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Pragmática menor em Gilles Deleuze Hélio Rebello Cardoso Jr.

Pragmatica Menor Em Gilles Deleuze

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  • Estudar e comentar um pensamento como o de Gilles Deleuze envolve uma tarefa bsica que o prprio filsofo francs nos legou com seus trabalhos dedica-dos a vrios pensadores. Essa tarefa foi resumida por ele por meio da imagem do arremesso do dardo: um pensador lana um dardo at ns, at nosso tempo; se quisermos fazer jus ao esforo do lanador, nossa tarefa tomar o dardo para lan-lo ainda mais longe, onde outro lanador o encontrar e dar prosseguimento tarefa de arremesso. Foi exatamente esse esforo olm-pico que Deleuze dedicou s ideias dos pensadores que mais admirou. O suposto lanador que encontra o dardo de Deleuze fica, de certa forma, inspirado por essa faanha e se indaga: serei eu capaz de relanar o dardo arremessado por Deleuze?

    Nessa questo no reside nenhuma ambio desmesurada. uma tarefa essencial, visto que o sim-ples comentrio de um trecho de Deleuze, a mera definio de um conceito por ele estabelecido, enfim, a compreenso de seu pensamento j exige e, de certo modo, inclui o esforo de ir um pouco mais longe. H, nesse intento, uma potncia do encontro que fora a pensar e que, ao mesmo tempo, descaracteriza todas as pretenses personalistas. Analisar um conceito cria-do por Deleuze em seus componentes j alterar sua consistncia, ao esta que nos pe inesperadamente no meio do plano deleuzeano de pensamento, no qual ficamos sem direo, tal sua amplitude. Na verdade, esta vastido desencoraja o novo lanador.

    H, no entanto, uma espcie de treinamento ou macete para a prtica do arremesso de conceitos deleuzeanos, indicado pelo prprio filsofo, que aumentar as distines que o pensador prvio, a quem nos dedicamos, desenvolveu em seus pensamentos. Aumentar as distines vencer o pensador e seu pen-samento por uma espcie de esgotamento, de acelera-o. Vencer no sentido de que, aps esse esforo olm-pico, o pensador em foco acabar abrindo seu plano de pensamento, nem que seja uma nfima fresta, para que dele retiremos algo de novo. Surgir, por exemplo, um problema filosfico presente em um pensamento, mas que no havia sido formulado explicitamente. Esse o caso da pragmtica no pensamento de Deleuze. E por que pragmtica menor?

    Segundo Deleuze, toda filosofia menor ou minoritria, desde que ela se desvincule das grandes linhas de senso comum, consideradas majoritrias, que nutrem uma opinio em torno de certa centralidade reconhecida como evidente, para uma maioria ou mesmo para uma minoria. A pragmtica desempenha certo papel, no interior do pensamento contemporneo, relacionado ao destaque conferido problematizao filosfica da linguagem e da comunicao, pelo qual esta participaria de um tom maior ou de uma maioridade filo-sfica com seus subsistemas minoritrios de toda ordem. Em contrapartida, a pragmtica menor chama para si toda uma progresso ontolgica que a filosofia contem-pornea no pode acolher, sob pena de ver a linguagem ou a comunicao destituda de seu trono ou plpito.

    Nesse sentido, o pensamento de Deleuze abre uma oportunidade para pensar as bases filosficas da prag-mtica, em certo encontro entre imanncia absoluta e empirismo radical, de forma que se renova o estatuto do empirismo que, barrado pela condio transcenden-tal, permanecia inoperante. Tem-se ento um empirismo guiado por princpios imanentes (no transcendentais), ambincia natural para uma pragmtica menor.

    A partir dessa perspectiva, Hlio Cardoso Jr. pro-curar percorrer um plano conceitual que circunscreva, por meio de noes e conceitos apropriados, o que efetivaria essa pragmtica segundo as coordenadas filo-sficas do pensamento de Gilles Deleuze. A vinculao, nesses termos, entre filosofia da imanncia e empirismo a aposta ontolgica maior.

    Hlio Rebello Cardoso Jr. possui mestrado (1991) e doutorado (1995) em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), duas livre-docncias em Filosofia (1999 e 2006) e ps--doutorado no Peirce Edition Project, nos Estados Unidos (prmio Fulbright), e na Universidade de Paris. Atualmente professor de Filosofia da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp). Tem experincia na rea de Filosofia, com nfase em Ontologia, atuando principalmente nos seguintes temas: multiplici-dades, continuidade e teoria das colees e multides.

    Pragmtica menor em Gilles Deleuze

    Hlio Rebello Cardoso Jr.

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    Estudar e comentar o pensamento de Gilles Deleuze envolve uma tarefa bsica que ele mesmo nos legou com seus trabalhos dedicados a vrios pensadores, filsofos ou no. Tal tarefa foi resumida por ele por meio da imagem do arremesso do dardo: um pensador lana um dardo at ns, at nosso tempo: se quisermos fazer jus ao esforo do lanador, nossa tarefa tomar o dardo para para lan-lo ainda mais longe, onde outro lanador dar prosseguimento tarefa de arremess-lo novamente.

    Foi exatamente esse esforo olmpico que Deleuze dedi-cou s ideias dos pensadores que mais admirou. O suposto lanador que encontra o dardo de Deleuze fica, de certa forma, inspirado por essa faanha e se indaga: serei eu capaz de relanar o dardo arremessado por Deleuze?

    9 7 8 8 5 3 9 3 0 2 1 1 6

    ISBN 978-85-393-0211-6

  • Pragmtica menor em gilles Deleuze

  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador Herman Jacobus Cornelis Voorwald

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    Vicente Pleitez

    Editores Assistentes Anderson Nobara

    Fabiana Mioto Jorge Pereira Filho

  • HLIO REBELLO CARDOSO JR.

