5.

A cultura de um país se difunde via comércio (cinema, mar-cas, literatura, culinária, arte, teatro) e intercâmbios culturais (inúme-ros líderes de todo o mundo estudaram em universidades americanas, por exemplo). Importante ressaltar que não é apenas o governo que controla a difusão cultural e o seu soft power, mas as empresas multi-nacionais e indivíduos renomados também. Exemplos disso seriam a Microsoft para os EUA, a Adidas para a Alemanha e o Ronaldinho Gaúcho para o Brasil. Entretanto, nem sempre o soft power desses grupos pode ser acrescentado ao total do país, pois há a possibilidade de que faça o contrário do que se deseja e aja contra o soft power na-cional (NYE, 2004, p. 17), como, por exemplo, as ações da Petrobrás na Bolívia em 2008.

Do mesmo modo, as políticas governamentais podem acres-centar ou diminuir o soft power de um país. Se aquilo que é praticado internamente, em questões tanto de valores políticos quanto de medi-das mais concretas, for contrário ao que se prega internacionalmente, há diminuição de soft power. Portanto, o governo do país não pode ser hipócrita e deve manter uma política coesa em três esferas distintas: a interna, a bilateral e a multilateral. Um país pode conseguir mais soft power ao fazer regras, instituições internacionais e definir agen-

5 No entanto, se houvesse um movimento feminista pela liberdade das mulheres, talvez o carnaval as atraísse. É sempre uma questão de contexto.

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das multilaterais que pareçam legítimas aos olhos dos outros (NYE, 1990, p. 168; 2004, p. 10). Destarte ele estaria servindo de exemplo e poderia estar fazendo com que os outros quisessem o mesmo que ele — o soft power em ação.

Além dessas duas fontes principais, também há as fontes ligadas ao hard power. Muitas vezes, nações sentem-se atraídas a outras por causa de seu poderio militar ou econômico. É apostar no vencedor. Como disse Osama Bin Laden (apud NYE, 2004, p. 26): “quando as pessoas veem um cavalo forte e um cavalo fraco, por natureza, eles vão gostar do cavalo forte.” (tradução nossa6). Esse ponto leva Noya (2006) a criticar Nye por fazer uma teoria tão dualista, e chega a dizer que assim qualquer fonte legítima de poder produziria soft power (NOYA, 2006, p. 57). Contudo, Nye (1990; 2004) deixa claro que apesar de haver um jogo entre os dois tipos de poder, cada um possui fontes primárias bem diferentes. Kennedy (2005, p. 1–2) também afirma que, ao contrário do que se pensa, os dois tipos de poder podem andar juntos sim, não sendo antitéticos7. Como disse Carr (apud MELISSEN, 2005, p. 2) “po-der sobre a opinião não é menos essencial para propósitos políticos do que o poder econômico e militar, e sempre esteve associado com eles.” Então é notável a interação entre os dois tipos de poder, principalmente o papel do hard power como fonte secundária de

6 When people see a strong horse and a weak horse, by nature, they will like the strong horse.

7 O autor também acredita que os dois tipos de poder estão se unificando, principal-mente o americano.

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soft power.Os efeitos dessas fontes são difusos, característica fundamen-

tal do soft power. Esse tipo de poder não é facilmente percebível em um só ponto, ele normalmente se encontra espalhado por toda a po-pulação de um determinado país. Desse fato se apreende que, para o soft power surtir mais efeitos, é necessário que o povo tenha voz na política, ao menos em parlamentos, e que governos deem atenção à opinião pública; democracias tendem a ser mais receptivas de soft power. Afinal “(...) soft power depende mais do que o hard power da existência de intérpretes e receptores de boa vontade.” (NYE, 2004, p. 16, tradução nossa8).

Por causa dos efeitos difusos da atração gerada pela cultura e por políticas governamentais, é raro observar uma ação específica que tenha ocorrido por causa do soft power; com ele cria-se justamente uma influência geral e não um comando de ações determinadas — ele não gera obrigações. Tendo isso em mente, nota-se que o soft power produz mais frequentemente efeitos de longo prazo9, e, justamente por causa disso, ele é mais efetivo em objetivos distantes no tempo e não muito específicos, tais como a defesa da democracia e dos direitos humanos, mas sempre lembrando que as situações variam; por sua vez, a efetividade em objetivos imediatos depende muito do contexto em que se encontra (NYE, 2004, p. 16–17).

8 (...) soft power depends more than hard power upon the existence of willing inter-preters and receivers.

9 Efeitos mais diretos ocorrem mais esporadicamente, normalmente envolvendo a perda de soft power.

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Exercendo soft power

Ao contrário do hard power, o soft power não é uma ferramen-ta governamental tão facilmente utilizável para atingir resultados com uma rapidez considerável. Ameaças e barganhas têm um tempo de resposta muito menor do que o da atração. Outro motivo para que o soft power não seja facilmente exercido pelos governos é o fato de que poucas são as fontes que se podem manejar para conseguir resultados específicos — ele serve mais para moldar favoravelmente o ambiente em que ações são tomadas (NYE, 2004, p. 99).

Além das políticas específicas para cada situação, que depen-dem muito do contexto, um governo pode manter ou produzir soft power ao promover uma boa imagem de seu país, atraindo outras na-ções em aspectos gerais de sua cultura, sociedade e valores políticos. Melissen (2005, p. 19) distingue quatro métodos para que um país possa fazer isso: propaganda, o país como marca10, relações culturais em geral e diplomacia pública.

