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porque é - Notícias de Portugal e do mundo, análise, opinião e ... · concorrente, o que foi um grande alívio para a minha mãe, que não gostava muito que ele salvasse vidas

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porque é preciso virar

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À ESPERA DE BOJANGLES

título original: En attendant Bojanglestítulo: À Espera de Bojanglesautor: Olivier Bourdeaut

© editions Finitude, 2016© Autor e Guerra e Paz, Editores, S. A., 2016Reservados todos os direitos

A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

tradução: Rui Santana Britorevisão: Helder Guéguésdesign de capa e paginação: Ilídio J.B. VascoFotografias de capa: GraphickstockFotografia do autor: editions Finitude

isbn: 978-989-702-200-5depósito legal: 408069/161.ª edição: Abril de 2016

Guerra e Paz, Editores, S. A.R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.1150 -105 LisboaTel.: 213 144 488Fax: 213 144 489E -mail: [email protected]

À Espera

O L I V I E R B O U R D E A U T

R O M A N C E

BojanglesDE

Ficção · romance

Aos meus paispor essa estranha mescla de paciência e brandura

testemunho quotidiano da sua ternura

«Há pessoas que nunca se deixam tocar por um grão de loucura...

Devem ter vidas bem enfadonhas, essas pessoas.»

Charles Bukowski

Esta é a minha história verdadeira, com uma mentira aqui, outra ali, porque a

vida é, muitas vezes, mesmo assim.

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O meu pai tinha-me dito que, antes de eu nascer, a sua profissão era caçar moscas com um arpão. Tinha-me mostrado o arpão e uma mosca esbor-

rachada.— Acabei por desistir porque era um trabalho muito

difícil e muito mal pago — afirmara-me, guardando o seu antigo material de trabalho num cofre lacado. — Agora abro garagens. O trabalho é muito mas bastante bem pago.

Na abertura das aulas, quando, logo no início, faze-mos a nossa apresentação, falei, não sem orgulho, das pro-fissões do meu pai, mas fui amavelmente repreendido e copiosamente escarnecido

— A verdade é sempre mal paga, e por uma vez era tão divertida como uma mentira. — lamentei.

Na realidade, o meu pai era um homem de leis.— É a lei que nos dá de comer! — exclamava, rindo

às gargalhadas enquanto enchia o cachimbo.O meu pai não era nem juiz, nem deputado, nem

notário, nem advogado. Nada disso. A sua actividade,

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exercia-a graças ao seu amigo senador. Com a possibili-dade de se informar directamente na fonte sobre as novas disposições legislativas, deixara-se completamente absor-ver por uma nova profissão criada de raiz pelo senador. Novas normas, nova profissão. Foi assim que passou a ser «abridor de garagens». Para garantir um parque automó-vel seguro e são, o senador decidira impor um controlo técnico a toda a gente. Por essa razão, os proprietários de calhambeques, limusinas, carros utilitários e carros de transporte de todo o género deviam submeter o seu veí-culo a uma inspecção médica para evitar os acidentes. Ricos ou pobres, toda a gente era obrigada a cumprir. E como a coisa era obrigatória, o meu pai cobrava caro, muito caro. Cobrava a ida e o regresso, a consulta e a con-traconsulta e, a julgar pelas gargalhadas que soltava, aquilo corria mesmo muito bem.

— Salvo vidas, salvo vidas! — ria-se ele com o nariz mergulhado nos extractos bancários.

Naquela altura, salvar vidas dava muito dinheiro. Depois de ter aberto inúmeras garagens, vendeu-as a um concorrente, o que foi um grande alívio para a minha mãe, que não gostava muito que ele salvasse vidas porque, para o fazer, tinha de trabalhar muito e quase nunca o víamos.

— Trabalho até tarde para poder deixar de trabalhar cedo — respondia-lhe ele, coisa que eu não percebia lá muito bem.

Eram muitas as vezes em que não compreendia o meu pai. Com o passar dos anos, acabei por compreendê-

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-lo um pouco melhor, mas nunca completamente. E nunca tive qualquer problema com isso.

