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1 PPSA, A ESTATAL ENDÓGENA DO PRÉ-SAL: CINCO CONTROVÉRSIAS E UM QUADRO GERAL 1 José Vicente Santos de Mendonça 2 Alex Vasconcellos Prisco 3 Artigo publicado na Revista de Direito Público da Economia RDPE 39 (julho/setembro 2012) Resumo: O artigo, após problematizar o encaixe da Pré-Sal Petróleo S.A. dentro da tradição brasileira de estudo das empresas estatais, apresenta cinco polêmicas envolvendo a empresa. Questiona-se os limites de sua atuação vis- à-vis o interesse público, os limites de seu poder de controle nos consórcios do pré-sal, sua pretensa irresponsabilidade absoluta, seu papel diante da União e se exerce função empresarial ou regulatória. Ao final, são propostos alguns guias para a resolução de possíveis conflitos de atribuições com outras entidades atuantes no setor petrolífero. Palavras-chave: Pré-sal. Pré-Sal Petróleo S.A. Regulação petrolífera. Estatais. Título em inglês: PPSA, the public-owned enterprise of the pre-salt area: five pressing issues and a general table of functions. 1 Partes deste texto representam versão ampliada da palestra proferida pelo primeiro autor no I Seminário Brasileiro do Pré-Sal, que ocorreu em Brasília, em 2010, sob a chancela da Advocacia-Geral da União, do Ministério de Minas e Energia e da Universidade de Brasília. Alguns trechos do item III foram elaborados após sua participação no II Seminário Brasileiro do Pré-Sal. O primeiro autor agradece o convite para participação nos eventos aos colegas de advocacia pública Fabriccio Steindorfer e Walter Baere e ao colega de docência superior Gustavo Kaercher Loureiro. 2 Doutor em Direito Público (UERJ). Professor permanente de Direito Regulatório do Programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Universidade Gama Filho (RJ). Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro ([email protected]). 3 Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento (UCAM). Professor contratado de regulação da indústria do petróleo na Pós-Graduação (lato sensu) em Direito da Energia, Petróleo e Gás da AVM Faculdades Integradas, conveniada à UCAM. Advogado no Rio de Janeiro ([email protected]).

PPSA, A ESTATAL ENDÓGENA DO PRÉ-SAL: CINCO …pod.adv.br/artigos/artigo_PPSA_e_PB (setembro_2012).pdf · Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA)”, incumbida de gerir

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PPSA, A ESTATAL ENDÓGENA DO PRÉ-SAL: CINCO CONTROVÉRSIAS E

UM QUADRO GERAL1

José Vicente Santos de Mendonça2

Alex Vasconcellos Prisco3

Artigo publicado na Revista de Direito Público da Economia – RDPE 39

(julho/setembro 2012)

Resumo: O artigo, após problematizar o encaixe da Pré-Sal Petróleo S.A.

dentro da tradição brasileira de estudo das empresas estatais, apresenta cinco

polêmicas envolvendo a empresa. Questiona-se os limites de sua atuação vis-

à-vis o interesse público, os limites de seu poder de controle nos consórcios do

pré-sal, sua pretensa irresponsabilidade absoluta, seu papel diante da União e

se exerce função empresarial ou regulatória. Ao final, são propostos alguns

guias para a resolução de possíveis conflitos de atribuições com outras

entidades atuantes no setor petrolífero.

Palavras-chave: Pré-sal. Pré-Sal Petróleo S.A. Regulação petrolífera. Estatais.

Título em inglês: PPSA, the public-owned enterprise of the pre-salt area: five

pressing issues and a general table of functions.

1 Partes deste texto representam versão ampliada da palestra proferida pelo primeiro autor no I

Seminário Brasileiro do Pré-Sal, que ocorreu em Brasília, em 2010, sob a chancela da Advocacia-Geral da União, do Ministério de Minas e Energia e da Universidade de Brasília. Alguns trechos do item III foram elaborados após sua participação no II Seminário Brasileiro do Pré-Sal. O primeiro autor agradece o convite para participação nos eventos aos colegas de advocacia pública Fabriccio Steindorfer e Walter Baere e ao colega de docência superior Gustavo Kaercher Loureiro.

2 Doutor em Direito Público (UERJ). Professor permanente de Direito Regulatório do Programa

de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Universidade Gama Filho (RJ). Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro ([email protected]).

3 Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento (UCAM). Professor contratado de regulação

da indústria do petróleo na Pós-Graduação (lato sensu) em Direito da Energia, Petróleo e Gás da AVM Faculdades Integradas, conveniada à UCAM. Advogado no Rio de Janeiro ([email protected]).

2

Abstract: This paper tries to tune in the newly-created Pré-Sal Petróleo S.A.

with brazilian established tradiction of public-owned enterprises. After that, the

study focus on five arising issues concerning Pré-Sal Petróleo S.A.: its limits of

operation; its power amongst joint-ventures that will be created to operate E&P

on pre-salt areas; its civil liability; its relationship to Federal Government; and if

it is just an enterprise or if it has some regulatory power. The article also

proposes some guidelines intended to prevent positive conflict of functions

concerning players in the oil and gas field.

Keywords: Pre-salt. Pré-Salt Petróleo S.A. Oil and gas regulation. Public

enterprises.

SUMÁRIO: I. Introdução. II. Por que a PPSA é uma estatal? Por que a PPSA é

uma empresa pública? III. PPSA, a estatal endógena do pré-sal. IV. Cinco

controvérsias a respeito da entidade. IV.1 - A PPSA e o lucro. O sentido da

busca do interesse público pela PPSA. IV.2 - Poder de controle da PPSA: o

que é e como perder o medo. IV.3 - Gestão irresponsável: será mesmo que a

PPSA não responde por nada? IV.4 - A PPSA e a União: escritório da União ou

empresa pública? IV.5 - PPSA: empresa pública reguladora? V. Interação entre

PPSA, Petrobras, ANP, CNPE e MME: alguns pontos a respeito de possíveis

conflitos. Quadro geral de atribuições típicas. VI. Síntese objetiva.

I - Introdução

Depois de mais de mais de dez anos com quadro legislativo estável - a

Lei do Petróleo é de 1997 -, o Direito do Petróleo no Brasil nunca mais será o

mesmo. A detecção de inéditas perspectivas de produção na área geológica do

pré-sal, tornada pública em 2007, motivou a criação de novo marco regulatório

para a área.

Em função disso, até agora, introduziu-se, por intermédio de leis

federais, um modelo contratual - o contrato de partilha de produção, para a

exploração e produção nas localidades; um fundo, a ser constituído com

recursos federais originários do aproveitamento econômico das áreas do pré-

3

sal, destinado a objetivos sociais (o Fundo Social); a autorização para a criação

de estatal, denominada “Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e

Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA)”, incumbida de gerir tanto os

contratos de partilha quanto os contratos da União para a comercialização de

petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos.4

Este texto não se ocupa nem da partilha de produção nem do Fundo

Social. Seu objeto é a PPSA, e, de modo específico, as cinco grandes

polêmicas até agora levantadas a respeito de sua atuação. Também

analisaremos possíveis interações entre a PPSA e outras entidades, públicas

ou privadas, atuantes na área do petróleo.

Em termos estruturais, o artigo se divide, afora esta introdução, numa

discussão a respeito da escolha da natureza de estatal e da forma de empresa

pública para a PPSA e do que isso revela a respeito das opções políticas aí

influentes (item II). Logo após, apresenta-se novidade: a existência de estatais

endógenas - empresas públicas e economias mistas que, longe de intervirem

concorrencialmente na economia, operarem monopólio ou prestarem serviços

públicos, atuam prestando serviços para a Administração (item III). A PPSA

seria exemplo de estatal endógena. O próximo item (IV) trata de algumas das

principais controvérsias já levantadas a respeito da empresa. O item V comenta

possíveis controvérsias entre os atores atuantes na dinâmica da exploração do

pré-sal e traz quadro indicativo das atribuições típicas das entidades. O item VI

enumera as propostas do estudo na forma de enunciados.

II - Por que a PPSA é uma estatal? Por que a PPSA é uma empresa

pública?

Antes de encaminharmos respostas às perguntas do título, façamos dois

questionamentos preliminares.

4 Até o momento (julho de 2012), o marco regulatório do pré-sal compõe-se de três leis federais

aprovadas em 2010. A lei federal n. 12.276, de 30 de junho, trata da chamada cessão onerosa: a União cedeu onerosamente à Petrobras o direito à pesquisa e lavra em áreas do pré-sal não concedidas. A lei federal n. 12.304, de 2 de agosto, autorizou o Poder Executivo federal a criar a PPSA. Por sua vez, a lei federal n. 12.351, de 22 de dezembro de 2010, além de criar o Fundo Social, estabeleceu o regime contratual da partilha de produção.

