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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO ERICSON TELLES SAINT CLAIR POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE GABRIEL TARDE PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO Niterói, RJ 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

ERICSON TELLES SAINT CLAIR

POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE GABRIEL TARDE PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO

Niterói, RJ 2007

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ERICSON TELLES SAINT CLAIR

POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE GABRIEL TARDE PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, com requisito para obtenção do Título de Mestre em Comunicação.

Orientadora: Prof. Dra. MARIA CRISTINA FRANCO FERRAZ

Niterói, RJ 2007

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ERICSON TELLES SAINT CLAIR

POR UM CONTÁGIO DA DIFERENÇA: CONTRIBUIÇÕES DE GABRIEL TARDE PARA A TEORIA DA COMUNICAÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, com requisito para obtenção do Título de Mestre em Comunicação.

____________ em abril de 2007

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dra. Maria Cristina Franco Ferraz - Orientadora Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. André Luis dos Santos Queiroz Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Márcio Souza Gonçalves Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Niterói, RJ 2007

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por suas crenças e desejos. À minha orientadora, Maria Cristina Franco Ferraz – grande magnetizadora inventiva – , pelo entusiasmo e carinho com que abraçou a pesquisa e pela convivência intelectual estimulante ao longo desses dois anos. Finalmente, agradeço pelo contágio de seu exemplo docente, que certamente levarei comigo pelos anos vindouros. Ao ex-orientador e hoje amigo Márcio Souza Gonçalves, por ter me despertado, no começo daquela já longínqua graduação, de meu sonambulismo dogmático. Agradeço, ainda, por todos os cafés pagos e pelas preciosas conversas sobre Gabriel Tarde. Ao sempre gentil André Queiroz, pela contribuição à dissertação e por seu estímulo a um pensamento vigoroso da diferença. Aos amigos de mestrado Danielle Brasiliense, Fernando Weller, Ilana Feldman e Marina Caminha, pelas risadas de diversas colorações nesses dois anos. Aos amigos de sempre, pelo de sempre: André Aguiar e Maria Antonia Vieira. A todos aqueles que – material ou espiritualmente – contribuíram para a realização deste trabalho: Eduardo Saint Clair, Esther Saint Clair, Felipe Caldas, Hélio Telles, Laiz Kaune, Lutz Kaune, Marcelle Santos e Rafael Saint Clair.

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“One thought can produce millions of vibrations and they all go back to God... everything does.”

John Coltrane, A Love Supreme

“Tout phénomène n'est qu'une nébuleuse résoluble en actions émanées d'une multitude d'agents qui sont autant de petits dieux invisibles et innombrables.”

Gabriel Tarde, Monadologie e Sociologie

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SUMÁRIO Introdução ____________________________________________________________ p. 10

Capítulo 1 – “Hypotheses fingo!” – pressupostos da comunicação na diferença _______ p. 20

1.1 – O problema da similitude original dos homens ____________________________ p. 21 1.2 – As esferas físico-química, vital e social __________________________________ p. 23 1.3 – O infinitesimal na ciência moderna _____________________________________ p. 25 1.4 – A inspiração leibniziana: a mônada _____________________________________ p. 28 1.5 – A crença e o desejo __________________________________________________ p. 32

Capítulo 2 – Hipnotismo, imitação e as similitudes sociais ________________________ p. 37

2.1 – A modernização da percepção e a problemática da atenção ___________________ p. 41 2.2 – A hipnose no século XIX _____________________________________________ p. 47 2.3 – A imitação social ____________________________________________________ p. 50

Capítulo 3 – O modus operandi da imitação: leis lógicas, influências extralógicas e a estatística como metodologia _______________________________________________ p. 57

3.1 – A lógica da imitação: duelos e uniões ____________________________________ p. 57

3.1.1 – Os duelos lógicos ____________________________________________ p. 58 3.1.2 – As uniões lógicas ____________________________________________ p. 60

3.2 – As influências extralógicas da imitação __________________________________ p. 62 3.2.1 – A imitação ab interioribus ad exteriora __________________________ p. 64 3.2.2 – A imitação do dito superior pelo considerado inferior ________________ p. 66

3.3 – O vôo da andorinha: a estatística como instrumento sociológico _______________ p. 70

Capítulo 4 – “Os loucos guiam os sonâmbulos”: a potência da invenção _____________ p. 77

4.1 – As leis exteriores da invenção _________________________________________ p. 82 4.2 – As leis interiores da invenção __________________________________________ p. 83 4.3 – O destino das invenções: acúmulos ou substituições ________________________ p. 85 4.4 – A arqueologia: exploração das invenções do passado _______________________ p. 87

Capítulo 5 – Pela variação: as oposições e o papel político da comunicação __________ p. 90

5.1 – Classificação das oposições ___________________________________________ p. 93 5.2 – Oposições, imitações e invenções _______________________________________ p. 95 5.3 – As oposições sociais e o papel da comunicação ____________________________ p. 98

Conclusão: um primeiro retrato ____________________________________________ p. 104

Obras Citadas __________________________________________________________ p. 109

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Câmara obscura, p. 42

Figura 2 Estereoscópio, p. 45

Figura 3 Gráfico estatístico – taxa de casamentos no Brasil de 1979 a 1994, p. 74

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RESUMO

Trata-se de investigar o estatuto da comunicação na diferença a partir do arcabouço do sociólogo francês Jean-Gabriel Tarde. Tendo como base as principais obras do pensador – Les lois de l’imitation, La logique sociale, L’opposition universelle e Monadologie et sociologie – postula-se que a teoria tardeana avalia o social como solo imanente de múltiplas, infinitesimais e diferenciais relações de comunicação. A partir de seus pressupostos filosóficos (especialmente a recuperação da monadologia de Leibniz) até a constituição de seu original arcabouço conceitual (nas arrojadas noções de imitação, invenção e oposição), Tarde proporá uma instigante imagem das sociedades, engendrada através da perscrutação dos micro-agenciamentos do social em sua processualidade de contínua diferenciação. O privilégio de análise de pequenas oposições, invenções e imitações – engrenagens microscópicas do real – pressupõe uma visada alternativa a esgarçadas concepções das sociedades focadas exclusivamente em grandes representações coletivas, ressoantes e sobrecodificadas. O sociólogo partirá das diferenças constitutivas para pensar toda similitude social por meio da noção de contágio social, entendido como pura comunicação de crenças e desejos. Na esteira da perspectiva tardeana, apresentam-se conceitos que pretendem investigar de modo minucioso as relações sociais em um solo de pura movência e diferenciação criativa, em que toda homogeneidade é vigorosa, porém de caráter essencialmente transitório.

Palavras-chave: Imitação, Invenção, Diferença, Contágio Social, Gabriel Tarde.

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ABSTRACT

The aim of this work is to investigate the place of communication on the concept of

difference based upon the ideas of the French sociologist Gabriel Tarde. Taking into consideration his masterpieces – Les lois de l’imitation, La logique sociale, L’opposition universelle and Monadologie et sociologie –, I postulate that Tarde’s theory points out the socius as the immanent soil of multiple, infinitesimal and different communicational relations. From his philosophical presuppositions (specially the recovery of Leibniz’s monads) up to constitution of his original theoretical pool (on the bold notions of imitation, invention and opposition), Tarde proposes an insightful image of society, produced through the investigation of the socious’ micro-agency in its process of continuous differentiation. The choice of the analysis of small imitations, inventions and oppositions – microscopics gears of the real – presupposes an alternative look at the conceptions of society which focus exclusively on big resounded over-codified collective representations. The French sociologist starts from constitutive differences to think social similitude. To do so he uses the idea of social contagion, understood as pure communication of beliefs and wishes. Tagging to Tarde’s perspective, I present concepts which investigate in a minute way the social relations at a soil of pure motion and creational differentiation, in which all homogeneity is vigorous, but essentially transitory. Key-words: Imitation, Invention, Difference, Social contagion, Gabriel Tarde

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INTRODUÇÃO:

Em 1903, a conferência de abertura do ano escolar da École des hautes études sociales

de Paris contou com a presença insigne de dois representantes da então recente área de saber

conhecida como Sociologia. Eram eles o conceituado professor Émile Durkheim (1858-1917)

e o renomado jurista e também professor Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904). A proposta da

academia era a realização de um debate acerca do estatuto das Ciências Sociais, após

apresentação de palestra de cada um dos convidados separadamente.1

A primeira conferência do dia coube a Durkheim, defensor entusiástico da delimitação

de um espaço próprio para a Sociologia. O pensador definiu-a como um campo livre das

especulações filosóficas que a acompanhavam até então: uma área que deveria ser fortemente

pautada por um método objetivo e preciso de investigação. A perscrutação das sociedades

obedeceria a uma epistemologia particular, não aplicável a outros domínios de saber, como a

filosofia ou a psicologia. Para isso, seria preciso esmiuçar a realidade social em si mesma,

livre da multiplicidade confusa dos fenômenos da vida diária para, enfim, desvendá-la em sua

essência abstrata.

A preleção seguinte, ministrada pelo então professor da cadeira de Filosofia Moderna

do Collège de France Jean-Gabriel de Tarde, revelava em resumo o que os anos de

notoriedade pública do velho mestre sedimentaram nos estudantes de Humanidades: as teorias

acerca das “realidades sociais” não disporiam senão de duas possibilidades concretas para

efetivarem-se – os grupos de homens que agem em comunicação uns sobre os outros

(famílias, classes, nações etc) ou os grupos de ações destes homens (costumes, línguas,

instituições etc). A Sociologia, portanto, não renunciaria à psicologia e à filosofia em nome da

1 Cf. DURKHEIM, E. “La sociologie et les sciences sociales. Confrontation avec Tarde”. In: DURKHEIM, E., Textes. 1. Éléments de théorie sociale, p. 160 a 165. Paris: Éditions de Minuit, 1975. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 13 ago. 2006.

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vaidade do reconhecimento de sua singularidade como disciplina científica. Deveria

constituir-se como pura constatação da processualidade imanente dos grupos de homens e dos

grupos de ações destes homens. A diversidade inebriante das formas sociais não configuraria

um problema para o sociólogo. As nuances sociais não constituiriam mero ponto de partida,

um estorvo ansiosamente descartável para o cientista que almeja uma chegada triunfal a

generalizações abstratas, ditas racionais e essenciais. A riqueza da sociologia adviria, pelo

contrário, do mergulho nesta infinidade de ações de homens que se criam, se opõem, se

complementam e se destroem incessantemente.

O debate subseqüente na Escola conformou objetivamente a batalha secreta que já se

travava há vários anos entre perspectivas tão díspares uma da outra. Desde, pelo menos, a

publicação de De la division du travail sociale (1893), o então jovem pensador Émile

Durkheim dedicou-se a uma gradual e corrosiva desqualificação dos trabalhos de Gabriel

Tarde.2 Ao longo das décadas de 1890 e 1900, a apresentação das teses durkheimianas, em

cada uma destas obras que adquiririam, em conjunto, o estatuto de cânone das Ciências

Sociais vindouras (incluindo-se aí a Comunicação Social), era indissociável de uma veemente

necessidade de refutação daquele que Durkheim elegeu como seu oponente.3

Em resumo, Durkheim acusa Tarde de imprecisão científica em seus trabalhos,

considerados “exaustivamente intuitivos”. Ademais, seus textos não seguiriam um método

propriamente sociológico, ao aderir a impressionismos de toda ordem e a um “exagerado

psicologismo”. Em um interessante artigo de 1895, denominado L'état actuel des études

sociologiques en France, Durkheim, como em muitas outras ocasiões, desqualificaria o

conceito tardeano de imitação afirmando que “verdadeiramente, Tarde jamais deu nem poderá

2 Apesar de a oposição durkheimiana a Gabriel Tarde manifestar-se mais claramente a partir desta obra de 1893, já em um artigo de 1886 para a Revue Philosophique (quando a única obra publicada de Tarde havia sido La criminalité comparée, neste mesmo ano), Durkheim interessava-se em demarcar o território da “verdadeira” sociologia, considerando que o incipiente estudo tardeano não esgotava o campo de saberes das ciências sociais. Cf. DURKHEIM, E. “Les études de science sociale”. In: Revue philosophique, XXII, 1886, p. 61-80. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 13 ago. 2006. 3 Não é parte de nosso objetivo neste trabalho esmiuçar as especificidades da crítica durkheimiana ao pensamento de Gabriel Tarde. Contudo, indicamos a seguir em que obras de Durkheim evidenciam-se as desqualificações mais contundentes à obra tardeana. Apresentamos, ainda, as páginas em que precisamente tais considerações se encontram. Cf. DURKHEIM, Émile (1893). De la division du travail sociale. Québec: L’Université du Québec, 2002, p. 96, 115 (Livro I); p. 60, 76, 90 (Livro II) e p. 119 (Livro III); DURKHEIM, E (1894). Les règles de la méthode sociologique, p. 14 e 22. DURKHEIM, E. (1895) L'état actuel des études sociologiques en France, p. 11-15; DURKHEIM, E (1895). Crime et Santé Sociale (todo o artigo é uma crítica à criminologia tardeana); DURKHEIM, E (1897). Le suicide. Étude sociologique, p. 96, 97, 101 (Livro I, em um capítulo inteiramente dedicado à “refutação” do conceito de imitação como causa dos suicídios), p. 21, 24, 30, 46, 57 e 73 (Livro III ); DURKHEIM, E (1900). La sociologie en France au XIXe siècle, p. 16-17; DURKHEIM, E. (1909). Sociologie et sciences sociales, p. 8; DURKHEIM, E. (1915) La sociologie, p. 8-9. Disponíveis em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 13 ago. 2006.

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dar uma prova direta e indutiva desta proposição. Na realidade, ele jamais pôde demonstrar

que todos os fenômenos sociais derivam da imitação”.4 O pensador das regras do método

sociológico não poderia ratificar os pressupostos assumidamente “inventados” que a

perspectiva tardeana seguia afirmativamente. Eis o que postula:

O senhor Tarde entende que faz sociologia. Porém, ele a concebe de tal maneira que esta cessa de ser uma ciência propriamente dita, para tornar-se uma forma muito particular de especulação em que a imaginação desempenha o papel principal, em que o pensamento não é considerado sujeito às obrigações regulares da prova nem ao controle dos fatos. 5

É bem provável que o impulso moderno em direção à tradição da racionalidade

objetiva na elaboração das hipóteses científicas tenha sido um dos motivos mais contundentes

para o esquecimento soturno por que passou a perspectiva tardeana após sua morte, em 1904.

Enquanto vivera, o sociólogo pôde alcançar as glórias de seu esforço intelectual, depois de

anos de preparação de uma extensa bibliografia referente a temas tão variados quanto as

“novas” formas de criminalidade e as possibilidades de revisão das regras jurídicas; o

estabelecimento de uma releitura dos pressupostos leibnizianos em nome do pensamento do

infinitamente pequeno; uma concepção psicológica e filosófica da formação e do

desenvolvimento dos grupos sociais; um instigante tratado filosófico a respeito da idéia de

oposição, em que se abstrai o negativo da lógica em nome de uma afirmação das diferenças;

uma extensa obra visando à investigação da economia psicológica valorizando crenças e

desejos humanos; diversos textos a respeito das transformações sociais conseqüentes do

advento de novos dispositivos comunicacionais, como a telegrafia elétrica e a imprensa de

massa, dentre outros temas relevantes.

Jean-Gabriel de Tarde nasceu em 10 de Março de 1843, na cidade francesa de Sarlat,

departamento de Dordogne, região administrativa da Aquitânia, no sudoeste do país.

Descendente do famoso astrônomo Jean-Tarde (1561-1636), que fora capelão particular do rei

de França Henrique IV, Gabriel Tarde despertara para as ciências desde muito cedo, assim

como para a arte e a filosofia. As constantes críticas à educação infantil que recebera,

ministrada por jesuítas, teria estimulado o pequeno Tarde a tentar fugir de suas escolas por

várias vezes. Obstinava-se em seguir uma carreira científica, mas uma profunda crise

4 Cf. DURKHEIM, E, op. cit., p. 12. Trata-se de uma versão francesa do artigo publicado originalmente em italiano como “Lo stato attuale degli studi sociologici in Francia” na revista La reforma sociale, 2, vol. 3, fasc. 8 (pp. 607-622) et fasc. 9 ( pp. 691 à 707). Reimpressão em DURKHEIM, Émile. Textes. 1. Éléments d'une théorie sociale, pp. 73 à 108. Collection Le sens commun. Paris: Éditions de Minuit, 1975. A partir deste ponto da dissertação, todos os trechos de obras em língua estrangeira terão suas traduções realizadas por mim. 5 DURKHEIM, E. La sociologie en France au XIXe siècle, op. cit., p. 16.

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oftalmológica aos 19 anos o teria feito desistir momentaneamente de seu intento e obedecer às

instruções da mãe, que desejava para o filho a carreira de jurista. Em 1863, portanto, ingressa

na Faculdade de Direito de Toulouse. Será neste local que Tarde aprofundará seus estudos de

filosofia, especialmente a partir do contato com as obras de Maine de Biran (1766-1824),

Antoine-Augustin Cournot (1801-1877) e, por meio deste, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-

1716). O monumental edifício filosófico de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

também o teria impressionado, como, aliás, a quase todos os estudantes de sua geração.

Desconfiava, entretanto, do que considerava uma imprecisão hegeliana no conceito de

contradição como sustentáculo da dialética.

Após a conclusão de seus estudos de Direito, Tarde será nomeado, aos 25 anos,

secretário do juiz de Ruffec, no departamento de Charante, região francesa de Poitou-

Charentes. A partir de então, esforçar-se-ia na redação de diversos textos filosóficos, muitos

deles publicados na Revue Philosophique, fundada por Théodule-Augustin Ribot (1823-

1891). Seria nomeado juiz de instrução e exerceria tal função de 1875 a 1894. Suas

publicações de âmbito jurídico serão amplamente conhecidas, especialmente os estudos

críticos à concepção dos tipos psicológicos criminais descritos por César Lombroso (1835-

1909) e da escola italiana de criminologia. Seus textos de caráter filosófico-sociológico não

obtiveram menor êxito, especialmente quando foram publicados: em 1890, Les lois de

l’imitation; em 1893, La logique sociale e, em 1897, L’ opposition universelle – essai d’une

théorie des contraires. Estas três obras são consideradas por Tarde seus estudos substanciais

de sociologia geral.6 Em 1894, Tarde seria nomeado diretor de estatística criminal do

Ministério da Justiça, cargo que conservou até a morte. Em 1896, assumiria a cadeira de

Filosofia Moderna no Collège de France em Paris, e tal período seria marcado por intensos

encontros filosóficos com pensadores como Henri-Louis Bergson (1859-1941), por exemplo.

Nesta mesma época, seu desejo de fundar um espaço próprio de discussão de idéias de

sociologia sofreria uma série de intensas oposições, como nos atesta o trecho a seguir:

Era a intenção de Tarde utilizar-se desse espaço institucional para fixar as fronteiras de sua própria sociologia, uma vez que as relações com a sociologia positivista da época se mostraram tão ásperas. Ele visava transformar a cadeira de filosofia moderna no primeiro espaço institucionalizado do saber sociológico. Tal proposta

6 Cf. TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie. Québec: L’Université du Québec, 2002, p. 6. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 13 ago. 2006.

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será, no entanto, recusada. Será Durkheim quem irá fundar, na Universidade de Montpellier, o primeiro espaço acadêmico dedicado ao estudo sociológico.7

O penoso esquecimento a que foi submetida a teoria tardeana das sociedades teve

início logo após sua morte, em 1904. Podem-se indicar, entretanto, algumas esporádicas –

porém valiosas – releituras do arcabouço de Gabriel Tarde no século XX. A primeira delas

seria a fundação da Escola de Chicago nos Estados Unidos do começo do século, em que se

enfoca a microssociologia dos modos de comunicação na análise da organização das

comunidades. Destacam-se os trabalhos de Robert Ezra Park (1864-1944), autor de uma

importante tese de doutorado sobre públicos e massas, e de textos que salientam sua

concepção das cidades como espaços de pura mobilidade. Park é, ainda, um dos introdutores

de Tarde em território americano. A segunda leitura significativa teria início a partir da

publicação, em 1969, da tese de doutoramento de Gilles Deleuze (1925-1995), Différence et

répétition. Tanto a obra de Deleuze quanto seus trabalhos publicados em companhia de Félix

Guattari (1930-1992), especialmente Mille plateaux (1980), são inspirados em preceitos

tardeanos, como o pensamento da diferença, a atenção ao infinitamente pequeno e a crítica da

lógica do negativo.8 O terceiro movimento de releituras de Gabriel Tarde é derivado do

segundo deles. Desde 1999, vêm sendo republicadas as obras tardeanas basilares sob direção

do professor francês Eric Alliez. Nesta direção, a retomada de Tarde pelos pensadores do

grupo da revista Multitudes9 tem rendido, nos últimos anos, boas repercussões aos estudos das

sociedades a partir de uma epistemologia que tem na aposta na diferença sua marca mais

significativa.10

7THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde: sociologia e subjetividade. Rio/Fortaleza: Relume Dumará/Governo

do Ceará, 2002, p. 17. 8 Destacam-se DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006; DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 2005; DELEUZE, G e GUATTARI, F. “1933 - Micropolítica e segmentaridade”. In: Mil platôs, vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, p. 83. 9 O grupo Multitudes apresenta uma publicação que pode ser acessada via Internet. Disponível em: <http://multitudes.samizdat.net> Acesso em: 13 ago. 2006. 10 Salientam-se dois estudos de Maurizio Lazzarato: o primeiro é uma aplicação do conceito tardeano de invenção ao campo de estudos também tardeano da economia psicológica como alternativa teórica à tradicional economia política; já o segundo é uma leitura das transformações do capitalismo contemporâneo a partir da teoria tardeana, em diálogo com a problemática do controle em Deleuze e o biopoder foucaultiano. Cf. LAZZARATO, Maurizio. Puissances de l'invention. La psychologie économique de Gabriel Tarde contre l'économie politique. Les Empêcheurs de penser en rond, 2002 ; LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2006.

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No Brasil, os pesquisadores em Comunicação Social contam com uma boa tradução de

L’opinion et la foule, de 1901,11 uma das últimas publicações de Gabriel Tarde, em que

conceitos elaborados ao longo de toda uma vida são aplicados a questões envolvendo a

formação de coletivos na Modernidade (o público e a multidão), a opinião pública e a

conversação. Contudo, a predominância, neste livro, de temas voltados à comunicação é

apenas mais um exemplo significativo de um repertório que varre quase uma década de

publicações de extensos estudos acerca das sociedades humanas a partir do valor da

comunicação, tratada em suas diversas instâncias. O solapamento da perspectiva tardeana no

século XX dificultou incisivamente que os pesquisadores do campo comunicacional nela

vislumbrassem uma alternativa epistemológica potente a seus estudos. Mesmo os leitores de A

opinião e as massas, por vezes, deparam-se com palavras (como sugestibilidade e imitação,

por exemplo) que são, de fato, conceitos de grande importância, elaborados minuciosamente a

partir das obras de sociologia geral de Gabriel Tarde, ainda, e infelizmente, desconhecidas da

maioria dos pesquisadores. No caso dos estudantes brasileiros, encontra-se, ademais, a

barreira do idioma estrangeiro a ser suplantada.

Em certo sentido, pretendemos, com este estudo em língua portuguesa das obras

relevantes de Gabriel Tarde, insistir que mais que um sociólogo, Tarde é um comunicólogo

penetrante. Em seus trabalhos, o valor da comunicação é continuamente reafirmado, como

neste trecho de um ensaio reproduzido em 1895:

A Sociologia tem como domínio essencial todos os fatos de comunicação entre espíritos e todos os seus efeitos. Ela deve estudar a ação de contato ou à distancia – e as distâncias crescentes ou decrescentes ao longo dos tempos – que cada espírito exerce sobre os outros por suas afirmações ou suas negações, por suas ordens ou suas defesas, ou melhor, sem nada afirmar nem comandar expressamente, por seus exemplos que são sempre algo de afirmativo ou de imperativo, e, como tais, de sugestivo. Ela deve seguir as correntes de convicções e as correntes de vontades coletivas que resultam delas; notar a alta ou a baixa, o crescimento ou a diminuição destas correntes; mostrar os acoplamentos ou os conflitos destas correntes diversas de crença ou das diversas correntes de desejo, quando elas se encontram, e deduzir as leis lógicas de interferência ou de combinação que presidem a estes choques ou acoplamentos; enfim, fazer ver como e por que estas forças colaboradoras ou concorrentes chegam a organizar-se em um sistema duplo mais ou menos coerente, mais ou menos estável, de proposições explícitas ou implícitas que se confirmam ou não se contradizem muito, e de intenções evitadas ou não-evitadas que se ajudam ou não se contrariam muito.12

11 TARDE, Gabriel. A opinião e as massas (trad. Eduardo Brandão). São Paulo: Martins Fontes, 2005. Em 2003, foi lançada, também, uma tradução para o ensaio Monadologie et Sociologie. Cf. TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia (trad. Tiago Themudo). Petrópolis: Vozes, 2003. 12 TARDE, Gabriel. “La sociologie criminelle et le droit penal”. In: Essais et mélanges sociologiques. Québec: L’Université du Québec, 2005, p. 102. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 13 ago. 2006.

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16

Não seria exagero afirmar que a Sociologia, em Tarde, apresenta-se como uma subárea

da Comunicação Social. Isto ocorre porque, como veremos no decorrer deste trabalho, as

relações de comunicação (especialmente através da invenção e da imitação) engendram as

similitudes e diferenças necessárias à criação de grupos sociais. Tarde nos sugere, em um

trecho de Les lois de l’imitation, que a investigação do desenvolvimento das sociedades sem a

abordagem da comunicação seria como um estudo de física sem levar-se em conta a

elasticidade do meio em que se propagam as forças naturais.13 Ademais, a importância de

temas como a linguagem e, notadamente, a conversação humana reforça o papel que a

comunicação desempenha no sistema filosófico tardeano.

Na abertura desta introdução, indicamos que Émile Durkheim teria sido o avatar da

constituição de uma sólida escola de pensamento, distinta por suas análises de grandes

representações coletivas – como as religiosas e científicas, por exemplo – a partir de uma

teoria do conhecimento fundamentalmente social. Dentre os pilares do durkheimianismo,

ressalta-se um de seus postulados mais significativos, relacionado à efetivação do método

científico sociológico: os fatos sociais devem ser encarados como “coisas”, uma vez que

disporiam de realidade objetiva e, portanto, seriam passíveis de observação externa.

Gabriel Tarde, pelo contrário, não subscrevia tal reificação dos fatos sociais como

ponto de partida para a constituição de um saber sociológico. Os fatos sociais em Tarde não

são “coisas”, mas resultantes transitórias de relações de forças que se dão tanto logicamente

quanto de modo ilógico. A mobilidade intrínseca à concepção tardeana do social pode ser

considerada uma alternativa a certa tendência idealista da escola durkheimiana. Com Tarde,

estilhaçamos a monolítica indagação “o que algo é” 14 em uma série de pequenas perguntas,

como “onde é”, “quando é”, “quem é”, “quantos são”, com o proveito que este gesto acarreta

de deslocar o que é passível de observação dos inalcançáveis patamares da transcendência

para os plurais jogos de força em constante remanejamento em um solo imanente.

De fato, o que o filósofo questiona é o pressuposto da existência de um “espírito

coletivo”, uma “consciência social”, um “nós” que existiria fora dos espíritos individuais, e

que a eles se imporia por coação. Tarde privilegia as engrenagens infinitesimais que

compõem o real, o que tem como conseqüência direta sua opção pela investigação de questões

relacionadas a desejos e crenças que agitam a pluralidade do mundo vivo como um todo. Em

13 Cf. TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 174. 14 “Il n’est pas sûr que la question qu’est-ce que? soit une bonne question pour découvrir l’essence ou l’Idée”. Cf. DELEUZE, Gilles. “La méthode de dramatisation” in L’île déserte et autres textes. (org. David Lapoujade). Paris: Minuit, 2002.

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contraposição ao durkheimianismo, Tarde poderia questionar: como partir da identidade de

milhões de homens sem considerá-la discutível? Não seria a diferença, e não a semelhança, a

origem das coisas e, ainda, o fim para onde todas elas se encaminhariam? Ora, é este impulso

de problematização das grandes generalizações que fará com que o pensador não se foque

exclusivamente em representações sociais ressoantes e sobrecodificadas. Estas seriam, na

realidade, estágios de relativo equilíbrio conseqüentes de um vivo processo dinâmico. Tarde

dirige-se às condições processuais de formação das grandes representações, lá onde só o que

há é movimento e transformação. Deleuze e Guattari ressaltam:

É por isso que Tarde se interessa mais pelo mundo do detalhe ou do infinitesimal: as pequenas imitações, oposições e invenções, que constituem toda uma matéria sub-representativa. E as melhores páginas de Tarde são aquelas em que ele analisa uma minúscula inovação burocrática, ou lingüística etc. Os durkheimianos responderam que se tratava de psicologia ou interpsicologia, e não de sociologia. Mas isso só é verdadeiro aparentemente, numa primeira aproximação: uma microimitação parece efetivamente ir de um indivíduo a um outro. Ao mesmo tempo, e mais profundamente, ela diz respeito a um fluxo ou a uma onda, e não ao indivíduo.15

Nesta dissertação, proponho-me a apresentar as bases desta instigante perspectiva de

pensamento, sublinhando seu potencial para o desenvolvimento da teoria da comunicação

social. Sendo Tarde um autêntico pensador da diferença, busco contribuir para as pesquisas da

área no fomento de novas bases a partir de que se possa pensar uma teoria da comunicação

remetida à pura heterogeneidade imanente. Desta forma, evitaríamos adesões cegas a

generalizações ressoantes que, com freqüência, apresentam-se como verdades incontestáveis

de nosso campo de estudos. Creio, ainda, que esmiuçar conceitos como os de imitação,

invenção, oposição e muitos outros, seria bastante profícuo em nossa conturbada

contemporaneidade. Por exemplo, a manutenção de muitos regimes democráticos é devida,

em grande parte, à força magnetizadora de grandes líderes (na América do Sul, atualmente

dispomos de fortes confirmações desta tendência), que somam força pessoal à sugestibilidade

generalizada de meios de comunicação, fazendo tombar todo um povo em catalepsia

sonambúlica. Por outro lado, a emergência de novas tecnologias da comunicação, como os

telefones celulares e a Internet, potencializa o que se poderia entender como imitação à

distância das crenças e desejos. Ainda em relação aos dispositivos comunicacionais de longa

distância, inauguram-se interessantes espaços de resistência, com a possibilidade da formação

de coletividades anônimas de ação global, por exemplo. Enfim, pululam exemplos de cotejos

15 DELEUZE, G & GUATTARI, F. Mil platôs, vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. op. cit., p. 98.

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profícuos da perspectiva tardeana com as investigações das relações de comunicação na

contemporaneidade, como procuraremos mostrar ao longo deste trabalho.

Com relação à metodologia empregada, apesar de trabalhar efetivamente com toda a

bibliografia de Gabriel Tarde, concentro-me em especial nas chamadas obras de sociologia

geral do autor (Les lois de l’imitation, La logique sociale e L’opposition universelle) e em seu

vigoroso ensaio filosófico Monadologie et sociologie. Cabe ressaltar que minha restrição

metodológica não significa que os demais trabalhos de Tarde deixarão de comparecer ao

longo do texto, quando necessário. Pelo contrário, eles permearão todos os capítulos com

exemplos, oferecimento de novos conceitos ou elucidação de conceitos já expostos, como o

leitor poderá constatar.

Quanto à divisão dos capítulos, limito-me a apresentar e discutir alguns temas

tardeanos cruciais para o campo da comunicação em cada um deles. Dando seqüência a esta

introdução, o primeiro capítulo é dedicado à exposição das bases teórico-filosóficas a partir

das quais Gabriel Tarde constituirá seus conceitos mais importantes. Trata-se de uma

apresentação do pensamento da diferença em Tarde, alicerçado em bases leibnizianas, as

quais igualmente proponho-me a resumir. Busco retraçar o caminho percorrido por Tarde para

a moldagem de uma sociologia da diferença baseada na pura heterogeneidade imanente dos

elementos infinitamente pequenos que formam o universo. Apresento, ainda, os conceitos de

crença e desejo, base de todo o edifício filosófico de Tarde, procurando demonstrar que estas

duas quantidades psicológicas serão os únicos elementos comunicáveis de seu ponto de vista.