Tinha-me dito que nascera com ele, mas depressa me dei conta de que o corte acinzentado, ligeiramente intu-mescido, que tinha no lado direito do lábio inferior e lhe conferia um belo sorriso um tanto ou quanto distorcido se devia à frequência com que fumava cachimbo. O seu corte de cabelo, com risca ao meio e ondinhas de ambos os lados, fazia-me lembrar o penteado do cavaleiro prus-siano do quadro que tínhamos pendurado à entrada. Além do prussiano e do meu pai, nunca vi ninguém que se penteasse daquela maneira. As órbitas dos olhos, ligei-ramente côncavas e os olhos azuis ligeiramente globulo-sos davam-lhe um olhar curioso. Profundo e divertido. Naquela época sempre o vi feliz. Aliás, ele próprio dizia muitas vezes:

— Sou um imbecil feliz!A isso respondia-lhe a minha mãe:— Acreditamos piamente em si, Georges, acredita-

mos piamente em si!Passava o tempo a cantarolar. Mal. Por vezes assobiava,

igualmente mal, mas, como tudo o que é feito com prazer, suportava-se bem. Contava histórias muito engraçadas e, nas raras vezes em que não tínhamos convidados, vinha deitar-se na minha cama, encolhendo o corpo magro e comprido, para me ajudar a adormecer. Com um revirar de olhos, evocando uma floresta, um cabrito-montês,

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um duende, um caixão, tirava-me completamente o sono. A maior parte das vezes eu acabava, hílare, aos saltos sobre a cama ou escondido, cheio de medo, por trás dos cortina-dos.

— São histórias para dormir em pé — dizia-me antes de sair do quarto.

E também neste caso podíamos acreditar piamente no que dizia. Aos domingos à tarde, para purgar todos os excessos da semana, fazia musculação. Em frente do grande espelho de moldura dourada e encimado por um grande nó majestoso, de tronco nu e cachimbo enfiado na boca, levantava e baixava minúsculos halteres enquanto ouvia jazz. Chamava àquilo «gym tonic» porque de vez em quando interrompia os exercícios de musculação para beber um gin-tónico em grandes goles, dizendo à minha mãe:

— Devia experimentar este desporto, Marguerite, garanto-lhe que é divertido e que nos sentimos muito melhor depois.

A isso respondia-lhe a minha mãe enquanto tentava, com a língua entre os dentes e um olho fechado, pescar a azeitona do seu martíni com um guarda-sol em miniatura:

— Devia experimentar o sumo de laranja, Georges, e garanto-lhe que depois ia achar o seu desporto bem menos divertido! E, por favor, deixe de me chamar Mar-guerite, escolha-me um novo nome, senão ainda desato a mugir como uma vitela!

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Nunca percebi muito bem porquê, mas o meu pai nunca tratava a minha mãe pelo mesmo nome mais de dois dias seguidos. Embora certos nomes a cansassem mais depressa do que outros, a minha mãe gostava muito deste hábito e, todas as manhãs, na cozinha, via-a a observar o meu pai com um olhar risonho, o nariz enfiado na tigela ou o queixo apoiado nas mãos, à espera do veredicto.

— Não, não pode fazer-me uma coisa dessas. Renée não, pelo menos hoje! Esta noite temos convidados para jantar! — protestava ela com uma risada; depois voltava a cara para o espelho e dava as boas-vindas à nova Renée com uma careta, à nova Joséphine assumindo um ar de grande dignidade, à nova Marylou enchendo as bochechas de ar.

— Ainda por cima não tenho nada no guarda-roupa a condizer com esse nome, Renée!

A minha mãe tinha direito a um nome fixo uma vez por ano apenas, nada mais do que isso. A 15 de Fevereiro, chamava-se Georgette. Não era esse o seu verdadeiro nome, mas o dia de Santa Georgette calhava logo após o dia de São Valentim. Os meus pais achavam que nada tinha de romântico sentar-se à mesa de um restaurante rodeados de amores forçados, com serviço pré-encomen-dado. Assim sendo, celebravam todos os anos o dia de Santa Georgette num restaurante vazio com um serviço só para eles. Seja como for, o meu pai achava que uma comemoração romântica só podia ter nome de mulher.