4

(i) Por que são criadas empresas públicas e sociedades de economia

mista - "estatais" - no lugar de órgãos, autarquias, fundações?

(ii) Por que se escolhe a forma empresa pública, ou a forma sociedade

de economia mista, ao momento de se autorizar a criação de entidade

empresarial da Administração Pública Indireta?

Para a (i) primeira pergunta, há duas respostas. Constitui-se estatal

porque só por intermédio da criação de empresa é que se poderá concorrer,

em igualdade de condições, com as empresas privadas. Trata-se da hipótese

da intervenção concorrencial do Estado na economia (art. 173, caput, CRFB-

88). Uma autarquia, porque não possui bens penhoráveis, inscreve seus

devedores em dívida ativa, e também porque precisa contratar bens e serviços

por meio de licitações, conta com vantagens e desvantagens em relação às

empresas privadas não pertencentes à Administração. Assim, o mais justo, e a

única circunstância constitucionalmente admissível5, é que sejam constituídas

como empresas privadas, tão iguais quanto possível às suas concorrentes.

Trata-se, então, da constituição de estatais graças ao dever de isonomia

concorrencial.

No entanto, desde muito tempo tal razão revela apenas parte das

motivações na criação destas entidades. Há tempos, constituem-se estatais

que não concorrem com empresas privadas, mas prestam serviços públicos à

população6. A doutrina tradicional estabeleceu distinção entre o regime jurídico

das estatais "prestadoras de serviços públicos" e das estatais "concorrenciais",

e a diferença reside na intensidade das regras de Direito Público aplicáveis às

5 Art. 173, par. 1º, CRFB-88 - A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da

sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...) II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários (...). Par. 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado. (Destaque acrescentado.)

6 É preciso lembrar que, no modelo clássico, não existe estímulo à concorrência entre

prestadoras de serviços públicos. Ou os serviços públicos são tidos como monopólios naturais, ou a concorrência em sua prestação é vista como indesejável e arriscada.

5

primeiras (maior) e às segundas (menor, no limite do indispensável à

preservação de certos propósitos de accountability).

Daí a perplexidade: se estatais prestadoras de serviços públicos não

estão vocacionadas à concorrência, por que elas são, afinal, estatais, e não

órgãos públicos ou autarquias? Nada em suas funções exigiria a roupagem de

Direito Privado. Como explicar?

Simples: o regime privado das estatais também é adotado como

estratégia para se fugir às amarras do regime de Direito Público. Os controles

tradicionais da Administração Pública são, por vezes, asfixiantes. Daí, opta-se

pela adoção da forma privada como estratégia para evitar sua incidência,

assegurando a esses organismos do Estado maior flexibilidade de ação.7

Esse segundo propósito tem a ver com o primeiro - é também porque se

evita o controle clássico que as estatais concorrenciais podem aspirar à

isonomia em relação às empresas privadas -, mas ambos são independentes.

A dificuldade desse propósito é que, por vezes, pretende-se afastar as

exigências administrativas com a finalidade de não se submeter a qualquer

controle, e, como reação, há entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que

fazem retornar às estatais muitas das amarras do regime público. Ou seja: em

alguns casos, o propósito se desvirtua em finalidade não-republicana, e, diante

disso, as entidades controladoras buscam torná-lo inócuo. Por vezes, portanto,

percorre-se legítima viagem redonda, em que se foge de um controle apenas

para encontrá-lo dali a dois passos.

7 LAMY FILHO, Alfredo. O Estado Empresário. In DIREITO, Carlos Alberto Menezes (org.).

Estudos em Homenagem ao Prof. Caio Tácito. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 44. No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso: “A opção legal pela personalidade de direito privado de entes econômicos estatais é um recurso técnico de repúdio aos sistemas tradicionais da administração pública, de forma a propiciar-lhes agilidade funcional, elidindo o formalismo da administração pública direta.” (BARROSO, Luís Roberto. Regime jurídico das empresas estatais. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. 242. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 86). Ainda, MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. As contratações estratégicas das estatais que competem no mercado. In: OSÓRIO, Fábio Medina; SOUTO, Marcos Juruena Villela (Orgs.). Direito Administrativo: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 577-578.

6

Dito isso, voltemos nossos olhos à PPSA. Indaga-se: o exercício de seu

objeto social - a gestão dos contratos de partilha de produção e dos contratos

de comercialização de petróleo e gás da parte que cabe à União8 - existe num

ambiente de concorrência? Certamente não9. Assim, não foi por essa razão

que se criou a PPSA como estatal. Resta a segunda razão.

De fato: ela foi criada como estatal porque se imaginou que o figurino

privado poderia incrementar sua eficiência, principalmente ao permitir que

escapasse à plena incidência das constrições do regime jurídico-administrativo

típico.

Num exemplo: estatais não-dependentes, como a PPSA provavelmente

o será10, não estão submetidas ao teto remuneratório do serviço público.11

Portanto, a PPSA poderá atrair dirigentes com pacotes remuneratórios

competitivos, e apresentar alguma resistência de seu pessoal concursado

diante de propostas da iniciativa privada. Se a PPSA fosse autarquia12, nada

8 Art. 2º, caput, da lei federal nº 12.304/2010.

9 As atividades econômicas de gestão dos contratos de partilha e de comercialização do

petróleo pertencente à União estão inseridas num espaço fechado à iniciativa privada, cabendo à PPSA explorar esses mercados com exclusividade. Na verdade, tem-se que tanto a gestão contratual da partilha como a comercialização da parte do óleo da União são submercados da indústria do petróleo, derivações de segmentos da cadeia econômica petrolífera que estão monopolizados pela CFRB-88 (art. 177). Nesse monopólio, como se sabe, é facultado à União, mediante lei, contratar a realização de tais atividades petrolíferas com empresas privadas ou estatais, podendo ainda atribuir ou não a elas exclusividade no desempenho das empresas (art. 177, § 1º, CRFB-88).

10 Especula-se que a PPSA terá estrutura física e de pessoal enxuta, o que tornará reduzidas

suas despesas de custeio, ao passo que seus ingressos pecuniários são praticamente certos, à luz da venda do óleo da parte da União. De um lado, custos baixos; de outro, segurança nos recebimentos. É boa a aposta de que teremos uma estatal não-dependente de aportes do orçamento federal.

11 Art. 37, par. 9º da CRFB-88.

12 A ideia de “autarquização” da PPSA chegou a ser cogitada durante o processo legislativo

que autorizou sua criação. A Emenda nº 1 de 2010/CCJ ao PLC nº 309, de 2009, de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), tencionava transformar a PPSA numa “autarquia especial”, sob a justificativa de que a referida empresa não se consubstanciaria num “empreendimento executivo de ação”, ou seja, não desempenharia “atividade fim” de prospecção, exploração, distribuição ou comercialização de petróleo e seus derivados; tampouco seria uma “operadora dos resultados destas atividades citadas dentro do mercado mobiliário”. Sua principal característica como entidade pública seria a de uma “empresa típica de representação, análise, regulação e gestão dos contratos entre o Poder Público e empresas públicas e privadas, notadamente com a preferência pela estatal Petrobras S.A., que, efetivamente, fará as

7

disso ocorreria: a entidade estaria inexoravelmente limitada ao teto do serviço

público federal.

É claro que tal insubmissão não poderá ser absoluta, tanto mais que a

razão da criação da PPSA como estatal não é ontológica (ela não depende da

forma privada para exercer suas funções, tal como o depende, por exemplo, a

Petrobras; seu ambiente de atuação não é, em grande parte, inerentemente

concorrencial), mas é, na verdade, uma comodidade operacional.

Há, ainda, a outra pergunta. (ii) Por que a forma de empresa pública?

Por que não a forma de sociedade de economia mista?

Durante algum tempo se pensou que havia critério jurídico para tal

escolha. Partindo-se de bipartição de atividades que está, como vimos, ela

própria superada, dizia-se que as economias mistas, à conta da participação do

capital privado, deveriam ser constituídas, preferencialmente, para o exercício

da intervenção direta concorrencial; as empresas públicas, para a prestação de

serviços públicos.13

Hoje, tal referência está ultrapassada. Não há critério jurídico para a

escolha. A distinção é política.14 O propósito de maior intensidade da

intervenção do Estado justifica a constituição de empresa pública; a

necessidade ou o interesse do aporte de capital privado, e/ou o interesse em

menores graus de intervenção estatal, levam à criação de sociedade de

economia mista.

Logo, a opção pela forma jurídica de empresa pública da PPSA afirma

que o Estado brasileiro, por seu Executivo e Legislativo federais, identificaram

atividades fins - executivas e econômicas de exploração do pré-sal”. (Disponível em: www.senado.gov.br/. Acesso em: 24/01/2012).

