126
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA POR UMA ONTOLOGIA DA EXPERIÊNCIA CLÍNICA ALESSANDRO DE MAGALHÃES GEMINO Niterói/RJ 2014

Por uma ontologia da experiência clinica

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Visão ontológica da clínica psicoterápica, com base em Heidegger

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA DOUTORADO EM PSICOLOGIA POR UMA ONTOLOGIA DA EXPERINCIA CLNICA ALESSANDRO DE MAGALHES GEMINO Niteri/RJ 2014 ALESSANDRO DE MAGALHES GEMINO POR UMA ONTOLOGIA DA EXPERINCIA CLNICA TesededoutoradoapresentadaaoPrograma dePs-GraduaoemPsicologiada UniversidadeFederalFluminense,comoparte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. Roberto Novaes de S Niteri/RJ 2014 G322Gemino, Alessandro de Magalhes. Por uma ontologia da experincia clnica / Alessandro de Magalhes Gemino. 2014. xxx f. Orientador: Roberto Novaes de S. Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2014. Bibliografia: f. 120-xxx. 1. Fenomenologia. 2. Psicologia. 3. Experincia. 4. Clnica. 5. Ontologia. I. S, Roberto Novaes de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

CDD 150.192 POR UMA ONTOLOGIA DA EXPERINCIA CLNICA Aprovada em 31 de janeiro de 2014. BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Roberto Novaes de S (Orientador, Universidade Federal Fluminense - UFF) Prof. Dr. Leonardo Pinto de Almeida (Universidade Federal Fluminense - UFF) Profa. Dra. Elza Maria do Socorro Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN) Profa. Dra. Ana Maria Lopes Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ) Prof. Dr. Joelson Tavares Rodrigues (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) RESUMO Estatesetemcomopropostacontribuirparaaexplicitaodeuma caractersticapresenteemqualquertrabalhoclnicoeque,devidoas inmeraspropostasdeteorizaonestecampo,acabaporser desconsiderada em favor de modelos de interpretao previamente dispostos: trata-sedoenraizamentoontolgicodaexperinciaclnica.Busca-se,assim, fazerapareceraessnciadaclnicalevando-seemconsideraosua dimensoontolgica.Toma-seaquiafenomenologiacomocaminho,no para auxiliar no fortalecimento de uma linha ou abordagem, mas para fazer aparecer,ou ao menosapontarque,independentemente daescolhaterica, aexperinciaclnicaocorreapartirdeumcomprometimentoemauxiliara ressignificaodaexperinciadesiedomundoenquantomorada(ethos), compartilhamentoereverberao(polis)ecriaoerecriaodesi (poiesis).Paraisso,primeiramentefaz-seumaexposiosobrearelao entre a fenomenologia e a clnica, isto , o horizonte histrico de surgimento dafenomenologia,comEdmundHusserleseuprincipaldiscpulo,Martin Heidegger,almdasprimeirastentativasdedilogoentreestaproposta filosfica e a prtica clnica, feitas por Ludwig Binswanger e Medard Boss. Em seguida, a fenomenologia vista a partir de seus principais representantes Husserl e Heidegger destacando-se alguns contributos fundamentais para a propostadatese:acontribuiodafenomenologiaparaumarevisocrtica dateoriadoconhecimentoeaaberturaparaumanovacompreensoda ontologia.Arelaoentreaontologiaeavidafticavistaentocomoum passofundamental,maisespecificamente,omodocomoessarelao contribuiparaumnovoolharsobrealinguagemeparaaelaboraodeum horizonte crtico excessiva valorizao das teorizaes que buscam modelar aexperinciaclnicaapartirdeconsideraesfeitasapriori.Ateseaponta entoanecessidadeemselevaremconsideraoarelaoentre experinciaeacontecimento,demodoapermitirumaexplicitaocrtica entre a experincia clnica no sentido ontolgico e a presena do ethos, polis epoiesiscomobalizadoresparaumacompreensomaislivredotrabalho clnico,aproximandotantooprofissionalquantooestudantedeuma possibilidadediscursivaqueleveemconsideraocadavezmaiso enraizamento fundamentalmente ontolgico do fazer clnico enquanto tal. Palavras-chave: Fenomenologia; experincia clnica; acontecimento; ontologia ABSTRACT This thesis introduces the proposal of contribute making explicit a feature present in any clinical work and, due to several proposals for theorizing the clinical field, it turns out to be disregarded in favor of interpretation's models previously arranged: it is the ontologicalrootednessofclinicalexperience.Theaimisthusmakeappearthe essenceofclinictakingintoconsiderationitsontologicaldimension.The phenomenologybecomeshereasaway,notasauxiliaryinthestrengtheningofa "line"or"approach",buttobringup,oratleastpointoutthat,regardlessoftheory choice, clinical experience occurs from a commitment to auxiliary a new meaning of itselfandworld'sexperienceas"dwelling"(ethos),"sharingandreverb"(polis)and creating and recreating itself (poiesis). To begin, the author makes a exposure of the relationbetweenphenomenologyandclinical,thatis,thehistoricalhorizonof phenomenologyemergence,withEdmundHusserlandhischiefdisciple,Martin Heidegger, besides the first attempts of dialogue between this philosophical proposal andclinicalpractice,madebyLudwigBinswangerandMedardBoss.Then, phenomenologyisseenfromitsmainrepresentatives-HusserlandHeidegger- highlightingsomekeycontributionstothethesisproposal:thecontributionof phenomenology to a critic review of the theory of knowledge and openness to a new understandingofontology.Therelationbetweenontologyandfactuallifeisthen seen as a fundamental step, more specifically how this relation contributes to a new lookatthelanguageandthedevelopmentofacriticalhorizontotheexcessive appreciationoftheoriesthatseektoshapetheclinicalexperiencefromapriori considerations.Thethesispointsouttheneedtotakeintoaccounttherelation betweenexperienceandevent,toenableacriticalexplanationoftheclinical experienceandpresenceintheontologicalsenseofethos,polisandpoiesisas makers for a freer understanding of clinical work, approaching both the professional andthestudentofadiscoursepossibilitywhichtakesintoconsiderationmoreand more fundamentally ontological rootedness from "doing" clinical as such. Keywords: Phenomenology; clinical experience; event; ontology DEDICATRIA Dedicoestateseatodosaquelesque encontraramnaclnicaeemsua transmisso a satisfao profissional. AGRADECIMENTOS O espao aos agradecimentos pode ser compreendido como um espao onde osentimentodegratidoadquirematerialidade.Assim,agradeoatodosque fizeram parte dessa caminhada. Agradeo aos meus familiares, amigos, colegas de ps-graduaoedeprofissoporcompartilharemcomigoumpoucodesuas experincias,pormesuportaremaolongodessesanosemqueumaparte significativa de minhas energias foi direcionada para a tese. No fundo aconchegante da amizade e do carinho recebido por vocs tenho feito parte de minha morada. DanielCoelho,Janana,FernandoCotelo,HelgaGahyva,GabriellaDupim, SusaneZannoti,DanichiHausenMizoguchi,RaulAttalah,obrigadoporseremto presentes e acompanharem to proximamente minhas angstias e dvidas. Agradeo aos meus companheiros de pesquisa (Sophia, Ana Gabriela, Jadir, AnaTereza,Jlioetantosoutros)que,comoeu,compartilhamdointeresseem estabelecer um dilogo to difcil e to instigante que o que tentamos ao pensar a clnica a partir da fenomenologia. Aosmeuscolegasdetrabalhoagradeoapacincia,Profs.Guilhermede Carvalho,SueliOurique,GabrielaBastos,AnaPaulaCorraedemaiscolegas. Obrigado! Agradeoimensamenteaosmeusprofessoresparticipantesdabancapor terem aceitado o convite e por se disporem a doar um pouco do tempo de vocs leitura desta tese. A escolha de uma banca um acontecimento que faz confluir uma srie de variveis como disponibilidade (principalmente!), afinidade e conhecimento. ElzaDutra,AnaFeijoo,JoelsonRodrigues eLeonardoPinto de Almeida, ofereo a vocs a minha gratido. Agradeo ao Arthur Arruda Leal Ferreira, por ter me apresentado a Elisabeth CotaMello.Agradeo aBeth,portermeapresentado aoMaddiDamio.Agradeo aoMaddi,portermeapresentadooRoberto.Aspalavrassorealmente insuficientes para conter o sentimento de imensa gratido que tenho por vocs. o quedemelhorlevocomigoemcadamomentoemquemevejoatuando profissionalmente. Agradeo a Vera Lopes Besset pelo incentivo incessante, pela troca de ideias e, principalmente, por acreditar em mim. Agradeo o companheirismo, parceria, pacincia e afeto Brbara Penteado Cabral.Agradeo (in memorian) aos professores Franco Lo Presti Seminrio e Clauze Ronald de Abreu, fontes de inspirao em minha trajetria acadmica. Agradeoaosmeusalunos.Atentativadetransmissopropostanestatese tem vocs como horizonte. Aomeuorientador,ProfessorDoutorRobertoNovaesdeS,sempreme faltaro palavras para transmitir minha gratido. Obrigado, meu amigo. Avidanosofereceoportunidades,obstculosepossibilidades.Agradeoa todas elas. Ana Luisa, a persistncia e o trabalho realizam sonhos. (...) andando por todos os cantos e pela lei natural dos encontros, eu deixo e recebo um tanto(...) Luiz Galvo e Moraes Moreira Mistrio do Planeta, 1972 POR UMA ONTOLOGIA DA EXPERINCIA CLNICA NDICE RESUMO....................................................................................................................04 ABSTRACT................................................................................................................05 APRESENTAO.....................................................................................................14INTRODUO:REPOSICIONAMENTODAQUESTOSOBREOFUNDAMENTO DA CLNICA...............................................................................................................19 a) - Introduo ao problema.......................................................................................19 b) - A teoria serve para fundamentar a prtica clnica................................................20 c) A pergunta sobre o fundamento da clnica e seu lugar de tematizao................24 d)Aconstituiohistricadasprticasclnicasesuarelaocomacincia moderna.....................................................................................................................26 e)Deslocandooestudocrticodasprticasclnicasdesuareferncia essencialmente epistemolgica...........................................................................................................31 CAPTULO 1 - O HORIZONTE DE SURGIMENTO DA FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM O CAMPO DAS PRTICAS CLNICAS......................................34 1.1-Ocontextodesurgimentodafenomenologiavistacomoalternativa epistemologia.............................................................................................................35 1.2 -Husserl e a criao da fenomenologia..............................................................37 1.3 - A proposta fundamental do pensamento de Heidegger.....................................41 1.4 - A importncia de Ludwig Binswanger e o nascimento da Daseinsanalyse, vista como alternativa cpula entre clnica e cincia.......................................................43 1.5 - Sobre as crticas de Heidegger Daseinsanalyse de Binswanger....................47 1.6 Sobre a relao de Medard Boss e Heidegger.................................................51 CAPTULO2-AFENOMENOLOGIACOMOTEORIADOCONHECIMENTOE COMOABERTURAUMAONTOLOGIADAEXPERINCIACLNICA:A fenomenologiatranscendentalcomoviadeacessoteoriadoconhecimento em A Ideia da Fenomenologia.................................................................................54 2.1 Fenomenologia como teoria do conhecimento.................................................55 2.2 Teoria do conhecimento e atitude natural.........................................................57 2.3 A intencionalidade como caracterstica da cogitatio.........................................59 2.4 - Atitude natural e atitude fenomenolgica...........................................................622.5Aatitudefenomenolgicacomocolocaoemdvidadetodaa transcendncia...........................................................................................................64 2.6 A imanncia da conscincia como lugar do aparecer do fenmeno enquanto tal................................................................................................................................66 2.7 - Caracterizao da reduo fenomenolgica propriamente dita.........................68 CAPTULO3AFENOMENOLOGIAHERMENUTICACOMOVIADEACESSO A UMA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL....................................................................70 3.1 - Husserl e Heidegger: dois pontos de partida, dois caminhos distintos..............70 3.2 Contribuies fundamentais de Husserl para a fenomenologia........................713.3AconscinciatranscendentalemHusserlcomocondioparaameditao sobre a existncia em Heidegger...............................................................................74 3.4 A questo da ontologia......................................................................................76 3.5 (Des)caminhos da ontologia tradicional............................................................77 3.6 A ontologia tradicional como fundo para a metafsica da subjetividade............81 3.7 A linguagem como mdium...............................................................................83 3.8 A hermenutica como crtica metafsica.........................................................88 3.9Ahermenuticacomoontologia:aimportnciadaontologiacomo hermenutica da facticidade.......................................................................................91 3.10 - A ontologia fundamental e a explicitao dos existenciais.............................94 3.11-Opensamentomeditantecomoviadeacessoaoser-prprio....................98

