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POR QUE CRESCE A V I O L Ê N C I A NO BRASIL? Essas são as razões para escrever este livro, que não é dirigido somente aos especialistas e profissionais da segurança pública. Pretendemos atingir um público mais amplo, particularmente o cidadão cuja vida encolheu e cuja qualidade de vida baixou em resposta ao crescimento da criminalidade e da violência. Para tornar a leitura mais agradável, evitamos citações constantes de outros pesquisa- dores cujas ideias fundamentaram nossos argumentos. Na bibliografia esses pesquisadores estão listados. Em síntese, esperamos que o livro ajude o leitor a entender por que um país que avança nos indicadores so- cioeconómicos não consegue reduzir a violência. 10 1 O Brasil é um país muito violento A BANALIZAÇÃO DOS homícídios é fenómeno que carac- teriza o cotidiano brasileiro. São mais de 130 assassinatos por dia, concentrados principalmente nas regiões metro- politanas e cidades de porte médio do interior. A arma de fogo está presente em 90% dos casos e, em muitos deles, as vítimas são alvejadas por mais de cinco disparos. Não são incomuns as ocorrências caracterizadas por verdadeiras chacinas, com duas ou mais vítimas. E essa violência nossa de cada dia está em ascensão. Passemos a analisar a dinâmica dos homicídios na socie- dade brasileira nos últimos 30 anos. O número de vítimas de homicídios no país saltou de pouco mais de 10 mil por ano no início dos anos 1980 para mais de 50 mil em anos recentes. Se somarmos o total de brasileiros assassinados nesse período de três décadas, obtemos um número assustador: 1.145.908 vítimas de homicídios (Gráf 1). É importante analisar não apenas os números absolu- tos, pois nesse período o crescimento populacional no país 11

Por Que Cresce a Violencia No Brasil_2

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violencia

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    Essas so as razes para escrever este livro, que no dirigido somente aos especialistas e profissionais da segurana pblica. Pretendemos atingir um pblico mais amplo, particularmente o cidado cuja vida encolheu e cuja qualidade de vida baixou em resposta ao crescimento da criminalidade e da violncia. Para tornar a leitura mais agradvel, evitamos citaes constantes de outros pesquisa-dores cujas ideias fundamentaram nossos argumentos. Na bibliografia esses pesquisadores esto listados.

    Em sntese, esperamos que o livro ajude o leitor a entender por que um pas que avana nos indicadores so-cioeconmicos no consegue reduzir a violncia.

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    O Brasil um pas muito violento

    A BANALIZAO DOS homcdios fenmeno que carac-teriza o cotidiano brasileiro. So mais de 130 assassinatos por dia, concentrados principalmente nas regies metro-politanas e cidades de porte mdio do interior. A arma de fogo est presente em 90% dos casos e, em muitos deles, as vtimas so alvejadas por mais de cinco disparos. No so incomuns as ocorrncias caracterizadas por verdadeiras chacinas, com duas ou mais vtimas. E essa violncia nossa de cada dia est em ascenso.

    Passemos a analisar a dinmica dos homicdios na socie-dade brasileira nos ltimos 30 anos. O nmero de vtimas de homicdios no pas saltou de pouco mais de 10 mil por ano no incio dos anos 1980 para mais de 50 mil em anos recentes. Se somarmos o total de brasileiros assassinados nesse perodo de trs dcadas, obtemos um nmero assustador: 1.145.908 vtimas de homicdios (Grf 1).

    importante analisar no apenas os nmeros absolu-tos, pois nesse perodo o crescimento populacional no pas

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL

    tambm foi expressivo. Para tanto, consideremos as taxas de homicdios que correspondem ao nmero de homicdios por 100 mil habitantes (Grf 2).

    i III i i i iWii i l i i i i i i i i l^ G R F I C 0 1 . Nmero absoluto de vtimas de homicdios. Brasil, 1981 a 2011. Fonte: Datasus, Ministrio da Sade.

    GRFICO 2. Taxa de homicdios. Brasil, 1981 a 2011. Fonte: Datasus, Ministrio da Sade.

    A taxa anual de homicdios no Brasil mais do que dobrou no perodo, saltando de 12 homicdios por 100 mil habitantes em 1981 para 27 homicdios por 100 mil habitantes em 2011.

    Analisando-se com mais cuidado o Grfico 2, possvel observar que a taxa de homicdios caiu de 2004 a 2007, man-

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    o Brasil um pais multo violento

    Icndo-se em estabilidade nos anos seguintes. Isso ocorreu no porque a violncia parou de crescer no pas. Na verdade, a dinmica do fenmeno foi muito afetada pela performance do estado de So Paulo no perodo. Esse foi o nico estado brasileiro que entre 2001 e 2011 apresentou queda contnua da taxa de homicdios, superior a 60% em todo o perodo, ('orno So Paulo o estado mais populoso do Brasil e seu patamar de homicdios sempre foi elevado, quando o n-mero de vtimas de homicdios comeou a se reduzir, houve reflexo inevitvel na taxa do pas como um todo.

    Anahsando a taxa de homicdios do Brasil desconsi-derando os nmeros de So Paulo, inclusive a populao, obtemos evidncias contundentes do que ocorreu no pas no que concerne violncia urbana. A taxa de homicdios apre-sentou crescimento contnuo - 46% entre o final dos anos 1990 e 2010. Saltou do patamar de 21 homicdios por 100 mil habitantes para 31 homicdios por 100 mil habitantes.

    AVIOLNCIANOTERRITRIO NACIONAL

    A incidncia de homicdios no Brasil cresceu em ritmo mais acentuado nas Regies Norte e Nordeste nos anos 2000, conforme Grfico 3. Em ambas a taxa de homicdios saltou de 15 para mais de 35 homicdios por 100 mil habitantes, ou seja, crescimento superior a 100% entre 1999 e 2010. No Cen-tro-Oeste e no Sul tambm houve incremento de homicdios, ainda que em patamares mais modestos. A Regio Sudeste, por sua vez, destoou das demais, manifestando expressiva reduo na incidncia de homicdios, com destaque para

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL

    So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sendo que os dois ltimos estados tiveram queda de homicdios apenas na se-gunda metade da dcada de 2000-2010.

    No inusitada, portanto, a constatao de que entre os cinco estados com maiores taxas de homicdios no ano de 2011, quatro pertencem ao Nordeste e Norte do Brasil, quais sejam, Alagoas, Par, Bahia e Pernambuco. O mesmo fenmeno observado nas capitais brasileiras, destacando-se Macei, Joo Pessoa, Salvador e Belm.

    Esse dado importante porque revela uma mudana na dinmica espacial do fenmeno na sociedade brasileira. Se na dcada de 1990 o Sudeste capitaneou boa parte do re-crudescimento da violncia urbana, especialmente no Rio de Janeiro e So Paulo, na dcada seguinte os estados nordestinos assumiram proeminncia surpreendente. A nica exceo o estado de Pernambuco, que desde 2007 vem apresentando taxas de homicdios decrescentes (Grf. 4 e 5).

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    O Brasil u m pais multo violento

    0,0 10,0 20,0 30,0 40,0 50,0 60,0 70,0 80,0

    Alagoas J ^ ^ * " " ^ ^ Esprito Santo. ^

    Paraba P a r . 1 ^ ^ "

    Pernambuco. Bahia" ^ i G o i s ' ^

    Amazonas, Sergipe,

    Distrito Federal. ^ Rio Grande do Norte ^

    C e a r ' w i ^ " i ^ ^ ^ Mato Grosso'

    P a r a n , MI^* ' A m a p ] '

    R o n d n i a . ^ Rio de Janeiro.

    Mato Grosso do S u l , Tocantins,

    M a r a n h o . Acre,

    Minas Gerais, R o r a i m a , ^

    Rio Grande do S u l , ^ P i a u ]

    So Paulo, Santa Catarina 1 1 ' ' ' ' '

    GRFICO 4. Taxa de homicdios. Estados brasileiros - 2011. Fonte: Datasus, IVlinistrio da Sade.

    O 20 40 60 80 100 120

    Macei ] ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ J o o Pessoa. ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^

    Salvador. ^ ^ ^ J * Manaus.

    Fortaleza i ^ ^ ^ ^ B e l m ' ^ ^ ^ M ^ ^ M I

    So Lus 1 ^ ^ ^ ^ " i ^ ^ N a t a l ' H i ^ ^ B H H ^ M

    Recife' MHMH C u i a b ' ^^mm ^ ^ ^ M V i t r i a ' I

    G o i n i a ' HHMI^ ^ I M " I Porto V e l h o ' ^ ^ M M M^^M

    Curitiba' M^^^M ^ w ^ M Braslia ' ^ ^ ^ ^ M

    Belo Horizonte] I ^ ^ ^ M H ^ Porto A l e g r e ' ^ ^ ^ B "

    Aracaju' M H ^ B M a c a p ] Teresina' ^ ^ ^ H M

    Palmas' M^^B H Rio Branco' ^ ^ ^ ^ H

    Rio de Janeiro] ^HMH Campo Grande] H^^^^B I

    F l o r i a n p o l i s ' ^ ^ ^ HM B o a v i s t a ' BM^H

    So Paulo ^ 1 i i 1 1 ' '

    GRFICO 5.Taxa de homicdios - Capitais brasileiras - 2011. Fonte: Datasus/IWinistrio da Sade.

  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL

    Se a magnitude dos homicdios correspondentes ao conjunto da populao j pode ser considerada muito ele-vada, a relativa ao grupo jovem adquire carter de epidemia. Os jovens de 15 a 24 anos representam 18% da populao total do pas e 36,6% das vtimas de homicdios em 2011. A taxa de homicdios de jovens do Brasil em 2011 foi de 53,4 por 100 mil habitantes, praticamente o dobro da taxa nacional. Entre 2001 e 2011 foram assassinados mais de 203 mil jovens no pas (Grf 6).

    60 T

    M e n o r i 1 a 4 5 a l 4 1 5 a 2 4 2 5 a 3 4 3 5 a 44 4 5 3 1 7 5 5 a 6 4 6 5 a 7 4 ' 7 5 a n o s ano anos anos anos anos anos anos anos anos emais

    GRFICO 6. Taxa de homicdios por faixa etria. Brasil, 2011. Fonte: Datasus, Ministrio da Sade.

    A distribuio dos homicdios tambm no igualitria quando se leva em considerao o gnero. A vitimizao ho-micida no pas fundamentalmente masculina, no patamar de 92%. O nimero de vtimas do gnero feminino tem se mantido constante nos liltimos anos, cerca de 8% do total de homicdios. Ainda assim, em 2011, mais de quatro mil mulheres foram assassinadas no Brasil.

    No que diz respeito cor, a participao branca no total de homicdios do pas bem inferior participao negra. Em 2011, as vtimas brancas representaram 28,2% e as negras 71,4%.

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    o Brasil um pas multo violento

    Analisando todos esses dados estatsticos, identifica-mos o perfil bsico da vtima de homicdios na sociedade 1)1 asileira: homens (1), jovens (2) e negros (3).