13 PAIVA, Alfredo de Almeida. As sociedades de economia mista e as empresas públicas como

instrumentos jurídicos a serviço do Estado. In: Revista de Direito Administrativo. Seleção histórica. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. p. 307-320, aqui, p. 319

14 “Fica a critério do ente criador a forma de que se revestirá a criatura, uma vez que inexistem regras a respeito.” MUNIZ, Alvaro A. Caminha. A empresa pública no Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas S.A., 1972. p. 24-25.

8

a necessidade de maior intervenção pública na gestão dos contratos de partilha

e na comercialização do óleo da União.15 Afirma, também, que para o

desempenho de tais atividades não foi reputado necessário ou interessante o

ingresso de recursos privados.

III - PPSA, a estatal endógena do pré-sal

Retomemos o mito fundador do estudo das estatais no Brasil. Diz ele o

seguinte: há duas espécies delas, as que concorrem na iniciativa privada e as

que prestam serviços públicos. As características de seu regime jurídico

mudariam a partir daí. Embora esta classificação possua utilidade, ela

simplifica em excesso.

Os problemas são de duas ordens: (a) não importa, à identificação do

regime jurídico, a categorização estanque da empresa, mas a atividade que ela

esteja de fato exercendo naquele momento; (b) não existem apenas duas

espécies de estatais.

(a) O que interessa é a atividade desempenhada pela empresa. O

regime jurídico se procura a partir da atividade desempenhada em dado

momento, e não a partir de enquadramento idealizado como “prestadora de

serviço público” ou como “atuante na intervenção econômica direta.”

Atualmente é comum encontrar estatais que prestam serviços públicos e atuam

concorrencialmente. A separação nunca foi estanque16, mas a freqüência de

15

O marco regulatório do pré-sal representa o "retorno do pêndulo", que oscila entre maiores e menores graus de intervenção do Estado na economia, à posição próxima ao Estado. Trata-se de decisão política que não implica, em si mesma, qualquer grau de inconstitucionalidade. Para a expressão entre aspas, cf. TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. Temas de Direito Público (estudos e pareceres), 1º volume. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 721-733.

16 Afirmando que a classificação entre estatais que atuam na intervenção econômica em sentido estrito e as que prestam serviço público toma por base tipos ideais (na terminologia weberiana), e que dificilmente encontraremos empresa que desempenhe exclusivamente uma dessas duas atividades, v. GRAU, Eros Roberto. Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Vol. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho/setembro de 1984. p. 35-59, aqui p. 47.

9

situações híbridas parece convidar à superação da dicotomia.17 Contudo, a

dicotomia precisa ser superada ainda por outra razão.

(b) Não se pode limitar as funções das estatais a duas finalidades. Pode-

se afirmar que há estatais que desempenham funções públicas. Tais funções

dizem respeito, por exemplo, a atividades administrativas e burocráticas. É dizer:

as estatais, além de intervir diretamente na economia e de prestar serviços

públicos, também podem exercer atividades administrativas e prestar serviços ao

Estado.

A propósito dessa terceira espécie-tipo de estatal, leia-se os dois trechos a

seguir:

Adicionalmente aos processos de privatização, outra relevante alteração no papel das empresas estatais vem sendo verificada ultimamente. Tal alteração concerne à constante e crescente utilização da forma societária para a constituição de entidades exercentes de funções públicas, anteriormente exercidas exclusivamente por órgãos da Administração direta ou por autarquias.

18

Rigorosamente, seria possível (e necessário) reconhecer uma terceira espécie de entidade. Seria aquela composta por sujeitos cuja função consiste em prestar apoio à Administração Pública. Nesse caso, a entidade não atua no mercado nem presta serviços fora do âmbito estatal, mas dá suporte à atividades administrativas. Nessa categoria poderiam ser incluídas as entidades encarregadas de processamento de dados, impressão e planejamento e assim por diante.

19

A PPSA é dessas estatais. É empresa que presta apoio à Administração

Direta - vai gerir os contratos de partilha e de comercialização de óleo para a

União. Não concorre num mercado aberto a entes privados nem presta

serviços públicos à população. É uma estatal endógena. A compreensão de

seu regime jurídico deve partir daí. Administrar contratos firmados pela União é

atividade usualmente atribuída à administração direta. Escolheu-se a forma de

empresa pública na busca das liberdades do regime privado. Na condição de

17

JUSTEN FILHO, Marçal. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre “serviço público” e “atividade econômica”. In: Revista de Direito do Estado. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. pp. 119-135, aqui, p. 135.

18 SCHIRATO, Vítor Rhein. Novas anotações sobre as empresas estatais. In: Revista de Direito

Administrativo. Vol. 239. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 210. O destaque foi acrescentado.

19 JUSTEN FILHO, Marçal. O regime jurídico das empresas estatais e a distinção entre “serviço

público” e “atividade econômica”. In: Revista de Direito do Estado. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. pp. 119-135, aqui, p. 124. Destaque acrescentado.

10

gestora exclusiva, está próxima ao exercício de poderes públicos - mas não

presta serviço público. É empresa privada, o que a remete à busca do lucro20 e

à assunção de risco - mas, por determinação legal, não explora, produz ou

comercializa; ou seja: está proibida de exercer as atividades econômicas que,

na indústria do petróleo, mais tipicamente representam lucro e risco.21-22 É

empresa privada que, tal qual escritório de advocacia contratado por município

que não disponha de advogados, possui a missão (legal) de "defender os

interesses da União", aqui, no caso, nos comitês operacionais dos consórcios

formados para a exploração do pré-sal. É, para este assunto, a única

representante - privada - do mais importante ente público do país.23 Ao mesmo

tempo, exerce atividades realmente típicas de empresas privadas, tais como a

avaliação de projetos e o monitoramento de custos.

IV - Cinco controvérsias a respeito da entidade

Dito isso, passemos em revista cinco pontos que representam

perplexidades que cercam a figura da PPSA, estatal atípica de regime

incomum. É bem verdade que as estatais, no Brasil, nunca seguiram caminhos

retilíneos24, mas a PPSA representa ponto fora de uma curva já acidentada.

20

Art. 2º da Lei federal n. 6.404/76: Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. V., ainda, art. 966 do Código Civil de 2002.

21 Art. 2º, parágrafo único, da lei federal n. 12.304/2010: A PPSA não será responsável pela execução, direta ou indireta, das atividades de exploração, desenvolvimento, produção e comercialização de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos.

22 Segundo a dicção legal, a PPSA apenas celebra, em nome da União, e administra o contrato

de comercialização do óleo-proveito desta, a ser celebrado possivelmente com a Petrobras (conforme dispensa de licitação contida no art. 45, par. único, da lei federal n. 12.351/2010). Quer dizer: a PPSA celebra e fiscaliza, mas quem exerce a atividade econômica, que neste caso é a venda do óleo, é a Petrobras.

23 Art. 4o Compete à PPSA: (...) b) defender os interesses da União nos comitês operacionais

(...).

24 “Na verdade, a empresa pública (lato sensu) não é fruto de uma idealização racional e jurídica da doutrina. Ela é produto das necessidades políticas e econômicas, e ainda, de outro lado, resultado, pura e simplesmente, da prática administrativa (em grande parte empírica) relativa ao Estado contemporâneo.” MUKAI, Toshio. O Direito Administrativo e os regimes jurídicos das empresas estatais. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 155.

11

IV.1 - A PPSA e o lucro. O sentido da busca do interesse público pela

PPSA

A PPSA persegue o interesse público secundário, não o interesse

primário.25 Trata-se de estatal voltada ao lucro.26 Seu objeto social imediato,

estabelecido em lei, é o de realizar a gestão dos contratos de partilha e de

comercialização de petróleo da parte da União27; seu propósito econômico (ou

objeto social mediato) é o de maximizar o óleo-lucro da União (na partilha, a

remuneração dos contratados, via apropriação do óleo, só é feita após a

recuperação dos custos das empresas contratadas, também por apropriação

do hidrocarboneto); já sua finalidade político-administrativa é a de

desconcentrar poder das mãos da Petrobras mercê da criação de ator de

equilíbrio nas relações institucionais públicas da indústria do petróleo.

É a partir deste pano de fundo que devem decorrer as propostas

interpretativas relativas à PPSA. O que a PPSA não pode fazer é ir contra o

interesse público primário, mas não há nada, na lei ou no sentido de sua

criação, que a obrigue a perseguir o interesse da coletividade a despeito de

seu interesse patrimonial. Por exemplo: ela não está juridicamente obrigada a

apoiar plano de exploração que seja ambientalmente mais adequado, em

desfavor de seu interesse patrimonial, se houver plano ambientalmente correto

25

Dos anos noventa em diante, a partir de Santi Romano, e, depois, Renato Alessi, forte na popularização feita por Celso Antônio Bandeira de Mello via Alessi, houve entre nós a disseminação de lição doutrinária que diferencia o interesse público em primário, interesse do Poder Público na realização de objetivos de interesse público não arrecadatório, e secundário, interesse arrecadatório dos entes e órgãos públicos.

