Por uma razão estética_Dissertação Daniel Chinellato

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    DANIEL DOBRIGKEIT CHINELLATO

    POR UMA RAZO ESTTICA:

    UM ELO ENTRE O INTELIGVEL E O SENSVEL

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Artes da Universidade Estadualde Campinas, como exigncia parcial paraobteno do Ttulo de Mestre em Artes.rea de concentrao: Arte, Cultura eSociedade

    Orientador: Prof. Dr. Joo Francisco Duarte Jr.

    CAMPINAS2007

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingls: The Course of Aesthetic Reason: Bondingthe Intelligible and the SensitivePalavras-chave em ingls (Keywords): 1. Aesthetics. 2. Reason3. Aesthetic Experience 4. Modernity 5. Sensitive.Titulao: Mestre em ArtesBanca examinadora:

    Prof. Dr. Joo Francisco Duarte JniorProf. Dr. Jos Roberto ZanProf. Dr. Joo Francisco Regis de MoraisProfa. Dra. Maria de Ftima Morethy Couto (suplente)Prof. Dr. Valrio Jos Arantes (suplente)Data da Defesa: 10-08-2007Programa de Ps-Graduao: Artes

    Chinellato, Daniel Dobrigkeit.C441p Por uma razo esttica: um elo entre o inteligvel e osensvel /

    Daniel Dobrigkeit Chinellato. Campinas, SP: [s.n.], 2007.

    Orientador: Joo Francisco Duarte Jnior.Tese (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,Instituto de Artes.

    1. Esttica 2. Razo 3. Experincia Esttica 4. Modernidade

    5. Sensibilidade. I. Duarte Jnior, Joo Francisco. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III.Ttulo.

    (em/ia)

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    INSTITUTO DE ARTESCOMISSO DE PS-GRADUAO

    Defesa de Tese de Mestrado em Artes, apresentada pelo MestrandoDaniel Dobrigkeit Chinellato RA 970478 como parte dos requisitos para aobteno do ttulo de Mestre, perante a Banca Examinadora:

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    Dedico este trabalho aos meus pais, Jos Augusto e Carola. Reconheo e agradeo a chanceque vocs me deram para seguir meus sonhos; semvocs nada disso teria sido possvel.

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    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos professores, funcionrios e

    colegas do Instituto de Artes da Unicamp.

    Saliento um especial agradecimento ao Professor Dr. Jos Roberto Zan e ao

    Professor Dr. Regis de Morais pelas importantes contribuies nas ocasies da qualificao

    e da defesa. Embora o tempo escasso no tenha possibilitado o aprofundamento e a leitura

    atenta da, por eles sugerida, bibliografia (e conseqentemente seu uso neste trabalho)

    prometo, numa futura pesquisa, levar todos seus apontamentos em cuidadosa considerao.

    Deixo aqui registrada a minha mais profunda gratido ao Professor Dr. Joo

    Francisco Duarte Jr.; se hoje consigo vislumbrar, transcrito em papel, uma parte das minhas

    questes pessoais, o mrito dele. Freqentemente sobrecarregado e cansado pelo

    atribulado ritmo da diretoria do Instituto de Artes, o professor Joo sempre se prontificou a

    corrigir e discutir meus textos (quase sempre abrindo mo das suas preciosas horas de

    descanso). Hoje, mais do que um orientador e mestre, considero o Joo um grande amigo.

    E tenho a certeza de que esta amizade h de perdurar por um longo tempo. Obrigado, Joo!Deixo tambm anotado meu agradecimento ao meu amigo e parceiro musical

    Andreas (sucesso ao Symbolic Life!). Agora hora de tentarmos transpor parte das idias

    discutidas aqui em msica.

    Importantssima foi ainda a contribuio do meu irmo e amigo David; perdi a

    conta das inmeras vezes em que pedi socorro para lidar com este caprichoso artefato, o

    computador.

    Agradeo Janana pelo apoio, pelo carinho e pelo exemplo de

    companheirismo e amor.

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    No sou um admirador da preguia e nem doacaso. As reflexes que aqui aparecem... no so produtoda vaga contemplao do mundo: referem-se a entes queencontrei no caminho rumo a mim mesmo. (Embarcamosrumo a terras distantes, ou buscamos o conhecimento dehomens, ou questionamos a natureza, ou buscamos a Deus;depois notamos que o fantasma perseguido ramos Ns

    mesmos.) Fora de minha rota devem existir outros entes,outras teorias e hipteses. O Universo de que se fala aqui meu Universo particular e, portanto, incompleto,contraditrio e perfectvel.

    Ernesto Sabato

    Assim, parece que to-s encerrar-se- o presenteciclo da histria humana na medida em que maneirasnovas de se construir o conhecimento possam geraratitudes diferentes do homem em relao a si mesmo e aeste planeta no qual habitamos, acarretando outras

    organizaes sociais, outras formas de produo e dedistribuio de bens e saberes. Neste sentido, talvez avalorizao do sensvel e a busca de sua integrao com ointeligvel possa consistir num pequeno e primordial passorumo a tempos menos brutais e permeados de maiorequilbrio entre as muitas formas de vida conhecidas.

    Joo-Francisco Duarte Jr.

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    RESUMO

    Por Uma Razo Esttica: Um Elo Entre o Inteligvel e o Sensvel

    Este trabalho tem como objetivo defender a experincia esttica entendida

    como uma forma especfica de intencionalidade na qual o inteligvel e o sensvel se

    coadunam para compor o fenmeno esttico como fundamento de uma racionalidade

    esttica e, conseqentemente, principal fator constituinte de uma razo que pode, por

    analogia, ser nomeada razo esttica.

    sobre a complexa trama entre refletido e irrefletido que repousa a contribuio

    da experincia esttica na constituio dessa razo; atravs de tal experincia aquela parcela

    da dimenso irrefletida que irredutvel conceitualizao tradicional encontra a

    possibilidade de ser conscientizada. Desta forma, busca-se vincular experincia esttica a

    prpria possibilidade de conscincia dos dilemas existenciais aos quais o homem

    constantemente exposto em sua vida.

    Tambm considera-se o sujeito desta racionalidade; neste sentido, procuramos

    apontar, em primeiro lugar, que o princpio racionalista sobre o qual se pensou estar

    edificando a cultura moderna por vezes produziu o efeito contrrio do esperado:irracionalidade. Esta irracionalidade, por sua vez, teria lanado o homem contemporneo

    num estado de incerteza e ansiedade. Assim, a inteno a de apontar o que se nomeia

    razo esttica como um possvel caminho para a superao de uma certa irracionalidade

    resultante do processo moderno de racionalizao.

    PALAVRAS-CHAVES: esttica, razo, experincia esttica, modernidade, sensibilidade.

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    ABSTRACT

    The Course of Aesthetic Reason: Bonding the Intelligible and the Sensitive

    This works central purpose is to defend the aesthetic experience understood

    here as a specific kind of intentionality in which intelligible and sensible combine to

    compose the aesthetic phenomenon as a ground to an aesthetic rationality and, therefore,

    as a major requirement for the establishment of a reason that can, by analogy, be called

    aesthetic reason.

    It is in the complex relation between reflected and unreflected that lies the

    possible contribution from the aesthetic experience to the constitution of the aestheticreason; the unreflected portion, mostly irreducible to words, can, through the aesthetic

    experience, be brought to consciousness. The aesthetic experience is then associated to the

    very possibility of consciousness of the existential dilemmas that an individual is

    continually exposed to in his life.

    This study discusses the effects of aesthetic rationality on the individual; the

    starting point here will be, hence, an analysis of the most dominant characteristics of our

    society and its influence on the contemporary man. Therein, we first expect to demonstrate

    that the rational principle upon which modern civilization was thought to be founded on

    produced the contrary effect: irrationality. Subsequently, we will suggest an anxiety derived

    from currently existing social-cultural factors. The main intention of this investigation is,

    thus, to demonstrate that aesthetic reason is one possibility for overcoming the irrationality

    that results from the modern rationalization process.

    KEYWORDS: aesthetics, reason, aesthetic experience, modernity, sensitive.

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    SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................................1

    I O ABALO DA F NA MODERNIDADE ..................................................................... 15

    II O HOMEM DESNORTEADO......................................................................................41

    III UMA FENOMENOLOGIA DA EXPERINCIA ESTTICA: O FENMENO

    ESTTICO.......................................................................................................................69

    IV A RAZO (DA) ESTTICA.......................................................................................99CONCLUSO....................................................................................................................127

    BIBLIOGRAFIA................................................................................................................137

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    INTRODUO

    As propostas a serem defendidas neste trabalho podem ser sintetizadas em

    poucas palavras: tentar-se- demonstrar que a experincia esttica constitui uma forma

    especfica de intencionalidade, na qual inteligvel e sensvel se coadunam para compor o

    fenmeno esttico. Ademais, a experincia esttica ser defendida como fundamento de

    uma racionalidade esttica e, conseqentemente, principal fator constituinte de uma razo

    que deve, por analogia, ser nomeada razo esttica1.

    As questes aqui debatidas no so novas: tentativas de se pensar a importncia

    da experincia esttica na formao do homem esto, certamente, entre as mais freqentes

    do pensamento filosfico ao longo dos ltimos sculos e ressurgem sob diversos rtulos e

    nas mais diversas reas de conhecimento. H, porm, alguns pontos peculiares na reflexo

    que se seguir. Em primeiro lugar, embora este estudo pretenda discutir uma interpretao

    de razo baseada na experincia esttica, o leitor no encontrar nas pginas subseqentes

    nenhuma tentativa de descrio das caractersticas de um objeto esttico. Tampouco

    encontrar uma reflexo baseada puramente nos aspectos subjetivos da experincia esttica.

    Focaremos, sim, o fenmeno esttico, entendido aqui como um fenmeno de natureza

    relacional no qual um determinado sujeito apreende um objeto atravs de umaintencionalidade esttica. Alm disso, tambm peculiar a este estudo a tentativa de

    fundamentar nossas discusses no prprio sujeito desta experincia; para que a discusso

    seja erigida sobre fundamentos slidos, partiremos de uma anlise das caractersticas mais

    marcantes da atual sociedade e de seus influxos no homem. Assim, o que se pretende aqui

    apontar o que ser nomeado racionalidade esttica como imprescindvel para a formao

    do homem contemporneo. Percebe-se que reside na defesa destas propostas o verdadeiro

    trabalho que pode corrobor-las ou abrir espaos para uma contestao to precisa e justa

    que nos impossibilite de consider-las como possuidoras de qualquer tipo de validade.