CAPTULO 4 FENOMENOLOGIA E EXPERINCIA CLNICA............................106 4.1 - Retomada genealgica da noo de experincia..........................................106 4.2-Doissentidosparaanoodeexperincia:comoacmuloecomo evento....................................................................................................................110 4.3-Experinciaeacontecimento:desdobramentosparaumaontologiada experincia clnica....................................................................................................112 4.4 - A experincia clnica entre o ethos, a poiesis e a polis....................................114 CONCLUSO:PORUMAONTOLOGIADAEXPERINCIACLNICACOMOVIA DERECOLOCAODAQUESTOSOBREAFORMAOEOSMODELOS CLNICOS...............................................................................................................117 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................120 14 APRESENTAOAtesepropostaaquitemcomoobjetivomostrarque,a partirda explicitaode seucarterontolgico-hermenutico,aaoclnicapodeservistacomouma articulao singular entre ethos, polis e poiesis. Trata-se, portanto, de explicitar que arelaoentreoscaracteresdemorada,deser-comedepr-em-obra-da-verdade,mostram-secomoindissociveisaoconsiderarmosaexperinciaclnica emseusentidoontolgico.Busca-se,portanto,indcios,umavezquesetratade uma tese em psicologia. Tal afirmao se faz necessria posto que, enquanto tese, elaapresentaapropostadeestabelecerumdilogoentredoishorizontes aparentementedistintos:ocampodaschamadasprticaspsicolgicaseocampo filosfico.Sendomaisespecfico,trata-sedeproporumaressignificaoda experinciaclnicaapartirdaexplicitaodaquiloquelhemaisprprio:a existnciaconsideradaemsuadimensoontolgica.Essaafirmao,paraser sustentada,necessitadeumencaminhamento.Assim,pesquisabibliogrficase aliamrecortesdecasosclnicos,narrativascapturadasematendimentose supervises,demodoapossibilitaraexplicitaodealgomuitofamiliarao psiclogo,maisainda,seestepsiclogotem,naatividadeclnica,seuofcioesua fontedeelaboraotemtica.Aquestoaquipropostacomoguiadeinvestigao tem, na afirmao do carter inobjetivvel da experincia, tal como se d na clnica, seu horizonte. Entretanto, enquanto algo que escapa ao esforo legado pela tradio depensamentofilosficaeculturalquecircunscreveaimportnciadadaao cientfico,ouseja,emtornaroschamadosobjetosdeinvestigaocientfica passveisdesetornaremobjetosparaumsujeito,aexperinciaclnica,pelasua riqueza,pelasuapotncia,resiste.Etalresistnciaseapresenta,sobretudo,em relao ao esforo disciplinarizante, prprio ao esprito cientfico. Assim, trata-se de um temaque,porissomesmo,resiste sinjunesepistemolgicasrepresentadas pelos diversos recortes regionais que demarcam, na vastido ontolgica, as infinitas possibilidades de objetivao da realidade. Embora seja j dissemos uma tese depsicologia,natentativade dilogocomocampo filosfico queseassentar a argumentao que se segue.Duas so as razes que justificam a proposta de estabelecer um dilogo entre o campodasprticasclnicaseafenomenologia,entendidaaquicomocorrente 15 filosficaprivilegiadaparaodesenvolvimentodaquestoapresentada.Aprimeira, objeto de publicao de um livro (Ano da psicoterapia: textos geradores) organizado peloConselhoFederaldePsicologia,em2009,apresenta-secomoumdosmais profcuos em relao s discusses sobre a formao do psiclogo, uma vez que ele especialmentetangenciadopordiversosvetores(polticos,sociais,econmicos, etc.). o que atestam Dutra (2004)1 e Neto (2004)2, ao afirmarem a necessidade de fomentarmoscadavezmaisdiscussessobreapapeldopsiclogoenquantoator social. O segundo caminho, referente ao uso da fenomenologia, assenta-se no modo comoofilsofoalemoMartinHeideggerseprops,emvriosmomentosdesua obra,aoferecerreflexessobreocampodasprticasclnicas,mesmosendoum pensadordafilosofia.Se,comoveremosadiante,aemergnciadasprticas psicolgicasclnicastem,nochamadoparadigmacientficomoderno,umadesuas principaisbaseseseuimpulso3,h,emnossopontodevista,umapremente urgnciaemdesviarmo-nosdasdisputastericasparaaproximaraproduo acadmicanointeriordocampodasprticasclnicasrealidadeconstatadana experinciacotidiana,semreduziraltimaaconjunestericasqueretirama potncia de sua complexidade. Assim, a tese proposta tem como objetivo contribuir para recuar4 as discusses sobre a fundamentao da clnica a um nvel ontolgico-fenomenolgico,noparaproporumanovalinhaouabordagem,maspara explicitar e sustentar atenso entre o particular e o geral, entre o ntimo e o social, instncias presentes no dia-a-dia dos encontros que acontecem no fazer da clnica.Alinhade argumentaoaquiapresentada compe-sedequatro captulosque, emseuconjunto,possibilitamrealizaroencaminhamentodasquestesque motivaramarealizaodatese.Noprimeirocaptulo,intituladoOhorizontede

1 Consideraes sobre as significaes da psicologia clnica na contemporaneidade. Estudos de Psicologia 2004, 9(2), 381-387. 2 A formao do psiclogo. Clnica, social e mercado. SP: Escuta, 2004. Destacamos em particular o captulo 6, intitulado A formao em nossa atualidade.3 Um artigo de 2007, publicado na Revista Psicologia: cincia e profisso 2007, 27 (4), 608-621 apresenta, de modo conciso, algo do tom que desejamos nesta pesquisa. O ttulo O surgimento da clnica psicolgica: das prticas de cura aos dispositivos de promoo da sade, cujas autoras so Jacqueline de Oliveira Moreira, Roberta Carvalho Romagnoli e Edwiges de Oliveira Neves, todas da PUC-MG. 4 Aqui recuar tem o sentido de retornar ao nvel da experincia clnica tal como ela se d, ao invs de partir inicialmente de algum tipo de viso enquadrada aprioristicamente em um recorte terico. Prope-se, assim, um recuo pr-disciplinar. 16 surgimento da fenomenologia e suas relaes com o campo das prticas clnicas, o objetivo apresentar a fenomenologia como proposta filosfica a partir da exposio de algumas contribuies de dois de seus principais personagens: Edmund Husserl eMartinHeidegger.Esteprimeiropassofundamental,umavezquea fenomenologiaaparece,particularmentecomesteltimo,comoumaviade explicitaoquetrazaosolhosoenraizamentoontolgico-hermenuticoda existncia.Aooferecerapossibilidadededesnaturalizaodaexistncia,se propondo a olh-la em seu aparecer tal como se d, a fenomenologia mostrou-se, j nosanosde1920,comoalternativaparasustentarasdiscussessobrea fundamentaodoofcioclnicopresentesnaPsiquiatria.Assim,discorre-seaqui tambmsobreaimportnciadopsiquiatrasuoLudwigBinswangeremseu pioneirismoaobuscarnafenomenologiaumanovabaseparaaprticaclnica. Segue-seumadiscussosobreascrticasfeitasporHeideggeraBinswangere compartilhadas com Medard Boss, psiquiatra suo, como Binswanger, e privilegiado por compartilhar de uma amizade e um intercmbio intelectual muito prximo com o filsofo.ResgatartaiscrticasapontadasporHeideggertemcomopapelobservar nosalgodasdificuldadesemaproximardoiscamposdistintos(aclnicaea fenomenologia) como, principalmente, justificar a proposta de fornecer outra entrada no horizonte fenomenolgico para auxiliar no esclarecimento da questo da tese. O captuloterminacomumarpidaapresentaodarelaoentreHeideggere Medard Boss, fundamental para o desenvolvimento da Daseinsanalyse. OsegundocaptuloAfenomenologiacomoteoriadoconhecimentoecomo aberturaontologiatemcomopropostaapresentarumaviadeacesso fenomenologianoparaproporumanovaabordagemclnica(jmuitobem estabelecidahistoricamenteatravsdeBinswanger,Boss,entretantos),maspara auxiliarnapromoodasdiscussessobreaclnicaquelevememconsiderao suacaracterizaocomodispositivopromotordasadeecomoatitudeque possibilita uma determinada experincia que se d a partir de trs eixos: o ethos, a poiesis e a polis. Essa via se desenvolve a partir do acesso fenomenolgico teoria doconhecimentoemAideiadafenomenologia.Oquesepretendemostrar como,nestecursodadoporHusserlem1905(epublicadopelaprimeiravezem 1907),afenomenologiaapresentadacomocinciaprimeira.Dessemodo,elese properealizarumarefundaodateoriadoconhecimentoemnovasbases,tanto 17 atravs de uma retomada do projeto cartesiano quanto a partir de uma revalorizao da intuio categorial. A passagem da atitude natural (presente, segundo o filsofo, nosenso-comumenopensamentocientfico)paraaatitudefenomenolgica,de modo a visar o fenmeno tal como ele aparece, discutida aqui, uma vez que reside emumconceitofundamentalparaHeideggerdemonstrarocarterontolgicoda vidaftica:aintencionalidade.AindaemHusserl,aimannciadaconscincia destacada,porquantolugardoaparecerfenomenolgicovistoporelecomo possibilidadedegarantiadeumconhecimentorigorosocomoviadeacessopara uma teoria do conhecimento. Se, em Husserl, vemos a suspenso do juzo (epoch) comocaminhoparaaconscinciatranscendental,Heideggerentendeessa suspensocomopossibilidadedetematizaodoser-comedacooriginariedade entreoadaexistnciaeomundoenquantohorizontedemostraodos fenmenos.Oterceirocaptulo,cujottuloAfenomenologiahermenuticacomoviade acessoaumaontologiafundamentaltemnavalorizaodavidafticaeno enraizamentodalinguagemnoplanodaexperinciaconcretaoseuescopo. Distinguem-se, primeiramente, os projetos fenomenolgicos de Husserl e Heidegger, de modoaclarificar aradicalidadedoprojetoheideggerianoemreestabeleceruma novainflexoontolgica,tendocomopontodepartidaocarterhermenuticoda existncia.AscontribuiesfundamentaisdeHusserl,destacadasporHeidegger, soapontadas,umavezqueelas(aintencionalidade,arevalorizaodaintuio categorialeaexplicitaodaimannciaenquantolugardeaparecimentodo fenmenoenquantotal)permitemaHeideggervislumbrarseuprpriohorizontede investigaoenquantodistintodohorizontehusserliano.Areapropriaoda ontologiaentendidaporHeideggercomoontologiafundamentalotemaa seguir, posto que ela se oferece como um caminho que possibilita a explicitao do carterhermenuticodaexistncia.Adiferenadaontologiafundamental heideggeriana em relao tradio ontolgica retomada a partir de dois eixos: a importnciadachamadaviradalingusticadosculoXIXeaimportnciada tradio hermenutica, uma vez que ambas circunscrevem as condies que tornam possvelaconsideraodaontologiacomohermenuticadafacticidade.A caracterizaofenomenolgicadaexistnciaeaexplicitaodeseuenraizamento ontolgico-hermenuticotmcomofocoabrircaminhoparaaconsideraoda 18 experinciaclnicatalcomoelaacontece.Acaracterizaodosexistenciaiscomo distintosdascategoriaseaafirmaodapr-compreensocomoexistencialque fundamentatodainterpretaodomundoedavidatem,nofimdestecaptulo,o objetivodemostraraimpossibilidadedesemanterumaneutralidadenaproduo deconhecimento,fundamentalpararetomarmosaprpriaideiadeproduode conhecimento no campo das prticas clnicas. Noltimocaptulo,intituladoFenomenologiaeexperinciaclnica,discute-sea noodeexperincia,dassignificaeslegadaspelatradiofilosficaata originalidadedareflexocrticatrazidapelafenomenologia.Aarticulaoentre experinciaeacontecimentoapareceentocomofundamentalparaademarcao daexperinciaclnicanosentidoontolgico.Assim,ontologiaeexperinciaclnica aparecemcomoindissociveisparacompreendermosaexperinciaclnicacomo uma relao entre ethos, polis e poiesis.Demodoaconcluiratese,apontamosalgumasconsideraesque,emnosso entender, podem auxiliar na promoo de novas pesquisas:a)Mostrarqueade-cisoantecipadoraummomentoconstitutivo fundamental da experincia clnica como uma hermenutica de si; b)Mostrar que tanto a via de singularizao da existncia na analtica do Dasein quantooacontecimentoapropriativopresentenahistria/destinaodo Seer (Seyn) se referem mesma dinmica; c)Apontarairredutibilidadedoacontecimentoclnicoaconsideraesde ordemepistemolgica,sendonecessriaaexplicitaofenomenolgicado carter ontolgico-hermenutico da existncia; d)Mostrarqueaconsideraodeumaontologiadaexperinciaclnicapode levar a uma reapropriao do acontecimento clnico e; e)Sustentarosentidoacontecimentaldaexperinciaclnicaapartirda cooriginariedadeentreethos,polisepoiesis,oquenosauxiliaaafirmaro carterdemorada,deco-pertencimentoedepr-em-obra-da-verdadecomo escopo comum ao clnica. 19 INTRODUO:REPOSICIONAMENTODAQUESTOSOBREO FUNDAMENTO DA CLNICA a) - Introduo ao problema O que significa "clinicar"? Qual a natureza das chamadas "prticas clnicas"? A clnica pertence a uma profisso especfica (mdico ou psiclogo) ou ela se refere aumaexperinciaespecfica?Qual,sepossvelfalarmosassim,oobjetivodo trabalhoclnico?Estasquestesmovem-seemumcampoamplo,postoque pressupemdiversospr-requisitosepistemolgicos.Emtodotrabalho psicoterpico,diversaspalavrassotomadascomojdadaseque,decerta maneira, foram objeto de reflexes e debates pelos diversos autores que auxiliaram na constituio do campo das prticas clnicas. Paciente, cura, normalidade, cincia, psquico e teoria so alguns dos termos cujo sentido tomado de antemo no dia-a-diadoexercciopsicoteraputicoequeincitamoclnicoaumconstanteexamede seus pressupostos. Oobjetivodatesepropostaaquiconsiste,basicamente,emsetomarcomo questoaessnciadasprticasclnicas,ouseja,interessa-nosaquio"Ser"da clnica, ou seja, pensar o que a clnica . Neste sentido, trata-se de afirmar que a partirdaconsideraodeseucartereminentementeontolgico,aexperincia clnica pode ser vista a partir de trs eixos: o ethos, a poiesis e a polis. Esses eixos noaparecem,contudo,comobasesepistmicas,mascomodimensesco-originriasaqualquertrabalhoclnico.Oquesebusca,assim,proporumdesvio deummarcocaractersticodocampoqueprecisaserconsiderado:trata-seda dispersoepistemolgicaquecircunscreve,deincio,oesforoemnos aproximarmos do tema em questo. A tarefa assumida aqui diz respeito a uma tentativa de explicitar a experincia clnicaparaalmdasdistinestericas,paraalmdasdiscussessobreuma eventual passagem da modernidade para uma "ps" modernidade, aqum das mais queatuaisdiscussessobrea"inter","pluri"emesmo"trans"disciplinaridadeda clnica.Pensaraexperinciaclnicanosconvidaarastrearsuascaractersticas 20 ontolgicas, ou seja, explicitar qual ou quais so as relaes entre o fazer clnico e o ser mesmo do homem. Quatroquestesdevemserconsideradasantesdeabordarmosotemada experinciaclnicaemseucarterontolgico-hermenutico.Primeiramente, devemos questionar o papel que a dimenso terica tem na fundamentao do fazer clnico. Tal questo se mostra importante uma vez que, comumente, nos cursos de graduao, o campo das prticas clnicas usualmente apresentado a partir de sua divisoemdiferenteslinhas,muitasvezesexcludentesentresi,fazendoressaltar aosalunosasupostaexclusividadedecadaumadelassem,muitasvezes,serem apresentadosseuspressupostosontolgicoseseuenraizamentohistrico-poltico. Ainda aqui, vale ressaltar que por mais que se apresentem diversas linhas tericas, elas so, sempre, apenas amostras da riqueza deste campo.Aolevarmosemcontaadispersotericapresentenocampodasprticas clnicas,outroquestionamentosefazimportante,referenteaoprpriolugarde tematizaodofundamentodasprticasclnicas.Seorecursoadimensoterica auxiliaatornartalquestionamentoaindamaisobscuro,qualseriaentoa alternativa? De modo a justificarmos o caminho escolhido para a tese, necessrio retomar,aindaquebrevemente,opercursodeconstituiodocampodasprticas clnicas,particularmentesuarelaocomoparadigmadacinciamoderna.A dispersoepistemolgicaseapresenta,portanto,comoohorizonteaserpostoem questo,levando-nosaafirmaranecessidadedeumencaminhamentoontolgico-fenomenolgicoparanosaproximardacomplexidadepresentenaexperincia clnica tal como ela aparece. b) - A teoria serve para fundamentar a prtica clnica "Ateoriaserveparafundamentaraprticaclnica".Asentenareproduzida aquifazpartedoimaginriodeestudantesdePsicologiaeminmeroscursosde graduao.Talforased,poisnossaculturaelegeuodiscursocientficocomoo discursohegemnicoparaodesvelamentodaverdade.Quantosalunospensam, ainda hoje, que a entrada em um curso de Psicologia ser a chave para entender- 21 finalmente - a mente humana? Tal compreenso prvia no habita a mente do senso comumporummeroacaso.Trata-sedeumaimagempaulatinamenteconstruda atravsdeinmerosmeandrosquepodemserrevisitadosaoolharmosdemodo ainda que breve a constituio das prticas clnicas.A compreenso usual mencionada acima , dia a dia, reforada nos horrios do consultrio. "Dr., tudo o que eu queria era uma famlia feliz!", ou "Eu s queria ser normal". De onde vem essa demanda? Qual o endereamento destas queixas? H um "suposto saber" que sustenta o desejo. E qual desejo? O desejo de falar. Esse desejopartemuitasvezesdoesforoemelaboraroquenopodeserelaborado, parte muitas vezes do esforo em escapar das injunes cotidianas que restringem aspossibilidadesdesentidopresentesnodia-a-diavividoemmeioa impessoalidadeseapropriaessimplesmentedadaspelasvozesdetodo mundo.Rtulos,classificaes,verdadeirasnormatizaesimpostas cotidianamenteencontram,noespaoclnico,naatitudeclnica,apossibilidadede seremdesconstrudasemfavordenovasinterpretaes,novascompreensese maneiras de reestabelecer relaes de sentido mais livres. H, portanto, umsavoir-faire que historicamente autorizado atravs da prpria constituio desse campo. Aclnicapsicoterpicatalcomoaconhecemosatualmentebuscou,emsua constituiohistrica,umaespciedelegitimaonohorizonteestabelecidopelo modelotcnicoecientficocaractersticodamodernidade5.Foinesseambiente, ondeoscientistaspassaramatomarparasiatarefadelevarafrenteoprogresso crescenteimpulsionadopelaRevoluoIndustrial,quenasceramtanto apsicologia quantoaclnica.Asobrevalorizaodateoria,apolmicaemrelaoexistncia deumouvriosmtodosclnicos,aapostanaeficciaconseguidaatravsda aplicao de determinada tcnica e a purificao representada pela possibilidade de