26 Aqui, algumas observações devem ser feitas. Assim como se diz da atividade financeira do

Estado – não é um fim em si mesmo –, também a busca do lucro, pelas estatais, é instrumental. Existe não para “enriquecer” o Estado, mas para gerar recursos que serão investidos no desempenho de suas atividades. Se a busca de lucro é instrumental em abstrato, ela o é, ainda mais, se analisada com base no que fazem as estatais: ou intervêm concorrencialmente na economia, porque a isso foram levadas por circunstância de interesse público ou de segurança nacional – e, aí, o propósito é muito mais realizar esse interesse público ou contribuir para essa segurança do que gerar recursos ao Estado –, ou prestam serviços públicos, e, como é natural, a busca é pela concretização dos objetivos atingíveis por essa prestação (integração nacional, oferecimento de utilidades essenciais à população, satisfação de direitos fundamentais etc.) Nesse sentido, ARAÚJO, Edmir Netto. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 197.

27 V. incisos I e II, do art. 4º, da lei federal n. 12.304/2010.

12

e lucrativo. Dizendo de outro modo: não é por integrar a Administração Indireta

que ela estará obrigada a suportar externalidades sociais. Poderá ser

politicamente direcionada a tanto, mas os argumentos que a tanto a conduzirão

não serão jurídicos.

Não há qualquer vedação jurídica a que as estatais, sejam prestadoras

de serviço público ou intervenientes na economia em exercício concorrencial

ou monopolístico, obtenham lucro – a rigor, é seu dever que sejam eficientes e

lucrativas, podendo apenas excepcionalmente atuar de modo deficitário. No

caso das que atuam concorrencialmente, imaginá-las operando sem pretender

lucrar significaria, até, violação às regras de defesa da concorrência.28

A PPSA deve buscar o lucro - e esse lucro vem por intermédio da

maximização do óleo-proveito que cabe à União, vindo daí também a maior

parte da remuneração da estatal, consubstanciada por importâncias calculadas

sobre o resultado da produção de petróleo e gás (art. 7º, par. único, da lei

federal nº. 12.304/2010).

Não se desconhece, por outro lado, que, ao zelar pelos interesses

financeiros do Estado, a PPSA estará também atendendo a interesses públicos

primários. Afinal, as políticas públicas dependem de recursos para serem

executadas. Mas é bom ter em mente que essa é questão que não diz respeito

diretamente à PPSA. Mesmo porque já está previsto no marco regulatório a

criação de organismo específico, o Fundo Social, que utilizará os valores

arrecadados com a exploração do pré-sal para financiar programas

governamentais destinados ao desenvolvimento da educação, cultura, ciência,

tecnologia e sustentabilidade ambiental e ao combate à pobreza.

28

GRAU, Eros Roberto. Lucratividade e função social nas empresas sob controle do Estado. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Vol. 55. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho/setembro de 1984. p. 35-59, especialmente p. 53 et seq. Outro tratamento teórico interessante para o assunto é o que distingue entre o resultado da estatal – que é e deve ser o lucro – e a causa determinante de sua criação, o interesse público. CRETELLA JÚNIOR, José. Empresa pública. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973. p. 227.

13

A conciliação entre o dever-possibilidade de se buscar o lucro e a

circunstância de tal lucro ser instrumental vem pelo respeito não-submisso ao

interesse primário.

A PPSA não atua realizando diretamente direitos fundamentais, mas

gerando dinheiro capaz de realizá-los. Conclusão: em relação à atuação da

PPSA, o interesse público primário possui efeito jurídico de bloqueio, mas não

efeito jurídico de comando.

IV.2 - Poder de controle da PPSA: o que é e como perder o medo

O que significa "gestão de contratos" pela PPSA? Duas coisas: comando

do empreendimento; fiscalização de custos e de execução. No quadro da lei nº.

12.351/2010, a PPSA possui virtual domínio dos projetos exploratórios. Deverá,

por exemplo, avaliar técnica e economicamente os planos de exploração e

desenvolvimento e poderá até estabelecer o ritmo de produção29, tudo em

função do voto (de qualidade e de mais da metade dos representantes do

Comitê Operacional) e do veto. Além disso, a estatal fiscalizará, tal como

usualmente se dá numa empresa privada, os custos e a execução dos projetos

de que participar.30

O ponto polêmico reside em como será formatada a governança dos

empreendimentos. Qual a garantia que a operadora e as demais contratadas

possuirão ao ingressam num empreendimento econômico de risco cuja gestão,

em boa parte, não lhes pertence? Se já é delicado investir alto na atividade

exploratória (sobretudo numa província desafiante como a do pré-sal), imagine-

se fazer isso sem que se tenha o controle do projeto, que ficará em grande

parte concentrado nas mãos de uma nova entidade estatal.

29

Em entrevista concedida ao Jornal Valor Econômico, em 3 de setembro de 2009, afirmou a então ministra Dilma Roussef, hoje Presidente da República: “A diferença entre concessão e partilha é que, na concessão, eu não acesso a renda petrolífera, a não ser com imposto e participação especial e, ao fazê-lo, não controlo minha produção; na partilha, acesso o grosso da renda petrolífera e, ao fazê-lo, controlo o ritmo de produção e posso utilizar isso para fazer uma política de alianças internacionais, considerando o papel geopolítico do petróleo”.

30 Não se trata, contudo, de poder de polícia, porque não há possibilidade legal de a PPSA

aplicar penalidades administrativas.

14

Com efeito, a questão do poder de veto e do voto de qualidade tem sido

fonte de perplexidade. Isso porque a disponibilidade dessas prerrogativas em

favor da PPSA tem aptidão para torná-la administradora plenipotenciária dos

empreendimentos, deixando a seu alvedrio a tomada das principais decisões

no âmbito do comitê operacional.

No entanto, passados alguns anos da publicação das propostas, surgem

indícios de que a PPSA talvez não tenha toda essa capacidade de comando

dos projetos. Há sinais de que a União, num esforço de autocontenção,

modulará contratualmente o uso do veto e do voto de qualidade, de maneira a

amenizar os poderes da PPSA na gestão dos projetos.

Essa possibilidade consta do próprio art. 25 da lei federal n.

12.351/2010, expresso ao estabelecer que o poder de veto e o voto de

qualidade deverão ser exercidos “conforme previsto no contrato de partilha de

produção”. Segundo já se cogita, o sistema legal permitiria que o poder de

controle da estatal fosse limitável pela via contratual. Com isso, seria possível

às partes convencionarem que a deliberação de certas matérias elencadas nas

leis de regência fossem excepcionadas do alcance das prerrogativas do veto e

do voto de qualidade. Assim, o contrato poderia disciplinar que a aprovação de

tal ou qual assunto legalmente previsto se fizesse por quorum especial, ou

mediante exigência de unanimidade das empresas consorciadas.

Restam ainda estratégias práticas juridicamente admissíveis de

atenuação do poder de controle da PPSA e de prevenção de riscos pela

assunção de decisões de outrem. Por exemplo: registrar em ata

posicionamentos contrários; exigir justificativa técnica consistente como pré-

condição à tomada de decisões; fechar acordos de votação; insistir na

transparência de dados; alertar sobre a responsabilidade dos administradores

pelo erro ou má administração. Tais procedimentos podem parecer saídos de

algum saco de maldades, mas são, em muitos casos, uma tábua de salvação.

Importa lembrar, contudo, que essas possibilidades jurídicas e

estratégias táticas buscam apenas atenuar o poder de influência monológica da

15

PPSA nas decisões dos projetos. Eliminá-lo seria juridicamente impossível

dentro do atual marco regulatório. Isso significa que mesmo que o contrato de

partilha venha de fato a restringir o exercício do veto e do voto de qualidade,

contemplando-os somente para a decisão de pontos específicos, ainda assim

sobrará espaço para que a estatal detenha papel efetivo na administração dos

empreendimentos. Ou seja: a PPSA poderá até não ter o controle dos projetos,

mas certamente deterá alto nível de ingerência sobre eles.