    1 A expresso razo esttica foi sugerida por Marc Jimenez em seu livro O que esttica (Em suma, oponto de concordncia estaria em uma outra razo, diferente da razo matemtica e lgica, uma razoadaptada ao seu novo objeto. Seria chamada razo esttica ou razo potica. Ela poderia ser um intermedirioentre a razo e a imaginao, entre o entendimento e a sensibilidade, p.73).

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    O humano, antes de toda concepo de mundo baseada na inteleco,

    possuidor de uma percepo primordial (os sentidos fsicos), a qual alicera toda posterior

    linguagem e reflexo, ou seja, encerra em si uma dimenso sensvel que fundamenta

    qualquer entendimento inteligvel. No entanto, jamais se pode falar de um contato fsicodireto do homem com o mundo, na medida em que nossa percepo sempre histrica e

    culturalmente educada. E justamente a partir deste convvio entre refletido e irrefletido, e

    no exclusivamente atravs de sua dimenso intelectiva, que o homem estabelece o

    sentido dos fenmenos que vivencia. No podemos, assim, pretender esgotar a

    compreenso de um fenmeno exclusivamente a partir da conscincia reflexiva humana.

    Segue, tambm, a impossibilidade de se afirmar o mundo como algo autnomo, existente

    independentemente de certa intencionalidade. Isto no quer dizer que o mundo deixa de

    existir quando no objeto de certa mirada, mas somente que, no momento em que o

    afirmamos, ele j fruto de uma determinada intencionalidade. Em outras palavras: o

    mundo, e os objetos que nele existem, somente podem ser afirmados enquanto fenmenos.

    Conseqentemente, o homem est em constante dilogo com seu mundo: cria o mundo ao

    mesmo tempo em que por ele criado. Essa relao homem-mundo ocorre mediatizada de

    diversas maneiras e uma dessas a experincia esttica. Desta forma, a experincia esttica

    no um acontecimento desenraizado, atemporal e abstrato, pairando acima de um

    determinado homem e de um determinado mundo. Cabe ainda dizer que, freqentemente,

    um certo tipo de intencionalidade compartilhado por indivduos de uma mesma cultura,

    tornando-se um trao social marcante, o que impele-nos tambm em direo a um olhar

    scio-cultural da atual situao histrica.

    Decorre da prpria caracterstica deste estudo a necessidade de atentar para o

    que, tradicionalmente, so entendidas como reas distintas do conhecimento. Basta um

    rpido olhar pela bibliografia para atestar a presena, por exemplo, de autores socilogos,

    filsofos, crticos de arte, psicanalistas, entre outros. Tal escolha, no entanto, no vemisenta de nus, pois uma reflexo que se debruce sobre diversas reas do conhecimento

    deve aceitar de antemo algumas limitaes. O primeiro ponto crtico que esta apresenta

    que certamente resultar numa viso incompleta das anlises j feitas. Sobra assumir que

    essa sada encerra, em sua pretenso, o inevitvel fardo de estar pecando por aquilo que no

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    diz. Esta , porm, uma crtica que pode ser contestada se lanarmos um olhar na prpria

    histria das reflexes filosficas. Sabemos que h aproximadamente vinte e cinco sculos o

    homem vem se colocando perguntas de cunho filosfico, o que nos leva a crer que,

    aparentemente, no pode deixar de faz-lo. Como diz-nos W. Luijpen2, a vida quesuscita o perguntar filosfico. No entanto, como resposta a esse perguntar vemos

    inmeros sistemas contraditrios e que se contestam mutuamente. Isso porque sendo o

    filosofar um assunto pessoal, no pode encontrar... seu ponto de partida seno na presena

    pessoal do filsofo... realidade que a est. Essa presena se chama experincia. 3 Se

    existem diferentes modos de experimentar, podemos argumentar que em cada filosofia

    existe a presena de determinado aspecto do real, relativo forma pela qual o filsofo

    percebe a realidade. Um filsofo nunca vai conseguir abarcar toda a realidade uma vez que

    impossvel que ele viva completamente uma outra experincia de vida que no seja a dele.

    O legtimo filosofar pode ser entendido, portanto, como basicamente uma tentativa de

    responder a um questionar pessoal. Abrindo mo de se estabelecer as prprias perguntas,

    deixaremos tambm de obter nossas prprias respostas. Isso se reduz ao que Heidegger

    chama falatrio (Gerede). O filosofar passa a ser simplesmente falado.4 Sob essa tica

    toda e qualquer filosofia fracassa no tanto pelo que afirma, mas pelo que silencia, pelas

    perguntas e respostas alheias e, em ltima instncia, pelos mundos alheios que deixa de fora

    de seu entendimento. Logo, se a reflexo aqui presente peca por aquilo que no diz, ela

    provavelmente compartilha dessa falha com praticamente toda filosofia que vem se fazendo

    nesses ltimos vinte e cinco sculos.

    Surge tambm, da tentativa de se coadunar reas distintas, uma outra

    importante questo: a adoo de uma metodologia. Soma-se ainda a dificuldade gerada pelo

    fato de que, mesmo em cada uma das respectivas reas que embasam este trabalho, no

    existe um princpio metodolgico de aceitao geral. Em nossa defesa podemos to-s

    levantar a hiptese de o mtodo estar indissociavelmente imbricado prpria exposio dasidias que sero aqui defendidas. Desta forma, mtodo e contedo se completariam criando

    uma unidade prpria e pessoal. No seria, portanto, possvel questionar a cientificidade

    2Introduo fenomenologia existencial, p.17.3Ibidem, p.19.4Ibidem, p.18.

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    deste presente estudo? Certamente a questo sobre a cientificidade de qualquer escrito

    filosfico um ponto delicado; vivemos, atualmente, num perodo de instabilidade e de

    coexistncia de diversas vises epistemolgicas, resultando um solo instvel e

    pluralizado sobre o qual as pesquisas vm tentando se edificar. Vemos, conseqentemente,estudos que parecem buscar seu atestado de validade na escolha de sua bibliografia ou de

    certa viso epistemolgica. Existe, porm, o risco de fragmentar-se, desta maneira, o campo

    do saber e, conseqentemente, segmentar as diferentes gamas de estudos em nichos no-

    comunicantes, uma vez que, freqentemente, a prpria direo epistemolgica adotada

    pelo trabalho passa a ser, por assim dizer, seu atestado de validade.

    Mas qual seria propriamente o sentido da idia de cientificidade? No

    pensamento de Umberto Eco5,

    para alguns, a cincia se identifica com as cincias naturais ou com apesquisa em bases quantitativas: uma pesquisa no cientfica se no forconduzida mediante frmulas e diagramas. Sob este ponto de vista, portanto, no seria cientfica uma pesquisa a respeito da moral emAristteles; mas tambm no o seria um estudo sobre a conscincia declasse e levantes camponeses por ocasio da reforma protestante.Evidentemente, no esse o sentido que se d ao termo cientfico nasuniversidades.

    Eco enumera, pois, alguns pontos necessrios para que um estudo seja

    considerado como cientfico. Em primeiro lugar o estudo deve debruar-se sobre um objeto

    reconhecvel, para logo em seguida acrescentar que o termo objeto no tem

    necessariamente um significado fsico. A raiz quadrada tambm um objeto, embora

    ningum jamais a tenha visto.6 No nosso caso, certamente no podemos afirmar somente

    um nico objeto de estudo; cada um dos captulos aqui expostos apresenta, por assim dizer,

    seu prprio objeto. Deve-se, entretanto, salientar o fato de que a prpria natureza das

    reflexes que se seguiro parece garantir que cada objeto esteja ligado a certas hipteses. Aprimeira delas, apresentada no primeiro captulo, repousa numa anlise da intencionalidade

    caracterstica compartilhada pelo homem contemporneo, fruto de uma mentalidade que

    5Como se faz uma tese, p.20.6Ibidem. p.21.

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    vem sendo construda, principalmente, a partir da Idade Moderna. Num segundo captulo,

    ser apresentado o que se considerou ser o resultado desta mentalidade para o homem

    contemporneo. J o terceiro captulo abre-se como um grande parntese na nossa

    discusso, uma vez que pretende apresentar um entendimento da experincia esttica apartir da fenomenologia existencial. Fazendo uso dos temas abordados nestes trs primeiros

    momentos, a proposta passar a ser a valorizao de uma intencionalidade freqentemente

    obscurecida pelo que aqui se defendeu ser a mentalidade dominante na modernidade

    enquanto perodo histrico. Esta intencionalidade, entendida como esttica, , enfim,

    apresentada como sendo fundamento de uma ampliao da concepo de razo.

    Percebe-se, pela leitura do pargrafo precedente, que este estudo amplamente

    baseado em propostas ou hipteses. A possibilidade de verificao e contestao destas

    hipteses , sem dvida, um ponto delicado e aqui reside, provavelmente, uma das grandes

    diferenas da filosofia para com as cincias exatas. Como exigir de uma pesquisa de cunho

    filosfico que ela seja verificvel? Ou melhor, o que caracterizaria essa verificao para

    pesquisas desta natureza? Chegou-se, inclusive, em certos momentos da histria da cincia,

    a acreditar que a possibilidade de verificao de um estudo poderia somente ser logrado se

    a pesquisa fosse conduzida em bases quantitativas. Percebeu-se, entretanto, que esse

    princpio no poderia ser aplicado indistintamente a todas as reas do conhecimento e at

    hoje, provavelmente, no podemos apontar um princpio de verificao prprio da filosofia.

    Na verdade, atualmente parece estabelecido que o conhecimento cientfico e o filosfico

    so de ordens epistemologicamente distintas, no podendo ser equiparados.

    A dificuldade de comprovao e verificao de um estudo filosfico no

    significa a ausncia de verdade na filosofia, mas apenas que suas verdades no esto

    sujeitas verificao de fato e aos controles precisos.7 Que fique claro, no entanto, que

    no o intuito fazer a defesa da cientificidade ou da no-cientificidade das reflexes aqui

    contidas, mas simplesmente apontar que no h um princpio metodolgico universalmenteaceito que possa ser exigido como condio para que este estudo seja considerado vlido.

    Um dos pontos mais particulares deste trabalho sua abrangncia. Por que

    partir de um terreno to vasto e amplo e correr o risco de afundar-se em um mar de

    7 Luijpen, Op. cit., p.25.

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    reflexes e conceitos to variados e muitas vezes contraditrios? Certamente isso torna toda

    nossa discusso logo de antemo suscetvel de um grande nmero de crticas. Pode-se

    facilmente censurar sua pretenso de abarcar contedos diversificados, nos quais

    dificilmente se acha algum princpio norteador, e de tentar criar, a partir dessa pluralidadede reflexes, um quadro dotado de sentido. Mas tal tarefa no soa assustadoramente

    prxima da necessidade do homem contemporneo, vivendo num mundo no qual coexistem

    diferentes ordens de valores e comunidades de sentido em grande escala dissonantes?

