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Graziela Macuglia Oyarzabal Resumo Este artigo objetiva apresentar os sentidos discursivos de professoras de anos iniciais do ensino fundamental sobre sua prática pedagógica em escolas públicas de Porto Alegre/ RS. O corpus empírico foi constituído de seqüências discursi- vas selecionadas de entrevistas semi-estruturadas. Foi utiliza- da a teoria da Análise do Discurso de Michel Pêcheux para fazer emergir os sentidos discursivos das enunciações das pro- fessoras. Esses sentidos foram identificados como: assisten- cialista, tradicional e com tentativas de filiação à formação dis- cursiva pedagógica relacional. Palavras-chave Prática docente, Formação de professores, Sentidos discursivos, Análise do Discurso. Abstract This article aims at presenting the discursive meanings of teachers of the early years of Primary Education concerning their pedagogical practice in Porto Alegre/RS public schools. The empirical corpus comprised discursive sequences selected from semi-structured interviews. Michel Pêcheux’s Discourse Analysis theory was used in order to make the teachers’ discursive meanings emerge. These meanings were identified as welfarist, traditional and attempting to affiliate with a relational pedagogical discursive formation.

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PRÁTICA DOCENTE: SENTIDOS DISCURSIVOSENUNCIADOS POR PROFESSORAS DO ENSINOFUNDAMENTALGraziela Macuglia Oyarzabal

ResumoEste artigo objetiva apresentar os sentidos discursivos

de professoras de anos iniciais do ensino fundamental sobresua prática pedagógica em escolas públicas de Porto Alegre/RS. O corpus empírico foi constituído de seqüências discursi-vas selecionadas de entrevistas semi-estruturadas. Foi utiliza-da a teoria da Análise do Discurso de Michel Pêcheux parafazer emergir os sentidos discursivos das enunciações das pro-fessoras. Esses sentidos foram identificados como: assisten-cialista, tradicional e com tentativas de filiação à formação dis-cursiva pedagógica relacional.

Palavras-chavePrática docente, Formação de professores, Sentidos

discursivos, Análise do Discurso.Abstract

This article aims at presenting the discursive meaningsof teachers of the early years of Primary Education concerningtheir pedagogical practice in Porto Alegre/RS public schools.The empirical corpus comprised discursive sequences selectedfrom semi-structured interviews. Michel Pêcheux’s DiscourseAnalysis theory was used in order to make the teachers’discursive meanings emerge. These meanings were identifiedas welfarist, traditional and attempting to affiliate with arelational pedagogical discursive formation.

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KeywordsTeaching practice, Teacher development, Discursive

meanings, Discourse Analysis.

Considerações iniciais

Para a construção deste artigo, baseamo-nos em nossa Dissertação de Mes-trado, aprovada em 2001, intitulada “Formação de professores, prática pedagógica ereforma educativa: os sentidos discursivos no dizer de professoras de anos iniciaisdo ensino fundamental. Um estudo de caso na cidade de Porto Alegre/RS”.

Naquele momento, interessava-nos compreender os sentidos presentes nodiscurso das professoras de anos iniciais sob três aspectos: sua formação, sua práti-ca pedagógica e a reforma educativa brasileira posta em marcha na década de 90.A investigação foi realizada sob o referencial teórico-metodológico da Análise doDiscurso, de linha francesa, na vertente pecheutiana (AD), por acreditarmos noatravessamento das teorias marxista e dialética que constituem a AD. Participaramdoze professoras pertencentes a seis escolas de Porto Alegre: duas da rede públicamunicipal e quatro da rede estadual.

Agora, interessa-nos divulgar a análise realizada e os achados resultantesdaquela investigação, focalizando o aspecto da prática pedagógica das professorasentrevistadas, pois acreditamos que o discurso sobre seu fazer docente está situadono campo da didática e da formação de professores.

Apresentamos a análise de seis seqüências discursivas (SD 1 a 6) enunciadaspor cinco professoras (identificadas como A, B, C, D e E) através da realização deentrevistas semi-estruturadas, gravadas em fitas de áudio e transcritas, no ano de2000 (período de constituição do corpus empírico para a elaboração da Dissertação).Além disso, tivemos a oportunidade de observar algumas aulas das referidas profes-soras, posteriormente registradas em relatórios de observação.

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As professoras A e B atuavam na mesma escola municipal, na região Lestede Porto Alegre, ambas em turmas de 3º ano do I ciclo, com crianças de oito anos.Possuíam o curso de Magistério (em nível de 2º grau), com habilitação para traba-lhar nos anos iniciais do ensino fundamental. A professora A possuía também gra-duação em História e experiência docente de dezessete anos, três deles na escolareferida. Já a professora B estava realizando curso de Ciências Sociais, possuindosete anos de experiência no magistério, cinco naquela escola municipal.