O primeiro método, a propaganda, deliberadamente procura dar uma informação que mude a opinião e os interesses dos recep-tores a favor daquele que a divulgou, tenta dizer o que eles devem pensar, estreitando as possibilidades de escolha de acordo com a von-tade do propagandista (MELISSEN, 2005, p. 19–22). No passado, essa forma de atração foi amplamente utilizada, mas hoje um governo deve ter cuidado ao usá-la, porque “informação que pareça ser propa-

10 Nation branding, no original.

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ganda pode não apenas ser desdenhada, mas também pode se tornar contraprodutiva, se minar a reputação por credibilidade de um país.” (NYE, 2004, p. 107, tradução nossa11). Por exemplo, as notícias que o governo americano divulgou sobre o Iraque de Saddam Hussein estar desenvolvendo armas de destruição em massa, que serviram de justificativa para a guerra de 2003, acabaram minando muito a credi-bilidade do país, visto que se mostraram infundadas.

Em segundo lugar, a divulgação de um país como marca é a venda da imagem do país no exterior, uma tentativa de mudar o olhar da opinião pública internacional ao projetar uma identidade que se destaque dos outros países (MELISSEN, 2005, p. 22–25). Na maio-ria das vezes, um dos principais objetivos desse método é criar mer-cados externos para produtos nacionais, e para isso deve haver uma ação conjunta do governo com empresas e outras organizações não governamentais. A construção de uma nova imagem, positiva para o país, já basta para aumentar o seu soft power.

Por sua vez, as relações culturais diferem dos outros três mé-todos, já que originalmente são tidas como uma voz não governa-mental nas relações internacionais dos países. Elas servem para di-fundir ideias e incentivar debates acerca das distintas realidades entre os povos, não estando diretamente ligada a políticas externas espe-cíficas. Apesar disso, as relações culturais vêm sendo apropriadas e/ou fomentadas pelos governos, tornando difícil uma clara separação (MELISSEN, 2005, p. 25–27).

11 Information that appears to be propaganda may not only be scorned but also may turn out to be counterproductive if it undermines a country’s reputation for credibility.

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O quarto e último método, a diplomacia pública, é tido por Melissen (2005, p. 3) como um instrumento-chave do soft power. Como diz o nome, esse tipo de diplomacia visa à opinião pública dos países estrangeiros, propagando uma imagem positiva do país e criando laços amistosos — o que gera mais soft power (NYE, 2004, p. 105–118). O que o diferencia dos outros métodos é o fato de que ele estabelece um diálogo com as sociedades civis dos outros países, não se confinando à transmissão de informações (como a propagan-da), para manter boas relações entre Estados. A diplomacia pública complementa o método do país como marca ao conservar e ampliar as conexões culturais, assim sobrepondo-se às relações culturais como instrumento de soft power (MELISSEN, 2005, p. 19–27; NYE, 2004, p. 111). Nye (2004, p. 107–110) põe em evidência três dimensões da diplomacia pública que juntas formam uma imagem atrativa a favor do soft power: comunicação diária, que envolve explicar e expor o con-texto das decisões de política externa e interna do dia-a-dia, estando sempre preparado para corrigir informações falsas que tenham sido divulgadas a seu respeito; comunicação estratégica, com eventos sim-bólicos e debates acerca de temas específicos para facilitar a aceitação de alguma política governamental em particular; e o desenvolvimen-to de relações duradouras com indivíduos-chave ao longo do tempo através de intercâmbios, conferências, treinamentos. O autor também ressalta que, para funcionarem, elas devem estar em sintonia com a postura internacional do país, já que não adianta dizer uma coisa e fazer outra, pois isso levaria a uma crise de credibilidade e faria o país perder soft power (NYE, 2004, p. 111).

Conforme Wang (2006, p. 35–40) a efetividade da diplo-

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macia pública varia conforme o objetivo procurado. Para ele, grupos subnacionais são os melhores para criar e manter um entendimento comum e cooperação mútua, e não o governo: para transmitir ideais e valores nacionais, o governo e tais grupos são igualmente relevantes. Contudo, em políticas governamentais e suas metas, grupos subna-cionais não teriam muita importância. O autor também afirma que o governo deve servir mais amiúde como patrocinador, e os grupos mais como comunicadores e facilitadores (WANG, 2006, p. 40). Tanto ele quanto Melissen (2005, p. 29–30) lembram que o ideal é que o gover-no aja sempre em conjunto com os grupos subnacionais para a maior eficácia da diplomacia pública.

Análise de caso

Um estudo mais detalhado é necessário para uma melhor compreensão de como o futebol está ligado ao soft power. Por isso foi selecionado o caso brasileiro, notadamente no Haiti, focando nas políticas governamentais brasileiras envolvendo o esporte para con-solidação do seu soft power.

Brasil

Com o governo de Lula, o Brasil buscou um papel maior no cenário internacional, procurando se firmar como potência regional e quiçá mundial. Para isso, foram fechadas parcerias com inúmeros países em desenvolvimento, e tomou-se papel mais ativo em questões de manutenção da paz mundial. O caso das forças de paz da ONU no

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Haiti (MINUSTAH), comandada pelo Brasil, é o caso mais eviden-te, e nele o papel do futebol foi de extrema importância (BIAZZI e FRANCESCHI NETO, 2007).

Desde que começou a intervenção militar em junho de 2004, com 1.200 soldados brasileiros, percebeu-se o papel que o futebol poderia desempenhar para legitimá-la. Logo de início, o exército do Brasil levou consigo não apenas armas e equipamentos militares, mas também mil bolas de futebol e camisas da seleção brasileira, para se-rem distribuídas em escolas haitianas.