No segundo capítulo, indico de que forma o pensamento da diferença elaborado por Tarde não

prescinde da investigação das similitudes sociais, que terão por causa, como veremos, a força

da imitação. Para isso, exponho inicialmente o contexto histórico-epistemológico da segunda

metade do século XIX, que tornaria possível a cunhagem de tão curioso conceito. Trato

resumidamente da questão da modernização da percepção, em curso nessa formação histórica,

e faço um breve histórico do fenômeno da hipnose e da sugestão na década de 1890, que será

imprescindível para a imitação. Em seguida, caracterizo a imitação tardeana a partir de suas

especificidades, que considero extremamente enriquecedoras para o pesquisador em

comunicação. O terceiro capítulo tratará do modus operandi da imitação, de suas leis lógicas e

influências extralógicas, bem como da proposição tardeana de uma metodologia de análise

das ações imitadas através da estatística. Já o quarto capítulo versará acerca da potência da

força individual da invenção como inerente ao próprio movimento do sócius, em um jogo

contínuo e necessário com a imitação social. Nos capítulos 1, 2 e 3, apresento as leis das

semelhanças sociais para, em seguida, no capítulo 4, demonstrar que elas já carregam em seu

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bojo os germes de sua própria dissolução. Finalmente, no último capítulo deste trabalho,

aprofundo-me um pouco mais no tema da diferença em Gabriel Tarde esmiuçando o conceito

de oposição, em que as heterogeneidades comunicadas são contribuintes da variação universal

de modo mais significativo que as simples oposições baseadas em uma dialética de natureza

hegeliana, por exemplo. Além de redefinir, em um esforço teórico, o pensamento tardeano

como fundamentalmente comunicacional, proponho-me igualmente em apresentar, em

determinados pontos do trabalho, possíveis abordagens tardeanas de temas preferenciais de

nosso campo de estudos.

Em certo sentido, este trabalho inspira-se no que Michel Foucault, a partir de uma

variação do conceito de Friedrich Nietzsche (1844-1900), determinou como método

genealógico. Ao trazer à tona os meandros da perspectiva tardeana, interesso-me em

“espreitar o acontecimento”,16 no sentido que Foucault deu a esta expressão, como um

dissecar de uma relação de forças que se inverte, lançando luzes sobre um poder que é

brutalmente confiscado. Nosso intento não é, desta forma, fazer uma pura historicização

neutra, mas produzir, a partir da releitura contemporânea de Gabriel Tarde, um potente

discurso-arma. Ao dar vida novamente a este saber que fora brutalmente “confiscado” em

nome da objetividade científica, fazemos respirar também os pressupostos que foram

considerados desestabilizadores em seu tempo. Ao adquirir força no presente, esta perspectiva

deixa transparecer que, de fato, o objeto deste trabalho de inspiração genealógica são as

relações comunicacionais de nossa plurívoca contemporaneidade.

16 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 28.

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1. “H YPOTHESES FINGO!” – PRESSUPOSTOS DA COMUNICAÇÃO NA DIFERENÇA

A fertilidade de uma área de saberes é intrinsecamente vinculada a sua aptidão para a

criação contínua de novas hipóteses. Reconstruir incessantemente novos começos, revigorar

forças dissidentes e conflitos mascarados, restituir a potência de batalhas silenciosas e

microscópicas: em suma, vislumbrar novas perspectivas e dissolver “verdades” que

reiteradamente têm-nos impedido a exploração audaciosa de um solo epistemológico em pura

oscilação e construção. O campo teórico da Comunicação Social, a despeito de sua tenra

idade, tem demonstrado, em um número cada vez mais significativo de seus trabalhos, sisudez

tão anciã quanto improdutiva, freqüentemente simulada como respeito aos “cânones” da área.

“Hypotheses Fingo!”,17 exclamaria Gabriel Tarde. Assumir a invenção dos

pressupostos é afirmar o perspectivismo, negar qualquer adesão a verdades absolutas. A

imponência da verdade dissolve-se no ato alegre de contemplação da mudança inerente ao

próprio pensamento.

Hypotheses fingo, diria eu ingenuamente. O que há de perigoso nas ciências não são as conjecturas acompanhadas de perto, logicamente seguidas até as últimas profundezas ou aos últimos precipícios, mas, sim, os fantasmas de idéias em estado flutuante no espírito. O ponto de vista sociológico universal me parece ser um desses espectros que habitam o cérebro de nossos contemporâneos especulativos. Vejamos desde já aonde ele deve nos levar. Sejamos exagerados, mesmo correndo o risco de passarmos por extravagantes. Especialmente nessa matéria, o medo do ridículo seria o mais antifilosófico dos sentimentos.18

Este capítulo é inteiramente dedicado à exposição dos pressupostos teórico-filosóficos

de nosso filósofo/sociólogo. Sem eles, o avanço na explanação dos conceitos tardeanos

tornar-se-ia mera apresentação, desprovida de envolvimento nos recônditos da instigante

perspectiva de que tratamos. Resumidamente, mapearemos algumas das linhas de força

17 “Eu invento hipóteses” 18 TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 58.

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principais do pensamento da diferença em Gabriel Tarde. Para isso, buscamos alcançar três

objetivos bastante ambiciosos: indicar pontos relevantes da releitura que Tarde operou no

arcabouço filosófico de Gottfried Wilhelm Leibniz para o delineamento da concepção do

infinitamente pequeno e do heterogêneo; apresentar os dois elementos-chave da perspectiva

tardeana: a crença e o desejo; finalmente, discutir a relevância de tais elementos para a

formação das similitudes de toda espécie. Ao elaborarmos este último ponto, somos

naturalmente conduzidos ao segundo capítulo, que procura explorar o conceito de imitação.

1.1 O PROBLEMA DA SIMILITUDE ORIGINAL DOS HOMENS

A proposição de um pensamento das micro-engrenagens sociais é indissociável da

rediscussão minuciosa dos pressupostos em que se baseiam as perspectivas mais tradicionais

de análise das sociedades. Mais especificamente, deve ser problematizado um dos axiomas

mais incorporados das ciências sociais, assim como das ciências sociais aplicadas, de que

participa a Comunicação Social: trata-se da similitude original dos homens. A crítica

pormenorizada deste ponto crucial pode dirigir-nos com maior acuidade às hipóteses

exploradas por Gabriel Tarde. Analisemos, portanto, o axioma supracitado.

Grosso modo, o pressuposto da similitude original dos homens postula que todos os

indivíduos teriam nascido semelhantes uns aos outros em suas aptidões, crenças, desejos,

objetivos etc. Por tal razão, todas as transformações que porventura se efetuassem ao longo de

sua existência seriam tributárias de determinações sociais exteriores aos próprios indivíduos.

Em outras palavras, a similitude original dos homens comportaria um estado de

homogeneização pacífica em si mesma, que só poderia ser perturbada por uma entidade

exterior aos seres sociais imanentes.

Ora, se optamos por acompanhar a tradição das ciências sociais e, com isso, partimos

da identidade original de todos os seres para compreender as diferenças do mundo das

sociedades, não nos sobra alternativa teórica senão a adesão a grandes generalizações

abstratas, encaradas como reais motores das transformações sociais. É precisamente neste

ponto – na necessidade de compreensão da razão das alterações vigentes no tecido social –

que surgem elementos teóricos de natureza transcendente, coercitivos por natureza, que

imporiam aos homens as diferenciações vigentes em seus agrupamentos.

Como fora indicado na Introdução, a perspectiva durkheimiana prima por sua

insistente recorrência à determinação do social como entidade transcendente. Podemos

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exemplificar tal peculiaridade do pensamento de Émile Durkheim por meio de uma breve

análise do conceito de fato social, exposto e desenvolvido em uma de suas obras clássicas, As

regras do método sociológico, de 1894. O fato social seria aquilo que de “geral existe na

extensão de uma sociedade dada, tendo uma existência própria, independente das

manifestações individuais”.19 Em suma, para Durkheim, se todos os indivíduos de uma

formação social fossem subitamente excluídos, ainda assim persistiria a sociedade, dado que

a razão de sua existência não são os homens que a constituem, mas sim o fato social. Tudo se

daria como se um “eu coletivo” se originasse espontaneamente a partir da intensificação das

relações entre os elementos individuais semelhantes. Daí se justifica a diferença social vigente

na complexidade dos coletivos humanos.20

Cabe-nos um questionamento geral às perspectivas de inspiração durkheimiana, tão

presentes no campo da Comunicação Social: a que princípio serviriam artimanhas

extravagantes como a de voltar-se a uma entidade transcendente causadora da diferenciação

dos homens senão ao pressuposto tradicional da identidade e do homogêneo no coração das

coisas? O pensamento do social baseado no princípio da identidade apresenta implicações

sobre as quais não podemos furtar-nos a refletir: a eliminação de tudo o que é vivo, puro

movimento, heterogeneidade, acaso, nuances e coloração das diversas coletividades humanas,

em nome de uma reificação cinza e monolítica. Gabriel Tarde reflete acerca do conceito de

fato social, a partir das críticas incisivas de Durkheim à sua proposta de sociologia:

Infelizmente, levando assim às últimas conseqüências e objetivando a distinção ou, sobretudo, a separação do subjetivo ao fenômeno coletivo e aos atos particulares de que este fenômeno se compõe, M. Durkheim nos remete à Escolástica plena. Sociologia não quer dizer ontologia. Tenho muita dificuldade em compreender – confesso – como se pode afirmar que “descartados os indivíduos, resta a Sociedade”. Retirados os professores, não vejo muito bem o que resta da Universidade – Se ela não é mais que um nome, se não é conhecida por ninguém, com o conjunto de tradições que exprime, ela não é absolutamente nada. Vamos retornar ao realismo da Idade Média? Eu me pergunto qual vantagem encontramos, sob pretexto de aperfeiçoar a sociologia, em esvaziá-la de todo seu conteúdo psicológico e vivo.

19 DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Québec: L’Université du Québec, 2002. p. 23. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 27 jun. 2006. Grifo meu. 20 Um curioso exemplo da aplicação de tais pressupostos durkheimianos se dá em outro clássico do sociólogo, Da divisão social do trabalho, de 1893, em que o conceito de fato social é evocado como razão da passagem das sociedades mais primitivas, regidas por “solidariedade mecânica” para os grupos sociais mais complexos, movidos por “solidariedade orgânica”. Em um dos artigos da coletânea “Essais et mélanges sociologiques” denominado Questions sociales, Gabriel Tarde rediscute os pressupostos desta eminente obra de sociologia. Ressalta, sobretudo, quão problemático é partir da identidade dos seres na descrição do desenvolvimento das sociedades, desconsiderando “o acidental, o irracional, esta dobra no fundo das coisas”. Cf. DURKHEIM, Émile. De la division du travail social. Québec: L’Université du Québec, 2002; TARDE, Gabriel. Essais et mélanges sociologiques. Québec: L’Université du Québec, 2005, p. 132. Disponíveis em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 27 jun. 2006.

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Parece que se busca um princípio social em que a psicologia não é inserida, criado muito expressamente pela ciência que se constrói, e que me parece muito mais quimérico que o antigo princípio vital. 21

Restituir o dinamismo próprio à vida dos homens e ao pensamento das sociedades,

como quer Tarde, parece configurar-se um caminho profícuo, contudo sabidamente árduo de

se seguir. Enveredar-se pela estrada da pura diferença entre os homens, considerando cada ser

social nascente como um universo de pluralidades e variações, pressupõe o estabelecimento

de novas e potentes hipóteses. Se se parte da diferença, o que se deverá explicar são

justamente a homogeneização, as semelhanças e ordens que se apresentam no mundo social,

ao lado das singularidades. Ora, interessa-nos esta verdadeira inversão dos pressupostos

tradicionais apenas no sentido de que, com ela, poderemos prescindir de entidades abstratas e

transcendentes para lidar com o que é tão-somente imanência. É por esta razão que propomos

um mergulho profundo no universo teórico insuflador de Jean-Gabriel Tarde. Contudo, para

melhor adentrarmos nos meandros da teoria social tardeana ancorada na heterogeneidade,

cumpre indicarmos um primeiro princípio filosófico, ele próprio já bastante audaz. Este

pressuposto demonstra a ambição do pensamento de Tarde em estender-se para além do

campo de saber bem demarcado que se tornaria, então, a sociologia.

1.2 AS ESFERAS FÍSICO-QUÍMICA , VITAL E SOCIAL

Em Gabriel Tarde, o universo apresenta três esferas distintas que, apesar de se

discernirem por particularidades evidentes, são pautadas pelas mesmas leis gerais. Isto porque

se buscam princípios regentes do mundo social que não contradigam as leis gerais do cosmos.

Estes três âmbitos – ou esferas – de que trata nosso filósofo são o mundo físico-químico, ou

seja, o universo invisível povoado de miríades de partículas, átomos, moléculas e agregados

que formam a matéria; o mundo vital, composto por seres vivos de espécies variadas que

habitam o planeta e, finalmente, o mundo social, constituído pelos milhões de humanos

diferentes em suas interrelações cotidianas.

Embora regidas por princípios correlatos, estas três séries universais não são

independentes umas das outras, à exceção da série físico-química. Ela será a precondição para

o surgimento da série vital, que dará origem à série social. O social, portanto, é duplamente

dependente: tanto da série vital quanto da série físico-química. Sendo assim, o último termo

21 TARDE, Gabriel. La logique sociale. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 62.

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da série físico-química é o primeiro termo da série vital, e o último termo da série vital é o

primeiro termo da série social. Logo, para Tarde, a esfera social inicia-se no indivíduo

singular, com suas “aptidões características”.22 Torna-se evidente que a distinção entre

Homem e Natureza é puramente de grau, já que tudo o que constitui o cosmos deriva da

mesma matéria.

O entrelaçamento em séries complementares destes três âmbitos – físico-químico,

biológico e social – nos forneceria de imediato uma pista proveitosa a respeito da matéria que

é comum a todos os seres. Partindo-se do indivíduo (primeiro termo da série social e último

da série vital), quanto mais descemos em direção aos outros termos da série vital, e, em

seguida, aos termos da série físico-química, mais nos avizinhamos de elementos de

constituição microscópica, de seres infinitamente pequenos. Sendo assim, mesmo se

tomarmos o protoplasma – este ser já tão pequeno – como ponto de partida, aguarda-nos ainda

uma série de elementos microscópicos, como nos indica Tarde a seguir:

Mas o protoplasma, primeiro termo da série vital, não é também o último termo da série química? E percorrida, por sua vez, esta última nos mostra os tipos moleculares cada vez menos complexos da química orgânica, e os tipos moleculares, também cada vez menos complexos, da química inorgânica; todos regularmente edificados e que provavelmente consistem de ciclos harmoniosos de movimentos periódicos e ritmados, mas todos separados uns dos outros pelas crises tumultuosas e desordenadas de suas combinações; e assim, por conjectura, chegamos ao átomo ou aos átomos mais simples dos quais os outros seriam formados. Mas é este o elemento inicial? Não. Pois o átomo mais simples é um tipo material, um turbilhão se diz, um ritmo vibratório de um determinado gênero, algo infinitamente complicado, conforme as aparências.23

O mergulho abissal no infinitamente pequeno da série físico-química não nos conduz

ao átomo, como se poderia supor. Há algo cuja realidade nos é inapreensível, dotada de

elementos igualmente inalcançáveis para o saber humano. Nossos meios de conhecimento

permitir-nos-iam uma aproximação turva, até certo ponto, desta misteriosa série de elementos

que, pouco a pouco, reduzem-se em tamanho, até que não os possamos mais vislumbrar. Uma

molécula de gás oxigênio, um camelo do Saara ou um morador de Bogotá são aproximáveis,

portanto, pelas séries de que são constituídos. Compreenderemos, no próximo capítulo, como

os tipos comuns de cada uma destas séries se acercam, sobretudo, pelo modo como se

reproduzem em tipos semelhantes. A força que engendra similitudes opera de forma análoga

nas séries físico-química, vital e social.

22 “Essas aptidões características são ao mesmo tempo o primeiro termo da série social e o último termo da série vital”. Cf. TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. op.cit., p. 75. 23 Ibid., p. 75.

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Antes, porém, convém abordarmos o notável ponto que diz respeito à diferenciação de

grau entre indivíduo e Natureza. Já sabemos que as três esferas do universo – a série físico-

química, a série vital e a série social – são interligadas e formadas por elementos

microscópicos que se relacionam. A questão que naturalmente se introduz é: o que são estes

elementos que constituem tudo o que há? Como o homem pode ser, por um lado, uma parte

do mundo social e um todo da série vital?

1.3 O INFINITESIMAL NA CIÊNCIA MODERNA

Gabriel Tarde reconhece, nas ciências de sua época, uma tendência que a nossa

contemporaneidade intensifica e prolonga: a “pulverização da matéria e a espiritualização da

poeira”.24 Mais e mais, detectava nosso sociólogo, o foco dos saberes humanos se dirigia ao

infinitamente pequeno, como poderíamos facilmente corroborar com o recrudescimento da

física quântica atual e da biologia molecular, por exemplo. Tal inclinação em relação ao

pensamento do microscópico segue, segundo Tarde, dois princípios filosóficos importantes:

em primeiro lugar, uma concepção de matéria que não seja puramente espacial ou, no

linguajar tardeano, a redução de duas entidades – matéria e espírito – a apenas uma, o

espírito.25 Supõe, ainda, a descontinuidade dos elementos componentes do universo e a

conseqüente homogeneidade do ser de cada um deles. Respeitadas as singularidades de cada

ciência, todas pareceriam reforçar que o mundo é formado por elementos heterogêneos e

descontínuos, sempre iguais a eles mesmos. Tais elementos, entretanto, não respeitariam

noções tradicionais de matéria como tudo aquilo que apresenta extensão, e, portanto, ocupa

lugar no espaço. As heterogeneidades elementares não são extensas, uma vez que são,

fundamentalmente, forças.

De fato, o que se questiona na ciência moderna é o abismo entre o movimento e a

consciência, o objeto e o sujeito, a mecânica e a lógica, a ponto deste abismo ser negado de

forma veemente. Isto se dá nas mais diversas áreas de conhecimento. A química, por

exemplo, nos leva à negação da continuidade material pela afirmação do átomo. Tarde

enfatiza que o problema essencial das “novas” teorias químicas seria o de conferir aos

próprios elementos químicos as propriedades que antes eram dadas apenas aos radicais.

24 Ibid., p. 45. 25 Ibid., p. 19.

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26

Antes considerados em bloco, os elementos químicos passam a dispor de uma marca própria,

o que estimula o saber químico a pensar a descontinuidade.

Não há aqui nenhuma evolução, nenhuma transição; tudo é claro, repentino, distinto; e, no entanto, tudo o que há de ondulante, de harmoniosamente graduado nos fenômenos, vem daí, mais ou menos como a continuidade das nuanças seria impossível sem a descontinuidade das cores.26

Mas não seria privilégio da química tal direcionamento rumo ao heterogêneo: também

as matemáticas, a “história natural”, a história e a física encaminhavam-se no mesmo sentido.

A teoria newtoniana da gravitação teria fragmentado a individualidade do corpo celeste ao

postular que a gravitação do mesmo é a soma da gravitação de todas as massas de que ele é

composto. As massas celestes gravitam umas em relação às outras, e o mesmo se daria com

cada uma de suas moléculas. Tarde salienta que “foi preciso um grande vigor de espírito para

transformar esta unidade aparente em uma multiplicidade de elementos distintos ligados entre

si da mesma maneira com que se ligam aos elementos de outros agregados”.27

A teoria celular vai por um caminho correlato. O organismo é pulverizado em células,

ao passo que essas são estilhaçadas em átomos, todos ávidos pelo desenvolvimento de suas

singularidades. Para citarmos somente uma conseqüência de tal perspectiva no que toca ao

tratamento da vida, presenciaríamos a reconfiguração conceitual do que seria uma “doença”.

Tal como o princípio vital, a doença, outra entidade tratada como uma pessoa pelos antigos médicos, se pulveriza em desordens infinitesimais de elementos histológicos. Além disso, graças sobretudo às descobertas de Pasteur, a teoria parasitária das doenças, que explica tais desordens através dos conflitos internos entre organismos minúsculos, se generaliza dia após dia, e com um tal excesso que já demanda uma reação. Mas os parasitas têm também seus parasitas. E assim por diante. Outra vez o infinitesimal!28

Em História, o mesmo deslocamento epistemológico em direção ao infinitesimal se

dava. Contavam-se as histórias das nações, como se estas se animassem como pessoas, e

relegavam-se os indivíduos a planos inferiores, dependentes desta História maior estrutural.

Tarde, pelo contrário, sugere que, também em História, as singularidades microscópicas

importam, especialmente as “ações de homens inventivos que serviram de modelo aos outros

e se reproduziram em milhares de exemplares, espécie de células-mãe do corpo social”29.

26 Ibid., p. 20. 27 Ibid., p. 20. 28 Ibid., p. 21. 29 Ibid., p. 22. Grifo meu.

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27

Em suma, estava em jogo um poderoso deslocamento epistemológico de um modelo

em que prevaleciam grandes generalizações explanatórias para outro em que seriam seguidos

estes dois princípios que acima detectamos: a afirmação, por um lado, de que os elementos

constitutivos do universo são heterogêneos e descontínuos e, por outro, do rompimento do

dualismo matéria versus espírito em nome deste último (reinterpretado ou, como dizia

Nietzsche, transvalorado). De qualquer maneira,

os verdadeiros agentes seriam, portanto, esses pequenos seres que dizemos ser infinitesimais, e as verdadeiras ações seriam essas pequenas variações que dizemos ser infinitesimais. Parece resultar do que precede que esses agentes são autônomos, que essas ações se chocam e se entravam tanto quanto cooperam. Se tudo parte do infinitesimal, é que um elemento, um elemento único, tem a iniciativa de uma mudança qualquer; movimento, evolução vital, transformação mental ou social.30

Tarde presume a possibilidade de investigar as sociedades a partir de novos princípios,

dos verdadeiros agentes imanentes a toda transformação social, sem ceder às generalizações

abstratas e transcendentes. Para isso, postula que “a fonte, a razão de ser, a razão do finito, do

segmentado, está no infinitamente pequeno, no imperceptível: tal é a profunda convicção que

inspirou Leibniz”.31 Nosso arguto sociólogo identifica na ciência de seu tempo grande

influência dos pressupostos teórico-filosóficos do eminente filósofo Gottfried Wilhelm

Leibniz (1646-1716), em especial de sua Monadologia.32 A partir de uma releitura da

Monadologia leibniziana (escrita em 1714), Tarde proporá uma “neomonadologia”, que

introduziria no pensamento das sociedades, em caráter inaugural, a riqueza da diferença

infinitesimal. Elucidemos, portanto, algumas das linhas mestras da monadologia renovada

proposta por Gabriel Tarde. Tal monadologia servirá de esteio para o desenvolvimento de um

autêntico saber sociológico, que desvia seu foco das grandes representações sociais e coletivas

para os micro-agenciamentos do real, possibilitando o pensamento de uma sociedade a partir

de suas diferenças heterogêneas internas em contínua transformação. Para que melhor se

compreenda a perspectiva monadológica tardeana, convém expormos, muito resumidamente,

este importante conceito que compõe o edifício filosófico leibniziano: a mônada.

30 Ibid., p. 27. 31 Ibid., p. 24. 32 Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. La Monadologie. Québec: L’Université du Québec, 2002. Disponível em: <http://classiques.uqac.ca/classiques/Leibniz/La_Monadologie/leibniz_monadologie.doc> Acesso em: 27 jun. 2006.

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28

1.4 A INSPIRAÇÃO LEIBNIZIANA : A MÔNADA

A história da filosofia tradicional, com o ímpeto para a classificação que naturalmente

comporta, designa Leibniz como um notável representante do “racionalismo”, ao lado de

pensadores não menos importantes como Descartes, Pascal e Spinoza. Leituras renovadas de

Leibniz, dentre as quais destaca-se a ondulante perspectiva deleuziana sobre o conceito de

Dobra,33 permitem-nos conceber o filósofo barroco como um racionalista bastante peculiar.

Interessa-nos, especialmente, um dos mais potentes aspectos desta “peculiaridade”

leibniziana: sua teoria das mônadas, ou Monadologia, que constitui o cerne de sua ontologia.

A ontologia leibniziana é motivada por dois problemas, basicamente: o movimento e a

matéria. No que toca à problemática do movimento, questiona-se desde como uma

determinada substância, em repouso, poderia pôr-se em movimento até o que faz com que

esta substância adquira determinada trajetória em lugar de outra. O filósofo indaga-se sobre a

consistência da matéria a partir de uma crítica a Descartes: não pareceria plausível

compreender a matéria como pura extensão geométrica, tal como pretende o filósofo francês.

Tal concepção valoriza a espacialidade em detrimento do movimento, da ação. Se se quer,

como Descartes, que as coisas sejam extensão, como pensar o movimento? É preciso repensar

a matéria, segundo Leibniz, não em termos de extensão geométrica, mas em termos de força

e, conseqüentemente, como ação.

É desta urgência de repensar a matéria, restituindo-lhe a potência da ação, que se

constitui a hipótese das mônadas. Em Leibniz, todo universo é composto por forças

indivisíveis chamadas mônadas. As mônadas são inteiramente fechadas, porém contêm todo o

mundo virtualmente em seu fundo sombrio, em que apenas uma parte muito pequena deste

mundo seria iluminada, atualizada de fato. Cada mônada apresentaria apenas uma perspectiva

do universo, mas, de direito, conteria em si tudo o que realmente há. Uma mônada apreende o

universo, portanto, sempre a partir de um determinado ponto de vista.

Se as mônadas são forças que agem, como apreendem o mundo a partir de um ponto

de vista? Como agem? Ocorre que as mônadas leibnizianas são dotadas de duas capacidades:

a percepção e a apetição. A percepção consistiria no ato psíquico de obtenção do múltiplo de

que é formado o universo a partir de uma simplificação desta complexidade: seria uma

espécie de economia. Já a apetição seria a ação de passar-se de uma percepção a outra.

33 Cf. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o Barroco. op. cit. passim.

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Dotadas destas duas capacidades, as mônadas seriam estas variações contínuas de vivências,

força e ação puras.

A matéria, portanto, não apresenta extensão. Ela não é espacial, uma vez que é força.

Ela é pura multiplicidade. Como apreendem o universo cada uma a sua maneira, por sua

região iluminada, as mônadas são, fundamentalmente, heterogêneas, diferentes umas das

outras.

Além da diferenciação em natureza própria a cada mônada, haveria em Leibniz um

outro sentido de diferenciação, porém em grau. Este último se daria a partir de uma

verdadeira hierarquia que as mônadas formariam. As capacidades de apercepção e de

memória garantiriam a superioridade de algumas mônadas em relação às demais. Todas

poderiam apreender o múltiplo do universo a partir do simples, e passar de uma apreensão a

outra, uma após a outra. Entretanto, algumas mônadas disporiam do dom de ter consciência

desta apreensão. Denomina-se apercepção esta vocação para perceber (apreender a

complexidade a partir do simples) de forma consciente. Para um homem, ouvir o barulho de

uma onda no mar, por exemplo, implica perceber e aperceber. Há a consciência da apreensão

do ruído como um todo (apercepção), mas não dos milhares de ruídos que estão ali presentes

mas que, efetivamente, são apreendidos, percebidos.

No degrau mais baixo da hierarquia monádica estão as mônadas materiais, cujos

conglomerados de força comporiam os corpos físicos. Elas seriam dotadas, como toda

mônada, de percepção e de apetição, mas não de apercepção. Já as mônadas superiores

seriam o que comumente conhecemos como almas. Estas sim seriam dotadas de percepção,

apercepção, apetição e memória. Os animais em geral comporiam esta categoria de

mônadas.34 Em um degrau superior estariam os espíritos, mônadas dotadas não somente de

percepção, apercepção, apetição e memória como também de uma proveitosa capacidade de

distinguir as verdades da razão (juízos que podem ser formados independentemente da

experiência) das verdades de fato (juízos que só podem ser concebidos a partir da

experiência). Nesse patamar estariam os homens em geral. Finalmente, no mais alto degrau da

hierarquia das mônadas em Leibniz encontraríamos a Mônada Superior, a única capaz de

apreender o universo inteiro de forma consciente e a partir de todos os pontos de vista, e não

apenas de um deles. Esta Mônada Superior, absolutamente iluminada, corresponderia a Deus.

34 “Aqui Leibniz opõe-se radicalmente à teoria de Descartes, que afirmava que os animais não têm alma, que são puros mecanismos, iguais aos relógios, e funcionam como relógios. Pois bem: Leibniz considera que não há tal, antes que os animais têm alma, porque têm apercepção, se dão conta e ademais têm memória”. Cf. MORENTE, Manuel García. Fundamentos de Filosofia – lições preliminares. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1980, p. 209.

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30

Se as mônadas são forças heterogêneas indivisíveis, lança-se uma questão de suma

importância: como se daria a ordenação no mundo? As mônadas em Leibniz são fechadas,

não havendo nelas portas ou janelas.35 A única solução possível, dadas estas condições, seria

intuir algo como um acordo predeterminado entre as mônadas, em que uma lei totalizadora

ditaria os destinos de cada uma delas, inclusive as ações conjuntas com outras mônadas. O

filósofo alemão institui, portanto, a noção de “harmonia preestabelecida” em sua

Monadologia. Tal “harmonia preestabelecida” pressupõe que, antes do surgimento de todas as

mônadas, a Mônada Superior (Deus) teria designado a harmonia entre elas ao longo de toda

sua duração. Desta maneira, ao postular o acordo preestabelecido das mônadas, neste

“comando místico” divino, não haveria necessidade de comunicação entre elas, e a ordenação

do universo estaria garantida.

Gabriel Tarde reconhece a potência da monadologia leibniziana, mas não pode

corroborar a “harmonia preestabelecida”, dado seu caráter de solução transcendente a uma

problemática basicamente imanente, que diz respeito à comunicação das diferenças que

povoam o universo. É por isso que o filósofo questiona que

[...] se os elementos do mundo nasceram à parte, independentes e autônomos, não se sabe por que um grande número dentre eles e um grande número de seus agrupamentos (por exemplo, todos os átomos de oxigênio e hidrogênio) se assemelham, senão perfeitamente, como se supõe sem razão suficiente, ao menos em limites mais ou menos fixos; não se sabe por que um grande número dentre eles, senão todos, parecem ser cativos e sujeitados, tendo renunciado a essa liberdade absoluta que implica sua eternidade; enfim, não se sabe por que a ordem, e não a desordem e, inicialmente, a condição primeira da ordem, a concentração crescente, e não a dispersão crescente, resulta de suas relações. Aqui também parece ser preciso recorrer a novas teorias. Como complemento de suas mônadas fechadas, Leibniz faz de cada uma delas um quarto escuro no qual o universo inteiro das outras mônadas se pinta em tamanho reduzido através de um ângulo especial; e, além disso, ele precisou imaginar a harmonia preestabelecida, da mesma maneira que, como complemento de seus átomos errantes e cegos, os materialistas tiveram de invocar as leis universais ou a fórmula na qual caberiam todas essas leis, espécie de comando místico ao qual todos os seres obedeceriam e que não emanaria de nenhum ser, espécie de verbo inefável e ininteligível que, sem jamais ter sido pronunciado por ninguém, seria, no entanto, sempre em todos os lugares escutado.36

Por conseguinte, seria preciso perscrutar outra resposta para esta ordenação das

diferenças elementares, mas que faça parte de um solo de pura imanência. A proposta de

nosso filósofo é a de que se reformulem conceitualmente as mônadas. Será necessário

concebê-las não mais como universos fechados em si mesmos, mas, pelo contrário, dotá-las

35 “As Mônadas não têm em absoluto janelas, pelas quais alguma coisa possa entrar ou sair”. Cf. LEIBNIZ, Gottfried W. La Monadologie, § 7. 36 TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. op. cit., p. 45.

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de portas e janelas. As mônadas deverão ser abertas para que haja comunicação efetiva entre

elas. É por meio deste engenhoso gesto filosófico, através desta sutil operação conceitual, que

Gabriel Tarde prescinde do apelo ao transcendente caro à monadologia leibniziana. O ponto-

chave da reformulação proposta pela neomonadologia tardeana parte de um questionamento

da impenetrabilidade das mônadas, ao fato de elas serem exteriores umas às outras.

Naturalmente, isto conduzirá seu pensamento a admitir uma vigorosa interpenetração destas

forças heterogêneas que formam o mundo:

Pode-se esperar resolvê-los [os mistérios envolvendo a harmonia das mônadas] concebendo as mônadas abertas, interpenetrando-se, em vez de serem exteriores umas às outras? Assim me parece, e observo que, nesse aspecto, os progressos da ciência, não só contemporânea mas moderna, favorecem a eclosão de uma monadologia renovada.37

Como em outras ocasiões, Tarde buscará apoio na ciência moderna para sua

neomonadologia, especialmente na física. Ele nos indica que mesmo a já então longínqua

física newtoniana pressupunha um potente questionamento da impenetrabilidade dos corpos,

especialmente na lei da atração, cuja base contempla o princípio de que há uma contínua ação

de um corpo sobre outro mesmo à distância.