    (OMPARANDO O BRASIL COM O RESTO DO MUNDO

    Comparando-se o Brasil com parmetros internacionais, .1 laxa de homicdios no Brasil elevada. Cerca de 40% dos pases no mundo tm taxas inferiores a trs homicdios por 100 mil habitantes, ao passo que 17% dos pases apresentam laxas superiores a 20 homicdios por 100 mil habitantes, idcntificando-se alguns que alcanam taxas acima de 50 por 100 mil habitantes. As regies mais violentas do planeta so a frica, excetuando os pases do norte, e as Amricas, ex-(.cluando os pases da Amrica do Norte, com taxas mdias superiores a 15 homicdios por 100 mil habitantes. Os pases da Europa, sia e Oceania apresentam taxas mdias de ho-micdios abaixo de trs por 100 mil habitantes.

    No Mapa 1 podemos visualizar com maior preciso que as taxas de homicdios no Brasil nos colocam entre os pases mais violentos do mundo. Considerando apenas as Amricas, estamos entre os dez pases mais violentos.

    INCIDNCIA DE ROUBOS

    A violncia urbana no Brasil no se limita aos homic-dios. Os crimes contra o patrimnio, em especial os roubos, tambm devem ser considerados na anlise. Nesse quesito nosso pas revela nmeros preocupantes. Segundo o Anurio

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL

    Taxas de homicdio 0,00-2,99 3,00-4,99 5,00-9,99

    m 10,00-19,99 m 20,00-24,99 2 5 , 0 0 - 3 4 , 9 9 > = 35 3 5em dados

    MAPA 1. Taxa de homicdios por pas - 2010. Fonte: UNODC. Estatsticas de iiomicdios, 2011.

    Brasileiro de Segurana Pblica, o Brasil registrou em 2011 aproximadamente um milho de roubos, o que equivale taxa de 552 roubos por 100 mil habitantes. E o latrocnio os acompanha de perto, pois representa o roubo seguido de morte. um tipo de crime que sempre provoca grande clamor popular. O pas registrou oficialmente 1.636 latrocnios em 2011 e 1.803 em 2012 (Grf. 7).

    Esse patamar de incidncia de roubos nos coloca em posio de destaque negativo no mbito internacional.

    A taxa de roubos seguiu trajetrias distintas nos di-versos estados brasileiros. Em So Paulo, por exemplo, ela se manteve relativamente estvel, em nvel elevado, desde o final da dcada de 1990. Em Minas Gerais, por sua vez, o fenmeno diferente. Houve crescimento expressivo entre 1999 e 2003, seguido de reduo contnua at 2010. Entre 2011 e 2013 a incidncia de roubos voltou a crescer, num nvel superior a 50% (Grf 8).

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    o Brasil u m pas muito violento

    M x i c o . Brasil .

    Paraguai. F r a n a .

    Po r tu g a l . Jamaica]

    C o l m b i a ] Islados Unidos.

    Sucia Itlia,

    Rssia Canad'

    Alemanha Nova Zelndia

    Bulgria fsrael.

    Filipinas. F i n l n d i a .

    J a p o . L

    0,0

    GRFICO 7.Taxa de roubos por 100 mil habitantes. Pases seiecionados - 2011. Fonte: UNODC. Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crimes.

    100,0 200,0 300,0 400,0 500,0 600,0 700,0

    GRFICO S.Taxa de roubos por 100 mil habitantes. Estados de So Paulo e Minas Gerais. Fonte: Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo/ Secretaria de Defesa Social de Minas Gerais.

    GLOBALIZAO E VIOLNCIA Contrariamente ao afirmado por muitos, a globaUza-

    o econmica e o neoliberalismo, que atingiram o mundo ocidental nas ltimas dcadas, no determinaram o cres-cimento da violncia urbana. O mercado capitalista requer solues pacficas e no violentas de conflitos.

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL

    No h uma onda de violncia assolando as socieda-des ocidentais. A taxa de homicdios na Europa ocidental, por exemplo, est em queda nos seis principais pases, e o nmero absoluto de homicdios est se reduzindo desde 2003, com destaque para a Inglaterra, Frana e Alemanha, conforme revela o Grfico 9.

    1 . 2 0 0 -

    1.000 H

    800

    600

    400

    200

    - Alemanha

    E s p a n h a

    F r a n a

    ' Itlia

    Portugal

    I n g l a t e r r a

    2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

    GRFICO 9. Nijmero absoluto de homicdios. Pases europeus seiecionados. Fonte: UNODC. Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crimes.

    O caso dos Estados Unidos mais instigante, pois, entre 1995 e 2011, um prazo relativamente curto, suas principais cidades apresentaram reduo significativa de homicdios, prxima a 30%. Em outros termos, o centro mundial do neo-liberalismo tornou-se menos violento no perodo (Grf 10).

    No caso dos roubos, h relativa estabilidade na Europa ocidental, assim como nos Estados Unidos. A Inglaterra, entretanto, apresentou expressiva reduo na incidncia de roubos entre 2003 e 2012, prxima a 35% (Grf 11).

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    o Brasil um pas muito violento

    1995 19961997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

    G R F I C 0 1 0 . Nmero absoluto de homicdios. Estados Unidos. Fonte: UNODC. Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crimes.

    1 4 0 . 0 0 0 -

    1 2 0 . 0 0 0 - ^

    1 0 0 . 0 0 0 +

    80.000 i -

    60.000

    40.000

    2 0 . 0 0 0 1

    O

    Alemanha

    Espanha

    F r a n a

    Itlia

    Portugal

    Inglaterra

    2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

    GRFIC011.Nmeroabsolutodei:oubosregistradospelapolcia.Paseseutopeusselecionados. Fonte: UNODC. Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crimes.

    Tampouco h, na Amrica Latina, um crescimento generalizado da violncia. A Venezuela o pas latino-ame-ricano que apresentou maior crescimento de homicdios, patamar superior a 100% entre 1995 e 2010. No Mxico, a violncia inicia trajetria ascendente em 2008, prolongan-do-se at 2011. Na Argentina houve estabiUdade da taxa dc homicdios e a Colmbia experimentou ntida reduo

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  • POR QUE CRESCE AVIOLENCIA NO BRASIL

    da violncia, saindo do patamar de 70 homicdios por 100 mil habitantes, em 1995, para menos de 40 por 100 mil habitantes, em 2011 (Grf. 12).

    G R F I C 0 1 2 . Taxa de homicdios. Pases latino-americanos seiecionados. Fonte: UNODC. Escritrio das Naes Unidas sobre Drogas e Crimes.

    CONCLUINDO...

    Os argumentos acima delineados so ftindamentais para a afirmao de uma ideia central: a violncia crescente nas cida-des brasileiras est relacionada mais a fatores internos do que a fatores externos ao pas. So nossas prprias mazelas sociais que esto interferindo na dinmica do fenmeno. Esqueamos a ao imperialista, o "demnio neoliberal" e a globalizao. Debruar-nos sobre as contradies de nossa sociedade um bom comeo para explicar, entender e reverter o crime e a violncia. Somos uma sociedade duas vezes mais violenta que a Argentina, Peru e Bolvia; quatro vezes mais violenta que o Uruguai e o Chile; cinco vezes mais violenta que os Estados Unidos e 11 vezes mais violenta que a Europa ocidental. O problema est no nosso quintal e no culpa do vizinho.

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    2

    O Brasil da incluso social

    () Mu AsiL SE TORNOU uma das maiores economias do mundo uo ltimo sculo. Embora o crescimento econmico perdesse velocidade em anos recentes, a evoluo do Produto Interno llriito (PIB), indicador principal da quantidade de riqueza fcrada por um pas, foi expressiva desde a segunda metade (lii dcada de 1990. Saltamos de pouco menos de um trilho (lo reais em 1995 para quase cinco trilhes de reais em 2013. (:oino a populao tambm cresceu, o PIB per capita menos, mas deu um salto significativo: estava em torno de nove mil il(')lares anuais per capia no final dos anos 1990, e quase alcan-ou 12 mil em 2013. Isso significa que a gerao de riquezas no Brasil cresceu em ritmo superior ao da populao.

    A expanso da atividade econmica refletiu-se dire-I a mente no mercado de trabalho. A taxa de desemprego ilcspencou desde o incio dos anos 2000, permitindo que o pais se aproximasse em 2013 da situao de pleno emprego. (lonforme o Grfico 13, a reduo da taxa de desemprego foi contnua a partir de 2005, atingindo em 2013 a magnitude de 5,4% da populao economicamente ativa. Essa a menor laxa de desemprego j registrada desde 1998.

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    11.^

    9 -

    8 -

    7 -

    5

    1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006^2007 2008^2009 2011 2012^2013*

    GRFICO 13. Taxa de desemprego anual. Brasil, 1998 a 2013. Fonte: IBGE.

    Outro dado relevante do mercado de trabalho a reduo da informalidade. A percentagem de empregados sem carteira e de trabalhadores por conta prpria em rela-o ao total de trabalhadores protegidos caiu de 59% para 47% entre 1998 e 2012. Esse indicador revela a magnitude da precarizao das relaes de trabalho na sociedade brasileira, que ainda se mantm elevada, mas com ntida tendncia de queda.

    A renda mdia do trabalhador, calculada pela mdia dos rendimentos mensais brutos do trabalho principal, tam-bm evoluiu no perodo, ainda que de forma parcimoniosa. Em 2001, a renda mdia do trabalhador brasileiro era de R$ 1.087,76, alcanando em 2012 o valor de R$ 1.432,59. Houve crescimento real de 31% ao longo da dcada.

    A diminuio do desemprego e o aumento da renda mdia do trabalhador reduziram a misria e a pobreza no Brasil em ritmo acelerado. Conforme se observa no Grfico 14, a percentagem de brasileiros em situao de extrema

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    2 O Brasil da Incluso social

    10

    2 -\ 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 g g g g g g S 8 S S 5 5

    G R F I C 0 1 4 . Percentagem de pessoas em extrema pobreza. Brasil, 1995 a 2012. Lonte: Ipeadata.

    |)()lireza (pessoas com renda domiciliar per capita to baixa os coloca como indigentes ou miserveis) caiu de quase

    I ()% cm meados dos anos 1990 para menos de 6% em 2012. A queda foi maior foi nos estados do Nordeste. A taxa

    de extrema pobreza caiu mais de 70% em todos os estados ilii regio entre 1991 e 2012, principalmente a partir de 2000. I',m Alagoas, por exemplo, em 1991 aproximadamente 36% da populao era miservel, caindo para 32% em 2000 e dospencando em 2012, quando atingiu 11%.

    A proporo de brasileiros com renda domiciliar per i apita abaixo da linha de pobreza, por sua vez, tambm so-licu reduo significativa. Em 1999 correspondia a 35% da populao do pas e em 2012 limitou-se a 16%. Analisando os nmeros absolutos, visualizamos com maior nitidez i |uo expressiva tem sido a reduo da pobreza no Brasil. I',m 1999, pouco mais de 56 milhes de brasileiros eram

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    pobres, ao passo que em 2012 esse nmero baixou para aproximadamente 30 milhes.

    A reduo da pobreza atingiu todas as regies do pas, com destaque, mais uma vez, para o Nordeste. Mais de 60% da populao nordestina tinha renda familiar per capita abaixo da linha de pobreza no inicio dos anos 2000. A rever-so desse patamar foi contnua nos anos seguintes, chegando a 30% da populao em 2012. Ainda h um contingente inaceitvel de pobres, quase o dobro da taxa nacional, mas devemos destacar a sua rpida reduo.