Pouco tempo depois, o governo brasileiro propôs a ideia do “Jogo da Paz”, entre a seleção brasileira e a haitiana, à Confedera-ção Brasileira de Futebol (CBF) e aos jogadores. Todos prontamente aceitaram a proposta. Devido ao renome internacional dos jogadores brasileiros e da seleção canarinho, que então era a campeã do mun-do, esse jogo seria um legitimador da intervenção da ONU e uma demonstração de comprometimento e respeito do Brasil para com a causa do Haiti (BIAZZI e FRANCESCHI NETO, 2007).

A partida foi realizada em agosto de 2004. Ela foi um claro ato de diplomacia pública através de comunicação estratégica entre o Estado Brasileiro e o povo haitiano. Ela serviu como aproximação entre os dois países e abrandou a intervenção militar que acontecia.

Como resultado disso a presença brasileira no Haiti seria mais bem vista e aceita por parte da popula-ção local o que de certa forma facilitaria o trabalho das Forças de Paz presentes, tornando-o mais ágil e eficaz e contribuindo para o alcance das metas, que são: contribuir para a segurança do país e estabele-cer condições para uma transição política pacífica (BIAZZI e FRANCESCHI NETO, 2007).

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Nesse contexto, a política externa brasileira mostrou como uma iniciativa não-militar, ao usar de uma imagem agregadora, no caso, da seleção brasileira de futebol, pode colaborar com os propó-sitos do país, especificamente em uma missão de paz. As imagens da calorosa recepção do povo haitiano aos jogadores do Brasil a percor-rer as ruas de Porto Príncipe em carros blindados a serviço da ONU ganharam o mundo através da mídia internacional e evidenciaram como um gesto simples pode se transformar num poderoso instru-mento a favor da paz (AGUILAR, 2008, p. 7).

Ademais, o jogo também serviu para unir o povo do Haiti, que vinha sofrendo com o conflito civil. Antes de o jogo começar, o hino haitiano foi cantado em uníssono por mais de 15 mil pessoas, demonstrando todo o seu orgulho e patriotismo. A estabilização da situação no Haiti pôde, então, tornar-se mais fácil e rápida com a união dos cidadãos do país, que ocorreu devido ao futebol, instru-mento do soft power brasileiro.

Nesse caso, viu-se o soft power brasileiro em ação no país e, além disso, aumentar em outros países, devido ao apelo internacional do esporte. Ele permitiu uma maior aproximação entre as tropas bra-sileiras e a população local. Isto facilita a consecução da operação de paz, até porque todas as tropas de outras nacionalidades usufruíram desse maior contato. Além do mais, o “Jogo da Paz” chamou a aten-ção internacional para a situação haitiana, o que pôde de certa forma fazer com que maiores esforços fossem realizados para a melhora da condição do país, inclusive para a “obtenção de recursos para desen-volvimento de projetos de construção da paz” (AGUILAR, 2008).

Além do caso do Haiti, o governo brasileiro, para firmar seu

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papel de potência, vem criando vínculos com países africanos, tornan-do-se um polo de atração. Para aumentar seu soft power no continente africano, o governo brasileiro criou parcerias com as confederações de futebol daqueles países para que seleções e times africanos treinas-sem em solo brasileiro, usufruindo de toda a infraestrutura disponível. Fora isso, o governo brasileiro também incentiva a ida de técnicos de futebol a times e seleções africanas. Esses são casos claros de di-plomacia pública brasileira tentando criar vínculos bastante positivos com outros países: soft power.

Por fim, a própria realização da Copa do Mundo de futebol em 2014 é um grande ganho para o Brasil em questões de soft power. Já a partir do anúncio da FIFA de que o Brasil seria o país anfitrião do evento em outubro de 2007, as atenções se voltaram para o país. Desde então, o soft power brasileiro vem aumentando e deve ter seu primeiro ápice quando (e se) a Copa for realizada exitosamente em 2014. Provável e possivelmente, as Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016 também servirão como um marco de atração de outros países ao Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exemplo brasileiro, é possível perceber o quão re-levante é o futebol nas Relações Internacionais, especificamente para o soft power. Ele não somente serve como elemento aglutinador de massas, mas também como propaganda, e carrega enorme simbolis-mo. Levando isso em consideração, é no mínimo curioso pensar que não se tenha abordado esse tema nessa área de estudos com a devida

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frequência.O potencial da função do futebol como meio de soft power

se faz presente no fato de que ele é um esporte mundial assistido por bilhões e praticado por centenas de milhões. As seleções nacio-nais são vistas como representantes quase oficiais do país, portanto, cada vez que um jogo é realizado, tem-se a impressão de que é o país todo em campo. Destarte, o esporte, em especial o futebol, afigura-se como um elemento fundamental para a criação e manutenção de la-ços amistosos entre as nações. Tais laços são sinais de que o soft power está presente, ou seja, o caminho para que os objetivos dos Estados sejam alcançados sem coerção ou trocas está assentado graças ao fute-bol. Portanto, conclui-se que o futebol é um instrumento primário no exercício direto e indireto do soft power, devendo os países prestarem mais atenção a esse esporte.