As professoras C, D e E pertenciam ao quadro docente de escolas estaduaisde Porto Alegre, cada qual em uma escola da zona Sul da cidade. A professora Clecionava numa turma de 4ª série, possuía o curso de Magistério e, em nível superior,Pedagogia; somava nove anos de experiência, dois na escola pesquisada. A profes-sora D trabalhava com uma turma de 3ª série, possuía o curso de Magistério, Licen-ciatura em Estudos Sociais e vinte anos de experiência como professora – quatro naescola pesquisada. A professora E, além do curso Magistério e da graduação emPedagogia, teve formação em nível de Pós-Graduação, realizando um curso de Es-pecialização. Dos seus vinte e dois anos de experiência, dezessete foram na mesmaescola.

Uma breve apresentação da Análise do Discurso (AD)

Pêcheux, ao fundar a AD no final da década de 60 na França, pretendia queela fosse considerada uma disciplina, e não uma nova ciência, pois ele criticava asáreas de conhecimento que procuravam se manter como “ciências régias”(PÊCHEUX, 1997b, p. 35) e que pairavam sobre a realidade como se fossem oni-presentes, certas e definitivas. E, como uma disciplina, ele via na AD a possibilidadede articular a Lingüística às Ciências Sociais, não tratando de complementar seusobjetos de estudo, mas trabalhando suas separações necessárias. Historicamente,tem-se, de um lado, a Lingüística que, “para se constituir, exclui o sujeito e a situação(o que chamamos exterioridade)”; e de outro, as Ciências Sociais que atravessam a

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linguagem “em busca de sentidos de que ela seria mera portadora, seja enquantoinstrumento de comunicação ou de informação”, tratando a “linguagem como seela fosse transparente”. Nesse espaço de contradições e afastamentos é que a ADsurge como uma disciplina de entremeio, que visa não apenas à junção dessas dife-rentes ordens de conhecimento, mas vai justamente “trabalhar essa separação ne-cessária, isto é, ela vai estabelecer sua prática na relação de contradição entre essesdiferentes saberes” (ORLANDI, 1994, p. 53).

O quadro epistemológico traçado por Pêcheux coloca a AD como a articu-lação de três regiões do conhecimento científico, a saber:

1) o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações,compreendida aí a teoria das ideologias;2) a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação aomesmo tempo;3) a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.

Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atraves-sadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica)(PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 163-164).

A AD não pretende fazer uma análise textual ou histórica de forma isolada.Por isso é que produz uma outra forma de conhecimento, tendo seu próprio objeto,que é o discurso. O discurso “se apresenta como o lugar específico em que pode-mos observar a relação entre linguagem e ideologia” (ORLANDI, 1994, p. 53).Porém, a AD passa por uma fase de análise lingüística, através do intradiscurso, queé a materialidade lingüística, sempre em relação com o interdiscurso, que é a memó-ria do dizer (a relação com o ideológico e o histórico).

Pêcheux faz uma crítica às teorias da enunciação e da linguagem que secolocam apenas como comunicação. “[...] o discurso não é apenas transmissão deinformação, mas efeito de sentido entre locutores. E a AD é a análise desses efeitos de

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sentido” (ORLANDI, 1986, p. 115). Pêcheux rompe com a teoria da comunicação,mas continua valorizando a língua (uso da palavra), mostrando o quanto o sentido éformulado por influência do exterior (assujeitamento do sujeito), uma vez que, paraele, a AD é produção de sentidos pelos sujeitos.

Nesse marco teórico, o sujeito não é a fonte do seu dizer, pois os sentidos jáestão aí (memória discursiva); ele vai ser interpelado (vai se filiar ao sentido já exis-tente). Para que isso aconteça, é necessário que ele passe por dois tipos de esquecimen-tos, ao mesmo tempo, ilusões do sujeito. O esquecimento nº 1, da ordem do interdis-curso, onde o sujeito tem a ilusão de ser a origem de tudo o que diz, o criador edono de seu dizer, e o nº 2, da ordem do intradiscursivo, da enunciação, em que osujeito seleciona dizeres em detrimento de outros, com a “ilusão de que tudo o quediz tem apenas um significado, não percebendo que são os outros do discurso quedeterminam seu dizer e que ele não pode ter controle dos efeitos de sentido queseus dizeres causam” (HOFF, 2000, p. 19).

Como para a AD a linguagem não é transparente, ao contrário, é opaca(pode apresentar multiplicidade de sentidos), há a necessidade de se ver os entre-meios; de se buscar as condições em que foi produzido o discurso e as posições desujeito (o sujeito que está ou não aflorando no discurso), em última análise, tentarfazer emergir o sentido.

Nossa posição em filiar-nos à AD resulta do entendimento de que, ao seestudar os discursos produzidos, há vários elementos que se colocam como deter-minantes e que devem ser levados em conta. São eles: a constituição do sentido dosenunciados com base na análise das condições de produção e da materialidade lin-güística; o sujeito, atravessado pelo componente ideológico, inconsciente, manifes-tado na materialidade lingüística; a rejeição do princípio da transparência da lingua-gem; a existência de múltiplos sentidos; a heterogeneidade presente nas enuncia-ções, entre outros.