É inegável, porém, que a limitação do direito ao veto e ao voto de

qualidade implica renúncia de parcela do poder estatal em prol de maior

consensualismo com a iniciativa privada. Apesar disso, não se acredita que a

Administração Pública dará aos particulares a mesma liberdade que vigora no

sistema de concessão da Lei do Petróleo. Se fosse para ser desse modo, não

seria preciso reformular o modelo de regulação. No entanto, há quem pense

que o fato de a lei ter prestigiado uma atuação administrativa mais concertada

– ao deixar muitos aspectos da governança do empreendimento para o

disciplinamento contratual – redundaria, na verdade, no fortalecimento da

posição jurídica das contratadas frente ao Estado. Isso se daria pela maior

possibilidade jurídica de revisão ou contestação judicial das cláusulas do

contrato de partilha, diferentemente do que ocorre no sistema de concessão da

Lei do Petróleo, onde a maior parte das regras está prevista em lei, gerando

assim “maior força vinculante”31. A ver.

IV.3 - Gestão irresponsável: será mesmo que a PPSA não responde por

nada?

Aspecto intrigante do regime jurídico da PPSA é a circunstância de que,

a despeito de ser, na lei e na prática, a gestora da partilha, ela está legalmente

blindada contra qualquer risco. A blindagem consta do art. 8º, § 2º, da lei

federal n. 12.351/2010. O dispositivo prescreve que a estatal “não assumirá os

31

GOMES, Carlos Jaques Vieira, et alii. Avaliação da Proposta para o Marco Regulatório do Pré-sal. Out. 2009. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/conleg/textos_discussao.htm.>, p. 29. Acesso: 15/11/2009.

16

riscos e não responderá pelos custos e investimentos referentes às atividades

de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das

instalações de exploração e produção decorrentes dos contratos de partilha de

produção”. Todos esses riscos ficarão a cargo da Petrobras e das demais

consorciadas (art. 20, § 3º).

Ora, sabendo-se que a gestão de contratos exercida pela PPSA

implicará sua aptidão em participar da tomada das principais decisões

empresariais dos projetos - e de muito possivelmente vir lucrar com isso -, o

que se tem aqui é associação incomum entre gestão e irresponsabilidade e

ônus e bônus. Mesmo que o poder de veto e o voto de qualidade venham a ter

seu uso restringido pelo contrato, ainda soa estranho pretender isentar a PPSA

dos riscos inerentes às atividades petrolíferas, dado que sempre haverá

alguma ingerência da estatal sobre as estratégias dos projetos.

O modelo não parece juridicamente adequado. Claro que não se

desconhece que a lei, assim como o contrato, pode estabelecer entre as partes

- ainda que de forma desigual - o compartilhamento dos riscos de atividades

desenvolvidas conjuntamente. Mas fica a pergunta: será que desenho tão

desequilibrado se mostra apropriado à atração dos enormes investimentos

privados necessários ao bom desenvolvimento das operações nas áreas do

pré-sal?

Note-se também a inconsistência performativa da lei de criação da

PPSA, quando fala que a estatal deve se submeter ao regime jurídico próprio

das empresas privadas (art. 3º, da lei federal n. 12.304/2010), mas diz que ela

não assume risco por uma atividade econômica da qual é gestora.

Apesar tudo isso, há quem pense que esse arranjo de divisão de riscos

não teria nada de anormal. Para quem acredita nisso, o Estado já cumpre com

sua parte no negócio ao colocar à disposição da iniciativa privada a exploração

econômica das imensas reservas de óleo e gás do pré-sal, bens esses

pertencentes à União, na forma do art. 20, IX, da CRFB-88. Caberia, pois, aos

17

particulares interessados explorarem economicamente essas jazidas por sua

conta e risco.

Respeitamos a posição, mas com ela não concordamos. Estaria tudo

bem se a União, anuindo com que seus recursos minerais sejam prospectados

por empresas privadas, apenas se limitasse a participar financeiramente dos

resultados e regulasse a atividade com base em critérios técnicos (tal como

ocorre no regime da Lei do Petróleo). Em tal situação, como o Estado não

interfere muito na condução dos projetos, nada mais justo do que os entes

privados tomem para si todo o risco da atividade. Até porque, na concessão, o

petróleo e gás passam a ser automaticamente de propriedade do

concessionário. No entanto, tudo muda de figura quando o Estado, além de

beneficiário das rendas petrolíferas e agente regulador, passa a ser empresário

(por meio de empresa pública), com poderes de influência direta sobre os

projetos e detendo exclusivamente a propriedade dos hidrocarbonetos. Nesse

caso, que é o do marco regulatório do pré-sal, reputamos irrazoável direcionar

a totalidade dos riscos da atividade para as consorciadas, deixando a PPSA de

fora de qualquer responsabilização pelos seus atos de gestão, na qualidade de

destacada integrante do comitê operacional do consórcio.32

32

Há aqueles que defendem o modelo brasileiro de partilha, sob a alegação de que seria igual ao norueguês, onde também existe empresa de capital inteiramente estatal, a Petoro AS, com papel institucional similar ao exercido pela PPSA. Ocorre que, segundo consta de estudo encomendado pelo BNDES, a Petoro é simplesmente “responsável pelo gerenciamento da Participação Financeira Direta do Estado (State’s Direct Financial Interest – SDFI)”. Suas principais atribuições são: “(i) gerenciar o SDFI nas parcerias; (ii) monitorar a venda, pela Statoil, do petróleo produzido referente à parcela da SDFI, conforme especificado nas instruções de comercialização entregues àquela empresa; e (iii) supervisionar o gerenciamento e contabilidade do SDFI.” (Relatório I - Regimes Jurídico-Regulatórios e Contratuais de E&P de Petróleo e Gás Natural. Estudo de alternativas regulatórias, institucionais e financeiras para a exploração e produção de petróleo e gás natural e para o desenvolvimento industrial da cadeia produtiva de petróleo e gás no Brasil Disponível em: www.bndes.gov.br. Acesso em: 03/04/2011). Excepcionalmente, nas hipóteses em que os projetos se revelem muito lucrativos, o Estado norueguês, por intermédio da Petoro, “participa como um sócio não operador comum, realizado aporte de capital e se sujeitando aos riscos da atividade” (BALERONI, Rafael Batista; PEDROSO JR., Jorge Antonio. Pré-Sal: Desafios e uma Proposta de Regulação. In: RIBEIRO, Marilda de Sá Rosado (Coord.). Novos Rumos do Direito do Petróleo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, pp. 169 e 170). Tal não ocorre em nosso modelo de partilha. A única semelhança da PPSA com a Petoro reside nas funções de monitoramento contábil das operações e de agente comercializador. De resto, tudo é diferente, já que a PPSA tem, em caráter permanente, a gestão do empreendimento, e, ao contrário da Petoro, não investe na atividade nem assume qualquer risco associado às operações.

18

Essa questão avulta quando se pensa na responsabilidade civil pelos

danos causados ao meio ambiente33. A pergunta é: sendo a PPSA uma

autêntica empreendedora, seria juridicamente possível a lei escudá-la com

cláusula geral de isenção pelos grandes riscos ambientais ínsitos às atividades

de exploração e produção de petróleo? Como conciliar esse objetivo legal com

o art. 225 da CRFB-88, que, preocupado em dar efetividade ao direito

fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, é expresso em

responsabilizar aquele que explora atividade empresarial degradadora da

natureza?

Diante desse quadro normativo constitucional, talvez fique difícil

sustentar a higidez do dispositivo de lei que preconiza total irresponsabilidade

civil da PPSA, a qual, repita-se, congrega um plexo de competências voltadas

ao gerenciamento direto dos projetos do pré-sal, deles se beneficiando

economicamente.

Seja como for, a responsabilidade civil da PPSA é questão que terá de

ser resolvida na prática. Ainda que a lei afirme que a estatal não assume

qualquer risco - seja interna corporis, no consórcio, quer externa corporis,

perante terceiros -, serão provavelmente os tribunais, debruçados sobre os

casos, que definirão o sentido e alcance da pretensão normativa de

incolumidade da nova estatal.

IV.4 - A PPSA e a União: escritório da União ou empresa pública?

A PPSA é mandatária da União? Qual o sentido da representação

instituída pela lei?34 Trata-se de questão importante, que está ligada à

33

Sobre o tema, desenvolver em: PRISCO, Alex Vasconcellos. Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA): Gestão, Risco e Responsabilidade Civil Ambiental. Dissertação (Mestrado) – UCAM, Mestrado em Direito, 2011.

34 O art. 21 da lei federal n. 12.351/2010 informa que a PPSA “integrará o consórcio como

representante dos interesses da União no contrato de partilha de produção”. O art. 4º da lei federal n. 12.304/2010, alíneas “a” e “b”, transmite a mesma ideia, ao dispor que competirá à estatal “representar a União nos consórcios formados para a execução dos contratos de partilha de produção”, bem como “defender os interesses da União nos comitês operacionais”.

19

autonomia da estatal frente aos órgãos de supervisão, bem como à sua

responsabilidade pelos atos que pratica.

