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379 CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIA E DAS CIÊNCIAS DO CONHECIMENTO PARA UMA EPISTEMOLOGIA DA PESQUISA EDUCACIONAL Damião Bezerra Oliveira 1 1 Introdução Com o objetivo de apresentar um esboço das questões 2 que configuram ou podem configurar uma epistemologia da pesquisa educacional, discutiremos neste ensaio, inicialmente algumas compreensões do que seja epistemologia, teoria do conhecimento e gnosiologia para em seguida mostrar de que modo esses domínios de reflexão filosófica se relacionam entre si e com as ciências que estudam o conhecimento. Refletiremos, no tópico seguinte, sobre a relação da filosofia com as ciências físico-naturais e com as humanas, a fim de aclarar o estatuto epistemológico das ciências da educação enquanto pertencentes, majoritariamente, às humanidades. Por fim e com base nos argumentos desenvolvidos nos tópicos anteriores, passar-se-á a tratar mais detidamente de como se constituiria uma epistemologia da pesquisa educacional, 1 Professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bacharel e Licenciado em Filosofia e Especialista e Mestre em Educação. E-mail: [email protected] 2 Visa-se com o ensaio mais provocar a discussão e explicitar as questões e menos tentar respondê-las, tendo em conta as dificuldades inerentes e mesmo em razão da impossibilidade de tratar exaustivamente delas nos limites de um artigo.

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Damião Bezerra Oliveira

CONTRIBUIÇÕES DA FILOSOFIAE DAS CIÊNCIAS DO CONHECIMENTO

PARA UMA EPISTEMOLOGIA DAPESQUISA EDUCACIONAL

Damião Bezerra Oliveira1

1 Introdução

Com o objetivo de apresentar um esboço das questões2

que configuram ou podem configurar uma epistemologia dapesquisa educacional, discutiremos neste ensaio, inicialmentealgumas compreensões do que seja epistemologia, teoria doconhecimento e gnosiologia para em seguida mostrar de quemodo esses domínios de reflexão filosófica se relacionam entresi e com as ciências que estudam o conhecimento.

Refletiremos, no tópico seguinte, sobre a relação dafilosofia com as ciências físico-naturais e com as humanas, afim de aclarar o estatuto epistemológico das ciências da educaçãoenquanto pertencentes, majoritariamente, às humanidades.

Por fim e com base nos argumentos desenvolvidos nostópicos anteriores, passar-se-á a tratar mais detidamente decomo se constituiria uma epistemologia da pesquisa educacional,

1 Professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal do Pará (UFPA).Bacharel e Licenciado em Filosofia e Especialista e Mestre em Educação. E-mail:[email protected]

2 Visa-se com o ensaio mais provocar a discussão e explicitar as questões e menostentar respondê-las, tendo em conta as dificuldades inerentes e mesmo em razãoda impossibilidade de tratar exaustivamente delas nos limites de um artigo.

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de que modo se relaciona com a filosofia e com as ciências doconhecimento, especialmente ao assumir-se enquantoepistemologia da prática na qual o professor faz-se pesquisadore agente de transformação social.

Na apropriação crítica e reflexiva do sentido das fontestextuais e na sua análise e interpretação, foram aplicadosprocedimentos de análise reflexiva e lógica, tanto na explicaçãocomo nos comentários que integram o ensaio, de acordo com asrecomendações metodológicas de Reboul (2000) e Folscheid eWunenburger (1999) para as produções filosóficas.

2 A Epistemologia e as Ciências do Conhecimento

O que se pode pretender discutir com o tema epistemologiada pesquisa educacional? Cabe, inicialmente, fazer algunsesclarecimentos sobre o uso do termo epistemologia, queetimologicamente é bastante simples: compõe-se de epistêmê(ciência) e logos (razão, discurso, estudo).

Na filosofia de tradição inglesa, epistemologia possui,desde meados do século XIX, um sentido amplo, na medida emque se identifica à teoria do conhecimento ou à gnosiologia.Entre os franceses, os termos gnosiologia e teoria doconhecimento não são usualmente sinônimos de epistemologia.Os italianos adotam com freqüência, gnosiologia e teoria doconhecimento como termos equivalentes, e só eventualmenteos identifica à epistemologia (ABBAGNANO, 2000, p. 183).

Pode-se dizer, pois, que somente os ingleses usamfreqüentemente a palavra epistemologia para se referir,genericamente, à teoria do conhecimento na sua totalidade, semdiscernir entre reflexão geral a respeito do conhecimento e umapreocupação particular com as especificidades do conhecimentocientífico.

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No entanto, parece legítimo distinguir epistemologia deteoria do conhecimento ou gnosiologia, caso se seja guiado pelocritério de maior extensão e radicalidade das preocupações doúltimo tipo de reflexão que assume ocupar-se de questõesfundamentais, tais como: o que é conhecimento? O sujeito podeconhecer? Quais são as fontes do conhecimento? Que tipo derelação existe entre sujeito e objeto do conhecimento? Quais oscritérios possíveis para determinar a verdade ou falsidade deum juízo ou teoria? (HESSEN, 1987; MOSER; MULDER;TROUT, 2004).

Em qualquer que seja o caso, não parece plausível admitira independência da epistemologia dos problemas gerais dagnosiologia que convergem, pela sua própria natureza, com aspreocupações ontológicas, na medida em que é impossível pensaro conhecimento humano sem correlacioná-lo com o que existe.

Se a etimologia revela, sem ambigüidade, que aepistemologia é um discurso ou teorização cujo objeto é a ciência- entendida, em sentido forte, como conhecimento universal enecessário -, há uma variedade considerável de usos ecompreensões da palavra, que inclui ainda a sua identificaçãocom a lógica3 ou mais restritamente uma aproximação com ametodologia científica.

Entretanto, o pensar filosófico ao se questionar sobre oconhecimento, mobiliza interrogações, temas e conceitos quepertencem a diferentes partes em que, convencionalmente,divide-se a disciplina filosofia, como: ontologia ou metafísica,lógica, filosofia da linguagem e antropologia filosófica.