A comunicabilidade das mônadas seria o pressuposto para a formação de ordens e

semelhanças no mundo em suas três esferas: físico-química, vital e social. Restaria explicar,

todavia, quais componentes deverão ser comunicados, uma vez que, para que se efetue

qualquer tipo de comunicação, é preciso que haja algo a ser posto em comum. Caberá a Tarde

identificar o que nos assemelha, o que nos possibilita viver em conjunto, seja em sociedade

atômica, sociedade animal ou sociedade humana.

Como em Leibniz, a mônada tardeana é composta de sua qualidade especial, de sua

singularidade, de uma preciosidade que faz dela um ser único em todo o universo, em eterna

diferenciação própria, uma vez que existir

[...] é diferir, e, de certa forma, a diferença é a dimensão substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais próprio e mais comum. É preciso partir daí, evitando qualquer explicação; para onde tudo caminha, mesmo a identidade, de onde falsamente partimos. Pois a identidade é apenas um mínimo, não passando de uma espécie, e espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é apenas um caso do movimento e o círculo uma variedade singular da elipse. Partir da identidade primordial significa supor como origem uma singularidade prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível de seres múltiplos, ao mesmo tempo distintos e semelhantes, ou seja, o inexplicável mistério de um ser

37 Ibid., p. 46. Acréscimo meu.

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simples único, posteriormente dividido não se sabe por quê. Num certo sentido, isso significa imitar os antigos astrônomos que, em suas quiméricas explicações do sistema solar, partiam do círculo e não da elipse, sob pretexto de que a primeira figura era mais perfeita. A diferença é o alfa e o ômega do universo.38

Tal diferença original de cada ser diz respeito essencialmente a sua qualidade.

Entretanto, afastada a hipótese da harmonia preestabelecida de Leibniz, e se só houvesse

qualidades diferenciadoras na composição da mônada, nada existiria de comum entre elas e,

sendo assim, nada poderia compor uma ordenação ou uma comunicação. É por esta razão que

a teoria tardeana propõe que haveria em cada ser do universo, em cada mônada, duas

quantidades comuns a todos os elementos, por mais distintos uns dos outros que sejam. Tarde

identifica duas forças como quantidades, e não como qualidades, precisamente porque é seu

estatuto de quantidade que autoriza sua universalização em cada ser, ao mesmo tempo em que

permite que se dê nessas forças tanto um aumento quanto uma diminuição de grau em suas

manifestações. Estas duas forças universais presentes em cada mônada, formadoras de

quantidades ora crescentes ora decrescentes, são a crença e o desejo.

1.5 A CRENÇA E O DESEJO

Crença e desejo são quantidades psicológicas que se prefiguram ao fundo de todas as

qualidades com que se combinam. Em contraposição à psicologia de sua época, Gabriel Tarde

concebe a crença e o desejo como quantidades primeiras, razão e não conseqüência da

organização psíquica como um todo. Em um indivíduo, por exemplo, as sensações são

qualidades, pontos de aplicação dessas forças elementares de desejar e crer, e não razão

delas.

Como compõem quantidades, crença e desejo apresentam imensa elasticidade em sua

manifestação, desde a menor inclinação a crer e a desejar até as grandes massas de fé e de

paixão. Para a crença, graus diferenciados de afirmação ou negação. Para o desejo, graus

diferenciados de adesão ou repulsa. Essas quantidades estão dispersas em todos os seres em

diversas combinações com suas qualidades próprias. São duas quantidades sempre iguais a

elas próprias que, combinadas à heterogeneidade das coisas, as une sem fazê-las iguais, assim

como penetram-nas sem as constituir.

38 Ibid., p. 70.

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Contudo, a crença apresenta um estatuto superior ao do desejo. Tal superioridade da

força de crer pode ser elucidada em dois sentidos. Primeiramente, porque a manifestação de

qualquer desejo já pressuporia uma afirmação e uma negação. Desejar é, antes de tudo,

afirmar a preferência por algo e/ou negar outra possibilidade. Pode-se deduzir a superioridade

hierárquica da crença, ainda, em outro sentido. Ao negar a concepção transcendente de uma

harmonia preestabelecida tal como havia em Leibniz, Gabriel Tarde remete-nos, como vimos,

a um solo de pura variação, em que valem tão-somente as relações comunicativas entre as

mônadas como criadoras de similitudes imperfeitas e operatórias. Ora, uma vez que fora

detectada a “morte de Deus” ou da “Mônada Superior” leibniziana, o objetivo de toda coisa

vital, assim como de toda coisa social passa a ser, em última instância, o aumento da crença

neste mundo que se nos apresenta. Se a primeira via de explicação para a superioridade da

crença é basicamente lógica, não exageraríamos em caracterizar a segunda delas como uma

celebração deste mundo.

Se a crença é superior ao desejo, todo desejo tem por objeto uma crença. O desejo é

força dinâmica, a partir de que o ser modifica e se modifica, ao passo que a crença é força

estática, fonte da distinção de si e das coisas.39 A crença como objetivo indica certo estado de

repouso, nunca alcançado, mas sempre almejado. Desejamos e cremos com o intuito de

crermos mais e mais neste mundo.

Ainda por esta perspectiva da crença e do desejo, torna-se problemática qualquer

adesão à possibilidade de uma verdade absoluta. Pensar a vida em termos destas duas

quantidades implica admitir que toda suposta verdade esconde apenas uma grande massa de

fé. A verdade nada mais é que crença. Sua existência estaria atrelada à necessidade demasiado

humana de almejar certezas. Tarde indica que toda necessidade de certeza pode ser

classificada de duas formas: ora como a necessidade de verdade, ora como necessidade de

segurança. Enquanto a primeira se referiria especialmente à ampliação de dogmas religiosos e

da perscrutação de “mais verdades” pela ciência, a segunda diria respeito à busca do eu por

uma potência ilimitada de si. As concepções de imortalidade religiosa ou mesmo as ambições

de nossa ciência contemporânea (por meio do desenvolvimento das pesquisas em engenharia

genética, por exemplo) poderiam ser vinculadas a tal “necessidade de segurança”.

A respeito da idéia de crença e desejo como quantidades, algumas observações se

fazem necessárias. Quantidade, em Gabriel Tarde, é intrinsecamente vinculada à sua exótica

concepção de oposição – tema principal de nosso último capítulo, mas que julgamos

39 TARDE, Gabriel. “La variation universelle”. In: Essais et mélanges sociologiques. Québec: L’Université du Québec, 2005, p. 297.

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necessário introduzir brevemente neste ponto. Uma oposição é uma contra-repetição, uma

repetição inversa, gerada quando há um equilíbrio recíproco entre dois termos. Afirmar este

equilíbrio recíproco é constatar que dois termos podem equivaler-se, no sentido de que ambos

possuem uma medida comum. Eis a definição tardeana de oposição:

quando dois termos variáveis são tais que um não pode ser concebido como tornando-se outro senão à condição de percorrer uma série de variações que levam a um estado zero, e remetendo em seguida esta mesma série de variações anteriormente decrescentes, estes dois termos são opostos.40

Apesar de ser uma repetição inversa, uma oposição supõe uma série determinada de

variações que correm de um pólo a outro, passando necessariamente pelo état zéro de

equilíbrio. Se toda identidade é um tipo especial de diferença, a oposição é uma diferença

ainda mais especial, uma vez que pressupõe uma série de variações que exigem um estado de

neutralidade.

Tanto a crença quanto o desejo formam, cada um em seu domínio, uma oposição. Ao

crer em algo, afirma-se alguma coisa na mesma medida em que se nega o inverso disto que se

afirma. De maneira análoga, ao desejar algo, adere-se a alguma coisa na mesma medida em

que se repele o inverso desta mesma coisa que se quer. Assim, toda oposição

é uma luta, uma neutralização tentada ou conseguida, que supõe a similitude dos termos beligerantes, sua compatibilidade numérica, a possibilidade de pô-los em equação. Nenhuma oposição verdadeira, por conseqüência, pode se encontrar fora de realidades quantitativas. Se então a crença e o desejo contêm oposições incontestáveis, está verificado que eles são quantidades. Ora, é evidente que eles comportam, tanto um quanto outro, estados positivos e negativos. Um médico examina um doente; à análise dos primeiros sintomas que observa, ele se pronuncia mentalmente, com um certo grau de convicção, pela existência de uma febre tifóide; depois outras características da doença suscitam nele uma tendência, inicialmente falha, depois vaga, em negar justamente aquilo que afirma; em um dado momento, sua negação e sua afirmação se contrabalançam – ele está em dúvida absoluta, estado singular que seria inexplicável em qualquer outra hipótese que não fosse a minha. Ela quase não dura, e a negação não demora a se apoderar dele definitivamente, ou a afirmação a retomar seu posto. Como, eu perguntaria, interpretar a dúvida absoluta, este zero de afirmação e de negação, senão como a prova de que neste instante a afirmação e a negação, ou, melhor dizendo, a tendência a afirmar ou a negar, tem a mesma intensidade, a mesma força, o mesmo peso? E como não admitir que são quantidades?41

40 TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essais d’une théorie des contraires. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 62. 41 TARDE, Gabriel. “La croyance et le désir”. In: Essais et mélanges sociologiques. Québec: L’Université du Québec, 2005, p. 196.

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A dificuldade, segundo Tarde, em medir precisamente tais quantidades de crença e

desejo em suas diversas manifestações seria decorrente do fato de que ambos estariam sempre

atrelados às sensações. As sensações, como se sabe, são fundamentalmente qualitativas e,

portanto, necessariamente distintas umas das outras ou incomparáveis. Crença e desejo, no

entanto, são quantidades porque comportam graus diferenciados específicos, podendo ser

efetivamente comparados nos seres mais diversos.

Seria um equívoco, entretanto, designar tais “quantidades” de crença e o desejo como

atributos somente dos seres sociais. Eles estão presentes nas três esferas universais. No âmbito

social, por exemplo, manifestam-se nas instituições, verdadeiras organizações, adaptações ou

oposições de crenças que se fortificam ou se limitam entre si. Simultaneamente, é pela

concorrência ou afluência de desejos, de necessidades, que as sociedades funcionam. As

crenças, religiosas e morais principalmente, mas também jurídicas, políticas, lingüísticas

mesmo poderiam ser tidas como forças plásticas das sociedades, ao passo que desejos

econômicos ou estéticos, por exemplo, são suas forças funcionais.42 Entretanto, é em outras

esferas da vida que o domínio da crença e do desejo soa mais surpreendente. É nestes âmbitos

que comprovamos sua prodigiosa elasticidade.

Mesmo a esfera vital, em suas séries mais simples, é rica em crença e desejo.

Tomemos como exemplo o primeiro termo da série vital, o protoplasma. Apesar de sua

simplicidade constitutiva, ele também seria dotado de crença e de desejo atuantes,

pulverizados infinitesimalmente. O exemplo dado por Tarde é mais um indício de que a

crença e o desejo não são conseqüência da organização psíquica, mas suas causas:

Eis uma pequena massa de protoplasma, para citar apenas um exemplo, na qual nenhum indício de organização pôde ser descoberto; “geléia límpida como o branco do ovo”, diz Perrier. Essa geléia, no entanto, prossegue o autor, executa movimentos, captura animais, os digere etc. Ela tem apetite, é evidente, e, conseqüentemente, uma percepção mais ou menos clara daquilo que a apetece. Se o desejo e a crença são apenas produtos da organização, de onde advêm essa percepção e esse apetite dessa massa, que é heterogênea, concordo plenamente, mas que não é ainda organizada?43

A afirmação da crença e do desejo como quantidades psicológicas presentes em todas

as mônadas leva-nos inevitavelmente a um psicomorfismo universal. Ao dotar as mônadas

destas duas quantidades infinitesimais, Tarde torna comparável aquilo que anteriormente era

pura diferença, pura singularidade. Este esforço de comparação é profundamente especial,

42 TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 205. 43 TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. op.cit., p. 39.

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pois mantém a potência de diferenciação inerente a cada mônada, não recorre a soluções de

caráter transcendente e permite aproximar os seres pertencentes às esferas mais distintas.

Como podemos passo a passo experimentar, a sociologia tardeana, é um pensamento “da

diferença e da repetição que funda a possibilidade de uma micro Sociologia numa

Cosmologia”,44 como definiu Deleuze. Todos os seres que compõem o universo são

singularidades, porém aproximáveis na medida em que crêem e desejam e na medida em que

estas crenças e desejos podem ser transmitidos de uma a outra mônada.

O próximo capítulo tratará precisamente desta força de transmissão de crença e

desejo, notadamente em sua esfera social, a que certamente mais nos desperta interesse.

Antes, porém, façamos uma breve síntese. Em Gabriel Tarde, o universo é composto por três

âmbitos gerais – a esfera físico-química, a esfera vital e a esfera social. Tais esferas não

diferem em natureza, mas apenas em grau. O mundo é composto originalmente por forças

heterogêneas idênticas a si próprias chamadas mônadas. Ao contrário das mônadas de

Leibniz, entretanto, as mônadas tardeanas são abertas, o que significa que há comunicação

entre elas. O que é comunicado entre as mônadas são compostos plurais de duas quantidades

psicológicas – a crença e o desejo. É na medida em que crêem em algo e desejam algo que os

seres se assemelham, possibilitando a formação de ordens mais ou menos coerentes como a

sociedade humana, por exemplo.

Já neste primeiro movimento de apresentação de pressupostos, notamos como o

próprio conceito de comunicação pode enriquecer-se a partir de uma perspectiva que valoriza

a diferença. Pensar o que nos põe em comunidade com os outros homens pressupondo que

todos somos iguais é despotencializar a comunicação. Se, pelo contrário, afirmamos a pura

diferença e a variabilidade a priori dos seres sociais, a força que os torna provisoriamente

semelhantes, em comunhão, adquire importância monumental. Não seria a comunicação

social esta potência, cuja tarefa seria a de estabelecer as miríades de pontes invisíveis que

permitem o relacionamento entre as diferenças inatas? De coadjuvante, a comunicação

passaria a protagonista das ciências do homem. Sem a potência da comunicação, pululariam,

em solidão improdutiva, as heterogeneidades de que o universo é berço. A comunicação

social não se enrobusteceria se fosse concebida como princípio produtor de tudo o que é

possível viver em comum?

44 DELEUZE, Gilles. “A repetição para si mesma”. In: Diferença e repetição. op. cit., p. 120.

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2. HIPNOTISMO , IMITAÇÃO E AS SIMILITUDES SOCIAIS

Nos três principais domínios da existência definidos por Gabriel Tarde – esferas

físico-química, vital e social – partimos da heterogeneidade radical dos elementos para a

abordagem da semelhança. O pensamento da diferença não prescinde das semelhanças para

efetivar-se. Afirmam-se similitudes físico-químicas (entre as moléculas de um determinado

gás, por exemplo), vitais (como entre duas espécies que compõem um mesmo gênero) ou

sociais (como nos exemplifica o caso em que dois homens seguem um mesmo culto

religioso). Todavia, a razão da identidade nestes domínios é, principalmente, estratégica. A

função das similitudes é propiciar novas diferenças, novas variações. Isto porque as

semelhanças só podem advir das repetições. Uma diferença original que consegue repetir-se

criará dois termos semelhantes. Portanto, a semelhança será sempre adquirida. Esta aquisição

da similitude é, entretanto, necessária à eclosão do que é novo em cada instância universal,

como nos elucida o seguinte trecho:

Sem a hereditariedade, haveria um progresso orgânico possível? Sem a periodicidade dos movimentos celestes, sem o ritmo ondulatório dos movimentos terrestres, a exuberante variedade das eras geológicas e das criações viventes teriam eclodido? As repetições existem, portanto, para as variações.45

Pensar a repetição a partir da diferença facilita a compreensão da idéia de variação.

Por advirem do domínio das heterogeneidades, todas as repetições são obtidas com algum

esforço. Tal empreendimento, contudo, sempre será forte o suficiente para implementar

similitudes, porém nunca incisivo o bastante para eliminar a heterogeneidade essencial dos

elementos. Sendo assim, toda repetição, toda similitude, será necessariamente imperfeita. Esta

imperfeição na construção da semelhança explica a variação em seus domínios mais amplos

45 TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 66-67.

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como, por exemplo, de dois indivíduos de uma mesma espécie biológica, de duas rochas

vulcânicas e mesmo de dois cidadãos do mesmo país. A riqueza de um pensamento da

diferença consiste não em negar a repetição e a semelhança, mas subordiná-las a uma

diferença mais originária. Desta forma, toda repetição será uma repetição variada. A

diversidade, e não a unidade, está

[...] no coração das coisas: para nós, essa conclusão se deduz de uma observação geral que um simples olhar lançado sobre o mundo e sobre as ciências permite fazer. Há, por todos os lados, uma exuberante riqueza de variações e modulações inesperadas, que jorram destes temas permanentes que chamamos espécies vivas, sistemas estelares, equilíbrios de todos os tipos, e que acabam por destruí-los e renová-los inteiramente, e em nenhum lugar, no entanto, as leis ou as forças, às quais estamos habituados a dar o nome de princípios das coisas, parecem afirmar a variedade como início ou fim. Diz-se que as forças estão a serviço das leis, que todas as leis se aplicam aos fenômenos enquanto são repetições perfeitas e não repetições variadas; todos, manifestamente, tendem a afirmar a reprodução exata dos termos e da estabilidade indefinida de equilíbrios de todos os gêneros, impedindo sua alteração e renovação.46

A possibilidade de existência de qualquer ciência reside na constatação de

semelhanças e repetições mais ou menos variadas. É a partir do que é comum aos elementos

heterogêneos que se instaura o saber. Entretanto, a fixidez que normalmente se atribui às

diversidades constitutivas do universo – especialmente em se tratando do domínio social –

impede com freqüência o estabelecimento de uma abertura teórica às renovações

diferenciadoras. Privilegiam-se descrições de grandes generalizações normativas em

detrimento do que é microscópico e potencialmente múltiplo.

Contudo, ao questionar o caráter apriorístico da similitude universal no pensamento

tradicional do ocidente, a perspectiva da diferença se depara com o problema de tornar

plausíveis as identidades que povoam o planeta. Se só há diferenças, a partir de que forças

misteriosas formam-se as reproduções e semelhanças de toda sorte?

Em Gabriel Tarde, sabemos que as semelhanças se engendram a partir da conformação

das duas quantidades que formam as mônadas: a crença e o desejo. Dois seres são

aproximáveis na medida em que desejam e na proporção em que crêem em algo. Mas como as

crenças e desejos de uma mônada se assemelham aos de outra? A questão pode, ainda, ser

composta de maneira diversa: como ocorre a comunicação das crenças e dos desejos, de

modo que eles se tornam comparáveis a ponto de podermos definir dois termos como

semelhantes?

46 TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 77.

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A força responsável pelas repetições e, conseqüentemente, pelas similitudes adquire

denominação própria em cada um dos três domínios universais. Em qualquer ponto do

planeta, as crenças e os desejos se assemelhariam por força da influência de uma das mônadas

sobre as outras. Uma mônada pode ser dotada de tamanha quantidade de crença e desejo em

algo a ponto de provocar uma espécie de força magnética em outras mônadas, cujos

compostos plurais de crença e desejo ainda não tomaram uma forma determinada. É a avidez

e a fé de uma mônada que a tornam forte o bastante para que influencie uma outra. Desta

forma, pela força da crença e do desejo de algumas mônadas, o que era pura multiplicidade

poderá comportar estados transitórios de semelhança adquirida. A repetição dos fenômenos

seria tributária, portanto, do triunfo de algumas mônadas, como Tarde nos explicita:

Se conseguíssemos substituir a entidade vazia de um tempo único por realidades múltiplas, por desejos elementares, assim como o espaço de alguma forma sobrenatural foi substituído por espaços reais ou domínios elementares, só restaria explicar, como última simplificação, as leis naturais, a similitude, a repetição dos fenômenos e a multiplicação dos fenômenos semelhantes (ondas físicas, células vivas, cópias sociais) pelo triunfo de certas mônadas que quiseram tais leis, que impuseram tais tipos, que estabeleceram seu jugo sobre uma população de mônadas uniformizadas e subjugadas, mas todas nascidas livres e originais, todas ávidas, como seus conquistadores, pela dominação e assimilação universais. – As leis, essas outras entidades saltitantes e fantásticas, assim como o espaço e o tempo, encontrariam, enfim, sua sede e seu ponto de aplicação nas realidades reconhecidas. Elas todas teriam começado, assim como nossas leis civis e políticas, por serem projetos, desejos individuais.47

Quando se trata da esfera físico-química, a influência de uma partícula em outra, de

um elemento em outro, de uma molécula em outra é chamada de ondulação. No que diz

respeito à esfera vital, a repetição se dá pela força de geração ou hereditariedade, que permite

o aparecimento de seres de uma mesma espécie, gênero ou família. Finalmente, no que se

refere ao campo social, a influência de um indivíduo sobre o outro permite a experimentação

e o direcionamento48 comum das crenças e dos desejos de modo que estes dois seres se

assemelhem. Trata-se basicamente de uma força de contágio que, socialmente, apresenta-se

sob o nome de imitação. Um ser social pode dispor de tamanhas fé e avidez em um sentido

determinado que sugeriria a outro a reprodução de suas próprias convicções e volições. Tarde

entende por sugestibilidade tal contínua experimentação sobre a crença e o desejo:49

47 Ibid., p. 48. 48 Cf. TARDE, Gabriel. La logique sociale. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 449, em nota. 49 Ibid., p. 85.

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As três principais formas da repetição universal, a ondulação, a geração e a imitação, como disse antes, são outros tantos procedimentos de governo e instrumentos de conquista que dão lugar a esses três tipos de invasão, física, vital e social: a radiação vibratória, a expansão geradora, o contágio do exemplo.50

Comparada às demais forças fomentadoras de similitude, a imitação ocupa um estatuto

superior. A ondulação das partículas físico-químicas – propiciadora dos grupos semelhantes

de átomos e moléculas – ou a geração – criadora de novos seres vivos – seriam forças

indissociáveis de uma espacialidade e temporalidade limitantes. A imitação, por outro lado,

relaciona-se tanto com espaço quanto com o tempo de forma mais elástica, podendo ser

descrita, de fato, como uma geração à distância. Nuancemos estas comparações entre

ondulação, geração e imitação a partir da reprodução do trecho a seguir:

Ao passo que as ondas se encadeiam, isócronas e contíguas, os seres vivos, de uma duração bastante variável, se desligam e se separam, tanto mais independentes quanto mais elevados são. A geração é uma ondulação livre cujas ondas fazem um mundo à parte. A imitação faz melhor ainda: ela se exerce não somente de muito longe, mas em grandes intervalos de tempo. Ela estabelece uma relação fecunda entre um inventor e um copista separados por milhões de anos, entre Licurgo e um membro da assembléia de Paris, entre o pintor romano, que elaborou um afresco de Pompéia e o desenhista moderno que nele se inspira. A imitação é uma geração à distância. Nós diríamos que estas três formas da Repetição são três reprises de um mesmo esforço por estender o campo onde ela se exerce, por fechar sucessivamente qualquer abertura à rebelião dos elementos sempre prontos a partir o jugo das leis, e por coagir sua multidão tumultuosa, pelos procedimentos mais e mais engenhosos e potentes, a caminhar em massa mais e mais fortemente e de forma mais bem organizada.51

Sendo assim, a ondulação, a geração e a imitação são forças de estabilização, mas que

efetivamente nunca se totalizam, dado o caráter apriorísitco da diferença dos elementos que

tais forças subjugam. Interessa-nos, especialmente, na exploração da perspectiva tardeana, o

que pode ser considerado como linha de fuga, aquilo que escapará das tentativas de

estabelecimento de uma homogeneidade asfixiante. Caracterizemos, portanto, o profícuo

conceito tardeano de imitação. Inicialmente, propomo-nos a mapear, de modo resumido, o

contexto histórico-epistemológico em que tal conceito emerge. Dispensaremos um cuidado

maior à questão da modernização da percepção na segunda metade do século XIX e,

concomitantemente, à emergência da problemática da atenção e do hipnotismo ao final do

mesmo século. Em seguida, indicaremos algumas das principais peculiaridades da imitação na

constituição das sociedades.

50 TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia, op. cit., p. 98. 51TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 94.

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2.1 A MODERNIZAÇÃO DA PERCEPÇÃO E A PROBLEMÁTICA DA ATENÇÃO

A cunhagem do prodigioso conceito tardeano de imitação é indissociável das

características do contexto histórico-epistemológico a partir de que ele emerge. Desde o

século XVIII, mas, especialmente, a partir de meados do século XIX, assistiu-se a uma

intensa acumulação de discursos e práticas institucionais que se referiam à produção e ao

gerenciamento de corpos dóceis para o trabalho produtivo. O recrudescimento avassalador do

capital era então manifestado pelo desenvolvimento das indústrias, comércio, transportes e,

especialmente, meios de comunicação e informação. Os novos tempos – pautados por

exaustiva aceleração da vida urbana – exigiam a produção de corpos esquadrinháveis,

domesticáveis, gerenciáveis e tornados aptos ao trabalho moderno em suas esferas mais

distintas. Em suas recentes teses, expostas nos livros Techniques of the observer e

Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture, o historiador de Artes e

professor da Universidade de Columbia Jonathan Crary propõe que, em torno da segunda

metade do século XIX, ocorrera um profundo e significativo deslocamento epistemológico no

que tange à percepção humana. Tal descontinuidade de práticas e discursos referentes à

percepção seria simultânea à ascensão de novas modulações do sistema capitalista. No que

tange aos regimes de observação, o deslocamento se daria de um modelo de percepção

baseado na estabilidade e centralidade do sujeito para um regime em que a materialidade do

corpo humano – com suas instabilidades, fluxos e temporalidades próprios – seria condição

para toda experiência perceptiva. Em um trabalho de inspiração tanto arqueológica quanto

genealógica, o historiador torna evidente o próprio caráter histórico da percepção humana.

Jonathan Crary sintetiza esta profunda descontinuidade discursiva e prática a partir da assunção de dois

modelos epistemológicos expressivos: a câmara obscura e o estereoscópio. Considerado pela historiografia

tradicional como um dos aparatos precursores da máquina fotográfica, a câmara obscura adquire, nos séculos

XVII e XVIII, para Crary, estatuto distinto de um mero “preparatório” para a fotografia. Furtando-se a

anacronismos infrutíferos, Crary salienta que a câmara obscura, para além de um aparato óptico, apresenta-se

como um modelo epistemológico consistente, ao expressar em sua existência a garantia de um mundo

matematicamente ordenado, regido por leis universais, absolutas, que caberiam ao homem dotado de razão

perscrutar. Notemos, por meio da imagem abaixo reproduzida, como a câmara obscura pressupõe uma relação

geometricamente perfeita entre os objetos:

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Figura 1: Câmara Obscura

A penetração ordenada e calculável dos raios luminosos pelo orifício único da câmara obscura

corresponderia à mente orientada pela luz da razão. A imagem formada no interior da câmara obscura é

garantida pela representatividade absoluta dos objetos do mundo. Fundada nas leis ópticas da natureza, a câmara

obscura provê um ponto proveitoso de observação do universo. Tal perspectiva, contudo, não depende da

materialidade corpórea do observador. Mesmo a evidência da binocularidade humana, a rigor uma contradição

aos princípios de uma percepção universal, fora justificada por um incisivo Descartes. A evidência da

binocularidade teria sido solapada em um esforço de manutenção da estabilidade de um mundo coerente e

previsível. A impossibilidade de negação da existência de dois olhos na apreensão das imagens pela percepção

humana passa a não ser problemática para o filósofo francês, quando este relega à “glândula pineal” a

capacidade de síntese das imagens captadas pelos dois olhos. Além disso, a alma seria dotada de percepção, e

não o corpo.52 De modo geral, os séculos XVII e XVIII buscarão esquivar-se do corpo e de sua inerente

instabilidade. O estatuto da observação nos séculos XVII e XVIII, como havia mostrado Foucault, é baseado em

uma lógica de exclusão. Observar é, pois,

[...] contentar-se com ver. Ver sistematicamente pouca coisa. Ver aquilo que, na riqueza um pouco confusa da representação, pode ser analisado, reconhecido por todos e receber, assim, um nome que cada qual poderá entender.53

A partir da segunda metade do século XIX, entretanto, quando se intensifica o ímpeto

de grandiosa abstração generalizada calcada nos grandes montantes do capital financeiro, a

antiga estabilidade garantida, representada no modelo da câmara obscura, seria amplamente

questionada.54 É neste contexto que, de acordo com Crary, teria havido o deslocamento do

modelo epistemológico da câmara obscura para o modelo da percepção estereoscópica.

52 Cf. DESCARTES, René. La dioptrique. In: Oeuvres et lettres. Paris: Gallimard, 1953, passim. 53 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 183. 54 “Toda propriedade, posição e influência têm de ser permanentemente adquiridas, conquistadas e validadas dia após dia; tudo parece provisório, inconsistente e instável. Daí o ceticismo e o pessimismo gerais, daí a sensação de sufocante ansiedade que enche o mundo de Balzac...” HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 737.

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Resumidamente, o que se considera visão estereoscópica configura um regime de visualidade

baseado não mais em leis absolutas da visão em geral, mas na materialidade corpórea do

observador. Estas transformações em curso a partir da segunda metade do século XIX são

classificadas por Hans Ulrich Gumbrecht como pertencentes ao período da Modernidade

Epistemológica, distinto do que pode ser considerado como o início desta, no século XVI:

O que talvez nos separe mais claramente do Início da Modernidade é a sua confiança – confiança cega, como muitas vezes constatamos – no conhecimento produzido pelo observador de primeira ordem. Entre o Início da Modernidade e nosso presente epistemológico há um processo de modernização, abrangendo as décadas em volta de 1800, que gerou um papel de observador que é incapaz de deixar de se observar ao mesmo tempo em que observa o mundo. Esse papel corresponde, exatamente, à descrição das recém-emergentes Sciences humaines, com cujo aparecimento Michel Foucault, em seu livro Les mots et les choses, assinala o limiar discursivo de 1800. Mas é sinônimo também da definição que Niklas Luhmann faz do observador de segunda ordem (embora Luhmann não nutra nenhum interesse específico em historicizar seu conceito).55

Assinalemos o interessante “efeito de superfície” a partir de que Jonathan Crary

identifica a ampla constituição do modelo da visão estereoscópica. Um dos primeiros indícios

desta mutação teria sido notado em uma parte (a seção didática) da Teoria das Cores de

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), obra de 1810. Em dado momento do texto,

Goethe refere-se ao então amplamente conhecido aparato da câmara obscura. Contudo, há

uma interessante distinção na descrição da tecnologia: o que se percebe é a permanência da

câmara obscura como aparato tecnológico, porém em um regime epistemológico em evidente

transformação. Isto se esclarece quando Goethe sugere ao leitor a experiência de entrar na

câmara obscura. Em seguida, indica que seja tapado o orifício pelo qual penetram os raios

luminosos. Evidentemente, este não era o uso comum da câmara obscura que conhecemos.

Tal subversão do aparato, entretanto, serviria a propósitos bastante claros:

O orifício sendo então fechado, permite que [o observador] olhe em direção à parte mais escura do recinto: uma imagem circular vai agora parecer flutuar perante ele. O meio do círculo parecerá claro, incolor, ou um tanto amarelo, mas a borda parecerá vermelha. Depois de um tempo este vermelho, crescendo em direção ao centro, cobre todo o círculo, e, enfim, o ponto central brilhoso. Porém, tão logo o círculo se torne vermelho, a borda começa a tornar-se azul, e o azul gradualmente invade o vermelho. Quando o orifício estiver azul, a borda torna-se escura e incolor. A borda mais escura novamente invade devagar o azul até que todo o círculo pareça incolor.56

55 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 13. 56 GOETHE apud. CRARY, Jonathan. Techniques of the observer. Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 1990. p. 68. Acréscimo meu.

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O simples ato de se “fechar o orifício” representa uma negação do modelo da câmara obscura como

sistema óptico e figura epistemológica. São dissolvidas as distinções entre espaço interior e exterior, que serviam

de base para o funcionamento da câmara obscura tanto como aparato quanto como paradigma. Assiste-se, aqui, à

formação de um novo modelo de percepção: os círculos coloridos que parecem flutuar ou ondular são descritos

por Goethe como cores fisiológicas, pertencentes inteiramente ao corpo do observador e funcionando

concomitantemente como uma condição necessária para a visão. A subjetividade corporal do observador passa a

ser o local em que a própria observação é possível.