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— Queira, por favor, reservar-nos a melhor mesa em nome de Georgette e Georges. Diga-me uma coisa para eu ficar descansado: já se esgotaram aqueles vossos horríveis bolinhos em forma de coração? — perguntava ao reservar uma mesa num grande restaurante. — Não! Graças a Deus! — exclamava a seguir.

Para eles, antes de mais, o dia de Santa Georgette não era a festa dos amores passageiros.

Depois da história das garagens, o meu pai já não tinha necessidade de sair da cama para nos dar de comer, de forma que começou a escrever livros. Escrevia muito, sem descanso. Ficava sentado no seu grande escritório, à frente da sua resma de papel e escrevia. Escrevia sempre com um sorriso, escrevia sobre aquilo que o fazia rir, enchia o cachimbo, o cinzeiro, o escritório ficava repleto de fumo e o papel coberto de tinta. As únicas coisas que se esvaziavam eram as chávenas de café e as garrafas de bebidas misturadas. Mas a resposta dos editores era sem-pre a mesma: «Está bem escrito, é divertido, mas não tem pés nem cabeça.» Para o consolar de tanta recusa, a minha mãe dizia:

— Com certeza que se saberia se existissem livros com pés e cabeça!

Era algo que sempre nos fazia rir.

Dela, dizia o meu pai que era alguém que tratava as estrelas por tu, o que me parecia estranho, uma vez que

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ela não tratava ninguém por tu, nem sequer a mim. A minha mãe tratava toda a gente por você, desde a Menina Sem Préstimo, essa ave elegante e espantosa que vivia no nosso apartamento, por onde se passeava ondu-lando o seu longo pescoço negro, os seus tufos de penas brancas e os seus olhos exageradamente vermelhos desde o dia em que os meus pais a tinham trazido de uma via-gem já não sei onde, na vida de antigamente. Chamáva-mos-lhe «Menina Sem Préstimo» uma vez que não servia para nada, a não ser para gritar alto e bom som sem razão aparente, fazer grandes pirâmides redondas no soalho ou vir-me acordar durante a noite batendo-me à porta com o seu bico cor de laranja e verde-azeitona. A Menina era como as histórias do meu pai: dormia em pé, com a cabeça escondida sob a asa. Quando era criança, tentei muitas vezes imitá-la, mas era muito duro e complicado. A Menina adorava quando a minha mãe ficava a ler deitada no canapé e lhe acariciava a cabeça horas a fio. A Menina gos-tava de ler como todos os pássaros sábios. Um dia a minha mãe quis levar a Menina Sem Préstimo consigo quando foi à cidade fazer compras; para isso mandou-lhe fazer uma bonita trela de madrepérola, mas a Menina teve medo das pessoas e as pessoas tiveram medo da Menina, que gritava como nunca. Uma velha senhora com um teckel chegou mesmo a dizer-lhe que era desumano e peri-goso passear na rua uma ave pela trela.

— Pêlos, penas... qual a diferença? A Menina nunca mordeu fosse o que fosse e acho-a muito mais elegante do

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que esse seu paté de pêlos! Venha daí, Menina, vamos para casa, esta gente é mesmo grosseira e mal-educada!

Voltou a casa bastante alterada e, sempre que se encontrava nesse estado, ia ter com o meu pai para lhe contar tudo com os mínimos pormenores. E como sem-pre, só depois de ter terminado é que voltava a ser risonha. Era frequente enervar-se, mas nunca durante muito tempo: a voz do meu pai era, para ela, um bom calmante. O resto do tempo maravilhava-se com tudo, achava divertidíssimo o progresso do mundo e acompanhava-o saltitando ale-gremente. Não me tratava nem como adulto nem como criança, mas sim como personagem de um romance. Um romance de que gostava muito, com ternura, e no qual mergulhava a toda a hora. Não queria ouvir falar nem de arrelias nem de tristezas.

