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Na Azambuja voltámos a um povoado de cinco mil anos através de uma ceifa de trigo Em Vila Nova de São Pedro, freguesia do concelho da Azambuja, um sítio arqueológico esquecido. mais de 30 anos que não havia ali qualquer escavação arqueológica. Este ano, voltaram a viajar ao Calcolítico e simulou-se como é que as populações dessa altura colhiam os cereais Teresa Serafim raciete Seco e Acilda Gomes da Silva che- gam e são logo o cen- tro das atenções. Se Graciete Seco, de 74 anos, começa a cum- primentartodaagen- te, Acilda Gomes da Silva, de 82 anos, se- gue-a com um sorri- so. É dia de festa e de recordações no povoado Calcolítico de Vila Nova de São Pedro, no concelho da Azambuja, e entre os anfitriões estão estas duas amigas. "Já sou uma peça de museu", diz animada Graciete Seco. Afinal, as duas participaram em antigas esca- vações arqueológicas naquele lugar e guardam a memória de dias cheios de vida. Agora, depois de muitas dé- cadas de esquecimento, os trabalhos neste sítio chamado Castro recome- çaram e por estão arqueólogos, alunos de Arqueologia, crianças do concelho da Azambuja e habitantes locais muito curiosos. Este éo culminar de três semanas no terreno do projecto "Vila Nova de São Pedro, de novo - no 3.° milénio". Cerca de 12 alunos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e arqueólogos fizeram trabalhos de lim- peza para deixar a descoberto estru- turas encontradas nas antigas esca-

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Na Azambujavoltámos a umpovoado de há cincomil anos atravésde uma ceifa de trigoEm Vila Nova de São Pedro, freguesia do concelho daAzambuja, há um sítio arqueológico esquecido. Há mais de 30anos que não havia ali qualquer escavação arqueológica. Este

ano, voltaram a viajar ao Calcolítico e simulou-se como é queas populações dessa altura colhiam os cereais

Teresa Serafim

raciete Seco e AcildaGomes da Silva che-

gam e são logo o cen-tro das atenções. SeGraciete Seco, de 74

anos, começa a cum-primentartodaagen-te, Acilda Gomes daSilva, de 82 anos, se-

gue-a com um sorri-

so. É dia de festa e de recordações no

povoado Calcolítico de Vila Nova deSão Pedro, no concelho da Azambuja,e entre os anfitriões estão estas duas

amigas. "Já sou uma peça de museu",diz animada Graciete Seco. Afinal, as

duas participaram em antigas esca-

vações arqueológicas naquele lugare guardam a memória de dias cheiosde vida. Agora, depois de muitas dé-cadas de esquecimento, os trabalhosneste sítio chamado Castro recome-

çaram e por lã estão arqueólogos,alunos de Arqueologia, crianças doconcelho da Azambuja e habitanteslocais muito curiosos.

Este é o culminar de três semanasno terreno do projecto "Vila Nova deSão Pedro, de novo - no 3.° milénio".Cerca de 12 alunos da Faculdade deLetras da Universidade de Lisboa, e

arqueólogos fizeram trabalhos de lim-

peza para deixar a descoberto estru-turas encontradas nas antigas esca-

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vações. "Como as escavações foramfeitas com uma metodologia que nãoé a actual, procurámos ver quais oslocais para serem reescavados", ex-

plica José Arnaud, presidente da As-

sociação dos Arqueólogos Portugue-ses (AAP) e um dos coordenadores do

projecto com Mariana Diniz, AndreaMartins e César Neves, do Centro de

Arqueologia da Universidade de Lis-boa. "E procurámos encontrar umaterceira linha de muralhas [há três li-nhas principais], através de uma par-te que nunca tinha sido desmatada."