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O RECONHECIMENTO DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA E O PRAGMATISMO RESPONSÁVEL

FATORES DOMÉSTICOS E EXTERNOS

Dimitri Silva Nunes de Oliveira*

Rômulo Barizon Pitt**

Resumo

O presente artigo revisa o papel e os fatores envolvidos no reatrelamento diplomático do governo brasileiro com a China con-tinental em 1974, no âmbito do “pragmatismo responsável”. O prag-matismo responsável da presidência do general Geisel e a decisão de reconhecer a China comunista se explicam em grande parte pelas circunstâncias favoráveis no cenário internacional de então, que exigia o reposicionamento brasileiro. Entretanto, é a dinâmica política do-méstica dos dois países, mais criticamente do Brasil, que permitem, em última instância, a aproximação entre os dois governos.

Abstract

This article reviews the role and the factors involved in the

* Dimitri Silva Nunes de Oliveira é graduando no curso de Relações Internacionais pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador no IFCH (Departamento de História).** Rômulo Barizon Pitt é graduando no curso de Relações Internacionais pela Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador no NERINT (Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais).

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diplomatic rapprochement between the Brazilian government, under the “responsible pragmatism”, and mainland China, in 1974. General Geisel’s pragmatism and the decision to recognize Communist Chi-na can be largely explained by favorable circumstances in the interna-tional arena, which demanded a repositioning on the part of Brazil. However, it is the domestic political dynamics of the two countries, Brazil’s most critically, that allow, ultimately, the rapprochement be-tween the two governments.

INTRODUÇÃO

O reconhecimento da República Popular da China (RPC) constituiu um marco na política externa dos governos militares e da his-tória diplomática brasileira. Em clara oposição à linha externa adotada pelos governos predecessores, o governo Geisel relegou menor impor-tância ao peso da ideologia nas iniciativas de política externa brasileiras, no contexto da política externa que ficou conhecida como “pragmatismo responsável”.

De certa forma, como contrapartida da liberalização política interna, a liberalização da política externa ganhou força com o general Geisel, militar reconhecido por pertencer às alas moderadas do regime que ascendeu ao poder em 1964. A liberalização da política internacio-nal, no primeiro momento, assumiu forma em três principais iniciativas: a mudança de posição no conflito árabe-israelense em prol das nações árabes, o apoio à descolonização portuguesa na África e o reatrelamento de relações diplomáticas com a RPC. Em comum com a contrapartida interna, a liberalização nas relações exteriores foi colocada em prática de

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forma “gradual e segura”, muito embora se perceba que no cenário inter-nacional tal iniciativa foi mais veloz que a redemocratização doméstica.

Dada a importância e, principalmente, a representatividade do evento do reconhecimento da RPC para a política externa brasileira, encontra-se no Brasil extenso trabalho acadêmico acerca deste evento, seu papel e seus condicionantes. Assim, este artigo buscará condensar os fatores internos e externos referentes aos dois países e a dinâmica entre estes diferentes aspectos no que condiz à aproximação entre os dois go-vernos. Apesar das marcadas diferenças ideológicas entre os regimes, as mudanças no sistema internacional, assim como as mudanças na dinâ-mica política dentro das arenas decisórias dos dois países, acabaram por reverter o processo de afastamento que se vislumbrava desde o início do governo Castello Branco.

A partir desta constatação, elencamos como hipótese que tanto as mudanças externas quanto as internas de ambos os países configu-ram pré-requisitos sem os quais não haveria a aproximação no momento em que se deu – provavelmente a aproximação diplomática só se daria mais tarde sem tal conjunto de fatores. Na análise da arena política do-méstica brasileira, o presente artigo se baseou principalmente no estudo de HIRST (1984). A partir de uma revisão bibliográfica, será avaliado o diálogo entre os principais atores envolvidos nas relações bilaterais Brasil-RPC durante o governo Geisel e seu “pragmatismo responsável”.

1 Contextualização

O fim do governo Médici foi marcado por uma intensa crise econômica no Brasil e no mundo. No ano de 1973 estourou a crise do

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petróleo, orquestrada pela OPEP como sinal de protesto ao apoio dos Estados Unidos a Israel na Guerra do Yom Kippur. O preço do pe-tróleo teve um aumento vertiginoso, impactando a economia mundial e especialmente a brasileira. Isso se deve pelo fato de que o Brasil na época era o maior importador de óleo entre os países em desenvolvi-mento e o sétimo em escala mundial, o que fez com que o país passas-se a gastar cerca de 40% de sua receita adquirida em exportações com a importação desse insumo, em 1974. Para efeito de comparação, o mesmo percentual, em 1972, girava em torno de 15% (BREDA DOS SANTOS, 2000).

O choque do petróleo causou forte recessão nos países indus-trializados, tradicionais importadores de produtos brasileiros e inves-tidores externos na economia nacional. Assim, o modelo de desen-volvimento escolhido pelo Brasil, que “empregava energia importada barata, dependia do afluxo de investimentos de capitais estrangeiros e da utilização de tecnologia também importada” (VIZENTINI, 1998), sofreu forte revés. Em suma, a crise do petróleo inverteu toda a conjuntura próspera que propiciou o rápido crescimento entre os anos de 1968 e 1973. A situação se torna mais drástica se levarmos em conta a opção do governo brasileiro pelo transporte rodoviário em detrimento do ferroviário e hidroviário, feita como parte da estratégia para a atração e instalação de indústrias automobilísticas internacio-nais no país. O aumento do número de automóveis e a consequente necessidade de aumentar a importação de petróleo intensificavam ainda mais a derioração das contas externas nacionais.