A concentração na subjetividade e na própria fisiologia do observador é incompatível

com o modelo anterior de redução do sujeito à pura receptividade, visto que ele passa também

a ser foco de investigação. Tanto o observador quanto o observado são sujeitos aos mesmos

modelos de estudo empírico. Como sinaliza o epistemólogo Georges Canguilhem (1904-

1955) a respeito das constatações do filósofo francês Maine de Biran (1766-1824): “uma vez

que a alma está necessariamente encarnada, não há psicologia sem biologia”.57 Sendo assim, o

corpo e a percepção serão sujeitos à investigação, regulação e disciplina ao longo do século

XIX.

No contexto desta visão que se corporifica, destaca-se, portanto, o aparato óptico do

estereoscópio, representante deste modelo epistemológico que se concretiza. Inicialmente

elaborado em 1838 para a demonstração de uma teoria da visão, o estereoscópio adquiriu

grande popularidade entre 1850 e 1860, passando a ser considerado objeto de entretenimento

nas feiras livres européias e residências burguesas. A formação da imagem estereoscópica

obedece aos princípios do novo regime epistemológico uma vez que ela dependerá da

instância da temporalidade do observador para que se produza a síntese da imagem. Como a

figura abaixo pode-nos atestar, no aparato estereoscópio, são dispostas lado a lado duas

imagens semelhantes. Ao aproximar seus olhos destas imagens a partir de duas lentes, pouco

a pouco as duas imagens vão fundir-se em uma só. Forma-se, então, uma imagem estranha, de

profundidade incomum, como se disposta em camadas sucessivas. A experiência do

observador na percepção do mundo que o cerca trará novas questões a respeito do estatuto

ontológico dos homens e das coisas.

57 Ibid., p. 73.

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Figura 2: Estereoscópio

Feito este resumido mapeamento das complexas transformações por que passaram os

regimes perceptivos na segunda metade do século XIX, podemos reduzir um pouco mais o

escopo de nossa investigação. A sociologia de Gabriel Tarde, de que nos ocupamos neste

trabalho, pertence ao conjunto de saberes que se desenvolve ao final do referido século,

quando já teria havido a corporificação da percepção e a emergência do observador de

segunda ordem que acabamos de descrever. Jonathan Crary indica que esta mudança de

paradigma terá como conseqüência, no final do século, a ascensão do tema da atenção. O

surgimento de um novo modelo epistemológico que constitui seus regimes de verdade a partir

da corporeidade do sujeito, em que a prioridade da consciência na garantia de representação

absoluta do mundo é problematizada, suscita o interesse na investigação do problema da

atenção. Em outras palavras, quando o sujeito deixa de ser sinônimo de uma consciência que

é essencialmente autopresente, quando não há mais a inevitável congruência entre

subjetividade e pensamento, a atenção passa a ser importante, pois ela será o novo princípio

regulador de garantia da consistência do mundo para o sujeito. Assim, destacar-se-iam duas

condições para a ascensão da atenção como interesse epistemológico: a primeira delas

relacionada ao colapso dos modelos clássicos de visão e do sujeito estável, pontual, que esses

modelos pressupunham. A segunda refere-se à insustentabilidade de soluções apriorísticas

para problemas de caráter epistemológico.

O levantamento histórico de Jonathan Crary indica-nos que a “atenção”, no século

XIX, encerra grande volatilidade, referindo-se tanto à atenção como a conhecemos (ou seja,

estado provocado pelo desprendimento de um campo de atração mais amplo para

concentração ou foco em um reduzido número de estímulos) quanto a outros estados, como o

transe, o devaneio e a hipnose. Ou seja, ela é compreendida em termos de fluxos e

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intensidades, e não em termos de fixação e estabilidade. Sendo assim, a atenção como a

concebemos comumente seria apenas mais um estado deste amplo continuum que envolveria

outras nuances de percepção, regimes mentais e subjetivos.

É como se a atenção contivesse em si própria as condições de sua desintegração, como se fosse

“assombrada pela possibilidade de seu próprio excesso”,58 como nossa experiência poderia atestar quando

fixamos nossos sentidos por muito tempo em um só foco. De diversas formas, a atenção poderia atingir um

limite em que ocorreria, por um lado, a própria deterioração da identidade do objeto percebido e, por outro, uma

mutação em seu próprio estado, como nos casos do transe ou da hipnose. Logo,

a atenção então se torna um meio impreciso de designar a capacidade relativa de um sujeito para isolar seletivamente certos conteúdos de um campo sensorial à custa de outros, no interesse de manutenção de um mundo produtivo e ordenado.59

É importante que se ressalte, ainda, que a atenção não se restringiria unicamente a um regime de

visualidade:

Atenção, como uma constelação de textos e práticas, é muito mais que uma questão de fixação do olhar, de ver, do sujeito apenas como espectador. Isto permite que o problema da percepção seja extraído de uma fácil equação com questões de visualidade, e eu argumentarei que o problema moderno da atenção engloba uma gama de termos e posições que não pode ser simplesmente construída em termos ópticos.60

Considerando-se que a atenção, a partir da segunda metade do século XIX, deve ser

compreendida como um continuum em que estão incluídos outros estados perceptivos, como o

devaneio, o transe ou a hipnose, permitimo-nos afirmar que atenção e distração não são

estados essencialmente estanques. Eles funcionam em um processo brusco, dinâmico e

contínuo, de fluxos e intensidades, de acordo com as exigências do consumo capitalista.

Sendo assim, o problema da atenção, então,

[...] não era uma questão de atividade neutra e eterna como respirar ou dormir, mas de emergência de um modelo específico de comportamento com uma estrutura histórica específica – comportamento que era articulado em termos de normas determinadas socialmente e que era parte da formação de um meio tecnológico moderno [...] Este problema foi elaborado em um sistema econômico emergente que demandava atenção de um sujeito em uma ampla gama de novas tarefas produtivas e espetaculares, mas cujo movimento interno foi continuamente erodindo a base de qualquer atenção disciplinar. Parte da lógica cultural do capitalismo demanda que aceitemos como natural adaptarmos nossa atenção rapidamente de uma coisa a

58CRARY, Jonathan, Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 2000, p. 47. 59 Ibid., p. 12. 60 Ibid., p. 2.

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outra. O capital, como troca e circulação aceleradas, necessariamente produziu este tipo de adaptabilidade perceptiva e tornou-se um regime de distração e atenção recíprocas.61

O sonho moderno de autonomia do sujeito é posto em questão, uma vez que a própria

consciência é problematizada. Em seu lugar, perscruta-se a atenção – essencialmente fluida e

fugidia – como independente da própria consciência. O caráter desestabilizador da atenção

decorre, em grande parte, desta aquisição de um estatuto de variável independente em relação

à consciência. A estabilidade requerida pelos saberes e práticas que tinham na consciência seu

ponto de ancoragem dá lugar a uma epistemologia geral e a um conjunto de procedimentos

reguladores baseados em fluxos de movimento e ação. Desta maneira, a diversidade de

estados psicológicos que abarcava a atenção permitiu que o século XIX explorasse de modo

mais acurado o instigante fenômeno da hipnose.

2.2 A HIPNOSE NO SÉCULO XIX

A abundância de práticas e discursos referentes à hipnose dizia respeito tanto a sua

utilização como uma tecnologia da atenção – permitindo novas possibilidades de atuação de

um poder clínico e de benefícios médicos – quanto a uma ratificação da ampla remodelação

por que passava a subjetividade moderna, na medida em que comprovava a maleabilidade do

sujeito em sua relação com o mundo.

As pesquisas acerca da capacidade de influência de um indivíduo sobre outro

adquirem força a partir da introdução da psicologia nos domínios das ciências médicas, em

fins do século XVIII. Os experimentos de Franz Friedrich Anton Mesmer (1734-1815) com

metais “magnéticos” em animais permitiu-lhe explorar a idéia de que fluidos magnéticos

poderiam ser transmitidos de um indivíduo a outro. Na prática médica, o auxílio de “passes”

do terapeuta Mesmer em pacientes provocava nestes uma espécie de “crise convulsiva”, que

contribuía, então, à “cura” do doente.62 Por volta de 1776, o cientista aboliu de seus

experimentos o uso de ímans para indicar, em um importante estudo de 1779 denominado

Mémoire sur la découverte du magnétisme animal, que o processo de magnetismo nos

animais se daria de modo distinto daquele derivado dos ímans. É notável a menção, nos

61 Ibid., p. 29. 62 “Era dispensado particular cuidado ao ambiente das sessões coletivas (dir-se-ia, atualmente, as psicoterapias de grupo); o terapeuta usava roupas de seda lilás e a música desempenhava um papel importante (Mesmer era amigo de Mozart, e foi ele quem introduziu em França nada menos que a harmônica!)”. CHERTOK, L. O hipnotismo. Publicações Europa-América, s/d., p. 23.

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estudos de Mesmer, à noção de imitação como inerente aos indivíduos: “Um outro princípio

faz agir o íman, incapaz, por si próprio, dessa ação sobre os nervos, e fez-me ver que eu tinha

ainda de percorrer alguns passos para chegar à teoria imitativa, objeto das minhas

investigações”.63 O interesse de Mesmer acerca desta “imitação” era, contudo, estritamente

pelo caráter fisiológico de tal influência, menosprezando possíveis fatores psicológicos. Tal

desprezo se explicita fortemente quando Mesmer minimiza a importância do anúncio, pelo

Marquês de Puységur, das descobertas tanto do sonambulismo provocado quanto da

possibilidade de estabelecimento de comunicação verbal com o sonâmbulo. Mesmer

argumentara que o fenômeno seria menor em comparação à investigação da natureza fluídica

do contágio. Daí por diante, as contendas centram-se em dois pólos básicos: o “magnetismo”

como exclusivamente fisiológico ou o “magnetismo” que comporta fatores relacionais e

psicológicos.

Entretanto, seria reservado ao século XIX, palco dos profundos deslocamentos da

percepção que indicamos, o acirramento das discussões concernentes a este curioso

fenômeno. Seria a era de ouro do “hipnotismo” e dos embates de perspectivas:

A luta começou imediatamente. Opuseram-se primeiro “fluidistas” e “animistas” na primeira metade do século XIX. Depois disso tomou a forma de uma oposição entre os partidários da explicação fisiológica e os da explicação psicológica. Em 1843, Braid refutou definitivamente a teoria fluídica e, para marcar bem a sua posição, designou pelo nome de “hipnotismo” os fenômenos até aí denominados “magnetismo animal”. Enunciou uma teoria neurofisiológica do hipnotismo, segundo a qual este é induzido por fixação visual (admitiria mais tarde a sugestão verbal). Mas é a Liébeault que cabe o mérito de ter sido o primeiro a utilizar sistematicamente, em grande escala, a sugestão verbal para fins terapêuticos. 64

Os debates em torno da hipnose na década de 1880 são bastante numerosos, dentre os

quais destacam-se as discussões entre Jean Martin Charcot (1825-1893) e seus seguidores de

Salpêtrière (dentre os quais Sigmund Freud) contra a perspectiva de Hippolyte Bernheim

(1837-1919) e outros. O cerne deste debate consistia em compreender se a hipnose seria uma

deficiência da atenção (Charcot) ou apenas uma intensificação de um estado normal de

sugestibilidade (Bernheim).65 Também na década de 1880 é inaugurada a Escola de Nancy,

63 MESMER, Franz Friedrich Anton (1779). Mémoire sur la découverte du magnétisme animal. apud: CHERTOK, L. O hipnotismo., op. cit., p. 24. 64 CHERTOK, L. op. cit., p. 27. 65 “Eu tenho me esforçado em mostrar que o hipnotismo não cria de fato uma nova condição: não há nada no sono induzido que não possa ocorrer em estado de vigília, em um grau rudimentar em muitos casos, mas em alguns a uma igual extensão”. BERNHEIM, Hyppolyte. Hypnosis and suggestion in psychotherapy. New York: Atonson, 1973, p. 179. apud: CRARY, J. op. cit., p. 67.

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inspirada nos trabalhos de Ambroise-Auguste Liébeault (1823-1904), que, por sua vez,

procurou aproximar tanto a atenção focada quanto a hipnose do estado de sono normal.

Se a atenção é um continuum que comporta estados como o sonho, a hipnose, a

distração e o transe, é por meio de uma intensificação da atenção “convencional” que se

atingiria o estado de hipnose. A concentração focada em um único ponto durante um certo

período de tempo facilitaria a redução da atenção periférica, permitindo a absorção do sujeito

em uma determinada direção, tornando-o facilmente sugestionável. Como é amplamente

sabido, pesquisas acerca do fenômeno da sugestibilidade e do hipnotismo contribuíram para a

formação de diversos saberes, como o psicanalítico, por exemplo, apesar de sua

desqualificação posterior. Influenciado por tais estudos, Freud chegou a afirmar em 1897 que

não deve parecer excepcional o fato de uma pessoa influenciar outra, do mesmo modo que um pedacinho maleável de ferro tem a propriedade de influenciar outro. Tal analogia não diminui a prodigiosidade do fato de que um sistema nervoso pode influenciar outro, através de meios distintos do das percepções sensoriais.66

Se o hipnotismo nos soa como caricatura na contemporaneidade, tal estatuto é

indissociável de uma profunda e radical desqualificação que a hipnose sofreu a partir

especialmente do início do século XX. Admitir o hipnotismo como ciência e, principalmente,

ratificar seus pressupostos seria alquebrar ainda mais as já combalidas noções de consciência,

livre-arbítrio e racionalidade presentes no ideário sócio-cultural da Modernidade. Desta

forma, no começo do século XX, a hipnose

[...] abruptamente desapareceu das correntes principais de pesquisas e práticas institucionais. A renúncia ansiosa da hipnose por Freud, Bernheim e outros foi apenas um dos sinais mais amplamente conhecidos deste deslocamento. Houve uma surpreendente reversão cultural da grande era de ouro da hipnose no final dos anos 1880, quando, então, por toda a Europa e a América do Norte, ela parecia uma terapia que prometia benefícios ilimitados para o período da virada do século, quando se tornou um constrangimento para seus antigos defensores. A Revue de l’Hypnotisme experimental, fundada em 1886, teve seu nome alterado no começo do século XX para Revue de Psychothérapie et de Psychologie appliquée. [...] A hipnose e a sugestão foram logo ridicularizadas como práticas direcionadas a processos automáticos (aqueles inferiores, mais instintivos, e contínuos com a animalidade) em vez de um procedimento racional, subtraindo a participação consciente do paciente e sua força de vontade. A vívida caracterização da hipnose por Bernheim como “decapitação mental” foi típica das imagens em torno das quais tais ansiedades mais tarde se desenvolveram.67

66 FREUD, Sigmund. “Referat über Obersteiner, Der Hypnotismus mit besonderer Berücksichtigung seiner klinischen und forensischen Bedeutung, Wien 1887”. Nachtragsband, id., p. 106. apud: CHERTOK, L. e STENGERS, I. O coração e a razão (a hipnose de Lavoisier a Lacan). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1990, p. 10. 67 CRARY, J., op. cit., p. 69.

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O declínio das pesquisas e práticas relacionadas à hipnose em nosso século não foi

suficiente, contudo, para a redução do interesse que o tema provoca. Freqüentemente, todavia,

tal curiosidade pelo tema tem sido alimentada por abordagens que reforçam certo caráter

esdrúxulo da prática. A hipnose é caracterizada como uma espécie de atração mágica, em que

abundam elementos típicos de um imaginário “ocultista”. Desta forma, pela íntima relação

que a teoria tardeana apresenta com os estudos de hipnose, parece-nos natural que sua longa

obliteração pelas Humanidades no século XX seja parte integrante deste amplo movimento de

declínio do hipnotismo como matéria científica, a partir de sua desqualificação.

2.3 A IMITAÇÃO SOCIAL

Após esta necessária contextualização, encontra-se mais facilmente compreensível a

aproximação da perspectiva tardeana dos estudos de hipnose e magnetismo para a cunhagem

de seu conceito de imitação. A recuperação diferenciada dos discursos acerca da

sugestibilidade social nos pode ser profícua justamente na medida em que traz à tona questões

que foram solapadas ao longo de todo um século. No entanto, mesmo conscientes do contexto

histórico-epistemológico em que a teoria tardeana se insere, ainda assim nos surpreendemos

com afirmações como esta, a respeito do homem social:

O estado social, como o estado hipnótico, não é senão que uma forma de sonho, um sonho de comando e um sonho de ação. Não ter as idéias sugeridas e conceber suas crenças como espontâneas: tal é a ilusão própria do sonâmbulo, assim como a do homem social.68

Ao relativizar as fronteiras entre consciente e inconsciente, qualificando o estado

social como estado de sonho, Tarde salienta as ilusões modernas de autonomia de todos nós,

autênticos “sonâmbulos”. O que nosso filósofo denomina sugestão social não difere em

natureza do estado sonambúlico descrito pelos estudiosos da hipnose. A sugestão social seria

apenas menos direta que a sugestão hipnótica, porém seus efeitos perdurariam mais. Ao

estalar dos dedos do hipnotizador, o mundo do paciente se restaura. Ora, não há estalar de

dedos quando se está permanentemente embriagado pela sugestão social. O sonambulismo

social seria menos intenso, porém poderia alastrar-se por um território muito mais amplo:

68 TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 137.

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cidades, países, continentes se rendem a esta curiosa forma de entrega. Finalmente, a sugestão

social seria certamente menos rápida que a hipnótica. Contudo, a profundidade de sua

atuação seria infinitamente maior.69 Os efeitos de uma sugestão social perduram até que

sejam substituídos por novas formas de sugestão social.

A semelhança social das crenças e desejos dos indivíduos essencialmente

heterogêneos se dá por conta desta força – “espécie de sonambulismo”70 – chamada imitação.

A constituição de um grupo social, portanto, excede o que se passa no terreno da consciência.

Para sermos mais precisos, a sociedade é mais propriamente imitação irrefletida que refletida.

Uma coleção de indivíduos (mônadas) compostos de graus diferenciados de desejo e crença

pressupõe que algumas destas singularidades sociais detenham mais do que outras estas duas

quantidades psicológicas no que se refere a determinadas instâncias da vida. Por exemplo, é

razoável que um líder político tenha em grau mais elevado crenças e desejos direcionados a

certo projeto referente à economia nacional que a maioria da população. É por meio da fé e da

avidez do líder que se operará a sugestibilidade nos demais membros do grupo social.

Compostos plurais de crença e desejo dispersos nos indivíduos adquirirão o molde daquelas

presentes em seus líderes. Em nosso exemplo, as crenças e desejos econômicos se fortificam

inicialmente em um grande magnetizador para, posteriormente, pelo contágio do exemplo,

dar forma às expectativas e fé dos demais. Nenhum plano econômico, bem como nenhum

projeto de nação ou iniciativa política de qualquer ordem pode dar-se a despeito da imitação

social das crenças e dos desejos.

Entretanto, tal imitação poderá ser refletida ou espontânea, consciente ou inconsciente.

Algumas delas, inclusive, já nascem inconscientes, como os sotaques, as idéias e os

sentimentos próprios do local onde se operam as práticas de subjetivação. É preciso ressaltar,

porém, que estas últimas nunca se tornariam conscientes. Ademais, mesmo as imitações

conscientes (como, por exemplo, membros de uma comunidade que conscientemente imitam

os ritos de seus antepassados, um homem que compra um móvel de mesmo estilo que o de um

amigo ou outro que age com consciência da influência operada por um jornalista de sua

preferência em suas opiniões) são precedidas por uma espécie de imitação inconsciente

primordial: a própria vontade de imitar! A vontade de imitação é um pressuposto comum a

toda imitação real, seja ela consciente ou não. Tal vontade, mesmo aparentemente consciente,

69 TARDE, Gabriel. La Logique Sociale. op. cit., p. 144. 70 “A sociedade é imitação, e a imitação é uma espécie de sonambulismo”. TARDE, Gabriel. Les lois de l´imitation. op. cit., p. 147.

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no fundo, é sempre inconsciente “porque esta vontade mesma de imitar é transmitida por

imitação”. 71

Ora, de fato, o esfacelamento das distinções entre imitação consciente e imitação

inconsciente não se dá pela negação da existência destas duas diferentes modalidades de

imitação, mas pelo estabelecimento de um pressuposto comum que as aproxima: a própria

vontade de imitar, sem a qual nenhuma imitação se daria. O caráter consciente ou

inconsciente da imitação não importa, porquanto mesmo uma imitação dita consciente

apresenta em sua origem causas inconscientes (a imitação da vontade de imitação).

Quando acusado de expandir demasiadamente seu conceito de imitação (tratando-o ora

como um processo consciente ora inconsciente), Tarde salienta que a força de sua noção

consiste precisamente nesta expansão, e faz uso de uma interessante metáfora tecnológica

para justificar sua perspectiva:

Ter-se-ia o direito de criticar como abusivo o alargamento do significado da palavra em questão [imitação] se, em estendendo-a, eu a tivesse deformado e tornado-a insignificante. Mas eu lhe designei um sentido sempre muito preciso e característico: o de uma ação à distância de um espírito sobre outro, e de uma ação que consiste em uma reprodução quase fotográfica de uma placa cerebral pela placa sensível de um outro cérebro. Será que se, em um dado momento, a placa do daguerreótipo tomasse consciência do que acontece nela, o fenômeno mudaria essencialmente de natureza? Eu entendo por imitação toda impressão de fotografia interespiritual, por assim dizer, quer ela seja desejada ou não, passiva ou ativa. 72

Gabriel Tarde considera que uma teoria das sociedades não pode prescindir da

investigação minuciosa deste complexo fenômeno da imitação, fonte de todas as repetições de

ordem social. A análise da imitação em sociologia será, portanto, de ordem microscópica,

uma vez que a sugestibilidade se dá, inicialmente, de um indivíduo a outro. Mesmo a

proliferação de grandes semelhanças sociais (como a expansão de determinada doutrina

religiosa, por exemplo) é impossível sem este contágio de mônada a mônada. Sendo assim, o

grupo social pode ser descrito como “uma coleção de seres na medida em que estejam

imitando-se entre si ou na medida em que, sem se imitarem em ato, eles se assemelhem e seus

traços comuns sejam cópias antigas de um mesmo modelo”. 73

O hipnotismo social dependerá de três espécies de indivíduos: os magnetizadores,

grandes homens capazes de concentrar, por um lado, uma imensa quantidade de crenças e

desejos e, por outro, de comunicá-los aos outros por sugestão; os sonâmbulos, ou imitadores,

71 Ibid., p. 251. 72 Ibid., p. 46. Acréscimo meu. 73 Ibid., p. 128.

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que comportariam os homens sociais em geral, compostos de crenças e desejos dispersos,

porém potencialmente adaptáveis; e, finalmente, os loucos ou inventores, indivíduos que re-

elaboram as correntes imitativas, a partir do contato com suas nuances diferenciadoras. Estes

últimos, como veremos no capítulo 4, serão responsáveis pela afirmação alegre da diferença

que constitui tudo o que existe.

Os sonâmbulos sociais são caracterizados por uma mistura singular de anestesia e

hiperestesia. Ao mesmo tempo em que estão catalépticos,74 copiam tudo o que diz respeito ao

meio em que se inserem. A imitação pressupõe, portanto, um intenso trabalho da memória

corporal, exacerbado em muito pelas hiperestimulações sensório-motoras das grandes

cidades:

Não é que a memória tenha sido abolida, ela nunca esteve tão viva, tão pronta a entrar em cena e em movimento pela menor palavra que evoque nela a parte longínqua, a existência anterior, a fonte, com uma riqueza de detalhes alucinante. Mas ela se torna paralisada por inteiro, desprovida de sua espontaneidade própria. Neste estado singular de atenção exclusiva e forte, de imaginação forte e passiva, destes seres estupefatos e fervorosos, subsiste o charme mágico do novo meio; eles crêem em tudo aquilo que eles vêem ser feito. Eles ficarão assim por um bom tempo. Pensar espontaneamente é sempre mais cansativo que pensar como um outro. Também, todas as vezes em que um homem vive em um meio animado, em uma sociedade intensa e variada, que lhe fornece espetáculos e concertos, conversações e leituras sempre renovadas, ele se dispensa de todo esforço intelectual; e se entorpecendo ao mesmo tempo em que se excita mais e mais, seu espírito se faz sonâmbulo. Este é o estado mental próprio de muitos cidadãos. O movimento e o barulho das ruas, as vitrines das lojas, a agitação desenfreada e impulsiva de suas existências provoca neles o efeito de passes magnéticos.75

Apesar de constituir-se como uma das principais forças sociais, a imitação se

desenvolve em fases diferenciadas ao longo da vida individual do homem. Isto ocorre porque

a sugestibilidade à distância engendrada pela imitação (quando adquirimos a opinião de um

jornalista conceituado, por exemplo, ou mesmo quando agimos pela simples lembrança da

ação de outrem sobre nós) é fruto de um lento trabalho de constituição de sugestão direta.

Começamos, crianças, adolescentes, por sentir, vivamente,

[...] a ação dos olhares de outrem, que se exprime sem sabermos em nossa atitude, em nossos gestos, no curso modificado de nossas idéias, na perturbação ou na superexcitação de nossas palavras, em nossos juízos, em nossos atos. E é somente após termos, durante anos, suportado e feito suportar essa ação impressionante do olhar, que nos tornamos capazes de ser impressionados inclusive pelo pensamento

74 Catalepsia aqui é entendida como certa plasticidade motora em que o indivíduo mantém as posições que lhe são sugeridas por outrem. Em estado cataléptico, ocorre o cessar dos movimentos voluntários dos músculos sem que estes, porém, sejam lesados. 75 Ibid., p. 144.

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do olhar de outrem, pela idéia de que somos objeto da atenção de pessoas distantes de nós. Do mesmo modo, é após termos conhecido e praticado por muito tempo o poder sugestivo de uma voz dogmática e autoritária, ouvida de perto, que a leitura de uma afirmação enérgica basta para nos convencer e que mesmo o simples conhecimento da adesão de um grande número de nossos semelhantes a esse julgamento nos dispõe a julgar no mesmo sentido.76

Além de configurar-se como uma força que se desenvolve durante a vida individual, a

imitação é, ainda, parte integrante da vida de todas as sociedades que passaram pelo planeta.

É, portanto, uma força universal, apesar de ser indissociável das nuances históricas que a

conformam. A imitação em uma sociedade feudal distinguir-se-á daquela de uma democracia

de massas contemporânea. Todavia, esta força de constituição de semelhanças das crenças e

desejos dos homens, apesar das particularidades que adquire historicamente, é atemporal.

Tarde salienta que todas as civilizações que habitaram o planeta, em seu tempo, e cada

uma a seu modo, confiavam no caráter supostamente autônomo de seu funcionamento. O que

distinguiria nossa civilização das sociedades antigas não seria a substituição de um poder

autoritário por outro “democrático”, mas uma verdadeira alteração do que chamaremos aqui

de dinâmica da magnetização.77 Elucidemos tal dinâmica. Os chamados regimes autoritários

seriam caracterizados pela presença necessária de um magnetizador central (um faraó, um rei

absolutista, um ditador etc), fonte primordial das correntes de imitação, sua inspiração

concentrada. A imitação se daria essencialmente de modo vertical. Na modernidade, a

magnetização ter-se-ia tornado encadeada, e em movimento de cascata. Em outras palavras,

ao magnetismo vertical, de cima para baixo, acopla-se um magnetismo horizontal. Neste

sentido, os homens tidos como superiores são imitados pelos inferiores, que se imitam em

uma proporção igualmente considerável. Não que a imitação entre iguais não fosse

considerável antes da Modernidade, mas, certamente, naquele período, teria adquirido maior

relevância. Mais uma vez, percebe-se o desprezo do filósofo pelo propalado privilégio da

razão moderna: esse magnetismo mais recente não faz dos homens modernos menos

sonâmbulos que seus ancestrais.

Em suma, o desenvolvimento das sociedades transpôs o modelo de magnetização

unilateral (vertical) para um modelo de magnetização recíproca (vertical e horizontal). Os

chamados povos civilizados orgulham-se de ter escapado deste “sono dogmático”. Tarde

mostra que o engano dos modernos a este respeito é notório. À medida que os povos se

“democratizam”, os homens imitam-se mais e mais, em todas as direções. Neste contexto, o

76 TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 9. 77 A expressão é minha, baseada nas considerações tardeanas a respeito das transformações da imitação ao longo da história.

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papel das inovações urbanas, dentre elas as tecnologias comunicacionais, é de grande

importância. A aceleração dos fluxos de informação com os trens e o telégrafo contribuiria,

em última instância, para romper, em grande parte, os limites geográficos da propagação

imitativa. A vinculação social originada pelos processos de contágio dar-se-iam também, e de

forma sistemática, à distância.

A História apresenta-nos uma série de magnetizadores de renome: Ramsès, Alexandre,

Maomé, Napoleão, dentre outros. Presenciava-se a glória ou o gênio de um homem fazendo

tombar todo um povo em catalepsia. Na Modernidade, por conta de um progressivo

crescimento da magnetização recíproca em detrimento da magnetização unilateral, Tarde

previa uma gradual diminuição de tipos com tal força de magnetização. O filósofo, que

escrevia em 1890, décadas antes da ascensão dos fascismos e comunismos do século XX, não

pôde vivenciar a força da magnetização unilateral nesse período e, como sabemos, em nosso

presente.78

Neste capítulo, dedicamo-nos a apresentar o conceito tardeano de imitação,

profundamente ancorado na epistemologia de seu tempo, período de importantes

deslocamentos concernentes à percepção humana. A considerável acumulação tanto de

práticas quanto de discursos sobre hipnose permitiu ao nosso filósofo elaborar sua sociologia

da diferença sem deixar de dispensar à semelhança sua inegável importância na constituição

dos grupos sociais. Isto porque é neste contexto de exploração das nuances da atenção que

Tarde entende a imitação como força criadora de similitudes das crenças e desejos de

indivíduos naturalmente heterogêneos. A sugestão como conformação e direcionamento de

tais crenças e desejos é a base de todo fenômeno imitativo. Na medida em que obtêm êxito na

comunicação aos outros daquilo em que crêem e que desejam, os indivíduos tornam-se

aproximáveis, semelhantes, sem abdicar, porém, de suas singularidades:

Longe de sufocar sua originalidade própria, ela [a semelhança progressiva dos indivíduos] a favorece e a alimenta. Contrária à acentuação pessoal é a imitação de um só homem em que nos espelhamos para tudo; mas quando, em lugar de nos regularmos por algum ou alguns, nós seguimos cem, mil, dez mil pessoas, consideradas cada uma sob um aspecto particular, os elementos de idéia ou ação que combinamos a ele em seguida, a natureza mesmo e a escolha de suas cópias elementares, assim como sua combinação, exprimem e acentuam nossa personalidade original. E este pode ser o benefício mais claro do funcionamento prolongado da imitação.79

78 Em um interessante estudo, Serge Moscovici parte de pressupostos tardeanos para analisar fenômenos de massa do século XX. Cf. MOSCOVICI, Serge. The age of the crowd: A historical treatise on mass psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. 79 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 55. Acréscimo meu.

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No capítulo seguinte, enfocaremos as leis regentes da comunicação de crenças e

desejos que Tarde vislumbra. A recuperação das leis da imitação em muito poderá contribuir

para nossos estudos acerca da influência de um indivíduo sobre outro, bem como dos meios

de comunicação em operação em uma esfera microscópica. Gabriel Tarde entende que a

imitação estrutura-se tanto pelo que denomina de leis lógicas quanto pelo que considera como

influências extralógicas. Contudo, além de elucidar as leis da imitação, não prescindiremos de

apresentar, resumidamente, as especificidades da estatística, reinterpretada por Tarde como

um poderoso instrumento de análise das ações imitadas.

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3. O MODUS OPERANDI DA IMITAÇÃO : LEIS LÓGICAS , INFLUÊNCIAS EXTRALÓGICAS E A

ESTATÍSTICA COMO METODOLOGIA

Uma vez que compreendemos que a força responsável pela criação de repetições e

semelhanças no campo social é a imitação, podemos avançar um pouco mais e apresentar o

modus operandi da transmissão imitativa tal como estabelecida por Gabriel Tarde. De fato,

afirmar que os homens tornam-se provisoriamente semelhantes por conta da imitação não

esclarece uma questão crucial: por que, dada a variedade de diferenças existentes nas mais

diversas instâncias do mundo social (como a variedade de neologismos que uma língua pode

criar diariamente, a profusão de inovações de regras sociais, a proliferação de gostos estéticos

que a arte pode fornecer etc), apenas algumas são efetivamente imitadas? Poderíamos

reformular a questão de modo a indagar-nos: quais são os critérios para que um elemento

social seja imitado em detrimento de outro?