A ocupação do sítio remonta ao fi-nal do Neolítico (cerca de 3500 a.C.)e foi habitado no Calcolítico, ou Ida-de do Cobre, período entre há cercade 3500 a.C. e 2200 a.C. "Vila Novade São Pedro foi o primeiro povo-ado deste tipo a ser identificado eescavado em larga escala no territó-rio português", lê-se no livro Museu

Arqueológico do Carmo - Roteiro da

Exposição Permanente, da AAP.Mas é ainda o início do projecto. E

um dos impulsos foram as 1200 pe-ças expostas no Museu Arqueológi-co do Carmo, em Lisboa, durante as

31 campanhas de escavações, entre1937 e 1967, dirigidas pelo militar e

arqueólogo Afonso do Paço (da AAP)e os seus colaboradores, segundo Jo-sé Arnaud. "Como essas campanhasforam há muito tempo, pretendemosfazer uma reanálise deste sítio arque-ológico, que é muito importante noâmbito da Pré-História em Portugal",diz o arqueólogo. "Por outro lado,procuramos estabelecer uma pon-te entre as colecções que temos nomuseu e o próprio sítio."

31é o número de campanhasarqueológicas realizadas aolongo de 30 anos, entre 1937 e1967, no sítio arqueológico de VilaNova de São Pedro (na Azambuja),do período Calcolítico

População nas escavaçõesMariana Diniz acrescenta que há per-guntas que têm de ser respondidas:"De que forma é que as muralhasforam construídas?" Além da par-te científica, é preciso preservar osítio (classificado como Monumen-to Nacional em 1971), por exemplolimpando-o, para que possa ser vi-sitado. "O sítio é uma celebridadee tem impacto não só na freguesia[Vila Nova de São Pedro], mas tam-bém em muita gente que já nem estáem Portugal e que o visita. O estadode esquecimento em que estava eramotivo de tristeza para uns e de in-

dignação para outros."Graciete Seco e Acilda Gomes da

Silva voltaram agora ao Castro, masisso não é prática comum como ou-trora. Há muito que o Castro tem sido

condenado ao mato. Desde 1986, nu-ma escavação do arqueólogo Victor

Gonçalves, que não havia trabalhos

arqueológicos. "Era uma festa quan-do vínhamos. Não calhava a todos",diz com voz calma Acilda Gomes daSilva sobre as escavações em que par-ticipou em 1951 e 1952.

Tudo começou nos anos 3190,quando um agricultor, avô dos pro-prietários actuais, lavrava o campo e

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encontrou peças que lhe pareceramimportantes. Mostrou-as à AAP, quepediu a um erudito local, HipólitoCabaço, para ver o potencial do sí-

tio, conta-nos José Arnaud. Logo em1936, Hipólito Cabaço fez a primeiracampanha no sítio. E um ano depoiscomeçaram as escavações de Afonsodo Paço. Durante um mês, entre as

ceifas (de Junho a Julho) e as vindi-mas (em Setembro) 30 habitanteslocais iam para as escavações.

"Todos gostavam de vir porquenão havia outro trabalho. Isto erauma paródia", recorda Acilda Gomesda Silva, enquanto observa este diaaberto do recente projecto a toda a

gente. José Arnaud, que mostra o sí-

tio a quem chega, explica-nos que

esses trabalhos foram pagos pelo Ins-tituto de Alta Cultura e pela DirecçãoGeral dos Monumentos e EdifíciosNacionais (DGEMN), que financia-vam as despesas dos arqueólogos, e

pelo Comissariado do Desemprego,que assegurava os salários aos tra-balhadores locais. A partir de 1943,todas as despesas passaram a ser pa-gas pela DGEMN.

Entretanto, Acilda Gomes da Silva

pede-nos para a seguirmos até ao re-cinto no interior da primeira linha demuralha. Antes de entrarmos, párae apela à sua memória: "Havia umaslinhas de ferro onde trabalhavam as

vagonetas. Uma trazia terra e outratrazia pedra. Depois havia um cru-zamento." Graciete Seco também a

segue. Também participou nas es-

cavações em 1961 e faz questão dedizer que ambas moram em Torrede Penalva, um lugar que pertencea Vila Nova de São Pedro. "Vê-se da-

qui!", aponta. E conta que, na altura,Afonso do Paço estava instalado emcasa de familiares seus.

0 que se destaca desses trabalhos?"Terem identificado este recinto cen-tral muralhado", considera MarianaDiniz. É designado como "primeiralinha de muralhas" e tem uma sériede torres à volta. Para Afonso do Pa-

ço, as habitações estariam no exte-

rior da primeira linha. "Enfim, masas descrições que faz não são com-pletamente claras."

