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E o WACO saiu “flechado” sobre o orvalho do chão, vendo a luz da vela crescer ao seu encontro, cada vez mais próxima do nariz.. O guarda-campo esperava firme no seu posto. Quando viu o avião projetar-se sobre ele e sua casa, deitou a correr numa fuga precipitada, levando consigo o que restava de luz. Só se voltou quando ouviu dois estrondos: o estrtondo do embate do avião de encontro à copa das árvores mais altas do quintal e o outro estrondo do baque do Waco sobre o chão, causando a explosão do tanque de gasolina que se incendiava. Na Barra do Rio Grande, dentro da noite sem luz e de estrelas anêmicas e distantes, desapareceu a luz da vela.. Um fogaréu que era como se fosse um borrão de fogo celeste iluminou a noite sertanekja, pondo reflexos rubros na noite do rio, tão indiferente quanto o silencio que logo tomou conta do sertão. Um galo da roça cocoricou ao longe, PENSANDO QUE O SOL HAVIA CHEGADO MAIS CEDO. Mas ele não estava anunciando o dia – que era a vida - mas o desastre – que era a morte. E a luz que lhe feriu os olhos, clareando aquele trecho do vale do São Francisco, que calcinava os corpos dos dois pilotos retorcia as longarinas da “nacele”, mais parecia a luz do altar de sacrifício de um ritual bárbaro qualquer. E lá ficaram os dois mártires do Arco e Flecha entre os destroços, o desespero, o fogo, e a grande calma que surgiu depois.. Foi um veterano do Arco e Flecha , encarregado de trazer de volta o motor sinistrado, que me transferiu esta história.. História que recolheu pessoalmente do guarda- campo da Barra do Rio Grande, o estranho castiçal humano que iluminou a decolagem noturna. Ainda pode ver-me a casa destelhada, as árvores chamuscadas ou reduzidas a carvão. O resto era um monte de ferros retorcidos, de cinzas e pó, e o motor enegrecido de fumo, , áspero e encaroçado pelo calor da fogueira. Esta história, como nas fábulas de Esopo e La Fontaine, deveria ser encerrada com uma moralidade qualquer. Mas creio que seu próprio conteúdo dramático dispensa qualquer conclusão escrita. Nós, à distância, poderíamos batizar o acidente com muitos nomes que lembrassem ou justificassem uma explicação satisdfatória, ainda que remota.. Mas não podemos julgar os dois bravos pilotos que com todo o arrojo e confiança PELO RESPEITO QUE DEVIAM AO HORÁRIO DO CORREIO . Aqui se reúnem, num encontro

Pouso a luz de vela

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Copiado do livro Histórias do Correio Aéreo Nacional

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Page 1: Pouso a luz de vela

E o WACO saiu “flechado” sobre o orvalho do chão, vendo a luz da vela crescer ao seu encontro, cada vez mais próxima do nariz.. O guarda-campo esperava firme no seu posto. Quando viu o avião projetar-se sobre ele e sua casa, deitou a correr numa fuga precipitada, levando consigo o que restava de luz. Só se voltou quando ouviu dois estrondos: o estrtondo do embate do avião de encontro à copa das árvores mais altas do quintal e o outro estrondo do baque do Waco sobre o chão, causando a explosão do tanque de gasolina que se incendiava. Na Barra do Rio Grande, dentro da noite sem luz e de estrelas anêmicas e distantes, desapareceu a luz da vela.. Um fogaréu que era como se fosse um borrão de fogo celeste iluminou a noite sertanekja, pondo reflexos rubros na noite do rio, tão indiferente quanto o silencio que logo tomou conta do sertão. Um galo da roça cocoricou ao longe, PENSANDO QUE O SOL HAVIA CHEGADO MAIS CEDO. Mas ele não estava anunciando o dia – que era a vida - mas o desastre – que era a morte. E a luz que lhe feriu os olhos, clareando aquele trecho do vale do São Francisco, que calcinava os corpos dos dois pilotos retorcia as longarinas da “nacele”, mais parecia a luz do altar de sacrifício de um ritual bárbaro qualquer. E lá ficaram os dois mártires do Arco e Flecha entre os destroços, o desespero, o fogo, e a grande calma que surgiu depois.. Foi um veterano do Arco e Flecha , encarregado de trazer de volta o motor sinistrado, que me transferiu esta história.. História que recolheu pessoalmente do guarda-campo da Barra do Rio Grande, o estranho castiçal humano que iluminou a decolagem noturna. Ainda pode ver-me a casa destelhada, as árvores chamuscadas ou reduzidas a carvão. O resto era um monte de ferros retorcidos, de cinzas e pó, e o motor enegrecido de fumo, , áspero e encaroçado pelo calor da fogueira. Esta história, como nas fábulas de Esopo e La Fontaine, deveria ser encerrada com uma moralidade qualquer. Mas creio que seu próprio conteúdo dramático dispensa qualquer conclusão escrita. Nós, à distância, poderíamos batizar o acidente com muitos nomes que lembrassem ou justificassem uma explicação satisdfatória, ainda que remota.. Mas não podemos julgar os dois bravos pilotos que com todo o arrojo e confiança PELO RESPEITO QUE DEVIAM AO HORÁRIO DO CORREIO . Aqui se reúnem, num encontro macabro, o arrojo, o fogo, o dever, a mocidade, a fatalidade, o patético que representavam, também, um estilo de vida, e um estilo de morte uma filosofia que tem muito do destemor dos espadachins de Alexandre Dumas ou dos cavaleiros de Walter Scott, que combatiam e morriam pela glória de conquistar uma rosa murcha e desfolhada.. Na seqüência do Arco e Flecha o acidente vai, afinal, representar, apenas, uma interrupção momentânea. O Arco e Flecha continua acompanhando a vida.. Pode quem quiser arranjar outro nome para que, sob um outro critério, melhor se ajuste ao desastre da Barra do Rio Grande. Outro nome mais rigoroso, mais frio, mais técnico, mais indiferente, mais apaixonado. Para mim ele se chamará apenas – fatalidade.

Texto copiado do livro Histórias do Correio Aéreo Nacional