Neste capítulo, procuraremos apresentar a solução tardeana para este impasse. O

filósofo entenderá que a imitação é regida tanto por leis lógicas quanto por influências

extralógicas. Inicialmente, trataremos das duas formas que as leis lógicas adquirem em Tarde:

os duelos lógicos e as uniões lógicas. Em seguida, explanaremos as instigantes influências

extralógicas da imitação: a imitação que vai do interior para o exterior e a imitação do

considerado superior pelo dito inferior. Finalmente, exporemos a ousada leitura tardeana da

estatística como metodologia de análise das correntes imitativas de um grupo social.

3.1 A LÓGICA DA IMITAÇÃO : DUELOS E UNIÕES

A comunicação social de crenças e desejos obedece, normalmente, a um de dois

caminhos de caráter lógico. Quando uma determinada novidade emerge no tecido social, ela

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responderá de maneira muito particular a uma necessidade mais ou menos consciente do

grupo social, ao mesmo tempo em que suscitará novas crenças e desejos. Como a sociologia

de Tarde busca enveredar-se por um solo imanente, a propagação de uma inovação sempre se

dará de indivíduo a indivíduo, a partir de cada membro do corpo social: porém, inicialmente,

é preciso que se dê termo, em cada indivíduo, a um conflito ou a uma reunião das novas

crenças e desejos implementados pela inovação e as crenças e desejos que já nele atuavam.

Quando nos referimos a um conflito ou a uma reunião de crenças e desejos antigos

com crenças e desejos novos implementados por uma inovação surgida, já estamos no campo

dos chamados duelos e uniões lógicas da imitação. Enquanto as uniões são forças criativas e

férteis em combinações de crença e desejo, os duelos são críticos e ricos em substituições dos

mesmos. Ambos, porém, são essenciais à propagação imitativa. Vamos abordá-los

separadamente a seguir.

3.1.1 OS DUELOS LÓGICOS

Um duelo lógico se estabelece em um indivíduo quando este se depara com duas

possibilidades de imitação que respondem a uma necessidade semelhante. Inevitavelmente,

ocorrerá uma intensa batalha interna de crenças e desejos novos e antigos, até que o homem

social optará por uma das duas escolhas. O homem só adotará determinada opção (ou seja,

imitará) quando o conflito interno houver terminado. Neste ponto, é importante que

ressaltemos que, apesar de o conflito se dar individualmente, suas causas não são, para

Gabriel Tarde, menos sociais. O indivíduo, aqui, é um mero local em que se dão os conflitos

de crenças e desejos (quantidades sociais) antigos e novos. Em vez de afirmarmos que é o

indivíduo que resolve o duelo lógico, devemos defender que é no indivíduo que o conflito de

crenças e desejos se apazigua, e sempre provisoriamente. Tarde nos elucida esta questão no

seguinte trecho:

Eu me apresso em acrescentar que, se a hesitação que precede um ato de imitação é um fato simplesmente individual, ela tem como causa os fatos sociais, ou seja, os outros atos de imitação já efetuados. A resistência que um homem opõe sempre à influência prestigiosa ou racional de um outro homem que ele vai em seguida copiar provém sempre de uma influência antiga que o primeiro já suportou. Uma corrente de imitação se cruza nele com uma tendência a uma imitação diferente: é por isso que ele não imita ainda. É bom notar, aqui, que a propagação mesma de uma imitação implica seu encontro e sua luta com uma outra.80

80 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 225.

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Por mais que várias opções de imitação possam responder a uma necessidade, o

conflito lógico se dará sempre com dois termos. Todo conflito lógico se constituirá

inevitavelmente dois a dois. Ao responder a uma determinada necessidade, uma inovação A

nega o que uma possibilidade anterior B afirma. Simultaneamente, afirma uma nova crença,

que seria evidentemente negada por B.

Para que melhor se fixem os preceitos do duelo lógico, reproduzimos um interessante

exemplo tardeano deste tipo de lei lógica aplicado à instância social da língua:

Se, no momento em que penso em um cavalo, dois termos – equus e caballus – , provenientes de dois dialetos diferentes do latim, se apresentam juntos ao meu espírito, é como se a sentença “é melhor dizer equus que caballus para designar este animal” fosse contradita em mim por esta outra sentença “é melhor dizer caballus que equus”. Se para exprimir o plural eu tenho que optar entre duas terminações, i e s, por exemplo, esta opção é acompanhada igualmente de sentenças de fundo contraditório. Quando as línguas romanas foram formadas, contradições desde gênero existiam aos milhares nos cérebros gálico-romanos, espanhóis e italianos; e a necessidade de as resolver gerou os idiomas modernos. Isto que os filólogos chamam de simplificação gradual das gramáticas não é senão o resultado de um trabalho de eliminação provocado pelo vago sentimento de suas contradições implícitas. É por isso que o italiano diz sempre i e o espanhol sempre s, por exemplo, enquanto o latino dizia ora i e ora s.81

No exemplo acima reproduzido, temos duas opções – as palavras caballus e equus –

como respostas à necessidade de designar o animal que conhecemos por “cavalo”. Neste caso,

há uma mesma necessidade e duas opções que duelam por satisfazê-la. Afirmar uma é negar a

outra. Ocorrem, entretanto, alguns casos de duelos lógicos em que as duas opções se

contradizem mesmo respondendo a demandas distintas. Tal situação se daria ora quando as

duas são expressões distintas de uma mesma necessidade considerada superior ora quando a

afirmação de uma delas pressupõe o aniquilamento da outra. Tarde indica-nos um exemplo

para cada um dos casos expostos. No primeiro caso, cita a disputa, no século XV, entre o

então recente uso da tinta a óleo e o tradicional uso de cera como material de pintura. Ambos

eram expressões diferenciadas de uma mesma necessidade dita superior, que seria a confecção

de quadros belos. No segundo caso, teríamos a contradição da descoberta da pólvora na época

feudal, que teria provocado nos monarcas o desejo de unificação territorial e a invenção de

potentes armaduras e castelos que, por sua vez, teriam incentivado os senhores feudais a um

desejo maior de independência. Apesar de não disputarem a priori a resposta por uma

necessidade comum, as invenções descritas acabam por compor um importante duelo lógico

social.

81 Ibid., p. 213-214.

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Tendo ou não sido provocado pela disputa de uma mesma necessidade, todo duelo

lógico necessariamente chegará a um fim provisório, até que uma nova invenção faça nascer

um novo conflito. A resolução de um duelo dessa natureza, segundo Tarde, pode operar-se de

três maneiras distintas.

A primeira solução se daria quando o simples prolongamento natural de um dos

termos leva ao recuo e ao desaparecimento tranqüilo do outro como, por exemplo, na disputa

entre a escrita cuneiforme e a escrita fenícia na Antigüidade. A considerada superioridade

desta última em relação à primeira fora tão rapidamente propagada que a escrita fenícia pôde

reinar absoluta sem grande desgaste.

Uma segunda trilha desenvolvida por um duelo lógico ocorreria após uma longa

batalha entre as duas possibilidades de imitação. Nesse caso, as duas opções seriam dotadas

de tamanha energia que o término da batalha não se poderia dar sem o aniquilamento total de

um dos termos. Como exemplo, poderíamos citar a disputa entre dois fortes dogmas que

seriam contraditórios um ao outro em uma dada doutrina religiosa. A supremacia de um deles

não se faria por um lento desaparecimento do outro, mas por uma vigorosa e definitiva

disputa entre os dois.

Finalmente, o fim do conflito entre duas correntes de imitação poderia existir quando a

própria contrariedade entre os termos em jogo é suprimida. Tarde nos recorda que a invenção

do telescópio no século XVI, por exemplo, poria fim às discussões entre as correntes

pitagórica e aristotélica a respeito de importantes questões astronômicas.

Para além dos duelos lógicos, que acabamos de expor, as imitações se dão em

concomitância com outra força importante: a de uniões lógicas. Tratemos delas a seguir.

3.1.2 AS UNIÕES LÓGICAS

Se os duelos lógicos ocorrem quando duas possibilidades de imitação entram em

conflito, as uniões lógicas se realizam quando duas opções de imitação podem ser reunidas

para alcançar um mesmo fim. Novas palavras de uma língua, artigos industriais produzidos a

partir de uma nova arte econômica, regras de um código jurídico, por exemplo, são opções de

imitação que não só não se contradizem como se confirmam umas as outras em seu campo de

atuação (respectivamente, em nossos exemplos, a linguagem, a indústria, o direito).

Tarde salienta que as uniões lógicas são “o alfa e o ômega” da lógica da imitação,

reservando aos duelos lógicos uma função mediadora entre dois estágios distintos de união

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lógica.82 O filósofo atribui maior relevância às opções de imitação que se reúnem no sentido

de aumentar a crença e o desejo – caso das uniões lógicas – que àquelas em que se tem uma

inevitável redução momentânea de crença e do desejo – como ocorre com os duelos lógicos.

Parece sensato o privilégio implementado por Tarde pelas uniões lógicas, no bojo de sua

teoria social. Se as forças sociais objetivam, em última instância, aumentar a quantidade de fé

neste mundo, à força que conduz a um crescimento necessário será concedido um estatuto

superior.

No que diz respeito às leis lógicas da imitação, haveria, em qualquer instância social,

como a linguagem, a religião, a política, o direito, a indústria, a arte etc, um período inicial de

grandes uniões lógicas, seguido de tempos de duelos lógicos para, enfim, haver uniões lógicas

fortificadas. No primeiro momento de uniões lógicas, o que se tem são pequenas invenções

que não se contradizem umas às outras. Podemos exemplificar esse primeiro estágio quando

são inventadas, com grande velocidade, novas palavras em um idioma que acaba de nascer,

que contribuirão para o aumento das páginas de seu dicionário. Também configuraria um

período de uniões lógicas em primeiro estágio a profusão de narrativas, lendas e histórias

míticas que se acumulam quando surge uma nova religião. Contudo, após este período de

intensos acúmulos de elementos, de fortificação social pelo número, despontam os primeiros

e inevitáveis conflitos: no caso de uma língua, por exemplo, ter-se-iam palavras que se

formam por regras distintas e, muitas vezes, contraditórias. Ou seja, surgem os já

mencionados duelos lógicos microscópicos provenientes naturalmente do grande acúmulo

desordenado de elementos sociais. É precisamente após esse momento que estariam

asseguradas as condições para o segundo estágio das uniões lógicas. As contradições advindas

do período de duelos lógicos possibilitariam a formação de regras mais rígidas a partir das

quais os novos elementos sociais deveriam surgir. Para nos manter no exemplo da linguagem,

é apenas após a disputa de regras ortográficas distintas que se poderá avançar na formação de

uma gramática. Ora, uma vez que uma gramática é formada, as palavras que serão inventadas

a partir de então obedecerão, necessariamente, a uma lei prévia, inexistente no primeiro

estágio das uniões lógicas. Presenciaríamos, assim, um segundo estágio das uniões lógicas:

nele, as invenções não só não se contradizem como se confirmam umas as outras, sempre com

o objetivo de fazer aumentar a crença em uma determinada instância social imanente, como a

língua, por exemplo.

82 Ibid., p. 231.

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Neste ponto, cumpre tecermos uma pequena observação acerca da idéia tardeana de

evolução. Apesar de, no que se refere à constituição lógica das categorias sociais, Tarde

primar pelo mecanismo dialético das uniões e duelos lógicos microscópicos, de forma alguma

poderíamos afirmar que há, para o pensador, uma evolução epocal na forma de grandes

períodos sistematicamente constituídos. O que se tem são a batalha e a reunião ininterruptas

de elementos sociais vivos e infinitesimais: um jogo vibrante e infinito de pequenas invenções

que se acumulam a outras (inserções), invenções que se propagam facilmente (evoluções) e

invenções que substituem ou eliminam outras (contra-evoluções ou revoluções). Ou seja, por

mais que se possa admitir, por exemplo, algumas evoluções em micro-instâncias, como nas

leis de uma constituição, no estabelecimento de diretrizes artísticas de uma determinada

escola literária, dentre outros, haveria, ainda assim, uma multiplicidade de evoluções, mas

jamais uma unilinear Evolução social que se desvelaria pouco a pouco como um Absoluto.

Tarde indica que, sem qualquer dúvida, não há nada além de “evoluções, de forma elementar,

visto que não há nada além de imitações; mas, uma vez que essas evoluções, essas imitações,

se combatem, é um grande erro considerar o todo, formado destes elementos em conflito,

como uma só evolução”.83

Além de afastar-se de uma concepção linear de evolução por meio de sua abordagem

microscópica das uniões e duelos lógicos, Tarde distingue-se da via comum de pensamento de

seu tempo ao atribuir como causas da imitação não apenas leis lógicas como também

influências extralógicas. A força que influências que não obedecem a regras fixadas por

uniões ou duelos lógicos adquire na teoria social tardeana torna o trabalho do pensador muito

menos suscetível a aderir a grandes generalizações referentes a evoluções históricas em

épocas sucessivas. A união ou combate de crenças e desejos em caráter infinitesimal é tanto

razão da imitação como os processos extralógicos, dos quais trataremos a partir deste ponto.

3.2 AS INFLUÊNCIAS EXTRALÓGICAS DA IMITAÇÃO

Defendemos, neste trabalho, que a imagem do pensamento do social de Gabriel Tarde

é fundamentalmente baseada em processos de comunicação, em que a imitação social como o

pôr em comum de crenças e desejos na forma de contágio é um dos pilares principais. Neste

capítulo, abordamos até o momento as chamadas leis lógicas regentes da imitação, que

certamente terão seu papel nos estudos de comunicação social. Todavia, cremos que seriam as

83 Ibid., p. 243.

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influências extralógicas tardeanas da imitação que mais poderiam ampliar as opções de

estudos da área.

Se a imitação é a forma que adquire o contágio na esfera social, assim como a

ondulação é sua conformação na esfera físico-química e a geração o é na esfera vital, é

imprescindível ressaltar que o contágio social das crenças e desejos independe da linguagem

humana. Tarde, remontando aos tempos primitivos em que os homens não dispunham das

palavras, se indaga: como se operava,

de um cérebro a outro, o atravessamento de seu conteúdo íntimo, de suas idéias e de seus desejos? Ele funcionava, com efeito, se os entendermos como o que se passa nas sociedades animais cujos membros parecem compreender-se quase sem signos, como em virtude de um tipo de eletrização psicológica por influência. Nós devemos admitir que, desde então, e talvez com uma intensidade considerável, decrescente depois de então, se exercia uma ação inter-cerebral à distância, cuja sugestão hipnótica pode nos dar vagamente a idéia de como um fenômeno mórbido pode assemelhar-se a um fato normal. Esta ação é o problema elementar e fundamental que a psicologia sociológica (que começa onde a psicologia psicológica termina) deve esforçar-se em resolver.84

No que se refere ao desenvolvimento da linguagem, o filósofo não se surpreende que

um homem primitivo tenha imaginado associar um pensamento seu a um som (base da

linguagem). Impressionante seria o fato de que este mesmo homem tenha conseguido sugerir

esta associação a um outro. Neste sentido, a hipótese do contágio social anterior à linguagem

adquiriria mais força. A própria linguagem só pôde desenvolver-se por via da imitação social.

Entretanto, não se pode inferir, a partir das observações precedentes, que o

pensamento tardeano menospreze a força da linguagem nos processos imitativos. Muito pelo

contrário, Tarde considera que a linguagem teria permitido tornar a imitação mais e mais

perfeita e regularizada. Apesar de não ser causa da imitação, ela é certamente sua principal

força propulsora. Se a cosmologia sociológica de Gabriel Tarde é fundamentalmente

comunicacional, a imitação na esfera social é profundamente atrelada à transmissão de signos

lingüísticos. Trata-se de um fenômeno exclusivamente humano, pois “uma idéia engenhosa,

por hipótese, tendo sido iluminada no cérebro de um búfalo ou de um corvo, morreria com ele

e seria necessariamente perdida pela comunidade”.85

Em resumo, a comunicação de crenças e desejos em Gabriel Tarde não é privilégio da

esfera social, mas é igualmente razão de ser das esferas físico-química e vital. Por outro lado,

a comunicação por contágio social conformada pela imitação adquire uma estruturação

84 Ibid., p. 261-262. 85 Ibid., p. 264.

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potente por meio do desenvolvimento da linguagem, ela própria transmitida por imitação. No

seguinte trecho, é elucidada claramente tal perspectiva:

Uma vez facilitada e regularizada pelo hábito das comunicações verbais, a ação à distância de um cérebro dominante sobre os cérebros dominados adquire uma força irresistível. Nós podemos ter uma idéia do que foi a linguagem originalmente como um meio de governabilidade pela potência que exerce em nossos dias sua forma mais recente, a imprensa periódica, embora ela seja neutralizada parcialmente ao se reproduzir e ao se combater contra ela mesma. É graças à palavra que a imitação, no mundo humano, acentuou este caráter eminente de se atrelar ao que, de início, há de mais íntimo em seu modelo vital, e de reproduzir sua faceta secreta – representações e intenções – com uma precisão incrível, antes de compreender e refletir com uma exatidão menor as facetas exteriores deste modelo: atitudes, gestos, movimentos.86

Tudo o que é manifestado na linguagem (gestos, atitudes, movimentos, palavras) é,

portanto, posterior a uma compreensão de seu sentido, transmitido por contágio social. A

partir do que abordamos sobre a linguagem, podemos tratar, assim, da primeira forma de

influência extralógica do contágio social estudada por Tarde: a imitação que vem do interior

para o exterior.

3.2.1 A IMITAÇÃO AB INTERIORIBUS AD EXTERIORA

Quando se percebe a imitação por meio de seus signos exteriores é porque a imitação

já está em consolidação. Quando se fala como alguém é porque já se imitaram, antes do signo,

as crenças e desejos deste indivíduo relacionados à fala. De maneira análoga, nos anos

anteriores à Revolução Francesa – comenta Tarde – Paris já não mais copiava os modos da

corte, nem aplaudia as mesmas peças de teatro que eram bem consideradas em Versalhes.

Mesmo antes de a Revolução propriamente dita estrugir, a crença e o desejo de

insubordinação já há muito pairavam na capital francesa.

Como postula Gabriel Tarde, uma das influências extralógicas da imitação diz respeito

à maneira como se dá a contaminação social: sempre do “interior” para o “exterior”, ab

interioribus ad exteriora. Quando faz uso das palavras “interior” e “exterior”, o filósofo se

refere precisamente, no primeiro caso, a finalidades e idéias e, no segundo caso, a meios e

expressões. Sendo assim, imita-se inicialmente a idéia (crença) relacionada a um fim (desejo)

para, posteriormente, dar-se a imitação das expressões designadas por esta crença e dos meios

utilizados para alcançar este fim.

86 Ibid., p. 263.

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Quando um rito religioso é adotado por uma seita, as crenças e os desejos a ele

vinculados já terão sido imitados. Seguindo a mesma lógica, muitas vezes já há imitação

mesmo quando os sinais exteriores de expressão não foram ainda impregnados em

determinado grupo social, como no caso acima descrito acerca das relações burguesia-nobreza

às vésperas da Revolução Francesa e no caso da conversão dos cristãos, tal como Tarde expõe

a partir de estudos de arqueólogos e do notável Tertuliano:

Por que há um momento em que não é imitado o lado interno do modelo, quer dizer a crença ou o desejo implicados na palavra ou no ato em questão que é reproduzido, mas o lado externo? É porque uma outra crença, um outro desejo, inteiramente ou parcialmente inconciliáveis com a primeira crença e o primeiro desejo, se expandem nos meios mesmos onde estes já estão expandidos. Assim, o modelo é atingido em seu âmago, mas continua a viver pela superfície, somente se encurtando ou se aniquilando sem cessar, até o momento em que uma nova alma lhe sobrevém. Nós sabemos pelos escritos de Tertuliano e as descobertas da arqueologia que os primeiros cristãos e as primeiras cristãs, apesar do fervor de sua fé e da sinceridade de sua conversão interna, continuavam exteriormente a viver, a se vestir, a cortar os cabelos, a se divertir como os pagãos, por mais que fossem indecências anticristãs as vestimentas e os divertimentos de que se tratavam.87

Subentende-se, ao deparar-se com a influência extralógica da imitação ab interioribus

ad exteriora, que o processo de contágio social implica, necessariamente, um jogo particular

em que a temporalidade é a principal operadora. A imitação se dá em gradações distintas de

tempo, em que a manifestação externa do signo imitado é tão-somente o termo final de um

fluxo imitativo que se iniciou com a adesão de um indivíduo a crenças e desejos de outro

indivíduo. A caracterização tardeana da influência extralógica da imitação que vai do interior

para o exterior nos demonstra que mesmo quando não se manifesta ainda a expressão do que

foi imitado, já houve contágio previamente, quando os fins e as idéias foram considerados

relevantes.

Uma outra influência extralógica tratada por Tarde diz respeito à imitação do dito

superior pelo considerado inferior. Este segundo ramo da imitação que se furta a explicações

lógicas é derivado do primeiro que acima descrevemos. Entretanto, como este ramo da

imitação é tão cheio de matizes, deve ser abordado separadamente. É isto o que faremos a

seguir.

87 Ibid., p. 268.

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3.2.2 A IMITAÇÃO DO DITO SUPERIOR PELO CONSIDERADO INFERIOR

Uma criança nasce e, por volta de um ano e alguns meses de idade, inicia-se no

maravilhoso universo da linguagem. Em pouco tempo, será capaz de articular palavras e

frases completas. O pequeno ser que começa a falar não o faz por operações lógicas próprias

manifestadas em duelos e uniões lógicas, mas pela forma mais elementar de contágio social,

pela imitação que, como vimos, prescinde de palavras. A criança depara-se, no seio da

família, com membros de sua casa que falam. Inicialmente, ela apenas ouvirá, esforçando-se

em assemelhar-se aos outros por meio daquele estranho artifício de que os adultos fazem uso.

Em seguida, passará a emitir seus primeiros gestos, suas primeiras palavras, que buscarão

atender a suas necessidades mais elementares. Ora, se estão excluídas as leis lógicas da

imitação neste caso, como se explicaria a aquisição da capacidade de comunicação gestual e

verbal das crianças?

Segundo Gabriel Tarde, pode-se explicar tal fenômeno por uma variação do que

considerou como imitação ab interioribus ad exteriora. A criança imitará, inicialmente, as

crenças e desejos daquele que considerará superior a ela no âmbito familiar.88 Sendo assim,

quando é estabelecida uma relação de um indivíduo ou de um povo que se consideram

inferiores em relação a, respectivamente, outro indivíduo ou outro povo, temos o que Tarde

considera como a imitação do superior pelo inferior.

A lei da imitação do que é considerado superior pelo que é tido como inferior não

impede que o dito inferior não seja imitado pelo considerado superior. Com efeito, se dois

seres são postos em contato por um determinado período de tempo, será inevitável que a

imitação se dê em mão dupla. Entretanto, a força da corrente imitativa será sempre, em

qualquer circunstância, maior do inferior em relação ao superior. Iniciamos este trecho do

capítulo com um exemplo da influência extralógica presente em relação a um indivíduo em

formação, mas não podemos abrir mão de indicar que a considerada superioridade demanda

forças de imitação também em relação a nações e grupos sociais como um todo. Por exemplo,

88 Quando mencionamos pessoas do âmbito familiar, lamentamos a inexistência, na língua portuguesa, de palavra que expresse tão bem o sentido que a palavra francesa maisonées possui. Tarde a emprega para designar todos aqueles que dividem um mesmo lar e que são, portanto, magnetizadores em potencial para a criança em fase inicial de desenvolvimento. Se traduzirmos maisonées por familiares, estaremos restringindo a intenção tardeana de alargar o sentido de família no que diz respeito à imitação dentro de casa. Segundo o filósofo, o pai da criança poderá ser o principal foco de suas imitações tanto quanto uma poderosa babá magnetizadora, por exemplo, seria. Quando Tarde afirma que a família é o berço da imitação, deve-se entender o sentido amplo que família adquire a partir do cotejo com a expressão maisonéés, empregada por ele nos escritos sobre o tema. Cf. TARDE, Gabriel. Écrits de psychologie sociale (choisis et presentes par A.M. Rocheblave-Spenlé et J. Milet). Toulouse: Edouard Privat, 1973, p. 174.

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em um estado qualquer, a imitação sempre se dará com mais intensidade das cidades do

interior em relação à capital: a modo de falar da capital, sua forma de andar, sua moda, seus

gostos por vezes excêntricos e incompatíveis com as tradições do interior etc... A ilogicidade

deste tipo de influência está precisamente nessas pequenas instâncias.89 Como explicar a

adesão tradicional a frutos típicos de regiões frias própria ao Natal brasileiro senão por esta

segunda influência extralógica da imitação? Neste caso, como em muitos outros, de nada

servem os jogos de necessidade versus opções que configuram tanto os duelos quanto as

uniões lógicas. Só valeu, na origem, o considerar-se inferior como razão da profusão de

nozes, passas e avelãs na ceia natalina brasileira em um dezembro de verão tropical. A lógica

cede lugar ao elemento extralógico.

Na disseminação da doutrina cristã, este tipo de influência extralógica teve papel

crucial, como nos demonstra habilmente Tarde em uma curiosa nota de seu As leis da

imitação:

À primeira vista, a lei da imitação de cima para baixo parece inaplicável à propagação do cristianismo, que se expandiu de início entre as classes baixas. É verdade que seus progressos foram bem pouco rápidos até o dia em que ele ganhou as classes superiores e mesmo a corte dos césares. Mas é importante, sobretudo, observar que o cristianismo começou a se reproduzir pelas cidades, pelas grandes cidades de início, para tão-somente ser propagado no campo, onde submeteu os últimos camponeses pagãos. Fustel de Coulanges (Monarchie franque, p. 517) ressalta esta propagação urbana da fé cristã. Pelas capitais se expandiu o cristianismo então, como o socialismo nos nossos tempos.90

Dados esses exemplos da imitação que vai de cima para baixo, ou da imitação do

superior pelo inferior, convém que esclareçamos alguns pontos importantes relacionados a

esse tipo de influência extralógica social. Em primeiro lugar, insistimos nas descrições tanto

da idéia de superioridade quanto da de inferioridade alertando que Tarde é cuidadoso ao

alertar-nos sobre o caráter profundamente histórico das designações de superior/inferior.

Evidentemente, a relação de superioridade e inferioridade estabelecida entre dois indivíduos

ou dois grupos de indivíduos é profundamente maleável, segundo os valores ora dos

indivíduos ora dos grupos. Sendo assim, é importante destacar que a relação hierárquica é

89 Em um ácido trecho de As leis da imitação, ao tratar da influência superior das grandes cidades, Tarde evidencia novamente sua ampla oposição aos princípios iluministas simbolizados na Revolução Francesa: “Paris senta-se no trono regiamente, sobre a província, mais do que jamais reinou certamente a corte sobre a cidade. A cada dia, pelo telégrafo ou o trem, ela envia à França inteira suas idéias, suas vontades, suas conversações, suas revoluções predeterminadas, seu vestuário, sua mobília pronta para usar. A fascinação sugestiva e imperativa que ela exerce instantaneamente sobre um vasto território é tão profunda, tão completa e tão contínua, que quase ninguém mais se impressiona. Esta magnetização tornou-se crônica. Ela se chama igualdade e liberdade”. TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 284. 90 Ibid., p. 285-6.

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fundamental na concepção tardeana dos mecanismos da imitação, mas que tal hierarquia não

é, de modo algum, um dado natural e a-histórico. Pelo contrário, ela só se constituirá no jogo

ininterrupto de forças que atuam em uma determinada instância temporal. Para compreender

como se estabelece uma relação de superioridade e de inferioridade, trata-se de saber quais

[...] são as quantidades que, conduzindo ou tendo conduzido um homem, um grupo de homens, à potência e à opulência, o tornam visível à admiração, à inveja, à imitação ambientes. Nos tempos primitivos, é o vigor ligado à destreza corporal, a bravura física; mais tarde, a habilidade para a guerra, a eloqüência na assembléia; mais tarde ainda, a imaginação artística, a engenhosidade industrial, o gênio científico. Em suma, a superioridade que se procura imitar é aquela que se entende; e aquela que se entende é aquela em que se crê ou que se considera adequada a fornecer os bens que se apreciam, porque eles respondem às necessidades que se experimentam e que, entre parênteses, têm por fonte a vida orgânica, é verdade, mas por canal e por modelo social o exemplo do outro.91

Ora, se a superioridade de alguns homens é considerada segundo valores sociais

engendrados de maneira distinta no desenrolar da história, restaria saber ainda o que

determinaria a diferenciação destes valores em um mesmo período histórico. Em suma, o que

faria com que alguns homens fossem tidos como superiores e outros como inferiores?

Segundo Tarde, tal hierarquia se constitui a partir do leque de invenções disponíveis em um

determinado tempo. Dadas as invenções típicas de um período, serão considerados superiores

os homens sociais capazes de melhor lidar com elas, aqueles que saberão melhor explorá-las.

Como as invenções típicas de um tempo não são nunca iguais às de outra época, aquele que

for considerado superior será, assim, sempre dependente da historicidade. É por essa razão

que

a descoberta das vantagens atreladas à permanência em cavernas e a invenção de armas de sílex, de arcos e de flechas, de lanças de osso, de fogo produzido pela fricção de lenha etc deram aos primeiros trogloditas seu ideal de felicidade; uma caçada feliz, roupas de pele, caça (humana, às vezes!) comida no fundo de uma caverna esfumaçada. Mais tarde, a descoberta de certas noções de história natural, e a invenção capital da domesticação dos animais, destinada a desenvolvimentos imensos, mudou o ideal, e não se sonhava senão com grandes rebanhos sob a vigilância de um patriarca. Depois, a descoberta dos primeiros elementos de astronomia e a invenção da domesticação das plantas, ou seja, da agricultura, a descoberta dos metais e a invenção da arquitetura, tornaram possível o sonho de grandes domínios povoados de escravos e dominados por um palácio, copiado em seguida em casas. Enfim, a descoberta de ciências, desde a física nascente dos gregos e a química balbuciante dos egípcios até nossos tratados de saber, e a invenção das artes e da indústria, do poema lírico ao drama ou dos moedores de pedra aos moinhos a vapor, permitiram conceber gradualmente a felicidade dos

91 Ibid., p. 291.

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nossos milionários, sua segurança em cédulas ou em títulos públicos em um hotel de Londres ou de Paris.92

Além da historicidade das concepções de superioridade e inferioridade na hierarquia

propulsora da imitação de cima para baixo, outro ponto merece nossa observação: ele diz

respeito à distância social entre o que se considera inferior e o que é tido como superior. Para

que haja efetivamente imitação de cima para baixo, é crucial que a distância entre os dois

indivíduos ou grupos de indivíduos envolvidos no processo seja grande o suficiente para que

fique clara a hierarquia entre eles, e pequena o bastante para que eles possam entrar em

contato de alguma forma. Caso contrário, ou seja, quando se estabelece uma relação

hierárquica entre dois indivíduos ou grupos de indivíduos, com uma distância social entre os

dois tão grande a ponto de impedir o contato entre eles (contato não necessariamente físico,

mas por via das opções de entretenimento comuns ou gostos literários, por exemplo), não é

possível que se dê a imitação. Desta forma, apesar de clara a hierarquia social configurada

entre um morador de rua e um grande empresário, dificilmente haverá, aí, uma corrente

imitativa de cima para baixo, dada a abissal distância social que separa os dois indivíduos. Por

outro lado, um comerciante de um bairro pobre e o mesmo industrial podem dar início a uma

corrente imitativa, se lêem o mesmo jornal, por exemplo. Em outras palavras, talvez fosse

correto afirmar que, nesse caso específico, só se implementa uma ampla rede de contágios

sociais se há um mínimo princípio de comunicação entre dois indivíduos ou grupos de

indivíduos. Em nossa leitura da teoria tardeana que privilegia a comunicação social, diríamos

que o compartilhamento de crença e desejo é o princípio básico para que haja a imitação no

sentido hierárquico designado por esta segunda influência extralógica por ele apresentada.

Em resumo, podemos destacar quatro mecanismos presentes no processo imitativo: no

âmbito lógico, os duelos e uniões lógicas; na esfera extralógica, a imitação de dentro para fora

e de cima para baixo. Ao passo que os duelos lógicos se dão quando duas opções de imitação

são apresentadas a um indivíduo para responder a uma única necessidade, as uniões lógicas

surgem quando duas opções se dão como soluções não-contraditórias para uma mesma

necessidade vigente. Normalmente, ao emergir no campo social uma nova invenção, tem-se

um período de aceleradas uniões lógicas cujo objetivo é fortalecer essa invenção (como as

palavras que brotam de uma nova língua antes do aparecimento de regras de ortografia). Em

seguida, dado o número de elementos sociais novos, tornam-se claras algumas contradições

que serão provisoriamente resolvidas em duelos lógicos. Finalmente, como conseqüência dos

92 Ibid., p. 292.

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duelos lógicos, tem-se um novo período de uniões lógicas, agora sob a égide de um

determinado conjunto de regras (em nosso exemplo, uma gramática).