E foram descobertos vários silos,ossos de animais, pontas de setas,

machados, artefactos de cobre ouplacas de cerâmica, que estão noMuseu Arqueológico do Carmo. "Emconclusão, a grande abundância evariedade de artefactos e restos dealimentos encontrados nesta fortifi-

cação mostram que foi construída ehabitada por pequenas comunida-des", refere o livro da AAP.

Graciete Seco diz que o único ob-

jecto que encontrou foi um chifre de

boi, que acabou por não ter valor ar-

queológico. Já Acilda Gomes da Silvafez algumas descobertas. E tinha umafunção bem específica. O seu lugarera a peneirar a terra. "O crivo erauma rede e tinha dois braços compri-dos. Estava uma pessoa de lá e outrade cá e fazíamos aquele movimen-to para a terra cair." E balanceia-se.

"Depois escolhíamos tudo o que fica-

va no crivo. Encontravam-se contascomo se fossem de um colar, agulhasem osso, bocadinhos de cobre, mui-tas setas ou dentes", conta como se

estivesse a fazer um relatório. "Quan-do se encontrava alguma coisa erauma festa", diz esbracejando.

Finalmente, depois de poucosmetros (e muitas recordações), en-tramos no recinto. Acilda Gomes daSilva parece estar em casa e até andacom um passo mais apressado pelorecinto. "Aqui descobriu-se uma tu-lha com trigo queimado", desvenda,como se este fosse o seu tesouro.

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O arqueólogoPedro Curafez uma foicecom madeiradezambujeiroe lâminasde sílex,que coloucom cerade abelha.Ao lado, aescavaçãoe, em baixo,Acilda Gomesda Silva eGraciete Seco,habitanteslocais

0 sítio é umacelebridade e temImpacto na freguesia[Vila Nova de São

Pedro] e tambémem multa genteque já nem está emPortugaleovlslta

Mariana DinizArqueóloga

Uma ceifa calcolíticaO cultivo de cereais era uma práticas-das sociedades calcolíticas, assim co-

mo a criação de animais e o cultivo delinho. E também isso ganhou vida noCastro. Sentado em cima de pele de

vaca e rodeado de peles de raposa e

coelho, o arqueólogo Pedro Cura fazuma foice de zambujeiro, sílex e cerade abelha. "Tentamos reproduzir os

processos [daPré-História]", explicasobre o seu trabalho em arqueologiaexperimental. "Transformamos as

matérias-primas em instrumentos.Ou seja, de instrumentos que encon-tramos nas escavações recuperamosinformação que não conseguimos en-contrar no registo arqueológico."

À sua volta estão várias crianças."Os pré-históricos gostavam muito de

pintar e faziam tudo desde o início",diz ao grupo. E com os dedos pintanuma placa de cisto. "Qual é a van-

tagem da arqueologia experimental?Os objectos podem ser manuseados

por todos. Os museus são muito boni-

tos, mas muito chatos para as crian-

ças", diz ao PÚBLICO.

E a hora da ceifa chega. Mas é

preciso ir (de carro) até Maçussa,também no concelho da Azambuja.Passou-se por Manique do Intenden-te, onde em tempos Pina Manique,intendente da polícia do Marquês de

Pombal, começou a construção deum palácio (que ficou incompleto) ede uma igreja. Chegados ao campode trigo, há 50 metros quadrados re-servados para uma ceifa que tambémse terá feito há 5000 anos.

Anda-se pela terra já ceifada sob osol das 16h da Lezíria do Tejo e PedroCura abre um pano com duas foices,uma em que a lâmina é colada comcera de abelha e a outra com resina.Escolhe a de cera de abelha porquecorta melhor. E ceifa molhos de trigoque depois ata com baraço. Já treinaeste gesto há dois anos, para que sejaidêntico ao do Calcolítico. "O gestotem de estar automatizado. Quemceifava aqui no Calcolítico sabia bemo que fazia, fazia-o desde criança."

Este terreno na Maçussa com qua-tro hectares é do agricultor Adolfo

Henriques. "É o trigo barbela, queé bastante antigo", descreve o agri-

cultor, que está presente nesta ceifa.