    Certamente necessria a apresentao de uma justificativa que demonstre se tratar de uma

    escolha consciente e no de um acaso, no qual o estudante escolhe um tema por demais

    amplo sem se dar conta das dificuldades que ele apresenta. Deve-se, portanto, reconhecer

    que o presente estudo possui certas limitaes intrnsecas, mas tambm que, se assim

    ocorre, em funo de uma viso de mundo que o fundamenta. Estudar a experincia

    esttica desvinculada de determinado homem, neste caso, do homem contemporneo , na

    melhor das hipteses, uma abstrao didtica e no se assemelha em nada com o que ocorre

    no campo dessa experincia que , obviamente, humana8. Todas as experincias humanas

    so baseadas no pressuposto de que o homem existe, tomado literalmente: o homem como

    sujeito ex-sistit, colocando-se fora de si mesmo.9

    A idia da existncia porm, quer precisamente exprimir que asubjetividade humana no real sem o mundo. Quer significar que omundo pertence essncia do homem, de modo que, deixando-se de ladoo pensamento do mundo, tambm o sujeito no pode mais ser afirmado.10

    Vemos surgir a necessidade de se atentar para a dimenso relacional entre

    objetivo e subjetivo, focando, assim, o prprio local no qual o pacto entre corpo 11 e

    mundo estabelecido. E ainda que esta questo no faa parte de nossas preocupaes aqui,

    8 Ainda que esta figura, homem contemporneo, seja tambm uma abstrao generalizante, umacategorizao alargada. Contudo, s se pode fazer cincias ou reflexes filosficas tomando-se categoriasgerais (s quais pertencem os seres humanos). impossvel fazer cincia do indivduo. (cf. Rubem Alves,Filosofia da cincia: introduo ao jogo e suas regras)9 Luijpen, Op. cit., p.52.10Ibidem, p.53.11 Meu corpo tambm o que me abre para o mundo, onde me pe em situao. (Merleau-Ponty apudLuijpen, op. cit., p.56).

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    interessante assinalar (e apenas assinalar) ser nessa interseo entre subjetivo e objetivo o

    local em que encontramos a origem da maior parte das assim chamadas perturbaes

    psquicas.

    Estas no so causadas por processos unilaterais e determinantesoriundos de estmulos do mundo exterior, nem tampouco podem serentendidas como exteriorizaes de uma desorganizao no mundointerior. So antes uma ruptura entre o corpo e o mundo, quase semprede carter afetivo, ruptura que no pode ser restaurada por um esforopessoal de ordem intelectual ou por uma deciso da vontade, mas h des-lo por uma nova abertura do corpo para o mundo e para os outros.12

    A passagem acima pode servir de ponto de partida para a elucidao do que se

    seguir no presente estudo. Entendemos aqui que a crise por ns enfrentada atualmente

    colabora para o surgimento de um certo distanciamento entre o homem e mundo,

    caracterstica do modo de ser contemporneo. A forma com que essa crise se manifesta,

    pelo menos no mbito da reflexo filosfica, a de uma crtica da modernidade que,

    freqentemente, acaba por apontar um certo mal-estar cultural contemporneo.

    Ao fazer uma anlise dos principais diagnsticos desse mal-estar encontramos

    trs principais leituras, cada qual com uma soluo peculiar. A primeira delas entende a

    crise contempornea como sendo causada por um enfraquecimento das inibies morais,

    ao clima de permissividade e decadncia da autoridade13, ou seja, uma crise do superego,e v no restabelecimento de um superego social o caminho para a reestruturao social.

    Vale ressaltar que a maioria de seus partidrios

    no defendem um aparelho repressivo de leis e dogmas morais destinadoa impor o conformismo moral. Depositam pouca confiana em controlesexternos.... Posicionam-se a favor do superego: vale dizer, por uma moralde tal forma interiorizada, baseada no respeito pela imperiosa presenamoral dos pais, professores, pregadores e magistrados, que no maisdependeria do medo de punies ou da esperana de recompensas.14

    12 Luijpen, Op. cit.,p.59.13 Christopher Lasch, O mnimo eu , p.182.14Ibidem, p.184.

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    A segunda dessas leituras entende que a crise qual estamos atualmente

    expostos pode ser superada atravs de um fortalecimento do ego, ou seja, da faculdade

    racional do ser humano. Para os defensores dessa soluo, atravs desse fortalecimento

    que um indivduo se torna capaz de lidar de forma satisfatria com a pluralidade de opesdisponveis, sendo capaz de fazer uso da sua razo para estabelecer juzos morais prprios.

    Uma terceira via de entendimento do nosso mal-estar contemporneo edifica

    seus argumentos a partir de uma crtica da razo, ou pelo menos do entendimento de razo

    caracterstico da nossa modernidade. Se a segunda leitura prope um fortalecimento da

    faculdade racional do ser humano como alternativa crise atual, a terceira defende que o

    prprio conceito de razo seja revisto. Freqentemente ambas caminham juntas, propondo,

    por assim dizer, o fortalecimento de uma razo re-interpretada. justamente nesta terceira

    corrente que se fundamenta a proposta deste estudo; o sujeito desta nova razo deve ser

    aquele capaz de dialogar com sua dimenso sensvel, da qual o homem moderno foi

    apartado (como se tentar demonstrar mais a fundo nos dois primeiros captulos). Assim,

    parece ser necessrio o fortalecimento de uma razo que se fundamente numa

    intencionalidade que seja capaz de coadunar inteligvel e sensvel. Esta razo deve valorizar

    uma intencionalidade distinta da intencionalidade prtica e analtica, orientada

    primordialmente pela inteleco. A tentativa ser, enfim, demonstrar que a intencionalidade

    esttica parece satisfazer as exigncias que esta re-interpretao de razo impe. Resulta,

    assim, a proposta que um certo equilbrio entre o sensvel e o inteligvel que, talvez pelo

    vis da psicanlise pudesse tambm se dizer entre ego e superego tenha como um de seus

    elementos propiciadores a experincia esttica.

    Se a proposta parte de uma re-interpretao da razo, faz-se necessrio partir de

    uma velha razo, no caso, o entendimento de razo que veio sendo estabelecido no

    desenrolar dos ltimos sculos pela nossa modernidade. Entendeu-se amide a razo como

    sinnimo de entendimento e estando baseada exclusivamente no funcionamento dainteleco. Mas, como Karl Jaspers15 afirma, de fato, ela [a razo] no d nenhum passo

    sem o entendimento, mas o supera. A mentalidade moderna no foi somente responsvel

    por este estreitamento na concepo de razo, mas tambm pela adoo de um modelo

    15Razo e anti-razo em nosso tempo, p.49.

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    epistemolgico racionalista. Assim, junto com a passagem do mundo medieval no qual o

    sagrado e o mgico desempenhavam um papel proeminente para o mundo moderno,

    surgiu a crena de que exclusivamente atravs desta razo, identificada com o

    entendimento, poder-se-ia atingir uma concepo de mundo da qual no fariam partesombras e mistrios. Alm dessa ruptura com os sistemas de explicaes mitolgicos e

    religiosos, ocorreu tambm, principalmente em decorrncia do estabelecimento e

    desenvolvimento da cincia ocidental nos sculos XVI e XVII, uma ruptura com a tradio

    aristotlica-escolstica que acreditava serem a lgica e a coerncia meios validos para

    obteno de conhecimento, afirmando-se a primazia da experincia, da dimenso emprica,

    tanto sobre a coerncia quanto sobre a lgica. No entanto, a dimenso fsica (ou seja, os

    sentidos, notadamente o meio pelo qual a razo podia se relacionar com o real) era, para o

    pensamento do incio da modernidade, responsveis por falsear nossa percepo do mundo

    real. Sendo assim, Descartes, em suas Meditaes Metafsicas, prega os equvocos

    advindos dos sentidos e defende a inteligncia como nica fonte confivel de

    conhecimento16. Como exemplo, o autor francs afirma que um pedao de cera no

    nenhuma de suas qualidades fsicas sua cor, seu cheiro, sua consistncia , pois estas

    podem mudar sem que a cera deixe de ser cera (a cera pode, por exemplo, atravs de um

    aquecimento, tornar-se lquida). Conseqentemente, Descartes conclui, nas palavras de

    Merleau-Ponty17, que

    a verdadeira cera, portanto, no vista com os olhos. S podemosconceb-la pela inteligncia. Quando acredito ver a cera com meus olhos,s estou pensando atravs das qualidades que os sentidos captam na ceranua e sem qualidades que sua fonte comum.

    Foram-se, portanto, as tradies metafsicas medievais e ficou a esperana de

    que a cincia e a razo pura pudessem apresentar uma explicao coerente do mundo e do

    lugar que nele ocupa o homem18, e, dessa forma, garantir ao homem a emancipao de

    todo e qualquer sofrimento. A primazia e crena nessa razo restrita como nico caminho

    16 A limitao decorrente da prpria natureza dos sentidos humanos tambm foi tratada por Galileo eposteriormente por Kant. A viso kantiana ser apresentada no terceiro captulo.17Conversas 1948, p.4-5.18 Christopher Lasch, op. cit., p.24.

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    capaz de emancipar o homem de seus sofrimentos perdurou por um longo tempo at serem

    questionadas, de forma mais enftica, por Freud e Nietzsche. Cabe aqui salientar que,

    embora tenha ganhado corpo com estes dois pensadores, a crtica ao conceito iluminista de

    razo certamente anterior a ambos e remete ao pensamento conservador ps-revoluofrancesa.19 A partir da, a f na modernidade, arraigada na f na razo (ou num certo modo

    de a razo se exercer) comea cada vez mais a ser questionada, at que, aps o desenrolar

    de duas guerras mundiais e da ameaa de uma guerra nuclear que colocaria toda a vida na

    terra em ameaa, a crtica da razo passasse a ser um dos temas principais da reflexo

    crtica da segunda metade do sculo XX.

    Depois de Freud a razo, j separada da emoo por trs sculos de mtodo

    cientfico, passou a ser vista como no mais diretamente relacionada com a vontade

    consciente. Contedos inconscientes tambm reclamavam sua poro quando se tratava de

    nortear os atos e vontades do homem. Se at aquele momento, pelo menos numa

    interpretao mais difundida, a razo podia responder a qualquer problema e a vontade era

    o caminho para super-lo, a partir desse ponto o homem v-se rfo de um princpio de

    significao pessoal do qual pudesse resultar a construo de uma personalidade integrada.

