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EDUCAÇÃO DO CAMPO, DECOLONIZAÇÃO, DIÁLOGOS DE SABERES E EDUCAÇÃO POPULAR: OS DESAFIOS TEÓRICO-PRÁTICOS NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES Ângela Massumi Katuta Universidade Federal do Paraná/Setor Litoral Ehrick Eduardo Martins Melzer - Universidade Federal do Paraná/Setor Litoral Maria Antônia de Souza Universidade Tuiuti do Paraná e Universidade Estadual de Ponta Grossa Resumo: O painel tem como objetivo discutir os desafios teórico-práticos e teórico- metodológicos da formação inicial e continuada de educadores do campo e das escolas localizadas no campo, tendo como foco as teorias da decolonização, o diálogo de saberes e os fundamentos da educação popular. A metodologia utilizada na elaboração do trabalho foi a investigação ação que orientou as reflexões oriundas das pesquisas, ações coletivas e práticas pedagógicas em sala de aula em processos de formação inicial e continuada dos educadores em pauta. Assim, por meio das mesmas, organizamos o painel em três partes. Em um primeiro momento, abordamos a formação inicial dos educadores do campo, a partir das experiências e desafios do curso de licenciatura em educação do campo na área de ciências naturais da Universidade Federal do Paraná/Setor litoral (Procampo). Em seguida, abordamos a formação continuada de educadores das escolas localizadas no campo, a partir das experiências e desafios levantados nas ações e pesquisas encetadas pelo Núcleo de Pesquisa em Educação do Campo, Movimentos Sociais e Práticas Pedagógicas (NUPECAMP). Finalizamos o trabalho evidenciando as contribuições teórico-metodológicas e teórico-práticas da educação popular e das teorias da decolonização na formação inicial e continuada de educadores do campo e das escolas localizadas no campo, principalmente no que se refere à desobediência epistemológica, desde a decolonialidade, e ao caráter emancipatório de ambos, que têm no diálogo de saberes a sua centralidade, elemento estratégico para avançar nos desafios colocados na construção da escola do futuro. Conclui-se que, no que se refere à formação em pauta, o diálogo de saberes, bem como os encaminhamentos teórico-práticos e teórico-metodológicos propostos na educação popular e na teoria da decolonização, constituem-se em elementos fundamentais nos processos formativos pois auxiliam a materializar propostas coletivas e coesas em torno dos princípios da educação do campo. Palavras-chave: educação do campo, formação docente, educação popular. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 10824 ISSN 2177-336X

Portal da Universidade Federal de Mato Grosso - …emancipatório de ambos, que têm no diálogo de saberes a sua centralidade, elemento estratégico para avançar nos desafios colocados

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EDUCAÇÃO DO CAMPO, DECOLONIZAÇÃO, DIÁLOGOS DE SABERES E

EDUCAÇÃO POPULAR: OS DESAFIOS TEÓRICO-PRÁTICOS NA

FORMAÇÃO DE EDUCADORES

Ângela Massumi Katuta – Universidade Federal do Paraná/Setor Litoral

Ehrick Eduardo Martins Melzer - Universidade Federal do Paraná/Setor Litoral

Maria Antônia de Souza – Universidade Tuiuti do Paraná e Universidade Estadual de

Ponta Grossa

Resumo:

O painel tem como objetivo discutir os desafios teórico-práticos e teórico-

metodológicos da formação inicial e continuada de educadores do campo e das escolas

localizadas no campo, tendo como foco as teorias da decolonização, o diálogo de

saberes e os fundamentos da educação popular. A metodologia utilizada na elaboração

do trabalho foi a investigação ação que orientou as reflexões oriundas das pesquisas,

ações coletivas e práticas pedagógicas em sala de aula em processos de formação inicial

e continuada dos educadores em pauta. Assim, por meio das mesmas, organizamos o

painel em três partes. Em um primeiro momento, abordamos a formação inicial dos

educadores do campo, a partir das experiências e desafios do curso de licenciatura em

educação do campo na área de ciências naturais da Universidade Federal do

Paraná/Setor litoral (Procampo). Em seguida, abordamos a formação continuada de

educadores das escolas localizadas no campo, a partir das experiências e desafios

levantados nas ações e pesquisas encetadas pelo Núcleo de Pesquisa em Educação do

Campo, Movimentos Sociais e Práticas Pedagógicas (NUPECAMP). Finalizamos o

trabalho evidenciando as contribuições teórico-metodológicas e teórico-práticas da

educação popular e das teorias da decolonização na formação inicial e continuada de

educadores do campo e das escolas localizadas no campo, principalmente no que se

refere à desobediência epistemológica, desde a decolonialidade, e ao caráter

emancipatório de ambos, que têm no diálogo de saberes a sua centralidade, elemento

estratégico para avançar nos desafios colocados na construção da escola do futuro.

Conclui-se que, no que se refere à formação em pauta, o diálogo de saberes, bem como

os encaminhamentos teórico-práticos e teórico-metodológicos propostos na educação

popular e na teoria da decolonização, constituem-se em elementos fundamentais nos

processos formativos pois auxiliam a materializar propostas coletivas e coesas em torno

dos princípios da educação do campo.

Palavras-chave: educação do campo, formação docente, educação popular.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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O DIÁLOGO DE SABERES NA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO

CAMPO DA UFPR LITORAL

Ehrick Eduardo Martins Melzer – Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral

Resumo:

O presente trabalho busca discutir sobre o estabelecimento de um diálogo de saberes no

curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Paraná,

Setor Litoral. Como instrumento de análise buscou-se verificar os documentos que

constituem o curso e o Setor Litoral (Projeto Político Pedagógico e Projeto Pedagógico

do Curso), os territórios que o curso atende e as características docentes (como

formação e possibilidade de estudos conjuntos). Dos relatos apresentados compreende-

se que há potencialidades e ações docentes que rumam para o estabelecimento do

diálogo de saberes. Uma dessas ações potencializadoras está na adoção da Agroecologia

como um dos eixos transversais de atuação do curso, junto com a proposta de

itinerância dos educadores que os colocam em contato direto com os territórios dos

discentes que formam o curso. A partir das análises de algumas práticas desenvolvidas

no curso de Licenciatura em Educação do Campo percebe-se um grupo de iniciativas

nas turmas e territórios de atuação do curso que podem potencializar o desenvolvimento

de um diálogo de saberes dentro de uma proposta de educação popular como defendida

por Paulo Freire, envolvendo a dialogia e o respeito pelo ser humano, dentro de

processos educativos que buscam a emancipação e a libertação dos povos do campo

atendidos pelo curso. O desafio está em se fazer conhecer as potencialidades de cada

docente e discente, no estabelecimento de uma rotina de estudo coletivo sobre os

documentos do curso, educação popular e outras vertentes teóricas que apoiam a

Educação do Campo para uma proposta de diálogo de saberes.

Palavras-chave: Educação do campo; Diálogo de saberes; Formação inicial.

1. Introdução

No Brasil, há pelo menos 19 anos, grupos organizados integraram o Movimento

Nacional por uma Educação do Campo. Este movimento encabeçado pelo Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) definiu uma proposta educacional

construída com as populações do campo, denominado, inicialmente, por Educação

Básica do Campo que, após vários debates, passou a ser nominado por Educação do

Campoi.

A partir dessa definição, foram organizados movimentos de luta por políticas

públicas dos mais variados espectros. Esse movimento teve uma significativa vitória

com o estabelecimento do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

(PRONERA) no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC). No governo de Luiz

Inácio Lula da Silva houve significativos avanços como o estabelecimento de

documentos oficiais (resoluções e legislações) para a Educação Campo, tornando-a uma

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modalidade educacional reconhecida pelo Ministério da Educação. No governo Dilma

Roussef houve o estabelecimento de políticas educacionais que conformaram o

Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), dotado de 4 eixos que

perpassam questões como gestão, compra de material didático através do Fundo

Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); instalação e ampliação de

Licenciaturas em Educação do Campo; formação de professores, além de investimentos

estruturais tais como: construção de escolas, aquisição de computadores, instalação de

rede de esgoto, energia elétrica e rede de internet.

O seu eixo 2 (formação inicial e continuada de professores) foi materializado

com o edital PROCAMPO que visou a instalação e manutenção de cursos de

Licenciatura em Educação do Campo em Instituições Públicas de Ensino Superior (IES)

em todo o território nacional.

A partir desse edital são constituídas, de acordo com Molina (2015), 45

Licenciaturas em Educação do Campo em todo o território nacional. No estado do

Paraná houve a instalação de três licenciaturas localizadas nos municípios de

Laranjeiras do Sul, Dois Vizinhos e Matinhos, projetos esses viabilizados a partir de três

instituições, Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Tecnológica

Federal do Paraná (UTFPR) e Universidade Federal do Paraná (UFPR), cada uma com

um projeto pedagógico diferenciado para o atendimento dos povos do campo.

A partir desse edital foi constituída uma proposta de licenciatura dentro de uma

estrutura pedagógica diferenciada, em alternância e itinerância, inovando na proposição

do deslocamento de seus educadores nos diversos territórios de atuação do curso e

eliminando a necessidade de deslocamento para os educandos e, assim, diminuindo a

probabilidade de desistências por questões relacionadas ao estilo de vida, trabalho e

condições materiais.

Assim, este artigo tem como objetivo principal responder a seguinte questão:

“como o diálogo de saberes se desenvolve na Licenciatura em Educação do Campo da

UFPR Litoral?”.

Para responder a esta pergunta desenvolvo uma análise que engendra pelos

seguintes pontos: 1) caracterização do diálogo de saberes no PPC do curso; 2) relatos

dos territórios de atuação do referido curso; 3) iniciativas dos docentes no

estabelecimento do diálogo entre os saberes e 4) desafio dos docentes do curso no

desenvolvimento de uma proposta de educação popular que articule o diálogo de

saberes.

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2. Caracterização do projeto político do curso (ppc) e o diálogo de saberes

O projeto da UFPR no litoral paranaense nasceu em 2005 através de uma

articulação entre três entes federados (União, Estado do Paraná e Município de

Matinhos) para a organização de uma estrutura educativa universitária no Balneário

Caiobá no município de Matinhos. Naquela ocasião, o município cedeu funcionários

para manutenção da estrutura; o estado do Paraná forneceu a estrutura física de uma

colônia de férias e a União proveu com recursos financeiros e humanos para o

desenvolvimento das atividades educacionais no litoral. Em 2008 o projeto UFPR

Litoral tornou-se Setor com um projeto político pedagógico (PPP) próprio, baseado no

resgate e desenvolvimento cultural, social e econômico das populações do litoral

paranaense e Vale do Ribeira.

De acordo com o PPP do Setor Litoral (UFPR, 2008), a proposta educacional se

destaca pela não utilização da estrutura tradicional-pedagógica da UFPR. Esta nova

estrutura buscou inspiração nos movimentos da pedagogia de projetos,

institucionalizando os seguintes espaços pedagógicos:

- PROJETOS DE APRENDIZAGEM (PA)

- FUNDAMENTOS TEÓRICOS PRÁTICOS (FTP)

- INTERAÇÕES CULTURAIS E HUMANISTICAS (ICH)

Os PAs correspondem a projetos desenvolvidos por estudantes do Setor com a

mediação de educadores da instituição. Vale ressaltar que o PA tem um caráter diferente

da extensão e da pesquisa, pois é o discente que propõe objetos de estudo e, posterior

ação com base nas problemáticas de sua realidade concreta. Com o PA, o educando

busca compreender mais sobre uma questão e/ou propor uma forma de ação na sua

realidade de forma a desenvolver sua comunidade.