    Pragmtica menor em gilles Deleuze

  • Editora afiliada:

    2011 Editora UNESP

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    C262e

    Cardoso Junior, Hlio Rebello Pragmtica menor em Gilles Deleuze / Hlio Rebello Cardoso

    Jr. So Paulo: Editora Unesp, 2011.

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-393-0211-6

    1. Deleuze, Gilles, 1925-1995. 2. Linguagem e lnguas Filo-sofia. 3. Pragmtica. 4. Ontologia. I. Ttulo.

    11-8114 CDD: 401 CDU: 81:1

    Este livro publicado pelo projeto Edio de Textos de Docentes e Ps-Graduados da UNESP Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    da UNESP (PROPG) / Fundao Editora da UNESP (FEU)

  • Voc ainda no definiu um animal enquanto no tiver feito as lista de seus afectos. Nesse sentido, h mais diferena entre um cavalo de corrida e um cavalo de trabalho do que entre um cavalo de trabalho e um boi.

    Gilles Deleuze e Claire Parnet,Dialogues, 1977

  • Sumrio

    Lista de abreviaturas 9Introduo: menoridade da Pragmtica 11

    1 Pragmtica menor e questo pragmtica na ontologia de Espinosa 17

    2 Pragmtica menor e empirismo: Hume, o problema filosfico das relaes e o juzo sinttico a posteriori 71

    3 Pragmtica menor e linguagem: Hjelmslev e a matria lingustica; Whitehead e a linguagem siderada 103

    Consideraes finais 153Referncias bibliogrficas 161

  • Abreviaturas utilizadas para os livros de Gilles Deleuze como autor ou coautor. Privilegiou-se a data da primeira edio de cada obra e no a da edio efetivamente consultada com o fito de obter o destaque cronolgico.

    (ES, 1953) DELEUZE, G. Empirisme et Subjectivit (3e. d.). Paris: PUF, 1980.

    (NPh, 1962) . Nietzsche et la Philosophie (5e. d.). Paris: PUF, 1977.

    (PhCK, 1963) . La Philosophie Critique de Kant (5e. d.). Paris: PUF, 1983.

    (PS, 1964) . Proust et les Signes (4e. d. remanie). Paris: PUF, 1976.

    (N, 1965) . Nietzsche (6e. d.). Paris: PUF, 1983. (B, 1966) . Le Bergsonisme (2e. d.). Paris, PUF, 1968. (ASM, 1967) . Apresentao de Sacher-Masoch. Rio de

    Janeiro: Taurus, 1983. (SPE, 1968a) . Spinoza et le Problme de lExpression. Paris:

    Minuit, 1968. (DR, 1968b) . Diffrence et Rptition (2e. d.). Paris: PUF,

    1972. (LS, 1969) . Logique du Sens. Paris: Minuit, 1969.

    LiSta de abreviaturaS

  • 10 HLIO REBELLO CARDOSO JR.

    (AOE, 1972) DELEUZE, G & GUATTARI, F. Capitalisme et Schizophrnie: LAnti-Oedipe. Paris: Minuit, 1973.

    (KLM, 1975) DELEUZE, G. Kafka: pour une Littrature Mineure. Paris: Minuit, 1975.

    (D, 1977) DELEUZE, G & PARNET, C. Dialogues. Paris: Flammarion, 1977.

    (S, 1979) DELEUZE, G & BENE, C. Superpositions. Paris: Minuit, 1979.

    (MP, 1980) DELEUZE, G & GUATTARI, F. Capitalisme et Schizophrnie: Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.

    (SPP, 1981a) DELEUZE, G. Spinoza: Philosophie Pratique. Paris: Minuit, 1981.

    (FB, 1981b) . Francis Bacon: Logique de la Sensation (2e. d. augmente, 2 vol.). Paris: ditions de la Diff-rence, 1984.

    (IM, 1983) . Cinma 1: LImage-Mouvement. Paris: Minuit, 1983.

    (IT, 1985) . Cinma 2: LImage-Temps. Paris: Minuit, 1985.

    (F, 1986) . Foucault. Paris: Minuit, 1986. (PV, 1988a) . Pricles et Verdi: La Philosophie de Franois

    Chtelet. Paris: Minuit, 1988. (Pli, 1988b) . Le Pli: Leibniz et le Barroque. Paris:Minuit,

    1988. (P, 1990) . Pourparlers. Paris: Minuit, 1990. (QPh?, 1991) DELEUZE G & GUATTARI, F. QuEst-Ce Que La

    Philosophie? Paris: Minuit, 1991. (, 1992) DELEUZE, G. Lpuis, postface Samuel Beckett,

    Quad. Paris: Minuit, 1992. (CC, 1993) . Critique et Clinique. Paris: Minuit, 1993.

  • Este livro apresenta parte de um amplo campo de trabalho que deci-di denominar pragmtica menor (Cardoso Jr., 2005). Para entendermos as bases filosficas da pragmtica menor, procederemos explicao do referido campo de estudo, demonstrando porque Deleuze aparece como o pensador que lhe confere uma feio prpria.

    Estudar e comentar um pensamento como o de Deleuze envolve uma tarefa bsica que ele mesmo nos legou com seus trabalhos dedi-cados a vrios pensadores, filsofos ou no. Tal tarefa foi resumida por ele por meio da imagem do arremesso do dardo: um pensador lana um dardo at ns, at nosso tempo; se quisermos fazer jus ao esforo do lanador, nossa tarefa tomar o dardo para lan-lo ainda mais longe, onde outro lanador o encontrar e o pegar, dando prosseguimento tarefa de arremesso. Foi exatamente esse esforo olmpico que De-leuze dedicou s ideias dos pensadores que mais admirou (P, 1990, p.160).1 O suposto lanador que encontra o dardo de Deleuze fica, de certa forma, inspirado por essa faanha e se indaga: serei eu capaz de relanar o dardo arremessado por Deleuze? guardadas naturalmente as devidas propores de fora e talento.