Carlos Ari Sundfeld afirmou que a PPSA seria verdadeiro escritório de

representação da União. Ressaltou que a estatal não disporia de autonomia

para atuar como gestora dos contratos, sendo a União a única “titular da

posição contratual”35. Fábio Ulhoa Coelho, por sua vez, enxerga a PPSA como

agente da vontade da União e, no tocante à natureza jurídica desse mandato,

entende que a lei teria estabelecido uma delegação sui generis, mistura de

representação legal com consensual36. Parte da doutrina, portanto, com base

no texto da lei, enxerga autêntica relação de representação, pela qual a PPSA

agiria em nome da União e em conformidade com seus desígnios, sem ser

tocada pelos efeitos jurídicos dos atos praticados no âmbito do consórcio e do

comitê operacional.

Discordamos. Pensamos que a representação da União pela PPSA não

pode ser equiparada à representação do Código Civil (art. 115 e segs.) ou,

mesmo, a um mandato comum, nos moldes do previsto no art. 653, primeira

parte, do Código. Acreditamos que, na configuração ideal do marco regulatório

de exploração do pré-sal, a PPSA não recebeu poderes da União para, em

nome desta e em estrito atendimento às suas determinações, “praticar atos ou

administrar interesses”, com repercussões jurídicas apenas em relação à

pessoa do representado. Afinal, se fosse para a nova empresa ser mera

representante legal ou mandatária da Administração Direta, fazendo apenas

cumprir as orientações que lhe fossem determinadas pela União e sem sofrer

as respectivas consequências, a PPSA sequer precisaria ser criada. Não seria

necessário despender recursos públicos na constituição de ente personalizado.

A gestão dos contratos poderia, com mais economicidade, ficar internalizada

35

Conferência intitulada “O Arranjo Institucional do Pré-sal: CNPE, MME, ANP e Pré-Sal Petróleo”, realizada em 12/05/2011.

36 Conferência intitulada “A Pré-Sal Petróleo S.A.”, realizada em 12/05/2011.

20

no MME, ou, ainda, ser outorgada à autarquia reguladora, ideia que, inclusive,

conta com adeptos37.

No pior dos cenários, amesquinhar o papel da PPSA, encarando-a como

subalterna mandatária da União, pode abrir caminho para seu loteamento

político e retirada de sua capacidade de atuação. Dotada de patrimônio próprio

e com - espera-se - aptidão para gerir os empreendimentos, a PPSA tem de

assumir as consequências de sua administração. Essa é a única conclusão

possível diante da criação de uma pessoa jurídica, isto é, de um sujeito de

direito38.

Sendo fruto de descentralização administrativa, a PPSA não pode

prescindir de real delegação de poderes, o que pressupõe a atribuição de

algum grau de autonomia à estatal. Se assim não for, a capacidade de gestão

que lhe foi dada pela lei não poderá ser exercitada adequadamente. Isso quer

dizer que o raio de ação da PPSA junto à arena consorcial há de ser

primordialmente desenvolvido segundo as circunstâncias da vida associativa e

em consonância com as variadas especificidades da atividade, sem dever de

obediência cega aos desejos da União, a quem, todavia, ficará reservada a

37

Nessa linha, Carlos Jaques Vieira e outros escrevem que: “No que diz respeito ao controle dos custos, reconhecemos que é provável que a presença da Petro-Sal no comitê operacional reduza a possibilidade de o consórcio inflar custos. Mas, se o objetivo é fiscalizar, (...) poderia ser mais eficiente manter a presença de fiscais da ANP nesses conselhos. Noutra passagem do estudo, afirmam que “as atribuições da Petro-Sal poderiam ser exercidas por um departamento do Ministério de Minas e Energia”. Ao justificar a posição, asseveram que a “criação de uma estatal abre mais espaço para negociações políticas e empreguismo no setor público”. (GOMES, Carlos Jaques Vieira et alii. Avaliação da Proposta para o Marco Regulatório do Pré-sal: <http://www.senado.gov.br/conleg/textos_discussao.htm.>, p. 45). Igualmente, Daniel Almeida de Oliveira cogita que se poderia “concluir pela desnecessidade” de criação da nova empresa pública, uma vez que “a auditagem das contas do operador” “poderia ser feita por autarquia ou órgão da Administração Direta, com o auxílio de empresas contábeis especializadas ou com a formação de equipe de servidores públicos de excelência”. (OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. O caso pré-sal. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2399, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14243>)

38 “A existência de um sujeito de direito produz efeitos de diferenciação e de autonomia. Cada

sujeito de direito diferencia-se dos demais e é juridicamente autônomo, inclusive para o fim de participação em relações jurídicas”. (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 92).

21

orientação geral da política empresarial da estatal (a ser efetivada por

intermédio do conselho de administração da companhia).

Dessa forma, os atos praticados pela PPSA na seara dos consórcios e

do comitê operacional, embora tenham por fim a defesa dos interesses da

União, devem ser imediatamente praticados em nome da própria estatal e a

seu benefício, contando ela com margem de independência na gestão dos

contratos de partilha e devendo assumir os efeitos jurídicos decorrentes da

posição de parte no consórcio. Assim, por exemplo, caso uma sociedade

integrante do consórcio infrinja diretiva emanada do comitê operacional e lese

algum interesse econômico ao qual incumba à PPSA defender, a estatal, como

consorciada, deverá tomar as providências necessárias para recomposição dos

danos, podendo inclusive ajuizar, em nome próprio, ação de indenização. O

inverso também procede, ou seja, se uma deliberação for tomada com a

influência decisiva da PPSA (v.g., pelo uso do voto de qualidade) e vier a

causar prejuízos injustificados em outra consorciada, será a empresa pública a

responsável direta pela reparação dos danos (podendo a União, no entanto,

responder subsidiariamente pelos débitos da PPSA, se esta se tornar

insolvente).

Portanto, diferentemente do que poderia parecer a uma leitura simples

da lei, não há que se vislumbrar propriamente uma “representação” da União

pela PPSA no campo dos consórcios e do comitê operacional. A relação

jurídica entre elas não se enquadra nos figurinos civilistas da representação ou

do mandato. As funções exercidas pela PPSA nos consórcios, apesar de se

realizarem finalisticamente em favor da União, são imediatamente feitas em

nome e no interesse da própria estatal, a quem deve ser concedida liberdade

de atuação e capacidade para contrair, por si mesma, direitos e obrigações na

esfera associativa dos projetos.

Em outras palavras, a PPSA age em nome próprio, ainda que à conta da

União. Ao invés de os atos praticados pela estatal produzirem efeitos na esfera

jurídica da União, como mandante, produzem-nos diretamente na esfera da

22

empresa pública, que assim deve ser havida como parte, e não como simples

mandatária. Não há, pois, mandato nem representação no sentido do Direito

Civil, mas uma espécie de prestação de serviços legalmente estatuída entre

duas entidades autônomas do Estado. Volta-se, então, ao exposto no item III: a

PPSA é estatal endógena de apoio à Administração Direta.

IV.5 - PPSA: empresa pública reguladora?

No regime da Lei do Petróleo, costuma-se dizer que a agência

reguladora é a gestora dos contratos de concessão, pois o art. 21 afirma caber

à ANP a administração dos direitos exploratórios. No marco regulatório do pré-

sal, por sua vez, ficou estabelecido que a PPSA é quem deverá exercer a

“gestão dos contratos de partilha de produção”, mais ou menos como a Lei do

Petróleo faz com a ANP em relação às concessões. Para confundir ainda mais

o cenário, o art. 63 da lei federal n. 12.351/2010 estipula que, enquanto não for

criada a PPSA, “suas competências serão exercidas pela União, por intermédio

da ANP”. Há ainda, como se especificará logo mais, certas funções conferidas

à PPSA que alguns entendem como típicas de regulação pública. Por conta de

tudo isso veio à tona mais uma polêmica, desta feita respeitante à natureza

jurídica das atividades desempenhadas pela estatal: seriam elas regulatórias

ou empresariais?

A noção de regulação possui núcleo conceitual bem definido. Maria

Sylvia Zanella Di Pietro apresenta algumas de suas características: (i) o

estabelecimento de normas de conduta; (ii) o controle da atividade privada pelo

Estado, que equivale à idéia de polícia administrativa (com competências para

fiscalizar e aplicar sanções); e (iii) a persecução de finalidade pública - a de

estabelecer o funcionamento equilibrado do mercado.39 Caso se prefira os

documentos internacionais, pode-se buscar o Glossário de Economia Industrial

e Direito da Concorrência divulgado pela OCDE: regulação “consiste na

39

DI PIETRO, Maria Sylvia. Limites da Função Reguladora das Agências diante do Princípio da Legalidade. In: DI PIETRO, Maria Sylvia. (Org.). Direito Regulatório: temas polêmicos. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 21.

23

imposição de regras emitidas pelos poderes públicos, incluindo sanções, com a

finalidade específica de modificar o comportamento dos agentes económicos

no sector privado”40.