Os FTPs são um reflexo das vivencias e dos PAs do educandos, correspondem a

carga teórica de cada curso da UFPR Litoral e estão de acordo com os projetos

desenvolvidos pelos docentes e discentes.

As ICHs são espaços horizontais que possibilitam a interação de docentes em

diversos cursos e etapas de formação. Caracteriza-se por um espaço aberto de dialogo e

democrático onde discente e docente constroem coletivamente saberes, baseado no

diálogo e na pesquisa em ação.

Dessa forma, esses três espaços pedagógico encontram-se integrados no PPP em

três fases de formação denominadas: Conhecer e Compreender (CC), Compreender e

Propor (CP) e Propor e Agir (PA). Assim, o educando busca compreender sua realidade

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para desenvolver propostas de ação articuladas com poder público e comunidade para a

transformação de sua realidade.

A partir dessa práxis proporcionada pelo PPP do Setor Litoral, o Curso de

Licenciatura em Educação do Campo busca desenvolver estes eixos pedagógicos dentro

da proposta de Alternância de tempos educativos (Tempo Universidade e Tempo

Comunidade), além da itinerância que se configura no desenvolvimento da estrutura

universitária fora dos muros da universidade, quebrando a lógica do encarceramento

universitário.

Outra fonte pedagógica do curso reside na pedagogia da alternância, como

sugere o trecho:

O Curso de Licenciatura em Educação do Campo por meio da

metodologia da pedagogia da alternância irá assegurar a

organização dos tempos e espaços formativos que se adequem à

realidade do campo, assegurando as estratégias específicas de

atendimento a formação e a flexibilização da organização do

calendário escolar à vida e ao trabalho do campo. (UFPR, 2012, p.

11. Grifos nossos).

A partir desse extrato podemos fazer a leitura de que o curso busca relacionar a

proposta do Setor de metodologia de projetos com a pedagogia da alternânciaii. Porém,

essa articulação se dá em torno dos espaços educativos do Setor Litoral (FTP, ICH e

PA) com os regimes de tempo na Pedagogia da Alternância (Tempo Escola, Tempo

Comunidade), gerando espaços educativos dos FTP, ICH e PA nos espaços

universitários (Tempo Universidade) e a propagação desses espaços na comunidade

(Tempo Comunidade).

A partir dessa compreensão o marco conceitual do curso baseia-se nos seguintes

princípios da educação popular, permeada pelos seguintes fundamentos:

[...] a) saber não é acumular conhecimentos transmitidos, mas

interagir ativamente na construção do conhecimento, aprofundando

a relação entre conhecimento científico e o conhecimento

acumulado na vida dos Sujeitos envolvidos; b) todo aprendizado

parte da prática social concreta, permitindo uma leitura crítica

sobre a mesma e retornando a ela munido de outros níveis de

compreensão, fruto do acesso ao conhecimento científico; c)

aprender-ensinar, passa a ser uma atividade essencialmente

dialógica para a qual educandos e educadores participam de um

mesmo processo interativo, corresponsável, partilhando

conhecimentos, vivências de práticas sociais em diálogo com o

conhecimento socialmente acumulado e que demanda

necessariamente planejamento dialógico e ação investigativa que

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possibilite estabelecer o vínculo entre a prática social e as áreas do

conhecimento (UFPR, 2012, p. 13).

Dessa forma, pode-se depreender que o projeto de educação popular que o curso

se propõe a desenvolver está intimamente ligado com fundamentos do diálogo de

saberes pressupondo uma relação de cooperação entre os saberes das comunidades,

saberes da experiênciaiii

individuais do educando e educador e saberes acadêmico-

científicos, gerando uma relação descolonizadora, ou seja, uma relação de construção de

uma nova compreensão de conhecimento, gerado nas relações dialógicas de cooperação

entre educador (que media) e educando (mediado). Além desses referenciais vale

lembrar que o curso baseia na proposta de educação libertária, dialógica e emancipadora

do ser humano baseada na cosmovisão de Paulo Freire:

O curso baseia-se na proposta de Paulo Freire de resgate do

humano como sujeito de si e de sua própria educação. O pensador

argumenta em defesa da educação, como dinamizadora do

processo de mudança, firmando as bases da aprendizagem:

capacidade de autorreflexão como desenvolvimento da consciência

crítica, que reorganiza as experiências vividas, transformando a

realidade. A aprendizagem modifica o homem que, ao mesmo

tempo em que se renova, mantém a própria identidade (UFPR,

2012, p. 6).

Nesse sentido, compreende-se que uma das características principais do curso é

a dialogia e o respeito ao ser humano buscando na educação uma forma dinamizadora

para transformação de sua realidade (FREIRE, 1987).

Outro ponto importante a se destacar é a compreensão do conceito de diálogo de

saberes. Este conceito é trabalhado em uma linha de estudos identificados como

epistemologias do sul que buscam trazer a discussão de uma relação horizontal entre

saberes do norte global (países colonizadores) com os saberes oriundos do sul global

(países colonizados), subvertendo a relação de dominação que impetrada através dos

processos de colonização. Assim, linhas de estudos como a decolonização buscam nesse

reconhecimento do saberes das comunidades, uma forma de se contrapor a lógica

colonizadora que compreende que só há uma ciência que domina e inferioriza outras

bases de conhecimentos, como destacado no trecho:

Contrastando com o esgotamento intelectual e político do Norte

global, o Sul global, na sua imensa diversidade, assume-se hoje

como um vasto campo de inovação econômica, social, cultural e

política. Valorizar e amplificar os saberes que resistiram com êxito

à intervenção capitalista-colonial é o objetivo das epistemologias

do Sul, investigando as condições de um diálogo horizontal entre

conhecimentos (MENESES, 2014, p. 93).

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A partir dessa abordagem há a intenção de construir um projeto de emancipação

e de educação popular, que busca trazer a importância dos saberes das comunidades e

estabelecer um diálogo com os saberes científicos, majoritariamente de base

eurocêntrica, dentro de um projeto de emancipação e empoderamento pelas práticas

educativas libertadoras (DUMRAUF et all, 2009; DUMRAUF E MENEGAZ, 2013).

3. Os territórios de atuação do curso de licenciatura em educação do campo da

UFPR litoral

Atualmente, o curso encontra-se consolidado com a atuação de 15 educadores

em 4 turmas com realidades completamente distintas. Cada turma tem um grau de

diversidade e particularidade que permeia toda a sua formação. Essas turmas localizam-

se e distribuem-se da seguinte forma:

TABELA 1: DISTRIBUIÇÃO DOS EDUCANDOS

TURMA LOCAL NÚMERO DE EDUCANDOS

CA CERRO AZUL 35

AD ADRIANÓPOLIS 80

LT LITORAL

(MORRETES,

ANTONINA,

PARANAGUÁ,

MATINHOS, ILHAS,

GUARATUBA E

GUARAQUEÇABA).

80

LP Lapa (Escola Latino

Americana de

Agroecologia)

30

TOTAL 225

Fonte: dados organizados pelo autor com base no final de 2015.

De acordo com a tabela 1, nota-se que o curso atende ao todo 9 municípios no

estado, distribuídos pelo Litoral (6 no total), um nos campos gerais (Lapa) e dois no

Vale do Ribeira (Adrianópolis e Cerro Azul). A turma de Cerro Azul atende

trabalhadores da cidade, do campo e da educação do município. A turma de

Adrianópolis, é formada majoritariamente por quilombolas residentes na cidade de

Adrianópolis, Comunidades Caboclas de São Paulo e pelos residentes dos quilombos

que circundam o município. A turma do Litoral é formada por educandos residentes em

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6 dos 7 municípios do litoral paranaense, contendo a maior diversidade de saberes e

trajetórias. E a turma da Lapa foi organizada e ofertada em uma parceria da

Universidade Federal do Paraná (UFPR) com a Escola Latino Americana de

Agroecologia (ELAA), atendendo os movimentos sociais do campo, funcionando no

Assentamento Contestado, localizado no município da Lapa.

Nessa breve análise, pode-se perceber a grande variedade de sujeitos do campo e

da cidade atendidos, além da variedade de abordagens que são geradas nas mais

diversas realidades. Lembrando que esta variedade é rica para um dialogo de saberes,

porém, também pode-se tornar uma barreira, caso o grupo não trabalhe nesta

perspectiva de retomar os saberes tradicionais das comunidades envolvidas, fazendo

uma relação entre saberes tradicionais e saberes acadêmico-científicos.

4. Iniciativas docentes e sua relação com o diálogo de saberes

Atualmente o curso de Licenciatura em Educação do Campo conta com 15

professores contratados em concurso público específico, formando uma equipe com 5

membros das ciências humanas, 6 membros das ciências da natureza, 4 membros das

ciências agrárias. Um dos pontos positivos desse extenso grupo é a diversidade

acadêmica, de atuação em pesquisa e, por conseguinte, de conhecimentos,

proporcionando uma gama de possibilidades de formação docente para as Ciências da

Natureza. O ponto negativo é que em ciências da natureza, por exemplo, todos os

educadores vieram de outras searas da pesquisa educacional, tendo pouca relação com a

pesquisa na Educação do Campo. A partir disso, o conjunto de educadores em diálogos

na Câmara do curso entenderam a necessidade de alguns processos de atuação e de

formação e, individualmente, cada educador do curso decidiu se faria sua migração na

pesquisa para a Educação do Campo. Conformando, dessa forma, estratégias de ações

coletivas e individuais dentro do curso.

Inicialmente, como estratégia coletiva foi definido que todos os docentes

participariam de reuniões pedagógicas com datas pré-definidas para estudo de

determinadas temáticas de interesse coletivo, trabalho este orientado por uma Comissão

de Formação Docente (CFD). A outra estratégia coletiva foi a adoção da Agroecologia

com a lógica do Agroecossistema como eixo transversal de desenvolvimento do

trabalho docente nas turmas do curso.

Do ponto de vista do diálogo de saberes, a agroecologia contribui para este

debate já que um de seus princípios é o intercâmbio entre conhecimento científico,

técnico e tradicional, como destacado:

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10831ISSN 2177-336X

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A evolução do conhecimento agroecológico exige que se

estabeleçam canais de diálogo entre os conhecimentos dos

agricultores, dos técnicos e dos cientistas, por meio de processos

participativos (EMBRAPA, 2012, p. 7).

Dessa forma, utilizando a abordagem agroecológica aliada ao ensino de ciências,

gera-se a premissa de que é possível ouvir a comunidade e reconhecer seu saber como

válido, numa postura de respeito e reconhecimento àquele saber sistematizado e

transmitido de geração em geração. Mas, ao mesmo tempo, entende-se que este saber

deve dialogar com o saber construído pelas Ciências, de base europeia para, assim, se

complementarem.