    1 As notas para todos os livros de autoria de Deleuze ou publicados em coautoria (de 1953 at 1993) e utilizados intensivamente indicam a data da primeira edio francesa de cada livro entre colchetes, conforme lista de abreviaturas.

    introduo:menoridade da Pragmtica

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    Nessa questo no reside nenhuma ambio desmesurada. uma tarefa essencial, visto que o simples comentrio de um trecho de Deleuze, a mera definio de um conceito por ele estabelecido, enfim, a compreenso de seu pensamento j exige e, de certo modo, inclui o esforo de ir um pouco mais longe. H, nesse intento, uma potncia do encontro que fora a pensar e que, ao mesmo tempo, descaracteriza todas as pretenses personalistas. Ora, analisar um conceito criado por Deleuze em seus componentes j alterar sua consistncia, ao esta que nos pe inesperadamente no meio do plano deleuzeano de pensamento, no qual ficamos sem direo, tal a sua amplitude. Na verdade, esta vastido desencoraja o novo lanador.

    H, no entanto, uma espcie de treinamento ou macete para a prtica do arremesso de conceitos deleuzeanos, indicado pelo prprio Deleuze, que aumentar as distines que o pensador prvio, a quem nos dedicamos, desenvolveu em seus pensamentos (, 1992, p.78-9). Aumentar as distines vencer o pensador e seu pensamento por uma espcie de esgotamento, de acelerao. Vencer no sentido de que, aps esse esforo olmpico, o pensador em foco acabar abrindo seu plano de pensamento, nem que seja uma nfima fresta, para que dele retiremos algo de novo. Surgir, por exemplo, um problema filosfico presente em um pensamento, mas que no havia sido formulado ex-plicitamente.2 Esse o caso da pragmtica no pensamento de Deleuze. E por que pragmtica menor?

    Segundo Deleuze, toda filosofia menor ou minoritria, desde que ela se desvincule das grandes linhas de senso comum, consideradas majoritrias, que nutrem uma opinio em torno de certa centralidade reconhecida como evidente, para uma maioria ou mesmo para uma minoria. Pois bem, a pragmtica desempenha certo papel, no interior do pensamento contemporneo, relacionado ao destaque conferido problematizao filosfica da linguagem e da comunicao, pelo qual

    2 o que fez Deleuze (1990, p.186) com relao ao pensamento de Hume, de acordo com um exemplo que ele prprio fornece: os filsofos trazem novos conceitos, eles os expem, mas eles no dizem, ou no dizem completamente, os problemas aos quais esses conceitos respondem.

  • PRAGMTICA menor EM GILLES DELEUzE 13

    esta participaria de um tom maior ou de uma maioridade filosfica com seus subsistemas minoritrios de toda ordem. Como bem caracteriza Giacoia (2002, p.9),

    A remisso incontornvel da filosofia (sua) histria, atuando como centro de gravitao, colocou em rbita comum a reflexo sobre as condies lgico-gramaticais do conhecimento verdadeiro e o ques-tionamento sobre o campo atual das experincias possveis [...] Desse modo, tornou-se plausvel afirmar que a reflexo sobre os limites da linguagem uma via privilegiada para a colocao dos mais importantes problemas filosficos atuais.

    Em contrapartida, a pragmtica menor chama para si toda uma pro-gresso ontolgica que a filosofia contempornea no pode acolher, sob pena de ver a linguagem ou a comunicao destituda de seu trono ou pl-pito (Almeida, 2003, p.23).3 Vejamos de maneira mais ampla o que sig-nifica a menoridade da pragmtica, a comear por algumas rupturas que provm do prprio interior da filosofia da linguagem contempornea.

    Ao caracterizar as bases filosficas das disciplinas voltadas para a prtica, como a pragmtica, no pensamento contemporneo, McHoul afirma que elas tm sido confinadas em vrias espcies de Lebensphilosophie, filosofia da linguagem comum, fenomenologia pr--transcendental, teorias dos atos de fala (speechactism), positivismo, e assim por diante (McHoul, 1997, p.1). Este amplo recorte resumiria o principal veio da pragmtica como disciplina ligada filosofia da linguagem e permite vislumbrar certos problemas que lhe concernem em particular. De acordo com McHoul, tal disciplina, devido a sua vinculao s correntes filosficas acima arroladas, encontra-se em um dilema tendo em vista sua fundamentao filosfica, o que afeta sobremaneira sua definio como campo de estudos. Ela estaria atada a um dilema, o que atesta simultaneamente sua submisso a certos pressupostos filosficos e um apelo para sua autonomizao.

    3 A autora, ao analisar estes aspectos, refere-se a uma pragmtica em tom menor, cuja expresso tomamos de emprstimo para compor o ttulo do presente trabalho.

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    Por um lado, em oposio a toda especulao de carter transcen-dental, uma pragmtica linguageira se definiria pela excluso de con-dies gerais, ou seja, condies que sejam mais amplas que um caso emprico qualquer. Por outro lado e, paradoxalmente, a caracterizao dessa pragmtica como uma disciplina voltada para a facticidade pura ou para o estudo de dados imediatamente sensveis induz a questo de saber se a pragmaticidade em geral seria ou no uma condio transcendental. Enfim, tal dilema pode tambm ser observado en-quanto crculo vicioso. Naquilo mesmo em que uma pragmtica supe encontrar sua singularidade como disciplina, ou seja, ao delimitar um campo de estudos circunscritos pelos casos empricos de usos em sua ocorrncia singular, pode estar sendo criada uma entidade a pragma-ticidade pura que faz apelo sub-reptcio a um transcendental devido a sua definio como condio de seu campo epistmico.

    O dilema assim colocado talvez explique porque, panoramica-mente, se observa a oscilao do estatuto da pragmtica linguageira em torno de um pndulo emprico-transcendental, para utilizar um conceito que integra a analtica foucaultiana da finitude (Fou-cault, 1966, p.329). Essa pragmtica ora figura como uma disciplina eminentemente prtica, de carter empirista, aproximando-se de uma casustica de situaes concretas, ora est sob os auspcios de um princpio pr ou quasi-transcendental radicado na experincia, seja como produo fenomenolgica de sentido, seja como condio deontolgica da linguagem ou ainda como criao de regras baseadas no convencionalismo de uma comunidade de fala.