5 Neste sentido e considerando a filosofia de Descartes seu marco, referimo-nos ao que diz Ricardo Jardim no artigo A cultura: o homem como ser no mundo (in: Fazer filosofia, org: MNE, L. M., Rio de Janeiro, UAP, 1998, p.45):AtarefadeDescartesfoicriarofundamentometafsicodestaemancipaomodernadohomem. neste sentido que se deve entender o cogito, ergo sum. Pertence, com efeito, essncia do cogito representar a realidade, dispor diante de si o que aparece. Na perspectiva inaugurada por Descartes, s real o que pode serfixado,objetivadoourepresentadonohorizontedocogito.()Acertezafundamentalada simultaneidadeentreoquerepresentadooobjetoeoquerepresentaosujeito.Foradacertezada representao,foradafuncionalidadesujeito/objeto,foradabitoladocogito,nohsalvao.Penso,logo sou. Esta frmula significa, portanto, que na perspectiva aberta por Descartes, ser = pensar = representar. 22 seobterumacertezaobjetivaemrelaoaosproblemaspsquicosapareceram comooscamposdebatalhadasdiscussesentreosclnicos/cientistas.Nesta perspectiva, herana histrica irremedivel a todos ns, o psiclogo clnico assumiu conscientemente ou no o papel de tcnico/interventor na realidade psquicado outro6. Tal assuno decorre tanto da identificao, por parte da populao, do papel doprofissionaldesadecomosendoumprofissionalqualificadoaresolver problemas quanto, por parte do profissional, da formao profissional, muitas vezes calcadaemreproduzirdiscursostericoslongnquosaoinvsdepromovero questionamento crtico em relao ao seu papel, enquanto profissional de sade, na sociedade. Quanto a filosofia, aps quase perder na segunda metade do sculo XIX sua razo de ser em favor do privilgio reclamado pelo discurso cientfico,ela renasceu com vigor no sculo XX atravs de personagens como Martin Heidegger, Jean Paul Sartre,MichelFoucaulteGillesDeleuze,paracitarapenasalguns.Ofilosofar entendido como indagao recorrente a partir de uma postura crtica em relao ao dado que se apresenta sob o nome de realidade circundante teve, neste filsofos, umaretomadavigorosa,reavivandooantigoimpulsodefilosofarapartirdo thaumatzin, o espanto e o senso de curiosidade indagativa prprio no daquele que reproduzdiscursos,masdaqueleque,noespanto,recompediscursivamenteo dado,inferindocriticamentedemodoacriaronovo.Otrabalhomeditativo,oolhar contemplativoeoprprioofciodofilsofoforameestosendoextensamente discutidos a fim de promover o papel da filosofia para alm do tecnicismo cada vez mais reinante7. Esse tecnicismo, aliado com a poltica de oferecimento de resultados e solues prontas para o consumo, seja no campo da sade ou em outros campos (polticos,econmicos,etc.)tem,naconsideraodatarefafilosficacomoum tribunaldecontascientficoenoprocessodedesenraizamentodalinguagem atestada no desenvolvimento das cincias da informao sua origem e seu fim. Se muitas das disciplinas -antes ramos da filosofia confirmaram sua emancipao,

6 Quanto a identificao do psiclogo clnico como um tcnico ver GEMINO, A. M. Sobre o lugar da teoria na prticaclnica:umaabordagemhermenuticaeNOVAES,R.Apsicoterapiaeaquestodatcnica,ambos nos Arquivos Brasileiros de Psicologia, vol.54, n.4, 2002 (n especial sobre Hermenutica e Clnica). 7ValenotaraquiaposiodeHeideggerquantoaofimdafilosofia:Paraele,afilosofia,entendidacomo metafsica, teria seu trmino em Nietzsche. Caberia ento perguntar sobre a tarefa do pensamento (cf.O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, in: Os pensadores. SP: Nova Cultural, 1999). 23 no deixaram por sua vez de recorrer a Grande Me para rever seus fundamentos. OfilsofoespanholManuelGarciaMorente,emumcursodeintroduofilosofia ministradoem19378,maisespecificamentena2lio,expe,brevemente,o movimentoque,nointeriordafilosofia,acabouporfazersurgirtantoascincias modernasquanto,nosculoXIX,provocarumverdadeirocurtocircuitoentre saberes(Cf.FERREIRAetall,2005,p.36ss).ocasodapsicologia, especificamente em alguns de seus vrios campos de pesquisa. Aps dois sculos (XVIII e XIX) privilegiando em seus debates a afirmao de sua prpria existncia9o panoramaatualdeemancipao.Entretanto,essaaparenteemancipao continua,pelasuaprpriaconstituio,atravessadaporinteressesdiversosque tornam impossvel a demarcao de um campo autnomo. Diversas so as reas da psicologiaquesustentamsuaspesquisasindependentementedafilosofia.Nocaso da clnica, entretanto, se nos clssicos livros de histria e de introduo psicologia encontramosmuitasvezesaindaavelhaclassificaodaclnicaemtrseixos bsicospsicanlise,humanistaecomportamentaltalfatosedmaispela cegueiraemrelaoacomplexidadedoprpriocampodaclnicadoquepelo esforo em apresent-la respeitando sua polissemia. Alm das discusses relativas s situaes de aplicao da clnica (psico-oncologia, clnica aplicada a queimados e psicologia social-clnica, por exemplo), h atualmente uma proliferao de pesquisas queobjetivamumarevisoemrelaoaoprpriofundamentodaclnica psicoterpica10.Assim,seretomarmosaafirmativainicialdestaseoe,tendoem contaaprpriaheterogeniadasprticasclnicas,colocaremoscomoquestoseu lugar de fundamentao.