    Outro importante indicador econmico e social o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade na distribuio de renda no pas. Por mais de trs dcadas, o coeficiente brasileiro permaneceu acima de 0,6, caracterizando eleva-da desigualdade social, relativamente estvel. Desde 2002, entretanto, a trajetria tem sido descendente de forma cont-nua, revelando que tem melhorado aos poucos a distribuio da riqueza gerada no Brasil (Grf. 15).

    1995 1 9 9 6 1 9 9 7 1998 1 9 9 9 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 2 0 0 4 2 0 0 5 2 0 0 6 2 0 0 7 2O8M9''2I722'

    GRFICO 15. Coeficiente de Gini. Brasil, 1995 a 2012. Fonte: Ipeadata.

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    2 - o Brasil da Incluso soda!

    A coinbinao da reduo da pobreza e da diminuio IIM drsigualdade social impactou a estratificao social e as tlrtnt's de renda no Brasil. Desde o incio dos anos 2000 |nu vf um notvel crescimento do contingente de brasileiros i|tir iisccnderam classe C, que muitos identificam com a ilrtNsc mdia. Ela correspondia a 33% da populao brasi-Ivli .1 -m 1992, passando a 51% em 2009. So 95 milhes de lurtNileiros que passam a viver em famlias com renda per tiipllii entre R$ 1.126,00 e R$ 4.854,00 por ms. Quase 30 inllliocs de brasileiros ascenderam classe C entre 2003 e j!(l('>. l.sse fenmeno foi denominado pelo economista Mar-i rl Nri de "a nova classe mdia brasileira". Nesse mesmo pn iodo a percentagem de brasileiros situados nas classes I) (' l, compondo a classe baixa, caiu de 62% para 39%. o 'Nl rato que abrange famUas com renda per capita abaixo de l($ 1.126,00 por ms. A classe alta, por sua vez, composta peias classes de renda A e B, tambm dobrou seu contingente nos ltimos 20 anos. Limitava-se a 5,4% da populao em 1992 e atinge 10,6% em 2009.

    Outras importantes mudanas sociais em curso na .sociedade brasileira podem ser constatadas nas dimenses tia demografia, da educao e da sade. Merece destaque o estreitamento da base da pirmide etria, a reduo da pro-poro de crianas e adolescentes de at 19 anos de idade. Em 1999 a percentagem desse grupo na populao total era 40,1%, diminuindo em 2009 para 32,8%. Paralelamente cresceu a po-pulao idosa, de 70 anos ou mais de idade. Em 1999, havia 6,4 milhes de pessoas nessa faixa etria, correspondendo a 3,9% da populao total, enquanto em 2009 a populao atingiu

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    9,7 milhes de idosos, correspondendo a 5,1%. A reduo da percentagem de crianas e jovens e o consequente aumento da populao adulta e idosa esto associados queda dos nveis de fecundidade e ao aumento da esperana de vida.

    A taxa de fecundidade, que o nmero mdio de filhos que uma mulher teria ao final do seu perodo frtil, passou por notvel reduo. No final da dcada de 1990 eram 2,38 filhos por mulher, caindo para 1,90 em 2010. Os estados da regio Norte e Nordeste apresentam as maiores taxas de fecundidade do pas, ao passo que os estados do Sudeste e do Sul apresentam as mais baixas - prximas a 1,5 filho por mulher, no Sudeste.

    A esperana de vida tambm cresceu no Brasil, no decorrer da dcada passada. A vida mdia ao nascer, de 1999 para 2010, aumentou trs anos, passando de 70 para 73 anos. Esse patamar nos coloca em posio aceitvel no cenrio internacional.

    Outro indicador relevante a taxa de mortaUdade infantil. No perodo de 2000 a 2010, os bitos de crianas menores de um ano caram de 29,7 para 15,6 por mil nasci-das vivas, um decrscimo de 47,6%. Entre as regies, a maior queda foi no Nordeste, de 44,7 para 18,5 bitos, apesar de essa regio ainda ter o maior indicador. Nossa taxa de mor-talidade infantil ainda est distante daquelas apresentadas pelos pases da Europa e Amrica do Norte, que esto abaixo de sete mortes para cada mil nascidos vivos.

    A melhoria das condies de habitao est estrei-tamente vinculada reduo da mortalidade infantil e comprovada pelo acesso ao servio de saneamento. O pas apresentou crescimento de 9% no total de domiclios urba-

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    2 O B t a s i l d a i n c l u s o social

    MON i oin servios de saneamento entre 1999 e 2009, o que lp,iillua domiclios com abastecimento de gua por rede ^fhtl, esgotamento sanitrio por rede geral e lixo coletado illiftameiite. Em todas as regies brasileiras esse avano potlf ser verificado, conforme Grfico 16.

    GRFICO 16. Proporo de domiclios urbanos com saneamento bsico, fonte; IBGE (2010).

    As condies habitacionais podem ser analisadas ainda pelo grau de adequao. Domiclios adequados so os que possuem abastecimento de gua por rede geral, esgotamento siinitrio por rede geral ou fossa sptica, coletas de lixo diretas ou indiretas e at dois moradores por dormitrio; os domic-lios semiadequados apresentam, pelo menos, uma condio adequada e os domiclios inadequados no dispem de ne-nhuma das condies de adequao consideradas. Em 2010, havia no pas 30.068.888 domiclios adequados e 2.325.232 inadequados, representando, respectivamente, 52,5% e 4,1% dos domiclios existentes. A Regio Norte apresentou o quadro mais desfavorvel, com apenas 16,3% de domiclios adequados.

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  • POR QUE CRESCE AVIOLENCIA NO BRASIL?

    No entanto, o quadro geral em 2010 melhor do que em 2000. Nesse perodo houve um crescimento relativo de 19,5% de domiclios adequados no Brasil, com destaque para o Nordeste, que teve um crescimento relativo de 35,9% (IBGE, 2012).

    E os bens durveis existentes nos domiclios? Houve avano: aumentou a proporo de domiclios com televi-so, geladeira e mquina de lavar roupa. Em 2011, 96% dos domicHos particulares permanentes no Brasil possuam geladeira, 51% tinham mquina de lavar e 97% dispunham de televisores. Merece destaque ainda o rpido crescimento da proporo de domiclios brasileiros com telefone celular e computador. Em 2001, apenas 8% dos domiclios possuam computador com internet e 31 % dos brasileiros tinham celu-lar. No final da dcada passada, o computador com internet j estava presente em 28% das residncias e o celular quase se universalizou, alcanando mais de 80% dos brasileiros. Atual-mente, o nmero de celulares superior ao da populao.

    Os avanos na dcada so razoveis nos indicadores de educao. A taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade baixou de 13,3%, em 1999, para 9,6%, em 2010. Aumentaram, paralelamente, os nveis de escolaridade da populao, garantindo-lhe maiores oportunidades no mercado de trabalho. A percentagem das pessoas economi-camente ativas que tm uma escolaridade de pelo menos 11 anos de estudo completos, equivalente ao ensino mdio (nvel atualmente exigido para praticamente todos os postos de trabalho no mercado formal), um indicador desse avano. De 1999 para 2009, a proporo das pessoas economicamente ativas de 18 a 24 anos de idade com 11 anos de estudo quase

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    2 - 0 Brasil da Inclusosoclal

    .li .1)1 O U , passando de 21,7% para 40,7%. No conjunto das pes-' . t tas economicamente ativas com 11 anos ou mais de estudo, US ii-sultados melhoraram, mas em patamares mais baixos, IMssaiido de 7,9% para 15,2%. A escolaridade da populao luclliorou: a mdia de anos de estudo do brasileiro saltou de

    anos em 1995 para 7,2 anos em 2009 (Grf 17).

    Com 11 anos de estudo Com mais de 11 anos de estudo

    GR AFICO 17. Proporo das pessoas de 1 8 a 24 anos de idade economicamente ativas com 1 1 anos de estudo e com mais de 11 anos de estudo - Brasil, fonte: IBGE ( 2 0 1 0 ) .

    A quase universalizao do acesso ao ensino por parte tliis crianas de seis a 14 anos de idade, conforme o Grfico IH, j amplamente reconhecida. O mesmo no se deu com ON adolescentes de 15 a 17 anos de idade. Entretanto, entre 1999 e 2009 a taxa de frequncia a estabelecimento de ensino nessa faixa etria passou de 78% para 85%.

    A escolarizao lquida indica a taxa da populao em ilclerminada faixa etria que est frequentando escola no iiivel adequado para sua idade. Verifica-se no Grfico 19 que penas metade dos adolescentes brasileiros de 15 a 17 anos ilc idade que frequentam a escola est no nvel adequado, revelando que a situao do pas nesse indicador decep-

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    1999

    2009

    ^Uams 1 5 a 1 7 a n o s GRFICO 18. Taxa de frequncia bruta a estabelecimento de ensino da populao residente, segundo os grupos de idade - Brasil Fonte: IBGE (2010).

    2 0 ^ ^ , ^ ^

    Brasil Norte Nordeste Sudeste ' Sul ' Centro Oeste

    GRFICO 19.Taxa de escolarizao lquida dos adolescentes de 15 a 17 anos de idade. Fonte: IBGE (2010).

    cionante. Contudo, o avano do indicador no decorrer da dcada no desprezvel no Brasil como um todo, nem nas diversas regies. Proporcionalmente, o maior crescimento da taxa de escolaridade lquida deu-se no Nordeste, passan-do de 16% em 1999 para 39% em 2009.

    O avano no acesso educao no tem sido acom-panhado pela qualidade da educao. O ndice de Desen-

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    2 - 0 Brasil da incluso social

    volvimento da Educao Bsica (Ideb), do Ministrio da Educao, estipulou como meta a nota 6,0, a ser alcanada por todas as etapas do ensino, fundamental e mdio, at o ano de 2021. No que diz respeito s sries iniciais do ensi-no fundamental para o conjunto do pas, observa-se uma melhoria muito modesta no Ideb, cuja nota mdia passou de 4,2, em 2007, para 4,6, em 2009.

    CONCLUINDO...

    Os dados estatsticos expostos neste captulo no per-mitem outra concluso: o Brasil avanou e muito na "questo social" desde meados da dcada de 1990, principalmente a partir da virada do milnio. Diminumos a pobreza e a desigualdade de renda e ampliamos o acesso da populao a servios piiblicos na saiide, na educao e no saneamento bsico. A classe mdia, definida pela renda mensal familiar per capita, tornou-se o estrato majoritrio do pas, refletin-do-se na expanso acelerada do consumo de bens durveis.

    No se deduza desse diagnstico a constatao ingnua lie que o Brasil resolveu suas histricas mazelas sociais. H muito ainda por fazer para que possamos atingir nvel de ilesenvolvimento humano equiparvel ao dos pases euro-peus ou mesmo ao de alguns pases latino-americanos.

    O aspecto mais intrigante dessa dinmica social Niia simultaneidade com o crescimento da criminalidade violenta. Para certa percepo de senso comum e mesmo pura algumas abordagens sociolgicas do crime, estamos diante de um paradoxo. Se a sociedade brasileira realiza

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  • POR QUE CRESCE A VIOLNCIA NO BRASIL?

    conquistas sociais, era de se esperar que a criminalidade seguisse trajetria contrria, no sentido da reduo. Como compreender uma sociedade que reduz as injustias socioe-conmicas e ao mesmo tempo sofre com a deteriorao da segurana pblica? A partir do senso comum, o paradoxo ainda maior porque as regies que mais progrediram so-cioeconomicamente so as que exibem maior crescimento nas taxas de criminalidade violenta.