Já em relação às influências extralógicas, vimos que a imitação se dá sempre do

interior para o exterior, de dentro para fora. Isto significa dizer, mais propriamente, que a

imitação de idéias e fins é sempre anterior à de expressões e meios. Por exemplo, na

conversão religiosa, imita-se inicialmente o dogma e posteriormente o ritual. Tal mecanismo

da imitação ressalta a duração do fluxo imitativo, em seu caráter não-imediato. Finalmente,

apresentamos a imitação que se dá de cima para baixo, ou daquele que se considera inferior

em relação ao dito superior. A capital que fornece modelos de comportamento, vestimentas

etc para as cidades periféricas é um bom exemplo desse tipo de influência.

Ainda nos contornos da imitação, cumpre apresentar e comentar um importante

instrumento sociológico de análise das correntes imitativas: a estatística. Sendo diretor da

seção de estatística criminal do Ministério da Justiça em Paris, de 1894 até sua morte, em

maio de 1904, e tendo publicado algumas obras importantes sobre o tema, Gabriel Tarde

naturalmente se interessaria pela estatística como aliada dos estudos da área que ajudava a

engendrar: a sociologia. Contudo, mantendo-se fiel a sua verve inovadora, Tarde institui uma

concepção bastante peculiar da estatística, como veremos no último bloco que compõe este

capítulo.

3.3 O VÔO DA ANDORINHA : A ESTATÍSTICA COMO INSTRUMENTO SOCIOLÓGICO

Em As leis da imitação, em especial em seu capítulo quarto, Gabriel Tarde apresenta a

estatística como o método sociológico por excelência.93 Convém, entretanto, que exponhamos

a leitura tardeana da estatística, que certamente destoa de boa parte dos pensadores em

ciências sociais, especialmente no século XIX. Para Tarde, a função da estatística é tão-

somente medir a expansão de cada uma das invenções propagadas por contágio imitativo. A

estatística está para a imitação assim como a arqueologia está para a invenção, como veremos

em nosso capítulo seguinte. As ações imitadas são o objeto de estudo da estatística, mas

apenas se as ações analisadas forem minuciosamente separadas de acordo com dois

princípios: primeiramente, analisa-se o crescimento, a estabilidade e o decréscimo das ações

similares separadamente (por exemplo, o desenvolvimento da indústria de armamentos de um

lado e o aumento do número de mortes por arma de fogo do outro); em seguida, estabelecem-

93 Ibid., p. 165.

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se as relações de início possíveis entre as séries separadas e, finalmente, as relações prováveis

entre elas.

A estatística é uma enumeração de atos parecidos, o mais semelhante que eles possam

ser. De que se ocupa a estatística senão destas invenções que são edições imitativas

proliferadas no mundo social? Por meio de seus números, presenciamos a gradual

consolidação de uma necessidade nova, de uma nova moda do público. Cada uma de suas

curvas gráficas é uma monografia histórica de algum tipo. Em resumo, a estatística deverá

determinar a potência imitativa própria a cada invenção, em um determinado tempo e em um

país dado, mostrando os efeitos favoráveis ou não produzidos pela imitação de cada uma delas

e, conseqüentemente, influenciando aqueles que, de posse dessas informações, possam refletir

sobre dar seqüência ou não a determinado modo de ação.

Bastante próprio da Modernidade é o entusiasmo do pensador com o que previa como

o desenvolvimento da estatística. Por exemplo, imagina como seriam proveitosos os dados

sobre todos os móveis presentes em todas as casas de cidadãos de um determinado país, e a

variação dos tipos de móveis ano a ano. Seria uma excelente fotografia de um estado social,

afirmou. Diante da limitação desta ciência em seu tempo (em que apenas as estatísticas

industrial, comercial, populacional e médica eram fortes), vislumbra a possibilidade de haver,

em um então futuro, uma estatística lingüística, por exemplo, que indicaria não só a expansão

de um determinado idioma, mas as variações e usos de cada vocábulo da língua.

Apesar do otimismo evidente com a estatística, Tarde não deixa de sublinhar um dado

fundamental: o pesquisador que fará uso desta metodologia não pode se esquecer, contudo, de

suas limitações. Ela é capaz apenas de mapear as ações, fruto de um constante

entrecruzamento de crenças e desejos dos mais diversos tipos. As crenças e os desejos, reais

motores de qualquer ação humana, entretanto, escapam de seus domínios, uma vez que tais

fluxos são inapreensíveis em sua processualidade ininterrupta. Por isso tarde salienta que

importa muito, ao percorrer as obras dos estatísticos, não se esquecer que, no fundo das coisas a se medir estatisticamente, estão as qualidades internas, as crenças e os desejos, e que muito freqüentemente, “a um número igual, os atos enumerados por eles exprimem pesos muito diferentes das coisas”.94

Além disso, a estatística expõe apenas as imitações realizadas, mas, por trás destas,

existe toda a série de imitações desejadas mas não efetuadas. Desconsiderar as ações não

efetuadas no bojo do grupo social seria um grande erro do teórico em ciências sociais.

94 Ibid., p. 166.

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Desejos e crenças não realizados em um dado momento podem ser motores de ações de outro

período: daí sua importância para os pesquisadores competentes da área. Já neste primeiro

sentido, no que torna claras suas limitações, entende-se por que a estatística não pode ser

encarada como instrumento de desvelamento da verdade.

Há um outro sentido, porém, mais curioso no reforço tardeano da relativização da

verdade absoluta que poderia ser medida cientificamente. Em um determinado trecho do

referido capítulo de As leis da imitação, Tarde afirma que a curva estatística demonstra o

movimento dos atos humanos por meio de um congelamento momentâneo da percepção

social. A imagem da percepção social é reforçada em uma comparação com a percepção

humana. Segundo o pensador, a estatística como meio por que se percebe a realidade social

seria tão ficcional quanto a percepção humana propriamente dita. Procuremos elucidar este

ponto: como indicamos no segundo capítulo desta dissertação, a modernização dos discursos

relativos à percepção humana no século XIX indicou que a percepção humana não seria mais

que o resultado final de uma multidão de micro-percepções que invadem os sentidos todo o

tempo. A percepção nada mais seria que uma economia de forças. Tarde afirma que, assim

como ao observarmos uma andorinha voando, ficamos com a imagem do trajeto do vôo do

animal em nossa retina quando o movimento em si já se teria dado, a estatística implementa a

descrição mais ou menos fiel do que é puro movimento: o sócius. O trajeto do vôo de uma

andorinha que permanece na retina do observador é como uma curva estatística.

De fato, Tarde estabelece entre os dois tipos de percepção uma diferença de grau, atrelada à

temporalidade. A única diferença entre a percepção estatística e a percepção humana é que a primeira requer um

desdobramento maior do tempo para ocorrer, enquanto a segunda dispõe de uma temporalidade mais restrita.

Ainda assim, o desenvolvimento da estatística poderia trazer, segundo Tarde, uma redução desta diferenciação

de grau, chegando a “um momento em que, para cada fato social que estivesse em realização, escaparia por

assim dizer automaticamente um número, que vai imediatamente tomar seu lugar nos registros da estatística

continuamente comunicada ao público e reproduzida em gráficos pela imprensa cotidiana”.95 Os escritórios de

estatística seriam comparados a olhos ou orelhas! Seria tão fácil para um homem reconhecer um amigo que está

caminhando em sua direção quanto saber das menores oscilações das correntes de opinião sobre determinada

religião. Haveria um dia – sonha o filósofo – em que seria tão absurdo um juiz ou um legislador desconhecer as

estatísticas criminais quanto um motorista de ônibus ser cego ou um maestro ser surdo.

Nossos sentidos – cada um com sua peculiaridade – já fazem uma estatística do universo exterior. Desta

forma, a percepção do som é calculada por meio do número de vibrações sonoras que delimitam determinado

tipo de som e a sensação de temperatura corresponderia à estatística das vibrações calóricas do éter, por

exemplo. O sociólogo constantemente identifica paralelos funcionais entre o comportamento individual subjetivo

e as ações de amplas coletividades, indicando como o indivíduo é comumente desatento a uma enorme

95 Ibid., p. 193.

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quantidade de experiência sensorial que por ele perpassa. Da mesma forma, a consciência social operaria de

acordo com um princípio de atenção e exclusão estreitas, por onde uma vasta quantidade de invenções sociais,

memórias e descobertas cairiam no esquecimento à medida que desaparecessem da “retina social”.

A defesa que Tarde faz da estatística implica, ainda, uma sugestão à imprensa de seu

tempo. As estatísticas nos jornais, então relegadas a uma parte inferior, poderiam destinar-se a

ocupar todo o meio de comunicação. Assim, cada

[...] escritório de redação não será mais que uma confluência de diversos escritórios de estatística, aproximadamente como a retina é um feixe de nervos especiais trazendo sua impressão característica, ou como o tímpano é um feixe de nervos acústicos. No momento, a estatística é um tipo de olho embrionário, similar ao dos animais inferiores que vêem o bastante para o reconhecimento de um inimigo que se aproxima ou de uma presa; mas já é um grande serviço que ela nos presta, e ela pode nos impedir assim de correr sérios perigos.96

Os jornais ideais, portanto, não seriam mais que reservatório de fatos, números e

comentários breves. Não haveria aqui, entretanto, uma defesa da “objetividade jornalística”,

como se poderia imaginar, uma vez que os próprios números advindos do saber estatístico são

considerados ficções por Tarde. A ficcionalidade da estatística, porém, não seria contraposta a

uma possível verdade alcançável, e isso por duas razões: primeiro porque, como vimos em

capítulos anteriores, a verdade para Gabriel Tarde não é mais do que uma forte crença

compartilhada; além disso, a estatística, como percepção social, seria tão ficcional quanto a

própria percepção humana. Estatística e percepção humana são comparáveis na medida em

que ambas são reorganizações redutoras de um contínuo de experiências plurais e em

constante diferenciação.

Finalmente, chegamos ao último ponto relevante no que diz respeito à abordagem

tardeana da estatística. Trata-se da formação do olhar de leitura dos gráficos. Uma vez

circunscrito o campo de aplicação da estatística, Tarde afirma que é preciso saber interpretar

suas curvas hieroglíficas, às vezes pitorescas e estranhas como os picos das montanhas, mas

freqüentemente sinuosas e graciosas como as formas da vida. Podem-se dividir as linhas

estatísticas em três: escarpas (encostas íngremes), platôs e declives.97

A leitura das curvas estatísticas, por influência da escola de Adolphe Quételet (1796-

1874), é geralmente concentrada nas linhas que formam um caminho constante no gráfico, o

96 Ibid., p. 195. 97 Jonathan Crary nota que, apesar de reconhecer a influência do pensamento tardeano em muitas áreas de seu trabalho, Deleuze e Guattari “estranhamente [...] jamais identificaram Tarde como uma das fontes para seu conceito de platô (que afiliam ao trabalho de Bateson). Tarde usa platô como uma figura flexível para processos e eventos naturais, sociais e estatísticos, incluindo a operação do desejo social”. CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture. Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 2000, p. 244.

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que, no vocabulário tardeano, representaria a estabilidade de uma determinada corrente

imitativa. Sem negar a importância das linhas horizontais, Tarde sugere, contudo, que seria

mais produtivo atentar menos às linhas horizontais e mais às linhas em ascensão. Se as linhas

horizontais indicam o equilíbrio de uma corrente imitativa, as linhas verticais mostrariam a

propagação grandiosa de um determinado tipo de imitação. O gráfico abaixo reproduzido

indica as taxas de casamentos no Brasil de 1979 a 1994. Segundo a escola de Quételet,

deveríamos atentar aos períodos de estabilidade (especialmente entre 1984 e 1985, entre 1987

e 1988 e entre 1991 e 1992). Para Tarde, porém, seria mais produtivo analisar os períodos de

propagação imtativa representados pelas linhas em ascensão (entre 1981 e 1982 e entre 1983 e

1984, por exemplo).

Fonte: Fundação IBGE, Anuário Estatístico do Brasil 1960/1991 e 1994

Figura 3: Gráfico estatístico – taxa de casamentos no Brasil de 1979 a 1994 Em um gráfico estatístico, se temos uma linha constante, isto significa que o aparente

equilíbrio das forças de imitação representadas pelas linhas horizontais das curvas é sempre

instável, uma vez que as correntes imitativas encontram-se a todo tempo em concorrência

umas com as outras. Assim, por exemplo, se a propagação imitativa do consumo de um

determinado produto de limpeza mantém-se estável, isto quer apenas dizer que a força de

imitação vinculada a este produto é igualmente forte à soma das correntes imitativas

concorrentes a ele. Trata-se, evidentemente, de uma situação instável, dado o constante

movimento de crenças e desejos que compõem o sócius.

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Nesta física social, algumas correntes imitativas, como o casamento monogâmico

cristão, por exemplo, permanecem normalmente estáveis porque tais invenções já tiveram um

grande tempo para sua propagação e consolidação. A cosmologia sociológica tardeana

permite que o pensador afirme que imitações deste tipo acabam tornando-se tão naturalizadas

quanto o clima, as doenças ou a morte, por exemplo. Em suma,

[...] físicas ou vivas, todas as realidades exteriores nos dão o mesmo espetáculo de ambições infinitas, irrealizadas e irrealizáveis, que se incitam e se paralisam reciprocamente. Isto que chamamos de fixidez, imutabilidade das leis da natureza, realidade por excelência, não é no fundo mais que sua impotência de ir mais longe em seu caminho verdadeiramente natural, de se realizar mais plenamente.98

O erro de Quételet, segundo Tarde, pode ser explicado historicamente. Os primeiros

estudos estatísticos abordavam questões relacionadas a fatores mais ou menos constantes,

como o clima, a mortalidade, a natalidade etc... Desta constância relativa, generalizou-se o

método de buscar, nas curvas estatísticas, tudo o que remetesse às séries homogêneas. Em

instâncias como o crescimento populacional, por exemplo, notamos algumas relativas

ondulações ao longo dos anos. Se isolarmos um dos fatores relacionados a esta instância – o

desejo de paternidade, por exemplo, vemos que este fator apresenta uma dupla vertente: a

primeira, a do desejo natural e instintivo de ser pai; a segunda, do desejo social e imitativo de

tornar-se pai. Enquanto a primeira vertente permanece comumente estacionária, a segunda

tende às mais diversas flutuações, ligadas a alterações de costumes, leis, intervenções

religiosas etc... Como exemplo, Tarde cita a descoberta da América por Colombo, que

incentivou um grande aumento da natalidade no novo continente, ou ainda a proliferação do

cristianismo e o aumento do desejo de obter uma família maior para fornecer mais servos ao

Senhor.

Qualquer necessidade (como a que envolve a paternidade, por exemplo, mas também

outras, como a necessidade da locomoção a vapor, e mesmo as necessidades de igualdade, de

liberdade e de verdade) obedece a uma regra geral: permanece relativamente estacionária

durante um determinado período, até que alguma fonte inventiva fomenta a irradiação

geradora e imitativa desta necessidade. Inicialmente, ela sofrerá a concorrência de outras

necessidades presentes e, vencendo-as, poderá propagar-se em grande escala, até que uma

nova invenção ou novas barreiras criadas por sua própria propagação colaborem no sentido de

98 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation., op. cit., p. 177,178.

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promover um novo equilíbrio das forças. Sendo assim, podem-se extrair três fases para o

desenvolvimento de uma invenção propagada por imitação:

lento progresso no começo, progresso rápido e uniformemente acelerado no meio, enfim retardamento crescente deste progresso até que ele pare: tais são então as três eras de todos estes verdadeiros seres sociais que chamo de invenções ou descobertas.99

Dentre essas três fases da vida de uma invenção propagada por imitação, teria maior

valor teórico a segunda, ou seja, aquela que indica uma ascendência do número de atos

imitados. A parte estacionária, privilegiada pela escola de Quételet, não seria mais que o fim

de um processo. Desta forma, a interpretação das curvas gráficas pelo estatístico deveria

seguir o modelo previamente exposto, considerando, todavia, que as curvas apresentarão

constantemente desvios – verticais ou horizontais – que devem ser compreendidos como

interferência-combinação de uma outra invenção (no caso do desvio ascendente) ou

interferência-luta de outra invenção (no caso do desvio descendente). Segundo Tarde, se uma

curva estatística se afasta completamente deste modelo, isto é devido, principalmente, à coleta

incorreta dos dados ou à aproximação destes por um critério de similitude que não seria

apropriado.

O poderoso instrumento da estatística, porém, restringe-se, como sabemos, ao campo

das imitações, principal tema deste capítulo. Um estatístico, por mais competente que fosse,

não seria capaz de prever as invenções, estes motores de diferenciação do social. No próximo

capítulo, trataremos apenas da força social da invenção, que já mencionamos algumas vezes,

porém não abordamos minuciosamente.

99 Ibid., p. 186.

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4. “O S LOUCOS GUIAM OS SONÂMBULOS”: A POTÊNCIA DA INVENÇÃO

O afastamento de Gabriel Tarde com relação às concepções modernas que ressaltam a

necessidade de recorrência à sobriedade da razão humana em meio ao contato social lhe

permite afirmar, com naturalidade, que a vida em sociedade é repleta de “sonâmbulos e

loucos”, ou seja, imitadores e inventores. Nos dois capítulos anteriores, propusemo-nos a

explicitar as características da força da imitação, sua função social de criação de similitudes,

suas leis lógicas e extralógicas, bem como sua metodologia de análise, por meio da estatística.

É hora de tratarmos, neste capítulo, dos “loucos” inventores. A função social dos

sonâmbulos é a de equilibrar as massas de crença e as forças de desejo por meio da

propagação imitativa. Uma vez que a imitação torna indivíduos semelhantes na medida em

que crêem e desejam, um sistema anteriormente em desequilíbrio (indivíduo A com grande

grau de crença cristã, por exemplo, e indivíduo B, ateu) torna-se mais equilibrado (indivíduo

A torna-se ateu por imitação do indivíduo B). Ora, mas se as massas de crença e as forças de

desejo fossem somente regidas por uma força de equilíbrio, seria lógico pensar que em um

determinado período histórico cessaria a mudança social, já que os graus de crença e desejo se

equiparariam. Se só houvesse a imitação, o sócius seria, dentro de algum tempo, pura

homogeneidade.

Ocorre que, pelo contrário, a vida social deseja propagar-se mais e mais, e não se

organizar e homogeneizar-se. É por esta razão que é necessária a força social da invenção. É

por meio da invenção que novas fontes de crença e desejo são criadas, aumentando as massas

de fé e paixão. Em um trabalho conjunto, imitação e invenção concretizam o belo baile

desgovernado que é a vida em sociedade. Como, para além da necessidade de equilíbrio de

crenças e desejos, garantidas por imitação, há a urgência do aumento dessas forças, deverão

surgir, forçosamente, novas descobertas sociais. A criatividade é o motor do aumento da

crença e do desejo imanentes, imprescindíveis para a lógica social. Para um pensamento

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ancorado na heterogeneidade ininterrupta dos seres que compõem o universo, é mais fácil

compreender a existência de uma força de invenção e descoberta que uma força de criação de

semelhanças (a imitação). A eclosão de variações é natural na medida em que

basta crer na heterogeneidade, na autonomia inicial dos elementos do mundo que, encobrindo os frutos das virtualidades desconhecidas e profundamente incognoscíveis, mesmo para uma inteligência infinita, antes de sua realização, mas realizando-as seguindo sua lei própria, no momento desejado por esta lei, fazem jorrar das profundezas do ser, à superfície do fenômeno, as reais novidades impossíveis de se prever anteriormente. [...] Neste sentido também é verdadeiro dizer que o acidental é a fonte ou o ponto de partida do necessário, e que não existe desenvolvimento que não tenha tido a colaboração de milhares de acidentes.100

Quem seriam os inventores, esses loucos que guiam101 os sonâmbulos? Tarde nos

responde que “sozinhos, alguns espíritos selvagens, estranhos, em sua bolha, no tumulto do

oceano social em que eles são mergulhados, ruminam aqui e lá problemas esquisitos,

totalmente desprovidos de atualidade. E estes são os inventores de amanhã”.102 Os inventores

manifestam sua heterogeneidade primeira por meio de suas descobertas e de suas criações.

Por adaptar

[...] seus dogmas e seus preceitos religiosos a seus conhecimentos e a suas necessidades, por adaptar também seus costumes e suas leis, sua moral mesmo, os indivíduos e, principalmente aqueles que se sentem os mais inadaptados em seu meio, senão a eles mesmos, fazem da mesma forma esforços incessantes que terminam em pequenos achados.103

Algumas questões naturalmente se nos impõem: se todos são inicialmente

heterogêneos, por que alguns são inventores e outros não? Como se dá uma invenção? Que

leis a regem?

Antes de tudo, é preciso que se faça uma distinção importante. De fato, todos os

elementos que compõem as três esferas descritas por Tarde (físico-química, vital e social) são

dotados de uma potência própria de diferenciação, característica básica de seu estado

100 TARDE, Gabriel. La logique sociale. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 255, 256. 101 Apesar de considerar as forças de imitação e de invenção igualmente importantes para o desenrolar da vida social, Tarde é sutil – porém nítido – ao considerar os homens inventores superiores aos homens mais imitadores. Como exemplo, citamos um trecho de Les lois de l’imitation a respeito da estatística em que tal visão sobre os inventores torna-se cristalina: “É assim que a estatística, cuja regularidade não exprime, no fundo, nada além da subordinação imitativa das massas às fantasias ou às concepções individuais dos homens superiores”. TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 180. Meu grifo. 102 Ibid., p. 50. 103 TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie. Québec: L’Université du Québec, 2002, p. 65. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 4 jan. 2007.

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monádico. Como temos insistido no presente trabalho, quando se parte da diferença contínua

dos seres, entende-se que toda formação de ordem e semelhança é transitória, efetuada por

conta da força da imitação no campo social, da ondulação no campo físico-químico e da

geração no campo vital. No que diz respeito ao social, entende-se que toda imitação, por mais

forte que seja, depende de uma marca singular do indivíduo por quem ela perpassa. Desta

forma, não existem dois falantes idênticos de uma mesma língua, pois, apesar de se

assemelharem quanto ao idioma por imitação, cada falante dará à linguagem sua nuance

pessoal, expressando sua singularidade. Em certo sentido, podemos dizer que esta afirmação

da singularidade diferenciadora é uma micro-invenção.104

Contudo, trataremos da invenção em seu aspecto mais grandioso, como força

responsável pelo aumento da crença e do desejo sociais, engendrada pelos imprescindíveis

loucos da história. Tais loucos, porém, não são necessariamente homens ilustres reconhecidos

pela tradição, apesar de poder bem sê-los. Os maiores inventores são homens de todas as

camadas sociais que fazem uma “revolução sem combate e conquistam uma vitória sem

guerra”105, como belamente afirmou Tarde em sua Lógica social. É esta revolução silenciosa

que interessa à vida, que lhe é própria e necessária. Afinal, o que pode nascer

[...] da união do monótono e do homogêneo senão o aborrecimento? Se tudo vem da identidade e se tudo visa à identidade e para ela vai, qual a fonte desse rio de variedade que nos deslumbra? Estejamos certos, o fundo das coisas não é tão pobre, tão monótono, tão descolorido quanto supomos. Os tipos são apenas freios, as leis são apenas diques, opostos em vão ao transbordamento de diferenças revolucionárias, internas, nas quais se elaboram secretamente as leis e os tipos de amanhã, e que, apesar da superposição de seus jugos múltiplos, apesar da disciplina química e vital, apesar da razão e da mecânica celeste, acabam um dia, como os homens de uma nação, derrubando todas as barreiras e fazendo dos próprios cacos um instrumento de diversidade superior.106

Se a imitação depende de pelo menos dois indivíduos para realizar-se, a invenção é

uma força puramente individual. Aqui, mais uma vez, presenciamos o inter-relacionamento

das diferentes esferas universais descritas por Tarde. O gênio inventivo surge, inicialmente,

por um encontro puramente casual entre um espermatozóide e um óvulo.107 Temos, assim, sua

dimensão vital explicitada. Entretanto, será o relacionamento deste indivíduo nascido por

acaso com as diversas correntes imitativas a que terá acesso ao longo da vida que permitirá

104 “Não há idéia minimamente pessoal que não seja uma invenção em determinado grau”. TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit., p. 275. 105 Ibid., p. 302-3. 106 TARDE, Gabriel. Monadologia e Sociologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 78. 107 Cf. TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit., p. 265.

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que ele possa concretizar sua potência inventiva especial. Em dada medida, todos os seres

sociais são dotados de uma potência inventiva razoável, advinda da heterogeneidade inicial.

Contudo, alguns deles são especiais – os “loucos” – e deles advém o aumento da fé imanente

por meio de suas grandiosas invenções.

Sabe-se que o social pulsa ininterruptamente em razão das diferenças que poderiam se

afirmar. Entretanto, apenas algumas delas são tornadas reais por meio dos inventores. O

sócius é composto por infinitas virtualidades inventivas que poderiam ser atualizadas, mas

que não o são por razões determinadas. Tarde ressalta que o real social que se nos apresenta –

ou seja, as invenções e imitações que se propagam – só é manifestado porque algumas

virtualidades foram atualizadas. Logicamente, para o funcionamento do sócius é

imprescindível uma quantidade inestimável de crenças e desejos abortados. Logo, as derrotas,

os desastres de que a história é semeada

[...] não são nada em vista de outras ruínas, de tantas outras catástrofes que não se vêem, mas que não foram menos dolorosas. Quantos planos destruídos próximo de serem realizados! Quantas esperanças desfeitas quando ainda em formação! Se nós pudéssemos ver, entrever apenas as partes inferiores da história, a circulação do não-expressado e do irrealizado através de todos os homens de uma geração, a passagem estéril desta multidão invisível de idéias, de crenças, de intenções, de aspirações, que são comunicadas todas por baixo sem ter podido ser traduzidas em atos nem mesmo sempre em palavras, ficaríamos estupefatos com tudo o que é abortado mesmo nos indivíduos mais privilegiados.108

O que se efetiva em sociedade, o que nela se realiza, não é mais que um caso do

possível. Ocorre que as possibilidades virtuais que se atualizam só assim o fazem por estarem

em um grau mais próximo daquelas invenções que já foram efetuadas. Por exemplo, os filhos

que um homem teria de tal mulher, se ele tivesse se casado com ela em vez de ter se casado

com uma outra,

[...] são os possíveis de primeiro grau; os filhos que ele poderia ter tido com outras mulheres reais ou possíveis são os possíveis de segundo grau, e assim por diante. Pode-se deduzir indefinidamente, porque é certo que as leis da vida seriam aplicadas a esses filhos hipotéticos do milésimo ou do milionésimo grau, assim como a nós. Continuando, chegar-se-ia a concluir que o Impossível é um possível de grau infinito.109

Desta forma, por mais que todos tenhamos heterogeneidades advindas de nossa

condição monádica, a atualização das virtualidades diferenciais que nos compõe só pode se

108 Ibid., p 259. 109 Ibid., p. 257. Grifo meu.

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dar em um determinado contexto histórico em que o que já se realizou aproxima-se em graus

variados das virtualidades que não se realizaram. Se o Impossível, como afirma Tarde, é um

possível de grau infinito, isto quer dizer que o impossível pode se realizar se todo um cortejo

de possíveis anteriores a ele forem se atualizando ao longo da história. Em suma, não há

impossibilidade eterna para a vida social. Da mesma maneira, as invenções humanas não se

dão desconectadas de um contexto histórico-social, mas, pelo contrário, são atreladas a ele de

modo irrevogável. Partindo-se do pressuposto da existência, por um lado, de elementos

sociais reais que são imitados e, portanto, compõem a ordem social e, por outro, de inúmeros

elementos sociais virtuais decorrentes do fundo de heterogeneidade dos indivíduos, uma

invenção é tão mais possível quanto menor for o grau de distância entre o elemento já

existente e o elemento virtual dado. Por exemplo, a invenção da telegrafia elétrica se dá em

meados do século XIX em decorrência de invenções anteriores já amplamente imitadas, como

a eletricidade e o magnetismo. O advento da eletricidade como elemento real trouxe consigo

todo um cortejo de possíveis, dentre os quais a telegrafia elétrica.110 Entretanto, se tivesse

emergido em outro período histórico, certamente outras invenções tornar-se-iam reais.

Portanto, dada a profusão de abortos inventivos que compõem o movimento do sócius,

não se pode corroborar, mais uma vez, em Gabriel Tarde, a existência de um progresso

contínuo e unilinear. Isto porque

[...] o progresso social se efetua por uma seqüência de substituições e acumulações. É importante distinguir estes dois procedimentos de maneira assegurada, e o erro dos evolucionistas é de confundi-los tanto aqui como em todo lugar. A palavra evolução pode ter sido mal escolhida. Nós podemos dizer, entretanto, que há evolução social quando uma invenção se expande tranqüilamente por imitação, o que é o fato elementar das sociedades; e mesmo quando uma invenção nova, imitada por sua vez, se enxerta em uma precedente, que ela aperfeiçoa e promove. Mas, neste último caso, por que não dizer, sobretudo, que há inserção, o que seria mais preciso? Uma filosofia da inserção universal seria uma feliz retificação levada à teoria da Evolução universal. – Enfim, quando uma invenção nova, micróbio invisível no começo, mais tarde doença mortal, conduz uma invenção antiga, a que ela se atrela, um germe de destruição, como podemos dizer que a mais antiga evoluiu? O Império Romano evoluiu no dia em que a doutrina de Cristo nele inoculou o vírus de negações radicais opostas a seus princípios fundamentais? Não, há neste caso contra-evolução, revolução se assim se quiser, mas de forma alguma evolução.111

110 Parece-nos interessante abordar o surgimento de tecnologias de comunicação por esta perspectiva tardeana. A eletricidade não conduz necessariamente ao telégrafo, mas o torna realizável. Seria preciso identificar, na sociedade do século XIX, indícios de crenças e desejos em relação à obtenção de uma comunicação à longa distância de maneira rápida e efetiva. Tal tendência moderna é facilmente identificada em diversas práticas discursivas da época, como na fisiologia de Hermann Helmholtz e Emil du Bois-Reymond e na literatura como, por exemplo, na novela In the cage, de Henry James (1898). 111 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 243.

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Portanto, com Tarde e seus conceitos de imitação e invenção, ambas forças atuantes

em esfera infinitesimal, afastamo-nos radicalmente de qualquer resquício de hegelianismo,

notadamente a concepção de evolução por um desvelamento gradual do Absoluto. É possível,

entretanto, pensar em pequenas evoluções, em jogo constante com contra-evoluções ou

revoluções. Os estudos da área de comunicação social, freqüentemente contaminados de

epocalismo irrefletido, em muito seriam enriquecidos com essa vigorosa colaboração

tardeana.

Por ora, tratemos, finalmente, das leis da invenção, assim como fizemos em relação às

leis da imitação, no capítulo anterior. As invenções podem ser regidas por leis exteriores e

interiores. Enquanto aquelas dizem respeito a condições para o eclodir inventivo que se dão

fora do indivíduo, estas englobam os procedimentos que se dão no indivíduo inventor.

Abordemos, de início, as leis exteriores.

4.1 AS LEIS EXTERIORES DA INVENÇÃO

As leis exteriores podem ser de ordem vital ou de ordem social. Já mencionamos mais

acima o que seria uma lei exterior da invenção de ordem vital: ela se refere exclusivamente

aos encontros fortuitos na esfera biológica, cruzamentos felizes que resultam, acidentalmente,

em indivíduos dotados.

No que se refere às condições exteriores sociais da invenção, entende-se que qualquer

invenção resulta de um cruzamento feliz de duas correntes de imitação em um indivíduo

dotado. Sendo assim, nenhuma invenção se dá unicamente pelo gênio inventivo, apartado da

sociedade, como pressuporiam concepções de caráter romântico acerca da genialidade autoral.

Respeitando a relação entre o grau das correntes reais de imitação e das virtualidades

inventivas, tem-se que

[...] uma idéia nova é uma combinação de idéias antigas, surgidas em dois lugares distintos e freqüentemente bem distantes, e a primeira condição para que elas se combinem é seu encontro simultâneo em um cérebro próprio a combiná-las, e quanto mais a extensão dos Estados, o recuo da fronteiras, facilita a expansão imitativa destas invenções elementares, cada uma a partir de sua fonte original, mais há chances de estas irradiações de imitação interferirem em uma cabeça engenhosa ou genial.112

112 TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit., p. 267.

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Podemos, assim, estabelecer, no contexto das leis exteriores da invenção, dois fatores

importantes: a distância entre os indivíduos que detêm duas correntes de imitação distintas e o

número de indivíduos que detêm tais correntes de imitação. Se A é uma determinada força de

imitação (o conhecimento algébrico em matemática, por exemplo) e B é outra (o

conhecimento de geometria), a aplicação da álgebra à geometria dependerá, no que tange às

leis exteriores da invenção, da proximidade dos indivíduos que possuem conhecimento de

álgebra e dos que detêm o saber geométrico e, ainda, do número de indivíduos possuidores

desses saberes. Logo, se A e B são correntes de imitação, o surgimento de uma invenção X se

dá segundo as seguintes leis: quanto mais próximos geograficamente estiverem os indivíduos

que detêm A e B, maior será a possibilidade da eclosão de X e quanto mais pessoas tiverem

conhecimento de A e de B, maior a probabilidade de se alcançar X.