    Percebe-se que a razo transformada em racionalizao intelectualista no podia mais do

    que resultar na compartimentalizao da personalidade, com as resultantes depresses e

    conflitos entre instinto, ego e superego, que Freud to bem descreveu20. O homem

    mergulha num perodo no qual a ansiedade o sentimento mais caracterstico, sentindo-se

    desnorteado frente a uma pluralidade de sentidos, os quais no consegue articular de modo

    coerente. O uso exclusivo da razo intelectualista havia, enfim, se mostrado inadequado

    para esgotar o sentido do mundo ou da existncia humana. Nas palavras de Gilberto de

    Mello Kujawski21, o colapso da razo pura, seu esgotamento, na medida em que no serve

    para viver, em que falhou para enfrentar e interpretar os problemas humanos, marca o fim

    do utopismo e o crepsculo da modernidade.Retomando nesse ponto as leituras do mal-estar contemporneo percebemos

    que tanto a proposta de fortalecimento do superego quanto a proposta de fortalecimento do

    19 Ver, por exemplo, Louis de Bonald (1754-1850) e Joseph de Maistre (1754-1821).20 Rollo May, O homem procura de si mesmo, p.42.21A crise do sculo XX, p.174.

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    ego fazem eco ao que Rollo May chama de compartimentalizao de personalidade,

    decorrente de uma razo tornada instrumental. Dificilmente se podem evitar as depresses e

    os conflitos originrios dos embates entre instinto, ego e superego se a prpria concepo

    de razo no for repensada, que , exatamente, o que pretendeu fazer uma parte da crticada razo h mais de dois sculos. Como resume Srgio Paulo Rouanet22,

    depois de Marx e Freud, no podemos mais aceitar a idia de uma razosoberana, livre de condicionamentos materiais e psquicos. Depois deWeber, no h como ignorar a diferena entre uma razo substantiva,capaz de pensar fins e valores, e uma razo instrumental, cujacompetncia se esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno,no possvel escamotear o lado repressivo da razo [deve-se salientar,no entanto, que o lado repressivo da razo j estava apontado na obra de

    Weber], a servio de uma astcia imemorial, de um projeto imemorial dedominao da natureza sobre os homens. Depois de Foucault, no lcito fechar os olhos ao entrelaamento do saber e do poder. Precisamos deum racionalismo novo, fundado numa nova razo.

    Essa nova razo seria uma razo que no prega sua emancipao de todo e

    qualquer contedo que esteja vinculado sensibilidade. Entende que sua racionalidade s

    pode ser construda considerando o dilogo entre razo e sensibilidade, entre o inteligvel e

    o sensvel, harmonizando essas duas faculdades. Trata-se de uma razo que no ope o

    sujeito ao objeto e que considera o corpo como aliado e no mais como adversrio. Essanova razo considera o inconsciente, no somente no sentido mais comum do termo, o de

    contedos psquicos reprimidos, mas no sentido de uma dimenso psquica anterior

    conscincia23, e que serve de suporte para qualquer saber, ou seja, para a inteleco, para a

    intuio, para a memria, e para a criatividade. Esse entendimento de inconsciente resgata,

    tambm, o corpo como elemento a ser considerado na formao do homem. Isso porque

    entende que o mundo no se apresenta ao homem como um desfilar de parmetros

    potencialmente matemticos, exclusivamente legveis atravs da inteleco. Anteriormente

    22As razes do Iluminismo, p.12 [comentrio nosso].23 Alis, como j afirmou Rubem Alves, a palavra inconsciente apenas o nome para os pensamentos quemoram no corpo, sem que a cabea tenha deles notcia. (apud Joo Francisco Duarte Jr., O sentido dossentidos, p.138).

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    ordenao inteligvel, o corpo que busca lanar suas redes sobre o mundo, procurando

    estabelecer significaes numa tentativa de interpretar o meio em que se encontra.

    O corpo no , portanto, uma matria passiva, submetida ao controle davontade, obstculo comunicao, mas, por seus mecanismos prprios, de imediato uma inteligncia do mundo. Esse conhecimento sensvelinscreve o corpo na continuidade das intenes do indivduo confrontadoa seu ambiente; ele orienta em princpio seus movimentos ou suas aessem impor a necessidade preliminar de uma longa reflexo.24

    Desta forma, essa nova razo a se buscar pode ser batizada de diversas

    maneiras. Nietzsche nos fala de uma grande razo em oposio uma pequena razo,

    enquanto o filsofo Ortega y Gasset defende uma razo vital, mais efetivamente ligada

    vida da forma que ela , de fato, vivida. O socilogo Edgar Morin aponta para uma razo

    aberta, ao lado de Michel Maffesoli que a nomeia como razo sensvel. Claro que no

    pretendemos afirmar aqui que todos esses conceitos de razo coincidem uns com os outros,

    mas, sim, apontar que diversas propostas se preocuparam com o fortalecimento de uma

    razo fechada em si mesma e alienada de suas limitaes. A busca portanto, de uma razo

    mais ampla, que congregue em si as muitas maneiras de ela se exercer.

    Embora parea ser necessrio evitar, nesta tentativa de ampliao da idia de

    razo, o domnio incondicional do inteligvel sobre o sensvel, tambm deve se atentar paraque o sensvel no sucumba ao irracional. Para tal

    h uma soluo possvel, mas ela exige duas condies: de um lado, que arazo, to eficaz nas cincias, renuncie sua ambio totalizadora euniversalizante; que ela, de qualquer forma, abrande-se; de outro lado,que seja possvel responder, racional e conceptualmente, pelaimaginao e pela sensibilidade, e admitir que elas tambm constituemfaculdades cognitivas e so assim geradoras de conhecimento. 25

    Eis a vantagem de se nomear esta nova razo uma razo esttica: esta opo arelaciona com a experincia esttica que conclama, no momento de sua consolidao,

    muitas das principais propostas desta ampliao da razo. imprescindvel, portanto,

    24 David Le Breton,Adeus ao corpo, p.190.25 Marc Jimenez, O que esttica?, p.73.

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    deixar claro quais os pressupostos que fundamentam nossa concepo de experincia

    esttica. Uma completa exposio do assunto ocuparia um espao demasiado extenso para

    uma introduo e merecer um foco maior num captulo prprio. No entanto, pode-se

    adiantar que esse trabalho faz eco a freqentes tentativas que, durante o sculo XX,tentaram relacionar a esttica com a fenomenologia. Um dos mais notveis trabalhos nesse

    sentido foi realizado pelo filsofo Mikel Dufrenne. Influenciado por Husserl, Sartre e

    Merleau-Ponty, Dufrenne, como nos diz Roberto Figurelli na introduo edio brasileira

    de Esttica e Filosofia, preenche uma lacuna da fenomenologia e afirma a possibilidade de

    uma esttica fenomenolgica26.

    A experincia esttica, que aqui, grosso modo, consideraremos como a

    experincia do belo, abrange em si um tipo de relao em que a dicotomia sujeito-objeto

    momentaneamente suspensa27. A forma ordinria de relacionamento que o homem

    experimenta na vida cotidiana, marcadamente baseada na classificao e distines de

    objetos isolados, posta de lado em benefcio de um xtase provisrio. Nesse xtase se

    realiza um acordo entre sensibilidade e inteleco, fazendo com que o homem se sinta no

    mundo. Isso porque o objeto esttico, fruto de um determinado modo de intencionalidade

    dirigido ao mundo, no... prope uma verdade a respeito do mundo; ele... descortina o

    mundo como fonte de verdade28. Na experincia esttica a percepo no tem a pretenso

    de ser nada mais do que percepo, sem se render, pelo menos num primeiro momento, ao

    intelecto que, no intuito de dominar o objeto percebido, tenta encerr-lo em abstraes

    conceituais. Desta forma, o objeto esttico apresenta uma dimenso inefvel do mundo,

    uma dimenso mais efetivamente conectada ao que de fato vivemos enquanto seres

    enraizados num corpo. O mundo que a experincia esttica coloca diante do homem um

    mundo diferente daquele que nos fala nossa inteleco, orientada uma compreenso

    lgica e racional do que apreende. No entanto, se o mundo surge distinto, no porque se

    transfigura em algo novo, mas porque o homem para quem esse mundo surge, dirige-lhe

    26 Roberto Figurelli,Introduo edio brasileira de Esttica e Filosofia de Mikel Dufrenne, p. 19.27 No esquecendo que, para Kant, a experincia esttica abrange, ainda que em menor grau, alm daexperincia do belo, tambm a experincia do sublime e do gracioso.28 Mikel Dufrenne, Esttica e filosofia, p.53.

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    uma nova forma de intencionalidade na qual sentimento e pensamento igualam-se em

    importncia, articulando-se e completando-se.

    O que caracteriza um objeto esttico no , portanto, nenhuma de suas

    caractersticas fsicas, mas sim a relao que se estabelece entre o sujeito-de-uma-intencionalidade e o objeto-de-sua-intencionalidade. na esfera do entre, ou na palavra

    de Heidegger, no dazwischen, que se consolida a natureza do objeto esttico.

    No ser justamente a valorizao de uma intencionalidade que coadune, em p

    de igualdade, o inteligvel e o sensvel e que possibilite, desta forma, que o homem retorne

    ao mundo da vida e re-signifique os laos que o prende ao mundo essencial para que se

    consolide uma nova abertura do homem para o mundo e para os outros?

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    I O ABALO DA F NA MODERNIDADE

    Acreditou-se que o progresso estavaautomaticamente garantido pela evoluo histrica.Acreditou-se que a cincia seria sempre progressiva, que aindstria sempre traria benefcios, que a tcnica s trariamelhorias. Acreditou-se que as leis histricas garantiriamo desenvolvimento da humanidade e, tomando por baseesse argumento, acreditou-se ser possvel atingir asalvao na terra, ou seja, o reino da felicidade que asreligies prometiam no cu. O que se constata hoje oabandono da idia de uma salvao na terra.

    Edgar Morin

    Assim, no h hoje quem no fale em crise, por esteou aquele motivo, neste ou naquele contexto. E tal crisevincula-se diretamente a um certo estilo de vida que ahumanidade veio adotando ao longo dos ltimos sculos,notadamente no outrora chamado mundo ocidental. Oque se est assistindo, portanto, consiste talvez no maisradical questionamento sofrido por essa forma de viveradotada pelos seres humanos, cujos parmetros eprincpios definem o conceito de modernidade.