Como estratégias individuais, cada educador definiu seu escopo de estudo e

como se daria sua migração para a temática da Educação do Campo. Atualmente, um

grupo de educadores está trabalhando por meio da relação entre a Agroecologia e as

Ciências da Natureza na Educação do Campo, propostas freirianas para a Educação do

Campo, os Complexos de Estudos e a decolonização como linha de pesquisa mestra

para o estabelecimento de um diálogo entre saberes. Tudo isto em função da relação do

ensino, com a pesquisa e a extensão universitária na prática docente dentro do curso e

em outros espaços do meio acadêmico tais como: grupos de pesquisa, grupos de estudo

e parcerias para a escrita de artigos para eventos e periódicos.

Entre as turmas, algumas iniciativas já foram identificadas como possibilidade

de estabelecimento de diálogo entre saberes. Na turma da Lapa, por exemplo, foi

desenvolvida, dentro dos princípios agroecológicos, uma caminhada descritiva. Trata-se

de uma abordagem utilizada pela agroecologia como forma de reconhecimento dos

saberes tradicionais que a comunidade possui, através do reconhecimento do

agroecossistema e estabelecimento de relações entre as bases de conhecimentos. Assim,

ensina-se química, física e biologia por meio do conhecimento local, o que mostra como

os saberes podem se inter-relacionar. Outra experiência que está sendo desenvolvida na

turma do litoral é o trabalho com o reconhecimento do território, através da abordagem

dos temas científicos por meio da cartografia social, ou seja, pelo reconhecimento do

território, busca-se relacionar o conhecimento tradicional com o acadêmico-científico.

Todas as atividades pedagógicas desses educadores foram desenvolvidas dentro

dos princípios da educação popular, respeitando as vozes dos sujeitos envolvidos no ato

educativo e construindo uma relação horizontal entre educadores e educandos. Dentro

da dialogia e buscando respeitar os saberes, costumes e cultura das comunidades onde

há atuação do curso (FREIRE, 1987).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Além dessas ações coletivas, há educadores que realizam suas pesquisas nas

comunidades, com a abordagem da Etnopedologia, Etnobotânica e da Agroecologia

como forma de desenvolver a relação entre esses saberes.

5. Desafios para o desenvolvimento de um diálogo de saberes e uma proposta de

educação popular

Nas seções anteriores foram trazidas algumas discussões em relação a diferentes

dimensões que permeiam o curso de licenciatura em educação do campo da UFPR

Litoral. Nesta seção, fazemos um diálogo com essas diferentes perspectivas, mostrando

algumas potencialidades e desafios para o estabelecimento de um efetivo diálogo de

saberes no curso.

Como potencialidades observadas no curso encontra-se a diversidade de

experiências, sujeitos e territórios. Essa diversidade é um potencial para o

estabelecimento de um diálogo de saberes. Há ainda a multiplicidade de formações e

experiências por parte dos docentes do curso. Tudo isto é um ponto positivo para uma

efetiva formação como educadores do campo em ciências da natureza e para a

possibilidade de garantia de uma formação mais ampla e alicerçada na realidade.

Além dessas potencialidades no tocante aos recursos humanos, observa-se que o

projeto do curso de licenciatura em educação do campo tem um desenho diferenciado

dentro da proposta da metodologia de projetos e os espaços pedagógicos das ICH,

FTP‟s e PA‟s, possibilitando autonomia para o educando propor e dialogar com os

saberes que possuem e os acadêmicos. Além disso, a alternância e a itinerância dos

espaços e tempos pedagógicos é outro elemento potencializador para o reconhecimento

da realidade do educando e o dialogo de saberes, possibilitando uma direta relação e

comunicação com os saberes tradicionais que a comunidade detém.

O desafio para o estabelecimento de um efetivo diálogo entre saberes parte da

experiência individual de cada docente e de sua formação, partindo do pressuposto que

as caminhadas teóricas dos docentes são diferenciadas, o que confere uma diversidade

de orientações teóricas e, por enquanto, certa dificuldade em produzir encaminhamentos

conjuntos dentro de uma unidade teórica. Esse desafio está sendo superado com a

adoção da agroecologia como eixo de atuação transversal do curso, porém, ainda há

questões que estão se resolvendo.

Quanto a formação docente que ainda não se efetivou no grupo, compreende-se

que ela possibilita o conhecimento do que cada indivíduo (docente) do curso pode

contribuir teoricamente e que, ao mesmo tempo, gera possibilidades de unidade de

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pensamento com os estudos coletivos a partir de temas comuns ao grupo. Atualmente,

foram feitos somente três momentos de estudos em que se discutiu metodologia de

projetos (no sentido amplo), agroecologia (bases conceituais e epistemológicas) e um

encontro inicial de discussão do PPC.

Outro desafio encontrado é a infinidade de interpretações do PPP do Setor e do

PPC do curso, possibilitada pela flexibilidade teórica que os dois documentos em si

proporcionam, de forma a gerar debates sobre a forma de se conduzir os trabalhos do

curso.

Depreende-se que as formações, as compreensões do projeto e a falta de

momento de estudos coletivos constituem-se em desafios para o estabelecimento de um

diálogo de saberes, apesar das turmas e docentes apresentarem uma diversidade de

saberes, o que é profícuo para o curso.

6. Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi realizar uma primeira discussão sobre as

potencialidades do diálogo de saberes dentro do Curso de Licenciatura em Educação do

Campo da UFPR Litoral. Partindo-se da questão proposta na introdução, entende-se que

ainda é muito cedo para se afirmar que o curso é capaz ou não de produzir um fecundo

diálogo entre saberes, com as turmas que atende, modificando a forma de pensar e

descolonizar o imaginário do futuro educador do campo.

O que se observa por meio de um exame de documentos, recursos humanos

disponíveis no curso e turmas é que há elementos que auxiliam na materialização do

estabelecimento de um diálogo de saberes. É possível encontrar ações docentes nas

turmas que buscam, por meio do eixo da agroecologia, potencializar estratégias de

relacionamento dos saberes tradicionais das comunidades em que o curso está inserido

com os saberes acadêmico-científicos da formação de educador em Ciências da

Natureza. Porém, existem desafios. Um desses encontra-se do ponto de vista do diálogo

teórico entre os educadores e reconhecimento das trajetórias formativas. Outro desafio

está na compreensão do PPP do setor litoral e PPC do curso, como foi mostrado em

seções anteriores. O PPC do curso tem a diretriz da educação popular e, logo, coloca

como objetivo o estabelecimento de um dialogo de saberes, no reconhecimento dos

saberes locais e o estabelecimento de uma relação horizontal com saberes acadêmico-

científicos.

Logo não se pode afirmar que o curso faz ou não faz um diálogo de saberes. O

que se pode afirmar é que o curso tem as ferramentas (curriculares, humanas e teóricas)

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para estabelecer tal diálogo. No entanto, só será possível saber se as estratégias dos

educadores conduziram a este encaminhamento metodológico por meio da analise de

como os educadores formados pelo curso compreendem a ciência e a sua relação com os

saberes tradicionais evidenciando, por meio das suas representações sociais, se há uma

reprodução de um padrão de educador de Ciências da Natureza colonizado ou se a

formação desenvolvida pelo curso efetiva uma mudança na mentalidade,

descolonizando o imaginário do educador do campo.

7. Referências

CALDART, R. S. A escola do campo em movimento. In: ARROYO, M.G.;

CALDART, R. S; MOLINA, M. C. (orgs.). Por uma educação do campo. Petrópolis:

Vozes, 2004.

DUMRAUF, A. ET ALL. M. Educación popular y salud: conformando nuevos espacios

de aprendizaje y producción de conocimientos en la universidad. Revista Ibero

Americana de Educación., nº 49, p. 4-10, 2009.

DUMRAUF, A., MENEGAZ, A. La construcción de un currículo intercultural a partir

del diálogo de saberes: descripción y análisis de una experiencia de formación docente

continua. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. vol. 12, nº 1, p. 85-109,

2013.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1987.

LARROSA, J. Tremores: escritos sobre a experiência. Autêntica: Belo Horizonte,

2014.

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metodológicas para ampliar diálogos no Sul global. Em Aberto. v. 27, n. 91, p. 90-110,

jan./jun. 2014

MUNARIM, A. Educação do campo no cenário das políticas públicas na primeira

década do século 21. Em Aberto. v. 24, n. 85, abr. 2011. p. 51-63.

MOLINA, M. C. Expansão das licenciaturas em educação do campo: desafios e

potencialidades. Educar em Revista. n. 55, 2015. p. 145-166.

SANTOS, A. da S. dos, CURADO, F. F. Perspectivas para a pesquisa

Agroecológica: Diálogo de Saberes. EMBRAPA. 2012.

TEIXEIRA, E. S., BERNATT, M. de L., TRINDADE, G. A. Estudos sobre Pedagogia

da Alternância no Brasil: revisão de literatura e perspectivas para a pesquisa. Educação

e Pesquisa. v. 34, n. 2, p. 227-242, 2008.

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10835ISSN 2177-336X

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UFPR Litoral. Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral. Projeto Político

Pedagógico, 2008. Disponível em: <http://www.litoral.ufpr.br/portal/wp-

content/uploads/2015/02/PPP-UFPR-LITORAL_Set-2008_Alteracao_Dez-2008.pdf>.

Acesso em: 01 Mar. 2016.

UFPR Litoral. Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral. Projeto Pedagógico do

Curso de Licenciatura em Educação do Campo, 2012. Disponível em: <

http://www.litoral.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2015/04/Educação-do-

Campo.pdf>. Acesso em: 01 Mar. 2016.

________________________

i De acordo com Munarim (2011) e Caldart (2004), historicamente, o Movimento por uma educação do

campo entendeu que a educação do campo não se dá somente nos espaços educativos formais, mas

também em outros espaços da vida camponesa. Assim, buscou-se a mudança de nomenclatura com o

intuito de abranger a totalidade dos processos de formação e vivencia do camponês.

ii Vale ressaltar que a Pedagogia da Alternância, de acordo com Teixeira et all (2008), é uma proposta

criada na França, por camponeses, e que chegou ao Brasil pela Casa Familiares Rurais (CFR). Esta

proposta teórica não se reduz somente aos espaços e tempos pedagógicos, tendo outras dimensões teóricas

que não serão abordadas neste trabalho.

iii

De acordo com Larrosa (2014) o saber da experiência tem uma característica mais pessoal, sendo

impossível a sua reprodução. O autor defende que o saber da experiência é único e faz parte da caminhada

formativa de cada indivíduo.

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ESCOLAS PÚBLICAS, FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES E

PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO

Maria Antônia de Souza – Universidade Tuiuti do Paraná e Universidade Estadual de

Ponta Grossa.

Resumo:

Neste texto serão pontuados os desafios que marcam a construção da Educação do

Campo, com o olhar voltado para a escola pública, sua a identidade político-pedagógica

e formação continuada, por considerar a estreita relação entre elas no fazer educativo

emancipatório. Os procedimentos metodológicos que permitiram tecer as reflexões

presentes neste artigo foram, predominantemente, análise documental e observação.

Análise de documentos produzidos pela sociedade civil, em especial as cartas,

declarações e compromissos firmados durante as Conferências de Educação do Campo.