3 Por vezes, a referência à lógica restringe-se aos elementos formais do conhecimentoque sustentariam as justificativas da investigação cientifica.

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Além do interesse claro da filosofia pelas questõesfundamentais relativas ao conhecimento da realidade, outrosdomínios do saber - os denominados científicos - também têmdedicado esforços à explicação “empírica” de diversos aspectospsicológicos, fisiológicos, neurológicos, sociais, culturais ehistóricos do conhecimento, mantendo, portanto, importantesrelações com a discussão filosófica.

Bunge (2002) divide a epistemologia em filosófica ecientífica. Identifica esta última à psicologia cognitiva cujoobjeto não se circunscreveria à esfera estritamente psicológica,mas incluiria os aspectos sociais envolvidos nos processos deconhecimento.

Se a classificação de Bunge puder ser considerada, entãoo termo epistemologia não teria, sem qualquer adjetivação, umsentido claramente filosófico. A psicologia – para ficar com oexemplo – poderia legitimamente, reivindicar para si, o estatutode ciência do conhecimento (epistemologia4).

Um argumento foi sustentado com rigor por Husserl,conforme Kelkel e Schérer (1982), de acordo com o qual, umateoria do conhecimento naturalista, que se pretenda científica,no sentido das ciências físico-naturais, não poderia se constituirem fundamento do conhecimento “empírico”, pois ela mesmacareceria de uma fundamentação que lhe deve ser logicamenteanterior. Assim, critica-se veementemente o denominadoreducionismo psicológico ou psicologismo que é a tentativa dese colocar uma teoria psicológica como fundamento infundadode si mesma e das demais disciplinas científicas.

4 A psicologia de Piaget, por exemplo, trata do desenvolvimento ontogenético doconhecimento em suas diversas fases (sensório-motor, pré-operatório, operatórioconcreto, operatório formal), num curso que vai do menos para o mais abstrato.Essa reflexão da gênese e evolução psicológica (psicologia genética) ampara-seem alguns pressupostos gerais a respeito do conhecimento e foi denominada“epistemologia genética”.

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Ainda que a psicologia do conhecimento descreva o queacredita ser a gênese e o curso psicológico do conhecimento;mesmo que apresente as suas experimentações e métodosminuciosamente, isso seria insuficiente enquanto fundamen-tação e justificativa, mesmo quando o psicólogo acreditaexplicar a gênese psicológica da lógica.

Com isso se quer argumentar a favor da importância daepistemologia enquanto campo filosófico por excelência, nãosubstituível pelos estudos científicos, como ocorreu com a antigafilosofia da natureza que perdeu a relevância com a solidificaçãodas ciências naturais.

O mesmo teria ocorrido com os estudos filosóficos arespeito do psiquismo que se teriam transformado eminformações históricas sem maior relevância, em função dosestudos científicos comportamentais da psicologia, baseados nométodo experimental, terem conseguido a sua autonomia frenteà filosofia (GOLDMANN, 1986).

Em todo caso, é possível argumentar que a ciência nãotem conseguido apresentar uma explicação dos seusfundamentos epistemológicos- usando os seus métodos deinvestigação e os seus “jogos próprios de linguagem”.

Berger e Luckmann (2002) mostram as especificidadesde uma sociologia do conhecimento que precisa se debruçar,para se constituir, sobre fenômenos sociais, históricos einstitucionais nos quais são inseparáveis subjetividade eobjetividade

O que está em jogo não é algo como uma psicologia socialou uma sociologia psicológica, mas antes a aceitação de umasociologia compreensiva e fenomenológica. O conhecimento éentendido pela sociologia do conhecimento em consonância comtal compreensão geral dos objetos sócio-históricos tratados pelasociologia.

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Apesar dos possíveis encontros entre a sociologia doconhecimento e a epistemologia enquanto reflexão filosófica,elas se dedicam a questões de diferentes ordens. Para asociologia, categorias como verdade, realidade, conhecimento,crença e justificativa, relação sujeito/objeto enquantoocorrências sociais possuem um sentido pré-teórico e cotidiano,isentos enquanto tais de questionamentos semelhantes aolevantados pela filosofia.

Berger e Luckmann (2002) escapam ao que Husserldenominou - conforme Kelkel e Schérer (1982) - dereducionismo, no caso a uma espécie de sociologismo, aodescartarem qualquer pretensão de fazer da sociologia doconhecimento uma teoria de fundamentação e justificativa doconhecimento em geral ou da própria sociologia.

Ao se referirem ao que consideram o problema dasociologia do conhecimento, Berger e Luckmann (2002, p. 11),destacam em que esse se distingue dos questionamentosfilosóficos acerca do tema. Partem do pressuposto amplamenteaceito cotidianamente de que:

(...) A realidade é construída socialmente e que asociologia do conhecimento deve analisar o processoem que este fato ocorre. Os termos essenciais nestasafirmações são “realidade” e “conhecimento”, termosnão apenas correntes na linguagem diária, mas quetêm atrás de si uma longa história de investigaçãofilosófica. Não precisamos entrar aqui na discussãodas minúcias semânticas nem do uso cotidiano oudo uso filosófico desses termos. Para a nossafinalidade será suficiente definir “realidade” comouma qualidade pertencente a fenômenos...independente da nossa própria volição... e definir“conhecimento” como a certeza de que os fenômenossão reais e possuem características específicas.

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Eis um pressuposto que se mantém no domínio daprópria sociologia ao aceitar a manifestação do fenômeno daimediaticidade da vida social, anterior, portanto, à própriaconstrução teórica das ciências sócio-históricas.

Com isso, no entanto, não se anula a pertinência de umdiscurso propriamente filosófico, que não se confunde nem comas crenças do senso comum nem com a descrição e compreensãopropriamente científica:

O homem da rua habita um mundo que é “real” paraele, embora em graus diferentes, e “conhece” comgraus variáveis de certeza, que este mundo possuitais ou quais características. O filósofo, naturalmente,levantará questões relativas ao status último tantodesta “realidade” quanto deste “conhecimento”. Queé real? Como se conhece? (BERGER; LUCKMANN,2002, p. 11, itálicos no original).