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Por fim, gostaríamos de afirmar que a AD deve ser considerada como umreferencial teórico e analítico. Esses dois referenciais encontram-se unidos, ou seja,estamos considerando-os como uma unidade dialética. Nas palavras de Orlandi (1999,p. 27): “[...] Embora o dispositivo teórico encampe o dispositivo analítico, o inclua,quando nos referimos ao dispositivo analítico, estamos pensando no dispositivoteórico já ‘individualizado’ pelo analista em uma análise específica”. Dessa forma,por referencial teórico, entendemos o conjunto dos conceitos mobilizados pelo ana-lista que é sustentado pela formulação teórica mais ampla da AD. O referencialanalítico é construído pelo analista de acordo com a questão que desencadeará aanálise e sua finalidade, a natureza do material lingüístico disponível e/ou escolhidoe a sua formação (área de formação do analista, leituras e estudos realizados por ele,por exemplo).

O processo de análise: sentidos discursivos sobre a prática docente

Acreditamos que toda a prática realizada pelo professor está ligada à teoria,pois a concebemos enquanto um par dialético. Conforme a dialética, entende-se apráxis do homem como determinação da existência humana enquanto elaboraçãoda realidade (KOSIK, 1989). Para Marx, o homem é diferente dos demais seresvivos por sua atividade livre, universal, criativa e autocriativa, criando e transfor-mando seu mundo humano e histórico e a si mesmo. “Na práxis e baseado napráxis, o homem ultrapassa a clausura da animalidade e da natureza inorgânica eestabelece a sua relação com o mundo como totalidade” (KOSIK, 1989, p. 206).

Quando falamos em prática pedagógica dos professores, estamos nos re-portando ao modo como se desenvolve o trabalho pedagógico – o ensinar e o apren-der – em sala de aula, já que estamos tratando da educação escolar específica. Por-tanto, nos referimos aos modelos pedagógicos que, por sua vez, estão sustentadospor modelos epistemológicos.

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Dessa forma, cada professor, ao desenvolver uma aula, mesmo inconscien-temente, está imbuído de valores, crenças e concepções de mundo, de humanidade,de sociedade e de educação, decorrentes da sua prática social e do próprio processode formação profissional do qual participou.

Em nossa realidade educacional coexistem diferentes modelos epistemoló-gicos e pedagógicos. Quando um professor assume um ou outro modelo, ele o fazpor acreditar em uma determinada concepção sobre o ensinar e o aprender, sobre otipo de aluno que quer formar e para qual tipo de sociedade.

Zabala (2002), de forma contundente, nos tem chamado a atenção sobre aimportância de as instituições escolares, através de seus professores e demais sujei-tos integrantes da escola, definirem sua função social, pois disso resultará toda aorganização do ensino para alcançar as aprendizagens tão esperadas.

Entretanto, na falta de argumentos teóricos para essa definição, muitos pro-fessores em nossa realidade se valem de suas experiências concretas, atuais ou ante-riores, para desenvolverem sua própria docência. É o caso, por exemplo, daquelesprofessores que se baseiam em sua vivência anterior na condição de aluno parapautar sua ação pedagógica: reproduzem aquilo que foi positivo e evitam as experi-ências negativas. Desconsideram, portanto, toda a caminhada realizada em sua for-mação ou mesmo as construções teórico-práticas realizadas pela escola. Não é difí-cil encontrarmos práticas pedagógicas que representam ações dispersas pelos pro-fessores, como naquele jargão: quando o professor entra na sua sala e fecha a porta, ele é odono e faz o que quiser!

Esse distanciamento da práxis (teoria e prática como par dialético) e o usoabusivo da prática pela prática nos têm levado a identificar muitas ações pedagógi-cas reprodutivistas e conservadoras em um grande número de escolas. Acreditamosque a superação dessa realidade deva passar pela crítica epistemológica dessas práti-cas e das concepções nas quais estão embasadas. Inclusive, essa crítica deve estar

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presente nos cursos de formação de professores, pois sem ela o professor está fada-do a permanecer em “epistemologias do senso comum” (BECKER, 1994, p. 95).

Passemos, agora, à análise das seqüências discursivas (SD). As professorasentrevistadas nos mostram, através dos sentidos produzidos em suas enunciações,suas concepções sobre os alunos, a educação e a sociedade.