Mesmo antes do choque do petróleo, o sistema econômico internacional já apresentava sinais de mau desempenho. Em boa par-

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te como efeito da administração Nixon e do baixo desempenho da economia norte americana, atrelada aos custos da guerra na Indochi-na, o quadro internacional era de recessão e de exacerbação do pro-tecionismo. O protecionismo era proveniente principalmente das na-ções desenvolvidas, as quais ocupavam posição de destaque na pauta de comércio exterior do Brasil, enquanto que setorialmente afetavam diretamente as economias exportadoras de produtos primários – o que agravava as perdas brasileiras.

Destarte, o “milagre econômico” dava sinais visíveis de esgota-mento, elimando assim um dos principais pilares de sustentação do go-verno militar. A discussão sobre abertura política crescia cada dia com mais força no seio da sociedade e a explosão da radicalização se mostra-va como uma perspectiva real e próxima. Concomitantemente, existiam confrontos internos no governo, onde linha dura e moderada não con-seguiam articular uma postura única e eficaz para reverter o quadro da economia nacional. O cenário conjuntural demandava uma mudança de postura do governo, cuja legitimidade passava a ser questionada.

Em março de 1974 assumiu a presidência da República Er-nesto Geisel, militar da linha moderada, com a responsabilidade de arrefecer a crise interna e permitir que o processo de abertura se desse de forma “lenta, gradual e segura”. Uma de suas primeiras ações nesse sentido foi mudar o rumo da política externa, inaugurando o período conhecido como “pragmatismo responsável” da diplomacia nacional. Nas palavras de Geisel:

“[...] a política externa (a ser adotada) tinha que ser realista e, tanto quanto possível, independente. An-dávamos demasiadamente a reboque dos Estados

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Unidos. Sei que a política americana nos levava a isso, mas tínhamos que ter um pouco mais de sobe-rania, um pouco mais de independência, e não ser-mos subservientes em relação aos Estados Unidos. [...] Nossa política tinha que ser pragmática, mas também responsável. O que fizéssemos tinha que ser feito com convicção e no interesse do Brasil, sem du-biedades.” (D’ARAUJO & CASTRO, 1996, p. 336)

Comparando-a com a política adotada pelo governo de Castello Branco, nota-se um contraste significativo, principalmente quanto ao relacionamento entre Brasil e Estados Unidos. Entre os anos de 1964 e 1967, a proposta vigente era a de “desmantelar os princípios que regiam a Política Externa Independente, tais como o nacionalismo, base da industrialização brasileira, o ideário da Ope-ração Pan-Americana e a autonomia do Brasil em face da divisão bipolar do mundo e da hegemonia norte-americana sobre a Améri-ca Latina” (MALAN, 1984). Em outras palavras, o objetivo central da política castellista era retificar o “curso sinuoso” apresentado pela política externa dos governos de Jânio Quadros e João Goulart, pois se acreditava que a política neutralista até então defendida não ser-via aos propósitos de um país como o Brasil. A tese da segurança coletiva1 e o incremento das relações entre Brasil e Estados Unidos no período foram consequências naturais da nova linha adotada pelo Itamaraty. Durante os governos de Costa e Silva e Médici, houve uma atenuação na ênfase da identificação ideológica com o bloco políti-

1 A tese da segurança coletiva foi elaborada num contexto de insegurança interna nos países da América Latina, onde forças revolucionárias estavam conquistando vitórias sobre as forças legais. Tal fato gerava grande impacto no mundo ocidental.

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co-militar ocidental; sem embargo, foi apenas com o “pragmatismo responsável” que os interesses nacionais foram priorizados, rejeitan-do o alinhamento automático com o Mundo Ocidental. (SOUTO MAIOR, 2000)

Essa discrepância entre as políticas adotadas em 1964 e 1974 é explicada em parte pela diferença econômica do Brasil nos dois períodos. As importações e as exportações dobraram e quadruplica-ram, respectivamente, nesses dez anos. Além disso, assistiu-se uma grande diversificação da pauta de produtos exportados, com a parti-cipação do café caindo para 25%, enquanto que as participações da soja e dos produtos manufaturados aumentaram consideravelmente. A expansão da industrialização transformou o país num concorren-te de outros países industrializados, gerando atritos principalmente com os Estados Unidos e a Comunidade Europeia. Temos ainda o aumento da dívida externa, o que significava uma maior exposição brasileira frente ao jogo das forças econômicas internacionais. Em resumo, temos uma vigorosa alteração na inserção do Brasil na eco-nomia internacional, onde o choque de interesses entre países ricos e pobres corroborou para a mudança de postura do governo nacional. (SOUTO MAIOR, p. 441-442)

Outro fator relevante para explicar a divergência entre as po-líticas de Castello Branco e de Geisel é a alteração da conjuntura

Para combater as forças subversivas, o Brasil passou a advogar a defesa coletiva do continente americano, consubstanciada através da reestruturação da Organização dos Estados Americanos. Além de coletiva, a segurança seria integral, por abarcar todos os planos possíveis, seja político, econômico, militar ou ideológico.

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internacional. Durante os dez anos entre as duas gestões, houve um relativo abrandamento da guerra fria. A adoção de uma política de détente pelas duas superpotências contribuiu para o surgimento de um mundo multipolar, com muito mais alternativas de parceiros co-merciais para o Brasil. Além disso, as possibilidades para tomada de empréstimo externo também aumentavam, tendo em vista o grande volume de capital disponível no mercado financeiro internacional e o seu interesse em reciclar os chamados petrodólares (PINHEIRO, 1993, p. 247-260). Os empréstimos externos constituíam a única for-ma de viabilizar o objetivo central do governo de manter o crescimen-to econômico acelerado.