Também, para tratar da identidade da escola, foram analisados os projetos político-

pedagógicos das escolas. A observação é um dos procedimentos utilizados há mais de

10 anos nas pesquisas em Educação do Campo. São observações sistemáticas realizadas

durante as reuniões e seminários com os professores das escolas públicas de municípios

rurais da Região Metropolitana de Curitiba. Nessas observações, a atenção volta-se para

3 aspectos centrais: 1) conhecimento existente sobre Educação do Campo nos

municípios. 2) políticas educacionais direcionadas às escolas e à formação continuada

de professores. 3) identidade político-pedagógica da escola, analisada por meio dos

comentários que são realizados sobre o projeto político-pedagógico da escola e sobre

aspectos da prática pedagógica, tais como materiais didáticos, temas de estudo, relação

entre os conteúdos e cultura, trabalho nas comunidades de agricultura familiar

camponesa. Este texto está organizado em três partes: A primeira trata da escola pública

como lugar de reprodução e de produção de ideias, relações e conhecimento. A segunda

parte traz reflexões sobre sujeitos, diversidade e especificidades da Educação do

Campo. A terceira parte traz reflexões sobre a formação continuada vivida pelos

professores, com indicação dos principais desafios a serem superados para que a

formação siga os princípios da Educação do Campo.

Palavras-chave: Educação do Campo; Escola Pública; Formação Continuada.

Introdução

A preocupação com as escolas públicas, do ponto de vista das políticas

educacionais e das práticas pedagógicas, tem estado na pauta de movimentos sociais,

Fóruns, Associações de Pesquisas, entre outros. Os anos de 1980 foram profícuos no

debate sobre a escola pública, em particular com as ações do Fórum em Defesa da

Escola Pública. No caso do campo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST), nos anos de 1980 criou o Setor de Educação e iniciou estudos sobre a realidade

das escolas públicas dos assentamentos rurais. A partir de trabalhos coletivos, na década

de 1990, elaboraram diversos materiais pedagógicos com o intuito de provocar a

reflexão sobre a escola pública, lançar manifestos, demandas e propostas para a

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construção de uma escola que valorizasse a cultura dos povos do campo, as lutas sociais

e pela reforma agrária. A organização da escola pública do ponto de vista da gestão e da

prática pedagógica, assim como a formação de professores, sempre esteve na pauta de

lutas do MST. Ao final da década de 1990, a partir da Conferência Nacional Por uma

Educação do Campo, os movimentos sociais do campo produziram uma carta de

compromissos para trabalhar a Educação Básica do Campo e a construção de um

projeto popular para o Brasil. Nessa carta explicitaram muitos dos princípios da

Educação do Campo e da identidade da escola pública do campo, que serão destacados

ao longo deste artigo, que tem por objetivo discutir a escola pública, sua identidade

político-pedagógica e os desafios da formação continuada segundo os princípios da

Educação do Campo. Ao fazer isso serão enumerados pontos para reflexão sobre a

formação continuada de professores que têm sido identificados em nossas pesquisas em

instituições escolares de 24 municípios no estado do Paraná.

A pesquisa tem como ponto de partida a origem da Educação do Campo no

Brasil, sua materialidade nos movimentos sociais e seu vínculo com a classe

trabalhadora e com a construção de um projeto popular para o Brasil. Esse ponto de

partida é confrontado com a realidade das escolas públicas que estão no campo que, em

sua maioria, possuem equipes pedagógicas e professores que pouco conhecem do

movimento nacional da Educação do Campo, que desconhecem a diversidade

sociocultural que marca o campo nos municípios onde trabalham e que realizam práticas

pedagógicas aderentes à concepção da educação rural. Concepção esta fundada no

paradigma do capitalismo agrário, no contexto do qual são produzidos materiais

pedagógicos por empresas e grupos econômicos que difundem a ideologia do campo

como lugar do agronegócio, da produção monocultora e que visualizam e afirmam que o

desenvolvimento econômico está no espaço urbano e no crescimento da produção

econômica via aprimoramento do uso da tecnologia e dos recursos naturais.

Assim, o ponto de partida é a prática social e a contradição que marca o

conjunto de relações que se passa na escola pública. Instituição localizada no conjunto

maior de relações culturais, pedagógicas e políticas da sociedade, portanto, pensada a

partir dos seus determinantes internos e externos, bem como da possibilidade de que a

escola possa ser lugar de determinação de relações, novos conteúdos, enfrentamentos

político-pedagógicos, enfim, lugar “voltado para processos de transformação social”.

Embora existam profissionais que não tiveram formação em Educação do Campo,

verifica-se significativa disposição dos professores em repensar a prática pedagógica e

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questionar projetos e materiais pedagógicos que chegam via empresas diretamente às

secretarias municipais ou via convênios entre empresas e o poder executivo municipal.

Neste texto serão pontuados os desafios que marcam a construção da Educação

do Campo, com o olhar voltado para a escola pública, a prática pedagógica e formação

continuada, por considerar a estreita relação entre elas no fazer educativo

emancipatório. Os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa foram análise

de documentos produzidos pela sociedade civil, em especial as cartas, declarações e

compromissos firmados durante as conferências de Educação do Campo e, para tratar da

identidade das escolas, análise de seus projetos político-pedagógico. Ainda, a

observação sistemática das reuniões e seminários com os professores das escolas

públicas de municípios rurais da Região Metropolitana de Curitiba é técnica utilizada na

investigação. Nas observações a atenção volta-se para 3 aspectos: 1) conhecimento

existente sobre Educação do Campo nos municípios; 2) políticas educacionais

direcionadas às escolas e à formação continuada de professores; 3) identidade político-

pedagógica da escola, analisada por meio dos comentários que são realizados sobre o

projeto político-pedagógico da instituição e sobre aspectos da prática pedagógica, tais

como materiais didáticos, temas de estudo, relação entre os conteúdos e cultura,

trabalho nas comunidades de agricultura familiar camponesa.

Sobre a escola pública e identidade político-pedagógica

A escola pública, como historicamente constituída no Brasil, é a que

predominantemente atende aos camponeses e filhos de camponeses, bem como os

trabalhadores da agricultura familiar, também moradores do campo. Trata-se de

instituição pública, vinculada administrativamente aos Estados e/ou Municípios, em

meio a algumas instituições federais. Em primeiro lugar, quando analisamos a escola

pública, há clareza de que ela pertence à gestão municipal ou à estadual, sob as

determinações da LDB 9394/96 e das diretrizes e normativas nacionais e estaduais. A

escola é pública, em que pese as pesquisas evidenciarem que, em muitas localidades, a

coisa pública tem sido tratada como se fosse coisa privada. São equipes pedagógicas

vinculadas aos interesses do poder executivo local que, predominantemente, não

reconhecem e não dialogam com as comunidades e povos do campo, com os seus

saberes de experiência de trabalho, de cultura e de política. A relação clientelista é

muito forte nos munícipios que possuem pequenos núcleos urbanos e amplas extensões

territoriais, com grandes propriedades rurais.

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A escola pública que está no campo e que tem vínculo, que reconhece os povos

do campo, que exercita a gestão democrática de fato, que prima pela participação, pelo

trabalho coletivo e pela formação escolar, humana, em perspectiva transformadora,

possui aderência aos princípios da Educação do Campo. A escola pública que está no

campo e que nega as relações desiguais que se passam no território da agricultura

familiar e camponesa não possui identidade político-pedagógica com a Educação do

Campo. Reconhecer essa instituição escolar como descolada dos princípios da Educação

do Campo, porém, que recebe os alunos do campo, é fundamental para realizar

provocações, problematizações, estudos e projetos que possam aproximar essa escola

dos princípios construídos nos e pelos movimentos sociais dos povos do campo.

A escola do campo, para ter identidade do campo, necessita primar pelos

compromissos expressos durante a I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do

Campo. Alguns desses compromissos são: 1) “A escola, ao assumir a caminhada do

povo do campo, ajuda a interpretar os processos educativos que acontecem fora dela e

contribui para a inserção de educadoras e educadores e educandas e educandos na

transformação da sociedade”. 2) “A escola é um dos espaços para antecipar, pela

vivência e pela correção fraterna, as relações humanas que cultivem a cooperação, a

solidariedade, o sentido de justiça, o zelo pela natureza...”. 3) “A escola é um espaço

privilegiado para manter viva a memória dos povos, valorizando saberes, e promovendo

a expressão cultural onde ela está inserida”. 4) “A escola é o espaço onde a comunidade

deve exigir, lutar, gerir e fiscalizar as políticas educacionais”. 5. “ Escola que forma as

educadoras/educadores deve assumir a identidade do campo e ajudar a construir a

referência de uma nova pedagogia”. Por esses compromissos que explicitam aspectos da

identidade da escola pública do campo fica visível a participação da comunidade e o

reconhecimento dos povos do campo com os seus saberes de experiência, como

princípios basilares da Educação do Campo.

A realização desses compromissos exige o enfrentamento de práticas e políticas

educacionais enraizadas na sociedade brasileira. Nas reuniões e seminários com os

professores de escolas públicas municipais, bem como com secretários municipais,

constata-se as seguintes afirmações: 1) “As famílias não querem a escola no campo, elas

querem que as crianças estudem na escola da cidade, pois a consideram melhor”. Com

essa informação, gestores justificam o fechamento de escolas isoladas. Mas, a

problematização a ser feita é: Por que as famílias consideram a escola da cidade

melhor? O que se passa na escola que está próxima à casa dos alunos, nesses casos? O

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que se observa é que há uma prática pedagógica frágil, com professores, às vezes, sem

formação em Educação Superior, muitas faltas dos professores, materiais didáticos

defasados etc. Ou seja, as famílias indicam que querem uma escola melhor. Se essa

escola estiver no campo, perto das comunidades, com qualidade de excelência, as

famílias terão outra avaliação da escola. 2) “Não vejo como não fechar a escola rural,

pois as famílias estão indo embora do campo. O campo está ficando um „verde só‟”.

Essa afirmação feita por um gestor municipal, em localidade de expressivo avanço da

produção canavieira, chama a atenção para a necessidade de discutir o projeto de campo

que se deseja para o Brasil. 3) “A única saída para não fechar todas as escolas tem sido

a nucleação e a multisseriação, em especial multisseriação na educação infantil”. O

fechamento de escolas leva ao processo de nucleação de escolas, reunião de mais alunos

e mais professores em uma instituição maior e localizada em meio a várias comunidades

rurais. Entretanto, é necessário o transporte escolar para levar os alunos das suas

comunidades até a escola. Em muitas localidades, são horas no transporte escolar até

chegar à escola. 4) “Aqui não temos educação do campo, não há MST e nem

movimento social”. Essa afirmação tem sido feita por muitos professores e gestores que

trabalham em municípios com frágil organização política por parte dos trabalhadores.