    Joo Francisco Duarte Jr.

    Em todo caso, trata-se menos de rejeitar amodernidade do que de discuti-la.

    Alain Touraine

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    Que a cultura mundial passa atualmente por uma crise ponto comum entre

    grande parte daqueles que se ocupam em pensar o atual momento histrico. Muitos chegam

    inclusive a defender, na nsia de vislumbrar um futuro diferente do passado, o fim da

    modernidade e o surgimento de uma ps-modernidade. Para o presente trabalho, maisimportante do que discutir o possvel nascimento de uma ps-modernidade ou uma

    sobrevida da modernidade saber que, se h uma crise, ela traz consigo um questionamento

    do projeto moderno. A f num progresso baseado na razo, que traria nada alm de

    abundncia, liberdade e felicidade, sucumbe frente aos sentimentos de ansiedade e de medo

    por um possvel destino funesto para toda a humanidade. Guerras, violncia, fome,

    desestabilidade social, desequilbrio ambiental e o surgimento de novas doenas

    consolidam-se como caractersticas marcantes de um sculo XX que encontra, na crtica da

    razo identificada com uma dada racionalidade cientificista e tecnicista, o tom de boa parte

    das reflexes na rea das humanidades. Evidentemente tais caractersticas no so

    peculiares somente ao nosso atual momento histrico, mas surgem como evidncias de uma

    promessa no cumprida. Suas simples existncias nos lembram que, se o estgio atual da

    cultura mundial fruto de um projeto racionalista que previa a emancipao de todos os

    males, esse projeto fracassou. Vemos, portanto, que a manifestao desse abalo da f na

    modernidade que, primeiramente se baseava numa crtica de uma certa concepo de razo,

    freqentemente desgua, por um certo exagero, numa rebelio contra a prpria idia de

    razo, que ronda, perigosamente, os limites do irracionalismo. Destarte, se num primeiro

    momento o questionamento razo tomou ares de contracultura e fundamentou-se numa

    atitude crtica, atualmente este corre o risco de se perder num certo irracionalismo que v a

    razo como algo hostil vida. No raro tambm que, nesta leitura um tanto quanto

    estreita, a reflexo passe a ser identificada com a prpria razo fracassada e,

    conseqentemente, contraposta e subvalorizada por exaltao da prtica e da tcnica em si.

    Vemos muitas vezes, inclusive no mbito acadmico, esta preocupante contraposio entreo fazer e o pensar. No entanto, poucos se do conta de que essa razo que vem sendo

    contraposta prtica to-somente uma razo tecnocrtica, uma razo fechada em si e com

    impulsos totalizantes. Segundo Srgio Paulo Rouanet1,

    1Op. cit., p.20.

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    a alternativa legtima no entre a prtica e a razo tecnocrtica, masentre a razo tecnocrtica e a outra razo, capaz de transformar a prtica. Temos que reformular a frase de Goethe: Cinzenta toda

    teoria, e verde apenas a rvore esplndida da vida. Verde toda teoriaque liberta a vida, e cinzenta toda vida que se fecha razo.

    Muito se discutir, nos prximos captulos, a proposta de uma nova concepo

    de razo, acima de tudo capaz de dialogar livremente com toda a dimenso prtica, uma vez

    que est enraizada no prprio universo do qual a razo tecnocrtica veio tentando se

    emancipar. No entanto, por ora, devemos concentrar-nos na difcil tarefa de apontar as

    caractersticas marcantes de uma modernidade que atualmente aparece rodeada de crticas

    das mais disparatadas, para assim resultar uma possvel leitura do cenrio scio-cultural noqual o homem contemporneo est inserido.

    Uma questo que certamente pode ser levantada diz respeito ao prprio incio

    do perodo histrico que estamos chamando de modernidade. Este, certamente no um

    ponto de fcil esclarecimento uma vez que toda periodizao, em se tratando de histria,

    problemtica. No entanto, podemos compreender a idia de uma Idade Moderna a partir de

    uma concepo que v no desenrolar da histria uma sucesso de trs momentos distintos:

    Idade Antiga, Idade Mdia e, por fim, a Idade Moderna. Enquanto alguns pensadores

    preferem fazer coincidir o incio da Idade Moderna com a queda de Constantinopla em

    1453, existem outros como, por exemplo Michel Foucault, que defendem que a

    modernidade s foi propriamente inaugurada em 1784 com o ensaio de Kant intitulado O

    que Iluminismo?.2 Muito mais vlido, portanto, do que datar seu incio, a tentativa de

    abarcar as caractersticas dos processos desse perodo que levaram a uma civilizao

    baseada na razo e na tecnologia. Em suma, o que se tentar demonstrar neste captulo

    que, no decorrer daquilo que se convencionou chamar modernidade ocorreu uma

    desvalorizao do sensvel atravs de dois principais movimentos: a edificao de uma

    mentalidade quantificadora e calculista e a consolidao de um entendimento restrito de

    razo.

    2 Cf. Srgio Paulo Rouanet, Op. cit., p.239.Este ensaio (cujo ttulo original Was ist Aufklrung?) freqentemente traduzido como O que esclarecimento? ou ainda como O que ilustrao?.

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    A anlise da valorizao de uma mentalidade quantificadora e calculista leva

    nosso olhar de volta Idade Mdia, mas especificamente aos sculos XII e XIII, poca de

    um trnsito crescente com o oriente em decorrncia das cruzadas. So estabelecidas, ento,

    as primeiras rotas comerciais entre a Europa medieval e o oriente, juntamente com a idiade lucro e de riqueza a partir desse comrcio. Se at aquele momento era comum entre o

    povo a prtica do escambo, ou seja, a troca de mercadorias sem o uso da moeda3, a partir

    dele foi necessrio estabelecer diretrizes gerais que pudessem incluir na transao

    comercial uma nova classe burguesa emergente. Para tal, foi necessrio que o dinheiro

    fosse popularizado e elevado condio de essencial. Paralelamente, a nova prtica

    comercial exigia que as distncias fossem corretamente mensuradas, uma vez que os gastos

    com o transporte deveriam ser computados no preo final da mercadoria. Estavam, desta

    forma, sendo concretizados os alicerces da modernidade, no estabelecimento de uma

    mentalidade quantificadora e calculista, a qual foi se espalhando ao longo dos sculos

    seguintes e penetrando os mais diversos ramos da atividade humana.4

    Decisivos na consolidao dessa mentalidade moderna foram tambm a

    inveno do relgio no sculo XIV, que contribua quantificando o tempo, distanciando o

    ser humano de uma apreenso mais direta dos ciclos da natureza5 e o desenvolvimento de

    uma teoria da perspectiva no mbito do desenho, principalmente atravs dos estudos de

    Alberti, Piero de la Francesca e Leonardo da Vinci, que resultaram na geometrizao do

    espao. Por fim, podemos ainda citar Brunelleschi, pai da arquitetura moderna, que projeta

    pela primeira vez uma catedral na superfcie de um papel.

    Brunelleschi contribui, assim, para transformar definitivamente o espao,de um meio onde o corpo vive e se movimenta, numa abstraomatematizada e geometrizada sobre uma superfcie plana. Dos sentidospara o crebro, de acordo com as exigncias modernas.6

    3 Embora a moeda tenha existido desde a antiguidade remota seu uso no era popularizado. Segundo FritjofCapra: Muitas sociedades arcaicas usaram o dinheiro, incluindo moedas metlicas, mas estas eram usadaspara o pagamento de impostos e salrios, no para a circulao geral. (op.cit.,p.186).4 Joo Francisco Duarte Jr.,Itinerrio de uma crise: a modernidade, p.16.5 Cf.Ibidem, pp.16-17.6Ibidem, p.19.

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    Certamente no se h aqui de criticar as brilhantes mentes acima citadas. Suas

    realizaes entraram na histria como impressionantes exemplos da genialidade humana.

    No entanto, suas obras dialogam diretamente com a cultura em que estavam inseridas e,

    desta forma, eles se tornam cones das suas respectivas pocas, ao mesmo tempo em queinfluenciaram o estabelecimento da mentalidade subseqente.

    Vemos, portanto, na passagem da Idade Mdia para Idade Moderna uma lenta

    migrao de uma apreenso do mundo qualitativa para uma apreenso quantitativa,

    resultando, por assim dizer, dois modusoperandi diversos. Segundo Ernesto Sabato7,

    a caracterstica da nova sociedade a quantidade, o nmero. O mundo feudal era um mundo qualitativo: o tempo no se media, vivia-se em

    termos de eternidade e o tempo era o natural para os pastores, dodespertar e do descanso, da fome e do comer, do amor e do crescimentodos filhos, o pulsar da eternidade; era um tempo qualitativo, o quecorresponde a uma comunidade que no conhece o dinheiro.

    Tampouco se media o espao, e as dimenses das figuras em umailustrao no correspondiam s distncias nem perspectiva: eramexpresso da hierarquia.

    Mas quando irrompe a mentalidade utilitria, tudo se quantifica.Em uma sociedade na qual o simples transcurso do tempo multiplica osducados, em que o tempo ouro, natural que se meaminuciosamente.

    H de se salientar que a expanso da mentalidade calculista s mais diversas

    reas gerou um formidvel desenvolvimento humano nos primeiros sculos da

    modernidade. No menos importante foi a contribuio desta mentalidade na

    fundamentao da cincia experimental moderna que teve, no sculo XVII, suas bases

    estabelecidas por meio, principalmente, de duas pessoas: Ren Descartes, considerado um

    dos precursores filosofia moderna, e o do filsofo, astrnomo e matemtico italiano Galileu

    Galilei. O primeiro,

    com seu mtodo da dvida sistemtica, coloca sob suspeita as verdadesat ali estabelecidas e separa a relao homem/mundo em dois plosdistintos, o do sujeito que investiga e o do objeto que se deixa investigar,bem como restringe o saber confivel quele passvel de ser expresso em

    7Homens e engrenagens, p.30.