A gnosiologia justificar-se-ia como um tipo de reflexãonão totalmente superada pelas ciências, por se basear emproblemas anteriores aos considerados pertinentes pelosdiscursos científicos ou por colocar em questão os fundamentosdos conhecimentos instituídos socialmente.

À sociologia do conhecimento pode interessar estudar osubuniverso do conhecimento científico, a cultura comunitáriados pesquisadores, os valores e crenças que subjazem à práticade investigação. Sob esse aspecto, caberia à sociologia da ciênciaexplicá-la como prática social e institucional nas suasespecificidades e ao lado de outras.

Na condição de objeto de conhecimento sociológico, aciência é uma instituição como qualquer outra, a cultura daprática científica é um subuniverso no interior da sociedadeamplamente tomada, como as dos feiticeiros, poetas, astrólogos,mafiosos etc.

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É tomando por fundamentação argumentos sociológicosque definem a ciência como a instituição social que ela érealmente, que se costuma equiparar o conhecimento científicoa qualquer outro circulante no interior da sociedade e se diz,também, não ser demarcável em relação aos demaissubuniversos cognoscentes enquanto prática social.

A sociologia do conhecimento, como reconhece Berger eLuckmann (2002), não se interessa, realmente, por questões defundamentação do conhecimento e da sua justificação lógica;atém-se ao fato de existir diferentes tipos de conhecimento, daíporque se torna compreensível a equiparação, sem demarcaçãoessencial, das múltiplas modalidades de saber circulantes nasociedade que se organizam em espaços institucionalizados emtorno de subuniversos de sentido.

Acrescente-se à psicologia e à sociologia, a história daciência, para qual o empreendimento científico é visto como umconjunto de teorias que emergem no tempo, seja ele entendidoenquanto processo de continuidade, acumulativo e progressivo,ou interpretado através da imagem de pontos descontínuos ouainda como constituído pela tensão dialética entre continuidadee descontinuidade (PÉCHEUX; FICHANT, 1977).

Essas teorias históricas, por sua vez, podem serconsideradas em suas conexões com os acontecimentos globaisque marcam os diferentes momentos históricos -históriaexternalista -; ou compreendidas como um universoindependente, autônomo que podem ser interpretadas por seuspróprios enunciados - história internalista. (JAPIASSU, 1982).

Sabe-se da relevância da dimensão histórica de todaprática social, tendo em vista a impossibilidade de entender osentido dos empreendimentos humanos observando apenas o

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estado presente. Contudo, a história, também, por si mesma, éincapaz de fundamentar o conhecimento. A gênese temporal,o ponto de emergência, jamais representa uma origem na qualse flagraria a gênese do sentido, o fundamento do que existe.O aspecto factual não funda a “questão de direito”, o ser nãojustifica o dever-ser. Ao psicologismo e sociologismo deve-sejuntar, portanto, o historicismo como mais um reducionismoepistemológico quando pretende fundamentar o conhecimentocientificamente.

Tendo em vista, pois, a polissemia usual e institucionaldo termo epistemologia e as suas complexas relações com asciências humanas que tomam o conhecimento como objeto deinvestigação, far-se-á uma escolha metodológica para darcontinuidade à reflexão que limite a imprecisão conceitual.

Adotar-se-á o significado mais restrito de epistemologia5,ligado à sua etimologia, pois, por definição, ela toma por objetode interesse reflexivo, um tipo bem específico de conhecimentohumano: o científico, em diversas das suas dimensões6, e aabordagem será, fundamentalmente, de caráter filosófico.

3 A Relação da Filosofia com as Ciências

Frente a essa primeiríssima aproximação ao conceito deepistemologia e das suas relações com algumas ciências doconhecimento no âmbito das humanidades, uma grande questão

5 Outra forma de se referir ao mesmo significado seria falar de “Filosofia da Ciência”e “Teoria da Ciência”, desde que não se interprete a palavra “teoria” comocientífica, pois neste caso ter-se-ia uma metaciência, uma ciência da ciência.

6 A epistemologia é uma reflexão crítica do conhecimento científico, embora, porvezes, ela possa interessar-se por seus aspectos factuais e históricos (gênese edesenvolvimento das teorias); não deixa de oscilar entre o ser o dever-ser dapesquisa científica, sendo, assim, tentada a um exercício de prescrição a respeitodesse tipo de investigação e atividade cognoscente humana.

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epistemológica já se põe: como entender o que se pode considerarenquanto condições necessárias para que determinado saberseja tido por conhecimento cientifico? Como saber, pois, queobjeto deve ser legitimamente tomado para a reflexãoepistemológica?

Portanto, caberia preliminarmente como tarefa daepistemologia, estabelecer critérios definidores da cientificidade,e a partir deles, poder-se-ia delimitar os domínios do campocientífico em relação às demais formas de conhecimento.O pressuposto da questão consiste na admissão daheterogeneidade dos conhecimentos e certa descontinuidade entreeles, assim como uma possível hierarquização axiológica deles.

O cumprimento de tal tarefa exigiria o estabelecimento,em algum nível de abstração conceitual, da unidade da ciência.Eis, pois, um obstáculo difícil de superar, pois cada vez mais oque se ressaltam são as diferenciações no interior do própriocampo científico em ciências físico-naturais, ciências humanas,ciências formais etc.

Apesar da unidade pressuposta, é a ausência de unidadede inteligibilidade da ciência que se revela efetivamente emfenômenos como a impossibilidade de comunicação suficienteentre as diferentes comunidades. Em casos especiais, acomunicação falha mesmo dentro de grupos de pesquisadores,entre às áreas e no interior de campos mais restritos e até mesmonuma mesma disciplina7. Este último fato vem à tona emdeterminadas circunstâncias críticas, quando os pressupostostácitos de acordo da comunidade científica perdem o seu caráterdogmático (KUHN, 1978).