SD 1: “[...] eles não têm aqui muitos recursos, eles não têm em casa [...] e isso que mefascina assim de poder contribuir para que eles possam ter uma vida um pouco melhor,eu tenho essa esperança [...]” (Professora A)

Quando a professora enuncia que seus alunos “não têm muitos recursos”, elaestá referindo-se aos recursos econômicos. A clientela de sua turma é constituídabasicamente por alunos da classe social baixa (moradores de vilas próximas à esco-la), com alguns da classe média baixa. Na sua visão, a escola tem a função de supriressas carências econômicas que as crianças apresentam. Então, os recursos que os alu-nos “não têm” nas suas comunidades, eles “têm” na escola. E o papel do professor?No contexto apresentado, o professor vai ser o mediador (um deles) entre os alunosque nada têm e a escola que tudo tem, contribuindo para que eles (os alunos) “possam teruma vida um pouco melhor”. A prática pedagógica da professora vai se pautar, pois, naconcepção de educação como veículo de promoção da ascensão social, sob umaideologia marcadamente otimista ingênua, conforme nos aponta Cortella (1999)1 .Destacamos aqui, conforme nosso entendimento, de que na concepção analisadahá aspectos tanto do individual quanto do coletivo. O individual refere-se à ideolo-gia que permeia a idéia de que cada aluno terá oportunidade para melhorar na vidase apresentar resultados positivos na escola. À escola é atribuída a “missão salvífica”(CORTELLA, 1999, p. 131), pois só ela é capaz de salvar o aluno da pobreza. E o

1 CORTELLA, 1999, p. 130-137. Nas páginas referidas, o autor desenvolve o que chama de trêsconcepções sobre a relação entre sociedade e escola, quais sejam: otimismo ingênuo, pessimismoingênuo e otimismo crítico.

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aspecto coletivo é destacado pelo fato de que, a partir da salvação individual, estariacontribuindo para o progresso do país. Sob esse prisma, a educação:

[...] seria a alavanca do desenvolvimento e do progresso; a frase que resume isso é“o Brasil é um país atrasado porque a ele falta Educação; se dermos Escolaa todos os brasileiros, o país sairá do subdesenvolvimento”. Essa concepção éotimista porque valoriza a Escola, mas é ingênua pois atribui a ela uma autonomiaabsoluta na sua inserção social e na capacidade de extinguir a pobreza e a miséria quenão foram por ela originalmente criadas (CORTELLA, 1999, p. 131-132).

Essa concepção, otimista por um lado, ingênua por outro, pode ser origina-da, também, pela experiência profissional da professora A, que inclui quatorze anosem renomada escola particular porto-alegrense, cuja clientela é de classe social alta.O contraste entre as duas realidades e o fato de a professora ser da classe médiadevem estar influenciando o sentido da enunciação referida.

A marca “um pouco melhor”, em relação à contribuição da professora para a vidafutura de seus alunos, através do seu trabalho na escola, indica uma solução paliativa.Ou seja: na incerteza de saber se realmente a escola contribuirá na melhoria da vidados alunos, ao menos o trabalho realizado pode trazer esperança de bons resultados.

SD 2: “[...] ele tá ali tu tem que dar conta” [o aluno] (Professora B)

Aqui, a professora está enunciando um sentido para sua prática docente quese configura com a preocupação que ela tem em relação ao trabalho em geral que sedeve realizar na escola. O “ele tá ali” é referido ao aluno, como um sujeito passivoque “está ali” esperando por alguma coisa. Essa “alguma coisa” é o conhecimento. “Tutem que dar conta” está sendo referido ao professor e à sua função em sala de aula: “darconta”. Conta do quê? Do conhecimento. De que forma? É provável que seja nosentido da transmissão do conhecimento, já que o “tem que” aponta para o fecha-mento do sentido, de uma única possibilidade, e o “dar conta”, assim como dar contado recado, pode ser enunciado aqui como dar conta de transmitir o conhecimento, inscre-vendo-se, portanto, numa formação discursiva pedagógica tradicional.

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Definimos a formação discursiva pedagógica (FDP) tradicional como aque-la responsável por dizer que o processo educativo está centrado na figura do profes-sor que transmite o conhecimento ao aluno. Esse processo é individual, do profes-sor ao aluno; mas, ao mesmo tempo, do professor a todos os alunos individualmen-te. Não se respeita o conhecimento de cada aluno, nem o seu ritmo de aprendiza-gem. Todos são tratados como iguais (BECKER, 1994). As idéias básicas dessaformação discursiva estão presentes desde o início da escolarização formal.

SD 3: “[...] eu sigo por instinto né [risos] [...] algumas experiências que eutenho, algumas coisas que a gente vai conhecendo as crianças né [...]”(Professora C)SD 4: “Mas é uma maneira que eu acho fundamental para trabalhar [...] nomomento em que eu faço essa proposta de sentarem assim eu tenho quetambém tentar auxiliar eles a se organizarem para isso” (Professora C)

Nas duas seqüências discursivas anteriores, podemos notar um deslizamen-to de sentidos no que se refere à prática docente da professora entrevistada. Naseqüência 3, ela disse que o referencial que embasa a sua prática é o seu próprioinstinto: “sigo por instinto”. O sentido dicionarizado de instinto é: “Impulso natural.O instinto é o impulso, ou estímulo, interior que leva os animais a uma ação dirigidaà conservação ou reprodução da espécie. Tanto no homem como nos demais ani-mais, o instinto permanece invariável através dos tempos [...]” (ROCHA, 1997,p. 345). Então, o sentido atribuído à sua prática é o de impulso, como se ensinar fosseuma ação impulsiva, instintiva. O sentido dicionarizado relaciona essa característica aosanimais enquanto “conservação ou reprodução da espécie”. Se associarmos à pro-fessora, sujeito que enuncia a si mesmo como seguindo uma prática por instinto,poderíamos dizer que ela, guiada pelo seu instinto, age no seu trabalho pedagógicocom vistas à conservação ou reprodução da espécie “alunos”.