Unindo-se a abundância no mercado financeiro ao aumento de protecionismo nos principais parceiros comerciais do país – es-pecialmente nos Estados Unidos – teve-se a circunstância econômi-ca ideal para a diversificação nas relações diplomático-comerciais. A linha política a ser perseguida pelo governo Geisel tinha então o respaldo necessário em vários pontos, consolidando, dentre as partes civis do governo, a percepção da necessidade da inflexão na política exterior brasileira.

As conjunturas interna e externa que deliniaram o ano de 1974 são, portanto, fatores que permitem a adoção de uma polí-tica externa de afirmação nacional como era o “pragmatismo res-ponsável”. O conceito de pragmatismo se relacionava à eficiência material; à ideia de uma política descomprometida com princípios ideológicos que pudessem dificultar a consecução de interesses na-cionais, que sugeria que o Brasil estava pronto para adaptar-se a qualquer mudança potencial no sistema internacional. O termo

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responsabilidade relacionava-se às questões ideológicas, que não deveriam contaminar a política externa; tratava-se de uma palavra--chave dirigida às bases de sustentação do regime militar. Diz-se ainda que a política externa de Geisel foi “ecumênica”, devido ao caráter universalista de sua política externa, objetivando o incre-mento das relações internacionais do país. (VIZENTINI, 2004, p. 208; PINHEIRO, p. 249)

Talvez a grande constatação feita pelos elaboradores da po-lítica externa que viria a ser adotada em 1974 é a de que a ordem in-ternacional vigente constituía um obstáculo para o desenvolvimento social e econômico dos países do chamado Terceiro Mundo. Assim, a aproximação do Brasil com os demais países pobres era necessária, sendo talvez a única estratégia disponível para alterar a ordem econô-mica mundial. Não obstante, essa aproximação não era um objetivo em si, pois havia a consciência de que os países ricos eram os únicos detentores de tecnologia e financiamentos tão necessários para a con-quista do desenvolvimento no país. Com efeito, existia uma política de solidariedade com o Terceiro Mundo e de preferência econômica pelo Norte.

Assim, entre as características gerais da política externa ado-tada pelo governo de Geisel, merecem destaque o fim do apoio ao colonialismo português na África e a adoção de uma postura pró--árabe no conflito árabe-israelense. Merece menção também a ati-tude brasileira em fóruns multilaterais, reivindicadora de uma maior participação no sistema internacional. Tal prática reforçava as posi-ções brasileiras nas negociações bilaterais com países desenvolvidos. (PINHEIRO, p. 250)

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2 Precedentes históricos do Reconhecimento Diplomático

O primeiro momento representativo da política externa bra-sileira em relação ao novo governo em Beijing se deu com a Guerra da Coreia, no início da década de 1950. O então governo Vargas, embora alinhado com os Estados Unidos, recusou o convite de enviar tropas à península asiática, evitando se comprometer com um lado em especial. Entretanto, é a partir do governo de Jânio Quadros que a re-lação com a RPC ganha importância no contexto da Política Externa Independente (PEI).

A partir de uma série de medidas que posteriormente seriam caracterizadas por Castello Branco como “práticas sinuosas”, o pre-sidente Jânio Quadros inicia uma aproximação com o governo de Mao Zedong, culminando no envio do vice-presidente João Goulart para Beijing em 1961. Na China Popular, um dos principais fatores da política externa do governo revolucionário de então era o cisma sino-soviético. Com a morte de Stalin e o revisionismo de Kruschev, os já existentes ressentimentos entre a China maoísta e a União So-viética se transformaram num afastamento completo entre os dois países socialistas, ideológica e politicamente. Assim, a RPC, tendo que contornar o crescente isolamento internacional, passou a investir no fomento de relações diplomáticas e comerciais com outros países subdesenvolvidos do chamado Terceiro Mundo. As relações bilaterais atingiam um ápice inédito quando os eventos de meados da década de 1960 impuseram um retrocesso na crescente aproximação entre os dois países.

Durante as duas primeiras décadas do governo comunista em

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Beijing, a revolução esteve muito presente na política externa da RPC. A exportação do ideário da revolução maoísta era preponderante nas iniciativas internacionais chinesas, principalmente após o cisma sino--soviético. Existia um conflito entre os dois modelos de revolução socialista, embora não fosse aberto e total, ao mesmo tempo em que imperava na América Latina a política de contenção praticada pelos Estados Unidos. O conhecimento do patrocínio chinês a partidos po-líticos na América Latina invariavelmente entrava em choque com as alas políticas conservadoras, já insatisfeitas com as práticas populistas do governo democrático de então.

Como fruto da alta polarização na política brasileira no con-texto da queda de João Goulart, nove funcionários chineses que se encontravam no país, entre eles alguns encarregados de instalar um escritório comercial (previamente negociado entre o governo Jango e a RPC), foram presos sob a acusação de “conspirar contra a segurança nacional”. Em grande parte iniciativa do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, a prisão ia ao encontro das acusações de que a movi-mentação sindical, em particular as greves de 1963, havia sido orga-nizada por inspiração maoísta (PINHEIRO). Tal evento encerra, no Brasil, o ciclo de aproximação bilateral. Comparativamente, na China também se observa nos meados da década de 1960 a ação das alas mais extremadas do Partido Comunista Chinês (PCCh) com a Revo-lução Cultural, encabeçada por Mao, que visava afastar as lideranças moderadas e acabou por mergulhar o país na turbulência política. Tais eventos se relacionam diretamente ao cenário internacional de alta polarização, agravado com a crise dos mísseis de Cuba de 1962 e a multiplicação de arsenais nucleares.