7 Seria difícil afirmar o que se pode tomar como uma mesma disciplina, tal o graude especialização do saber.

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Por outro lado, a fragmentação levada a efeito emvirtude da especialização crescente da ciência, não facilita atarefa de estabelecer teoricamente a delimitação de fronteirascognoscentes, daí porque a epistemologia que se propõe a talempreendimento tem se debatido com dificuldades quaseinsuperáveis. Isso não significa, entretanto, que não se reconheçatacitamente a existência de cisões no interior das ciências, masque não se consegue estabelecer critérios precisos e consensuais,para além dos próprios campos disciplinares, capazes de traçarum mapa lógico dos conhecimentos. Não há um super jogo delinguagem epistemológico ou científico pelo qual todos os demaisjogos sejam equiparáveis ou mensuráveis.

A despeito de todas essas dificuldades aqui apenasmencionadas, Goldmann (1986) ressalta que antes dafragmentação disciplinar no âmbito da “positividade” científica,há uma primeira tentativa de demarcação de fronteiras entreciência e filosofia com a constituição da modernidade científica.A filosofia da natureza vai perdendo sentido, e os vários ramosdas ciências físicas vão se multiplicando e adquirindo autonomiaem relação à filosofia: “um domínio de conhecimento incorpora-seà ciência positiva na medida em que se libera de toda ingerênciafilosófica” (p. 15, itálicos no original).

A filosofia passa a representar um obstáculo aodesenvolvimento da ciência, de acordo com o significado queesta foi adquirindo no âmbito da física, instituída em modelo aser seguido por qualquer saber que almeje a cientificidade e agarantia dos seus procedimentos.

Para além da unidade que seria fundada no modelometodológico da física, assiste-se a marcha da fragmentaçãodo conhecimento concomitantemente à libertação das ciências

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das amarras filosóficas; aos poucos o ideário paradigmático deciência sai do campo meramente físico e se estende às ciênciasda vida e às humanidades, constituindo a ideologia cientificista:

O cientificismo tentou estender essa afirmação àsciências biológicas e humanas, preconizando umabiologia mecanicista, uma psicologia behaviorista,uma história empírica e uma sociologia descritiva ecoisificante (GOLDMANN, 1986, p. 15-16).

Assim, ao mesmo tempo em que as ciências procuramuma autonomia relativamente à filosofia, perseguem, emconjunto, regras garantidoras de unidade ideológica,encontráveis no ideário cientificista e quantitativo, sintetizado,na noção de método, amplamente discutida pela filosofiamoderna em obras inaugurais desse período da história, comoo Discurso do Método e o Novum Organum.

Haverá, por conseqüência, uma importante mudança deestatuto do discurso filosófico com a emergência dos saberescientíficos a partir do século XVII, quando se iniciou a RevoluçãoCientífica Moderna que não incluirá de início, como se sabe, ocampo das humanidades, pois este só passará a reivindicar oestatuto de cientificidade no século XIX.

Deve-se destacar que se a partir do século XVII vai seenfraquecendo a possibilidade de uma filosofia da natureza emsentido forte, no XIX, será a vez dos antigos domínios da reflexãofilosófica no campo humano se constituírem em ciência, o queobrigará mais uma vez a filosofia a se situar na totalidade cultural.

Em tal contexto, caberá ao discurso filosófico como umadas suas principais tarefas, o estabelecimento dos fundamentosda ciência. O cientificismo germina enquanto parte dessediscurso de fundamentação epistemológica. Entretanto, aabstrata idéia de que todas as disciplinas científicas, apesar das

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diferenciações superficiais com relação aos objetos,compartilhariam de uma unidade formal, bem cedo receberáseveras críticas, embora esse ideário instituído ainda mantenhamuito do seu vigor.

Não é de hoje, portanto, que se verificam as dissidênciasepistemológicas questionando as pretensões do cientificismo.Argumenta-se, por exemplo, que a ausência de homogeneidadedos objetos de investigação das ciências fragiliza a prescriçãode método único, de uma linguagem comum da pesquisa oumesmo de um conjunto unívoco de regras que, formariam oque se poderia chamar de uma “racionalidade científica” emcontraposição às outras formas de “racionalidade”, como afilosófica.

Apesar disso, na sua constituição inicial e durante boaparte da sua história, as ciências humanas adotarão os valoresepistemológicos das ciências naturais, representados pelospostulados quantitativos. É em concorrência com estes quesurgirão propostas mais qualitativas já no século XIX, embora ocientificismo continue mantenha parte considerável do prestígio.

Aos poucos às críticas ao cientificismo ganham força eas ciências humanas procuram um caminho metodológico eepistemológico próprio. O reducionismo quantitativo que seopusera aos procedimentos qualitativos clássicos sofre abalos.Juntamente com a recuperação do valor epistemológico daqualidade, da idéia de compreensão dos objetos contingentes eidiossincráticos, impermeáveis à explicação quantitativa, afilosofia volta a se aproximar das ciências humanas, de modomarcante na atualidade.

Reconhecem-se, hoje, os potenciais hermenêuticos eheurísticos do pensamento filosófico, não apenas como impulso

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e motivação pré-científicos - que deverão ser esclarecidos esubsumidos pela ciência na sua positividade quantitativa eempiricidade experimentalista -, mas também como reflexãocapaz de compreender validamente o universo humano.

Uma questão que mantém a sua importância na reflexãoepistemológica é a que se interroga sobre a compreensão dotipo de relação que deve existir entre a racionalidade filosóficae a científica. As ciências naturais e as humanas devem serelacionar de forma idêntica com a filosofia?

Para Goldmann (1986), o tipo de relação que as ciênciasfísico-naturais mantêm com a filosofia não pode ser repetidopelas ciências histórico-sociais, pois é insuficiente a identificaçãoformal dos objetos desses dois grupos, assim como dos métodos.

O homem está no centro das ciências humanas, aocontrário das ciências naturais, de modo que, se é verdade que:

[...] A filosofia traz... realmente verdades sobre anatureza do homem, toda tentativa de eliminá-lafalseia necessariamente a compreensão dos fatoshumanos. Nesse caso, as ciências humanas devemser filosóficas para serem científicas “(GOLDMANN,1986, p. 16, itálicos no original).

Goldmann deixa implícito que a cientificidade dasciências humanas é plausível, embora deva diferir do modeloexistente no âmbito das ciências físico-naturais. Esse diferencialé constituído no tipo de relação mantida com a filosofia enquantose ocupa com o homem.