    O linguista McHoul ainda alerta que essa encruzilhada em que situamos aqui a pragmtica tem sido resolvida por duas vias ambas, no entanto, frustrantes do ponto de vista do alcance filosfico reque-rido. Uma delas seria identificar a pragmtica a um empirismo ing-nuo, presidido por um indutivismo espontneo contido nos dados imediatamente sensveis. Outra via seria fazer com que ela se rendesse ao transcendental, diluindo assim sua marca mais original, qual seja, dedicar-se ao domnio da experincia que se furta a condies gerais. Isto mesmo que se considere transcendental numa acepo mais leve, isto , como princpio que estivesse embutido na imediatidade dos

  • PRAGMTICA menor EM GILLES DELEUzE 15

    dados da linguagem. Ao analisar essa questo, McHoul indica que esse impasse poderia ser desarticulado se suas bases filosficas fossem mobilizadas, de um lado, por um empirismo superior ou radi-cal, conforme denomina Deleuze, no qual se privilegiasse a relao entre os dados, e no os dados sensveis por si mesmos, como requer um empirismo ingnuo (ou um racionalismo s avessas) pois, apesar da histria da filosofia ter feito do empirismo uma crtica do inatismo, do a priori, ele sempre teve outros segredos, visto que um estudo da legitimidade das prticas nesse mundo emprico que , de fato, o nosso (Deleuze, 1974, p.59). De outro lado, as bases filosficas da pragmtica seriam mobilizadas por uma filosofia da imanncia pura, e no por qualquer critrio de quasi-transcendncia, pois como tambm afirma(m) Deleuze (e Guattari), a imanncia implica uma pura ontologia, uma teoria do Ser (SPE, 1968 [1968a], p.157) e um plano de Pensamento-Natureza sempre imanente (QPh?, 1991, p.85).

    Assim, ao denominarmos pragmtica menor uma progresso filos-fica devida a Deleuze, estamos tambm compromissados em investigar que tipo de empirismo e que tipo de filosofia da imanncia a constituem.

    De fato, McHoul faz coro com aqueles que veem no pensamento de Deleuze uma oportunidade para pensar as bases filosficas da prag-mtica e um alento para o desempenho desta como disciplina autno-ma, residindo tal oportunidade em certo encontro entre imanncia absoluta e empirismo. Quando a imanncia do pensamento atinge sua plenitude talvez um empirismo radical, asseveram Deleuze e Guattari (ibidem, p.49), de forma que se renova o estatuto do empiris-mo que, barrado pela condio transcendental, permanecia inoperante nos termos do dilema acima apresentado. Temos ento que um empi-rismo, guiado por princpios imanentes (no transcendentais), parece constituir-se em uma ambincia natural para uma pragmtica menor.

    A partir desta perspectiva, trata-se de percorrer um plano concei-tual que circunscreva, por meio de noes e conceitos apropriados, o que efetivaria essa pragmtica segundo as coordenadas filosficas do pensamento de Gilles Deleuze. A vinculao, nestes termos, entre filosofia da imanncia e empirismo a aposta ontolgica maior. Nestes

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    termos a pragmtica menor de que falamos aqui ser composta em torno de problemas filosficos conexos da filosofia da imanncia de Espinosa e do empirismo de Hume, Hjelmslev e Whitehead.

  • Proposio geral do captulo 1

    O presente captulo procurar desenvolver a imagem do pensa-mento para uma pragmtica menor. Tal tarefa se caracterizar pela definio de uma questo pragmtica que estabelece o plano no qual se ambientaro os conceitos da pragmtica deleuzeana. Esta propo-sio cumpre-se com a demonstrao de certos elos ontolgicos e epistemolgicos contidos no pensamento espinosano da imanncia, do qual se extrai um vnculo prtico capaz de determinar a questo pragmtica. Esta comea por um tipo especial de imanentismo, a imanncia pura ou imanncia espinosana. nesse processo de conceber o pensamento em plano de imanncia que Deleuze cria uma dos principais conceitos que trazem a marca de seu pensamento, ou seja, a multiplicidade. Espinosa foi um dos elos importantes para a construo desse conceito deleuzeano, de modo que com este fil-sofo podemos experimentar a articulao imanncia-multiplicidade, o que constitui a base de apoio ontolgico da pragmtica menor.

    Mas como a imanncia determina uma imagem do pensamento?Imagem o plano em que os elementos de um pensamento so

    construdos. Existem dois arranjos bsicos para a imagem do pensa-mento, a saber: a transcendncia e a imanncia. A imanncia pura,

    1 Pragmtica menor

    e queSto Pragmtica na ontoLogia de eSPinoSa

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    de que trataremos aqui, no foge exatamente da transcendncia; a simples oposio entre imanncia e transcendncia seria por demais simplria. Um pensamento filosfico, porque cria conceitos como seus entes fundamentais, lana-se exatamente na construo da imanncia como seu plano prprio. justamente na imanncia que comeam tanto a complexidade da filosofia quanto o jogo que os conceitos de cada pensamento jogam, tendo em vista sua relao com a no filo-sofia. No que diz respeito especificamente pragmtica e seu lugar na histria do pensamento, a imanncia pura estabelece um corpo a corpo mais sutil com a imanncia linguagem. Segundo observaram Deleuze e Guattari, tornar a imanncia imanente a alguma coisa, seja linguagem, uma forma de perder a imanncia pura ou de repor a transcendncia no plano dos conceitos.