8 Publicado em portugus com o ttulo Fundamentos de filosofia, SP: Mestre Jou, 1964.9 Cf. Cap. I (A constituio da psicologia como cincia) de nossa dissertao de mestrado intituladaDa tcnica tica como fundamento da clnica psicoterpica., IP/UFRJ, 2001.10TentamosseguiraquioquedizaProfa.MoniqueAugras:Emnossotrabalhodeensinoemnveldeps-graduao,cadavezmais,nosconvencemosdequeafaltadeembasamentofilosficoexplcitoseprendea grandecarnciadaformaodopsiclogo(Oserdacompreenso:fenomenologiadasituaode psicodiagnstico, Petrpolis, Vozes, 1976, p.13). 24 c) A pergunta sobre o fundamento da clnica e seu lugar de tematizao Emumartigode2007,intitulado"Osurgimentodaclnicapsicolgica:da prtica curativa aos dispositivos de promoo da sade", Moreira et. All (Op. Cit.) se propemafazerumabrevegenealogiadasprticasclnicas.Assim,elasnos mostram que o vnculo inicial da atividade clnica pertenceu ao fazer do mdico, que, comoobjetivoderealizarumprognstico,usariaaobservaoeaaplicaode entrevistas. Esta racionalizao do fazer do mdico surgiu em um horizonte histrico especficoqueseconfundecomoprprioadvirdacinciamoderna.Entretanto,o fazer do mdico pode ser rastreado nos antigos Terapeutas de Alexandria, descritos porFlondeAlexandria11.Osantigosterapeutas,identificadossegundoFloncomo verdadeiros"mdicosdaalma",jdeixavamtranspareceracomplexidadeentre alma e corpo, entre aquilo que era visvel, palpvel, e aquilo cuja existncia residiria em outra instncia que no o sensvel, isto , para alm do fsico. Desse modo, no nos parece surpreender a ligao entre aclnica e a Medicina. Ainda na citao de Flon, vemos uma considerao sobre a especificidade da educao dos terapeutas. Se antes eram as sagradas leis e o vislumbre da natureza tornada tambm sagrada afonteprimordialqueconferiaopoderdecuradosterapeutas,aoolharparaa recentehistriadasprticasmdicasoqueaparececomofontedelegitimaoda identificao da clnica com a Medicina o chamado paradigma cientfico moderno. Hipcrates, Galeno, e mesmo os padres da Igreja deram lugar figura do cientista, versadonoempoderesmgicosadvindosdeumaconstruoexplcitae assumidamentemetafsica,masemumatransfiguraodametafsicaem

11ValeareproduodeumapassagemdeFlondeAlexandria(1996,pp.35-36):Oprprionomedesses filsofos,osassimchamadosTerapeutas,revelaoseuprojeto,emprimeirolugarporqueamedicina(iatrik), que professam, superior quela que vem sendo exercida em nossas cidades- uma medicina que apenas cuida docorpo,enquantoaoutratambmcuidadopsiquismo(psykas),atormentadoporessasdoenaspenosase difceisdecurarquesooapegoaoprazer,adesorientaododesejo,atristeza,asfobias,asinvejas,a ignorncia, o no conformar-se ao que e uma infinidade de outras patologias (phaton) esofrimentos. Se eles se chamam Terapeutas, tambm porque receberam uma educao conforme natureza e s sagradas leis e porquecuidamdoSer(therapeuentoOn),quemelhordoqueoBem,maispuroqueoUno,anterior mnada. 25 objetividade,exatidoecontrole,caractersticasdeumaeranomeadapelofilsofo alemo Martin Heidegger como sendo "A Era da Tcnica"12.No nosso propsito aqui revisitar a constituio das prticas clnicas como fazem Jacqueline Moreira no artigo citado sobre o surgimento da clnica (Moreira, O. J. et alli, Op. Cit.), e outros13, mas, to somente, afirmar que em seu desdobramento histrico,olugardefundamentaodasprticasclnicasfoieaindatemcomo cenrio a dimenso teortica, ou seja, a dimenso de explicitao terico-conceitual que tem como objetivo o enquadramento da experincia clnica a partir de modelos interpretativosprviosdemodoaconformaracausalidadecapacidadede previsibilidade14. Aolevarmosemconsideraoarelaoentreclnicaecinciaalgumas caractersticas podem ser destacadas: 1- Desde seus primrdios, o ofcio do clnico/terapeuta esteve intimamente ligado s prticas mdicas, embora guardando distines baseadas na dicotomia corpo/alma; 2 - Com a configurao do paradigma cientfico moderno e o delineamento da figura docientista,aautoridademdicapassoudamagiaexatido,objetividadee controlesupostamentealcanadosatravsdeumacorretaexecuodarazo metdica; 3-Adicotomiasujeito/objeto,explicitadaapartirdopensamentocartesianofez surgir outra dicotomia: a do mdico (sujeito) e paciente (objeto); 4-Sendoomdicoodetentordeumsaberlegtimo(cincia)opacientese transformouemobjetodeestudoparaaconfirmaoe/ourefutaodeum

12 Heidegger nomeia de "A Era da Tcnica" a poca advinda especificamente aps a industrializao. Dos diversos textos em que Heidegger trata do tema destacamos "A questo da tcnica" in: Ensaios e Conferncias (2002/1954). 13Noslimitamosaquiasugerirduasobras:ELLENBERGER,H.F.(1974)ladcouvertedelinconscient. Villeurbanne,Simep,BERCHERIE,P.(1989/1980)Osfundamentosdaclnica:histriaeestruturadosaber psiquitrico,almdeumlivroclssicode1952deautoriadapsiquiatraIracyDoyle(IntroduoMedicina Psicolgica. RJ, Casa do Estudante). 14 Sobre isso nos referimos s consideraes de Heidegger no texto Cincia e meditao, in: Ensaios e conferncias (op. cit.). 26 determinadoaparatolgico-formalcujoobjetivoltimoaexplicaodeum determinado fenmeno psicopatolgico. Para alm das caractersticas citadas, outro ponto a ser considerado se refere adicotomiaclnica/poltica,comonosapontaMoreira(Op.Cit.),objetode consideraesfuturas(verCaptulo4).Nomomento,cabe-nosreverdemodo bastante sucinto algo das razes pela qual afirmamos que desde seu aparecimento namodernidadeasprticasclnicastiveramcomoesteiooparadigmacientfico moderno. d) A constituio histrica das prticas clnicas e sua relao com a cincia moderna Em 1784, duas comisses de cientistas (uma na Frana e outra na Inglaterra) foram formadas para avaliar a legitimidade do que, na prtica, j obtinha um sucesso significativo entre seus praticantes. Tratava-se do magnetismo animal, espcie de fluidouniversalcujopoderdecuraerasustentadoporFranzAntonMesmer,misto de cientista e curandeiro. Aps as devidas discusses sobre a cientificidade ou no de tal fluido, o magnetismo animal no s foi considerado fantasioso como Mesmer passou o resto de sua vida carregando a alcunha de charlato. Apesar do fracasso emtornarseusfundamentosaceitospelacomunidadeacadmica,Mesmerfoi pioneiroaovislumbrarapossibilidadededarumestatutocientficosprticas clnicas. O sculo que se seguiu viu nascer a clnica moderna15 sem, contudo, abafar as querelas em seu entorno16. Um discpulo de Mesmer, Marqus de Puysegur, deu

15Preferimosutilizarnestetrabalhoostermosclnicamodernaeclnicapsicoterpicaparadesignaro campodasprticasclnicastendoemvistaque,comonosdizSztulmann(Lacliniquefaceaupsychologue,in: Lunite de la psychologie? Les psychologues devant la clinique freudienne, Paris, Navarin, 1989, p.59): enfin, la psychologiecliniquepartageaveclapsychiatrieetlapsychanalyseuncorpusthoriquecomposdesous-ensembles divers, voire disparates, sinon inchoerntes.16 Para um aprofundamento em relao s linhas que seguem recomendamos algumas obras de Leon Chertok: Nacimientodelpsicoanalista:vicisitudesdelarelacinteraputicadeMesmeraFreud(comRaymondde Saussure, Barcelona, Gedisa, 1980), A hipnose entre a psicanlise e a biologia(Rio de Janeiro, Zahar, 1982) e O 27 a largada na tentativa de fundamentar cientificamente o processo clnico de cura das enfermidadesmentais.Onobrepartilhava,assimcomoMesmer,dacrenana existncia do fluido universal mas diferentemente de seu mestre, virou sua ateno aumoutrocomponentedoprocessodecura:asugestoverbaldomagnetizador. Mas a preocupao em adequar aquelas prticas aos parmetros cientficos no se extinguiucomavergonhapassadaporMesmer.CharlesRichet,Alexandre Bertrand e J. P. Deleuze foram alguns a arriscarem-se na primeira metade do sculo XIXalegitimardentrodospadresditoscientficosoprocessoqueocorriana clnica.Asugesto,logotransformadaconceitualmentenahipnose,serviucomo linhadefrenteparaumnmerocadavezmaiordeinteressadospelanovarea. Logo,NancyeSalptriretornaram-seosdoisprincipaiscentrosdepesquisa.O primeirocaracterizava-sepelointeressedeseuspesquisadoresnosaspectos psicolgicosdasugestoverbal.Eraminfluenciados,porsuavez,pelomdico consideradopormuitosanoscomocharlatoelouco,AugusteAmbroiseLibeault. JemSalptrire,cujoprincipalexpoenteeraJean-MartinCharcot,imperavauma atmosferamaisobjetiva,dadooprivilgiodaspesquisasdecarctersomtico.De fato,aprofusodeteoriasepesquisadoresdeuclnicamodernaumadesuas principais caractersticas: a disperso, ou seja, uma pluralidade de fundamentaes epistemolgicasoferecendo,cadaumadelas,modelosdeinterpretaoprviosao acontecimentoclnico.Todavia,emcomummultiplicidadedeexplicaesao processo de cura dos males mentais pairava a objetivao e a busca de controle da doenamental.FicaramfamosasasdemonstraesdeCharcotaoprovar,como doenteexpostoaosalunos,averacidadedesuasteorizaessobreahisteria.A loucura, cuja histria foi to bem exposta por Michel Foucault, parecia praticamente domesticadapelointelecto17dosmdicos/cientistastreinadosnavisocientfico-

corao e a razo: a hipnose de Lavoisier a Lacan (com Isabele Stengers, Rio de Janeiro, Zahar, 1990), alm da tese de doutoramento de Sidnei Jos Cazeto, professor da PUC-SP, intitulada A constituio do inconsciente em prticas clnicas na Frana do sculo XIX e publicada em 2001 pela Escuta/Fapesp.17VriosforamosmecanismosdecontroledaloucuradesdeosculoXVIreveladosporFoucaultemsua HistriadaloucuranaIdadeClssica(SP,Perspectiva,1978):asprticasdosilncio,doreconhecimentopelo espelhoedojulgamentoperptuo.Entretanto,comoelemesmoatesta(p.496)ela[afiguradomdico], sem dvida a mais importante, pois vai autorizar no apenas novos contactos entre o mdico e o doente, mas umnovorelacionamentoentreaalienaoeopensamentomdicoe,enfim,comandartodaaexperincia moderna da loucura. 28 natural. Mas a clnica moderna iria ganhar seu impulso decisivo somente no final do sculo XIX.Na Europa de 1900 um neurologista at ento conhecido por suas pesquisas juntoaCharcoteBleulersobreahisteriapublicaumaobraa frentedeseutempo. EraSigmundFreudquetornavapblicasuaInterpretaodossonhos.Este mdicovienensenosfezconvergirmuitasdaspesquisasdesenvolvidasmas, sobretudo, inaugurou uma nova era no campo da clnica moderna. Estava fundada a psicanlise18.Asexualidadeinfantil,alibidoe,principalmenteoinconsciente passaramasertemasobrigatriosaqualquerpessoaquedesejasseseguira carreiradeclnicodasdoenaspsquicas.Defato,elesmarcaramdeumaforma definitivatodaaculturaocidentaldosculoXX.NooutroladodoAtlntico,nos Estados Unidos, uma Psicologia objetivista que tinha como base o pragmatismo de Willian James e o funcionalismo de John Dewey ganhava terreno. O importante era aaplicaoprticadetaloutalconceito.Associadaaoclimapositivistapromovido por Auguste Comte19 a Psicologia americana legava clnica o status de Psicologia aplicada. Em 1896, Lightner Witmer utiliza pela primeira vez o termo mtodo clnico. Para ele o mtodo clnico, antes de tudo, tem finalidades prticas: prevenir e tratar asdeficinciaseasanomaliasmentaisdeindivduosparticulares20.Seomtodo clnico tal como exposto por Witmer representou, por sua vez, somente o incio das