Deve desinteressar às ciências humanas o rompimentocom as suas raízes, de modo que a denominação de ciênciasfilosóficas, a elas aplicável, funcionaria como uma espécie desinônimo pelo qual algo de essencial se explicitaria. A questãoé, pois, em que sentido as ciências humanas são filosóficas? Porque as ciências naturais não podem ser filosóficas?

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Historicamente o ideal de racionalidade científicaprocurou diferenciar-se da racionalidade filosófica, em funçãodos objetos essenciais e do método racional especulativocultivado na filosofia violarem, o que legitimamente pode serconhecido como fenômeno pela ciência que se apresenta deacordo com os critérios quantitativos em consonância com osseus procedimentos, raciocínios e justificativas.

Além das questões concernentes a maior exatidão e rigorlógico no enquadramento do objeto e no uso do métodoquantitativo das “ciências duras”, as fontes escritas e os discursosditos em linguagem natural nas humanidades - com toda a suapolissemia e abertura - contrapõem-se ao ideal de cálculo lógico,expresso na frase já célebre de Galileu de que a natureza é “umlivro escrito em caracteres matemáticos”.

As mediações simbólicas qualitativas, imprecisas, mesmoquando os sentidos apresentam-se solidificados pela tradição eexpressos nas experiências dialógicas comuns, são objetosimpensáveis enquanto constitutivos da ciência no seu próprioplano de existência e expressão. Seguindo-se o paradigma dasciências naturais, os fenômenos humanos precisariam sernecessariamente, reduzidos a uma densidade quantitativa,ainda que em detrimento da sua profundidade de sentidos, sequiserem - como se coisas fossem – constituírem-se em objetodo saber científico.

Tudo isso coere com os ditames ontológicos formais e osprincípios gnosiológicos pelos quais, a partir de Galileu, deixade fazer sentido uma hierarquização qualitativa dos espaços,porque a natureza deixa de esconder mistérios, encantos oumaravilhas a serem interpretados de modos variados. Tudo seexplica em função da redução das grandezas aos critériosuniformes da geometria. Daí porque tudo passa a ser reduzido

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aos “caracteres” matemáticos. Tudo o mais poderia serdesprezado por carecer de sentido.

O homem e as ciências humanas teriam que se render àlógica do conhecimento científico como preço a pagar paraatingir o estatuto de cientificidade. Trata-se, pois, do pressupostometodológico cuja base é o processo de opacidade eexteriorização da subjetividade e, conseqüentemente, da suacoisificação a fim de que, reificada ela possa ser objeto doconhecimento.

Eis o caminho a que conduziria o processo denaturalização das ciências humanas em nome de umaobjetividade e neutralidade que retirariam do homem oscomponentes de autoconsciência da imanência do ser para siem nome da auto-alienação de uma consciência objetivada eesquecida de que antes de ser resultado, ela é processo aberto.

Goldmann deplora o distanciamento entre oconhecimento científico e o filosófico. Relativamente às ciênciashumanas, não fala apenas num tipo de conexão da ciência e dafilosofia, na qual a primeira fosse objeto para a reflexãognosiológica ou axiológica da segunda. Tratar-se-ia de umarelação mais profunda em que a própria ciência se fizessefilosófica, crítica, acrescentamos por nossa conta.

Japiassu (1982) ao refletir sobre as pretensões de asciências humanas se transformarem em ciência, segundo ummodelo canônico, estrutural-funcionalista, argumenta haverincompatibilidade entre a idéia de humanidade e tal ideal deciência. O autor afirma a respeito das ciências humanas:

O que pretendemos denunciar são algumas das suasilusões, entre as quais se destacam duas: a de seremciências e a de serem humanas. Porque tudo indica que,em nossos dias, sua pretensa cientificidade é

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proporcional à sua desumanidade: quanto mais“científicas” se tornam, menos humanas se revelam.E na medida em que se tornam humanas, perdem oseu caráter científico. Toda desgraça das ciênciashumanas reside no fato de terem que lidar com umobjeto que fala (JAPIASSU, 1982, p. 9, itálicos e aspasno original).

Tal desumanidade de que fala Japiassu, é motivada, emgrande parte, pelo abandono da tradição humanista dopensamento filosófico. Nas ciências físico-naturais, o abandonodo humanismo deu-se, especialmente pela superação doantropomorfismo e do desencantamento do natural.

A natureza física perde quaisquer característicashumanas, divinas e teleológicas, embora a matéria vivamantenha-se resistindo a inteira mecanização, lançando mãoainda de argumentos e raciocínios de ordem filosófica eteológica8.

Talvez não fosse correto falar da ausência total da filosofiana constituição das ciências físico-naturais, se ainda entendemosa lógica e as suas operações formais como fazendo parte dafilosofia, pelo menos pelas questões de fundo que podem suscitarpara além da rigidez dogmática do seu aspecto propriamenteoperacional.

Fora a contribuição da lógica e da epistemologia no quepossam ter de filosófico restaria no plano antropológico e ético,essa ligação da filosofia com as ciências da vida. De resto, arelação seria extrínseca e se fixaria nas conseqüências dos usose aplicações dos saberes para a existência.

8 É possível de verificar o que se diz, ainda hoje, nas discussões em tono dapesquisas biológicas, especialmente, no que diz respeito ao conceito de vida.

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Em qualquer que seja o caso, a relação aqui da filosofiaé, em maior ou menor grau, de exterioridade, de reflexão sobreou em torno das ciências físico-naturais. No caso das ciênciashumanas, a relação pode ser, também, de reflexão, mas caso sepossa concordar com Goldmann, ela deve ocorrer de modoprofundo, por imbricamento, de modo que filosofia e ciência seimpliquem pela esfera subjetiva, objetiva e “metodológica”.

Na crítica realizada por Japiassu aos caminhos anti-humanistas das ciências humanas, o autor usa a metáfora de“morte” para designar as conseqüências de uma recusa porparte dessas ciências às contribuições antropológicas da filosofia.