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    nmeros, reduzindo a natureza e as coisas do mundo extenso, isto , sua dimenso mensurvel.8

    Descartes questiona ainda a veracidade de qualquer evento ou objeto que no

    possa ser expressa de forma numrica. Em suas prprias palavras,

    no admito como verdadeiro o que no possa ser deduzido, com a clarezade uma demonstrao matemtica, de noes comuns de cuja verdadeno podemos duvidar. Como todos os fenmenos da natureza podem serexplicados desse modo, penso que no h necessidades de admitir outrosprincpios da fsica, nem que sejam desejveis. 9

    J Galileu Galilei, promove um afastamento da tradio aristotlica, deixando

    de lado o interesse pelos princpios dos movimentos na natureza, que, na sua opinio,estava escrita numa linguagem matemtica, sendo o objetivo do cientista formular as

    equaes que regiam as leis dos movimentos naturais. Como o prprio Galileu10 nos

    explica,

    a filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente seabre perante nossos olhos (isto , o universo), que no se podecompreender antes de entender a lngua e conhecer os caracteres com osquais est escrito. Ele est escrito em lngua matemtica, os caracteresso tringulos, circunferncias e outras figuras geomtricas, sem cujosmeios impossvel entender humanamente as palavras; sem eles nsvagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.

    A questo passa ento a ser como se medir os movimentos, tarefa para qual a

    lgica aristotlica no poderia contribuir. Podemos citar como ilustrao da divergncia

    entre essas duas escolas a discusso sobre a queda livre de dois corpos de pesos diferentes.

    Aristteles afirma, quase vinte sculos antes de Galileu, que o corpo com o maior peso

    cairia mais rpido. Galileu, no entanto, afirma a possibilidade de erro contida na lgica

    8 Joo Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos, p.43.9 Apud Fritjof Capra , O ponto de mutao, p.53.10O Ensaiador, emBruno, Galileu, Campanella, p. 119.

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    aristotlica11 e prope um experimento que comprova que os dois corpos caem em igual

    velocidade. Estava, por assim dizer, inaugurada a cincia experimental moderna. Os

    sentidos retornam cena, mas somente como uma etapa intermediria na busca do

    conhecimento verdadeiro, expresso numa linguagem matemtica.Responsvel por dar formas finais Revoluo Cientfica, Isaac Newton deu

    realidade ao pensamento de Descartes desenvolvendo uma completa formulao

    matemtica da concepo mecanicista da natureza. Em sua obra Princpios matemticos de

    filosofia natural, Newton apresenta ainda um procedimento sistemtico, no qual a descrio

    matemtica deveria se basear, para chegar avaliao crtica da evidncia experimental.12

    Os sculos XVIII e XIX confirmam a teoria newtoniana, uma vez que todos os

    experimentos apontavam para a possibilidade de que tudo podia ser entendido sob um

    ponto de vista puramente mecanicista e matemtico: comportamento de slidos, lqidos e

    gases (incluindo o calor e o som). O aparente sucesso da cincia quantificada leva,

    inclusive, exigncia de que os estudos a respeito do ser humano se submetessem s

    mesmas avaliaes matemticas caractersticas das cincias exatas. No entanto, como nos

    diz Ernesto Sabato13,

    frente infinita riqueza do mundo material, os fundadores da cincia

    positiva selecionaram os atributos quantificveis: a massa, o peso, a forma geomtrica, a posio, a velocidade. E chegaram convico deque a natureza est escrita em caracteres matemticos, quando o queestava escrito em caracteres matemticos no era a natureza, mas... aestrutura matemtica da natureza. Trusmo to evidente como o deafirmar que o esqueleto dos animais tem sempre caracteres esquelticos.

    Indo ao encontro de Sabato, Max Horkheimer14 defende que os chamados

    fatos determinados por mtodos quantitativos, que os positivistas se inclinam a ver como os

    nicos cientficos, so muitas vezes fenmenos de superfcie que obscurecem mais do que

    clarificam a realidade subjacente.

    11 Ocorre que Galileu, na fora de sua personalidade contestadora e sobretudo amante da comprovao dosfatos, raciocinava que um pensamento pode ser perfeitamente lgico e enquadrado no bom senso, sem quenecessariamente seja verdadeiro. (Regis de Morais, Filosofia da cincia e da tecnologia, p.38).12 Cf. Fritjof Capra, Op. cit., p.59.13Homens e engrenagens, p.47.14Eclipse da Razo, p.88.

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    Devemos, no entanto, salientar que no se pretende, aqui, fazer uma

    condenao ao mtodo matemtico, mas sim crena de que nosso conhecimento sobre o

    mundo pode ser esgotado matematicamente. Uma senide ou uma geodsica podem e

    devem ser definidos com rigor absoluto. Pertencentes ao universo matemtico, no somenteso puros como no podem deixar de s-lo.15 No entanto, uma boa parte das situaes que

    vivemos no nosso dia a dia nada tm a ver com uma lgica rgida ou com uma anlise

    matemtica. Podemos, inclusive, nos questionar se no so justamente as regies rebeldes

    aos mtodos quantitativos as mais valiosas para o homem e seu destino. Desta forma,

    Sabato16 conclui que

    a cincia exata isto , a cincia matematizvel alheia a tudo o que mais valioso para um ser humano; suas emoes, seus sentimentos dearte ou justia, sua angstia frente morte. Se o mundo matematizvel fosse o nico mundo verdadeiro, no s seria ilusrio um palciosonhado, com suas damas, bobos da corte e palafreneiros; tambm oseriam as paisagens da viglia ou a beleza de uma fuga de Bach. Ou pelomenos seria ilusrio o que neles nos emociona.

    O estabelecimento de uma mentalidade quantificadora e calculista um aspecto

    constitutivo de um processo de racionalizao das instituies e da vida em geral. Desta

    forma, o estudo da modernidade enquanto consolidao de uma certa viso de mundo que

    acabaria por nortear a vida dos seres humanos obriga-nos a apontar uma crescente

    racionalizao como outra de suas principais caractersticas. Dito isto, devemos comear

    por propor uma definio para o conceito de racionalizao. Para Edgar Morin17,

    racionalizao

    a construo de uma viso coerente, totalizante do universo, a partir dedados parciais, de uma viso parcial, ou de um princpio nico. Assim, aviso de um s aspecto das coisas (rendimento, eficcia), a explicao em

    funo de um fator nico (o econmico ou o poltico), a crena que osmales da humanidade so devidos a uma s causa e a um s tipo deagentes constituem outras tantas racionalizaes.

    15 Ernesto Sabato, O Escritor e seus Fantasmas, p.14.16Ns e o Universo, p.23.17Cincia com conscincia, p.157-148.

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    Morin completa apontando que a racionalizao claudica por querer fechar o

    universo numa coerncia lgica pobre ou artificial e, em todo caso, insuficiente18.

    Podemos tambm citar Subirats19, para quem o termo racionalizao

    possui no pensamento de nosso sculo uma slida tradio que comeacom a sociologia de Weber e a psicanlise de Freud, e acaba na crticasocial de Adorno e Horkheimer. Neste contexto dilatado, a crtica daracionalizao remete a um nexo comum: a substituio da realidadevital do ser humano por um paradigma tecnolgico. Trata-se, formulando-o ao contrrio, da extenso da racionalidade tcnico-cientfica ao conjunto de processos vitais, individuais ou coletivos, semreconhecimento de sua autonomia real. Semelhante expanso de ummodelo de atuao tecnolgica aos processos vitais foi discutido tanto noplano sociolgico, como epistemolgico.

    Sendo assim, a tendncia moderna racionalizao procura estabelecer uma

    viso que compreenda a totalidade do universo simplesmente eliminando da sua teoria os

    aspectos que so incompatveis a uma reduo racional, ou ainda tentando moldar a

    realidade para que esta se adapte sua lgica. Vale salientar que o termo racionalizao

    usado freqentemente na psicanlise para caracterizar um mecanismo de defesa que pode

    ser definido como o processo defensivo no qual o indivduo procura justificar suas aes

    de forma coerente desconhecendo entretanto suas motivaes inconscientes.20 Na

    definio de Laplanche e Pontalis21, a racionalizao o

    processo pelo qual o indivduo procura apresentar uma explicaocoerente do ponto de vista lgico, ou aceitvel do ponto de vista moral, para uma atitude, uma ao, uma idia, um sentimento, etc., de cujosmotivos verdadeiros no se apercebe; fala-se mais especialmente daracionalizao de um sintoma, de uma compulso defensiva, de uma formao reativa. A racionalizao intervm tambm no delrio,resultando numa sistematizao mais ou menos acentuada.

    Percebe-se que a racionalizao no aqui considerada sinnimo deracionalidade (ou do uso da razo). Um indivduo que se utiliza deste mecanismo pode agir

    18Ibidem, p.170.19Da vanguarda ao ps-moderno, p.36.20 Ruth M. Cerqueira Leite, Glossrio com Termos Psicanalticos, em Folha de S. Paulo, 23/9/1973.21Vocabulrio da psicanlise, p. 543.

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    de uma forma aparentemente consciente e racional, quando est, na verdade, sendo

    impulsionado por motivaes de ordem no-racional. Toda a discusso que se seguir tem

    como objetivo demonstrar que a racionalizao num mbito scio-cultural pode ser um

    processo irracional.No podemos deixar de apontar, mesmo que rapidamente, o racionalismo como

    variao mais radical da racionalizao. Enquanto o ltimo exclui os aspectos

    incompatveis de seu sistema, propondo uma explicao terica e racional a partir de um

    ponto de vista generalizado, o primeiro afirma total concordncia entre o racional e a

    realidade do universo. Ou seja, os aspectos no-racionais no esto somente excludos de

    seu sistema terico, mas sim de tudo aquilo que , por ele, considerado real. Nas palavras

    de Edgar Morin22, o racionalismo

    : 1. uma viso do mundo afirmando a concordncia perfeita entre oracional (lgica) e a realidade do universo; exclui portanto, do real oirracional e o arracional; 2. uma tica afirmando que as aes e associedades humanas podem e devem ser racionais em seu princpio, suaconduta, sua finalidade

    De forma quase anloga primeira parte da definio de Morin, para

    Kujawski23, chama-se racionalismo a crena segundo a qual entre a realidade e a razo

    existe plena e absoluta transparncia; a realidade se comportaria em identidade com as

    idias da razo.

    Aps esta rpida apresentao dos termos racionalizao e racionalismo,

    podemos afirmar que, ligada crescente racionalizao moderna, encontra-se uma

    concepo de razo identificada puramente com a inteleco24. Vemos surgir uma oposio

    entre a inteleco, identificada com a razo, e o sensvel, considerado um obstculo para o

    perfeito funcionamento da razo. Um dos maiores perigos desta separao reside no prprio

    funcionamento desta suposta razo que, para manter intacta a ciso, desconfia de tudo que

    22Idem, p.157.23Op. cit., p. 119.24 Segundo Horkheimer: tanto em discusses laicas quanto no debate cientfico, a razo vem sendocomumente considerada uma faculdade intelectual de coordenao, cuja eficincia pode ser aumentada pelouso metdico e pela remoo de quaisquer fatores no-intelectuais, tais como as emoes conscientes ouinconscientes. (O eclipse da razo, p.18).