Há, contudo, um alerta dado por nosso filósofo no que tange ao grau de disseminação

das correntes imitativas. Tarde atenta para o fato de que algumas imitações são tão

profundamente enraizadas no corpo social que dificilmente são pauta para o gênio inventivo.

Ele simplesmente as esquece em meio ao turbilhão sonambúlico em que está imerso. É por

esta razão que, muitas vezes ao longo da história, elementos que seriam facilmente inventados

demoram anos e, às vezes, séculos para serem implementados. Nesses casos, quando

finalmente surge a invenção, surpreendem-se os homens sociais, que freqüentemente se

indagam: “como não havíamos pensado nisso antes?”

As leis exteriores da invenção são, portanto, de caráter vital – cruzamento reprodutivo

que dá origem ao elemento social primário, o indivíduo – e de caráter social – correntes

imitativas que podem se cruzar ou não, de acordo com a distância entre elas e do número de

indivíduos que as possuem. Resta apontar as leis ou condições interiores da invenção.

4.2 AS LEIS INTERIORES DA INVENÇÃO

Uma vez que, no capítulo anterior, discorremos acerca das leis lógicas da imitação,

formada por duelos e uniões lógicas, nos serão mais acessíveis as leis interiores da invenção.

Isto porque tais leis se estruturam segundo os mesmos moldes das leis lógicas da imitação. Ao

passo que as leis exteriores da invenção são condições que ocorrem fora do homem social, as

leis inventivas interiores se processam apenas no âmbito individual. Quando um inventor se

depara com duas correntes de imitação distintas, inevitavelmente será palco de um exuberante

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espetáculo de uniões e duelos de crenças e desejos, cujo resultado final será, caso seja bem-

sucedido em sua empreitada, uma invenção.

A comparação das leis lógicas da imitação com as leis interiores da invenção deve ser

bastante cuidadosa, tendo em vista que os cruzamentos de correntes imitativas no inventor são

necessariamente mais profundos e apresentam um alcance maior que os cruzamentos

imitativos. Quando duas correntes de imitação

[...] se reúnem e se aliam, isto significa simplesmente que uma contribui em fazer crescer a outra: a fabricação de bicicletas contribuiu para ativar a fabricação da borracha, e vice versa; a das prensas estimulou a do papel, e reciprocamente; a vulgarização de um ramo da ciência, por exemplo, da acústica, ajudou a vulgarização de um ramo conexo, por exemplo, o da óptica. Ao mesmo tempo, em razão mesmo dessa difusão, o desejo a que responde cada um desses produtos se intensifica em todos aqueles que os provam, e a fé em cada uma dessas teorias se fortifica em cada um dos que as conhecem. Mas, quando duas invenções se reúnem enquanto invenções, isto quer dizer que uma nova invenção (ou descoberta) nasceu, graças aos que primeiro a utilizam, uma servindo de meio a outra que lhe serve de fim, ou servindo de conseqüência a outra que lhe serve de princípio, ou uma e outra unindo-se paralelamente, como meios para um mesmo fim, como conseqüências de um mesmo princípio. A óptica e a acústica são reunidas de forma que um dia, no cérebro de um físico, é formulada a teoria ondulatória da luz assimilada ao som [...]. A lei da gravitação planetária e as leis da queda na superfície da Terra foram reunidas no cérebro de Newton, em que elas produziram a fórmula da atração universal, que as atrela intimamente umas às outras.113

É crucial que salientemos que esse embate de crenças e desejos, ajustes, duelos,

acréscimos, uniões etc, que se dão no indivíduo, dependem menos de uma consciência

racional que estabeleceria as relações e mais de uma batalha de desejos e crenças pulverizados

do inventor. Em outras palavras, a descrição tardeana de leis tanto interiores quanto exteriores

da invenção reforçam a idéia de que o inventor é mais um local em que se dão felizes

cruzamentos de correntes de imitação e menos um gênio auto-suficiente, desvinculado de

condições histórico-sociais. Como se dão os acordos lógicos e teleológicos no inventor senão

por uma sucessão de hipóteses lógicas e não-lógicas que convivem umas com as outras,

negam-se ou se confirmam, e que têm na invenção realizada o caminho mais curto para a

aproximação de dois estados distintos, mas que poderiam visar um mesmo fim?

Percorremos, enfim, as leis do surgimento da invenção em suas variações exteriores

(vitais e sociais) e interiores (duelos e uniões lógicas que se dão no inventor). Mas o que

ocorre quando, formulada por um louco inventivo, uma invenção é comunicada e, portanto,

passa a fazer parte do corpo social? Seguramente, a necessidade a que a invenção formulada

atende já apresenta, no meio social, algumas respostas em antigas invenções. Quando uma

113 Ibid., p. 273.

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invenção prolifera-se no corpo social, ou seja, quando ela é imitada, dois destinos lhe são

possíveis: ela vai acumular-se a outras invenções já existentes e todas reforçar-se-ão umas às

outras ou, então, vai substituir uma ou mais invenções por meio de um processo um pouco

mais longo. Cabe, então, a indagação acerca de seu destino em sociedade.

4.3 O DESTINO DAS INVENÇÕES: ACÚMULOS OU SUBSTITUIÇÕES

A dupla necessidade social de incremento e equilíbrio da crença e do desejo é efetuada

por meio dos acúmulos e das substituições, respectivamente. Enquanto os acúmulos de

invenções, propiciadas pelas uniões lógicas de toda sorte, promovem o aumento da crença e

do desejo em determinada instância social, as substituições, implementadas pelos duelos

lógicos, reduzem a crença e o desejo na instância social substituída. Por exemplo, ter-se-ia um

artigo industrial que não é mais consumido em razão do surgimento de outro mais eficaz.

Mais uma vez, a teoria tardeana recorre aos duelos e uniões lógicas para dar conta dos micro-

processos sociais em constante diferenciação. Entretanto, assim como não confundimos as leis

lógicas da imitação com as leis lógicas da invenção, não o faremos em relação às leis de

propagação de uma invenção. Apesar de também se dar por duelos e uniões lógicas, a

propagação das invenções não pode ser confundida com a das imitações pois, enquanto estas

se dão basicamente por repetições, aquelas se dão por adaptações.114 Além disso, enquanto os

duelos lógicos da propagação das invenções resultam em invenções que substituem outras já

existentes, as uniões lógicas de invenções resultam em invenções que se acumulam umas às

outras. A exemplificação a partir das próprias instâncias sociais nos faz compreender melhor a

diferenciação entre propagação imitativa e propagação inventiva:

[...] é preciso evitar confundir, como se faz freqüentemente, o progresso da instrução, simples feito da imitação, com o progresso da ciência, feito da adaptação; o progresso da industrialização com o progresso da indústria mesma; o progresso da moralidade com o progresso da moral; o progresso do militarismo com o progresso da arte militar; o progresso da língua, entendida por sua expansão territorial, com o progresso da linguagem, entendida por seu refinamento gramatical ou pelo enriquecimento de seu dicionário.115

114 TARDE, Gabriel. Les lois sociales: esquisse d’une sociologie. op. cit., p. 58. O tema da adaptação será mencionado também no próximo capítulo, juntamente ao da oposição. 115 Ibid., p. 58.

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Enquanto instrução, industrialização, moralidade, militarismo e expansão da língua

são propagações puramente imitativas, a ciência, o avanço da técnica industrial, dos valores

sociais, da arte militar e do refinamento lingüístico são propagações puramente inventivas.

Estabelecida esta distinção, vejamos, então, as leis de propagação da invenção.

Quando uma invenção, como um novo ritual católico, por exemplo, insere-se no meio social e

reúne-se a outras invenções mais antigas (um dogma católico fortemente penetrado), tem-se

uma união lógica de invenções. Como resultado das uniões lógicas das invenções, tem-se

geralmente ora uma unanimidade parcial ora uma unanimidade absoluta. O exemplo religioso

é, mais uma vez, bastante significativo. As invenções religiosas, segundo Tarde, parecem

desfrutar de tal unanimidade de forma mais completa que as de outras instâncias sociais. Elas

concentram grande massa de fé, ao determinar direcionamentos éticos únicos, exemplos

únicos a serem seguidos, por exemplo. Talvez, entretanto, pudéssemos acrescentar que o

advento da ciência e de sua vontade de verdade tenham vindo representar uma grande

concorrência à religião, no sentido da procura por unanimidades absolutas ou relativas

provenientes de uniões lógicas.

Já no caso dos duelos lógicos, quando uma invenção entra em conflito com outra já

existente por responder a uma necessidade social, há diversos caminhos possíveis para a

resolução do problema. As invenções só lutam entre si para disputar a imitação social. Os

duelos lógicos de invenções são contendas tão-somente pela imitação. Sendo assim, esboçam-

se sempre cinco soluções possíveis para os duelos lógicos de invenções que se propagam. Tais

resoluções são detalhamentos da luta por contágio já resumida no capítulo anterior, quando

tratamos das leis lógicas da imitação.

A primeira solução ocorre quando uma das invenções, violenta ou pacificamente,

extermina a outra, que deixa definitivamente de ser imitada. Seria o caso de uma língua nativa

que desaparece com a invasão de um povo que subjuga os falantes do idioma. Uma segunda

solução seria quando há a contradição de um costume com uma novidade e se preserva a

forma do costume, apesar de seu conteúdo ter sido alterado. Por exemplo, quando o costume

de inclinar o tronco em reverência deixa de ser sinal de obediência ao suserano para tornar-se

mero sinal de respeito em um cumprimento. O terceiro caso é semelhante, e se dá quando um

costume se subordina a uma novidade, permanecendo vivo. Isto ocorre, por exemplo, quando

os deuses da religião de uma determinada cidade se subordinam aos deuses da religião do

povo conquistador. O quarto caso existe se a novidade vence o costume, mas não o destrói,

deixando-o sobreviver com determinados limites. Por exemplo, os dialetos que permanecem

sob a preponderância de uma língua oficial. Finalmente, a quinta solução se implementa se há

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uma conciliação real ou aparente de dois termos por conta de uma descoberta de outra ordem.

Como exemplo, podemos citar a disputa de dois grupos étnicos distintos por hegemonia

política e a sua posterior resolução quando se conquista uma nova faixa territorial, para onde

um desses grupos migraria.

Se tanto a elaboração da invenção como sua expansão obedecem às leis anteriormente

expostas, subentende-se uma questão pertinente: existiria algum instrumento de medição da

expansão de uma invenção em um determinado local? Em outras palavras, haveria, em

relação à invenção, um método de análise correspondente ao que a estatística representa para

a imitação?

4.4 A ARQUEOLOGIA : EXPLORAÇÃO DAS INVENÇÕES DO PASSADO

Dada a heterogeneidade pulsante dos elementos que compõem a esfera social e dado o

caráter puramente arbitrário inerente à formação de uma invenção (como o cruzamento vital e

o contato do indivíduo inventor com as correntes imitativas convenientes à produção da

invenção), Tarde enfatiza que não há instrumento técnico racional que nos permita controlar o

inesperado intrínseco à vida, o acaso maravilhoso que determina rumos distintos em cada

segundo de vida social. Sendo assim, seria impossível prever o surgimento de uma invenção.

Não haveria, portanto, nenhum método para ser utilizado com as invenções presentes. Não há

paralelo, na invenção, com o que a estatística realiza na imitação, mapeando uma corrente

imitativa e, em alguns casos, prevendo o desenrolar dos fatos caso nenhuma explosão

inventiva altere o rumo da corrente imitativa que se analisa.

Haveria, entretanto, para o pensador, uma interessante aliada técnica no sentido de

estabelecer relações entre diversas invenções já existentes: a ciência da arqueologia. O ofício

de um arqueólogo pressupõe o esforço de estabelecer conexões diversas entre o conhecido e o

desconhecido das civilizações pesquisadas. Um novo fragmento empoeirado que

inesperadamente é descoberto em uma escavação é o elemento desconhecido que deverá ser

relacionado a toda uma rede prévia de saberes, eles mesmos resultantes de escavações

anteriores. Ao buscar mapear historicamente os objetos que descobre, o arqueólogo acaba por

estabelecer a filiação das invenções sucessivas. É desta maneira que se sabe que a invenção da

arte árabe é filiada tanto à arte grega quanto à arte persa e que a arte grega, por sua vez, é, em

grande medida, inspirada nas invenções da arte egípcia.

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Enquanto a estatística se propõe a investigar as ações imitativas e medir a expansão de

cada uma delas, a arqueologia incumbe-se das obras humanas no sentido de buscar sua

filiação histórica. Tarde reconhece o valor dos arqueólogos, ressaltando seu trabalho de

descoberta de diversas peculiaridades de distintas civilizações. Afirma que a arqueologia

deixa de ser dependente da história, para tornar-se melhor que ela, já que a história é, em

grande medida, tributária do trabalho arqueológico. Os arqueólogos mostram-nos a expansão

indefinida e a superposição de sedimentos da verdadeira história, a estratificação de

descobertas sucessivas propagadas por contágio.

Tais profissionais contribuem bastante para compreender e aprofundar o conhecimento

do domínio das invenções humanas. Com eles, vemos o destino seguido por uma invenção em

suas variações imitativas, seus vestígios de crenças e desejos arcaicos, em restos mortais...

Enquanto os historiadores só se interessariam pelos homens em conflito, pelos desejos em

conflito, os arqueólogos realizam um trabalho mais profundo, ali, na matéria sub-

representativa, lá onde concorrem crenças e desejos des-subjetivados em seus rastros

empoeirados, porém ainda vívidos. “Graças aos arqueólogos, nós aprendemos onde e quando,

pela primeira vez, aparece uma descoberta nova, até onde e até que época ela se irradia e por

quais caminhos ela vai de seu lugar de origem a seu local de adoção”.116

A arqueologia, portanto, enriquece a história ao atentar para o detalhe infinitesimal,

aos desejos e crenças que se manifestaram mas que, porventura, não adquiriram notoriedade

na grande narrativa da história tradicional. Este método ratifica a visão tardeana de história,

que não é

[...] um caminho mais ou menos reto, mas uma rede de caminhos muito tortuosos e todos semeados de encruzilhadas. Nós podemos generalizar ainda mais: o desenvolvimento social considerado sob seus aspectos mais tranqüilos em aparência e mais contínuos, a evolução da língua, do direito, da religião, da indústria, do governo, da arte, da moral, não difere em nada, sob esse aspecto, da história propriamente dita. A cada passo se abre ao progresso uma bifurcação ou uma trifurcação de vias diferentes, não terminando sempre no mesmo termo final como os afluentes no delta de um rio, mas divergindo freqüentemente mais e mais, até um certo limite de desvio, entretanto, onde se estaciona a elasticidade da natureza humana. A ilusão de um evolucionismo estreito, unilinear, que é alcançado, não se sabe por quê, a se fazer passar pelo único transformismo ortodoxo, é negar esta grande verdade, sob pretexto de determinismo.117

A partir de seus conceitos de invenção e de imitação bem como da proposição de

bases de análise dessas forças por meio da arqueologia e da estatística, respectivamente, Tarde

116 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 160. 117 TARDE, Gabriel. La logique sociale. op. cit.., p. 255-6.

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propõe uma nova abordagem do estudo de história, que seria bastante interessante, também,

para o campo da comunicação social. Segundo nosso filósofo, o que interessa à história é o

destino das correntes imitativas.118 Se, a partir do ponto de vista dos eruditos tradicionais, a

história é uma coleção de fatos célebres, seria mais apropriado, no entanto, afirmar que ela é

uma coleção das coisas mais bem-sucedidas que outras, ou seja, de algumas invenções que

são mais imitadas que outras. Sendo assim, em uma perspectiva micro-social de inspiração

tardeana, uma nova palavra que vai sendo introduzida em uma língua pouco a pouco não seria

“célebre” no sentido tradicional, mas teria feito história.119 Logo, um fato histórico deveria

inserir-se, para Tarde, em uma das seguintes opções: como progresso ou declínio de gênero de

imitação, como invenção que é propagada por imitação e, finalmente, como ações, humanas

ou não, que impõem novas condições à propagação das correntes imitativas (por exemplo,

uma tsunami que atinge um vilarejo ou a morte de um grande líder político).

Neste capítulo, vimos que a invenção é uma força de afirmação das heterogeneidades

sociais que se realizam individualmente e segundo regras determinadas. Sua função é

expandir as massas de crença e as forças de desejo assim como a imitação tem como função

equilibrá-las, fazendo o social dançar em ritmos ordenados, porém compostos de milagrosas

irrupções de acaso. Todas as leis da invenção são condicionadas pelo acaso da existência,

desde as regras exteriores (cruzamentos fortuitos biológicos, na esfera vital e cruzamentos de

correntes imitativas, na esfera social) até as leis interiores (duelos e uniões lógicas no contexto

do louco inventor). Finalmente, vimos como a ciência da arqueologia pode-nos ser útil na

medida em que permite realizar a filiação de invenções antigas, apesar de não poder,

evidentemente, prever o encontro inesperado das correntes imitativas que gerarão as

invenções futuras.

Apresentados os dois principais conceitos tardeanos – imitação e invenção – na

complexidade que o presente trabalho exige, sugerimos uma última incursão pelo prodigioso

pensamento da diferença elaborado por Gabriel Tarde. No último capítulo anterior à

conclusão, iremos mais fundo na questão da variação universal, analisando um importante

instrumento dela: a oposição.

118 Cf. TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. op. cit., p. 198. 119 Ao tratar do Maio de 68 na França, Deleuze e Guattari, em Mil platôs, reforçam o sentido molecular do acontecimento, fazendo alusão, mais uma vez, à perspectiva tardeana, na busca das “origens” de um fenômeno histórico: “Como dizia Gabriel Tarde, seria preciso saber que camponeses, e em que regiões do Midi, começaram a não mais cumprimentar os proprietários da vizinhança”. Cf. DELEUZE, G e GUATTARI, F. “1933 - Micropolítica e segmentaridade”. In: Mil platôs, vol. 3: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, p. 95.

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5. PELA VARIAÇÃO : AS OPOSIÇÕES E O PAPEL POLÍTICO DA COMUNICAÇÃO

Se o estado original de diferenças constituintes do universo é continuamente

transmutado a partir das forças de imitação e de invenção é porque a múltipla e descentrada

comunicação social das crenças e desejos assim o permite. Ao privilegiar o movimento

incessante do sócius, Gabriel Tarde eleva a comunicação à condição base de toda

sociabilidade. Cremos haver demonstrado a importância da comunicação social de desejos e

crenças para o engendrar de similitudes sociais da imitação, cujos fluxos são profunda e

continuamente alterados por meio da força co-participante da invenção. Neste último capítulo,

propomo-nos a enriquecer o que expusemos, apresentando uma importante nuance do

pensamento tardeano que, do mesmo modo, é intimamente ligada ao compartilhamento social

da comunicação.

As três esferas universais são compostas de infinitas semelhanças graças à força da

imitação: átomos que se assemelham para formar compostos, espécies que se assemelham

formando gêneros, famílias etc, doutrinas econômicas de nações distintas que, por meio delas,

tornam-se análogas etc... Todavia, uma visada mais atenta à diversidade universal nos faria

notar, segundo Tarde, intensas e curiosas contrariedades: atração e repulsão de partículas

químicas, acréscimos e decréscimos de velocidades, pesos, intensidades de forças, simetria

em diversas espécies, braços direito e esquerdo, olhos direito e esquerdo, inspiração e

expiração, noite e dia, partidos políticos de direita e de esquerda, artistas românticos e

clássicos, guerras entre países, amores e ódios etc...

Gabriel Tarde percebeu nas oposições universais um poderoso instrumento de

variação. Apesar de presentes em toda sua obra (como nas noções de duelos lógicos, crença e

desejo, por exemplo), as oposições são esmiuçadas exaustivamente no tratado L’Opposition

universelle: essai d’une théorie des contraires, de 1897. Segundo Deleuze, “ninguém foi mais

longe do que Gabriel Tarde numa classificação das oposições múltiplas, válida em qualquer

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domínio”.120 Tanto na esfera físico-química quanto nas esferas vital e social, as oposições são

meios a partir de que se atingem variações. Não devem, portanto, ser tidas como fins nelas

próprias.

É preciso, entretanto, que se compreendam as oposições como repetições inversas,

resultados máximos de uma série de mínimas variações diferenciais. Não basta que dois

termos sejam contrários para que sejam opostos. Eles devem ser contrários na medida em que

um é o esgotamento das variações contrárias do outro, passando necessariamente por um

estado de neutralidade. Um móvel que inicia um movimento e pára após um determinado

período de tempo é movido por movimentos opostos: uma aceleração crescente no começo

(positiva), uma aceleração neutra e, finalmente, uma aceleração decrescente (negativa) até a

parada. Da mesma forma, ao aprender uma lição, o aluno inicia o processo com uma

determinada quantidade de crença (normalmente pequena), que passa por um estágio neutro (a

dúvida), passando, a partir de então, a aumentar até a fé estável no conteúdo aprendido. Entre

um extremo (o móvel que começa a acelerar, a crença que se inicia) e outro (a desaceleração

do móvel, a fé na lição) há uma grandiosa variedade de micro-estágios, todos diferentes uns

dos outros, e não menos importantes para a proliferação da vida.

A oposição para Tarde depende do estado de neutralidade (état zéro) para configurar-

se como tal. O estado de neutralidade garante a oposição e está intimamente ligado à

temporalidade. Nele os dois extremos opostos estão presentes integralmente. Vai-se de um

extremo a outro, em uma oposição, enquanto desfilam estados diferenciais em uma

determinada duração, em que o ponto neutro é o meio termo dos dois. Cumpre não confundir

qualquer heterogeneidade com uma oposição. Como explica Tarde,

dados dois termos variáveis, se um surge como o limite das variações acumuladas do outro em um certo sentido, e o outro como o limite destas mesmas variações acumuladas em sentido inverso, sem que se tenha atravessado um estado neutro para passar de um ao outro, esses dois termos são heterogêneos: eles não são opostos.121

Segundo esta perspectiva, as cores preto e branco não formariam uma oposição mas

uma heterogeneidade especial. Não há estado neutro entre branco e preto, nem mesmo o

cinza, como se poderia argumentar. Isso porque, para que haja estado de neutralidade, é

necessário que os dois termos máximos da oposição coexistam por inteiro. O cinza não é uma

reunião de preto e branco em totalidade, mas uma terceira cor. No cinza, não se reconhece o

120 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 288. 121 TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essai d’une théorie des contraires. Paris: Institut Synthélabo, 1999, p. 61.

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preto nem o branco. Completamente diverso seria o caso de uma dúvida, estado neutro de

uma afirmação e uma negação, em que ambas comparecem nitidamente e por inteiro.

Assim como a identidade, a oposição é apenas um tipo especial de diferença,

caracterizada por mínimas repetições alteradas entre dois máximos. A idéia de repetição

variada, já abordada nos capítulos sobre imitação, retorna quando se trata da oposição. A

oposição tardeana, contudo, refere-se, como em Deleuze, a um anti-hegelianismo

generalizado: “a diferença e a repetição tomaram o lugar do idêntico e do negativo, da

identidade e da contradição, pois a diferença só implica o negativo e se deixa levar até a

contradição na medida em que se continua a subordiná-la ao idêntico”.122 Desta forma, a

aproximação Tarde-Deleuze ao tema da repetição se dá, claramente, quanto ao que seria a

repetição do Mesmo (repetições mecânicas, nuas ou físicas), que teriam sua razão de ser em

uma repetição oculta, em que se desloca e se disfarça um “diferencial”. Logo, “à divergência

e ao descentramento perpétuos da diferença correspondem rigorosamente um deslocamento e

um disfarce na repetição”.123 Seria de imensa valia aos estudos de Comunicação Social esta

visada relativa à repetição variada mesmo quando, aparentemente, engendra-se o Mesmo.

Efeitos de mídia de massa de diferentes períodos históricos ou, ainda, de um mesmo tempo,

são muitas vezes considerados a partir do que apresentam em “comum”. A partir daí, criam-se

espécies de “leis” concernentes a comportamentos sociais de toda ordem, “tendências”,

“ciclos” e outros grandes mecanismos de aprisionamento da variação inerente a todo elemento

social.

Quando Tarde se refere aos duelos lógicos, por exemplo, tanto no que concerne às leis

lógicas da imitação quanto ao que diz respeito às leis interiores da invenção, o que se tem é

mais que um combate estático de uma crença contra outra, mas um processo dinâmico em

que, para além dos dois extremos contrários (votar ou não em determinado político, por

exemplo), há diversas micro-diferenciações que engendram vida e movimento contínuo no

corpo social. Os duelos em Tarde não são pautados por teses, antíteses e sínteses. Por detrás

de uma única batalha aparente, estilhaçam-se milhares de agressões potentes. Como em

Deleuze, o pensamento da diferença tardeano não implica uma coexistência feliz de

singularidades, mas uma agressão permanente dos estados diferenciais microscópicos. Por

exemplo, o fato de um deputado ter sido eleito com a mesma quantidade de votos que seu

concorrente é apenas a superfície de milhares de estados diferenciais de crença e desejo em

conflito cujo resultado geral, apesar de idêntico em termos numéricos, esconde um importante

122 DELEUZE, G. Diferença e repetição. op. cit., p. 15. 123 Ibid., p. 16.

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substrato vivo. É por esta razão que a abordagem astuciosa elaborada por Tarde da oposição é

tão interessante, como ratifica Deleuze:

Tarde parece-nos ter sido o único a destacar [...]: a oposição, em vez de ser autônoma, em vez de ser um máximo de diferença, é uma repetição mínima em relação à própria diferença. Daí a posição da diferença como realidade de um campo múltiplo virtual e a determinação de microprocessos em todos os campos, sendo as oposições apenas resultados sumários ou processos simplificados e aumentados.124

O aprofundamento do tratamento das oposições por Tarde fê-lo empenhar-se em uma

interessante classificação, que exporemos a seguir muito sucintamente.

5.1 CLASSIFICAÇÃO DAS OPOSIÇÕES

Se uma oposição é a ida de um extremo a outro passando por repetições variadas e,

necessariamente, por um estado de neutralidade em que os dois extremos se fazem presentes,

há ainda variações quanto aos tipos de oposição existentes nas três esferas universais. As

oposições podem ser classificadas quanto à forma e quanto à matéria.

Quanto à forma, podem ser estáticas ou dinâmicas. Uma oposição estática seria aquela

correspondente à simetria de dois lados de um mesmo rosto, de duas figuras geométricas, ou

do belo e do feio, por exemplo. Uma oposição dinâmica poderia ser exemplificada pela

transmissão elétrica que vai de um pólo positivo a um negativo. Para Tarde, porém, toda

oposição estática comporta micro-oposições dinâmicas de diversas ordens. A oposição

aparentemente estática seria, assim, uma resultante de miríades de oposições menores

dinâmicas. Dois lados opostos de um mesmo rosto implicam uma série de micro-oposições

biológicas, processos celulares de nutrição e excreção, moléculas e átomos que se atraem e

repelem etc...

As oposições dinâmicas podem ser subdividas em oposições simultâneas e sucessivas.

As oposições sucessivas são aquelas cuja contrariedade designam um ritmo, como em uma

melodia, por exemplo, em que o aparecimento e o desaparecimento de uma nota em oposição

ao aparecimento e desaparecimento de outra colaboram para a harmonia musical. Já as

oposições simultâneas se dão quando os termos contrários aparecem ao mesmo tempo. É

possível ir mais além neste tipo de oposição e subdividi-la em oposições dinâmicas

simultâneas irradiantes e oposições dinâmicas simultâneas lineares. As irradiantes referem-se

124 Ibid., p. 288.

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à força da gravidade, à propagação do som e da luz, por exemplo. Em alguns casos, como no

caso da gravidade, as micro-forças que atuam no corpo em um sentido (para baixo) são tão

fortes quanto as micro-forças que não atuam no sentido contrário (para cima), ambas

conduzindo o corpo para o centro de um outro corpo (a Terra). Neste caso, temos uma

oposição dinâmica simultânea irradiadora centrípeta. No caso da propagação da luz, por

exemplo, o que se tem é uma fuga das forças do centro de irradiação. As micro-forças que

compõem a luz são oposições porque tanto as forças de afastamento quanto as forças de não-

aproximação se reúnem para afastar-se do centro. É por esta razão que a luz compõe uma

oposição dinâmica simultânea irradiadora centrífuga. As oposições dinâmicas simultâneas

podem ser, ainda, lineares. Neste caso, há uma evidente polaridade entre os termos, a ponto

de serem descritos em termos de negativo e positivo. Partidos de esquerda versus partidos de

direita configuram um bom exemplo deste tipo de oposição dinâmica na esfera social.

Se as oposições podem ser classificadas segundo a forma (estáticas ou dinâmicas), elas

também o podem segundo a matéria. Quanto à matéria, Tarde as divide em oposições

qualitativas e oposições quantitativas. As oposições qualitativas são as séries de elementos

heterogêneos que, obedecendo a uma determinada ordem, podem existir também em uma

ordem inversa. Estados da alma, períodos astronômicos, meteoros e outros fenômenos são

regidos por duas ações: aparecer e desaparecer. Como seus elementos são claramente

heterogêneos, não podemos dizer que houve aumento ou diminuição de qualquer tipo quando

passamos da tristeza ao ódio, ou quando uma estrela no céu “passa do azul ao vermelho, do

vermelho ao violeta, do violeta ao verde”.125

Já as oposições quantitativas se dão pelo crescimento de uma característica e pelo

decréscimo da característica inversa na mesma medida. Elas podem ser oposições

quantitativas de grau ou de força, sendo que as de força podem ser mecânicas ou lógicas. As

oposições quantitativas de grau são regidas por aquisição e perda, como quando um móvel

adquire determinada velocidade na mesma medida em que perde a velocidade antiga, um

corpo que aumenta de volume na medida em que perde sua constituição anterior ou uma

teoria científica que adquire mais adeptos do que possuía anteriormente. No caso das

oposições quantitativas, podemos utilizar o termo desenvolvimento ou regressão, como

salienta Tarde:

[...] a noção de desenvolvimento é ligada à de quantidade; e, por toda parte em que, sob a aparência de simples qualidades que se sucedem e se substituem, sentimos que

125 TARDE, Gabriel. L’opposition Universelle: essai d’une théorie des contraires. op. cit., p. 83.

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um desenvolvimento se realiza, podemos afirmar que elas recobrem alguma quantidade verdadeira inerente à natureza de um ser idêntico a ele mesmo através de seus crescimentos sucessivos. Observando as transformações de um broto, de um embrião, da alma de uma criança, nós dizemos que assistimos a um progresso, porque estamos convencidos de que algo persiste e cresce sob essas variações.126

No caso das oposições quantitativas de força, lidamos com um pequeno complicador.

Não há apenas acréscimo ou decréscimo de elementos, mas um fazer ou desfazer

transformador. Quando o amor de um homem por alguém decresce a ponto de ele julgar o

objeto amado indiferente e, posteriormente, desprezível, não houve apenas diminuição do

amor: este se desfez. Da mesma forma, quando um carro diminui sua velocidade em uma rua

a ponto de parar e, em seguida, andar de ré, desfez-se um determinado tipo de movimento na

mesma medida em que fora criado o movimento contrário. Para Tarde, as oposições

quantitativas de força, regidas pelo fazer e desfazer, podem ser de ordem mecânica (caso do

carro e de outros fenômenos físicos, químicos e biológicos) ou de ordem lógica (em que estão

em jogo, basicamente, crença e desejo). No que toca à crença, a força de negação age em

oposição à força de afirmação e, no que se refere ao desejo, a força do prazer erige-se em

oposição à força da dor.