    Elo onto-epistemolgico no pensamento de Espinosa e questo pragmtica

    Solido e Deus; imanncia e questo prtica

    Deleuze traa um retrato de Espinosa em que sobressai um tom de afeto e de admirao. Estampada na vida de Espinosa estaria a solido do filsofo (SPP, 1981 [1981a], p.10), que no necessariamente o iso-lamento asctico e nem mesmo o recolhimento da contemplao, carac-tersticas com que usualmente nos comprazemos em caricaturar a vida de um filsofo. A solido do filsofo advm da impossibilidade de sua integrao nos meios em que vive, mesmo que ele tenha escolhido viver neste ou naquele ambiente por ser mais favorvel atividade filosfica. Tal era a solido de Espinosa que, como nos conta Deleuze, procurou os meios democrticos holandeses, em fuga da opresso do gueto e da ortodoxia religiosa. No entanto, essa pousada junto aos liberais no quis dizer que sua filosofia se identificasse com ou desposasse algum fim pol-tico ou do Estado, pois, como assevera Deleuze: o filsofo pode habitar diversos Estados, frequentar diversos meios, mas como um eremita, uma sombra, viajante, inquilino de quartos mobiliados (ibidem, p.11).

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    Essa caracterizao da vida de Espinosa serve, inclusive, para um contraste com Leibniz, filsofo tambm estudado e apreciado por Deleuze; afinal ambos estariam muito prximos quanto aos princpios ontolgicos que norteiam seus pensamentos, muito embora, em dois textos, Leibniz tenha declarado seu desacordo com Espinosa (SPE, 1968 [1968a], p.66-9). A divergncia parece dever-se muito mais ao estilo de vida de ambos do que potncia de seus pensamentos. Leibniz, sendo um filsofo da corte, teria ocultado seu encontro com Espinosa a fim de resguardar-se do comprometimento poltico devido admirao por um pensador associado aos republicanos holandeses e combatido por representantes de diversas correntes filosficas vigentes em seu tempo. Entre um filsofo da corte e um filsofo viandante, mundanos em sentidos diferentes, tinha de haver um estranhamento, apesar de sua proximidade como criadores da filosofia.

    Espinosa muito mais um operrio ou arteso da filosofia; a sua maneira de viver, incluindo o ofcio de confeccionar lentes, mostra-nos Deleuze, est plenamente de acordo com seu pensamento filosfico. Na vida de Espinosa j encontramos razo suficiente para valorizar seu pensamento, visto que podemos dizer que h, nos conceitos que pro-pe, um estilo de vida propriamente espinosano. Espinosa teria criado uma zona de vizinhana, um elo imanente entre sua criao conceitual e sua maneira de viver. Esse acontecimento no irrelevante em termos da filosofia, uma vez que o senso comum apregoa que o pensamento sofreria de uma deficincia com relao vida, pois muitas vezes vemos o primeiro acuado frente a segunda, a ela inadaptado, segregado em sua altivez ou ressentido em sua afetao.

    curioso, contudo, notar que h um desacordo ou uma relao inversamente proporcional entre a fidelidade da vida de um filsofo ao seu pensamento e a memria que lhe reserva a histria da filosofia. Tal relao tambm observada por Nietzsche, para quem, dado o afastamento do pensamento com relao vida, torna-se impos-svel para o filsofo viver de acordo com seu modo de pensar (cf. Nietzsche, 1988, p.215). Ora, em um mundo que se nutre de uma memria como contraparte de sua deficincia em se relacionar com a vida, era bvio que a memria que se plasma na histria da filosofia

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    reservaria para Espinosa um lugar no qual sua vida se acomodaria com dificuldade.

    Espinosa foi um desses filsofos que a histria da filosofia classificou de maneira vaga e mesmo com certa negligncia. O seu pensamento foi induzido a participar de um carter dbio, malogrado, que em geral se utiliza para escrever por sobre um pensamento uma histria que lhe estranha. Espinosa ficou assim dividido entre o herdeiro da filosofia medieval e o cartesianismo que no pudera levar a cabo. Se, por um lado, procurara escapar da herana medieval por meio de cate-gorias cartesianas, por outro continuara a carregar o fardo escolstico, justamente porque no conseguira consumar um cartesianismo que lhe estaria latente. Este seria o veredicto mais recorrente a respeito do pensamento espinosano, caracterizando-o como um captulo da his-tria da filosofia. Deleuze v a justamente a oportunidade de liberar as foras de um pensamento, conquistando um aliado, pois, em vez de ficar cindido entre a tradio escolstica e a modernidade cartesiana, Espinosa teria se servido do cartesianismo como um meio no de suprimir, mas de depurar toda a escolstica, o pensamento judeu e renascentista, para deles extrair algo profundamente novo que pertence to somente a Espinosa (SPP, 1981 [1981a], p.16).

    Tal inovao estende-se igualmente questo teolgica, pois Deus, em sua filosofia, definido como um verdadeiro conceito ou, se quiser-mos consider-lo um princpio em sua filosofia, que seja um princpio ou potncia de criao conceitual. Encetando esta trilha, Deleuze constata que o Deus de Espinosa, em consonncia com a novidade presente em sua criao filosfica, no o amarra, que o deixa livre para pensar, pois no um Deus da transcendncia. Com efeito, Deleuze tem mais reservas quanto s filosofias que, tendo banido o princpio teolgico do sistema de pensamento, continuaram a pressupor algum tipo de transcendncia. Ao contrrio, Espinosa procura criar a ideia de um Deus imanente a suas criaturas ou Natureza, como princpio ontolgico em sua filosofia. Parece haver uma espcie de reverso em-pirista da f ou da crena no transcendente quando se trata da criao filosfica que, no caso de Espinosa, destila certo atesmo pelo qual foi condenado, pois, com afirmam Deleuze e Guattari,

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    o cavaleiro da f de Kierkgaard, aquele que salta, ou o apostador de Pascal, aquele que lana os dados, so os homens de uma transcendncia ou de uma f. Mas eles no cessam de retomar a imanncia: so filsofos, ou antes intercessores, os personagens conceituais que valem por esses dois filsofos, e que no se ocupam mais com a existncia transcendente de Deus, mas somente com as possibilidades imanentes infinitas que carrega a existncia daquele que cr que Deus existe. (QPh?, 1991, p.72)1