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A prisão dos representantes chineses, de teor político, carac-teriza a arena decisória da política doméstica do período referido. Durante a era Castello Branco, ao contrário do que se percebe na era Geisel, as partes conservadoras – que naturalmente não aceitariam empreender esforços diplomáticos direcionados a uma nação socia-lista como a China Popular – têm voz ativa no gabinete presidencial e poder de veto nas decisões políticas. A isso também se deve as duas presidências seguintes, de Costa e Silva e Médici, militares ligados à “linha dura”.

Com as mudanças do equilíbrio internacional do final da dé-cada de 1960, mudam também as conjunturas internas de Brasil e da RPC. A criação do TNP e a prática da détente entre as duas super-potências ditam um novo ambiente internacional, onde os dois países recomeçam a se identificar mutuamente e a reconstruir suas relações. A oposição à assinatura do TNP por ambos os países aproximam es-tes nos fori internacionais, enquanto a China continental se aproxima cada vez mais de países em desenvolvimento como o Brasil, dado o ressentimento com as doutrinas Nixon e Kruschev. Com as iniciati-vas norte-americanas em relação à reinserção da China comunista no cenário internacional, têm-se um episódio controverso: o Brasil nega a entrada da China continental na ONU. As críticas do então Ministro Gibson Barbosa (BECARD, 2008) refletem o descontenta-mento com o “clube do poder das potências ocidentais” que apoiaram a entrada da China puramente por questões de realismo político; ou seja, tendo por fim enfraquecer o rival-amistoso, a URSS.

Mas mais importantes foram as mudanças ideológicas nos governos brasileiro e chinês e na distribuição de poder interno. Na

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RPC, a Revolução Cultural começa a esmaecer com a percepção do cumprimento do objetivo, enquanto que o apoio americano fomen-ta a identificação com o Terceiro Mundo. A luta entre moderados (dentre os quais estava o futuro líder partidário Deng Xiaoping) e os extremados continuaria internamente até 1976, embora externa-mente já houvesse ali um grau de liberalização. Em 1972, a China apoia diplomaticamente o Chile de Pinochet na questão dos direitos humanos versus soberania, ponto que é percebido pelo governo mi-litar brasileiro como muito favorável. O apoio ao Chile, que era um promissor parceiro econômico, juntamente com o apoio às preten-sões territoriais marítimas de países da América Latina em relação ao território contestado pelos Estados Unidos, acaba por iniciar uma reversão da imagem negativa que o governo militar brasileiro tinha sobre a China de Mao.

3 O Pragmatismo Responsável, a Teoria dos Três Mundos e o Reatrela-

mento com Beijing

A década de 1970 é de grandes transformações internas no Brasil e na RPC. No Brasil, sobe ao poder um militar da área moderada depois de dois presidentes da linha dura. Na China, o grupo modera-do, liderado por Deng Xiaoping, consegue ressuscitar politicamente e começa a reverter a balança de poder interna, culminando na queda do grupo que ficou conhecido como Bando dos Quatro, proeminente durante a revolução cultural. Também no cenário internacional se con-templam mudanças significativas. O choque do petróleo, a desvaloriza-ção do dólar e o mau desempenho econômico das potências ocidentais

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impõem uma nova realidade aos países exportadores de produtos pri-mários no bloco ocidental, onde se encaixa o Brasil.

A questão para o Brasil era se existiam condições internas para a diversificação das parcerias internacionais para além das bar-reiras ideológicas, mesmo em um regime que se respaldava na ques-tão ideológica. Com a ascensão do general Geisel e as consequentes mudanças no processo de decisão política, a resposta foi positiva. O pragmatismo responsável, colocado em prática por uma política ex-terna “responsável e ecumênica”, eliminava na medida do possível as barreiras ideológicas para a diplomacia do regime militar. Mas se sabe que havia forte oposição dentre os militares. Portanto, dificilmente o reconhecimento teria acontecido no tempo em que se deu, não fosse a atitude da liderança de Geisel e o enfraquecimento de certos órgãos do regime.

O processo de reaproximação com a China já estava em anda-mento, embora com pouca profundidade, desde o final da década de 1960, por iniciativa do Itamaraty. Mais especificamente, a iniciativa foi feita pela Divisão de Ásia e Oceania, encabeçada pelo conselheiro Carlos Antônio Bettencourt Bueno. O Ministério das Relações Ex-teriores manteve um acompanhamento constante do que acontecia na República Popular da China, o que lhe permitiu perceber o esmae-cimento da Revolução Cultural e das novas possibilidades de parceria que o país asiático oferecia.

O Itamaraty consolida sua liderança em matéria de política externa na gestão Geisel-Azeredo da Silveira, Ministro das Relações Exteriores até a posse de Figueiredo. Como se observa no cronogra-ma das missões e de outras iniciativas diplomáticas, a aplicação do

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pragmatismo responsável no reconhecimento diplomático da RPC foi uma decisão tomada unilateralmente pelo gabinete presidencial, em consulta e com o consentimento do Itamaraty. Quando a Secre-taria Geral da Comissão de Segurança Nacional se pronunciou a res-peito da questão, a iniciativa já havia sido tomada.2

Assim, o estilo autocrático da administração Geisel consti-tuiu fator chave no reconhecimento da RPC. O governo acabou por ser muito mais um governo pessoal do que característico de “junta”, como se observa frequentemente nos regimes militares. Não só isso, mas também a boa relação com o Itamaraty, que ganhava destaque dentre os órgãos informativos no plano da política externa, possibili-tou a percepção das novas possibilidades oriundas das mudanças no sistema internacional e na dinâmica política interna chinesa. Uma vez percebido o novo quadro, era somente natural o curso de ação tomado, o que aconteceu apesar da falta de consenso entre os mi-litares. Também se percebe a perda de espaço de outros órgãos de inteligência, em especial do SNI, que contava com participação direta nos gabinetes civil e militar, em matéria de política externa, durante o governo Médici.