18ValenotaraquiasobservaesdeHeidegger(SeminriosdeZollikon,op.cit.p.222):Ametapsicologiade Freudatransfernciadafilosofianeokantianaparaohomem.Deumladoeletemascinciasnaturaisedo outroateoriakantianadaobjetidade.AfiliaokantianadapsicanliseatestadatambmporIsabelle Stengers (Quem tem medo da cincia? Cincias e poderes, Rio de Janeiro, Ed. Siciliano, 1990, p.129ss). 19 O veto do positivismo comteano filosofia espiritualista de Maine de Biran isto , pretenso de tornar as reflexes sobre mente e esprito cientficas ser o responsvel direto pelo atestado de independncia total reivindicadopelapsicologiaemrelaofilosofia.Enquantoomentalismodospsiclogosestruturalistas (Fechner,Wundt,Tichener),cujacrticaaosseusfundamentosporpartedefilsofoscomoHusserleBergson aindamantinhaumaviadecontactomesmodeformanegativadapsicologiacomafilosofia,como behaviorismooespritoobjetivistachegaaoseuextremo.Napublicaodomanifestobehavioristaem1913 JohnB.Watsonafirmaqueapsicologia,tornadacinciadocomportamento(behaviorscience),teriacomo objetosomenteosfatosobservveis,excludospoisquaisquerconsideraessobreconscincia,menteou esprito.20 REUCHLIN, M. Os mtodos em psicologia, So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1971, p.106. 29 discusses sobre este tema21, com o advento da psicanlise e da psicologia clnica aplicadaamericanaasprticasdecuradasdoenasmentaisconseguiram,a despeitodasdiscussessobreseusfundamentos,reconhecerem-secomoprticas cientficas. Comomodelocientficomodernoditandoasregrasdasprticasclnicas,o doentetinhapoucoespaonasdiscusses.Eraaetiologiadasdoenasomais importante.Adimensotericasobrepujavaaprtica,necessitandoporpartedos pesquisadoresapenasalgunspolimentosnaquelaparaquedispusessemdeuma lente ideal a partir da qual o clnico poderia ver e tratar ou, ao menos,explicar a doena. Em um texto intitulado "Cincia e pensamento do sentido"22, Heidegger afirma queachamadacinciaocidentaleuropeiadeterminou,eaindadetermina,omodo peloqual"vemos"arealidadeanossavolta,isto,omodopreponderantede interpretaoecompreensodarealidadequenosrodeia.Maisalm,ofilsofo alemo lana uma frase inicialmente enigmtica, mas que vai pouco a pouco sendo dissecada ao longo do texto; "A cincia a teoria do real". Cincia, teoria e realidade soanalisadosporHeideggeratravsdeumadesconstruolevadaacabotendo comofiocondutorosmeandrosdopercursoetimolgicodecadauma.Esta desconstruo crtica feita atravs de uma hermenutica cujo objeto o contexto no qualcadasignificadoecadatraduosemostrouamaispropciaemumcampo polissmico, tm em comum o fato de pertencerem a um horizonte que lhes confere um "em torno" de significaes, ou seja, um "esprito do tempo" - Zeitgeist. Assim, a aparenteobviedadecomquetratamosestestermosescondeumasriedepr-julgamentosingnuosnaqualaimpessoalidadeeodescompromissoticosse legitimam a partir de uma determinada compreenso comum. Este esprito, chamado de"eradatcnica",modernidadeoumesmo"ps-modernidade"podemservistos, em seu conjunto, como oriundos da prevalncia do que chamaremos de "metafsica dasubjetividade".Mas,oquequeremosnomearaquiaousarmostalexpresso?

21AquiconcordamosinteiramentecomNietzschequandoeleafirma,emVontadedepotncia,quenoa vitriadacinciaquedestacaonossosculoXIX,massim,avitriadomtodosobreacincia(citadopor Heidegger nos Seminrios de Zollikon, Petrpolis: Vozes, 2001, p.154). 22 In: Ensaios e conferncias. Petrpolis, Vozes, 2002. 30 No nos interessa aqui perscrutar toda a histria da metafsica, dado que esta seria uma tarefa longa e fora de propsito para o encaminhamento de nossa questo. O importante ressaltar a relao entre a metafsica e a essncia humana (Heidegger, 2002, p. 63): Em que medida a metafsica pertence natureza do homem? A metafsica re-presenta, de incio, o homem como um ente dentre os demais, dotado de capacidades. A essncia, qualificada desta ou daquela maneira, a natureza, oteor(oqu)eamodalidade(ocomo)deseuser,emsimesma metafsica:animal(sensibilidade)erationale(no-sensvel).Limitado, assim, ao metafsico, o homem permanece atado diferena desapercebida entresereente.Emtodaparte,omodocunhadopelametafsicadeo homemrepresentaremproposiesapenasencontraomundoconstrudo pela metafsica. A metafsica pertence natureza do homem. Mas o que a naturezaelamesma?Oqueametafsicaelamesma?Emmeioaessa metafsica natural, quem o homem ele mesmo? Ser apenas um eu que, narefernciaaumtu,sfazconsolidarsuaegoidadeconfirmando-sena relao eu-tu? Aqui,oqueinteressanteapontarquenarelaoentreametafsicaeo homemoqueseescondeoqueHeideggerchamadediferenaontolgica,ou seja,adiferena,fundamental,entreSereente.Essadiferenaaparececomo fundamentalnamedidaemquemarcaaimpossibilidadedeentificaroSer mesmo.NosepodetrataroSercomoentepostoqueosegundoencontraseu sentidonohorizonteabertopeloprimeiro.Ohomem,enquantoentecujomodode serconsistejustamenteemperguntar-sepeloseuSer,resguardaemsiessa diferena, mesmo que de incio e na maior parte das vezes no se aperceba dela. A metafsica aparece ento como o horizonte que oferece modos de determinao do homemquedesconsideram,pordiferentesmotivos,ocarterinterrogativoem relaoasimesmoqueacompanhaaexistnciahumanaenquantotal.Ao escutarmosasconsideraesqueHeideggernosapresentaaqui,elevando-seem contaaconstituiodasprticasclnicas-particularmenteapreocupaodos "clnicos"emlegitimarcientificamentesuasprticas-emseuconjunto,asdiversas propostas de clnica tm como escopo a metafsica, que, por sua vez, subjaz a todas 31 as compreenses sobre cincia, teoria, realidade e mesmo sobre a natureza (normal e patolgica) do homem. O que queremos dizer que o campo das prticas clnicas apresentadiversasconcepessobreaessnciahumanacalcadasemdistintos projetos epistemolgicos que se sustentam em diferentes pressupostos metafsicos. Seumavisadabrevepelasuaconstituionosrevelaalgodaaparente identificaodaclnicacomacinciamoderna,devemosagoraproporumdesvio, de modo a nos afastarmos da densa floresta da disperso no que tange a dimenso queresguardougrandepartedosdebatesrelacionadoscomafundamentaodas prticas clnicas. e) Deslocando o estudo crtico das prticas clnicas de sua referncia essencialmente epistemolgica Comovimos,aconstituiodasprticasclnicasfoiatravessadapelo paradigma cientfico moderno. Este, na medida em que trouxe consigo a promessa - nemsemprepossvel-deencontrarouidentificaraverdadesobredeterminado fenmenoouacontecimento,fezsurgirumsemnmerodepropostasde fundamentaodaclnicaondecadaumaperfazumadeterminadapr-compreenso que configura o sentido de seus conceitos fundamentais. Em relao a essacaractersticadascincias,Heideggertecealgumasconsideraesno pargrafo 3 de sua obra fundamental - "Ser e tempo": Conceitos fundamentais so determinaes em que o setorde objetos que serve de base a todos os objetos temticos de uma cincia compreendido previamentedemodoaguiartodasaspesquisaspositivas.Trata-se, portanto,deconceitosquesalcanamverdadeiralegitimidadee "fundamentao"medianteumainvestigaoprviaquecorresponda propriamenteaorespectivo.Ora,namedidaemquecadaumdesses setoresrecortadodeumaregiodeentes,essainvestigaoprvia, produtoradeconceitosfundamentais,significaumainterpretaodesse 32 entenaconstituiofundamentaldeseuser.Essasinvestigaesdevem anteceder s cincias positivas23. Aoapontarqueosconceitosfundamentaisdeumadeterminadacinciatm em um recorte ontolgico prvio sua base, possvel reconhec-lo no que tange ao direcionamentodaspesquisascircunscritaspelascinciasdanatureza.Mas,ese esseobjetoforaexistncia?ApartirdasconsideraesdeHeidegger perguntamos:atquepontoasdiversasteoriasdapersonalidade,queporsuavez legitimamtaisetaismodosdeseintervirclinicamentenooutro,trazemconsigode modoexplcito,asrazesdedeterminado"corte"ontolgicoemrelaoaoserdo homem?Demodoadeixarclaronossoquestionamento,faz-senecessriorecuar um pouco mais no pargrafo mencionado anteriormente (Ibid. p. 35): Apesquisacientficarealiza,demaneiraingnuaeagrossomodo,um primeirolevantamentoeumaprimeirafixaodossetoresdosobjetos.A elaborao do setor em suas estruturas fundamentais j foi, de certo modo, efetuadapelaexperinciaeinterpretaopr-cientficasdaregiodoser que delimita o prprio setor dos objetos. Embora apresente, em sua constituio histrica, um compromisso por vezes explcitocomoparadigmacientfico,particularmenteodaschamadascincias naturais, o fato que este compromisso (ou comprometimento) deu margem a uma srie de equvocos. Se levarmos em conta que o objeto da clnica o homem e, se meditarmossobreofatodequeaelaboraodomodocomocompreendemoso objetoefetuadanaexperinciapr-cientfica,podemosadmitirqueasdiversas teorizaes da personalidade trazem, por seu turno, delimitaes prvias a respeito denossarelaodesentidocomesseobjetoque,nosendoumente intramundano, nos convoca a pensar nossa prpria relao com a alteridade. Aotermoscomobaseparaasconsideraesqueseguemaanalticada existncia desenvolvida por Heidegger em "Ser e tempo"24, podemos dizer que, uma

23 In: HEIDEGGER, M. (1999) Ser e Tempo, Petrpolis, Vozes, p. 36. 33 vez em seu estar-lanado, a existncia humana compreende previamente as coisas atravs de uma disposio afetiva que, por sua vez, desvela-se como linguagem. importantefrisarmosqueo"estar-lanado"daexistnciaaquenosremete Heideggerestlongedeserestringiraumconceitocujaorigemremeteriaauma considerao de carter metafsico, isto , a um modelo prvio do ser do homem. Ao contrrio, ele diz respeito ao nosso vir-a-ser cotidiano, originrio ao nosso carter de aberturanaqualosentidodosentesfaz-sesurgiraonossoencontroatodo momento,dadoque"existimos".Aoseproporaolharfenomenologicamentea existncia, Heidegger explicita determinadas caractersticas que so mais originrias doqueasconceituaesmetafsicas,cientficasetericasquepermeiamnossa tradio ocidental. Assimsendo,aoconsiderarmosquetodaequalquerteoriatem,atrsdela, umdeterminadomododecompreenderedecircunscreverosafetosequecada maneiracorrespondeaumdeterminadorecortefeitoporaqueleclnicoque,por questespr-cientficasepr-tericas,seafinacomdeterminadaabordagem terica,cabe-nosagoradelinearohorizontenoqualtradicionalmenteso explicitadasasdiscussessobreafundamentaodasdiversaspossibilidadesde teorizaessobreaclnicae,sobretudo,apontarmosaspossibilidadeselimites desse lugar.