    Deste modo, Espinosa tem muito a ensinar a uma filosofia que no sua por causa e no apesar de seu Deus como possvel construir a imanncia do pensamento. Era necessrio definir Deus a fim de que aprendssemos a conquistar a imanncia para o pensamento. Hardt, comentando a maneira como Deleuze lida com o conceito de Deus em filosofia, assinala que comear com o infinito (Deus) no impos-svel, mas muito natural. Devemos ter cuidado, no entanto, para no entendermos mal esta inocncia, infinito no quer dizer indefinido; a substncia infinita no indeterminada (Hardt, 1993, p.60). O prprio Deleuze peremptrio a este respeito, e diz: a tica no parte absolutamente da ideia de Deus como de um incondicionado (SPE, 1968 [1968a], p.277), visto que a ideia de Deus condicionada por oito proposies ontolgicas que dizem respeito imanncia da substncia quanto distino formal (ibidem, p.277).

    Confirmando o cuidado com que Deleuze procura revelar no conceito de Deus um correlato de problemas ontolgicos formu-lados por um pensamento, o mesmo Hardt diz-nos que o Espinosa de Deleuze contraria frontalmente a sua caracterizao nas Lies de Histria da Filosofia e na Cincia da Lgica de Hegel, visto que Espinosa no seria um filsofo da emanao, predisposto a certo

    1 Essa apreciao que faz Deleuze do carter da divindade em Espinosa aproxima-se do ceticismo filosfico que, segundo Hume (1952, seo XI: da Filosofia acadmica ou ctica, parte I, 116, p.503-4), incomoda tanto os telogos quanto os ateus que procuram provar ou negar a existncia de Deus por meio de argumentos especulativos que fazem inferncia alm da experincia e, o que mais curioso, disputam entre si com argumentos filosficos igualmente inofensivos do ponto de vista de sua demonstrao; por isso o ctico aparece como inimigo do ateu especulativo e dos filsofos graves que defendem as religies.

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    orientalismo, mas sim um pensador da imanncia, justamente por causa de seu princpio teolgico (ibidem, p.68-9). Hegel, na verdade, no podia aceitar a definio da substncia infinita sem negao, e principalmente essa clusula ontolgica que figura como ponto de partida de Espinosa, que lhe parece obscura e envolta em nvoas orientais, pois absolutamente infinito tudo o que expri-me uma essncia e no envolve nenhuma negao (Spinoza, 1983, t.1, parte I, explicao VI, p.21). A disposio imanentista do Deus espinosano aclara-se em vrias passagens de sua obra, particular-mente na que se segue, na qual o filsofo procura, contrapondo-se tradio, resolver o problema da existncia de uma nica substncia com mltiplos atributos:

    tanto a extenso e o pensamento infinitos, quanto os outros atributos in-finitos (ou, segundo o vosso estilo, substncias), no so mais que modos desse nico, eterno, infinito ser existente por si mesmo; e de tudo isso [ns] estabelecemos, como foi dito, um nico ou uma Unidade, fora da qual no se pode imaginar coisa alguma. (idem, 1986a, parte I, dilogo primeiro, 9, p.157)

    A relao entre a imanncia e a substncia divina de importncia fundamental para a caracterizao que faz Deleuze do pensamento de Espinosa. Assim como, para Deleuze, Espinosa no fora um Descartes frustrado, o problema da substncia infinita ou divina em sua filosofia no se define como uma espcie de arch do pensamento medieval da qual Espinosa no poderia se desvencilhar. Se verdade que, muitas vezes, a questo de Deus torna-se um transcendente que descaracteriza a ambincia imanente dos conceitos, ao contrrio, segundo Deleuze, com Espinosa vemos Deus tornar-se um princpio de imanncia, um plano no qual vicejam conceitos que reafirmam e realizam esta imanncia. Como diz Deleuze em uma de suas aulas dedicadas a Espinosa:

    Eis a que Espinosa vai dar o nome de Deus, no primeiro livro da tica, vai ser a coisa mais estranha do mundo. Vai ser o conceito enquanto ele rene o conjunto de todas essas possibilidades [...] Atravs do conceito

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    filosfico de Deus, faz-se e isso no podia se fazer seno nesse nvel , se faz a mais estranha criao da filosofia como sistema de conceitos. (Deleuze, aula, 1980)

    A imanncia como problema ontolgico permite alianas, a prin-cpio inconcebveis, que rompem a suposta continuidade de uma his-tria da filosofia. Por exemplo, ao observar o tratamento que Deleuze dispensa a esta, particularmente quanto pertinncia do problema teolgico, Machado alerta que no para Deleuze um empecilho alinhar Espinosa e seu Deus com Nietzsche e a morte de Deus, ao mesmo tempo em que valoriza o Deus infinito espinosano diante da finitude kantiana do homem (Machado, 1990, p.78-9).

    Com efeito, o Deus de Espinosa seria um personagem concei-tual que cria conceitos, suprindo assim uma imagem do pensamento baseada na imanncia. E, como o plano de imanncia no um dado no pensamento, cada um precisa construir o seu; essa a lio espi-nosana para a filosofia: toda a imanncia exige um construtivismo do pensamento, indica Deleuze, mesmo que em seguida a imanncia como princpio seja escamoteada e levada a secretar algum tipo de transcendncia (QPh?, 1991, p.28, 73, 79).

    A segunda lio : cada um est ao mesmo tempo criando um modo de vida enquanto se constri a imanncia como plano prprio ao pensar, porque o construtivismo do pensamento tambm um poderoso campo de experimentao. H, portanto, experimentao vital na potncia de pensar, e se adotarmos tais lies de Espinosa, diz Deleuze, viveremos de uma maneira espinosana (SPP, 1981 [1981a], p.165). Deleuze aponta em uma de suas entrevistas que tal carter aproxima curiosamente Espinosa de Foucault, pois impos-svel percorrer os conceitos de um e de outro sem sermos afetados pelos modos de vida ou estilos de vida neles implicados (P, 1990, p.137-8). So filosofias que nos falam diretamente, em nome prprio, sem subterfgios ou firulas.