Talvez seja demasiado forte essa afirmação, no entanto, ela é relevante. Daforma como a enunciação foi construída, o instinto está carregando um sentido não

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propriamente relacionado aos animais, mas aquele em que parece estar relacionadoa uma falta de reflexão que fundamente o seu fazer. Pois a professora afirma que aconstrução do seu fazer pedagógico se dá a partir das experiências pelas quais elapassa, propiciando o conhecimento a seus alunos. Então, ela coloca uma prioridadeno fazer em relação ao pensar antecipadamente o que fazer.

Além de demonstrar uma dissociação entre a teoria e a prática, ainda estápresente o sentido da não necessidade de uma teoria que sustente o seu trabalhopedagógico, pois “instinto” nos leva a pensar em não-pensamento-reflexivo. E aí pergun-tamos: é necessário que os professores passem pelos cursos de formação, para se-guir uma prática que não necessita do pensar? A construção da enunciação faz-nosacreditar que está inscrita numa formação discursiva pedagógica tradicional e não-diretiva. Tradicional, pois apresenta a separação entre teoria e prática; não-diretivapor acreditar que o interior, a capacidade interna e inata do professor, é o que bastapara conduzir a sua prática em sala de aula.

Definimos, para efeito deste artigo, que a formação discursiva pedagógicanão-diretiva é aquela que se contrapõe à diretiva. O seu centro está no aluno, que,individualmente e com o mínimo de influência do exterior, vai desenvolvendo suashabilidades inatas. O professor é considerado um facilitador, um auxiliar no processo(BECKER, 1994). Pode-se dizer que essa formação discursiva é influenciada pelasidéias do movimento escolanovista.

Por outro lado, e já mostrando que os sentidos discursivos dos professorespodem ser contraditórios (levando em consideração o movimento permanência/ruptura), na seqüência discursiva 4, quando a professora comenta sobre o tipo deorganização da turma em grupos, ela mostra algumas evidências de que o seu fazeré, sim, refletido, pensado, antes e depois da sua realização. Para a professora, traba-lhar em grupo é “fundamental”, e se coloca como responsável por “essa proposta” nomomento em que tem consciência de que necessita “auxiliar” os alunos “a se organi-

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zarem” nessa forma de trabalho. Poderíamos dizer que, nessa proposta, a professoraestaria filiada a uma formação discursiva pedagógica progressista, porém, como foipossível observarmos na sala de aula, a organização espacial das classes era emgrupo e os alunos estavam trabalhando todos de forma individual. Cada um tinha oseu livro, o seu caderno, o seu lápis; o silêncio era reivindicado pela professora atodo momento; não deveria haver conversa entre os alunos, nem para pedir auxíliopara o colega ao lado. Destacamos esse fato para tentar mostrar que as palavras nãocarregam em si um sentido literal, mas que o sentido é carregado pelo sujeito. Quantoàs idéias “essa proposta de sentarem assim” e “tentar auxiliar eles a se organizarem”, a primei-ra relaciona-se à forma de organização espacial da sala, opondo-se às tradicionaisfileiras uma atrás da outra, e a segunda tem a ver com o papel do professor comomediador com vistas ao desenvolvimento da autonomia dos alunos. À primeira vis-ta, essas idéias estariam inscritas numa formação discursiva relacional; porém, nãopodem ser assim consideradas, pois continuam sob filiação maior a uma formaçãodiscursiva pedagógica tradicional.

Por FDP progressista/relacional entendemos aquela em que a aprendizagemse dá através da construção do conhecimento pelo sujeito em interação com o objeto.Portanto, há uma interação entre o professor e os alunos, entre grupo e indivíduos,entre as capacidades dos alunos e a influência do meio social. Um exemplo são asidéias da epistemologia genética aplicadas à educação, como o construtivismo(BECKER, 1994), com base nas pesquisas de Piaget. Nas últimas décadas, tambémestão sendo estudados outros teóricos como Vygotsky e Wallon, que seguem a linhasocio-interacionista. A divulgação do conhecimento dessa formação discursiva fazparte da realidade das últimas décadas, buscando superar as idéias apresentadas pelasformações discursivas pedagógicas tradicionais, não-diretivas e tecnicistas.