24 De acordo com Ernildo Stein, em seu clssico livro Seis estudos sobre Ser e Tempo (Petrpolis: Vozes, 1998, pp.10-11),Heideggerapresentaseistesesque,emseuconjunto,circunscrevemeexplicitamo desenvolvimentodaanalticadaexistncia:a)Inicialmenteaquestodosentidodosersituadaenquanto tarefaquelegitimaaconstruodeumaontologiafundamental;b)Aretomadadaquestoanteriortemseu lugarnaclarificaodonicoentequetemcomocaractersticafundamentaloperguntar-sesobreseu prprio ser, o homem (Dasein); c) Enquanto a, o Dasein ser-no-mundo; d) Sendo no-mundo o Dasein aberturaarelaes,cuidadooucura(Sorge);e)Talaberturasedsempreemumhorizonte(a temporalidade) e f) A temporalidade mencionada enquanto horizonte distinta da temporalidade linear, uma vez que constitutiva do carter de abertura (temporalidade ek-sttica). 34 CAPTULO 1 - O HORIZONTE DE SURGIMENTO DA FENOMENOLOGIA E SUAS RELAES COM O CAMPO DAS PRTICAS CLNICAS Algunslivrossobreaspsicoterapiaseasprticasclnicas25apresentam-nas comoumcampocomplexo,masnotecemconsideraessobreasrazesdetal caracterstica.Sobreosmotivosdetalausncia(nofaremosrefernciaaosdebates contemporneosnomomento,dadoqueseroobjetodeconsideraesmaisa frente),talvezHeideggerpossanosdarumapistanotexto"Cinciaepensamento do sentido" (Op. cit. pp. 53-54): APsiquiatriatratadavidamentaldohomememsuasmanifestaesda doena,oqueincluisempreasmanifestaesdasade.Easrepresenta pelaeapartirdaobjetividadedaintegraodecorpo,alma,mentee esprito constitutiva de todo homem. Na objetividade da Psiquiatria, o modo jvigentedeohomemserapresenta-seeexpe-secadavez.Estemodo deser,aex-sistnciadohomem,comohomem,permanecesempreo incontornvel da Psiquiatria. EmboraHeideggerserefiraespecificamenteaPsiquiatria,considerandoa amplitude das prticas clnicas no seria equivocado aplicarmos suas consideraes ao ofcio da clnica em seu sentido amplo. De modo a nos desviarmos da modelao prviadaexistnciaapartirderecortesontolgicostradicionaisque,porsuavez, apresentamdiferentesconsequnciasepistemolgicas,oquefazdaclnicaum campoessencialmentedisperso,etomarmoscomoguiaofatodequehalgode

25 Limitamo-nos a citar alguns: BACHRACH, A. J. [Org.] (1972) Fundamentos Experimentais da Psicologia Clnica. SP,Herder&USP.MACKAY,D.(1977)Psicologia:teoriaeterapia.RJ,Zahar.ROTTER,J.B.(1967)Psicologia Clnica.RJ,Zahar.SZTULMANN,H.(1989)Lacliniquefaceaupsychologue,in:Lunite delaPsychologie?:les psychologues devant la clinique freudienne. Paris, Navarin. 35 incontornvelnaclnica,oprximopassoconsisteemreafirmarolugarapartirdo qualsustentamosnossoquestionamento,ouseja,restaagorarecolocara fenomenologiacomoalternativaaoimbricadoedispersohorizontedocampo epistmico.Entretanto,antesdetalrecolocao,faz-senecessriopercorrerde modointrodutrioaemergnciadafenomenologiaeonascimentodasuarelao com as prticas clnicas. 1.1-Ocontextodesurgimentodafenomenologiavistacomoalternativa epistemologia AobradeHusserlrepresentanahistriarecentedafilosofiaumcaptulo fundamental.Aocriaromtodo fenomenolgico,Husserlnosdeufilosofiaum novoimpulsoemumapocaondeasquestesrelacionadasaocientfico imperavamentreosfilsofosinteressecompartilhadotambmporelemas, sobretudo,abriuumhorizontetotalmentenovodepensamento,poistomoucomo tarefanosdistinguiraatitudecientficadaatitudefilosficamas,sobretudo, refundarafilosofiaemnovasbases26.Afimdecompreendermosaradicalidadedo passo inaugural dado por Husserl convm, de incio, mapear seus antecedentes. Apsopredomnio,naprimeirametadedosculoXIX,doIdealismono pensamento alemo atravs das obras de Fichte, Schelling e, principalmente, Hegel, opanoramaeradediversificao27.Avisonaturalista(advindacomospsiclogos experimentais)epositivistadarealidade(atravsdeumretornoaocriticismo kantiano)deramcincianofimdosculoXIXumpapelfundamental:eraelaa novalinhamestradedoaodesentidodomundo.Acincia,particularmentea cincianatural,quedesdeDescarteshaviatransformadoanaturezaetodaa

26 Na 1 lio da A ideia da fenomenologia (Lisboa, Ed. 70, 2000, p.46) Husserl define assim a fenomenologia: Fenomenologiadesignaumacincia,umaconexodedisciplinascientficas;mas,aomesmotempoe acimadetudo,fenomenologiadesignaummtodoeumaatitudeintelectual:aatitudeintelectual especificamentefilosfica,omtodoespecificamentefilosfico.VertambmasconsideraesdeHusserl sobreAfenomenologiacomocinciaderigor(traduoportuguesa,Coimbra:Ed.70,1960),principalmente p.61ss.27 Cf. DUPUY, M. A filosofia alem (Lisboa, Ed. 70, 1987, Cap. VI e seguintes). 36 realidade(resextensa)comopassveldemensuraoeclculo,encontravana psicologia experimental o seu baluarte. Os fatos psquicos (imaginao,percepo, inteligncia,memria),correlatosdosfatosfsicosedotadosdeumarealidadea prioriaparentementeincontestvel,erammanipuladospelospsiclogos experimentaisvisandoaexplicao.Embora,comoapontaRobertBlanch,28o mentalismoeocomportamentalismocaiamnomesmoerroqualseja,ode partiremdeumrealismopsicolgicosemumainvestigaoprviadeseucarter ontolgico, o fato que a Psicologia do fim do sculo XIX acabou por tentar fundar-se,dediferentesmodos,emumcampomovedio.Omododesefazercinciada modernidade ou seja: a construo de um teorema, a formulao de uma hiptese, ainvenodeumambientedeverificaodaquelahipteseeareformulaoou refutao da verdade teortica obtinha sua traduo mxima atravs de Wundt29, Fechnereoutrosque,noobstante,apontavamserapsicologia,entendidacomo psicologiaexperimental,ofundamentoeoprincpiodetodasasoutrascincias, postoqueseuobjetoeraopsquicoentendidocomooprocessodeaquisiodo conhecimento,incluindoaocientfico.Eraoaugedeumaideologiadenominada pelosseuscrticosdepsicologismo.Logo,vriosforamosfilsofosqueatacaram essa pretenso da psicologia. Henri Bergson na Frana e William James nos EUA buscaram uma sada na anlisedosdadosimediatosdaconscincia.WilhelmDilthey(cujorelativismo,que paraHusserlteriasuabase,talcomoopsicologismo,nonaturalismo,seralvode crticanasegundapartedaFenomenologiacomocinciaderigor),distinguindoo objeto das cincias naturais e das cincias do esprito (a primeira visando explic-lo e a segunda compreend-lo) apregoava a importncia do vivido e de sua descrio. Mas foi em um pensador que durante anos tentou conciliar uma carreira de filsofo comavocaoparaaliturgiaque,temposdepois,Husserliriaencontrara inspiraodeterminanteparasuaobra:FranzBrentano,particularmenteemsua propostadeelaboraodeumapsicologiacalcadanoatopsicolgico,

28 La notion de fait psyque: essai sr les rapports du physique et du mental. Paris, Livrairie Flix Alcan, 1935. 29Araujo,S.F.,nocaptulodolivroPluralidadedocampopsicolgico(RJ:UFRJ,2010)intituladoO voluntarismo de Wilhem Wundt aponta que, alm da escassa bibliografia do autor em portugus, nos livros de histria da psicologia acabou-se por valorizar muito pouco a vertente no experimental de Wundt, a chamada psicologia dos povos, parte significativa de sua obra. 37 diferentementedapropostadospsicofsicos,centradaemextraircontedos psicolgicos.Esteeraumpensadorparticularmenteincomodadocomdogmas. Primeiroemrelaoasuavidareligiosa,postoqueemboratenhanascidonuma famlia catlica e ter sido ordenado padre, Brentano viu-se desgostoso da instituio catlica aps a publicao da encclica que pregava o dogma da infalibilidade papal. Emseguida,emseupensamentofilosfico,considerandoopensamentokantiano como representante do declnio de um perodo de ouro para afilosofia (de Bacon Leibniz)erealizandoumretornopeculiaraoaristotelismotomista30(objetode rejeioporpartedosidealistasalemes),oqualserviudebaseparasua concepodaconscincia31.ParaBrentano,osfenmenospsicolgicosse distinguiriam dos fsicos pela presena neles de algo ideal (no real) com o carcter de significao (a experincia vivida Erleibnis e o juzo). Todo fenmeno psquico teria por base, segundo ele, uma representao do objeto a qual daria, assim, a sua existncia.Almdisso,aodistinguirapercepointernadaobservaoilusria propondo aqui um uso do mtodo introspectivo distinto de Wundt e seus discpulos, Brentanorevelariaaintencionalidadedaconscincia.Dondesuapsicologia descritivacujodeverseriafazerumamorfologia(classificao)decomoa conscinciavisaseusobjetosdetaletalmaneira(apreciao,recordao,juzo, imaginao,afetividade,vontade).Embora,comoveremos,Husserltenhatido outrasinflunciasnotadamentedopensamentomatemticoomodocomo Brentanoentendiaaconscinciafoidecisivoparaqueofuturocriadorda fenomenologiapudessepartirdebasessegurasparasuasinvestigaes,umavez queanoodeintencionalidadeserviudebaseparaavalorizaodoato psicolgico como produtor de significao. 1.2 -Husserl e a criao da fenomenologia Oltimosculoviuafilosofiaflorescertantoporsimesmacomoatravsde dilogos com as cincias e outros meios de expresso da cultura humana. Inmeras

30 Retomada feita na sua tese de doutoramento intitulada Os mltiplos significados do ser em Aristteles, de 1862. 31 Desenvolvida em sua obra fundamental: Psicologia do ponto de vista emprico, 1874. 38 escolas,correnteseestilosdesefazerfilosofiaapareceram,desapareceramese firmaram.Almdisso,acriseentreafilosofiaeascinciasproporcionouo surgimento de ideologias que, nascidas com a proposta de serem cientficas (como FreudeMarx)acabaramporinfluenciaraculturacontemporneadecisivamente, impulsionandonovosrumosprpriafilosofiadaprimeirametadedosculoXX, comoateoriacrticaeasdiscussessobreoestatutodaloucura.Entretanto,sea psicanlise perdeu terreno na vida prtica para o processo de medicalizao da vida cotidianaeomarxismoencontrouseudeclnionosnocampofilosficomasna falncia mesma dos regimes socialistas (mesmo que estes fossem s supostamente influenciadospelomaterialismodeMarx),afenomenologiacriadaporHusserlno deixou, como previu seu criador, de oferecer ainda na atualidade um campo fecundo depesquisasnasmaisdiversasreasdaculturahumana.Heidegger,Sartre, Merleau-Ponty,Levins,Scheler,HenryeMarion(esteltimoaindaproduzindo), foramecontinuamservindoderefernciaparaatualizarnosafenomenologia masasprpriascinciashumanas.Restaaquivisaropensamentodeseucriador atravs de um olhar panormico.OpensamentodeHusserlcompe-seatravsdeumaprofundamento crescentedesuaproblemticafundamental,realizadoaolongodetodasuaobra. Qualseja: oobjetivoderetomar filosofia seucarterdefilosofiaprimeira,cincia de rigor com objeto e mtodo prprios.EmAfenomenologiadeHusserlcomofundamentodafilosofia32,oprofessor de filosofia e jesuta Jlio Fragata identifica quatro fases do pensamento husserliano, que expomos a seguir. Husserliniciaatarefadesuavidacomaspublicaes,em1882da dissertao Contribuies ao clculo das variaes e em 1887 com Sobre o conceito denmero,demonstrandoclarainflunciadeseuprimeiromestre,omatemtico Weierstrass.Em1891,comapublicaodesuaFilosofiadaaritmtica,a Psicologia descritiva de Brentano que d o tom. Embora o objetivo fosse clarificar os fundamentosdamatemticaedalgica,seupontodepartidaeraumaanlise psicolgicados mesmos.Esseponto de partida acabouporse mostrardecisivona direofuturadeseustrabalhosjque,apsarefutaodoeminentematemtico