Entretanto, algumas equipes pedagógicas, a exemplo do município de Tijucas do Sul e

da Lapa, no estado do Paraná, têm feito importantes estudos com as comunidades do

campo, evidenciando a característica rural, aspectos socioculturais diversos,

identificação de comunidades tradicionais, entre outras. Dessas observações vem uma

certeza: é necessário mudar a escola pública e a prática de relação com as crianças e

comunidades do campo, muitas vezes ignoradas em sua diversidade, relação de trabalho

com a terra, cultura e organização política. Esse é um desafio, ou seja, ver a escola no

movimento maior da sociedade e reconhecer saberes da experiência entre povos que

secularmente trabalham na e com a terra. Outro desafio refere-se à necessidade de

problematizar o campo da Educação do Campo. Afinal, que projeto de campo está em

vigência no país? Quais impactos um projeto de ampliação do agronegócio pode trazer

em termos sociais e educacionais?

Assim, repensar a escola pública no/do campo significa colocar as matrizes

pedagógicas da Educação do Campo em lugar central nas práticas e políticas

educacionais. Arroyo (2010) menciona algumas matrizes pedagógicas, a saber: terra,

trabalho, movimentos sociais, cultura entre outras. Trata-se de analisar o território, os

sujeitos e suas práticas, com a intencionalidade de transformação da realidade.

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A construção da identidade político-pedagógica da escola do campo tem que

obedecer ao disposto no Decreto presidencial sob nº 7.352 de 4 de novembro de 2010,

sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na

Reforma Agrária – PRONERA.

O referido Decreto, em seu artigo 2º, dispõe sobre os princípios da Educação do

Campo:

Art. 2o São princípios da Educação do Campo:

I - Respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais,

culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e

de raça e etnia;

II - Incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos

específicos para as escolas do campo, estimulando o desenvolvimento

das unidades escolares como espaços públicos de investigação e

articulação de experiências e estudos direcionados para o

desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente

sustentável, em articulação com o mundo do trabalho;

III - Desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da

educação para o atendimento da especificidade das escolas do campo,

considerando-se as condições concretas da produção e reprodução

social da vida no campo;

IV - Valorização da identidade da escola do campo por meio de

projetos pedagógicos com conteúdos curriculares e metodologias

adequadas às reais necessidades dos alunos do campo, bem como

flexibilidade na organização escolar, incluindo adequação do

calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;

e

V - Controle social da qualidade da educação escolar, mediante a

efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais do

campo.

Esses princípios têm que ser analisados à luz do que está posto nos documentos

originários das Conferências Nacionais de Educação do Campo, a de 1998 e a de 2004.

Em particular, na Conferência realizada em 1998 foram definidos os seguintes

compromissos e desafios da Educação do Campo: Vincular as práticas de Educação

Básica do Campo com o processo de construção de um projeto popular de

desenvolvimento nacional. Propor e viver novos valores culturais. Valorizar as culturas

do campo. Fazer mobilizações em vista da conquista de políticas públicas pelo direito à

Educação Básica do Campo. Lutar para que todo o povo tenha acesso à educação.

Formar educadoras e educadores do campo. Produzir uma proposta de Educação Básica

do Campo. Envolver as comunidades neste processo. Acreditar na nossa capacidade de

construir o novo. Implementar as propostas de ação desta Conferência.

Pelo que se verifica, os princípios basilares são: reconhecimento da diversidade

que marca o campo, os sujeitos do campo; formulação de projetos político-pedagógicos

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com a participação das comunidades e reconhecimento dos saberes dos povos do

campo; políticas de formação continuada que considere as especificidades do campo,

dos povos do campo e participação efetiva das comunidades. O que muda em relação às

instituições tradicionais? Muda a relação com as comunidades, com o território

camponês e a intencionalidade política, que se vincula a uma concepção transformadora

de sociedade e de educação. Sem isso, a escola que está no campo ainda não terá

identidade do campo.

Sujeitos, diversidade e povos do campo

A pergunta primeira em relação à escola e Educação do Campo relaciona-se com

os povos do campo. Quem são eles? Qual é o sentido da diversidade? A II Conferência

Nacional Por Uma Educação do Campo de 2004, em sua declaração final, demanda

respeito pela especificidade da Educação do Campo e à diversidade dos seus sujeitos,

assim os define:

O campo tem sua especificidade. Não somente pela histórica

precarização das escolas rurais, mas pelas especificidades de uma

realidade social, política, econômica, cultural e organizativa,

complexa que incorpora diferentes espaços, formas e sujeitos. Além

disso, os povos do campo também são diversos nos pertencimentos

étnicos, raciais: povos indígenas, quilombolas...; Toda essa

diversidade de coletivos humanos apresenta formas específicas de

produção de saberes, conhecimentos, ciência, tecnologias, valores,

culturas... A educação desses diferentes grupos tem especificidades

que devem ser respeitadas e incorporadas nas políticas públicas e no

projeto político-pedagógico da Educação do Campo, como por

exemplo, a pedagogia da alternância. (CONFERÊNCIA ..., 2004.

Grifo nosso)

Os povos são diversos em seus pertencimentos, mas guardam histórias e relações

de trabalho, bem como processos de exclusão social, semelhantes. São povos que

possuem em comum uma trajetória de luta, perdas, conquistas, organização política,

experiências socioculturais e identidades. Seus saberes possuem estreita relação com a

natureza, com o tempo, com os movimentos planetários. São conhecimentos produzidos

ao longo de vidas, de gerações. Reconhecer povos e saberes, condições e histórias,

requer atitude investigativa. Atitude essa que pode estar nos materiais didáticos, nos

processos formativos de professores, na prática pedagógica e na gestão democrática na

escola.

A Resolução sob nº 2 de abril de 2008, da Câmara de Educação Básica, do

Conselho Nacional de Educação, no artigo 2º, denomina de populações rurais que

devem ser reconhecidas nas suas variadas formas de produção da vida. Menciona

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agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e

acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros. Essa resolução

tem sua origem vinculada com o debate gerado no movimento nacional de Educação do

Campo. Dá ênfase às formas de produção da vida no campo, mediante análise do

trabalho.

Um desafio que tem marcado o avanço da Educação do Campo por dentro das

instituições escolares está relacionado à identificação e reconhecimento das

comunidades de agricultores familiares camponeses que vivem no campo. A maior parte

dos municípios, embora marcada por ruralidades, não debate o lugar do rural na unidade

territorial. A maior parte dos núcleos urbanos é pequena e localizada em territórios de

ampla extensão, porém, mesmo assim, as ruralidades ainda não são devidamente

reconhecidas e, com isso, os povos do campo ficam à margem nos estudos escolares.

Nas pesquisas que desenvolvemos em 24 municípios, enfatizamos a realização de um

mapeamento das comunidades rurais existentes neles, das práticas culturais e das formas

de produção na agricultura, por parte dos professores e das equipes pedagógicas. Mas,

essa tarefa requer, também, incentivo por parte dos gestores locais, seja nos processos

formativos, seja na ênfase e na relação entre as várias secretarias municipais para a

valorização do campo. Existem municípios que possuem de 40 a 80 comunidades rurais,

entretanto, elas são desconhecidas de professores e de equipes pedagógicas. Importante

dizer que existem iniciativas de equipes pedagógicas voltadas para identificação e

trabalho conjunto com as comunidades. Essa realidade é marcante em municípios que

possuem atuação do MST e de outros movimentos sociais do campo. Ou seja, nessas

localidades a Educação do Campo pode avançar via escola pública, mas, para isso, é

fundamental que os processos formativos de professores considerem os princípios da

Educação do Campo.

Alguns entraves para o reconhecimento dos povos do campo, dos saberes da

experiência e do mundo do trabalho no campo são: 1) avanço das atividades do

agronegócio que esvaziam o campo do ponto de vista social; 2) fechamento e nucleação

de escolas, que distancia as comunidades da instituição escolar; 3) vínculo de trabalho

temporário dos professores, o que dificulta o envolvimento e a identidade com a escola

e com as comunidades; 4) materiais didáticos que dificultam a relação dos conteúdos

previstos para a Educação Básica com as experiências vividas e conhecidas das crianças

e jovens do campo; 5) regulação da educação por meio de prazos para elaboração e

entrega dos projetos político-pedagógicos que fragilizam o processo de participação e a

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gestão democrática; 6) regulação da prática pedagógica por meio das avaliações

nacionais que, muitas vezes geram iniciativas preparatórias para as provas nacionais,

com a preocupação voltada para o índice de desenvolvimento da educação básica

(IDEB), em detrimento da organização coletiva do trabalho pedagógico e da

aprendizagem dos educandos/as.

Os documentos produzidos na sociedade civil e as diretrizes nacionais da

Educação do Campo, de 2002 e de 2008, dispõem sobre os sujeitos do campo e sobre a

necessidade de reconhecimento da diversidade e dos saberes dos povos do campo.

Povos tradicionais, em geral, têm práticas sustentáveis de agricultura. Têm

conhecimento empírico do tempo e da germinação das plantas. Resistem aos processos

de depredação do solo, da vegetação, dos rios e de expropriação e expulsão da terra,

mantendo um modo de vida assentado no trabalho com a terra. Essas práticas ainda não

são suficientemente reconhecidas e problematizadas na escola, porém, o caminho está

em construção. Muitas mediações têm sido construídas no Brasil de Norte a Sul, muitos

coletivos têm problematizado o campo, a educação, a escola, as políticas públicas e o

projeto popular de desenvolvimento para o Brasil. Processos de formação continuada

são fundamentais para a construção da Educação do Campo, em particular nos

municípios que não possuem expressiva atuação dos movimentos sociais do campo.

Mas, é fundamental indagar como têm se efetivado a formação continuada de

professores.

Que formação continuada tem predominado para os professores do campo?

Constata-se nas observações realizadas nos municípios de abrangência da

pesquisa, no estado do Paraná, que a formação continuada de professores tem sido feita

predominantemente na modalidade à distância, e por instituições particulares de ensino.

Predominam os cursos de pós-graduação lato sensu como principal forma de

atualização, ao lado de semanas pedagógicas e cursos realizados pelo SEBRAE (Serviço

Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). Ou seja, os desafios são imensos

no que se refere à formação dos professores, seja a inicial, onde a maioria não estuda o

campo que marca o território brasileiro e nem faz estágios em escolas públicas no/do

campo, seja a continuada, que ainda está descolada dos princípios da Educação do

Campo.

A formação continuada de professores que valoriza a identidade dos povos do

campo tem sido um desafio central na construção da escola pública. A declaração

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produzida durante a II Conferência Nacional Por Educação do Campo mencionou a

formação dos educadores e educadoras, como segue:

- Formação profissional e política de educadores e educadoras do

próprio campo, gratuitamente;

- Formação no trabalho que tenha por base a realidade do campo e o

projeto político-pedagógico da Educação do Campo;

- Incentivos profissionais e concurso diferenciado para educadores e

educadoras que trabalham nas escolas do campo;

- Definição do perfil profissional do educador e da educadora do

campo;

- Garantia do piso salarial profissional nacional e de plano de carreira;

- Formas de organização do trabalho que qualifiquem a atuação dos

profissionais da Educação do Campo;

- Garantia da constituição de redes: de escolas, educadores e

educadoras e de organizações sociais de trabalhadoras e trabalhadores

do campo, para construção e reconstrução permanente do projeto

político-pedagógico das escolas do campo, vinculando essas redes a

políticas de formação profissional de educadores e educadoras.