    A resposta simples: no estamos diante de um parado-xo. Nada h de inusitado no fato de a trajetria ascendente da violncia urbana ocorrer em um contexto de reduo da pobreza e das desigualdades sociais. Ao contrrio do que se supe, no h relao simples e direta de causalidade entre pobreza e criminalidade.

    O crime multifacetado, combinando fatores diversos. um reducionismo extremo acreditar que um indivduo pega arma de fogo para cometer um assalto ou se torna um traficante de drogas somente em razo da necessidade de sobrevivncia pessoal ou de sua famlia. Pode parecer bvia e inquestionvel a crena de que, quanto mais vulnervel po-breza e misria, mais prximo o indivduo estaria do crime. Porm, o fenmeno envolve outras dimenses estruturais e institucionais da realidade social que no sustentam tal racio-cnio linear. No prximo captulo esclarecemos essa polmica, explicitando o debate cientfico sobre as causas do crime.

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    3

    As causas do crime

    ( ) (UK LEVA ALGUM A matar, roubar, estuprar, corromper iiii ser corrompido? Por que alguns indivduos adotam Kiinportamentos que violam os padres morais e legais InslilucionaUzados na sociedade e outros indivduos no o la/.em? Essas indagaes provocam debates acalorados ^\w no culminam em desfechos consensuais. Ao contrrio, tiiiHcitam posturas polarizadas, ora concebendo o criminoso * itiuo vtima de uma sociedade perversa e injusta, ora como Nrr patolgico a ser extirpado do convvio social.

    lisse debate muito importante porque, dependendo ituN respostas que dermos a tais perguntas, certos procedi-mentos de controle do crime sero defendidos e adotados. ( ) N mecanismos de controle social da criminalidade, tanto formais quanto informais, que prevalecem em uma socieda-dr. cslo estreitamente vinculados s representaes de seus membros sobre as causas da criminalidade, ao "imaginrio" KHiui sobre elas. O que fazemos para reduzir a incidncia do crime depende de como concebemos as causas do crime.

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  • POR QUE CRESCE A VIOLNCIA NO BRASIL?

    mas dcadas, mas tambm houve aumento dos crimes e das mortes violentas. Nossa realidade mostra que outros fatores esto influindo na incidncia do crime e da violncia.

    Analisaremos alguns desses fatores sociais a partir de agora. Nossa hiptese prope que o crescimento da crimi-nalidade violenta na sociedade brasileira est associado consolidao do trfico de drogas em nossas cidades, em combinao com os elevados patamares de impunidade vigentes em nosso arcabouo legal e com a precria atuao da polcia, da justia e do sistema prisional.

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    Jovens, drogas e violncia

    o CRESCIMENTO DA VIOLNCIA na sociedade brasileira est intimamente associado aos jovens de 15 a 24 anos de idade. A taxa de homicdios desse segmento mais do que duplicou entre 1980 e 2011, quando passou de 19,6 para pouco mais de 50 homicdios para cada grupo de 100 mil habitantes. Nas demais faixas etrias no se verifica crescimento to ex-pressivo da vitimizao. Os jovens so as principais vtimas e os principais autores da criminalidade violenta.

    Essa relao chave para compreendermos a deterio-rao da segurana pblica nas ltimas dcadas, a despeito dos avanos socioeconmicos. O crescimento da violncia entre os jovens se concentrou nas periferias urbanas. Diver-sas pesquisas realizadas no Brasil, que se dedicam a elaborar o mapa da violncia no espao urbano, chegaram mesma concluso: a incidncia de homicdios maior nas favelas e bairros de baixo poder aquisitivo.

    Por que os jovens negros e pobres das periferias urbanas tornaram-se mais violentos nas dcadas de 1990 e 2000 em comparao com jovens nas dcadas anteriores? Se houve

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    melhoria concreta nas condies de vida desses jovens e de suas famlias, como explicar o ingresso de muitos deles em trajetrias criminosas? Por que passaram a matar com mais frequncia, usando armas de fogo?

    Pesquisas realizadas no Brasil nos ltimos trinta anos nos permitem responder tais perguntas: o crescimento e a consolidao do trfico de drogas nas periferias das cidades, comercializando, num primeiro momento, a maconha, a cocana em p e, posteriormente, o crack, inseriram um nmero crescente de jovens no crculo vicioso da crimina-lidade e da violncia.

    O problema no est nos efeitos qumicos que essas drogas provocam no organismo dos usurios. A maconha, a cocana em p e o crack no criam, necessariamente, pessoas agressivas e dispostas a matar. Eles criam uma necessidade fsica e psicolgica que favorece furtos e roubos, mas no a violncia em si, que surge na comercializao dessas drogas, ou seja, o prprio trfico de drogas que gera jovens dis-postos a matar. Isso acontece porque o comrcio de certas drogas muito rentvel, por ser ilegal, considerado crime pelo ordenamento jurdico.

    O TRFICO DE DROGAS COMO COMRCIO ILEGAL

    comum conceber o traficante de drogas como um criminoso cruel e violento por natureza. Muitos deles se enquadram nesse esteretipo, mas, na maior parte das ve-zes, no so nem podem ser assim. O traficante de drogas , antes de tudo, comerciante. Como tal, ele disponibiliza um produto que encontra freguesia. As drogas que vende

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    4-Jovens, drogas e violncia

    satisfazem as necessidades de consumidores. uma relao comercial como qualquer outra, sujeita s mesmas regras da oferta e da procura. A grande diferena que esse comrcio considerado crime pela legislao. O trfico de drogas um exemplo de mercado ilegal. H outros.

    Vender ilegalmente drogas cujo consumo tambm ilegal no constitui, em si, crime violento. As pessoas c-nvolvidas participam voluntariamente de uma troca, na qual uma fornece o produto e a outra paga por ele. Entre-tanto, por ser uma atividade altamente rentvel, acessvel a pessoas com babco nvel educacional que esto alijadas de outras atividades rentveis, a competio entre vendedores intensa e tende a ser resolvida mediante o uso da ameaa, da coero, da fora fsica e da violncia, inclusive letal. H tambm divergncias e conflitos nas trocas entre vendedores e consumidores. A impossibilidade de se recorrer normal-mente ao Estado e legislao para resolver os conflitos e para garantir o cumprimento dos acordos abre espao para a violncia como forma de resolver conflitos e pendncias. A violncia usada pode variar de intensidade, indo desde a simples ameaa at as chacinas.

    No afirmamos que a violncia o padro das relaes entre traficantes e usurios de drogas. A lucratividade do negcio necessita da soluo pacfica de conflitos, tal como ocorre nas demais atividades econmicas. Entretanto, a desconfiana prevalece no trfico de drogas. A desconfian-a torna o uso da fora fsica um instrumento racional de minimizao dos riscos. Garante alguma previsibilidade na dinmica dos negcios a partir da premissa de que as pessoas envolvidas sabem que so altos os custos advindos

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    de uma pretensa traio. Assim, a violncia um recurso comum nas transaes econmicas nesse mercado ilegal.

    A padronizao da violncia levou valorizao das armas de fogo no trfico de drogas. Quem as possui e sabe utiliz-las leva clara vantagem sobre os demais. A capacidade de mostrar fora e de se impor aos adversrios, inclusive de mat-los, fortalece o traficante. Traficante sem armas no impe respeito e no dura.

    At o incio da dcada de 1980, a maconha era a droga ilegal mais comercializada pelos traficantes no Brasil. A partir de ento, a cocana em p ganhou espao, em parte devido queda dos preos nos centros produtores, nos pases andinos. Comearam a produzir a pasta base de cocana em larga es-cala, aumentando a oferta da droga aos traficantes brasileiros, que repassaram os benefcios a seus clientes. O crack chegou ao Brasil mais tarde, na virada da dcada de 1990. Outras drogas ilegais, incluindo as sintticas, tambm passaram a ser oferecidas pelos traficantes, tais como o ecstasy e as me-ta-anfetaminas, que atingiram um segmento mais restrito de consumidores. O Brasil se tornou um lucrativo mercado consumidor de drogas ilegais de direito prprio, no sendo mais um mero entreposto para o trfico internacional.

    A"BOCADEFUMO"

    Muitos acreditam que as favelas so as nicas regies das cidades brasileiras onde o trfico de drogas est presente. No verdade. O trfico de drogas atua tambm nos bairros das classes alta e mdia, ainda que de maneira diferente. A ele menos visvel. A comercializao das drogas no tem

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    4-Jovens, drogas e violncia

    formato nico, podendo adotar formas diferentes, como as ledes de empreendedores e as redes de bocas.

    A rede de empreendedores uma estrutura descentrali-zada, que tem como referncias pessoas que so os contatos para a compra das drogas. So essas pessoas que podemos iliialificar de empreendedores. No moram nas favelas ou nos bairros de classe baixa. Residem em casas ou apartamen-tos de boa qualidade, muitos tm empregos formais e no ,so identificados por vizinhos e parentes como traficantes. Levam uma vida normal, acima de qualquer suspeita.

    O empreendedor no dono da droga que comercia-liza. Ele a consegue de um fornecedor, que o gerente do negcio, prestando contas a um patro, o verdadeiro dono da "firma". O empreendedor to pouco um empregado desse patro. Ele tem autonomia para realizar seu trabalho e no se restringe a um bairro da cidade. Seus clientes o procuram para comprar a droga e o fazem com frequncia. atravs de festas, eventos sociais, contatos em bares e restaurantes que o empreendedor conquista novos clientes, tornando-se o fornecedor habitual da rede de contatos que construiu, lsse tipo de traficante no violento e no porta arma de fogo. Quanto mais discreto for, menos riscos corre. dessa maneira que o trfico de drogas funciona nos bairros mais ricos dos grandes centros urbanos brasileiros.

    A rede de bocas, por sua vez, a estrutura do trfico que aparece na mdia. a que domina a periferia urbana. Boca uma referncia espacial, um ponto comercial para a venda de uma droga ilegal. o lugar, e no os indivduos, que atua como hiperlink para a formao das conexes. hierrquica e centralizada, com clara diviso de atividades. Tem um patro.

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  • POR QUE CRESCE AVIOLENCIA NO BRASIL?

    O patro quem "pe a droga no lugar". No necessaria-mente morador local e pode ser proprietrio de vrias bocas em locais distintos. Em geral, no conhecido pelo grupo que trabalha diretamente conectado a essa estrutura na posio de vendedores, os pequenos traficantes. Seu contato mais restrito ao gerente. O gerente conexo central na rede de bocas. Seu papel de grande responsabilidade e com ativida-des multivariadas. Encarrega-se do embalo, da distribuio da mercadoria, da contagem, da aferio do lucro, da distri-buio de tarefas, da deciso sobre a forma de resoluo dos problemas e do acerto de contas e administrao dos recursos humanos sob sua responsabilidade.