32 Braga: Livraria Cruz, 1959. 39 Frege em que apontava ser o mtodo psicolgico de anlise de conceitos lgico-matemticos uma forma de reduzi-los Husserl tomaria como ponto de partida uma reflexo crtica do projeto da psicologia em ser o fio diretor do pensamento filosfico e cientfico. Em1900,pocaondeopensamentodeFreud,NietzscheeMarxainda estavammargemdasdiscussesacadmicas,Husserlpublicaemdoistomos suasInvestigaeslgicas.Noprimeiro,Husserltratadefundamentarumacrtica definitiva do psicologismo, que era para ele, conforme nos diz o Prof. Joo Paisana no seu livro Husserl e a ideia de Europa (p. 22) a doutrina filosfica segundo a qual tanto a lgica como a teoria do conhecimento deveriam ser consideradas disciplinas subordinadas, ou mesmo simples ramos secundrios, da ento nascente psicologia. O psicologismo apontado por Husserl se deveu, portanto, a pretenso dos primeiros psiclogos acadmicos de tomarem para si o domnio em relao as possibilidades elimitesdoconhecimentoatravsdoestudoexperimentaldopsiquismo.Ainda seguindo o Prof. Paisana (p. 25), a crtica ao psicologismo apresentada por Husserl teriadoismomentos:a)mostrarasdificuldadesqueopsicologismoserevelaria incapazdesuperardevidoaospressupostosdeseumtodoeb)tornarclarasas contradiesinternasdestadoutrina,contradiesque,quandolevadassltimas consequncias,permitiriamapresent-lacomoumautnticoceticismo.Defato, Husserlretomaressavisadacrticaemobrasposteriores.Nosegundotomoo nomefenomenologiaapareceparadesignaromtododeentendimentoe descrio dos atos noticos, abrindo, portanto, o campo prprio de investigao da fenomenologia. NaterceirafasedeseupensamentosegundoaclassificaodeFragata encontra-se o corao da obra de Husserl. Em 1907, com A ideia da fenomenologia (publicadoem1913) aproxima-sedeKant colocandoemquestoaconstituiodo objetodoconhecimento33eintroduzindo,pelaprimeiravez,aepochoperao pelaqualoscpticosdesignavamasuspensodojuzoapartirdaqual demarcava-seadistinodafenomenologiaemrelaoaorealismoingnuodas cincias baseadas numa perspectiva naturalista da realidade. Trata-se de por entre

33 A questo guia das cinco lies expostas no livro : como se constitui a objetividade a partir do subjetivo ou seja, como pode o sujeito alcanar ou conhecer aquilo que lhe transcendente? 40 parntesestodaarealidadetranscendenteconscincia,oque,porsuavez, traziaocampodaimanncia34como aquele da fenomenologia.Um desdobramento do mtodo fenomenolgico se d com as publicaes deIdees (1913/ Introduo fenomenologia pura), A fenomenologia como cincia de rigor (de 1911 e publicadas posteriormente),Liesparafenomenologiadaconscinciadotempo(1904-5,e publicadoem1920),Lgicaformaletranscendental(1929),ConfernciasdeParis (1929/asconfernciasnoforampublicadasemvida,tendoseucontedo desenvolvidonaobraseguinte)eMeditaescartesianas(1930)trazendoentre outrassuadvidaparacomDescartes,paraelefundamentaldesde1907comA Ideia da fenomenologia. Nafase finaldeseu pensamentocom oaparecimentodaCrisedascincias europeiaseafenomenologiatranscendental(1935)eExperinciaejuzo(1939, pstumo)umpensadoraindaperspicazexpesuasideiasemrelaoaoseu turbulentocontextohistrico,almdeapontarnasntesepassivamomento anterioradiferenciaodofenmenonasuafenomenalidadeumcampode estudosdafenomenologiaexplorado,porexemplo,porMerleau-Pontyea importncia dada por este ao corpo35 como dimenso originria de aparecimento dos fenmenos. Estaretrospectivaatravsdesuasprincipaisobras(tendodeixadoum nmero sem fim de manuscritos, Husserl deixou posteridade a publicao destes e deoutrostrabalhos)apenasconduzaumavisogeraldeseupensamentoeera esseoobjetivonestaetapadotrabalho.Oquevaledestacarofatodequeo retorno s coisas mesmas, a considerao do aparecer e daquilo que aparece tal comoapareceeavalorizaodaatitudereflexivadofilsofonossuas vivncias,massuaimanncia,abriu-seumcampointeiramentenovoparaa filosofia e para o pensamento contemporneo. Tal abertura tem como consequncia direta o convite experincia dos fenmenos considerando o aparecer dos mesmos talcomosedoconscincia,prescindindodeinterpretaesprviasconstrudas em solo metafsico.

34 Mas no somente a imanncia ingrediente (como Descartes) mas, sobretudo, a imanncia intencional (sobre isto ver 3 lio da Ideia da fenomenologia (op. cit.). 35 Para um aprofundamento didtico a respeito da questo do corpo na obra de Merleau-Ponty ver Nbrega, T. P. Corpo, percepo e conhecimento em Merleau-Ponty, in: Estudos de Psicologia 2008, 13(2), 141-148. 41 1.3 - A proposta fundamental do pensamento de Heidegger Com apublicaodeSere tempoem1927inaugura-se uma novaetapada fenomenologia.DiscpulodeHusserl,Heideggernestaobramarcadefinitivamente sua distino em relao ao mestre. Enquanto Husserl teria como horizonte de seu pensamento inicialmente uma crtica ao psicologismo e depois o estabelecimento de umafenomenologiatranscendental,Heideggerpartiriadeumaperguntaparaele obscurecida desde Plato e do nascimento da filosofia ocidental: a questo sobre o sentido do ser. Longe de ser uma questo tomada arbitrariamente entre outras, para Heideggertratar-se-iadaquestofundamental36cujaretomadasefarianos profcuamasnecessrianocontemporneo,denominadoposteriormenteporele comosendoaEradaTcnica37LogonoprimeiropargrafodeSeretempo(Op. Cit. pp. 28-30), Heidegger identifica trs preconceitos tradicionais que obscureceram qualquer tentativa de levar a cabo uma meditao autntica sobre essa questo ao longodatradiofilosficaocidental:a)seroconceitomaisuniversal,b)o conceitodeserindefinvelec)oserevidenteporsimesmo.Esses preconceitos teriam sua raiz no desvio, realizado por Plato, da questo do sentido doserparaadeterminaodaessnciadosentesapartirdeumaposioprvia, ou seja, pela deciso de sistematizar a filosofia a partir de uma garantia metafsica, capaz de oferecer um fundamento absoluto, universal, busca pelo conhecimento. De fato, a filosofia ocidental, segundo Heidegger, desenvolveu-se tendo como fundamento,nemsempreexplcito,umarespostametafsicaquestosobreo sentidodoser.MundodasideiasemPlato,ousiaemAristteles,Deusno pensamentomedieval,cogitoemDescartes,sujeitotranscendentalemKante IdeiaemHegel,todosestesconceitosforamentendidosporHeideggercomo tentativasderespondermetafisicamentesobreaquestoparaelefundamental.A fim de retomar a dignidade da pergunta sobre o sentido do ser, Heidegger realiza em

36 Ser e tempo, Petrpolis, Vozes, 1999, 8 edio, Cap. I (Necessidade, estrutura e primado da questo do ser, 1-4). 37 Esta temtica foi desenvolvida por Heidegger em diversos textos, mas sobretudo na conferncia de 1953 intitulada A questo da tcnica, in: Ensaios e conferncias, Petrpolis, Vozes, 2002, pp. 11-38. 42 Seretempoumaanalticadoente,entretodososentes,cujaessnciaresideem questionarsobreseuprprioser:ohomem,naterminologiaheideggeriana,Da-sein38. A escolha pelo termo Dasein para designar o ente que ns somos no foi por umcaprichodelinguagem.OqueHeideggerpretendeufoidesviar-sedopeso metafsicoqueotermohomemhaviaadquiridoaolongodahistria.Epara clarificaraquestosobreosentidodosersemcairemnenhumapelometafsico, HeideggerpropsrealizarumaanalticadoDaseinnacotidianidadedeseuexistir, ounodizerfenomenolgico,apartirdofenmenonoseuaparecertalcomoele aparece,sendoportantoafenomenologiaomtodomaisapropriado.Desdelogo v-sequeenquantoointeressedeHusserleraaobjetalidadedofenmenono sentidodeumaadequaoentredadoevisado,poissomenteelaserviriapara tornarafenomenologiaumacinciaderigor39,afenomenologiadeHeidegger,por suavez,seviravaparaohorizontedesignificaonoqualofenmeno entendendo aqui o Dasein enquanto via de acesso para a compreenso do ser se d. Sem utilizar a epoch husserliana, Heidegger radicalizaria a frmula retorno s coisasmesmas.Aocontrriodequererrecolocarsobrenovasbasesas consideraesrelativasaoproblemadaconscinciasolodafenomenologia husserlianaoobjetivodeHeideggereraosermesmo40,cujoacessosedaria atravs de uma anlise das estruturas, ou existenciais, presentes no ser-no-mundo nacotidianidadedasuaprpriaexistncia.Enquantoascategoriasseriam referentes aos entes revelados atravs de uma investigao ntica (isto , referido aoenteenquantoente)osexistenciaisseriamseuscorrespondentes, identificados atravs de uma investigao ontolgica e referidos, especificamente, a

38 Elaborar a questo do ser significa, portanto, tornar transparente um ente o que questiona em seu ser. Comomododeserdeumente,oquestionamentodessaquestoseachaessencialmentedeterminadopelo que nela se questiona pelo ser. Esse ente que cada um de ns somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, ns o designamos com o termo pr-sena (Da-sein) (op.cit. 2, p.33). Manteremos nodecorrerdotrabalhootermonoseuoriginal,postoqueatraduodotermoemoutralnguasempre acarretou discusses, e sem hfen, salvo por necessidade. 39 J na 2 lio da Ideia da fenomenologia (op. cit. p.56) diz Husserl: Provisoriamente, sustentamos que se pode, de antemo, assinalar uma esfera de dados absolutos; e a esfera de que justamente precisamos, se que deve ser possvel a nossa aspirao a uma teoria do conhecimento. 40HeideggerabordaadistinoentreDaseineconscincianosentidohusserlianonoSeminriode Zhringen (in: Questions IV, Paris, Gallimard, pp.322-323). 43 estruturaontolgicadoDasein.Na filosofia tradicional,ascategoriasreferem-seao ser,masnosentidodosersimplesmentedado,desconsiderandoaexistncia enquantotal.Sobreanoodeser-no-mundo,essetermo(in-der-welt-sein),ele prprioumexistencial(outrosexistenciais:cuidado,temporalidade,ser-para-a-morte)doDasein,temumasignificaomuitoparticularnaanalticafeitapor Heidegger. Seu sentido reside no fato de que para Heidegger a analtica doDasein revelariaquemundo,aocontrriodacompreensodorealismoingnuopresente navivnciapsicolgicacorrenteondeumeufechadosobresimesmose relacionaria com um mundo que lhe seria exterior, seria co-originrio ao dar-se do sernoa[Da]doDasein.Omundoseriaentendidoontologicamente,portanto, como o contexto de significncia, horizonte de sentido no qual o ser do homem se d. Apsestavisopreliminardopontodepartidadopensamento heideggeriano41cujodesenvolvimentosedeuatravsdeumaobracompostade mais de 100 volumes ainda em processo de publicao cabe agora no seguimento denossainvestigaomostraroinciodarelaoentreasprticasclnicasea fenomenologia. Como veremos, a relao entre fenomenologia e clnica no nova e,talvezporessarazo,noseapresentademodouniforme.Segueentouma anlisedapropostadeLudwigBinswangerealgumasdificuldadesdeintercmbio entre reas to distintas. 1.4 - A importncia de Ludwig Binswanger e o nascimento da Daseinsanalyse, vista como alternativa cpula entre clnica e cincia Nascidoem 1881,LudwigBinswangerfoi umdos primeiros,juntamentecom EugeneMinkowski,ErwinStrauseKarlJaspersentreoutros,abuscarna

41 Para um aprofundamento da filosofia heideggeriana e da relao desta com a filosofia husserliana indicamos, emmeioavastaliteraturasobreotema,olivrodoProfessorJooPaisanaintituladoFenomenologia hermenutica: a relao entre as filosofias de Husserl e Heidegger (Lisboa: Editorial Presena, 1992). 44 fenomenologia e no pensamento existencialista cujo precursor foi Kierkegaard42 uma alternativavisocientficonaturalpredominanteatentonocampodaclnica isto,nasprimeirastrsdcadasdosculoXX.Aocontrriodasprimeirascises nointeriordomovimentopsicanalticoquelevaramJungeAdleracriaremsuas prpriasescolasporexemplo,omovimentoexistencialnaclnicapsicolgica,no qualaDaseinsanalysedeBinswangerseriaumaespciedebaluarte,se distinguiriapordoisaspectosprincipais,conformeexpostosporRolloMayemseu artigo Origens e significado do movimento existencial em psicologia (in: Existncia, nueva dimensin en psiquiatria y psicologia, Madri, Gredos, p. 24): Primeiro,quenofoiobradenenhumlder,tendocrescido espontaneamente,indistintamenteemdiversospontosdocontinente.Em segundolugar,nosepretendefundarumanovaescolacontraaspr-existentes nem estabelecer novas tcnicas teraputicas frente as antigas. O quesepropefundamentalmenteanalisaraestruturadaexistncia humana;esteumempenhoque,setiverxito,ajudarafazer compreender a realidade latente em todas as situaes dos seres humanos em crise43. De fato, o movimento existencial cresceu rapidamente na Europa e nos EUA, sendo que no ltimo principalmente atravs de Rollo May. Pondo entre parnteses asformulaestericasprviascaractersticasdonaturalismocientfico, especificamente a rigidez em encontrar um encadeamento causal prvio garantindo ummodelotericocalcadoemexplicaesbaseadasnascinciasnaturais,esses clnicos abriram, tal como Husserl na filosofia, um novo modo de prtica clnica.