Carlos Roberto Siqueira Castro reconhece que, embora a PPSA realize

o monitoramento e a auditoria das operações, a ela não foi atribuído poder

sancionatório, de maneira que exerce “funções meramente empresariais”41.

Em sentido intermediário, ou seja, procurando conciliar funções

empresariais e de regulação, Alexandre Santos de Aragão assevera que,

embora a PPSA seja empresa pública, ela não deixa de exercer certo papel

regulatório, uma vez que sua missão consiste em realizar uma “regulação

endógena”42. Nessa espécie de atuação o Estado, sob as vestes de

“empresário”, regula a atividade “por dentro”, na qualidade de “sócio”, tendo

assim maior acesso às informações operacionais do consórcio e, por

conseguinte, mais eficácia regulatória sobre as atividades desenvolvidas

societariamente.

Já para Humberto Quintas e Luiz Cezar Quitans, algumas das funções

atribuídas à PPSA possuem natureza regulatória, razão pela qual, inclusive,

poderiam criar conflito de competência com a ANP. Nessa acepção, os autores

citam as competências da estatal para avaliar tecnicamente os planos de

exploração, desenvolvimento e produção, bem como a verificação do

40

Apud AVELÃS NUNES, António José. Do estado regulador ao estado garantidor. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 9, nº. 34, abr./jun. 2011, p. 47, nota de rodapé nº. 1.

41 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Parecer jurídico dado à Associação Brasileira de

Agências de Regulação – ABAR acerca dos projetos de lei apresentados pelo Governo Federal para mudança do regime de exploração e produção de hidrocarbonetos na área do pré-sal e zonas estratégicas, 2009. Disponível em: <http://www.abar.org.br/biblioteca/decisoesPareceresJuridicos/>. Acesso em: 10/05/2010.

42 Informação verbal colhida durante o II Seminário Brasileiro do Pré-Sal, na conferência

intitulada: “O Comitê Operacional no Contrato de Partilha”, realizada em 13/05/2011.

24

cumprimento, pelos contratados, da política de comercialização de petróleo e

gás43 (art. 4º, I, “c” e II, “b”, da lei federal n. 12.304/2010).

A seu turno, Gustavo Binenbojm assevera que a atividade prescrita na

letra “f”, do art. 4º, da lei federal n. 12.304/2010, que atribui à PPSA o dever de

fornecer à ANP as informações necessárias às funções regulatórias da

agência, seria indicativo de que a empresa estatal deteria papel fiscalizatório

típico de regulação44.

De nossa parte, encampamos a opinião de que as funções acometidas à

PPSA possuem, em princípio, caráter empresarial, pouco importando o fato de

a estatal exercer atividades de avaliação técnica ou de índole fiscalizatória.

Afinal, esses misteres não são de competência exclusiva de órgãos ou

entidades do Estado quando de seu relacionamento com a iniciativa privada,

sendo igualmente desempenhados por particulares nas relações intersubjetivas

mantidas entre si, sem que haja, aí, qualquer antijuridicidade. Basta citar o

exemplo do contrato privado de franquia. Em tal ajuste, o franqueador, além de

analisar tecnicamente o plano de negócios do franqueado, tem ainda poderes

para exercer ampla fiscalização, que inclui desde a verificação da regularidade

dos padrões de layout dos estabelecimentos, até o controle administrativo das

finanças da parte franqueada, mediante investigação de suas vendas e

faturamento45.

Além disso, reforça a ideia de empresarialidade dos atos da PPSA a

circunstância de que a lei não outorgou poder de polícia à empresa, atributo

invariavelmente presente nos organismos estatais de regulação setorial.

Ademais, a PPSA não possui competência legal para editar normas de

43

QUINTAS, Humberto; e QUITANS, Luiz Cezar P. A História do Petróleo: no Brasil e no Mundo. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2009, p. 110.

44 Opinião colhida no II Seminário Brasileiro do Pré-Sal, na conferência “A Disciplina

Constitucional do Petróleo”, realizada em 11/05/2011.

45 Tamanha invasividade se justifica porque, no mais das vezes, as receitas do franqueador

são calculadas com base em percentual dos lucros obtidos pelo franqueado.

25

disciplinamento do setor, tampouco intenta buscar o equilíbrio do mercado,

funções típicas da regulação pública.

Em relação à questão de a ANP vir eventualmente a desempenhar as

atividades da PPSA enquanto esta não for instituída (art. 63, Lei nº

12.351/2010), tal não induz à conclusão de que a estatal atuaria como entidade

reguladora. Antes de tudo, pensamos que a norma dificilmente terá aplicação,

na crença de que, quando os contratos de partilha forem celebrados, a PPSA já

estará constituída e em funcionamento. Ao incluir essa disposição, o legislador

quis evitar um vácuo institucional, assegurando a presença do Estado e a

defesa de seus interesses no âmbito dos consórcios. Trata-se de disposição

excepcional, cuja inserção se justifica pelo risco da ocorrência de situação

igualmente atípica, mas que, por si só, não autoriza conclusões fundantes

sobre a natureza de substituta e substituída.

Portanto, tem-se que a PPSA foi municiada com vasto feixe de

atribuições de natureza empresarial, que lhe franqueiam não só a prática de

atos de monitoramento e auditagem do contrato de partilha (“fiscalização

privada”, carente de poder de polícia sancionatório), mas, sobretudo, a aptidão

para exercer intenso determinismo estatal na gestão dos empreendimentos

petrolíferos.

V - Interação entre PPSA, Petrobras, ANP, CNPE e MME: alguns pontos a

respeito de possíveis conflitos. Quadro geral de atribuições típicas

O último item deste artigo vai se debruçar sobre as interações entre

PPSA, ANP, e demais órgãos e entidades associados à indústria do petróleo -

contratadas, Petrobras, Ministério de Minas e Energia e Conselho Nacional de

Política Energética.

Não é realista imaginar que inexistirão conflitos de atribuições. A

proposta é rascunhar alguns aspectos e propostas para a resolução de tais

conflitos, além de apresentar um quadro geral de atribuições típicas.

26

Aspecto importante: há núcleos conceituais de sentido definidos para

cada órgão ou entidade. Assim, falando de duas entidades em que se

conjectura possíveis conflitos, caberia à PPSA a administração do interesse

privado da União; à ANP, a regulação do monopólio do petróleo. Alguns

investem na diferenciação entre Estado e Governo, comum no Direito

Administrativo: enquanto a ANP restaria associada ao aspecto Estado - a

entidade operaria com visão de longo prazo e norteada pela preocupação com

estoques, boas práticas da indústria e questões ambientais -, a PPSA,

associada ao Governo (e, acrescentamos, antes disso ao ente federativo

"União"), funcionaria com visão privada e negocial – ela exerceria a fiscalização

das operações de E&P voltada para a maximização dos lucros da União.46

Claro que falar só isso é ficar no terreno das generalidades - mas, por abstratas

que sejam, tais noções já indicam caminhos para a resolução de conflitos.

Dúvida interessante: a PPSA estará submetida à regulação da ANP? A

resposta é afirmativa. A PPSA é agente regulado, não ente regulador. Por

importante que seja, não é por isso que há de ultrapassar o controle da ANP. O

argumento de que a PPSA é representante da União não afasta o controle da

ANP. A Petrobras é controlada pela União e é regulada pela ANP. A própria

União é controlada pelo TCU, pelo MPF, pelo Judiciário e, internamente, pela

CGU. Não há motivos - jurídicos ou práticos - para que não ocorra controle da

ANP em relação às atividades da PPSA relacionadas diretamente aos objetivos

macro do setor do petróleo.

De resto, a Lei do Petróleo, em seu art. 8, VII, informa que caberá à ANP

"fiscalizar diretamente" (...) "as atividades integrantes da indústria do petróleo,

do gás natural e dos biocombustíveis". Como a PPSA desenvolve atividade que

integra a indústria do petróleo, há de se submeter à entidade reguladora.

Evidente que a regulação da ANP não deve se imiscuir com aspectos

propriamente negociais ou estratégicos da PPSA: não fixa nem controla preço

46

OLIVEIRA, Daniel Almeida de. O novo marco regulatório das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural no Brasil. O caso pré-sal. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2399, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/14243>.

27

de venda; não opina sobre planos de investimento; não interfere com objetivos

de longo prazo da empresa. Mas pode, por exemplo, corrigir conduta da PPSA,

que, como controladora dos comitês operacionais da partilha, mostre-se

contrária a alguma boa prática da indústria internacional.