    Um dos movimentos mais dinamizadores de uma rede de bocas o das conexes com os moradores locais que que-rem se integrar linha de frente da comercializao. Podem estar conectados na condio de vapores ou guerreiros (ven-dedores), avies (acionam os vendedores e entregam a droga), correria (deslocamento entre bocas), olheiros, fogueteiros (acionadores da segurana), faxineiros ou ratos (cobradores e matadores). nesse segmento da rede de bocas que se inserem as gangues juvenis, susceptveis execuo de homicdios.

    Perguntemos por que muitos jovens das periferias das cidades brasileiras foram atrados pelo trfico de drogas nas ltimas dcadas, passando a fazer uso mais ostensivo das armas de fogo.

    OS JOVENS DO TRFICO

    A participao no trfico de drogas proporciona uma srie de benefcios aos jovens da periferia, destacando-se o

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    4-Jovens, drogas eviolncli

    ^anho monetrio. uma atividade que oferece dinheiro fcil e ! pido, e numa quantidade que dificilmente o trabalho formal consegue proporcionar. E esse dinheiro pode ser utilizado para fins diversos, como, por exemplo, ajudar nas despesas da lamlia. Mas estudiosos brasileiros tm mostrado que a desti-nao principal da renda obtida com o trfico de drogas pelos jovens o consumo de roupas e calados de marcas famosas, aparelhos eletrnicos e mesmo farras e festas regadas a dro-gas e mulheres. A motivao principal do ingresso de jovens pobres no "movimento" ou na "atividade" no , portanto, a sobrevivncia - aUmentao, moradia, educao e sade.

    O individualismo, o hedonismo e o consumismo so as principais motivaes. A disseminao desses valores foi muito acentuada no Brasil em dcadas (e no apenas anos) recentes, acompanhando de perto o crescimento da econo-mia, a reduo da pobreza e do desemprego e o aumento da renda das famlias. A despeito de tais conquistas sociais, a desigualdade social no Brasil permanece em nveis bastante elevados. Na prtica isso significa que as oportunidades de os jovens da periferia urbana realizarem seus sonhos e desejos de consumo so ainda limitadas, comparadas com as dos jovens oriundos de famlias das classes mdia e alta.

    O descompasso entre o desejo de consumo e a renda fa-miliar modesta tornou o trfico de drogas muito sedutor. "Na atividade d para descolar uma grana legal", afirmao que desafia a escola e o trabalho formal, que acabam desvalorizados como meios para alcanar o desejado. Na racionalidade desse jovem que se incorporou ao trfico, o importante conseguir dinheiro de maneira rpida e sem muito esforo. Ao incor-porar-se ao trfico, jovens como esse abandonam os estudos.

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  • POR QUE CRESCE A VIOLNCIA NO BRASIL?

    H outros atrativos oferecidos pela comunidade do trfico. As gangues, as galeras e grupos criminosos orga-nizados desenham a face coletiva da atividade criminosa. Como outros grupos primrios, compartilham valores, crenas e regras.

    Compromissos de solidariedade e de lealdade definem parte expressiva dos laos entre seus componentes. Ingressar no trfico de drogas pode significar para o jovem alcanar respeito, proteo, autoestima, visibilidade. A arma de fogo exerce atrao sobre os jovens do trfico. Ela um instru-mento de amplo significado simblico; sua posse e osten-tao demonstram fora, virilidade, masculinidade, status. Permitem superar as angstias da invisibilidade que anula o jovem negro da favela, invisibilidade que est atrelada ao preconceito e desigualdade social.

    CRACK: DROGA "MALDITA"

    A comercializao do crack multiplicou a violncia relacionada ao trfico de drogas no Brasil. A entrada do crack transformou o trfico de drogas. O crack chegou em territrio brasileiro h mais de duas dcadas, a partir da Re-gio Metropolitana de So Paulo. Os servios ambulatoriais comearam a registrar consumidores da droga na cidade a partir de 1989. Desde ento, houve um crescimento cont-nuo da participao do crack no mercado das drogas ilcitas, atingindo o pas como um todo, nas grandes e pequenas cidades, nas regies metropolitanas e no interior.

    A principal fonte de dados que sustenta tal diagnstico a pesquisa realizada pela Confederao Nacional dos Mu-72

    4-Jovens, drogas e violncia

    iiicpios Brasileiros, em dezembro de 2010, que identificou it [iresena do crack em 98% dos municpios do pas. No podemos afirmar, contudo, que o crack a droga ilegal mais consumida no Brasil. De acordo com o 2 Levantamento Na-i ional de lcool e Drogas, a prevalncia do consumo de crack em 2011 entre adultos limitou-se a 1% dos entrevistados, cerca de um milho de brasileiros. O consumo de cocana em p duplicou, atingindo 2% da populao adulta. Outra conclu-so importante desse estudo a de que o Brasil se tornou o principal mercado consumidor de crack do mundo.

    H evidncias da presena do crack tanto na Europa cjuanto na Amrica do Norte e demais pases da Amrica do Sul. Nos Estados Unidos, a droga foi comercializada pela primeira vez no incio da dcada de 1980, e seu consumo propagou-se rapidamente, atingindo nveis epidmicos at meados da dcada de 1990.

    O crack , na verdade, uma verso da cocana para ser fumada, diferentemente da cocana cheirada, que tem a forma de p, o cloridrato de cocana, enquanto o crack tem forma slida, em pequenas pedras. A cocana um alcalide encontrado nas folhas de coca em baixas doses.

    Compreender os processos qumicos que resultam no crack e suas diferenas em relao s outras formas de cocana fumada importante para se evitar confuses terminolgicas ou vises equivocadas de senso comum. recorrente, por exemplo, afirmar que o crack um "subpro-duto da cocana", o que no verdade. O crack no obtido de eventuais resduos da produo da cocana em p. Ele pode ter mais impurezas, caso tenha a pasta base de coca como matria-prima, o que no o caso se for produzido a

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    partir da prpria cocana em p. O teor mdio de cocana no crack de 70%, ao passo que no cloridrato de cocana chega a 90%. As formas mais impuras de cocana fumada so a merla e o oxi, obtidos diretamente da pasta crua de coca.

    importante conhecer a ao no organismo humano do crack e das demais formas de cocana. H diferenas essenciais que dizem respeito ao modo de administrao da droga. A cocana um estimulante que atua sobre o sistema nervoso central, incrementando a disponibilidade de neurotransmis-sores, em especial a dopamina. Seu consumo produz sensao de bem-estar e euforia, com aumento do estado de alerta e da concentrao, alm de acelerar o pensamento e aumentar o prazer sexual. Essas sensaes so substitudas, aps algum tempo, por momentos de disforia, de natureza depressiva, com aumento da fadiga, da irritabilidade e da impulsividade.

    O efeito high seguido do crash caracteriza todas as for-mas de cocana, seja cheirada, fumada ou intravenosa. O que singular nas formas de cocana fumada, incluindo o crack, a intensidade e o tempo de durao desses momentos. A cocana fumada absorvida mais rapidamente pela corrente sangunea via alvolos pulmonares, chegando ao crebro em poucos segundos. Em consequncia, sua metabolizao pelo organismo tambm mais rpida, de modo que seus nveis na corrente sangunea so reduzidos na mesma velocidade. As sensaes de euforia e disforia so muito mais rpidas e intensas comparativamente cocana intranasal. Para se ter uma ideia dessa diferena, o incio dos efeitos eufricos do crack se d entre oito e dez segimdos, enquanto no cloridrato de cocana se d entre cinco e dez minutos. A durao de cinco a dez minutos no crack e de 30 a 60 minutos na cocana em p.

    74

    4 Jovens, drogas e violncia

    Esses efeitos da cocana fumada explicam em boa medi-da a tendncia ao uso compulsivo do crack. Com o intuito de experimentar novamente o efeito positivo da droga e buscar alvio para o efeito depressivo, o usurio tende a adotar um |)adro de consumo compulsivo que pode durar dias, inter-rompidos apenas pela exausto fsica. Esse padro de consu-mo conhecido como binge. Os usurios que o desenvolvem acabam por vivenciar outros efeitos da droga. Com o aumento progressivo do consumo, aparecem sintomas paranoides, lais como suspeio e perseguio, que podem culminar em tluadros psicticos com diversos nveis de gravidade.

    Por outro lado, mito a crena de que fumar a primeira pedra de crack provoca uma dependncia imediata. Estudos realizados no Brasil e nos EUA evidenciam a existncia do consumo controlado de crack, apesar de minoritrio, caracterizado pelo uso no dirio da droga. Prevalece, en-tretanto, a constatao de que a compulsividade o padro de consumo mais recorrente entre os usurios de crack do que entre os usurios do cloridrato de cocana.

    O perfil social dos usurios de crack no Brasil tem sido estudado desde a dcada de 1990 por pesquisadores do campo da sade pblica, mas os estudos se concentraram na cidade de So Paulo. O perfil predominante do sexo masculino, jovem, solteiro e de baixa classe econmica. Dei-xemos claro que o consumo do crack alcanou o segmento feminino e indivduos de classes sociais de maior poder aquisitivo, mas com representao minoritria.

    A mortalidade dos usurios de crack est associada com a violncia urbana. Marcelo Ribeiro e Luciana Lima constataram que a taxa de mortalidade entre usurios de

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    crack na cidade de So Paulo entre 1992 e 2006 foi sete vezes superior da populao em geral. A maioria (mais de 50% das mortes) morreu vtima de homicdio, enquanto um quarto faleceu em decorrncia da Aids, vindo a seguir as mortes por overdose e por hepatite B. Essa evidncia sugere que a introduo do crack no trfico de drogas na sociedade brasileira aumentou a incidncia de homicdios, elevando o patamar da violncia urbana.

    CRACK E HOMICDIOS

    O crack aumentou as situaes de endividamento no trfico de drogas devido a seu principal efeito farmacolgico, que a compulso ao uso. O usurio endividado aumenta o risco de ser vtima de violncia quando quebra os proce-dimentos em relao aos dbitos. Isso significa que dever no um mal em si, mas a traio sim. Se um usurio est devendo a uma boca e compra de outra, est infringindo um cdigo local, sendo denunciado, inclusive, entre traficantes concorrentes. A negociao possvel desde que esse deve-dor seja percebido como portador de atitudes coerentes em relao ao seu dbito, tais como no demonstrar uso ou no realizar outra compra antes de quitar a dvida. E os usurios do crack so contumazes nessa "traio".

    O crack provoca conflitos originados do "derrame" da droga, ou seja, a droga que, em vez de ser vendida, consumida pelo traficante. Ao contrrio de outras drogas, o crack no mn produto que permite "malhao" ou "dobra", estratgias para garantir gerao de um plus a partir de uma quantidade de produto adquirido. Assim, a incorporao do usurio rede

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    4-Jovens, drogas e violncia

    de comercializao para o sustento do seu consumo compul-sivo e o consequente "derrame" tornam-se mais recorrentes devido fissura provocada pelo uso. Na cadeia de repasse, o derrame torna-se imi problema para o usurio e sobretudo para o vendedor que repassou a droga para o usurio e que poste-riormente tem de acertar contas com o gerente de sua boca.