5.2 OPOSIÇÕES, IMITAÇÕES E INVENÇÕES

A oposição como instrumento da variação tem um papel crucial na filosofia tardeana e

sua relação com os conceitos de imitação e invenção é íntima. A imitação como força de

criação de semelhanças e repetições é dependente do que, nas três esferas do universo, pode

crescer ou decrescer, fazer ou desfazer. Afinal, poder-se-ia supor

[...] um mundo que não conteria a oposição do mais e do menos, do progresso e da decadência, da composição e da dissolução? Sim, é permissível a rigor conceber um mundo em que nada do que se adquire é perdido, em que jamais um volume aumenta ou diminui, em que jamais uma velocidade acelera ou se retarda, em que as pressões, as convicções vão sempre redobrando de energia sem jamais se reduzir. Mas não se vê a conseqüência fatal disto? A repetição, - sob todas suas formas: ondulação ou gravitação, geração, imitação, - tornar-se-ia impossível, e, com ela, a variação de que ela é condição indispensável.127

As oposições servem à variação em basicamente dois sentidos. Em um primeiro

momento, servem indiretamente à repetição variada, pois entre um termo e seu inverso há

126 Ibid., p. 84. 127 Ibid., p. 86.

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uma infinidade de termos correlatos que adquirem o status de repetições variadas. Entretanto,

mais profundamente, as oposições servem à variação na medida em que dependem do estado

de neutralidade – o état zéro – para se caracterizarem como tais.

Entendamos de que forma isso ocorre. Considerando (a) um elemento universal

qualquer, somente idêntico a si próprio e (-a) seu oposto, teríamos, assim, uma oposição

formada entre os pólos (a) e (-a), cujo état zéro seria um quadro de identidade provisória em

que (a) e (-a) estariam presentes (a – a = 0). Se, em vez de pensarmos (a) como elemento

universal qualquer, especificamo-lo como uma “variação”, teríamos no pólo oposto uma

“variação inversa” e, no estado neutro, nada mais que uma “repetição”.

Toda oposição possui um estado de neutralidade provisória, de identidade manifestada

como repetição que, na esfera social, chama-se imitação. Ocorre que esta é a primeira fase de

um processo mais profundo de variação. Se uma oposição social comporta a identidade como

elemento imitado, neutro, este elemento neutro pode ser, ele mesmo, o primeiro termo de uma

nova oposição. Sendo assim, da fórmula que vai da diferença (a) para a diferença (-a),

passando por um estado neutro de identidade provisória (a – a = 0), utilizamos o elemento

neutro (a identidade provisória) como primeiro termo de uma nova oposição. Assim, dessa

identidade provisória (estado neutro entre duas diferenças opostas), formamos uma nova

oposição, cujo outro pólo seria uma heterogeneidade (não mais uma simples diferença). É

assim que, “em geral, o estado neutro de uma oposição dada pode ser tomado como primeiro

termo de uma oposição de um novo gênero cujo outro extremo será produzido pela idéia de

infinito”. 128

Podemos, portanto, compreender duas fases na variação implementada pelas

oposições. Na primeira fase da oposição que descrevemos, havia um elemento (uma crença

em A, por exemplo), um elemento neutro (a dúvida) e um elemento contrário (uma crença no

oposto de A), além de vários estágios intermediários entre A e o oposto de A, que nada mais

seriam que repetições variadas de A. Na segunda fase, porém, a variação é muito mais

profunda, uma vez que o resultado final não é apenas uma repetição inversa do primeiro

elemento, mas um elemento inteiramente novo, totalmente heterogêneo a ele.

Ora, se aplicarmos estas duas fases das oposições à esfera social, teríamos um quadro

em que, na primeira instância, a variação teria como oposto a variação inversa em que a

imitação seria o estado neutro. Em segunda instância, essa mesma imitação formaria uma

nova oposição, cujo estado neutro seria uma variação mais profunda e o outro pólo do oposto

128 Ibid., p. 282.

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configuraria uma invenção. A imitação, assim, nada mais é que uma repetição, um estado

neutro entre duas variações sociais opostas. Como estado neutro, pode configurar o primeiro

termo da segunda fase de uma oposição, sobre a qual incidirá uma série de variações cujo

extremo será uma variação tão profunda que será heterogênea ao primeiro termo imitado. Mas

essa alteração grandiosa da imitação não seria a invenção? “A invenção, propriamente

dizendo, é uma variação infinitamente profunda e, a este respeito, pode ser aproximada da

produção de uma nova espécie viva que nós chamamos, não sem razão, de uma criação da

vida”.129 Em última instância, portanto, a oposição serve à invenção. A invenção, por sua

vez, não é mais que uma adaptação de crenças e desejos no tecido social. Tal adaptação,

contudo, tem como meta a repetição variada, uma vez que sabemos que toda invenção só

existe efetivamente se for imitada, e que toda imitação comporta minimamente uma variação.

Tarde define que as três leis sociais são a Repetição, a Oposição e a Adaptação. A

função da oposição é a de servir à repetição variada (na miríade de termos diferenciais entre

um extremo e outro) e à adaptação. A adaptação, por sua vez, existe apenas em nome da

variação. Dessa maneira, é possível afirmar que, para Gabriel Tarde, as leis sociais têm como

objetivo final a variação universal, esta obra de múltiplas artes da vida. O pensador social

deveria encarar não só a vida como também seu próprio pensamento como arte singular, pois

[...] as desarmonias são para as harmonias o que as assimetrias são para as simetrias, o que as variações são para as repetições. Ora, é apenas do seio de repetições precisas, de oposições claras, de harmonias estreitas, que eclodem as amostras mais caracterizadas da diversidade, do pitoresco, da desordem universal, isto é, as fisionomias individuais. É pouca coisa, é coisa bem passageira, uma fisionomia de homem ou de mulher, refinada pela vida social, pela vida de imitação intensa, complicada e contínua. Mas nada é mais importante que esta nuance fugidia. E a pintura não perdeu seu tempo chegando a fixá-la, nem o poeta ou o romancista que a faz reviver. O pensador não tem o direito de sorrir ao ver seus grandes esforços para apreender esta coisa quase inapreensível que nunca foi e que não será mais. Não há a ciência do individual, mas não há arte senão do individual. E o sábio, pensando que a vida universal é impedida inteiramente à floração da individualidade das pessoas, deveria considerar com uma modéstia menos invejosa o trabalho do artista, se ele mesmo, imprimindo necessariamente seu lado pessoal à sua concepção geral das coisas, não lhes confere sempre um preço estético, verdadeira razão de ser de seu pensamento.130

Presentes em todas as esferas da existência, as oposições que nos estimulam a pensar

em possibilidades de criação de repetições variadas e de adaptações são aquelas de caráter

129 Ibid., p. 287. 130 TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie. Québec: L’Université du Québec, 2002, p. 66. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 22 jan. 2007.

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social. A perspectiva tardeana acerca da oposição, se bem compreendida, pode-nos servir

como importante instrumento de luta no mundo contemporâneo, cuja complexidade nos exige

o abandono de categorizações fracas, moldadas por todo tipo de dicotomias simplistas.

Tratemos das oposições sociais tardeanas e ressaltemos o papel que a comunicação social

nelas cumprem como indiretos motores sociais de inovação.

5.3 AS OPOSIÇÕES SOCIAIS E O PAPEL DA COMUNICAÇÃO

A esfera social, assim como as esferas físico-química e vital, é composta de diversos

tipos de oposição: partidos políticos rivais, guerras entre nações, tribos, cidades, concorrência

econômica entre comerciantes, países, cidades, indústrias, pessoas, dialetos versus dialetos,

neologismos contra palavras tradicionais, discussões públicas pautadas por opiniões

divergentes etc... Fazendo uso da classificação das oposições proposta por Tarde, vemos que

as sociedades comportam oposições seriais (em que acontecimentos em seqüência nos

instigam a questionar a possibilidade de reversibilidade ou irreversibilidade na história),

oposições de quantidade (alta e baixa de riquezas, aumento e diminuição de potências

políticas etc...) e oposições dinâmicas (discussões, guerras etc...). No âmbito macro, as três

grandes formas de oposição social são a concorrência econômica, a guerra e a discussão.

Sobre a concorrência econômica, Tarde normalmente relativiza a importância dada à

disputa deste tipo pelos pensadores de seu tempo.131 A concorrência é uma curiosa oposição

na medida em que comporta simultaneamente disputa e colaboração. Disputa entre produtores

de uma mercadoria, mas colaboração de ambos em relação ao crescimento da indústria;

disputa entre consumidores, mas colaboração na expansão da afirmação daquilo que desejam.

Em resumo, a concorrência econômica é filha da invenção e da imitação, e depende mais

destas duas últimas que o inverso. Não é correto afirmar que a concorrência dos produtores

gera o sucesso de uma invenção. É mais prudente afirmar que, com a generalização da

necessidade que esta invenção inicialmente engendra, é propagada em seguida a necessidade

dos produtores de copiá-la. A concorrência, aqui, é efeito, e não causa da imitação.

131 Em diversos trechos de suas obras, encontramos críticas diretas ao economicismo na sociologia, especialmente ao marxismo. Tarde busca implementar um pensamento da economia baseado em uma política dos afetos, da crença e do desejo. Para isso, remetemos o leitor aos volumosos dois volumes de sua Economia Psicológica. Cf. TARDE, Gabriel. La psychologie économique. Québec: L’Université du Québec, 2002. Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html> Acesso em: 22 jan. 2007.

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Já as guerras só existem porque há uma memória imitativa delas. Tarde, não sem

alguma melancolia, afirma que não há sentido em ressaltar que uma dissidência (a guerra)

transmutar-se-á em comunhão (os tratados finais de paz) pelo método da convocação de

milhares de homens jovens, saudáveis e felizes e a imposição de que eles se odeiem uns aos

outros. Quanto à guerra, Tarde propõe-se a analisar três hipóteses. A primeira indica que ela

não é necessária para o progresso social; a segunda afirma que a guerra, tendo sido necessária

no começo da civilização, deveria ser substituída por outras formas de combate ao longo do

processo de desenvolvimento e que, portanto, não seria mais uma urgência do progresso; a

última, finalmente, postula que a guerra é indissociável do progresso. Segundo nosso

sociólogo, a primeira hipótese é a mais plausível. Guerra nada tem a ver com

desenvolvimento social. De fato, por preguiça ou por costume, tenderíamos a associar a

guerra ao progresso, à unidade dos povos, adquirida por conseqüência da batalha. Este seria

um erro grandioso. A verdadeira unidade dos povos se daria por propagação imitativa das

diversas instâncias culturais inventivas das religiões, das línguas, da arte, dos costumes etc...

Se há uma ambição universal, há também uma simpatia universal. As guerras por si só não

trazem avanços, mesmo quando, em seus términos, há “conciliação”. Esta conciliação, para

Tarde, é fraca. A invenção, sim, é a síntese mais potente: “Não há conciliação verdadeira,

síntese verdadeira, senão por Invenção, filha da paz, que faz os adversários se abraçarem ao

suprimir a causa de seu conflito”.132

Quanto à terceira grande forma social de oposição – a discussão – tem-se

normalmente, em relação a diversas questões sociais, duas opiniões contrárias que, por meio

dos indivíduos, manifestam-se e, evidentemente, contêm uma infinidade de repetições

variadas. A discussão, entretanto, é apenas um preparatório para a real mola propulsora de

sociabilidade, que é a conversação. No segundo capítulo de A Opinião e as Massas,

encontraremos um amplo panorama acerca das conversações humanas. Ao discorrer a respeito

das conformações dos coletivos na modernidade, enfatizando as relações entre opinião e

público,133 Tarde propõe-se a estudar mais extensamente, “por ser um domínio inexplorado, o

fator da opinião que já reconhecemos ser o mais contínuo e universal, sua pequena fonte

132 TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essai d’une théorie des contraires. op. cit., p. 368. 133 Foge a nosso escopo tratar em pormenores o conceito de opinião em Tarde e suas implicações na modernidade. Para dimensionar, todavia, a importância atribuída a tal conceito para o pensamento dos coletivos modernos, salientamos que, segundo o filósofo, “a opinião está para o público, nos tempos modernos, assim como a alma está para o corpo, e o estudo de um nos conduz naturalmente ao outro”. TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 65.

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invisível que escoa em todo tempo e em todo lugar com um fluxo desigual: a conversação”.134

Mas o que se entende por conversação? Tarde a define delineando contornos bem nítidos:

Por conversação, entendo todo diálogo sem utilidade direta e imediata, em que se fala sobretudo por falar, por prazer, por distração, por polidez. Essa definição exclui de nosso tema tanto os interrogatórios judiciários como as negociações diplomáticas ou comerciais, os concílios e até mesmo os congressos científicos, embora se caracterizem por muito falatório supérfluo. Ela não exclui o flerte mundano nem as conversas amorosas em geral, apesar da transparência freqüente de seu objetivo, que não as impede de serem agradáveis por si mesmas.135

Além de ser o principal canal da opinião, a conversação opera como o meio mais

eficaz de promoção e funcionamento do social como um todo. Desta forma, seu papel é

superior ao da discussão. Em suma, as grandes oposições principais – a guerra, a concorrência

econômica e a discussão – não são de forma alguma mais importantes que seus correlatos de

adaptação. Por isso, “em uma sociedade que se civiliza, (...) a troca se desenvolve mais rápido

que a concorrência, a conversação mais rápido que a discussão e o internacionalismo mais

rápido mesmo que o militarismo”.136

Foram descritas acima as oposições em escala macroscópica. Contudo, o foco da

micro-sociologia tardeana está nas múltiplas e infinitesimais lutas de crenças e desejos

conflitantes em cada homem social. São essas batalhas invisíveis a fonte e o fim de toda

oposição grandiosa. As efetivas oposições sociais são as pequenas batalhas internas que

promovem a hesitação entre este ou aquele dogma religioso, entre esta ou aquela locução

verbal de uma determinada língua. Trata-se de oposições internas que, entretanto, não podem

de forma alguma ser classificadas unicamente como psicológicas. Uma vez que os termos em

jogo na escolha são lançados no indivíduo por conta de correntes fortes de imitação, as

oposições de crenças e desejos que nele se dão são, antes de tudo, sociais. Nos dois capítulos

precedentes, procuramos mostrar a importância dos duelos lógicos tanto para as leis da

imitação quanto para as leis da invenção. Tais lutas, porém, são meios para repetições

variadas (imitações) ou adaptações criativas (invenções), e nunca fins nelas mesmas.

É por valorizar as batalhas infinitesimais do fluxo social que Gabriel Tarde desconfia

do pensamento de grandes generalizações que opta pelo conflito de classes sociais como

motor da história. Para o pensador, a perspectiva da luta de classes é um equívoco, uma vez

que toma por preestabelecidos classes ou grupos subjugados e classes e grupos dominadores,

134 Ibid., p. 75. 135 Ibid., p. 76. 136 TARDE, Gabriel. Les lois sociales – esquisse d’une sociologie, op. cit., p. 48.

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deixando de considerar tanto o caráter relativo das dominações quanto a transitoriedade destas

classificações. Ao permitir a vitória de uma das classes sobre outra, o corpo social

necessariamente fará crescer uma grande quantidade de ressentimento, que levaria

inevitavelmente a uma nova classificação hierárquica. Desta forma, o avanço social se dá

menos por conta das oposições de classes, e sim, fatalmente, por obra dos “loucos”

inventores, que buscam suturar as feridas abertas do sócius, e das pequenas oposições que se

manifestam no cotidiano, em que cada indivíduo, afirmando sua potência de imitação variada

e mesmo de invenção, poderá revolucionar em silêncio, aumentando sua fé imanente sem

grandes alardes. A verdade é que

[...] todos nós, ou quase todos nós, colaboramos para estes gigantescos edifícios que nos dominam e nos protegem; cada um de nós, por mais ortodoxo que possa ser, tem sua religião para si, e, por mais correto que possa ser, sua língua para si, sua moral para si; o mais vulgar dos sábios tem sua ciência para ele, o mais rotineiro dos administradores, sua arte administrativa para si. E, da mesma forma que ele tem sua pequena invenção consciente ou inconsciente que acrescenta aos legados seculares das coisas sociais em que realiza um depósito passageiro, ele tem também sua irradiação imitativa em sua esfera mais ou menos limitada, mas que é suficiente para prolongar seu achado além de sua existência efêmera e para que os trabalhadores futuros a recolhem e a ponham em ação. A imitação, que socializa o individual, perpetua de todas as formas as boas idéias e, perpetuando-as, as aproxima e as fecunda.137

Se, por um lado, as oposições sociais efetivas são as batalhas microscópicas de crenças

e desejos cujo campo é o homem social formado pelo entrecruzamento desses fluxos, por

outro, tais oposições só adquirem relevância social de fato pelo papel da comunicação social.

As relações entre comunicação e oposição em Gabriel Tarde adquirem duas vias principais de

manifestação: a primeira delas comentamos há pouco, e trata-se da função tanto da discussão

como oposição social macroscópica quanto da conversação como adaptação resultante desta

oposição. Há, porém, ainda, um sentido mais profundo que, como pudemos confirmar em

outras instâncias do pensamento tardeano, dá à comunicação o poder de engendrar o sócius.

No caso específico das oposições sociais, estas só importam realmente para a sociedade a

partir de quando são exteriorizadas e tornadas conscientes por via dos meios de comunicação.

A sutileza deste pensamento está em não negar a existência das oposições sociais em seu

estado potencial, antes da consciência social promovida pelos meios de comunicação, mas em

enfatizar que apenas através deles se dá sua efetivação no sócius. A imprensa e os meios de

comunicação como um todo têm grande influência nos combates sociais, uma vez que os

tornam públicos, retirando-os da clandestinidade individualista e remetendo-os à luz do 137 Ibid., p. 63.

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espaço público. As dissidências não têm relevância social, no sentido de provocar reais

batalhas, a não ser quando são tornadas públicas. Os meios de comunicação de massa,

portanto, engendram tanto os pólos da oposição quanto suas repetições variadas e, com menos

freqüência, seu état zéro.

A partir do pensamento tardeano, pode-se atribuir aos meios de comunicação de massa

a tarefa de demarcar, de modo mais ou menos ordenado, as oposições sociais de todo tipo.

Nesse sentido, a existência de jornais de oposição governamental seria tão fundamental

quanto a de uma imprensa de situação. Entretanto, o cuidado teórico de Tarde nos estimula a

valorizar, também, as divulgações alternativas entre esses dois pólos, que constituiriam

repetições variadas, minimamente diferenciadoras. Na contemporaneidade, a eclosão de

inúmeros espaços de texto jornalístico, promovida com o advento das tecnologias de

virtualização, poderia configurar a possibilidade destes ambientes de repetições variadas, para

além da grande mídia em dois pólos. Este seria um primeiro aspecto importante.

Outro ponto igualmente relevante seria valorizar, para além do papel de manifestação

social das oposições, a tarefa dos meios de comunicação de reunir sistematicamente alguns

dos diversos fluxos de crença e desejo em uma imprescindível paz social que, apesar de

sempre transitória, é fundamental para o devir do sócius. Em uma pequena frase de A Opinião

e as Massas, por exemplo, Tarde alerta para a importância da imprensa frívola, no sentido de

proliferar certo estado de superficialidade essencial para a vida em sociedade: “é preciso

abençoar a imprensa frívola (...) quando ela mantém o público num bom humor mais ou

menos constante, favorável à paz”.138

Sendo assim, os meios de comunicação não são apenas a razão das oposições sociais,

mas também das adaptações sociais como um todo. Nenhuma das três formas principais de

oposições sociais em escala macroscópica – a concorrência, a guerra e a discussão – prescinde

dos meios de comunicação. Tal observação se faz urgente para contrapor-se ao senso comum

de que os meios de comunicação informam o que ocorre na sociedade. Para Gabriel Tarde,

eles não informam, mas formam tanto as oposições quanto as adaptações pacíficas. Em

tempos de guerras acirradas e concorrências econômicas que pautam o cotidiano global

contemporâneo, faz-se necessária uma análise mais detalhada do papel da comunicação de

massas na própria formação dessas grandes oposições sociais. Uma vez que a neutralidade

midiática é consistentemente afastada, cumpre igualmente rever as implicações éticas da

imprensa como um todo no engendrar público dos conflitos sociais que, sem ela,

138 TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. op. cit., p. 45.

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permaneceriam aos milhares em potência apenas. A criação de oposições sociais compete à

comunicação, mas, sobre isso, Tarde atenta:

Não são os engenhos civilizadores por excelência, a imprensa e os outros meios de comunicação, que operam esta conversão dos conflitos dos indivíduos em conflitos de massas, esta multiplicação e não apenas adição de paixões e convicções individuais em luta? Certamente, não pode ser questão, para prevenir os conflitos belicosos, amordaçar a imprensa ou parar a construção de estradas de ferro; porque, se esses grandes procedimentos de concentração e vulgarização aumentam algumas vezes o duelo lógico, eles têm por resultado mais freqüentemente ainda aumentar o hímen lógico, convertendo as associações de todos os gêneros em alianças, em federações.139

Neste capítulo final, buscamos detalhar um pouco mais a perspectiva tardeana no que

diz respeito à diferença universal, por meio da ampla abordagem das oposições de todos os

tipos. Configurando a oposição como um meio para a adaptação e, principalmente, para a

variação universal, Tarde nos ajuda a fazer respirar com mais vigor a idéia de contrariedade

de dois pólos, em que estados de repetição diferenciada entre um e outro pólo passam

necessariamente por um estado de neutralidade, este mesmo fonte de uma segunda oposição

que levará à variação e heterogeneidade. Na esfera social, as oposições macroscópicas

(guerra, concorrência econômica e discussão) são meras resultantes dos conflitos

infinitesimais de crenças e desejos que se dão nos homens sociais. Os meios de comunicação

serão os criadores das oposições sociais, uma vez que resgatam tais duelos da obscuridade

singular para o espaço público do sócius. Se, como tentamos demonstrar ao longo da

dissertação, a comunicação de crenças e desejos é o princípio básico da criação de similitudes

sociais (via imitação), se toda invenção social só nasce efetivamente se for comunicada,

encerramos o trabalho ressaltando a importância da comunicação também como determinante

tanto das necessárias oposições sociais de todo tipo quanto das associações pacíficas de

crenças e desejos múltiplos e diferenciados.

139 TARDE, Gabriel. L’opposition universelle: essai d’une théorie des contraires. op. cit., p. 361.

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CONCLUSÃO: UM PRIMEIRO RETRATO

Na última década do século XIX, felizes e potentes cruzamentos de fluxos de crenças

e desejos se deram em um indivíduo prodigioso, certamente ele também um gênio inventivo,

um louco responsável por um gigantesco arcabouço teórico heterodoxo, repleto de

sonâmbulos, mônadas, vôos de andorinhas, partículas químicas que se afirmam, duelos e

uniões de sensações, afirmações, negações, dores e prazeres... A partir do falecimento do

então respeitado professor do Collège de France Jean-Gabriel Tarde, em 1904, paulatinamente

as forças estruturais do saber erigiram-se em cátedras sociológicas, títulos respeitáveis e

expressões sisudas. Da esperançosa melancolia de um mundo repleto de sonâmbulos

minimamente inventivos e de loucos visionários, restou apenas uma referência histórica, um

“reconhecimento” pelo caráter “precursor”, porém objetivamente impreciso, de um

pensamento das sociedades.

No campo da comunicação, encontramo-nos hoje em situação curiosa, porém análoga:

diferentes áreas de conhecimento lutam pela legitimidade do “saber comunicacional”,

julgando animadamente o que deve ou não participar do “cânone” de nossos estudos. Em

classificações tão ambiciosas quanto apressadas, autores são taxados de “ultrapassados” ou

“inadequados” às pesquisas do campo.

É precisamente diante deste quadro que me pareceu tão salutar uma releitura atenta do

arcabouço teórico de Gabriel Tarde. Tarde extrapola qualquer limite imaginável para a

comunicação social: homens se comunicam tanto quanto moléculas ou genes. A comunicação

é o elementar e o universal:

O fato mecânico elementar é a comunicação ou a modificação qualquer de um movimento determinado pela ação de uma molécula ou de uma massa sobre outra; especialmente, o fato astronômico elementar é a atração exercida por um globo celeste sobre outro globo, assim como o efeito de suas atrações repetidas, o movimento elíptico dos corpos celestes que se repete ele mesmo. Da mesma forma,

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o fato social elementar é a comunicação ou a modificação de um estado de consciência pela ação de um ser consciente sobre outro.140

Como procuramos mostrar ao longo deste trabalho, a comunicação não é

simplesmente parte do social, mas é o próprio social em movimento. Tal elevação do estatuto

da comunicação está intimamente ligada à preferência pelo pressuposto da diferença como

constitutiva dos elementos universais. As três esferas descritas por Tarde – esfera físico-

química, vital e social – são regidas pelo princípio da heterogênese. A recuperação da

monadologia leibniziana serve de esteio para o desenvolvimento de uma teoria muito própria

da criação das semelhanças universais. Como tudo o que há são mônadas – forças

heterogêneas apenas semelhantes a si próprias, continuamente em transformação, que captam

o mundo a partir de uma determinada perspectiva – , a heterogeneidade de base do mundo só

não seria caótica em duas hipóteses: pela garantia de uma harmonia preestabelecida divina,

como queriam Leibniz e também o fervoroso John Coltrane de nossa epígrafe, ou pela

abertura das mônadas e a garantia da formação de relações de comunicação entre elas. Tarde,

o jazzista de repetições variadas, opta pela comunicação.

Uma vez que as mônadas se comunicam, elas se assemelham e, portanto, podem criar

ordens transitórias, mas que permitem a persistência da diferença original de cada uma delas.

Para Tarde, as duas quantidades comunicáveis são a crença e o desejo, verdadeiras oposições

quantitativas dinâmicas de força lógica. Entre a afirmação e a negação da crença, há milhares

de estágios intermediários, assim como entre o prazer e a dor do desejo há uma miríade de

fases transitórias. Aumentar ou diminuir a crença e o desejo é o jogo constante das mônadas

neste mundo. Seu objetivo, após a morte de Deus, é aumentar a crença da forma mais

consistente possível.

No campo físico-químico, a comunicação das partículas se dá por ondulação, assim

como no campo vital a repetição variada se dá por geração ou hereditariedade. Já na esfera

social, é a imitação esta força de conformação e direcionamento de crenças e desejos de modo

que os homens sociais, partindo de sua heterogeneidade de base, tornem-se

momentaneamente semelhantes. Isto porque o contágio social promovido pela imitação se dá

sempre de um indivíduo a outro, em instâncias microscópicas, cotidianas e plurais. Um

determinado indivíduo tem graus de crença e desejo tão elevados em relação a um setor social

qualquer que é capaz de magnetizar outro em quem as crenças e desejos estão pulverizados

em estado latente. A imitação, contudo, é regida por leis específicas, tanto lógicas quanto 140 TARDE, Gabriel. Écrits de psychologie sociale (choisis et presentes par A.M. Rocheblave-Spenlé et J. Milet). Toulouse: Edouard Privat, 1973, p. 170.

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extralógicas. As regras estabelecidas por Tarde, porém, contemplam em seu âmago o acaso,

afastando-se de qualquer rigidez de caráter positivista que porventura poderiam ter.

As leis lógicas da imitação são uniões e duelos. Enquanto, no primeiro caso, duas

opções de imitação se dão para um indivíduo e ambas se reúnem no sentido de atingir um

mesmo fim, no segundo caso as opções se contradizem e o homem social será um campo de

batalhas de crenças e desejos em que um elemento social apenas será imitado. No que diz

respeito às influências extralógicas, tem-se a imitação que vai do interior para o exterior e a

imitação do considerado superior pelo dito inferior. A comunicação de crenças e desejos, no

caso da imitação ab interioribus ad exteriora, se dá irrevogavelmente de início por meio da

cópia de fins e idéias e, posteriormente, por conta de meios e expressões. Este tipo de

influência faz ressaltar a importância da temporalidade para o processo imitativo. Quando se

trata da imitação do considerado superior pelo dito inferior, é preciso que haja o

reconhecimento, principalmente por parte do imitador, da superioridade de um outro

indivíduo. Ao ser estabelecida essa relação hierárquica (que, como vimos, é historicamente

determinada), há involuntariamente um processo de imitação do dito superior pelo

considerado inferior.

A imitação como propagação dos fluxos de crença e desejo é uma força social

necessária e inevitável, assim como a força da invenção. Esta é um cruzamento de fluxos

imitativos em um indivíduo que manifesta sua diferença original a partir da criação de um

novo elemento social. Assim como a imitação, a invenção possui leis próprias, que

contemplam da mesma forma o inesperado da vida. Há dois tipos de leis inventivas: leis

exteriores e interiores. Aquelas são o cruzamento biológico aleatório que dará forma ao

homem social inventor e o cruzamento social de fluxos de imitação, que serão contingentes de

uma dada historicidade. Já as leis interiores são as uniões e duelos lógicos entre os fluxos

imitativos que se dão no próprio inventor. Também em relação à força social da invenção, a

comunicação é fundamental. Sem ela, a criatividade do louco inventor não é assimilada ao

corpo social. É interessante assinalar, entretanto, que uma invenção só se dá em uma tentativa

de afastamento das torrentes imitativas cotidianas. Entretanto, esse movimento de reclusão

torna-se mais difícil com o desenvolvimento das sociedades capitalistas ocidentais e, por isso,

“o perigo das novas democracias é a dificuldade crescente, para os homens de pensamento, de

escapar à obsessão da agitação sedutora. É difícil baixar um sino de mergulhador num mar

muito agitado”.141

141 TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 56.

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O tratamento original dado por Tarde ao tema das oposições também abre espaço para

o pensamento comunicacional. Dois termos são opostos quando há uma contrariedade entre

eles que apresenta uma série de estados repetitivos minimamente diferenciais entre os pólos,

havendo necessariamente um estado de neutralidade em que os dois elementos contrários

estão presentes. Em relação às oposições – esses instrumentos que servem à variação

universal – a comunicação é a criadora das contrariedades opositivas de caráter social. As

micro-oposições de crenças e desejos que se dão nos indivíduos só se completam socialmente

quando transmitidas e tornadas conscientes para um grande número de pessoas. Os meios de

comunicação, portanto, têm papel social e político, na medida em que delineiam os contornos

dos debates dos grupos humanos.

Curiosamente, quase como em uma mônada leibniziana, ao demonstrar as relações

estreitas entre a sociologia tardeana e a comunicação social, busquei apenas tornar clara a

percepção que jazia no fundo obscuro de uma historicidade decorada por supostos “cânones”

comunicacionais. Minha opção metodológica pelo uso esporádico do livro tardeano mais

conhecido – A opinião e as massas – foi proposital, no sentido de ressaltar que a comunicação

em Tarde não está apenas em uma obra sobre “temas comunicacionais”, mas

fundamentalmente na base de um pensamento complexo em que a diferença é a mola

propulsora do sócius engendrado por relações de comunicação.

Na célebre entrevista dada por Deleuze a Claire Parnet em 1988, conhecida como o

Abecedário, o filósofo menciona sua relação com os pensadores importantes da história. Para

isso, faz uso de uma comparação com a pintura, em um longo trecho que, dada sua força,

citarei integralmente:

Para mim, a história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o retrato faz parte da Pintura. Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de enorme respeito, de medo e pânico... Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já existiram. Ao revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores mortas. Cores... Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura.

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Portanto, são necessários muitos anos, antes de ousar tocar em algo assim. Não é que eu seja particularmente modesto, mas eu acho que seria muito chocante se existissem filósofos que dissessem assim: "Vou ingressar na Filosofia, e vou fazer a minha filosofia. Tenho a minha filosofia". São falas de um retardado! "Fazer a sua filosofia!" Porque a Filosofia é como a cor. Antes de entrar na Filosofia, é preciso tanta, mas tanta precaução! Antes de conquistar a "cor" filosófica, que é o conceito. Antes de saber e de conseguir criar conceitos é preciso tanto trabalho! Eu acho que a história da Filosofia é esta lenta modéstia, é preciso fazer retratos por muito tempo. Tem de fazer retratos. É como se um romancista dissesse: "Eu escrevo romances, mas, para não comprometer a minha inspiração, eu nunca leio romances. Dostoiévski? Não conheço". Já ouvi um jovem romancista dizer essas coisas espantosas. Seria como dizer que não é preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é preciso trabalhar muito, antes de abordar alguma coisa. Acho que a Filosofia tem um papel que não é apenas preparatório, mas que vale por si mesmo. É a arte do retrato na medida em que nos permite abordar alguma coisa. E aí é que vem o mistério.142

Nesta dissertação, navego neste mistério de que fala Deleuze. Busquei pintar um

retrato não para captar a veracidade de um rosto, mas para estudar cores que me fascinam,

estimulam e, não raro, amedrontam. Não creio que delimitar desde já o que é a comunicação

nos tornará comunicólogos consistentes. Estudo ainda as cores dessa vastidão que, como

mostrou Tarde, é comunicação. Procuro, em suas nuances, apreender o que há de singular, de

diferente. Como guia nessa empreitada, porém, permiti-me dispensar teorias e autores

sonâmbulos. Pelo contrário: preferi dar voz – ou seria grito? – a um louco inventor.

Que a magnetização se dê, portanto.

142 O Estrangeiro: O abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em: <http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&Itemid=51> Acesso em: 27 jan. 2007.

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