Outro ponto de conflito potencial: uma das principais atribuições da

PPSA será fiscalizar as contas do operador - a Petrobras -, a qual, antes de

dividir o óleo, deverá ser ressarcida do custo da exploração. Na prática, isso

significa que a PPSA deverá ingressar em livros contábeis e relatórios

operacionais da Petrobras, a qual, como toda empresa - e como empresa

privada que maneja interesses públicos estratégicos -, vive sob certa cultura de

sigilo.

Aliás, é de se ver que há conflito intrínseco (que pode ou não se

manifestar em concreto) entre Petrobras e PPSA devido à natureza

empresarial de ambas. Por definição, a finalidade de uma empresa é gerar

lucro. A Petrobras possui interesse em maximizar seus lucros. A PPSA possui

interesse em maximizar o lucro da União (que em parte será seu também). A

PPSA fiscalizará a Petrobras. Há ponto de tensão nessa dinâmica entre estatal

que é controlada pela União - mas com forte participação de particulares -, e

outra que, para muitos e relevantes efeitos, é a União, e fiscaliza a primeira.

Duas são nossas propostas para a solução de conflitos. A primeira

sugestão, relativa ao lugar de resolução das controvérsias: prefere a Câmara

de Conciliação da Advocacia Geral da União ao Judiciário. Há parecer do

Advogado-Geral da União informando que a Câmara da AGU também serve

para conciliações em que a Petrobras seja interessada. É reflexo da tendência

geral à desjudicialização. O Judiciário é caro e lento, mas, antes disso, é

estimulador da polarização de opiniões. Demandante e demandado se

percebem como adversários em busca de vitória, e não como construtores de

decisão ganha-ganha. Trata-se de circunstância a ser evitada, sobretudo entre

órgãos e entidades públicas ou controladas pela União.

28

Segunda sugestão: em casos de dúvida jurídica insuperável relativa a

conflito positivo de atribuições, pelo menos nesse período inicial propõe-se

uma espécie de teste da competência institucional. Será provisoriamente

competente quem possa melhor desempenhar o papel. Em outras palavras:

nesse período de dúvida, adquire a capacidade de fazer quem

comprovadamente faz melhor. Em certo sentido, é a solução provisória já

prenunciada pela lei da PPSA: caso a nova estatal não exista ao tempo da

celebração dos primeiros contratos de partilha, será competente a ANP.

Apresentamos, a seguir, no esforço de sanar dúvidas iniciais, um quadro

geral de atribuições típicas de cada órgão ou entidade.

Entidade CNPE MME ANP PPSA Petrobras Contratadas

Fundamento da

atuação

Política e/ou

técnica de alta

relevância.

Política e/ou

técnica de alta

relevância.

Técnica Econômica Empresarial. Empresarial

Espécie de

atuação

Delimitação de

atuação. Validação

geral.

Orientação

política. Validação

geral.

Decisões técnicas de

média e baixa

relevância. Decisões

técnicas de alta

relevância (sob

reserva política do

MME e do CNPE)

Gestão da partilha e da

comercialização do óleo

da União. Defesa do

interesse econômico da

União: fiscalização da

composição do óleo-

custo a ser ressarcido à

operadora

Exploração,

desenvolvimento e

produção de

petróleo e gás

natural

Participação

financeira. Divisão

do risco e do

proveito

econômico

Interesse

Interesse público

primário. Interesse

político

Interesse público

primário. Interesse

político

Interesse público

primário

Interesse público

secundário da União

Interesse público

secundário da

União e interesse

privado

(acionistas)

Interesse público

estratégico

Interesse privado

VI - Síntese objetiva

Ao final deste trabalho, é possível anotar o seguinte.

1. O Direito do Petróleo, mercê de descobertas na camada do pré-sal,

nunca mais será o mesmo. Introduziu-se um modelo contratual - a partilha de

produção -, um fundo social para os recursos da União, e autorizou-se a

criação de empresa pública federal, a Pré-Sal Petróleo S.A., destinada a gerir

os contratos de partilha a serem firmados.

2. Estatais são criadas por duas razões: ou para a garantia da igualdade de

competição em relação às empresas privadas com as quais competem no livre

29

mercado; ou como estratégia de fuga de amarras trazidas pelo regime de

Direito Público. Como a PPSA não exercerá seu objeto empresarial num

ambiente de concorrência, ela foi criada como estatal pelo segundo motivo.

Não há critérios jurídicos que guiem a escolha pela forma sociedade de

economia mista ou empresa pública; a PPSA é uma empresa pública porque o

Estado, por seu Executivo e Legislativo federal, identificou a necessidade de

maior intervenção pública nos contratos de partilha e de comercialização do

óleo da União, além de não haver reputado como necessário ou interessante o

aporte de recursos privados nessa empreitada.

3. Estatais não devem ser classificadas como "interventivas na economia"

ou "prestadoras de serviços públicos", senão que o regime jurídico de sua

atuação deve se dar de acordo com a intervenção específica do momento.

Atualmente, percebe-se que as estatais desenvolvem mais do que as duas

funções clássicas; há, mesmo, estatais endógenas, cuja atuação se dá

prestando serviços à Administração Pública. A PPSA é o mais recente e

destacado exemplo de estatal endógena.

4. A PPSA persegue o interesse público secundário. Ela não pode ir contra

o interesse primário, mas não deve ser tida como veículo preferencial de sua

realização. Isto é: em relação à atuação da PPSA, o interesse público primário

possui efeito jurídico de bloqueio, mas não efeito jurídico de comando.

5. Há insegurança a respeito do poder de controle da PPSA sobre o

contrato de partilha. Seus poderes legais de veto e de voto podem torná-la

administradora plenipotenciária dos empreendimentos. Cogita-se da redução

de tais riscos seja pela via contratual - o contrato de partilha condicionaria o

exercício de seus poderes -, seja pela adoção de estratégias táticas de

atenuação do poder de controle da estatal.

6. Embora o art. 8o, par. 2o, da lei federal n. 12.351/2010 pretenda garantir

imunidade à PPSA pelos riscos inerentes às atividades petrolíferas, tal

circunstância não se mostra compatível seja com a Constituição da República,

30

seja com o regime geral de responsabilidade civil (onde inexiste o binômio

gestão-irresponsabilidade).

7. A PPSA não é mandatária da União, nos moldes do Direito Civil,

tampouco escritório de representação dos interesses federais. É empresa

pública, que, embora controlada e vinculada à União, deve possuir suficiente

autonomia para fazer jus à sua personalidade jurídica. A PPSA age em nome

próprio, ainda que à conta da União. Entre ela e a União há uma espécie de

prestação de serviços legalmente estatuída.

8. A PPSA não exerce função regulatória, mas atividade empresarial. Não

possui capacidade normogenética, de disciplinamento do equilíbrio do

mercado, tampouco exerce poder de polícia, sendo-lhe defeso aplicar

penalidades. A circunstância de a ANP poder vir a exercer suas funções caso

ela ainda não esteja constituída à época da execução dos primeiros contratos

de partilha demonstra mais a necessidade de solução anti-vácuo institucional

do que suposta fungibilidade entre as entidades. As funções empresariais da

PPSA, contudo, são relevantes, e demonstram a intensidade da intervenção da

União na gestão do contrato de partilha de produção.

9. Não é realista imaginar que inexistirão conflitos de atribuições entre

PPSA, ANP, Petrobras e contratadas. Alguns pontos podem ser destacados

desde logo: há núcleos conceituais de sentido definidos para cada órgão ou

entidade. Assim, à ANP cabe a defesa do interesse regulatório do Estado, na

defesa do melhor interesse público; à PPSA, a busca pela maximização de

lucros do ente federativo União. Daí que a PPSA, também por força de lei (art.

8o, VII, da Lei do Petróleo), submete-se à regulação da ANP, cuja intensidade

não deve chegar ao controle de decisões estratégicas ou empresariais. Há

conflito potencial entre PPSA e Petrobras graças à natureza empresarial de

ambas - elas buscam a maximização de lucros, o que as pode situar em

posições não-convergentes -, e porque a PPSA deverá fiscalizar contas e

operações da Petrobras, com o viés, novamente, da maximização dos lucros

da União.

31

10. Neste momento inicial, pode-se pensar em dois standards para o

tratamento de conflitos. O primeiro deles diz respeito ao lugar em que serão

tratados: deve-se buscar solvê-los na Câmara de Conciliação da AGU, e não

junto ao Judiciário, cujas características fomentam posições adversariais. A

segunda sugestão, espécie de teste de competência institucional, afirma que,

caso haja dúvida jurídica a respeito da solução de conflito positivo de

atribuições, será provisoriamente competente quem possa melhor

desempenhar, em concreto, a função em análise. Mostra-se interesse, ainda,

analisar as atribuições típicas de cada ator institucional - o que se apresentou

sob a forma de um quadro -, como forma de primeira orientação para a solução

das futuras controvérsias.

Rio de Janeiro, julho de 2012.