Pensamos que a professora possa estar em busca da filiação a essa FDPrelacional, pois está tentando uma forma de sair da FDP tradicional, inclusive mos-trando que está refletindo sobre o processo de ensino-aprendizagem quando cons-trói a argumentação em defesa da proposta que está realizando. Porém, a influência

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da FDP tradicional ainda permanece: a professora continua a acreditar que o traba-lho deve ser individual, pois um estaria contaminando o outro com suas idéias se hou-vesse diálogo entre eles; nessa formação, acredita-se que a organização em grupos épara os momentos de brincadeira e não para os de trabalho sério.

Retomando: podemos dizer que o deslocamento de sentidos da SD 3 para a4 acontece de uma explicitação de não-reflexão para outra de reflexão. Na SD 3,também, há uma filiação forte à FDP tradicional e à não-diretiva e na SD 4 a filiaçãoestá entre a FDP tradicional e a relacional.

SD 5: “[...] até aulas de reforço para o aluno, e chama [...] e insiste umpouco mais individual com aquele, insiste com aquele que sabe um pou-quinho mais para que dê uma ajuda para aquele, sabe?” (Professora D)

Aqui gostaríamos de mencionar um aspecto que nos chamou bastante aten-ção. Sem querer fazer um julgamento, o sentido enunciado nessa prática pedagógicaparece ter sua origem associada ao sistema de ensino mútuo, com influência dos mode-los pedagógicos diretivo e não-diretivo.

Em primeiro lugar, a enunciação “aulas de reforço” nos reporta a uma forma-ção discursiva pedagógica tradicional, cujo sentido indica que a aprendizagem en-quanto transmissão do conhecimento se faz exclusivamente através da quantidadedesse conhecimento que deve ser transmitida ao aluno. Caso o resultado não sejapositivo, é aumentada a dose de transmissão do conhecimento através do “reforço”,ou seja, da repetição.

Em segundo lugar, o “insiste um pouco mais individual com aquele” nos reporta auma formação discursiva pedagógica não-diretiva, cujo sentido é o de que o conhe-cimento vai depender das capacidades inatas do indivíduo e que a influência doexterior deve ser a mínima possível. Portanto, o trabalho em sala de aula deve serindividualizado, pois o aluno deve desenvolver suas potencialidades sem a interfe-rência dos colegas e mínima, por parte da professora.

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Por último, “aquele que sabe um pouquinho mais para que dê uma ajuda para aquele”nos lembra a prática desenvolvida no sistema de ensino mútuo, por, de certa forma,reunir traços dos dois modelos anteriormente mencionados. Por um lado, de acor-do com os pressupostos do ensino mútuo2 , acredita-se nas capacidades individuais(inatismo) dos alunos que, conforme seus estudos, vão progredindo e podem pas-sar a monitores, uma espécie de aspirantes a professor, dos demais alunos da mesmaclasse; por outro, as atividades são baseadas na cópia, na repetição e no reforço(empirismo). Portanto, acreditamos que essa enunciação, além de recorrer a senti-dos de duas FDPs, tem sua fonte na primeira metade do século XIX, quando aoBrasil chegou o sistema de ensino mútuo. Também mostra que as diferentes forma-ções discursivas pedagógicas e os sentidos delas derivados convivem mutuamenteatravés dos tempos. Alguns sentidos, embora muito afastados temporalmente, re-portando-nos a outros séculos, convivem com o tempo atual, de uma forma ou deoutra são resgatados (influenciam) através das práticas discursivas.

SD 6: “[...] eu noto assim que onde existe uma convivência que não envolvatanto aquele aspecto da sala de aula, tipo assim uma atividade fora da escola,um teatro, ou uma gincana [...] então eu acho que isso aí aproxima muito,porque aí o aluno passa a te ver num papel diferente daquele que simples-mente está ali ministrando aulas, isso é muito bom [...]” (Professora E)

Na seqüência 6, destacamos a marca “papel diferente” como introduzindo aheterogeneidade dos sentidos do papel do professor em seu fazer diário. O “papeldiferente” está posto em relação a um papel de referência. Esse papel de referência éo de “ministrar aulas”. Novamente recorrendo ao sentido dicionarizado, encontra-mos “ministrar” como “servir um ofício. Administrar, aplicar receitas” (ROCHA,1997, p. 410). Com base nesse sentido, podemos afirmar que a concepção de ensi-

2 Para maior aprofundamento, é interessante a leitura de: BASTOS, Maria Helena C.; FARIA FI-LHO, Luciano Mendes de (org.). A escola elementar no século XIX: o método monitorial/mútuo.Passo Fundo: Ediupf, 1999.

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no-aprendizagem da professora, ao enunciar “ministrando aulas”, está ligada a umaformação discursiva pedagógica tradicional, baseada na transmissão do conheci-mento e na sua administração. Então esse é o papel referência do professor: trans-mitir e administrar o conhecimento em sala de aula. E o “papel diferente” é o relacio-nado à aprendizagem que pode ocorrer fora da sala de aula, em outras situações quenão sejam as ditas formais, enunciada através de “uma convivência que não envolva tantoaquele aspecto da sala de aula”.