A efetivação dessa concepção de formação continuada ainda está por ser

construída na maior parte do Brasil, em que pese existirem cursos de especialização, por

exemplo, no contexto do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma

Agrária). Mas, eles são poucos diante do desconhecimento dos professores sobre a

Educação do Campo, como concepção educacional construída nos movimentos sociais.

Gratuidade, formação no próprio local de trabalho, incentivos profissionais e

concursos diferenciados são algumas das demandas que, quando atendidas poderão

fortalecer a concepção da Educação do Campo. A efetivação dessas demandas está

longe de ser atendida, em que pese a relevância dos cursos de Pedagogia da Terra e de

Licenciatura em Educação do Campo. Muitos desafios permeiam a política local, na

esfera municipal e na estadual. A maior parte das 70.000 escolas existentes no campo é

vinculada à esfera municipal que, por sua vez, é a unidade que mais enfrenta dificuldade

para discutir a realidade dos povos do campo e da educação, em função de relações

clientelistas e econômicas que reforçam o avanço das atividades monocultoras e do

agronegócio.

Existem muitos problemas relacionados aos planos de carreira, sendo um deles a

definição se o início da carreira do magistério deve se dar com a formação em Ensino

Médio, Magistério ou com a Educação Superior. Também, salários podem ser

diferenciados quando os professores demonstram ter cursos de especialização em

Educação do Campo. Isso tem levado muitas instituições, que não são universidades, a

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ofertar cursos de especialização em Educação do Campo, sem sequer saber do que se

trata. Os próprios professores depois de cursarem tais especializações começam a

avaliar que perderam tempo e dinheiro. Ou seja, cria-se uma indústria da especialização,

visando ofertar formação continuada que, no fundo, deturpa o que é a Educação do

Campo tal como construída nos movimentos sociais.

Os professores atribuem grande importância ao Pacto Nacional pela

Alfabetização na Idade Certa – PACTO - quando se fala em formação continuada nos

municípios. É um dos momentos em que os professores se reúnem para discutir práticas

pedagógicas, conteúdos, metodologias etc. Sobre Educação do Campo há uma

modalidade, no PACTO, mas que, em alguns casos, é desenvolvido em 2h ou 4h de

trabalho.

Um grande desafio para o processo de formação continuada é a organização de

trabalhos e estudos coletivos diretamente nas escolas localizadas no campo. Para que

isso ocorra é necessária política educacional de valorização do profissional e de

efetivação de relações permanentes de trabalho. Também, é fundamental disposição por

parte dos professores para o estudo, leitura, interpretação e produção de textos. São dois

fatores que não podem estar dissociados: política e prática educacional.

Nos municípios que realizamos trabalhos de campo, a maior parte dos professores

fez formação continuada a distância e relata não ter estudado a Educação do Campo. Os

que fizeram cursos em Educação do Campo, ofertado por institutos particulares, alegam

não ter sido suficiente o conjunto de estudos e nem os materiais acessados. Os

professores indicam necessidades de estudos para compreender a Educação do Campo e

modificar práticas pedagógicas, ter outra relação com o material didático-pedagógico,

bem como outra avaliação sobre materiais que chegam via SENAR (Serviço Nacional

de Aprendizagem Rural) e SEBRAE, por exemplo.

Considerações finais

Ao final deste texto é fundamental indicar três aspectos conclusivos das

pesquisas realizadas com as escolas públicas municipais no estado do Paraná. O

primeiro aspecto relaciona-se à identidade da escola pública. A maior parte das escolas

ainda segue a rotina da escola rural, com projeto político pedagógico feito por um

profissional da escola, sem relação com as comunidades. Ainda, os projetos político-

pedagógicos são desconhecidos da maior parte dos professores das escolas. A realidade

das comunidades de povos do campo ainda é desconhecida por parte das equipes

pedagógicas. Quando se indaga sobre quantas comunidades rurais existem na localidade

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onde está a escola, a grande maioria afirma não saber. O plano diretor geralmente não

traz essa informação, nem mesmo os projetos político-pedagógicos das escolas. O

segundo aspecto relaciona-se à diversidade, aos sujeitos do campo. Em que pese os

quase 20 anos de Educação do Campo no Brasil, a diversidade de sujeitos e de práticas

não são conhecidas nas escolas. A escola vive predominantemente a rotina de estudos e

práticas fundadas na educação bancária, nos termos de Freire. Terceiro, os processos de

formação continuada poderiam auxiliar na compreensão e ampliação da participação das

comunidades na gestão escolar, entretanto, constata-se que a maior parte dos cursos

ofertados como formação continuada é realizado para fins de ascensão de nível,

segundo os planos de carreira dos municípios.

São muitos os desafios, mas um aspecto é fundamental de ser mencionado. Os

professores têm disposição para conhecer mais, porém, precisam do incentivo via

política educacional. Políticas e práticas educacionais estão imbricadas. Elas atendem a

um projeto de educação e de sociedade. Será o projeto conservador ou transformador.

Não há meio termo.

Referências

ARROYO, M. G. As matrizes pedagógicas da Educação do Campo na perspectiva da

luta de classes. In: MIRANDA, S. G.; SCHWENDLER, S. F. Educação do Campo em

movimento: teoria e prática cotidiana. V. I. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. p. 35-54.

BRASIL. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política de

Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária -

PRONERA. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 nov. 2010a.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008.

Estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de

políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo. Diário Oficial da

União, 29/4/2008, Seção 1, p. 25-26.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002.

Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo. Diário

Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 9 abr. 2002.

CONFERÊNCIA POR UMA EDUCAÇÃO BÁSICA DO CAMPO. Compromissos e

desafios. Luziânia, 27 a 31 de julho de 1998.

CONFERÊNCIA POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO. Declaração Final. Luziânia,

2 a 6 de agosto de 2004.

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EDUCAÇÃO POPULAR, PENSAMENTO DECOLONIAL E FORMAÇÃO

INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO DO CAMPO

Ângela Massumi Katuta – Universidade Federal do Paraná/Setor Litoral

Resumo:

O presente trabalho de caráter exploratório tem como referência investigações-ações

realizadas ao longo de aproximadamente 7 anos, junto aos educadores de escolas

localizadas no campo e de licenciaturas do campo. A partir das mesmas, reflito sobre as

contribuições possíveis da educação popular e do pensamento decolonial aos desafios

epistemológicos e teórico-práticos da formação inicial e continuada dos educandos das

licenciaturas do campo e dos educadores cujas escolas estão localizadas no campo. Para

tanto, retomo rapidamente o histórico e os princípios da educação popular,

posteriormente, discuto os pressupostos epistemológicos ligados ao pensamento

decolonial, demonstrando seus vínculos com aqueles da educação popular e do campo,

sobretudo no que se refere à desobediência epistemológica e ao caráter emancipatório

de ambos. Em seguida, a partir de estudos e reflexões anteriores sobre a formação

inicial e continuada de educadores do campo e daqueles que trabalham em escolas

localizadas no campo, abordo a fundamentalidade do diálogo de saberes nestes

processos formativos, dadas as especificidades da educação do campo, e suas relações

intrínsecas com o pensamento decolonial e com a educação popular que podem e já tem

auxiliado no pensar e na materialização de propostas educacionais de formação inicial e

continuada de professores que fortalecem a aderência aos princípios da educação do

campo. A partir destas primeiras aproximações, conclui-se que a educação popular e o

pensamento decolonial, em função de seus aportes teórico-práticos, teórico-

metodológicos e epistemológicos constituem campo profícuo para elaboração de

estratégias de enfrentamento dos desafios ligados à formação inicial e continuada de

educadores do campo e daqueles cujas escolas estão localizadas no campo. Por sua vez,

as transformações educacionais encetadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra (MST) em contraposição à educação rural, evidenciam que a emancipação

está umbilicalmente ligada à desobediência epistemológica.

Palavras-chave: Educação popular; Pensamento decolonial; Educação do campo.

Educação popular e pensamento decolonial: desobediência epistemológica e

emancipação

A educação popular tem suas origens junto a grupos, organizações e

movimentos sociais e, segundo Mejia (2013), se constituiu coletiva e, às vezes,

silenciosamente desde “El Sur y desde abajo”, a partir de um acumulo histórico de

experiências em vários países da América Latina como forma de “[...] resistência ou de

construção alternativa de poder e contra a hegemonia das formas dominantes na

sociedade. Por isso, é importante reconhecer na Educação Popular não uma prática de

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agora ou dos últimos quarenta anos, mas uma dinâmica que, nos últimos duzentos anos,

tem estado presente na teia social da América Latina.” (MEJIA, 2005, p. 206).

O autor afirma que no final do século XVIII já havia práticas e referências à

educação popular: nas lutas por independência, sendo Simón Rodriguez (educador,

ensaísta, escritor e filósofo venezuelano) e José Marti (político, pensador, jornalista,

filósofo e poeta cubano) seus expoentes; nas tentativas de construção de universidades

populares na primeira metade do século XX, sendo as mais notáveis as do Peru, El

Salvador e México; na construção de escolas voltadas ao ensino dos conhecimentos

aymara e quéchua, sendo a escola Ayllu de Warisata na Bolívia uma das experiências

mais representativas; na construção de projetos educativos a serviço de grupos

desprotegidos. Verifica-se que emancipação e justiça social constituem-se em

denominadores comuns de tais iniciativas e que se mantém nos dias atuais nas diversas

experiências de educação popular.

Nos anos 1960 tomam força uma serie de processos criativos denominados e

identificados novamente como educação popular, sendo Paulo Freire um dos

exponentes neste movimento que foi cessado, interditado e/ou cerceado pelas ditaduras

latino-americanas em função de seu caráter emancipatório e político que visavam a

justiça social.

O mesmo autor (Mejia, 2013) afirma que a época de maior desenvolvimento e

auge da educação popular em termos teórico-práticos coincide com construções

conceituais e práticas que se materializaram como forma de critica à colonialidade e à

cultura hegemônica, dentre as quais podem ser citadas: teoria da dependência, teologia

da libertação, comunicação popular, teatro do oprimido, pedagogia do oprimido,

filosofia da libertação, a investigação-ação participante, sociologia social latino-

americana e outras.

Para Mejia (2013, p. 371-372):

[...] a lo largo de treinta años se da la edificación de un pensamiento próprio

que busca diferenciarse de las formas eurocêntricas y de las miradas de uma

lectura de América desde afuera, que no se lee internamente, generando

líneas de acción que constituyen con la educación popular los gérmenes de

um pensamiento próprio que organiza y da sentido a estas realidades.

Tais experiências e pensamentos preencheram a educação popular de

conteúdos, significados, objetivos e princípios ligados à transformação, emancipação e

justiça social que se contrapõem às desigualdades e aos controles de classe, gênero,

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etnia, raça, opção sexual, idade, condições físicas etc (Mejia, 2013) instalados com o

processo de colonização.

Constituem-se em princípios (decálogo) da educação popular (MEJIA, 2013, p.