— Quando a realidade é banal e triste, invente-me uma bela história, mente tão bem, o menino, que seria uma pena privar-nos das suas histórias.

Eu então contava-lhe o meu dia imaginário e ela punha-se a dar palmadinhas nas mãos, frenética, e a taga-relar:

— Mas que dia, meu filho adorado, mas que dia! Estou muito contente por sua causa, deve ter-se divertido a valer!

Depois cobria-me de beijos. Dava-me bicadinhas, como os pombos, dizia, e eu adorava que ela o fizesse. Todas as manhãs, depois de o meu pai lhe ter atribuído o seu nome quotidiano, entregava-me uma das suas luvas de

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veludo, perfumada de fresco, para que a sua mão pudesse servir-me de guia durante o dia inteiro.

«Certos traços do seu rosto reflectiam nuances do seu com-portamento infantil, belas faces compactas, um par de olhos verdes onde a travessura se espelhava, efervescente como cham-panhe. As travessas nacaradas de várias cores que colocava na cabeça, sem nenhuma coerência especial, para domar a sua cabeleira leonina, conferiam-lhe uma insolência persistente de estudante atrasada. Mas os seus lábios carnudos, de um verme-lho-carmim, que retinham delgados cigarros brancos miracu-losamente suspensos, e as suas longas pestanas, que avaliavam a vida, eram, para quem a observava, a prova concreta de que crescera. A forma ligeiramente extravagante e extremamente elegante de se vestir — ou, pelo menos, de combinar as várias peças de vestuário — era, para quem a examinava com aten-ção, a prova de que tinha vivido, de que tinha a idade que apa-rentava.»

Assim escrevia o meu pai no seu diário secreto que vim a ler mais tarde. Isto podia não ter pés, mas tinha de certeza cabeça, e não era uma cabeça qualquer.

Os meus pais estavam sempre a dançar, em todo o lado. Com os amigos, à noite, os dois sozinhos, de manhã e à tarde. Às vezes dançava também eu com eles. Dança-vam de formas verdadeiramente incríveis, atiravam tudo ao chão por onde quer que passassem, o meu pai deixava a minha mãe suspensa no ar, voltava a apanhá-la depois de uma pirueta, por vezes duas, mesmo três. Baloiçava-a

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sobre as pernas, fazia-a voar à sua volta como um cata--vento e quando a largava completamente sem o fazer de propósito, a minha mãe acabava com o rabo no chão, a saia toda espalhada à sua volta, como uma chávena pou-sada num pires. Sempre que dançavam preparavam cocktails extravagantes, com pára-sóis, azeitonas, colheres e colecções de garrafas. Sobre a cómoda da sala, em frente de uma enorme fotografia a preto-e-branco da minha mãe a mergulhar numa piscina em vestido de noite, havia um velho e belíssimo gira-discos onde tocava sempre o mesmo vinil de Nina Simone e a mesma canção: Mister Bojangles. Era o único disco com direito a passar naquele gira-dis-cos: as outras músicas tinham de contentar-se com um aparelho estereofónico mais moderno e um tanto ou quanto insignificante. Aquela música era mesmo dife-rente, era triste e alegre ao mesmo tempo e, ao ouvi-la, a minha mãe ficava no mesmo estado. A canção durava muito tempo, mas acabava sempre depressa de mais e a minha mãe exigia: «Toca a pôr Bojangles outra vez a tocar!» batendo palmas, excitadíssima.

Era preciso então pegar no braço do gira-discos e vol-tar a pôr a agulha de diamante no início do disco. Só um diamante podia permitir-nos ouvir uma música daquelas.

A fim de receber o maior número de convidados pos-sível, o nosso apartamento era muito grande. No pavi-mento do hall de entrada, grandes lajes negras e brancas formavam um gigantesco jogo de damas. O meu pai tinha