No entendimento das ciências da educação, aplicar-se-ão como sendo próprio a elas, o que se falou antes a respeitodas ciências humanas, tendo em vista que o objeto de estudo deambos os grupos de ciências é o homem, especialmente aquiloque o caracteriza fortemente: a possibilidade de se determinarpela educação.

O que poderia, pois, caracterizar, epistemologicamente,a educação como objeto das pesquisas da pedagogia ou dasciências da educação? Que tipo de racionalidade mostra-se maisadequada aos discursos que constituem os saberes e fazeres quecompõem esse campo teórico-prático? Eis algumas das questõesque podem interessar a uma epistemologia da pesquisaeducacional.

4 Epistemologia da Pesquisa Educacional

Coerente com a fragmentação científica tornou-sehabitual a divisão institucional e disciplinar da epistemologia,em: epistemologia da física, epistemologia da biologia,epistemologia da química etc, que dependem, é claro, dosquestionamentos gerais de uma teoria do conhecimento ougnosiologia enquanto reflexões filosóficas.

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Diante do anteriormente argumentado, pode-se dizer queuma epistemologia da pesquisa educacional precisaria examinarcom cuidado os objetos, métodos de pesquisa, conceito deverdade e a linguagem próprios às ciências da educação, assimcomo o tipo de relação que elas podem manter com a filosofia.

No caso da pesquisa educacional, há que se considerar acomplexidade epistemológica derivada do fato de ela serelacionar, de algum modo, com a totalidade das ciênciashumanas e mesmo com determinados domínios da biologia eda fisiologia.

Na divisão institucional dos conhecimentos que compõemas chamadas ciências da educação ou pedagogia, pode se apontar,entre outras: psicologia9, sociologia, história, antropologia,economia, estatística, lingüística e biologia, sem contar asdisciplinas mais atentas aos fenômenos educacionais formais esem estatuto epistemológico definido por buscar os seusfundamentos teórico-metodológicos nas primeiras, como: didática,avaliação educacional, teoria do currículo e política educacional.

No interior da pesquisa educacional circulam osquestionamentos epistemológicos próprios as ciências humanasnas suas relações com as ciências físico-naturais, assim àquelesrelativos às conexões entre ciência e filosofia.

A pedagogia já esteve intrinsecamente irmanada àfilosofia no estudo dos diversos aspectos da educação e doensino, a ponto de se constituir com métodos de reflexão eorganização do discurso em tudo próximos do jogo expressivoda linguagem filosófica.

9 Ela mesma com estatuto epistemológico não muito bem definido com relação adistinção entre ciências humanas e físico-naturais, e mais ainda nos seusencaminhamentos teórico-metodológicos.

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Pensar em pedagogia consistia em refletir sobre os ideaisda educação, nos objetivos humanos que ela deveria atingir,enfim, o discurso era fortemente “especulativo” e subsumia oscomponentes espaço-temporais, os contextos empíricos e factuaisem que as práticas educativas se efetivam (CAMBI, 1999).

Cambi (1999, p. 22), numa discussão epistemológicaacerca do deslocamento da ênfase de uma história da pedagogiapara uma história da educação, destaca o lugar privilegiado dafilosofia nos séculos XVIII, XIX e grande parte do XX, naconstituição da história das idéias pedagógicas. Enfatiza, aomesmo tempo, o distanciamento da pedagogia “[...] dascontribuições das ciências, sobretudo das humanas, para oconhecimento dos processos formativos (em primeiro lugar,psicologia e sociologia)”.

Somente na segunda metade do século XX, aindasegundo Cambi, a pedagogia irá ampliar o seu horizontecognoscente, e passará a se constituir interdisciplinarmente,merecendo destaque especial na produção dessa mudançaepistemológica as contribuições das ciências humanas.

Não se pode esquecer, no entanto, as influências dafilosofia moderna sobre a pedagogia, ocorrem de modoparticular, na proposta de entrelaçamento entre finseducacionais – que devem continuar pautados em valores éticos– e os meios que precisam buscar auxílio no ideal de método,objeto marcante da reflexão filosófica moderna.

Mais do que assumir a importância do método comoinstrumento a serviço de fins éticos, a pedagogia almejoutransformar-se em ciência. O cientificismo visitou o idealepistemológico da pedagogia no sentido de constituí-la enquantociência nos moldes da física, no final do século XX quando se

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tentou transformar a pedagogia em pedologia . Com a criaçãode tal disciplina procurava-se superar o conceito de pedagogiacomo teoria prática, arte educativa. A base da pedagogiacientífica assim proposta seria a psicologia experimental.

Ainda que a psicologia assuma o posto de principal basenessa redefinição epistemológica, a filosofia continuarámantendo relevantes diálogos com a pedagogia, mas deixaráde quase confundir-se com essa, como se fosse uma espécie deteoria ética ou educacional a orientar a vida prática,especialmente aplicada nas ações de formação moralpedagogicamente orientada.

Partindo dessas complexas relações da educação com asciências, particularmente com as ciências humanas, a propostade uma epistemologia da pesquisa educacional terá que colocarpara si, no seu domínio particular, questionamentos de resoluçãodifícil. Como delimitar a pesquisa educacional em relação àspesquisas em disciplinas como a sociologia, a psicologia, ahistória, a antropologia cultural? E a filosofia da educação, comose coloca epistemologicamente em relação às ciências daeducação e à filosofia em geral?

Considerando a extensão do conceito de educação e ofato de o fenômeno educacional identificar-se, sob muitosaspectos, com a existência humana na sua totalidade, entãouma epistemologia da pesquisa educacional deparar-se-á comproblemas que transcendem qualquer ciência particular que sededique a estudar o homem enquanto educável.

Além disso, há uma ambigüidade na construção“pesquisa educacional”, pois parece pressupor um objeto deconhecimento unitário, determinado, a educação, e um campode saber igualmente unificado que se preocuparia em investigá-lo. Sabe-se, no entanto, ser a educação um objeto de tal

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amplitude que transcende qualquer ciência única e que, seriaexpressão mais adequada falar não em uma pedagogia, masem “ciências da educação”.