372-375):

1- Tem como ponto de partida a realidade e sua leitura crítica a fim de

reconhecer os interesses presentes na atuação e produção dos diferentes atores;

2- Supõe uma opção básica de transformação das condições que produzem a

injustiça, a exploração, a dominação e a exclusão social;

3- Exige uma opção ético-política sobre, desde e para os interesses dos grupos

excluídos e dominados, para a sobrevivência da mãe terra (madre tierra);

4- Constrói o empoderamento de excluídos e desiguais, proporcionando sua

organização para tornar a sociedade mais igualitária e que reconheça as diferenças;

5- Constrói mediações educativas com uma proposta pedagógica baseada em

processos de negociação cultural, confrontação e diálogo de saberes;

6- Considera a cultura dos participantes como o cenário no qual ocorrem as

dinâmicas de intraculturalidade, interculturalidade e transculturalidade dos diferentes

grupos humanos;

7- Propicia processos de autoafirmação e construção de subjetividades críticas;

8- Se compreende como um processo, um saber prático-teórico que se constrói

nas resistências e na busca de alternativas nas diferentes dinâmicas de controle

societário;

9- Gera processos de produção de conhecimentos, saberes e de vida voltados à

emancipação humana e social;

10- Reconhece dimensões diferentes na produção de conhecimentos e saberes

de acordo com as particularidades dos atores e das lutas nas quais se inscrevem.

Importante destacar que a educação popular se caracteriza pela diversidade de

repertório e propostas metodológicas sendo coerente com “[...] su propuesta pedagógica

de negociación cultural y diálogo y confrontación de saberes, convirtiendo sus

herramientas en dispositivos de saber y poder.” (Mejia, 2013, p. 376). Observa-se que o

diálogo é central no processo e, não por acaso, a dimensão da comunicação popular

constitui-se também em instrumento fundamental em sua materialização, tornando-se

foco de pesquisa e atuações na área de comunicação.

A partir da leitura das obras de alguns decolonialistas e educadores populares,

considerando também suas atuações, é possível dizer que, não só, mas, também, o

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conjunto de experiências, debates, reflexões e produções no âmbito da educação popular

(na educação formal, não formal e informal) influenciou na formação do pensamento

decolonial. Ambos constituíram-se em função das mesmas condições de injustiça e

desigualdade social no contexto do processo de colonização dos países latino

americanos.

O pensamento decolonial tem origem ou emergiu a partir do Grupo

Modernidade/Colonialidade (M/C), estruturado em seminários, diálogos e publicações

organizados a partir de 1998 em um evento da CLACSO (Consejo Latinoamericano de

Ciencias Sociales) na Universidade Central de Venezuela que reuniu, pela primeira vez,

Edgardo Lander (Sociólogo venezuelano da Universidade Central de Venezuela),

Arturo Escobar (antropólogo colombiano da Universidade da Carolina do Norte),

Walter Mignolo (Semiólogo argentino da Universidade de Duke), Enrique Dussel

(filósofo argentino radicado no México), Aníbal Quijano (sociólogo peruano da

Universidade Ricardo Palma em Lima) e Fernando Coronil (antropólogo e historiador

venezuelano da Universidade de Michigan) que compunham, juntamente com outros

sujeitos, o pensamento crítico latino-americano do século XX. Desde então, muitos

outros estudiosos se juntaram ao grupo.

Arturo Escobar considera o grupo M/C como um programa de investigação

cuja genealogia de pensamento do grupo inclui:

[a] Teologia da Libertação desde os sessenta e setenta; os debates na filosofia

e ciência social latino-americana sobre noções como filosofia da libertação e

uma ciência social autônoma (por ex., Enrique Dussel, Rodolfo Kusch,

Orlando Fals Borda, Pablo Gonzáles Casanova, Darcy Ribeiro); a teoria da

dependência; os debates na América Latina sobre a modernidade e pós-

modernidade dos oitenta, seguidos pelas discussões sobre hibridismo na

antropologia, comunicação nos estudos culturais nos noventa; e, nos Estados

Unidos, o grupo latino-americano de estudos subalternos. O grupo

modernidade/colonialidade encontrou inspiração em um amplo número de

fontes, desde as teorias críticas europeias e norte-americanas da modernidade

até o grupo sul-asiático de estudos subalternos, a teoria feminista chicana, a

teoria pós-colonial e a filosofia africana; assim mesmo, muitos de seus

membros operaram em uma perspectiva modificada de sistema-mundo. Sua

principal força orientadora, no entanto, é uma reflexão continuada sobre a

realidade cultural e política latino-americana, incluindo o conhecimento

subalternizado dos grupos explorados e oprimidos. (Escobar, 2003, p. 53

apud BALLESTRIN, 2013, p. 99).

Ao pensamento decolonial soma-se muitas outras vozes do “centro e da

periferia” da produção do conhecimento que se organizaram em torno da

descolonização epistemológica, debatendo e evidenciando as relações entre saber e

poder eurocentrados na modernidade colonial com a consequente (re)fundação de outras

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epistemologias (epistemologias do sul) que questionam “[...] o universalismo

etnocêntrico, o eurocentrismo teórico, o nacionalismo metodológico, o positivismo

epistemológico e o neoliberalismo científico contidos no mainstream das ciências

sociais.” (BALLESTRIN, p. 109)

Mignolo (2008, p. 291) afirma ser inerente ao pensamento decolonial a

desobediência epistêmica pois “Uma das realizações da razão imperial [moderna e

colonial] foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir constructos

inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de expeli-los para fora da

esfera normativa do „real‟.”, a partir dos modus operandi descritos no parágrafo que

segue:

1. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior

(o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). 2. A

superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como

exigência moral. 3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento

deve ser aquele seguido pela Europa (e, de fato, um desenvolvimento

unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, a

“falácia desenvolvimentista”). 4. Como o bárbaro se opõe ao processo

civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se

necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa

colonial). 5. Esta dominação produz vitimas (de muitas e variadas maneiras),

violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-

ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste as suas próprias vitimas da

condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado,

o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etecetera). 6. Para o

moderno, o bárbaro tem uma “culpa” (por opor-se ao processo civilizador)

que permite a “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente mas

como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vitimas. 7. Por último,

e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como

inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos

outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro

sexo por ser frágil, etecetera (Dussel, 2000, p. 49 apud BALLESTRIN, 2013,

p. 102).

Dessa maneira, os expelidos, passam a não ter existência social, dado que

carecem de registros e legitimidade para que os enunciem a partir de seus lugares

sociais e modos de existência e, quando e, se passam à existência, ao serem registrados

pela razão hegemônica moderna (branca, masculina, heterossexual, europeia, cristã,

entre outros) são caracterizados como inferiores, bárbaros, primitivos, não civilizados e,

não raro, são criminalizados. Assim, aos inferiorizados pela razão imperial, colonial e

moderna restam basicamente dois destinos: Não existir ou existir na inferioridade.

As verdades científicas da modernidade se constituíram a partir da lógica

rapidamente esboçada nos parágrafos anteriores, bem como os universalismos, as

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homogeneizações, o poder colonial com sua razão instrumental, os conhecimentos

escolares eurocentrados, todos funcionando a partir da “hybris del punto cero” (hibris

do ponto zero) - noção elaborada por Santiago Castro-Gómez (filósofo Colombiano)

para denunciar o ponto de partida da observação da razão moderna, supostamente

neutro e absoluto, no qual a linguagem científica é considerada como a mais perfeita das

linguagens humanas pois supõe-se que reflete a estrutura universal da razão.

O sujeito epistêmico da modernidade não tem sexualidade, gênero, etnia, raça,

classe, espiritualidade, língua, nenhuma característica que o determine. Assim, tornado

neutro, sem localização epistêmica, produz um discurso centrado em si e, supostamente

sem determinações. Esta epistemologia da neutralidade axiológica e da objetividade

empírica foi assumida pelas ciências humanas a partir do século XIX, transformando-se

no discurso legítimo e verdadeiro sobre o mundo, deslegitimando todas as outras formas

de conhecimento. (Grosfoguel, 2007, p. 64-65 apud BALLESTRIN, 2013, p. 104).

Por isso nos lembra Mignolo, retomando Quijano (1990): “[...] Es la

instrumentalización de la razón por el poder colonial, en primer lugar, lo que produjo

paradigmas distorsionados de conocimiento y malogró las promesas liberadoras de la

modernidad. La alternativa en consecuencia es clara: la destrucción de la colonialidad

del poder mundial.” (Quijano, 1990/1992 apud MIGNOLO, 2008, p. 288)

Considerando o exposto, no tocante à educação popular e ao pensamento

decolonial, é possível afirmar que, para ambos, a desobediência epistemológica está no

âmago da emancipação dos sujeitos e da justiça social. Para Mignolo (2008 apud

BALLESTRIN, 2013), a genealogia do pensamento decolonial incorpora as reflexões

dos movimentos sociais. De minha parte, compreendo que a educação popular para

além de incorporá-las, expressa as aprendizagens, construções e reelaborações

acumuladas com e pelos movimentos nas teias sociais da América Latina. “A

genealogia do pensamento decolonial é planetária e não se limita a indivíduos, mas

incorpora nos movimentos sociais (o qual nos remete aos movimentos sociais indígenas

e afros).” (Mignolo, 2008, p. 258 apud BALLESTRIN, 2013, p. 106).

No item que segue, abordamos a centralidade do diálogo de saberes nos

processos formativos (formação inicial e continuada) de educadores do campo e das

escolas localizadas no campo, evidenciando o quanto posturas epistemológicas ligadas

ao pensamento decolonial e à educação popular auxiliam a transformar os conteúdos e a

forma escolar, criando respostas aos desafios teórico-práticos colocados historicamente

para a formação de educadores.

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Uma de nossas referências serão os trabalhos, debates, reflexões e proposições

produzidos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e por aqueles

que com ele somam e dialogam, pois constituem no Brasil, os avanços mais

significativos de transformação da escola em uma perspectiva emancipatória, popular e

revolucionária. O MST tem estabelecido ao longo de pelo menos 30 anos, os desafios,

tem construído demandas e também alternativas-respostas para a transformação das

escolas de acampamentos e assentamentos, portanto, também tem interrogado, militado

e dialogado fortemente com a formação inicial e continuada de educadores do campo e

daqueles que trabalham em escolas do campo.

Diálogo de saberes ancorados na educação popular e no pensamento decolonial na

formação inicial e continuada de educadores para as escolas do campo

Ao longo de aproximadamente 30 anos, mais ou menos o período de

fortalecimento e redefinição da educação popular no país, educadores do MST e de uma

série de outras instituições tem se debruçado sobre a construção de processos educativos

e de escolas que trabalhem com objetivos emancipatórios e populares visando

materializar “[...] uma sociedade de trabalhadores livremente associados, onde o

trabalho como valor de uso seja direito fundamental de todas as pessoas [...]”

(CALDART, 2014, p. 3). Para tanto, compreendem que, a despeito do foco da

transformação social estar centrado nas relações sociais de produção, a escola pode

auxiliar neste processo pois ao desalienar as novas gerações prepara lutadores pelas

causas das transformações radicais e, ao mesmo tempo, pode desencadear ensaios sobre

como poderá ser a escola de uma sociedade dos trabalhadores. (CALDART, 2014, p. 3).