Então, por um lado, o “ministrar aula” está relacionado com a organizaçãoformal do processo de ensino-aprendizagem: a figura do professor que transmite oconhecimento, o aluno submisso que recebe, o ambiente da sala de aula como únicopropício à aprendizagem, a autoridade da figura do professor, etc., conforme odizer da formação discursiva pedagógica tradicional. Por outro lado, “uma convivênciaque não envolva tanto aquele aspecto da sala de aula” está relacionado a uma concepçãodiferente, na qual a aprendizagem pode acontecer em outros ambientes além doformal da sala de aula, o professor numa posição mais próxima aos alunos, intera-gindo – sentidos presentes a uma formação discursiva pedagógica relacional. A marca“aproxima” está sendo referida ao fato da aprendizagem conforme a FDP relacionalproporcionar uma aproximação entre o professor e os alunos; o que nos leva a acre-ditar que na FDP tradicional essa relação entre professor e aluno é de afastamento.

A enunciação parece estar inscrita nas duas FDPs, pois a professora retomaos sentidos de ambas sem apresentar uma possibilidade de junção. A enunciaçãodicotomiza entre o formal e o não-formal, entre uma aprendizagem e uma convi-vência, entre um afastamento e uma aproximação.

A interpretação resultante da análise

Os sentidos atribuídos à prática docente pelas professoras entrevistadas fili-am-se aos sentidos provenientes da formação social capitalista que sustenta as for-

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mações ideológicas e discursivas. A partir do corpus empírico analisado, foi constru-ído o seguinte quadro:

Formação Social Capitalista

FI Tradicional FI Neoliberal FI Progressista/Relacional

FD Não-Crítica FD Crítica

FDP FDP FDP FDP

Tradicional/ Tecnicista Não-Diretiva Progressista/

Diretiva Relacional

Leia-se:FI – Formação Ideológica FD – Formação Discursiva FDP – Formação

Discursiva PedagógicaEssa organização deu-se por entendermos que a formação social capitalista

é a que, de certa forma, engloba as formações ideológicas que sustentam os dizeresdas professoras entrevistadas: FI tradicional, FI neoliberal e FI progressista/relaci-onal. É preciso ressaltar que as FI tradicional e neoliberal visam a manter a forma-ção capitalista e a FI progressista visa à superação desta. Sob essas FIs, podemosperceber duas formações discursivas amplas, que denominamos de não-crítica ecrítica, seguindo a divisão estabelecida por Saviani (1987).

De acordo com a definição de FD, “aquilo que, numa formação ideológicadada, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1997a, p. 160), então podemosafirmar que a FD não-crítica, sendo influenciada pelas FIs tradicional e neoliberal,conforma o seu dizer à reprodução. Já a FD crítica, influenciada pela FI progressista,terá o seu dizer com vistas à transformação. A FD não-crítica, por sua vez, estaráinfluenciando as formações discursivas pedagógicas (FDP) tradicional/diretiva, tecni-cista e não-diretiva. A FD crítica influenciará a FDP relacional/progressista.

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Em relação à análise das seqüências discursivas, podemos dizer que identifi-camos dois sentidos atribuídos pelas professoras entrevistadas sobre suas práticaspedagógicas: assistencialista e tradicional.

O sentido assistencialista foi atribuído à enunciação da SD 1, “e isso que mefascina assim de poder contribuir para que eles possam ter uma vida um pouco melhor”, cujaconcepção pertence à FD não-crítica por acreditar que a educação é um veículo deascensão social. A partir dessa concepção, a prática pedagógica assistencialista, in-fluenciada pela FDP tradicional e sustentada pela FI otimista ingênua, liberal e neo-liberal, se pautará por uma ação com vistas a suprir as carências afetivas e econômi-cas de seus alunos; de forma otimista, por acreditar na força da escola em proporci-onar oportunidades para todos de virem a ascender econômica e socialmente, bemcomo ingênua, por acreditar que a escola, sozinha, poderá contribuir dessa forma.

O sentido tradicional está presente na SD 2 “ele tá ali tu tem que dar conta”,quando a professora enuncia sua concepção do processo educativo, cuja práticapedagógica está pautada na transmissão do conhecimento, em que o aluno é ummero receptor de informações. O “dar conta” está filiado à FDP tradicional, cujodizer sustenta a prática pedagógica centrada no professor em direção ao aluno, ba-seada na transmissão e repetição do conhecimento, na disciplina e avaliação rígidas,entre outros aspectos.