Pode-se perguntar, ainda, se a identificação das ciênciasda educação com a pedagogia é justificável e sob que aspectoso fenômeno educacional determina o sentido de um conjuntode pesquisas em que os processos culturais, políticos, sociais,psicológicos e escolares de ensino-aprendizagem são essenciais.

Dado o quadro acima, a situação pode tornar-se aindamais complexa, pois não seria descabido, falar de epistemologiade história da educação, da sociologia da educação, dapsicologia da educação, como particularidades de umaepistemologia geral das ciências sociais e humanas.

A Filosofia da educação, enquanto tal poderia contribuircom uma epistemologia da educação, mas não se assumiria como mesmo estatuto de “ciência da educação”, pois simplesmentenão pode ser considerada uma ciência.

Como é comum na epistemologia a busca de auxílio nahistória da ciência, aqui também adquire importância, o referir-se à história da pesquisa educacional, para entender o itinerárioque seguem as ciências da educação enquanto vão seconstituindo ou não em campos específicos de saber.

Além disso, há interrogações de fundo que devem serlevantadas, como: que compreensões de verdade se podemverificar na pesquisa educacional, especialmente nacontemporaneidade?Qual o lugar concedido ao método? Quetipo de linguagem se aceita na expressão das teorias? Quevalores éticos, políticos e educacionais são vistos positivamente?Como se pensa a relação sujeito-objeto?

Essas questões não serão aqui discutidas por excedem osobjetivos desse artigo que se propõe esboçar um quadro de

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dificuldades sem discuti-los exaustivamente. Apesar disso, o tema/problema a seguir merece ser mais bem explicitado em função dacentralidade que adquiriu nos discursos educacionais atuais.

4.1 Epistemologia da Prática

O termo epistemologia entrou em circulação nos meiosacadêmicos e cada vez mais amplia o seu campo de polissemia.Qualquer referência ao conhecimento, independente da suanatureza e do seu contexto, parece merecer a adjetivação deepistemológico.

Dentre os usos mais comuns, um vem ganhando um lugarde destaque, especialmente nas pesquisas sobre profissiona-lização do professor, formação e saberes docentes necessários àsua prática nas instituições educativas, especialmente nosespaços de sala de aula: trata-se da expressão “epistemologiada prática”.

Essa noção relaciona-se, ainda, com a idéia do professor-pesquisador ou reflexivo, caracterizado por incluir entre as suaspreocupações profissionais, o exercício de autoconhecimento,o estudo e a reflexão da sua própria prática nas suasespecificidades e contingências (GERALDI; FIORENTINI;PEREIRA, 1998).

Assim como o saber acadêmico produzido pelopesquisador universitário é contraposto ao saber “concreto” doprofessor prático-reflexivo, parece caber a suposição de que aepistemologia da prática concerne a esse último, assim como aepistemologia nos moldes canônicos, interessa-se pelosconhecimentos científicos, validados nos procedimentosinstitucionais bem estabelecidos e por isso mais valorizados nosmeios acadêmicos.

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Interessa à epistemologia da prática, como pareceevidente, refletir sobre a prática docente enquanto é feita desaberes (GAUTHIER ET AL, 1998). A partir de tal pressuposto,procura-se entender que saberes são importantes ouindispensáveis à prática docente, como eles se constituem, seelaboram e se refazem nas dinâmicas de sala de aula. Queprocedimentos são mais adequados a constituição desse saber?Como podem ser justificados? De que modo se relacionam comos conhecimentos construídos segundos padrões científicoscanônicos? (TARDIF, 2002).

Uma das características de uma epistemologia da práticaparece ser o seu caráter fortemente prescritivo, na medida emque se pretende menos fazer uma crítica “desinteressada” doconhecimento e mais apontar quais saberes importam aoprofessor e devem constar no seu repertório profissional efetivoem relação ao reservatório10 mais amplo de saberes disponíveis.

Gauthier et al (1998, p. 29) destaca no reservatório desaberes, uma espécie de taxionomia na qual são apresentados,num quadro, seis tipos de saber: disciplinares (a matéria),curriculares (o programa), das ciências da educação, da tradiçãopedagógica (o uso), experienciais (a jurisprudência particular)e da ação pedagógica (o repertório de conhecimentos do ensinoou a jurisprudência pública validada)11.

O reservatório enquanto um conjunto potencial amplode saberes passíveis de apropriação inclui o próprio repertório,que é a manifestação mais importante da efetivação da açãoprofissional, a ponto de ganhar o estatuto de “conhecimento

10 As definições de reservatório e repertório de saberes encontram-se em Gauthier(1998).

11 Transcrição de um quadro (identificado como figura 1) da obra citada.

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do ensino” que transcende a mera prática individual eidiossincrática; ganha o estatuto de saber validado, através dadiscussão pública e argumentada, por uma espécie deracionalidade retórica ou jurídica (daí a idéia de jurisprudênciapública).

Tardif (2002, p. 63) apresenta um quadro semelhante aoanteriormente descrito, ao qual denomina “os saberes dosprofessores”. Estabelece, em seguida, como critérios declassificação taxionômica, “as fontes sociais de aquisição” e “osmodos de integração” dos saberes “no trabalho docente”.

Os saberes dos professores são então classificados em: 1)pessoais 2) de formação escolar pré-profissional 3) de formaçãoprofissional para o exercício do magistério 4) de programas dolivro didático do professor 5) experiência profissional na escolae sala de aula.

As fontes de aquisição incluem as mais diferentessituações formais, informais e não formais de socialização,aprendizagem e formação em diferentes instituições sociais.Todos são passíveis de serem mobilizados no trabalho docentee podem influenciar a prática docente.

Considerando a amplitude dos saberes docentes comofoi aqui apenas ilustrado para a finalidade da argumentaçãodesenvolvida, pode-se supor que aquilo que se chama deepistemologia da prática, lança mão de disciplinas sociológicas,como: sociologia das profissões que tem, por sua vez, relaçõesíntimas com a sociologia do trabalho e sociologia doconhecimento; conta-se, ainda com auxílios da psicologiacognitiva, da história e também da epistemologia filosófica.