De fato, a China transformava-se na década de 1970. Pas-sados os piores anos da rixa entre Mao Zedong e Deng Xiaoping, o discurso na Assembleia Geral da ONU de Deng Xiaoping sobre a

2 Observando o calendário dos acontecimentos, percebe-se que a decisão já es-colhida previamente foi só referendada pelo restante do governo, ainda assim sem consenso. Os ministros militares – Exército, Marinha, etc. – se opuseram à proposta do presidente Geisel (PINHEIRO)

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Teoria dos Três Mundos3, em 1974, sela um retorno das iniciativas internacionais em geral, com foco na relação Sul-Sul. Este tipo de relacionamento havia ficado em segundo plano durante a década de 1960, dado o foco exigido pelo conflito político interno. O Itamaraty acompanhava o processo com atenção, através dos chamados Rela-tórios de Hong-Kong (PINHEIRO), e a comunicação direta com o presidente da qual usufruía o MRE possibilitou que a ação apropria-da fosse tomada.

Com efeito, após a chegada da delegação comercial chinesa em sete de agosto de 1974, o governo brasileiro fez pública a decisão, em 15 de agosto, do reconhecimento da China de Beijing, cristalizan-do as mudanças empreendidas com a presidência do General Geisel em relação aos presidentes militares anteriores. Tal atitude não pode-ria ter acontecido tão prontamente não fosse a nova dinâmica política no governo Geisel.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O primeiro aspecto a se ressaltar é a importância do momen-to interno vivido nos dois países durante as iniciativas de fomento das relações bilaterais. As circunstâncias internacionais favoráveis à aproximação comercial e diplomática entre novos parceiros já exis-

3 A Teoria dos Três Mundos chinesa difere da contrapartida ocidental, em que o 1º Mundo é o capitalista desenvolvido, o 2º é o socialista e o 3º é composto pelas economias subdesenvolvidas. A Teoria chinesa se foca nas diferenças ideológicas e de poder: o 1º Mundo é composto pelas super-potências, o 2º é formado pelos seus aliados e o 3º seria formado pelos não-alinhados, onde se encontraria a RPC

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tiam desde o início da década, com a crise do petróleo consolidando o novo quadro. Entretanto, a cooperação que se deu exigia esforço diplomático e superposição ao poder de veto, no caso do Brasil, dos setores descontentes com a nova parceria. A política externa, embora combatesse esse poder, deveria ser gradual e, portanto, “responsável”. Nota-se que:

“A implementação do projeto de política externa do governo Geisel passou pela recomposição da correlação de forças dentro da estrutura de poder. Este projeto aparece como causa e efeito desta re-composição, na medida em que se inclui no pacote de políticas que, ao serem desenvolvidas concreta-mente, agravam o nível de tensões e divergências no próprio meio militar.” (HIRST apud PINHEIRO)

As mudanças domésticas tiveram papel mais crítico no lado brasileiro do que no chinês, uma vez que foi o Brasil que havia in-terrompido o crescente das relações bilaterais com o início do regime militar em 1964. A contrapartida chinesa sempre se apresentou com-prometida com a aproximação, que era barrada pelo lado brasileiro. Entretanto, a análise das mudanças chinesas não deve ser descartada, uma vez que, como aponta PINHEIRO, foi a percepção, por parte do Itamaraty, das mudanças no panorama político da China continen-tal que acionou a série de iniciativas visando a reaproximação com Beijing. Como mais um exemplo da importância do cenário domés-tico, observa-se que os primeiros anos da parceria foram de pouca transação comercial – foram os anos, na RPC, em que o poder ain-da não havia sido consolidado pela facção em ascensão, liderada por Deng Xiaoping, que só consegue reverter de fato a situação em 1976.

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Destarte, em 1976, ano da queda do Bando dos Quatro na China, a corrente de comércio Brasil-China foi a mais baixa da história das relações diplomáticas formais entre os países. Já em 1977, ultrapassou a marca de US$150 milhões. (BECARD)

Finalmente, percebe-se também a relação dos momentos po-líticos internos entre os dois países. O grau de semelhança no jogo entre moderados e exaltados dentro do novo regime, em ambos os países, deve-se em muito às semelhanças dos países e do seu papel no sistema internacional bipolar. Ambos de tamanho continental, com economias em vias de se desenvolver, Brasil e China sofriam as con-sequências do jogo entre as superpotências (respectivamente, EUA e URSS) de forma semelhante.

REFERÊNCIAS

BECARD, Danielly Silva Ramos .O Brasil e a República Popular da China: política externa comparada e relações bilaterais (1974-2004). Brasília, FUNAG, 2008.

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SOUTO MAIOR, Luiz Augusto. O Pragmatismo Responsável. In: ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (Org.). Sessenta Anos de Política Externa 1930-1990. São Paulo: ANNABLUME/NUPRI/USP, 2000, v. 1.

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FORMATAÇÃO

DIREÇÃO DE ARTE: André LuisDESIGNER RESPONSÁVEL: Mariana Zago

CAPA: André LuisMIOLO: Mariana Zago

MEDIDAS: 160 x 230mmTIPOLOGIA: Adobe Caslon Pro

ISSN 2178-1842