Além desses dois sentidos, também mostramos que as enunciações das se-qüências 3 e 4, analisadas em conjunto, trazem marcas que se articulam e apresen-tam um deslizamento de sentidos entre as distintas formações discursivas pedagógi-cas. A marca “sigo por instinto” (SD 3), ao significar uma falta de reflexão que funda-mente o fazer pedagógico da professora, filia-se às FDPs tradicional e não-diretiva.Já as palavras “proposta”, “auxiliar”, “se organizarem” mostram que há uma reflexão daprofessora sobre o seu fazer. Esse sentido pode estar inscrito numa FDP relacional,pois aponta para elementos de uma prática pedagógica inscrita nessa FDP. Ao mes-mo tempo, sua prática ainda está filiada a uma FDP tradicional, quando, por exem-

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plo, acredita que a organização espacial das classes em grupos é uma proposta fun-damental de trabalho, mas as atividades são direcionadas para o trabalho individual.É possível ver os deslizamentos entre as FDPs e as posições do sujeito-professoraem questão, ora numa posição tradicional, ora relacional.

Na enunciação da SD 5, a marca “aulas de reforço” nos reporta a uma FDPtradicional, a qual acredita que através da repetição dos ensinamentos se consolida aaprendizagem; na mesma enunciação, a marca “insiste um pouco mais individual comaquele” nos mostra sua inscrição na FDP não-diretiva, cuja crença na aprendizagemindividual do aluno como dependente do despertar das capacidades inatas faz partedesse sentido; e também temos que “aquele que sabe um pouquinho mais para que dê umaajuda para aquele” nos faz lembrar do sistema de ensino mútuo que aproveitava osalunos que se destacavam nas turmas para serem monitores de seus colegas, sob aorientação do professor, que ficava mais numa posição de vigilância, controle eavaliação. Foi possível nessa enunciação perceber os deslizamentos dos sentidos etambém as diferentes posições do sujeito-professora ao filiar-se nas distintas for-mações discursivas.

Já a seqüência discursiva 6 propiciou-nos analisarmos a questão da posiçãosujeito-professora através da marca “papel diferente”, enunciada em relação a duasposições: uma filiada à FDP tradicional e outra à FDP relacional.

A FDP tradicional, que é referência em relação à marca “papel diferente”,acredita que a ação de ministrar aula é o objetivo da prática docente, entendidacomo atividade formal, organizada na sala de aula, centrada na aprendizagem for-mal do aluno através dos conteúdos ensinados pela professora, onde há um climade afastamento entre os sujeitos.

Por outro lado, foi possível identificar que a marca “papel diferente” está sen-do referida a um sentido pertencente à FDP relacional, formação discursiva quetrata da importância da afetividade e das relações interpessoais entre os sujeitos do

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processo educativo, incluindo o espaço além da sala de aula e os ambientes não-formais, num clima de convivência entre pares e de aproximação. Porém, a posição daprofessora na enunciação foi a de apresentar ambos os sentidos dicotomizando-os,como se necessitasse fazer uma opção por um ou por outro, de acordo com omomento e a atividade proposta em sua prática.

Considerações finaisAtravés da análise e interpretação das seqüências discursivas que compõem

nosso recorte discursivo, foi possível compreender que, os sentidos discursivos pre-sentes nas enunciações das professoras acerca da sua prática docente, são influenci-ados pelos sentidos de processo de ensino-aprendizagem, de mundo e de humani-dade que as professoras têm. Além disso, as fontes dos sentidos enunciados reme-tem seus dizeres sempre a um já-dito, a uma memória discursiva que, relacionada àmaterialidade lingüística, vai imprimir o(s) sentido(s) de acordo com a filiação a umaou a várias formações discursivas e ideológicas.

Foi possível identificar também que os sentidos deslizam em suas filiações àformação discursiva pedagógica, principalmente porque os já-ditos são retomadospelos sujeitos e as diferentes tendências educacionais convivem simultaneamente narealidade escolar, o que provoca a dispersão e a heterogeneidade nas enunciações.

Os sentidos discursivos representativos apresentados em relação à práticadocente das professoras podem ser considerados como: assistencialista, por revelaruma concepção de educação como provedora das carências afetivas e econômicasde seus alunos, além de contribuir para a ascensão social dos mesmos; tradicional, porapresentar uma concepção de ensino como transmissão do conhecimento pelo pro-fessor, e de aprendizagem como incorporação pelo educando dos conhecimentostransmitidos pelo professor, através de um processo passivo pelo aluno e ativo emrelação ao papel do educador, sob uma formação ideológica tradicional de conser-

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vação do estabelecido, e com tentativas de filiação à FDP relacional/progressista, pela indi-cação de tentativas de sair das filiações não-críticas de práticas pedagógicas em bus-ca das práticas filiadas à FDP relacional/progressista, mas também apresentandoum deslizamento de sentidos entre as diferentes FDPs. Também acentua a impor-tância dos cursos de formação de professores em problematizarem os aspectos quelevam os professores a optarem por um ou outro modelo epistemológico e pedagó-gico para sustentar suas práticas pedagógicas, pois a organização do ensino dependedessa opção.

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