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    no razo (no sentido que ela prpria deu ao termo). Este entendimento de razo, em

    muitos momentos obcecada com a sua eficcia, balizou boa parte de edificao da nossa

    cultura moderna e conduziu generalizao da racionalizao.

    Pode-se dizer que a industrializao, a urbanizao, a burocratizao, atecnologizao se efetuaram segundo as regras e os princpios daracionalizao, ou seja, a manipulao social, a manipulao dosindivduos tratados como coisas em proveito dos princpios de ordem, deeconomia, de eficcia.25

    Podemos, como ilustrao, rapidamente apontar o influxo da racionalizao na

    implantao do modelo industrial moderno. Intimamente correlacionada a uma mitificao

    do conceito de eficcia26

    , a caracterstica principal da racionalizao industrial foiconsiderar o trabalhador no como pessoa, mas como fora fsica de trabalho27. A

    eficcia passa a ser o princpio legitimador de uma lgica de produo racionalizada: se

    algo eficaz para a produo e pode aumentar os ganhos, deve ser adotado. Atentando para

    a expanso do mito da eficcia, Gilberto de Mello Kujawski28 defende que este gera ainda o

    seguinte raciocnio: o que eficaz, em princpio bom, seja para o bem-estar material ou a

    salvao da alma, para o enriquecimento ou o reforo do Estado, para a educao dos

    jovens ou para a conduta moral. Frente ao conceito mitificado de eficcia, o bom e o

    mau, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o belo e o feio, o

    agradvel e o desagradvel, o tico e o no-tico, todos os esquemas valorativos baseados

    numa razo mais ampla sucumbem.29

    Esta lgica de produo obcecada com sua eficcia econmica colaborou para o

    afastamento entre o homem e seu corpo; este ltimo deveria ser controlado para que no

    atrapalhasse a eficcia da produo. Para ilustrar os efeitos decorrentes da implantao

    25 Edgar Morin, Cincia com conscincia, p.162.26 A modernidade o lugar da luta encarniada entre eficcia e legitimidade. Esta emana da concrdia sociale histrica sobre crenas tradicionais, e atua como princpio sacralizador do mundo. A legitimidade modernatpica foi a legitimidade pela eficcia, que a princpio no era s eficcia tcnica, mas tambm poltica,racional, jurdica etc. (Gilberto de Mello Kujawski,A crise do sculo XX, p.149).27 Edgar Morin, op. cit., p.162.28 Op. cit, p.136.29 Joo Francisco Duarte Jr, O sentido dos sentidos, p. 56.

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    dessa lgica de produo, Herbert Marcuse concebe o termo mais-represso, cunhado

    sobre o termo freudiano de represso.

    De acordo com o pensamento freudiano, para o surgimento da civilizaoo ser humano houve que reprimir seus instintos fundamentais, tornando possvel o aparecimento de leis e normas que regravam a sua corretasatisfao naqueles momentos e locais determinados. Para Marcuse, porm, foi necessria uma mais-represso por ocasio da Revoluo Industrial, de maneira que uma quantidade adicional de energia fossecanalizada para a estafante atividade junto s mquinas de ento, em jornadas que chegavam a dezesseis horas por dia. O que implicou noestabelecimento de regras morais e de conduta ainda mais severas, nadireo de uma condenao aos prazeres do corpo e daquelas atividadesno rentveis no que tange produo de bens de consumo.30

    importante chamar a ateno para o fato de que, na citao acima, o

    estabelecimento de certas regras morais apontado com um subproduto de um processo de

    racionalizao. Podemos, portanto, inferir que, da racionalizao podem resultar novos

    valores ticos, valores morais ou at mesmo valores estticos mesmo que nenhum destes

    valores tenha sido contemplado de forma consciente no estabelecimento do processo. Isto

    porque, a racionalizao possui, acobertada de suas camadas mais superficiais, uma

    dimenso irracional oculta. Em outras palavras: o resultado de um processo de

    racionalizao nem sempre racional, como a prpria psicanlise j o afirmou. No

    entendimento psicanaltico, uma pessoa que desconhece suas reais motivaes

    inconscientes, age freqentemente motivada por estas mesmas motivaes, mesmo quando

    acredita estar agindo de forma consciente e racional. Andr Dartigues31 aponta-nos a

    origem deste paradoxo: a vida psquica antecede e excede a reflexo consciente, ela

    comporta formaes antigas que lhe escapam e determinam sua visada antes que ela tenha

    podido esclarec-las refletindo-as. A razo demonstra, desta forma, que s pode ser plena

    caso atente para a totalidade da vida psquica, ou seja, tambm para o no-racional32

    . A

    30Ibidem, p.48.31O que fenomenologia?, p.53.32 Preferimos usar o termo no-racional (ou a-racional) ao termo irracional, pois este ltimo carrega umaconotao negativa que no caberia neste caso.

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    opo moderna de no atentar ou at mesmo reprimir o a-racional e os instintos parece

    apresentar aqui seus primeiros sinais de fracasso. Como explica Subirats33,

    o princpio racional no qual se funda o maquinismo como projeto dedominao no foi elevado a axioma geral da civilizao moderna semproduzir simultaneamente seu contrrio: a irracionalidade da destruio.O mito da mquina, tanto nas formulaes positivas dos apologistas,quanto nas vises sinistras dos detratores, oferece, no fim da eramoderna, o panorama cultural de uma radical ambigidade designificados.

    Alm do domnio sobre a fora de trabalho, este modelo de produo baseou-se

    tambm na explorao da natureza por busca de matrias primas e na desconsiderao das

    questes ambientais. V-se o triunfo de uma razo tornada instrumental34

    ; seu valoroperacional, seu papel no domnio dos homens e da natureza tornou-se o nico critrio para

    avali-la.35 A natureza passa a ser vista como um utenslio, ou seja, passa a ser

    considerada somente a partir do uso que dela se faz.

    Outra questo problemtica da racionalizao que esta, freqentemente,

    considera a razo, identificada exclusivamente com a inteleco, como um ponto de partida

    para a edificao da sociedade de uma forma geral ou como um guia para se viver a vida.

    Essa , inclusive, uma das crticas que se faz ao ideal iluminista, o qual propunha a razo

    como ponto de partida para a maioridade do homem. Como nos explica Srio Paulo

    Rouanet36, a proposta iluminista

    se limitava a dizer que o homem j era, de sada, racional e, pordesconhecer os limites da razo, deixava o homem indefeso diante dadesrazo. Freud descobriu esses limites e com isso armou o homem paraa conquista da razo: ela no um ponto de partida, mas um ponto dechegada.

    33Da vanguarda ao ps-moderno, p.44.34 Originalmente proposto por Weber, o tema da instrumentalizao da razo foi fundamental nas reflexesdesenvolvidas pelos integrantes da chamada Escola de Frankfurt.35 Horkheimer, op. cit., p.29.36 Srgio Paulo Rouanet, op. cit., p.143.

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    Para uma melhor compreenso do projeto iluminista deve-se levar em conta

    uma das diferenas mais fundamentais entre a Idade Mdia e a Idade Moderna: o modelo

    epistemolgico que embasaria a edificao do conhecimento. Na Idade Mdia acreditava-se

    que a chave para a compreenso do presente e do homem se encontrava nas sagradasescrituras e na leitura dos antigos sbios. Sendo assim, o conhecimento da verdade no

    dependia da adoo de um mtodo correto, mas sim do acesso s fontes corretas, restrito a

    determinados grupos. Com o incio da modernidade percebe-se a limitao desse

    pensamento e o homem assume sua parcela de responsabilidade perante a construo do

    conhecimento. Para tal, um novo mtodo de busca do conhecimento, baseado, entre outras

    coisas, na ampliao da acessibilidade s fontes e s informaes, foi necessrio. A

    inveno da imprensa de tipos mveis por Gutemberg ou a traduo da bblia crist por

    Lutero, so marcos ilustrativos desta mentalidade. Dentro deste projeto e a partir do

    Renascimento, ocorre uma valorizao do estudo direto dos homens e de seus atos,

    inclusive passados, como forma de elaborao do conhecimento no presente. No entanto, o

    homem que olhava para seu prprio passado confrontava-se, por assim dizer, com

    caractersticas profundamente conflitantes com os novos ideais humanistas. Ficava claro

    que seria necessrio um projeto para o futuro que pudesse corrigir os erros do passado.

    Marcado por inmeros entrepassos, esse processo resulta, no sculo XVIII, justamente no

    ideal iluminista que, nas palavras de Kant,

    consiste na superao da minoridade, pela qual o prprio homem culpado. A minoridade a incapacidade de servir-se do seu prprioentendimento, sem direo alheia. O Homem culpado por essaminoridade quando sua causa no reside numa deficincia intelectual,mas na falta de deciso e de coragem de usar a razo sem a tutela deoutrem. Sapere aude! Ousa servir-te de tua razo!37

    Embora este texto de Kant tenha o objetivo de, primordialmente, questionar aminoridade religiosa que, segundo o filsofo, no somente a mais danosa, mas tambm a

    37 Immanuel Kant apud Srgio Paulo Rouanet,As razes do Iluminismo, p.30-31.

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    mais desonrosa38, o projeto iluminista pretendia que o homem encontrasse em si prprio as

    armas contra todos os poderes externos que at ento ditavam o desenrolar das suas

    vidas. Tratava-se de devolver ao homem a capacidade de ser senhor de seus atos, e de sua

    vida, ou seja, de permitir ao homem o uso de seu prprio entendimento sem a direo deoutrem. Este , para o Iluminismo, o entendimento dirigido pela razo39.

    Devemos tambm salientar que o sucesso da cincia experimental moderna

    parecia garantir que, enfim, havia-se desvendado definitivamente o mecanismo de

    funcionamento da natureza e que o caminho para a obteno de toda verdade havia sido

    descoberto. A cincia, juntamente com a razo, seria uma cartada certa contra os erros do

    passado e, juntas, seriam responsveis pela redeno do gnero humano. A harmonizao

    do homem com o mundo objetivo, atravs do desvelamento de todos os segredos da

    realidade seria, enfim, papel da cincia e de suas descobertas. No entanto, a razo,

    considerada pelos iluministas uma possvel arma contra poderes externos acaba por

    tornar-se um poder por si s. Para Alain Touraine40,

    a particularidade do pensamento ocidental, no momento da sua mais forteidentificao com a modernidade, que ele quis passar do papelessencial reconhecido racionalizao para a idia mais ampla de umasociedade racional , na qual a razo no comanda apenas a atividade

    cientfica e tcnica, mas o governo dos homens tanto quanto aadministrao das coisas.