    O endividamento gerado pelo crack desemboca em outro crime, o roubo. Este torna-se prtica comum porque as bocas atuam muito por escambo. O trabalho de grande parte das conexes internas rede feito por mo de obra remunerada por produto. Nesse sentido, tanto o dinheiro quanto algum tipo de bem atuam como meio de troca pela droga. Essa prtica estimula o roubo no comrcio do crack. As situaes de roubo geralmente ocorrem no entorno das bocas, tornando os usurios do crack passveis de retaliao pelos membros da rede local.

    A alta rentabilidade das bocas propiciada pelo crack tambm gera violncia. A disputa no mercado da droga no se d em torno do seu valor de revenda. Esse valor j estipulado em instncias mais amplas da rede de comerciali-zao, que comea no fornecimento da pasta base, passando pelos laboratrios de processamento da droga, pelos grandes distribuidores e chegando aos fornecedores locais com um valor fixo. Enfim, um centro de comercializao, como a rede de bocas, no determina o valor da pedra de crack. As situaes geradoras de conflitos abertos, geralmente deno-minadas de "guerra do trfico", so originadas de confrontos armados entre os membros das respectivas redes, visando "tomada de uma boca". A rentabilidade da boca atrai as atenes daqueles que atuam no mercado local.

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    A DIFUSO DA V I O L N C I A

    Devemos considerar os efeitos indiretos do comrcio de drogas ilcitas sobre a violncia, qualificando um pro-cesso de difuso de homicdios. Esse processo envolve as maneiras atravs das quais as normas e padres de conduta caractersticos do trfico de drogas acabam por influenciar as atitudes e comportamentos de outros indivduos que no tm envolvimento direto com a venda ou consumo da droga. A soluo de conflitos do cotidiano tende a incorporar o re-curso fora fsica, fomentando uma sociabilidade violenta nas regies onde prevalece o comrcio de drogas ilcitas. O processo de difuso da violncia tem como principal vetor a arma de fogo, acessada com maior intensidade pelos jovens inseridos no comrcio de drogas ilcitas.

    As rivalidades entre as gangues juvenis adquirem nova conformao, suscitando tiroteios frequentes entre seus membros. Conflitos diversos, no relacionados apenas ao mercado ilegal, passam a ter desfecho letal. muito comum as gangues juvenis se confrontarem porque um dos mem-bros foi assassinado e os demais companheiros se esforam por vingar essa morte. Assassinatos recprocos tendem a se prolongar ao longo do tempo, movidos pelo crculo vicioso das vinganas que foi instaurado.

    O processo de difuso da violncia pode atingir outros indivduos da comunidade. A disseminao da arma de fogo fomenta um ambiente de insegurana, de medo e percep-o de perigo. A partir das redes de relaes dos jovens j envolvidos nas gangues e no comrcio das drogas ilcitas, outros jovens tendem a se armar como recurso de suposta

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    4-Jovens, drogas e violncia

    proteo. Os resultados dessa dinmica social so uma es-calada de corrida s armas de fogo na regio, aumentando a probabilidade de letalidade de conflitos cotidianos que extrapolam o mercado ilegal das drogas.

    CONCLUINDO...

    O argumento desenvolvido neste captulo simples: a expanso do trfico de drogas nas periferias urbanas em dcadas recentes constitui a principal matriz geradora de crimes violentos na sociedade brasileira. Jovens residentes nesses territrios foram e continuam sendo recrutados para o mercado flegal das drogas, que lhes oferece ganhos econ-micos e simblicos bastante atrativos. A arma de fogo passou a ser amplamente utilizada no apenas como instrumento de poder e resoluo de conflitos, mas tambm de ostentao e status. Matar tornou-se procedimento rotineiro, alimentando a crueldade de alguns.

    E os motivos para matar no se restringem ao trfico, incorporando vinganas interminveis entre membros de gangues. Motivos fiiteis, tais como namorar a ex-namorada de um traficante, so passveis de assassinatos. O crack o com-bustvel adicional que alimentou ainda mais esse processo.

    O trfico de drogas tambm cresceu nos bairros de maior poder aquisitivo, mas no tem gerado tanta violncia quanto nas periferias urbanas. E isso pode ser explicado pelo formato distinto que o comrcio das drogas ilcitas assume nesses territrios. A rede de bocas que predomina nas co-munidades mais pobres caracteriza-se pelo recrutamento contumaz de jovens e pelo uso intensivo da arma de fogo.

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    As evidncias empricas que apoiam o argumento so incompletas. No sabemos com certeza qual a porcenta-gem de homicdios no Brasil que tm os conflitos do trfico de drogas como motivaes e seu crescimento ao longo do tempo. Mas algumas pesquisas recentes sinalizam a favor do nosso argumento.

    Estudo realizado em Belo Horizonte por Lus Flvio Sapori, Lcia Lamounier e Brulio Figueiredo constatou que, entre 1995 e 2009, as motivaes relacionadas com o trfico de drogas saltaram de 8% para 33%, tornando-se a principal motivao dos homicdios na cidade. O economista Daniel Cerqueira, por sua vez, constatou em abrangente pesquisa que o aumento da demanda por armas e drogas nos ltimos anos da dcada de 1980 ajuda a expUcar a exploso de homi-cdios ocorrida nas cidades do Rio de Janeiro e So Paulo na virada da dcada e nos anos 1990. A partir dos anos 2000, a expanso do mercado de drogas ilegais atingiu outros estados brasileiros, especialmente os nordestinos, o que aumentou as taxas de homicdios.

    Crescimento econmico, maior incluso social e con-solidao do trfico de drogas avanam paralelamente no Brasil. E por isso que a incidncia de homicdios e roubos tambm recrudesce.

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    5

    Impunidade e violncia no Brasil

    DIFCIL ENCONTRAR UM brasileiro que no reclame da impunidade no pas. H uma sensao generalizada de que os criminosos esto agindo com muita facilidade, dissemi-nando o medo entre os "cidados de bem". A insatisfao com a atuao das polcias muito grande, como tambm com a justia. Prevalece no senso comum a representao de que a legislao penal branda com os criminosos, es-pecialmente com os adolescentes infratores.

    De fato, a impunidade no Brasil atinge patamares intolerveis. Ela constitui outro fator social que tem con-tribudo diretamente para o crescimento da criminalidade violenta. E impunidade diz respeito baixa efetividade do Estado na garantia da segurana pblica. A preservao da vida e do patrimnio dos cidados responsabilidade das instituies estatais especificamente criadas para esse fim, quais sejam, a polcia, a justia e a priso. Compem o que se denomina de sistema de segurana pblica, com diviso complementar de atribuies. A polcia previne e investiga

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    OS crimes, a justia processa e julga os acusados e a priso aplica a pena dos criminosos condenados.

    Alm da Constituio Federal, outros ordenamentos ju-rdicos delimitam o funcionamento do sistema de segurana pblica, como o Cdigo Penal, o Estatuto da Criana e do Ado-lescente, o Cdigo de Processo Penal e a Lei de Execuo Penal.

    A impunidade no Brasil diz respeito ao mau funcio-namento de todo esse arcabouo institucional. E ela abarca duas dimenses:

    O baixo grau de certeza da punio, que se refere ineficincia do sistema de segurana pblica na aplicao do ordenamento jurdico;

    A baixa severidade da punio, que se refere bran-dura da legislao penal e processual.

    a combinao de ambas as dimenses que cria um contexto social favorvel disseminao da criminalidade violenta, a despeito dos avanos sociais e econmicos. As evidncias da impunidade so bastante variadas e sero analisadas nos itens seguintes.

    A SUBNOTIFICAO CRIMINAL

    A punio do criminoso s pode ocorrer quando a polcia registra oficialmente o ato delituoso e identifica a autoria, viabilizando os atos processuais posteriores, que culminam na priso do autor. Se a vtima no registrar o crime, esses procedimentos no sero executados, gerando impunidade. o que se denomina de subnotificao crimi-nal, ou mesmo de cifra negra da criminalidade.

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    S Impunidade e violncia no Brasil

    A pesquisa mais recente sobre o assunto foi realizada pelo Datafolha e Crisp/UFMG, com financiamento do Ministrio da Justia. Os resultados foram divulgados em 2013 (Grf 20).

    Discriminao Ofensa sexual

    Fraude Agresso

    Furto de objeto Roubo de objeto

    Sequestro Furto de carro Furto de moto

    Roubo de moto Roubo de carro

    Total

    O 10 20 30 40 50 60 70

    GRFICO 20. Notificao de crimes polcia (% sobre o total) - Brasil. Fonte: Pesquisa Nacional de Vitimizao. Datafolha e Crisp/UFMG, 2013.

    Apenas 20% do total de brasileiros que foram vtimas dos crimes especificados, no ano anterior pesquisa, se dispuseram a registrar o fato polcia. Uma subnotificao de 80%, que varia de acordo com o tipo de crime: furtos e roubos de carros e motos so mais notificados. E isso se deve ao simples fato de que o recebimento do valor do seguro do veculo furtado ou roubado depende da formalizao do crime pela polcia. O seguro obrigatrio, mas alguns proprietrios no asseguram seus veculos.

    Nos crimes de furto e roubo de objeto, entretanto, a subnotificao superior a 60%. Ou seja, mais da metade dos brasileiros que so vtimas de crimes contra o patrimnio no acionam a polcia. Mais grave outra evidncia obtida nessa mesma pesquisa: mesmo nos crimes notificados, na maioria

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    dos casos (62%), os autores no foram identificados. Essas taxas sobem para 91% nos furtos de carros, 85% nos furtos e roubos de objetos, crimes que dependem ainda mais da investigao policial. No casual, portanto, que uma das principais justifi-cativas das vitimas para no acionarem a polcia a descrena na capacidade da instituio de apurar o crime ocorrido.

    A BAIXA CAPACIDADE PREVENTIVA DA POLCIA

    O efetivo policial, quando distribudo nos locais e horrios de maior incidncia da criminalidade (zonas quen-tes de criminalidade), capaz de reduzir a ocorrncia do fenmeno. A presena de policiais fardados, patrulhando diariamente as vias pblicas, reduz as oportunidades para o cometimento de crimes. Quando isso feito de maneira precria, poucos criminosos conseguem vitimar grande nmero de pessoas, especialmente no que concerne aos crimes contra o patrimnio. Essa a realidade prevalecente nas grandes e mdias cidades brasileiras.

    O policiamento ostensivo no Brasil ainda meramente reativo. A polcia atua quando o crime j foi consumado. So raros os planos operacionais pautados pela lgica proa-tiva, distribuindo os recursos humanos e materiais com o intuito de prevenir a incidncia de crimes. fala recorrente entre os comandos das polcias militares no Brasil a de que a polcia no tem como se antecipar ao crime, evitando sua ocorrncia, o que leva a uma postura de resignao diante dos elevados indicadores de criminaUdade violenta, como se nada pudesse ser feito. Prevalece a prtica de distribuir o

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    5 Impunidade e violncia no Brasil

    cftivo policial por turnos de trabalho, sem anlises prvias (la distribuio do crime no tempo e no espao.

    Contudo, o efetivo policial no pas relativamente baixo, dificultando ainda mais o policiamento preventivo. I )e acordo com o Anurio brasileiro de segurana pblica 2013, somando-se o contingente das polcias militares e das polcias civis, o Brasil possui cerca de 520 mil policiais, o que representa um policial para cada 363 habitantes. O estado brasileiro com o pior indicador o Maranho (um policial/710 habitantes); j o Distrito Federal, com um poH-cial/135 habitantes, apresenta a melhor relao entre efetivo policial e tamanho da populao.