    De uma perspectiva mais genrica, Alliez (1994, p.16) comenta que a histria da filosofia como o hipertexto em que a afirmao da imanncia e a iluso da transcendncia esto se confrontando a cada

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    passo. Neste hipertexto coube a Espinosa liberar a imanncia de todos os seus limites na autoposio naturante do movimento do infinito, infinito em ato, existncia atual do infinito da/na Natureza (ibidem, p.22).

    Em suma, o tratamento dispensado por Deleuze a Espinosa renova as disposies do primeiro com relao histria da filosofia. Deleuze no s extrai de seu pensamento um Espinosa do anticartesianismo e o pe no lugar de um cartesiano malsucedido, como tambm o sada por estender seus benefcios alm de seu tempo, pois o reparo que Hegel far a Espinosa, de ter ignorado o negativo e sua fora, acaba por ser a glria e a inocncia de Espinosa, a sua prpria descoberta (SPP, 1981 [1981a], p.22). Espinosa convida-nos a rever o trabalho do negativo na dialtica hegeliana e a inventar a afirmao da imanncia. Em vista disso, no hesita em afirmar Deleuze, Espinosa o prn-cipe dos filsofos. Talvez o nico a no firmar nenhum compromisso com a transcendncia (QPh?, 1991, p.49), isto porque ele pensou o melhor plano de imanncia, isto , o mais puro, o que no se d ao transcendente [...], o que inspira menos iluses, maus sentimentos e percepes equivocadas (ibidem, p.59).

    Elo ontolgico-espistemolgico: ressonncia prtica, resumos dos gneros de conhecimento

    O aspecto que nos interessa, por fora da questo pragmtica que estamos delimitando, a maneira peculiar pela qual Espinosa se insere na histria da filosofia pela sua teoria do conhecimento e parti-cularmente quanto a sua teoria das ideias, em que pesem as questes ontolgicas da imanncia referidas acima.

    Essa conexo, no pensamento de Espinosa, parece, primeira vista, um tanto embaraosa, pois filosofia contempornea soa anacrnica a ideia de que preocupaes epistemolgicas tenham de se haver com questes ontolgicas estranhamento este ainda agravado pelo fato destas questes envolverem um Deus. Seja como for, permitimo-nos afirmar, numa visada abrangente, que o ponto de destaque em uma teoria do conhecimento baseada num pensamento da imanncia

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    sua ressonncia prtica, onde se articula o binmio construir a ima-nncia/experimentar modos de vida. Na verdade, podemos chamar esse reverbero prtico de uma questo pragmtica que se afirma no pensamento de Espinosa na medida em que nele se pode encontrar um pragmatismo.2 Este deve ser destacado como uma verdadeira questo que estabelece uma pragmtica menor, j que, como alerta Deleuze referindo-se a ao problema prtico que norteia o pensamento de Espinosa, particularmente na tica, a ontologia de Espinosa tem

    uma influncia prtica. Espinosa no intitula seu livro Ontologia, ele esperto demais para isso, ele o intitula tica. O que uma maneira de dizer que, qualquer que seja a importncia de minhas proposies especulativas, vocs somente podem julg-las no nvel da tica que elas envolvem ou implicam. (Deleuze, aula, 2002)

    Os gneros de conhecimento definidos por Espinosa so ao mesmo tempo modos de existncia (SPE, 1968 [1968a], p.268), de acordo com o poder de afetar ou de sermos afetados, pois as ideias tambm causam alegrias e tristezas. Deleuze, segundo dois de seus comenta-dores que se dedicam a problemas espinosanos, teria demonstrado que em Espinosa se encontra uma ontologizao da epistemologia e, na medida em que a ontologia espinosana diz respeito ao poder de afetar e de ser afetado, a sua epistemologia teria um carter prtico, ao mesmo tempo em que sua ontologia traria em seu cerne uma dimenso tica (cf. Hardt, 1993, p.64, 73-6). Este modo inovador de articular questes ontolgicas e ticas recebe de Alliez uma caracterizao apro-priada, posto que, com Espinosa, no estamos mais no plano de uma proposio epistemolgica destinada a assegurar a priori a correlao

    2 Utilizo aqui o termo pragmatismo, em sentido amplo e em sentido estrito. Em sentido amplo, diz respeito a todo pensamento em que as ideias sempre so entendidas como tendo um efeito sobre a conduo da vida. Em sentido estrito, sigo aqui a vinculao que faz Peirce entre o seu Pragmatismo e a metafsica de Espinosa, na qual, segundo o filsofo norte-americano, estaria em ao uma mente experimentalista de um homem de laboratrio (cf. Peirce, 1935, especialmente v.6, What Pragmatism is?).

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    entre o pensamento e o ser, segundo o ideal lgico do pensamento matemtico, o que se contraporia a Descartes, bem como prpria matriz scotista do pensamento de Espinosa (Alliez, 1993, p.22).

    Dentro deste objetivo geral, ser necessrio observar alguns cortes, sem os quais nossa argumentao ficaria deriva.

    Em virtude dos limites para a definio dos problemas filosficos referentes a uma pragmtica menor no pensamento de Deleuze, a on-tologia espinosana, da qual j tratamos longamente em outro momento (cf. Cardoso Jr., 1996, p.72-93),3 nos ocupar apenas indiretamente, envolvida que est em sua teoria das ideias. Deleuze refere-se a esta ltima, ciente do estranhamento terminolgico, como uma epistemo-logia. A fim de que nos dediquemos a esta epistemologia, de acordo com as indicaes de Deleuze, devemos dar ateno aos gneros de conhecimento definidos por Espinosa, em vista do vnculo prtico apontado. As noes ontolgicas, nessa explorao dos gneros de co-nhecimento, figuraro na maneira como so caracterizadas as faculda-des que presidem cada gnero e no modo como so tomados os objetos (participao dos corpos e das ideias no mundo) de conhecimento.