42 Para uma boa introduo ao pensamento existencialista ver: Jean Wahl, As filosofias da existncia. Nele, Jean Wahl disserta sobre as filosofias da existncia adiantando que a prpria escolha do ttulo faz referncia a grande confuso em torno desta temtica, cuja denominao faz referncia a filosofias muitas vezes opostas entre si.43 Primero, en que no fue obra de ningn lder, sino que creci espontneamente, indgenamente en diversos puntos del continente. Segundo, en que no pretende fundar una nueva escuela contra las preexistentes ni establecer nuevas tcnicas teraputicas frente a las antiguas. Lo que se propone fundamentalmente es analizar la estructura de la existencia humana; es este un empeo que, si tiene xito, ayudar a hacer comprender la realidad latente en todas las situaciones de los seres humanos en crisis. 45 AescolhadaDaseinsanalysedeBinswangercomoobjetodenossas reflexessednospelopioneirismodesuaempreitadamas,principalmente, pelomodoparticularcomoabsorveuemseupensamentoasfenomenologiasde HusserleHeidegger.Desdearesenhasobreafenomenologia44,elerecolheue adaptou o pensamento de Husserl e Heidegger na sua viso da prtica clnica. E foi nopensamentodesteinclusivequeBinswangercunhouonomedesua abordagem45, posto que utiliza o termo Dasein, utilizado por Heidegger para designar o ser do homem. Entretanto, diferentemente de Heidegger cuja anlise doDasein (Daseinsanalytik)46 tinha como funo principal servir de caminho para a clarificao daquestosobreosentidodosermesmoprojetofilosficoeontolgicoa Daseinsanalyse seria um mtodo teraputico baseado naquela, tendo como pano de fundoafenomenologiaentendidacomocinciarigorosatalcomofundadapor Husserl.Quantoaesteltimo,emboratenhasidoaomenosaprincpiouma influnciadesegundavia(porquantochegadaatravsdeHeidegger)oesprito cientfico da fenomenologiahusserlianaimpregnounos aleiturabinswangeriana de Heidegger como se adequou, como veremos, a sua formao cientfica.OintuitodeBinswanger,seporumladoeraodequebrarcomoparadigma dascinciasnaturais,vistoprincipalmenteemFreud,poroutroeraodemantero estatuto cientfico de sua proposta logicamente, em novas bases. O fio condutor da proposta de Binswanger, mantido ao longo de todos os seus trabalhos,eraodecontraporcinciaexperimentalcientfico-naturalacincia emprica-fenomenolgica.Atarefaera,portanto,decriarummtodoclnico alternativoaodonaturalismoe,maisamplamente,darumnovofundamento Psiquiatria.Comoelemesmoaponta:(IntroduodaobraArtculosyconferencias escogidasdaEditorialGredosdeMadri,p.12):Lserequerexperimentos

44 In: Artculos y conferencias escogidas, Madri: Gredos 1973. 45 Entendemos por anlisis existencial un sistema antropolgico de investigacin cientfica que apunta a la esencia del ser humano. Su nombre y su basis filosfica derivan del anlisis del ser de Heidegger (La escuela de pensamiento de anlisis existencial, original alemo de 1946 e presente na obra Existencia anteriormente referida, p. 235). 46 Para um aprofundamento sobre a diferena enre anlise e analtica ver S, R. N. e Mattar, C. Os sentidos de anlise e analtica no pensamento de Heidegger e suas implicaes para a psicoterapia, in: Revista de Psicologia da UERJ, v.8 n.2, 2005. 46 cientfico-naturais,aquiseexigeainvestigaodasconsequnciasreaisdo contedodaexperinciadapessoaindividual,quesedesenvolvehistoricamente precisamente assim e no de outro modo47. Delimitando sua proposta no campo das cincias nticas, e esse o estatuto dapsiquiatria,Binswangerdemonstravaacoragemdospioneiros,poisbuscava transportarparaseucamporeflexesdecarterfilosficoeontolgico.Aopropor umnovoolharclnicapsicolgicaBinswangernodeixoudeladosuaformao cientfica,comosugereadefiniodeseuspressupostos(Laescuelade pensamiento de anlisis existencial, op. cit. p. 236): Aanliseexistencialnopropenenhumateseontolgicasobrecerta condioessencialdeterminantedaexistncia;sestabeleceafirmaes nticas;ouseja,declaraesdeachadosefetivossobreformase configuraesdaexistnciatalcomoseapresentamnarealidade.Neste sentidoaanliseexistencialumacinciaemprica,comseumtodo prprio e seu ideal particular sobre a exatido, a saber, o mtodo e o ideal de exatido prprio das cincias empricas fenomenolgicas48. Foram duas as contribuies principais da analtica doDasein de Heidegger: asnoesdeser-no-mundoetranscendncia(Op.cit).ParaBinswanger,a primeira possibilitava sair da dicotomia sujeito objeto que era uma caracterstica dacinciamoderna.Quantoasegunda,elaserviuparaBinswangerinferirqueos problemaspsicopatolgicospoderiamsercompreendidoscomoproblemasda transcendnciadoser-no-mundo,isto ,problemasrelacionadosaomodocomoo homemultrapassaasimesmo.Essasinterpretaes,somadasaoobjetivode

47 All se requieren experimentos cientfico-naturales; aqu se exige la investigacin de las consecuencias reales del contenido de la experiencia de la persona individual, que se dessarrolla histricamente precisamente as y no de otro modo. 48 La anlisis existencial no propone ninguna tesis ontolgica sobre cierta condicin esencial determinante de la existencia; slo establece afirmaciones nticas; es decir, declaraciones de hallazgos efectivos sobre formas y configuraciones de laexistencia tal comose presentan enla realidad. En este sentido el anlisisexistenciales una ciencia emprica, con su mtodo propio y su ideal particular sobre la exactitud, a saber, el mtodo y el ideal de exactitud propio de las ciencias empricas fenomenolgicas". 47 investigarasconsequnciasreaisdocontedodaexperinciaindividual,se trouxeramdefatoumaluzaocampodaclnica,inspirandoinmerostericos, deixaram a desejar no que se refere a apropriao dos conceitos da fenomenologia e do pensamento do prprio Heidegger. Donde a necessidade de uma anlise crtica da Daseinsanalyse de Binswanger. 1.5 - Sobre as crticas de Heidegger Daseinsanalyse de Binswanger SeHusserlapontouumantimarelaodafenomenologiacomapsicologia (comopor exemplonaFenomenologiacomocinciaderigor, op.cit.)justamentea partir da superao do psicologismo, Heidegger foi mais alm. Durante mais de dez anos,proferiupalestrasnacasadopsiquiatraMedardBoss.Amotivaoinicial mantidanospelodesafiomesmodosseminriosmastambmpelaamizade entre eles, que por sua vez durou at o fim da vida do filsofo foi o vislumbrar por parte de Heidegger da possibilidade de auxiliar os cientistas (no caso os psiquiatras) a meditar sobre seus prprios fundamentos e, assim, tornar til, em um sentido alm doestritamenteacadmico,seupensamento.Oobjetivo,portanto,noeraode fundarumanovaclnica,masauxiliaroscientistas,presosnabuscapela objetividade caracterstica da prxis cientfica, a alcanarem uma postura crtica em relaoassuasbases.Essesseminrios,juntamentecomosdilogosecartas trocados entre esses dois pensadores, foram publicados com o ttuloSeminrios de Zollikon (Op. cit). Trata-se de um material nico, no qual Heidegger, justamente por encontrarespectadorestotalmenteleigosnopensarfilosfico,explica pormenorizadamente vrios temas desenvolvidos ao longo de sua obra. Nosso objetivo aqui ser, to somente, "deixar falar" as crticas de Heidegger Daseinsanalyse,postoqueelasporsisjesclarecemdeformadefinitivaos problemas encontrados na fundamentao de um olhar sobre a psiquiatria proposta por Binswanger e baseada na analtica do Dasein.Embora a Daseinsanalyse de Binswanger tenha sido abordada por Heidegger apenas em um dos seminrios (o de 23 e 26 de Novembro de 1965, pp. 139-158), 48 justamentenapartedosdilogoscomMedardBossqueHeideggerexpecom veemncia sua crtica. Comefeito,noseminrioemquecomentaadiferenaentreaanalticado DaseineaDaseinsanalyse,Heideggercentrasuasconsideraessobreaadio, porBinswanger,dotermoamoraoexistencialcuidado,adioestaque acompanhada por outra: ser-alm-do-mundo49. Quanto a primeira adio feita por Binswanger, comenta Heidegger: ()OmalentendidodeBinswangernoconsistetantoemqueelequer complementarocuidadopeloamor,massim,nofatodequeelenov que o cuidado tem um sentido existencial, isto , ontolgico, que a analtica doDaseinperguntapelasuaconstituioontolgicafundamental (existencial)enoquersimplesmentedescreverfenmenosnticosdo Dasein. J o projeto abrangente do ser-homem como Dasein no sentido ek-stticoontolgico,peloqualarepresentaodoser-homemcomo subjetividadedaconscinciasuperada.Esteprojetotornavisvela compreenso do ser como constituio fundamental do Dasein (Seminrios de Zollikon, op. cit. p. 142). De fato, o que Heidegger pontua aqui a confuso feita por Binswanger entre nticoeontolgico,diferenafundamentalparaacompreensodaanaltica existencialtalcomodesenhadoemSereTempo.estaconfusoque,entre outras coisas, faz Binswanger perceber de maneira muito particular a relao entre a analticadoDaseineasfilosofiasdeKanteHusser50,tambmcriticadapor Heideggerpostoqueosdoisprimeirostm,nadimensotranscendental,umavia fundamental:

49 Binswanger faz a seguinte considerao no artigo La escuela de pensamiento de anlisis existencial (op. cit. p. 239): () mi crtica positiva de la teora de Heidegger me ha conducido a ampliarla: al ser en el mundo como ser de la existencia por amor a m mismo (que Heidegger denomin cuidado) he yuxtapuesto el ser-allende-el-mundo como ser de la existencia por amor a nosotros (que yo he designado con el nombre de amor)".50Latesisontolgicadequelaconstitucinolaestructurabsicadelaexistenciaesserenelmundono representa un aperu filosfico, sino el desarrollo y la extensin sumamente consistentes de teoras filosficas fundamentales, como es, por una parte, la teora de Kant sobre las condiciones de posibilidad de la experiencia (enelsentidocientfico-natural),yporotralateoradeHusserlsobrelafenomenologatranscendental (Binswanger, Ibid. p. 237). 49 SeBinswangerporissoescrevequeSeretempoumasequncia extremamentecoerentedosensinamentosdeKanteHusserl,isto totalmenteerrado,jqueaquestoquesecolocaemSeretempono colocadanememHusserlnememKant,alisnuncafoicolocadana filosofia (Ibid. p. 142). Nasequnciadoseminrio,Heideggerlimita-seaidentificarainflunciada fenomenologiahusserlianadaconscincianaconstituiodaDaseinsanalyse51. Quantoaadiodoser-alm-do-mundofeitaporBinswanger,estaterum sentidoparticularporquantoremetidodiretamentesinterpretaesdeBinswanger do ser-no-mundo e da transcendncia. Dado que so estas que revelam com a maior agudez as distines/confuses entre ntico e ontolgico, elas sero o objeto maiordasrefutaesemrelaoaDaseinsanalyse,feitasporHeideggere presentesnasegundapartedaobraSeminriosdeZollikonconcernenteaos dilogos e anotaes dele e editadas por Medard Boss. DeincioHeideggeraponta