    Nos pases europeus essa relao est entre 315 e 238 habitantes por policial, conforme levantamento realizado por Marcos Rolim. Nos Estados Unidos semelhante, com mdia de 250 habitantes por policial. Como se constata, a relao habitantes por policial no Brasil supera a observada na Europa e EUA, o que significa contingente policial infe-rior a essas regies. A taxa de crimes violentos no Brasil muito elevada, reforando a constatao de que o contin-gente policial no Brasil reduzido diante do tamanho do problema que deve enfrentar.

    A BAIXA CAPACIDADE INVESTIGATIVA DA POLCIA

    A investigao de crimes envolve a adoo de pro-cedimentos para se comprovar, antes de tudo, que o fato realmente aconteceu, ou seja, coletar evidncias sobre a materialidade e a autoria do crime. Esse trabalho siste-

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    matizado no inqurito policial que, quando finalizado, remetido justia. Considera-se o crime esclarecido quan ' o inqurito policial conseguiu evidenciar a materialidade a autoria, sustentando a atividade processual. Quando issd no acontece, a impunidade prevalece.

    As evidncias empricas disponveis revelam um quadro preocupante no que diz respeito impunidade para o crime de homicdio no Brasil. Relatrio que compe a Estratgia Nacional de Justia e Segurana Pblica - Enasp, resultado da parceria entre o Conselho Nacional do Ministrio P-blico (CNMP), o Conselho Nacional de Justia (CNJ) e o Ministrio da Justia (MJ), estima que apenas entre 5% e 8% dos homicdios anualmente ocorridos no pas tm autoria e materialidade identificadas, contrastando fortemente com os patamares observados nos Estados Unidos e Europa, acima de 70% de elucidao. Em alguns casos isolados possvel constatar taxas de elucidao de homicdios no Brasil prxi-mas a 40%, mas so melhoras pontuais no tempo e no espao.

    A gravidade da situao de tal ordem que a Enasp fez um levantamento dos inquritos de homicdios instaurados em todas as delegacias de polcia do pas at o dia 31 de dezembro de 2007, que ainda se encontravam em tramita-o, obtendo o nmero assustador de 134.944 inquritos. Em outras palavras, havia no Brasil, na segunda metade da dcada passada, mais de 130 mil homicdios no esclareci-dos, portanto, sem autoria identificada e obviamente sem qualquer tipo de punio dos responsveis. Devido intensa mobilizao empreendida pela Enasp, esse estoque foi redu-zido para pouco mais de 66 mil inquritos no incio de 2013.

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    S Impunidade e violncia no Brasil

    No que diz respeito aos roubos, o patamar de impunidade (' .linda maior. No dispomos de dados nacionais para sustentar rssa afirmao, porm, o que conhecido atravs de pesquisas cm realidades locais permite-nos fazer injunes para todo o p.rs. Em Minas Gerais, por exemplo, entre os anos de 1998 e ,!l)()5 somente 7% dos roubos registrados pela Polcia Militar tc-sultaram em inquritos policiais. E no se sabe quantos desses inquritos conseguiram esclarecer a autoria dos roubos.

    No municpio de So Paulo a impunidade no muito ililrente, conforme estudo realizado pelo Instituto Sou da Paz: entre os anos de 2009 e 2011, apenas 6% dos boletins de ocorrncia (BO) registrados pela Polcia Militar, nos crimes dc roubo e extorso, tiveram prosseguimento mediante ins-taurao de inquritos policiais. E, considerando os inquritos de roubos e extorso em que foi esclarecida a autoria dos crimes, chega-se ao patamar de 4%. Ou seja, nesse perodo de anUse, de cada cem roubos e extorses registrados pela polcia na cidade de So Paulo, em apenas quatro houve es-clarecimento do crime. Essa taxa de esclarecimento inferior aquela verificada no crime de homicdio (Grf 21).

    A MOROSIDADE DA JUSTIA

    A justia criminal brasileira muito lenta. A principal evidncia disso o tempo que o crime de homicdio demora para ser processado e julgado. De acordo com o Cdigo de Processo Penal, a partir da Lei 11.689/08, em regra geral, o tempo mximo previsto para tal processamento seria de 315 dias, sendo:

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    159,578

    14 m' a,

    1 r 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 L 1 ^ J H g r -2009 2010 2011

    I BO [ IP instaurados

    ' IP relatado com autoria

    Fonte: Instituto Sou da Paz. ^^oorauio.

    a) 30 dias para o inqurito policial; b) 15 dias para o oferecimento da dentincia; c) 90 dias para o encerramento da primeira fase da

    instruo; e d) 180 dias para o encerramento da fase do jtiri. Em suma, o homicdio deveria ter seu julgamento

    em pouco menos de um ano, contados a partir da data da ocorrncia do crime.

    Pesquisas recentes realizadas no Brasil mostram, en-tretanto, que raramente esse prazo cumprido. Em Belo Horizonte, segundo pesquisa realizada pela Fundao Joo Pinheiro, os homicdios ocorridos entre 1985 e 2003 e que foram esclarecidos pela polcia demoraram, em mdia, 1.485 dias para chegarem ao liltimo estgio processual, o julgamento pelo tribunal do jtiri. E em caso de recurso da sentena, o desfecho deu-se em 1.840 dias. Isso significa que

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    5 Impunidade e violncia no Brasil

    oram necessrios cinco anos para que a justia chegasse ao vcredito final sobre o homicdio.

    O tempo mdio de durao do inqurito policial girou cm torno de 300 dias e outros 100 dias se passaram at que o Ministrio Ptblico oferecesse a dentincia do ru. O Judicirio demorou mais de 500 dias, ou aproximadamente um ano e meio, para pronunci-lo. Outros dois anos e alguns meses se [lassaram at que a audincia de jtiri acontecesse. Esse estudo confirma que o tempo gasto na fase processual quatro vezes maior do que aquele destinado investigao policial.

    Outra pesquisa sobre o tempo de processamento de homicdios foi realizada por LudmUa Ribeiro nas varas do Tribunal do Jtiri na cidade do Rio de Janeiro, compreendendo o perodo de 2000 a 2007. O tempo mdio decorrido entre a data do homicdio e a data da sentena pelo Tribimal do Jtiri foi de 707 dias, abaixo dos padres de Belo Horizonte, mas ainda acima do tempo previsto pelo Cdigo de Processo Penal. Nos casos em que no houve a priso em fragrante do acusado pelo homicdio, a morosidade da justia fica mais explcita, atingindo a mdia de 1.193 dias de processamento.

    Ambas as pesquisas concluem que as variveis que con-tribuem para a morosidade no processamento dos crimes de homicdio no Brasil esto principalmente na fase judicial. Dizem respeito excessiva burocratizao dos procedi-mentos judiciais e aos imimeros recursos para os tribunais superiores. O excesso de prazo decorrente da requisio de laudos e de percias que podem ser utilizados pelo juiz para fundamentar sua deciso ou que podem ser solicitados por ele atrasa ainda mais o fluxo processual.

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  • POR QUE CRESCE A VIOLNCIA NO BRASIL?

    A PRECARIEDADE DO SISTEMA PRISIONAL

    A superlotao do sistema prisional tambm deve ser contemplada como dimenso da impunidade. A populao prisional do Brasil ultrapassa o contingente de 540 mil presos, ao passo que o nmero de vagas no chega a 300 mil. Essa realidade afeta a capacidade do poder pblico de garantir aos presos o tratamento digno previsto na Lei de Execuo Penal, diminuindo as possibilidades de reintegrao social e, conse-quentemente, ampliando as chances da reincidncia criminal.

    A ociosidade dos presos preponderante nas unidades prisionais do pas: apenas 20% dos detentos exercem ativi-dades de laborterapia. Os presos que esto estudando no sistema, por sua vez, no alcanam 10%. No bastasse isso, o pas ainda padece de contingente expressivo de presos provisrios que, em dezembro de 2013, segundo dados do Departamento Penitencirio Nacional - Depen, superavam 40% do total de presos do pas. Como corolrio dessa triste realidade, pouco mais de 30 mil presos permanecem cus-todiados em delegacias de polcia, constituindo fragrante violao da Lei de Execuo Penal.

    Esse diagnstico tem suscitado equvocos no debate pblico sobre prises no Brasil. recorrente a expresso "a priso est falida", de modo que h cada vez mais defensores da "descarcerizao", que significa restringir a aplicao da pena de priso na sociedade brasileira, o que grave erro. As prises esto falidas porque no so prises, porque so masmorras.

    Ouvimos com frequncia que a reincidncia criminal altssima. Porm, no sabemos quantos egressos do sistema 9 0

    5 - I m p u n i d a d e e violncia no Brasil

    prisional voltam a cometer crimes. No h pesquisas rigoro-sas, no Brasil, sobre o tema. Temos apenas noes imprecisas.

    Comparaes internacionais frequentemente utilizam liados absolutos e no levam em considerao as demais caractersticas dos pases comparados, comeando pelo ta-manho. Quem afirma que o Brasil o terceiro ou quarto pas tjue mais aprisiona no mundo ignora que o Brasil grande. Se considerarmos a taxa padro de aprisionamento, o Brasil tem 274 presos por 100 mil habitantes, o que o coloca entre o 45 c o 50 lugar, dependendo da fonte. Alm disso, comparar as laxas de aprisionamento de pases violentos com as de pases no violentos um exerccio ftil, que se transforma numa prescrio perigosa quando se prope que o Brasil tenha a laxa de encarceramento semelhante dos pases no violen-tos, sem correo para o nvel de criminalidade e de violncia. Sem crimes, no h necessidade de prises.

    Negar a priori o efeito da priso sobre a incidncia da criminalidade outra postura equivocada. Muitos dados, referentes a vrios pases, mostram um "efeito de incapa-citao" da pena de priso, que a reduo da execuo de crimes durante a priso. As pesquisas variam na amplitude desse efeito, mas no na sua existncia. O encarceramento de criminosos contumazes, particularmente os violentos, reduz muito a incidncia de diversos crimes, porque uma alta per-centagem dos crimes cometida por minoria dos criminosos.

    A FROUXA ARTICULAO DO SISTEMA DE S E G U R A N A PBLICA

    A impunidade na sociedade brasileira pode ser atribuda tambm frouxa articulao das organizaes que compem

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    O sistema de segurana pblica, a saber, Polcia Federal, Pol(| Rodoviria Federal, Polcia Militar, Polcia Civil, Ministi Pblico, Defensoria Pblica, Judicirio e prises. Ao con-trrio do previsto no arcabouo institucional, esse sistema no tem se pautado no cotidiano pela troca de informaes, pelo planejamento integrado e pela cooperao sistemtica. Conflitos de interesses so recorrentes, como tambm o isolamento institucional. A perspectiva corporativista tem orientado o funcionamento dessas organizaes, o que afeta a capacidade do Estado em impor custos efetivos ao crime violento. O Estado desarticulado favorece a criminalidade.