"Depois começaram a aparecer os tri-

gos modificados e mais produtivos",explica, acrescentando, porém, queeste é mais ecológico e nutritivo. Estefoi o seu primeiro ano de cultivo do

trigo barbela, que praticamente não é

semeado. "É um trigo que nos dá pelabarba", brinca. Vê Pedro Cura a cei-far e diz que as pessoas antes usavamdedeiras para se proteger. Agora, écolhido já com uma ceifeira-debulha-dora moderna. Este ano vai cultivarmais dez hectares de trigo barbela.

A seguir à ceifa, Pedro Cura, noâmbito do "Vila Nova de São Pedro,de novo - no 3.° milénio", já tem pla-nos para continuar o estudo das foi-ces do Calcolítico. "Vamos olhar paraa colecção de Vila Nova de São Pedro[do Museu do Carmo] e seleccionaros elementos idênticos àquelas pe-quenas lâminas [de sílex]", explicao arqueólogo, que salienta que estasfoices foram construídas com basena colecção do museu. As peças doCalcolítico do museu e as do século

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XXI vão ser comparadas ao micros-cópio electrónico na Universidadede Trento (Itália), para se perceberexactamente para o que serviam. "A

grande vantagem nestes sistemas é

que cada matéria-prima que as las-

cas de sílex tocam, deixam um traçodiferente: se tocaram na carne é um

traço específico, se trabalharam noosso é outro."

Um itinerário por três sítiosJá há ideias para o projecto depoisdestas três semanas. "Vamos tra-balhar com colegas de outras áre-

as, desde a prospecção geofísicaaté perfurações geológicas", indicaMariana Diniz. "Um dos objectivosé também canalizar parte dos 250mil visitantes do Museu do Carmo atécá." José Arnaud aponta outro passoa seguir: "Vai ter de se estudar a for-

ma de proteger o sítio arqueológico,sobretudo nas zonas mais sensíveis,e por outro lado, elaborar um planode reordenamento."

Um itinerário pelas três freguesias

(da União de Freguesias Manique do

Intendente, Vila Nova de São Pedroe Maçussa), que têm 2500 habitan-tes, será algo a concretizar para JoséArnaud. O poder local passou pelosítio arqueológico. 0 presidente daCâmara Municipal da Azambuja,Luís Sousa, frisou o protocolo quea câmara fez com os proprietários,em que irá pagar uma renda mensal,para que o sítio seja estudado. Dizque em Agosto se vai "sentar à me-sa" com os responsáveis do projectoarqueológico.

Entre tantos que apareceram, Mar-celina Silva, de 73 anos, e Delfina Sil-

va, de 68, também não quiseram fal-tar à festa. "Foi uma amiga que medisse há pouco: 'Já foste ao 'Castelo?'"E Delfina Silva, que mora ali perto,meteu o caminho às costas e cá está.

0 Castelo é o Castro para os habitan-tes locais. "Castros já são os sítios daIdade do Ferro também com mura-lhas circulares e casas de habitaçãocirculares", explica Mariana Diniz."Para Afonso do Paço, nos anos 40,

um sítio com muralhas e com o queele considerava serem casas circula-

res e com o carácter defensivo acabou

por designá-lo Castro." Mas na cartamilitar e na gíria continua a ser Caste-lo. Para Mariana Diniz e os restantes

coordenadores, este nome tambémé mais do seu agrado, refere a sorrir.

"Queremos voltar mesmo ao ter-ceiro milénio a.C. e restaurar essa vi-

vacidade", sugere a arqueóloga. "0terceiro milénio é um momento de

esplendor cultural na bacia do Me-diterrâneo. Aqui somos, de algumaforma, uma periferia da bacia do Me-diterrâneo." Graciete Seco e Acildada Silva Gomes sempre foram con-

tagiadas pela vivacidade de outrostempos. A primeira continuou a lerlivros de arqueologia. E a segunda a

mostrar o sítio a quem o queria ver.Afinal, como diz de outros tempos:"Foi maravilhoso!" Esperam agoraque o venha a ser de novo.

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