Para a construção dessa escola do futuro a mudança da sua forma é

fundamental, o que implica a contraposição de outras epistemologias e ontologias, ou

seja, a desobediência epistêmica pois, a instituição escolar que temos em todos os níveis

de ensino, fundada na razão moderna colonial (“hybris del punto cero”) constituiu-se

nos e sobre os diversos territórios colonizados tendo como base a negação das

identidades, práticas e conhecimentos socioterritoriais dos sujeitos e suas comunidades,

operando assim no fortalecimento de relações sociais altamente hierarquizadas em seu

interior e privilegiando abordagens descontextualizadas e absolutizantes dos

conhecimentos-conteúdos, fazendo muitos acreditarem em sua neutralidade e

universalidade. A forma escolar diz respeito às relações sociais que acontecem na

escola, incluindo o trabalho com os conteúdos que possui relação orgânica com a

dinâmica da vida e das lutas sociais (CALDART, 2011, p. 151).

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Assim, o Setor de Educação do MST, instituições e pesquisadores que o

apoiam e com ele vivenciam processos altamente educativos, em seus fóruns,

congressos e encontros procura constantemente debater e recriar a forma escolar nas

escolas dos assentamentos e acampamentos, demandando transformações e colocando

novos desafios para os educadores que nela trabalham e também para as licenciaturas

nos quais são formados que, diga-se de passagem, operam hegemonicamente na

perspectiva da razão moderna colonial. Verifica-se que desobediência epistemológica,

desde a teoria da decolonização, e caráter emancipatório constituem-se em

características inerentes à educação do campo no interior do movimento. São

praticamente 3 décadas de maciços investimentos teórico-práticos, lutas e militância

neste processo que resultam em um dos debates, proposições, políticas, materializações

educacionais emancipatórios e populares mais profícuos e de maior densidade que

temos atualmente no Brasil.

Ao questionar a formação docente junto às várias instâncias governamentais,

demandando por uma educação do e no campo, em todos os níveis de ensino, o MST foi

o protagonista principal na articulação, diálogo e criação, com instâncias do Estado, dos

instrumentos jurídicos, políticas, diretrizes, programas de formação, de elaboração de

materiais didáticos (Programa Nacional de Livro Didático Campo), entre outros. O

Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo

(Procampo) foi um dos resultantes de intensas lutas, negociações e trabalhos, e tem

como objetivo promover a formação superior dos professores em exercício na rede

pública das escolas do campo ou que atuam em experiências alternativas na área, a fim

de evitar a nucleação de escolas extracampo ou, em outras palavras, o fechamento das

escolas do campo ampliando assim a possibilidade de resistência e permanência no

campo.

Podemos entender o referido programa, como expressão de demandas dos

povos do campo não atendidas pela maior parte dos cursos de formação de professores,

e que sequer colocam em pauta a educação do campo como “tema a ser estudado” na

formação inicial. A ausência/inexistência/apagamento da educação do campo na pauta

formativa nas licenciaturas existentes no país ainda, infelizmente, constitui-se como

realidade na maior parte delas, o que evidencia a importância do Procampo para as

escolas dos povos do campo. Nestas ausências fica evidente a postura

desenvolvimentista moderna colonial capitalista das instituições e da maioria dos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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programas educacionais: os povos do campo são vistos como grupos sociais atrasados,

que precisam se modernizar.

Neste sentido, a escola em todos os seus níveis com seu ideário

desenvolvimentista neoliberal, focada cada vez mais no mundo do emprego, com seus

materiais voltados para educandos de cidades médias, grandes e capitais, com suas

relações hierarquizadas, operadas por uma rígida divisão intelectual do trabalho entre os

que pensam e os que executam acaba sendo instrumento de um conjunto de violências

que auxiliam na reprodução da ordem vigente.

Obviamente que há exceções a essa tendência, a maior parte delas associada a

militantes da educação do campo que, por meio de atos de desobediência

epistemológica, propõem ações voltadas à educação emancipatória, seja propondo

projetos de ensino, pesquisa e extensão voltados ao fortalecimento dos movimentos

sociais do campo e das relações entre instituições educacionais e os povos do campo, ou

por meio da criação de disciplinas focadas: na educação do campo que pautam as

opções societárias dos povos do campo, na produção agroecológica e agroflorestal, nos

modos de vida destes sujeitos, não raro trazendo-os para dentro dos muros das

instituições educacionais para com eles, debater, fortalecer movimentos voltados à

transformação da forma escolar. Efetivos atos de desobediência epistêmica e de

emancipação que vão adensando os movimentos ligados à educação popular.

Além do avanço inegável no tocante ao fortalecimento da educação do campo

desde os primeiros estudos, projetos pilotos e editais, estes últimos lançados a partir de

2008, o Procampo instalou grandes desafios políticos, administrativos e educativos não

apenas para as Universidades que o acessaram (dirigentes, educadores do curso,

técnicos administrativos e educandos) mas para a educação brasileira e latino

americana. O programa põe em evidência e forja à conscientização e transformação as

Instituições de Ensino Superior (IES), por conta das presenças dos sujeitos do campo

em espaços historicamente a eles interditados. Tais presenças explicitam e visibilizam o

fato de que o campo brasileiro é muito mais diverso, rico e complexo do que se imagina

e do que consta nos materiais didáticos e que necessita ser pautado na agenda do país,

dado o histórico de ausências de políticas e programas públicos voltados aos povos que

produzem alimentos e que, em função dos seus modos de vida, tem na diversidade a sua

condição de existência.

Muitos cursos de licenciatura do Procampo tiveram origem a partir do diálogo,

da militância, da resistência e do trabalho coletivo altamente educativo do conjunto dos

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professores universitários com os movimentos sociais do campo, muitos sendo inclusive

intelectuais orgânicos dos mesmos. A despeito disso, muitas outras IES que acessaram

os editais não tinham ou tem disposição para o necessário, fundamental e educativo

diálogo com os povos e movimentos sociais do campo, o que tem resultado em pouca

ou nenhuma alteração de forma e conteúdo nas licenciaturas do Procampo destas

instituições, resultando em uma formação que não se distingue das outras licenciaturas.

Observe-se que, inclusive na proposição e funcionamento do curso, sobretudo pela falta

de experiência institucional e formativa, é fundamental o diálogo entre coordenação de

curso, educadores e os povos e movimentos sociais do campo. Se tal esforço é realizado

todos acabam coletivamente aprendendo e se envolvendo na construção da escola do

futuro.

Pode-se afirmar portanto que, a despeito da ampliação dos programas de

licenciaturas, especializações, mestrados e doutorados (linhas de pesquisa e programas

específicos) em educação do campo ainda temos muitos desafios ligados à formação

inicial e continuada de educadores do campo e das escolas localizadas no campo. Não

devemos nos esquecer que nosso país tem dimensões continentais, que ele é muito

menos urbano do que dizem os indicadores do IBGE e também que as políticas públicas

e programas voltados à educação do campo são poucos, considerando a dimensão do

país e a diversidade dos povos do campo, e bem recentes na história da educação

brasileira.

Em nossos processos de investigação-ação temos verificado que muitas ou a

quase totalidade das demandas originárias dos povos do campo ainda não foram e, ao

que parece, não serão atendidas pelos cursos de formação inicial e continuada de

professores em um horizonte de curto e médio prazo, haja vista a crescente demanda

desta última que, não raro, tem tido caráter compensatório, ou seja, procura atender

demandas formativas que eram para terem sido trabalhadas na formação inicial.

Em trabalhos anteriores (KATUTA 2014a, 2014b, 2015) verificamos que

poucos educadores em serviço e em formação inicial conhecem e/ou compreendem os

princípios originários e a relevância da educação do campo em termos de emancipação

e justiça social. Muitos, apesar de lecionarem em escolas localizadas no campo, não

compreendem as suas especificidades, e aqueles que as compreendem carecem de

referenciais e estratégias políticas e teórico-metodológicas ligadas à educação popular e

do campo para alterarem a forma e os conteúdos escolares.

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A escola brasileira se popularizou mas não se fez povo. Provam isso alguns

educadores que realizam enormes esforços individualmente ou em pequenos grupos

fragilizados, juntamente com as comunidades do campo para alterarem a forma escola e

são sabotados e/ou interditados nas diferentes instâncias hierárquicas. Tais constatações

evidenciam processos de fragilização, violência e coerção dos educadores

compromissados com as escolas localizadas no campo que, em geral, acabam por serem

fechadas. Mais do que nunca, a desobediência epistemológica exercitada pelos

estudiosos da decolonialidade e da educação popular precisa ser exercitada, é o que

demonstram as escolas do MST.

Como materialização da desobediência epistemológica, (re)criação e

fortalecimento de experiências populares, em contraponto a boa parte das escolas

localizadas no campo, ainda assentadas no paradigma da educação rural, o MST em sua

[...] luta por escolas [...] força a educação escolar a aberturas epistemológicas

mais amplas, pois, a partir da práxis do movimento, se coloca em xeque o

conhecimento eurocentrado, fixado nas bases cientificistas ocidentais, que

desconsidera os saberes dos povos originários. É este tipo de conhecimento

que passa a ser objeto de crítica, no sentido de questionar suas bases e

radicalizar o fazer dos movimentos, suficientemente, para ampliar a ideia de

Diversidades, posicionando-se frente às restrições ao aparecimento dessas

Diversidades no âmbito educacional, pois a Diferença ou a Diversidade

revela toda uma gama de possibilidade existencial que afirma os modos

simbólico e material de produção e reprodução da Vida. (LOPES, 2014, s.p.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo como base a problematização ora apresentada, verificamos

aproximações, bandeiras de lutas e modus operandi convergentes na educação do

campo proposta pelo MST e os fundamentos teórico-práticos, teórico-metodológicos e

epistemológicos da educação popular e do pensamento decolonial. Até porque todos

eles nasceram nos territórios, processos e movimentos de espoliação, de expropriação,

de exclusão e de lutas.

Importante destacar que a proposição do Movimento, além de apresentar

demandas formativas para os cursos de formação de professores nos seus diversos

níveis, auxiliando na construção da educação do campo em todos os níveis de ensino,

inclusive no superior, tendo como fundamento as suas concepções originárias, também

colabora com a formação inicial e continuada dos educadores do campo e das escolas

localizadas no campo na medida em que, por meio do seu Setor de Educação e outras

instâncias, se constitui em importante parceiro de debates e de colaboração nestes

processos.

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A partir das reflexões realizadas pode-se afirmar que a educação popular e o

pensamento decolonial, em função de seus aportes teórico-práticos, teórico-

metodológicos e epistemológicos constituem campo profícuo e fundamental para a

elaboração de estratégias de enfrentamento dos desafios ligados à formação inicial e

continuada de educadores do campo e daqueles cujas escolas estão localizadas no

campo. Por sua vez, as transformações educacionais encetadas pelo Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em contraposição à educação rural, evidenciam

que processos emancipatórios estão umbilicalmente ligados a constantes exercícios e

estratégias de desobediência epistemológica. As licenciaturas do campo e os cursos de

formação continuada para educadores do campo e para aqueles que lecionam em escolas

localizadas no campo teriam muito a se beneficiar em termos de processos de

transformação educacional em possíveis aproximações com o pensamento decolonial, a

educação popular e a educação do campo desde as bases do MST, pois estes

constituem-se em efetivos movimentos de descolonização do saber poder:

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LOPES, E. B. Educação do campo e resistência: o projeto decolonial e sua contribuição

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