    A principal fonte de desarticulao a separao do trabalho policial em duas organizaes distintas, a Polcia Militar, que realiza o policiamento ostensivo, e a Polcia Civil, que realiza o trabalho investigativo. Na maioria das democra-cias contemporneas, as atividades ostensiva e investigativa so realizadas pela mesma polcia, independentemente de quantas existam na mesma sociedade. o que se denomina de ciclo completo de poUcia. No Brasil isso no existe.

    Essa singularidade do subsistema policial brasileiro provoca a emergncia de inmeros focos de disjuno no trabalho policial. o caso, por exemplo, da ausncia de mecanismos integrados e articulados de planejamento das intervenes pblicas na rea. A diviso de trabalho entre as polcias concentra no mbito ostensivo as tarefas envolvidas no combate criminalidade, que se resumem a planos de distribuio dos recursos humanos e materiais das polcias militares. A investigao policial e eventual identificao e deteno de criminosos ocorrem em momento distinto e

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    5 . Impunidade e violncia no Brasil

    oliedecem somente lgica de elaborao de documento a ser entregue s instncias judiciais.

    Ressalte-se ainda que cada uma dessas organizaes policiais dispe de um sistema prprio de comunicaes e informaes, raramente dialogando entre si. O registro oficial da incidncia criminal tem duas fontes distintas, caracteriza-das pela duplicidade e incoerncia dos dados. O diagnstico espaotemporal da criminalidade na sociedade brasileira no dispe, assim, de uma base de dados consensualmente estabelecida, o que suscita frequentes divergncias e conflitos no provimento da segurana pblica enquanto bem coletivo.

    O desenho institucional da segurana pblica no Brasil, em suma, provocou a emergncia e consolidao de organiza-es policiais que, a despeito do carter complementar de suas atividades, so culturas distintas, com definies particulares do interesse coletivo e que, alm disso, tm suas relaes ca-racterizadas pelo conflito e pela competio crnicos.

    A INEFICINCIA NA GESTO DAS POLTICAS DE S E G U R A N A PBLICA

    O gerenciamento de crises recorrente nas polticas de segurana pblica na sociedade brasileira. A ausncia de uma racionalidade gerencial sistemtica fator decisivo na ineficincia e na ineficcia da atuao governamental no controle da criminalidade.

    A interveno pblica nessa rea tem sido moldada pela improvisao e por postura meramente reativa. Plane-jamento estratgico e gasto eficiente dos recursos financeiros no so procedimentos usuais nas aes de controle da

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    criminalidade, em especial nos executivos estaduais. Al disso, monitoramento e avaliao de resultados tampou foram incorporados como ferramentas de gesto.

    As polticas de segurana pblica no BrasU, em regra gt so pautadas por intervenes governamentais espasmdicas direcionadas soluo imediata de crises peridicas que assO" Iam a ordem pbUca. Qualquer evento na dinmica do crime ou do aparato policial e justia criminal pode suscitar reaes crticas da opinio pblica e da mdia, pressionando para obter respostas imediatas das autoridades do Estado. O risco de crise miditica existe quando um crime violento provoca clamor popular, quando h denncia pblica de arbitrariedades e de corrupo policial, e quando h desafios explcitos s institui-es estatais por parte de grupos criminosos organizados em moldes empresariais. O setor vive de crise em crise.

    A cobertura do crime por jornais, televises e rdios, tem papel decisivo tanto na ecloso das crises da ordem pblica quanto na elaborao de prioridades nas reformas legais, institucionais e organizacionais. A imprensa pauta, em boa medida, a ao das polcias e das secretarias esta-duais de segurana pblica.

    As respostas s costumeiras crises do setor so de cunho eminentemente repressivo. Envolvem operaes policiais de grande porte em territrios urbanos onde o trfico de drogas prolifera, anncios de compra de novas viaturas e armamentos para as polcias e divulgao de prises, com a "apresentao" de criminosos. Reformas legislativas emergenciais do Cdigo Penal tambm se enquadram nessa perspectiva reativa. So "legislaes do medo", que no diminuem a criminalidade. 94

    S Impunidade e violncia no Brasil

    BAIXA SEVERIDADE DA LEI PENAL

    comum o argumento de que o aumento do rigor da pena no reduz a incidncia da criminalidade. So muitos os argumentos e poucos os dados. A lei dos crimes hediondos, promulgada em 1990, exemplo nesse sentido. Essa lei es-tabelece que alguns crimes devem receber tratamento mais severo pela justia, como os de tortura, trfico de drogas, latrocnio e homicdio. Aps a condenao, os envolvidos no tm o direito fiana e progresso do regime fechado para o semiaberto, que s ser possvel aps o cumprimento de dois quintos da pena, se o ru for primrio, e de trs quintos, se reincidente. Os crimes violentos continuaram a proliferar no Brasil a despeito da lei dos crimes hediondos.

    Essa lei retarda a progresso de regime dos indivduos condenados nos crimes includos nela. A penalizao dos criminosos no foi alterada, especialmente no crime de homicdio. H dcadas o crime de homicdio no Brasil impUca pena de recluso de seis a 20 anos. Se o homicdio for qualificado, a recluso ser de 12 a 30 anos.

    No so penalizaes severas, se considerarmos que a progresso de regime permite que o homicida volte ao convvio social em tempo muito curto. No caso de um ho-micdio simples, se o indivduo condenado a 15 anos de priso, sendo primrio, ele sai do regime fechado aps seis anos, podendo trabalhar fora da priso. Poucos anos depois ele j est no regime aberto, voltando priso apenas para dormir. O preso no regime aberto se encontra praticamente reinserido no convvio social, passando mais tempo fora do que dentro da priso, aumentando o risco de reincidncia.

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    Mesmo se considerarmos a penalizao mais severa para o homicdio, 30 anos de recluso, e sendo ele reinci-dente, o retorno do criminoso ao convvio social ocorrer a partir de 18 anos de cumprimento da pena. Esses so casos de homicdios que envolvem crueldade e motivos fteis.

    O carter retributivo da pena no pode ser ignorado. Ele complementado pelo ideal da ressocializao do criminoso. Punir os homicidas com a devida severidade fundamental para institucionalizar uma cultura de paz no Brasil. Porm, o custo de assassinar muito baixo no Brasil, mesmo quando o culpado identificado, indiciado, julgado, condenado e preso, uma raridade. Esse fato contribui para a disseminao da violncia. Os impulsos agressivos dos indivduos encontram um contexto favorvel, em que a punio relativamente branda. A despeito de ter tirado a vida de um ser humano, o homicida poder reconstituir sua vida pessoal e profissional em no mximo 20 anos. O morto, no. Numa sociedade na qual a esperana mdia de vida ao nascer j atinge 73 anos, esse tempo de aprisionamento um custo relativo muito menor do que h algumas dcadas.

    A impunidade no Brasil reforada pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), em sua forma atual, que prescreve o tempo mximo de trs anos de internao para o adolescente que comete homicdio. O ECA e seus com-ponentes, particularmente a idade mnima penal, so uma clivagem poltica e ideolgica entre a maioria da populao, inclusive da populao pobre, e uma parte considervel da intelectualidade brasileira, sobretudo a de esquerda. A populao no concorda com vrios dispositivos do ECA,

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    5 Impunidade e violncia no Brasil

    comeando pela maioridade penal. Em abril de 2013, 93% dos paulistanos defendiam sua reduo; para 45% a idade mnima deveria ficar entre 16 e 17 anos (atualmente so 18) e um tero achava que infratores adolescentes entre 13 e 15 anos deveriam ser presos como adultos. uma postura nacional: uma pesquisa do Senado realizada em 2012 revela que 89% da populao pela reduo da maioridade penal, especialmente para as infraes violentas.

    Outro agravante o enfraquecimento do Estatuto do Desarmamento, promulgado em 2003. Este previa a impossi-bilidade de fiana e de concesso de liberdade provisria para os crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e porte ilegal de arma de fogo de uso restrito. Entretanto, o Su-premo Tribunal Federal considerou que tais dispositivos so inconstitucionais, em acrdo de 2007. Na prtica isso significa que o indivduo preso em fragrante por porte ilegal de arma de fogo pode conseguir a liberdade provisria rapidamente.

    A penalidade para esses crimes branda, especialmente o porte ilegal de arma de fogo de uso permitido; no mximo quatro anos de recluso. E o indivduo pode ter sua pena privativa de liberdade transformada em pena alternativa.

    Em outras palavras, o custo de portar ilegalmente arma de fogo no Brasil muito baixo. O nmero de homicdios responde legislao penal e sua relao com o Estatuto do Desarmamento no exceo. Seguia uma tendncia retilinear ao aumento, tendncia invertida a partir de 2003 e que voltou a crescer posteriormente, ainda que esteja num patamar consideravelmente inferior ao da projeo linear baseada no perodo de 1980 a 2002.

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  • POR QUE CRESCE A V I O L N C I A NO BRASIL?

    CONCLUINDO...

    A anlise empreendida neste captulo descreveu a fra-gilidade do Estado de Direito na sociedade brasileira. Tanto a severidade quanto a certeza da punio so fundamentais para o controle da criminalidade violenta. medida que as instituies estatais responsveis pela garantia da segurana pblica mostram-se fracas e ineficientes, o recurso fora fsica para resoluo de conflitos e a imposio de interesses pessoais tendem a se disseminar. A sociabilidade violenta, conforme define Luiz Antnio Machado, passa a ocupar espao relevante nas relaes sociais cotidianas.

    O Estado de Direito em nenhum momento da histria brasfleira obteve o monoplio efetivo da violncia. A so-ciabilidade violenta trao marcante da histria do Brasil, incorporando tanto a relao Estado/sociedade quanto as relaes entre os indivduos na sociedade.

    Usamos a anlise do socilogo alemo Norbert Elias, que desenvolveu o conceito de processo civilizador, a pro-gressiva reduo da violncia na sociedade ocidental, que manteve estreita relao com a monopolizao da fora fsica e estabilizao dos rgos centrais da sociedade. no bojo da constituio do Estado de Direito que a violncia vai perdendo espao na sociabilidade cotidiana do mundo ocidental, permitindo a restrio progressiva de seu uso por parte dos indivduos, concentrando-a como prerrogativa exclusiva de certas organizaes do aparato estatal.

    Essa dinmica histrica ocorreu de forma satisfatria em muitos pases, mas [ainda] no no Brasfl. Q processo ci-

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    S Impunidade e violncia no Brasil

    vilizador na sociedade brasileira ainda est por acontecer. E a persistente impunidade um dos obstculos nesse sentido.

    Contudo, o uso abusivo da violncia por parte dos agentes do Estado um importante complicador. A vio-lncia, letal e no letal, da ao policial no Brasil muito elevada. H um excesso de mortes nas aes operacionais da polcia, ainda que com importantes variaes entre as unidades da federao. Segundo levantamento do Frum Brasfleiro de Segurana Pblica, somente em 2012 cerca de l .890 pessoas foram mortas pela ao de policiais militares e civis em situaes de confronto em todo o pas. Em termos comparativos, a letalidade da polcia brasileira cinco vezes superior norte-americana. O Estado que mata extrajudi-cialmente o mesmo que padece da fraqueza para punir o crime. So faces da mesma moeda.

    Em suma, a impunidade constitui um inequvoco fator que, somado consoUdao do trfico de drogas em dcadas recentes, contribui diretamente para manter a criminalidade violenta na sociedade brasileira em nveis inaceitveis.

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