    Tal fato tem uma profunda influncia no projeto de formao/educao do ser

    humano. Ainda citando o pensamento de Touraine41, a formao do homem como sujeito

    foi identificada, como se v melhor nos programas de educao, com a aprendizagem do

    pensamento racional e a capacidade de resistir s presses do hbito e do desejo, para

    submeter-se somente ao governo da razo. A lgica da razo foi contraposta ao corpo e

    38 Immanuel Kant, What is Enlightenment, in Contemporary Civilization Staff Columbia College (org.)Contemporary civilization reader, p.342. (minha traduo). Texto original: [I have emphasized the mainpoint of the enlightenment mans emergence from his self-imposed nonage primarily in religious matters,because our rulers have no interest in playing the guardian to their subjects in the arts and sciences. Above all,nonage in religion] is not only the most harmful but the most dishonrable.39 Theodor Adorno e Max Horkheimer. Op. cit., p.81.40Crtica da Modernidade, p.20.41Idem, p.218.

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    suas paixes, suas sensaes e sentimentos. O sujeito moderno, a partir desta ciso, corre o

    risco de tornar-se esquizide.

    No entanto,

    esta tentativa de para conceber uma sociedade racionalizada no vingou.Antes de mais nada porque a idia de uma administrao racional dascoisas que substituiria o governo dos homens dramaticamente falsa e porque a vida social que se imaginava transparente e governada porescolhas racionais revelou-se repleta de poderes e de conflitos.42

    Horkheimer43 vai ainda mais alm e afirma que

    a razo jamais dirigiu verdadeiramente a realidade social, mas hoje estto completamente expurgada de quaisquer tendncias ou prefernciasespecficas que renunciou, por fim, at mesmo tarefa de julgar as aese o modo de vida do homem. Entregou-os sano suprema dosinteresses em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmenteabandonado.

    A tentativa de se discutir a modernidade enquanto projeto no pode deixar de

    lado o atual abalo da crena no progresso, garantido que estava pela trade cincia, tcnica44

    e indstria, resultando em felicidade, abundncia e liberdade. Vemos, inclusive, diversos

    efeitos colaterais do desenvolvimento industrial e econmico dos ltimos sculos,

    resultando, por assim dizer, num grande nmero de novos problemas, cuja maior parte de

    difcil soluo. Assim, o que hoje chamado de crise da modernidade est, em larga escala,

    ligado ao questionamento do projeto moderno de uma sociedade dita racional. Aparece aqui

    justamente a capacidade de auto-reflexo da razo; o questionamento do projeto moderno

    fruto da prpria atuao da razo, que comea a ter conscincia de sua crise. No se trata,

    42Ibidem, p.39.43

    Op. cit., p.18.44 Tcnica e tecnologia so distinguveis historicamente. Como Regis de Morais nos explica: teoricamente atcnica tem como objetivo humanizar a natureza, ou, como entendia Karl Marx, transformar a natureza nocorpo inorgnico do homem. E enquanto a atividade tcnica manteve esta finalidade, maravilhosas coisasaconteceram em benefcio do ser humano. Contudo, os caminhos pelos quais enveredaram a tcnica e acincia em pocas mais prximas so completamente diferentes. Razo pela qual... diremos tcnica paramencionar o comportamento criativo do homem paleoltico, neoltico, medieval ou mesmo moderno, quemanteve fidelidade funo humanizante da tecnificao; e designamos por tecnologia a prtica mais recenteda objetiva criatividade humana. (Filosofia da cincia e da tecnologia, p.102).

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    entretanto, de uma aporia, e sim da identificao de que o que se acreditou ser a razo plena

    no passa de uma parcela de suas reais dimenses.

    O questionamento do progresso vem sendo impulsionado pela trgica realidade

    qual estamos atualmente expostos, evidenciada na violncia social, nas guerras, namisria, no desemprego, na fome, na deteriorao do meio ambiente, entre outros. Diante

    deste suposto fracasso do projeto moderno o ser humano se percebe carente de perspectivas

    concretas para o futuro. A busca por novos caminhos surge como uma opo necessria e

    hoje, talvez mais do que nunca, faz-se indispensvel debater e buscar alternativas que

    minimizem a sensao de um futuro funesto e ameaador. Provavelmente o ponto crucial

    para qualquer proposta neste sentido a de modificar a maneira com que o homem se

    relaciona consigo mesmo e com o mundo. Neste sentido, podemos entender as palavras de

    Duarte Jr. 45:

    parece que to-s encerrar-se- o presente ciclo da histria humana namedida em que maneiras novas de se construir o conhecimento possamgerar atitudes diferentes do homem em relao a si mesmo e a este planeta no qual habitamos, acarretando outras organizaes sociais,outras formas de produo e de distribuio de bens e saberes.

    Atualmente vemos, portanto, um tumultuado cenrio marcado pela crise da

    idia de modernidade e pelo questionamento da prpria base sobre a qual toda a construo

    do conhecimento moderno vinha sendo edificada. Dentro da pluralidade de propostas

    atuais poderamos apontar duas principais correntes. A primeira, denominada ps-

    modernismo, defende o total esgotamento do projeto moderno, afirmando existir uma total

    ruptura com os antigos ideais e projetos fracassados46. Na nsia de vislumbrar um futuro

    diferente do passado, o ps-modernismo, em sua verso mais radical, corre o risco de ter

    seus postulados estabelecidos at mesmo pela contraposio ao que considerado moderno.

    Neste aspecto, podemos inclusive temer que o culto razo, tipicamente moderno, acabe

    45 Joo-Francisco Duarte Jr. O sentido dos sentidos, p. 219.46 Adorno escreveu em Mnima Moralia que a modernidade tinha ficado fora de moda. Hoje, estamosconfrontados, ao que parece, com algo de mais definitivo: no a obsolescncia, mas a morte da modernidade.Seu atestado de bito foi assinado por um mundo que se intitula ps-moderno e que j diagnosticou a rigidezcadavrica em cada uma das articulaes que compunham a modernidade. (Srgio Paulo Rouanet, As razesdo Iluminismo, p. 20).

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    por se tornar um culto irracionalidade. Devemos, no entanto, considerar este um caso

    parte e atentar para o fato de que o ps-modernismo rene, atualmente, em sua defesa um

    certo nmero de crticos, filsofos, socilogos e artistas convencidos de que j houve uma

    ruptura com a modernidade. No raro encontrarmos, entre estes, os que buscam na cinciaargumentos para corroborar suas opinies, fazendo com que a ps-modernidade seja

    freqentemente relacionada com o nascimento de um novo paradigma47 baseado nos

    descobrimentos da fsica no incio do sculo XX. Grosso modo, a cincia moderna seria

    determinista e a ps-moderna seria probabilstica, indeterminista, baseada no princpio da

    incerteza48, caractersticas que acabariam por influenciar, na viso do ps-modernismo,

    toda a formao de um paradigma no s cientfico, mas tambm scio-cultural e humano.

    Uma segunda linha de pensamento afirma que o projeto moderno nunca se

    realizou plenamente e que a modernidade ainda pode e deve ser defendida, sem excluir, no

    entanto, a necessidade de se rediscutir seus postulados. Podemos citar o brasileiro Srgio

    Paulo Rouanet como um entusiasta defensor desta vertente. Nas suas palavras,

    no possvel lutar contra a modernidade repressiva seno usando osinstrumentos de emancipao que nos foram oferecidos pela prpriamodernidade: uma razo autnoma, capaz de desmascarar as pseudolegitimaes do mundo sistmico, uma ao moral

    autodeterminada, que no depende de autoridades externas, e uma aopoltica consciente, baseada em estruturas democrticas que pressupemuma razo crtica e uma vontade livre. Deixar de ver essa dialtica damodernidade, reduzindo-a, em bloco, sua vertente perversa, privar-sedos meios de resistir perverso. Demitir-se da modernidade a melhorforma de deixar intacta a modernidade repressiva.49

    Para Rouanet, a vontade de um mundo ps-moderno reflete, no entanto, uma

    sensao de fracasso do projeto moderno e um desejo do novo, mas ainda faz parte da

    prpria modernidade. Sendo assim,

    o prefixo ps tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (amodernidade) que de articular o novo (o ps-moderno). O ps-moderno

    47 O termo paradigma foi utilizado e popularizado pelo fsico e epistemlogo Thomas Kuhn e pode serentendido como um modelo e uma mentalidade que formam uma base para se compreender o mundo.48 Srgio Paulo Rouanet, op. cit., p.261.49Idem, p.25-26.

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    muito mais a fadiga crepuscular de uma poca que parece extinguir-seingloriosamente que o hino de jbilo de amanhs que despontam. conscincia ps-moderna no corresponde uma realidade ps-moderna.Nesse sentido, ela um simples mal-estar da modernidade, um sonho damodernidade.50

    Como vimos, a conscincia ps-moderna, fruto da auto-reflexo da razo,

    aponta para os possveis desvios do projeto moderno e deve, portanto, ser considerada

    como uma importante literatura para o debate dos postulados modernos. A crena no

    nascimento de uma ps-modernidade aponta, ainda nas palavras de Rouanet 51, uma vontade

    de

    despedir-se de uma modernidade doente marcada pelas esperanas

    tradas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos, pelosneofundamentalismos mais obscenos, pela razo transformada em poder, pela domesticao das conscincias no mundo industrializado e pelatirania poltica e pela pobreza absoluta nos 3/4 restantes do gnerohumano.

    Deve-se salientar, porm, que o que est em pauta neste estudo muito mais

    uma discusso do percurso moderno do que propriamente sua rejeio e o nascimento de

    uma ps-modernidade. Resumidamente, o que se pretende mostrar que este percurso foi

    marcado, durante sua maior parte, pela f no progresso sustentado pela trade cincia,tcnica e indstria at a instaurao da desconfiana nesta mesma f que, de forma

    definitiva, se estabelece no sculo XX.

    Devemos, entretanto, atentar para o fato de que a fronteira entre os diferentes

    aspectos desta trade no nada clara. Assim,

    embora se possam distinguir atividades mais cientficas do que tcnicase outras mais tcnicas do que cientficas, a distino cincia-tcnica, tal

    como usualmente utilizada pelos cientistas uma distino idealista.Funda-se numa abstrao: desenraiza o discurso cientficorelativamente sua verificao