Em todas as profissões, como medicina, advocacia,engenharias, administração e magistério, há uma séria discussão

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epistemológica que oscila em torno das conexões entre teoriade base e aplicações ou teoria e prática. A epistemologia,evidentemente, na medida em que se interessa por esseconhecimento disciplinar de base, acadêmico, mais fortementeteórico, terá algo a dizer aos profissionais.

Uma epistemologia da prática seria um tipo de estudointeressado no saber na medida em que é apropriado emodificado nas tarefas profissionais, no efetivo savoir-faire, queexige sempre soluções improvisadas,interpretações pessoais, porvezes criativas, do que se aprendeu ou experimentou em outrassituações, em um nível qualquer de abstração.

Sob esse aspecto recusa-se a antiga racionalidadeprodutiva e dogmática para a qual o saber profissional fazia-sepor procedimentos rígidos, instruções fechadas a seremaplicadas segundo esquemas habituais, adquiridos em funçãoda repetição das experiências.

Procuram-se conceder à racionalidade profissionaldeterminações mais flexíveis, menos técnicas, pois esse tipo depráxis era pouco criativo; busca-se inspiração em umaracionalidade prática, que valoriza a ação, a interação lingüísticaou mesmo, num primeiro momento, a reflexão pessoal, acapacidade de problematização das soluções dadas, asensibilidade para levantar novas hipóteses e aplicá-las àssituações problemáticas.

A racionalidade técnica sempre esteve interessada naaplicação do conhecimento enquanto resultado bemestabelecido, teoria validada segundo métodos rigorosos.Retirava do “aplicador”, daquele que se apropriava doconhecimento, a autonomia crítica para propor ou modificaras instruções derivadas da teoria.

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É a prática que exigirá do profissional, habilidades deum pesquisador, de um sujeito-reflexivo capaz de percebersituações problemáticas e, de acordo com elas, produzir um novoconhecimento prático, adequado as contingências do cotidianode trabalho.

Para a epistemologia da prática é relevante entendercomo o conhecimento vai sendo apropriado pelo profissional,individualmente e nas suas relações sociais de trabalho: trata-se de entender a recontextualização do saber a fim de atingirobjetivos práticos. No caso do magistério o que determina adiscussão são as ocorrências de ensino-aprendizagem, osobjetivos do ensino, as formas de avaliação etc.

O professor-reflexivo, capaz de pensar a sua práticaenquanto agente racional, sujeito de conhecimento, precisariaser, não apenas um pesquisador do que faz, mas umepistemólogo a pensar a respeito de um fazer no qual os atoscognoscentes são essenciais.

5 Considerações Finais

Uma epistemologia da pesquisa educacional precisa levarem conta as complexas questões implicadas no campoepistemológico, a começar pela definição mesmo do que se podeconsiderar como próprio a esse tipo de reflexão em suas relaçõescomo as ciências humanas que se interessam pelo estudo doconhecimento, seja como fenômeno psicológico, sociológico,antropológico ou histórico.

A própria filosofia relaciona-se diferentemente com asciências humanas e as físico-naturais. De modo que as ciênciasda educação, por se identificarem, majoritariamente àshumanidades, mantêm vínculos profundos com o pensamento

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filosófico, compartilhando, inclusive, o gosto pela abertura ecrítica permanente dos seus resultados e métodos.

A possibilidade de falar de ciências filosóficas ou de umapresença da filosofia no seio das ciências explica-se em funçãode certo fracasso da epistemologia em estabelecer demarcaçõesdos campos de conhecimento, a partir de critérios seguros efixados dogmaticamente que cumpram suficientemente e comrigor tal tarefa. Apesar de institucionalmente haver acircunscrição dos domínios cognoscentes e de historicamentese reconhecer um paulatino processo de autonomia daracionalidade científica em relação à filosófica, a ciência aindanão foi capaz de falar de si e explicitar as suas mais profundasrazões de seu próprio lugar.

Embora importe às ciências da educação um discursoreflexivo e teórico a respeito do seu sentido de prática teórica,interessa-lhe de modo muito especial considerar os significadosdas teorias educacionais enquanto instrumentos a serviço dosmeios e finalidades formativas visando, por vezes, atransformação da sociedade em maior ou menor grau.

Neste sentido, poder-se-ia acolher os ensinamentos queadvêm da segunda tese de Marx a respeito de Feuerbach, deacordo com a qual: “A questão de saber se cabe ao pensamentouma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas prática. Éna práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, arealidade, o poder, o caráter terreno de seu pensamento”(MARX e ENGELS, 1986).

Uma característica saliente das ciências da educação é asua vocação prática, de modo que as teorias tendem atranscender o nível da mera descrição, explicação ouinterpretação dos fenômenos. Em vista disso, uma epistemologiaeducacional acaba se convertendo em “epistemologia daprática” ou mesmo em uma “epistemologia da práxis”.

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Tal epistemologia não se preocupa em refletir sobra omero fazer teórico: não interessa somente os critérios decientificidade, os valores epistemológicos como rigor,generalidade, simplicidade e elegância das teorias, masespecialmente o tipo de uso que educadores e trabalhadoresfazem dos saberes, como redefinem e recontextualizam as teoriasna prática.

Uma epistemologia da pesquisa educacional relaciona-se preferencialmente com uma filosofia da práxis12, mas tambémcom as ciências, como a sociologia do conhecimento, a sociologiadas profissões e a psicologia da aprendizagem.

O conhecimento é visto, primordialmente, como práticasócio-histórica, circule ele no âmbito escolar ou não; talconhecimento materializa-se e ganha sentido em açõescurriculares variadas, envolvendo professores e alunos, mastambém outros tipos de personagens em diversos espaços sociais.

Uma epistemologia da pesquisa educacional não podedeixar de fora das suas preocupações ou reservar um lugarperiférico às destinações educacionais dos conhecimentos, a suapedagogização ou mesmo didatização, seja no âmbito docurrículo ou da formação de professores.

12 Na literatura sobre a epistemologia da prática, fala-se mais de uma razão prática,especialmente em sentido aristotélico (GAUTHIER, 1998). Contudo, nas ciênciasda educação está bem solidificada a compreensão de conhecimento emconsonância com os postulados da filosofia da práxis (dialética).

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