    O primeiro gnero de conhecimento indireto, depende do acaso do encontro de corpos/ideias e de seus efeitos (alegria ou tristeza), mostra-nos Deleuze. Esse conhecimento envolve a imaginao como definidora de um modo de existncia. Os encontros entre os corpos e entre as ideias, a alegria ou a tristeza que da pode resultar, no permi-tem que se faa um julgamento moral, pois no existe, para Espinosa, o bem e o mal, mas apenas bons e maus encontros de corpos/ideias, enquanto tais encontros so causa de Alegria ou Tristeza, por isso, o conhecimento do bom e do mau no nada mais do que a afeco de Alegria e de Tristeza, na medida em que delas temos conscincia (Spinoza, 1983, t.1, parte IV, proposio VIII, p.25).4

    3 Em Espinosa e imanncia dos regimes de multiplicidade, Espinosa: diferena, representao, conceito e signo.

    4 Esta concepo de mal est muito prxima da concepo empirista de Hume e dela se aproxima em funo de um modo imanente de entender a ordenao do universo, posto que, diz Hume (1992, parte XI, p.152): se tudo no Universo regido por leis gerais, e se os animais so suscetveis dor, parece inescapvel a

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    Quanto ao problema cognitivo, essa iseno pragmtica permite que o conhecimento se desvencilhe de certo moralismo, ou mesmo de uma m-f que ele muitas vezes levado a destilar, j que o mal apenas uma imperfeio do conhecimento, posto que nos diz Espinosa: o conhecimento de um mal um conhecimento inadequado (ibidem, t.2, parte IV, proposio LXIV, p.129); disto decorre que se o homem tivesse apenas conhecimentos adequados no conheceria o mal se a Alma Humana somente tivesse ideias adequadas, ele no formaria nenhuma noo de coisa m (ibidem, t.2, parte IV, proposio LXIV, corolrio, p.129); mas se conhece porque pode ter conhecimentos adequados e superar um mal qualquer.

    O segundo gnero de conhecimento j envolve um modo de existncia que compreende no apenas as relaes fortuitas entre os corpos e entre as ideias, como tambm as regras de composio dessas relaes, isto , uma razo para conhec-las (entendimento). A razo, segundo a acepo espinosana que lhe d Deleuze, no um princpio, mas um ponto de passagem entre o conhecimento e os encontros de corpos em suas composies e decomposies. Segundo a clusula ontolgica recorrente na filosofia de Espinosa, os corpos e as ideias se encontram em um mundo de pura imanncia, a mais pura imanncia que um pensamento filosfico logrou, como exaltou Deleuze. Isso equivale a dizer que nenhum encontro de corpos/ideias e nenhuma regra desses encontros (razo) podem ser destacados como princpio para a infinidade de encontros fortuitos e para as regras que vigoram praticamente.

    J o terceiro gnero de conhecimento leva-nos a compreender que somos essncias singulares, constituintes de um mltiplo substan-tivo, participando de uma imanncia caracterizada pela coexistncia de essncias em multiplicidade. O conhecimento das essncias singu-lares, isto , dos elementos de um mltiplo substantivo, envolve um verdadeiro conhecimento de si, conduzido por certa especializao da razo.

    concluso de que alguns males devem originar-se nos diversos choques da matria e nas diversas confluncias e oposies das leis gerais.

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    A imaginao uma das constituintes do conhecimento, do pri-meiro gnero de conhecimento. uma verdadeira faculdade, para utilizarmos um termo kantiano, pois cumpre lembrar que, para Kant, a imaginao esquematiza, porm no desfruta da atividade caracte-rstica do entendimento ou da razo. Ao contrrio, mostra Deleuze, a imaginao capaz de gerar determinados tipos de ideias baseadas na abstrao de encontros de corpos/ideias.

    Da mesma forma, a razo , para Espinosa, constitutiva do co-nhecimento. No entanto, constituir o conhecimento no d a ela o papel de fundamento. Hardt foi sensvel a este aspecto, pois estende a advertncia espinosana de que o conhecimento, embora tenha na razo o seu elemento constitutivo, no pode t-la como fundamento ou finalidade, dizendo que os filsofos que persuadem a si mesmos de que os homens podem viver estritamente sob os mandamentos da razo acabam simplesmente por condenar e lamentar a natureza humana, ao invs de conhec-la (cf. Hardt, 1993, p.100-104, p.102). Tal afirmativa torna-se compreensvel se pensarmos que, como se ob-servou, as regras que regem os encontros de corpos/ideias so processos racionais (racionalidades), mas nenhuma delas pode ser erigida como um fundamento organizador ou como uma finalidade.

    Gradao do conhecimento, degraus ontolgicos e riscos da clusula de imanncia quanto ao vnculo pragmtico

    Este pequeno quadro dos gneros de conhecimento espinosanos (SPE, 1968 [1968a], p.268-81; SPP, 1981 [1981a], p.79-82) e de algu-mas de suas decorrncias permite-nos fazer desde j duas observaes pontuais de amplas consequncias para nossas reflexes, nas quais sobressai o problema prtico contido na teoria espinosana das ideias, veio central do argumento em curso.

    Em primeiro lugar, os gneros graduam do conhecimento dos corpos/ideias para o conhecimento das essncias singulares. A respeito da gradao dos gneros de conhecimento, comenta Machado que a gnese da razo e da ao o itinerrio de um verdadeiro aprendiza-

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    do, de um aperfeioamento, de uma prova fsica ou qumica e no moral de nossas ideias e de nossos afetos, ao trmino do qual seremos livres, fortes e racionais (Machado, 1990, p.76). Em segundo lugar, o primeiro e o segundo gneros esto articulados de maneira diferenciada com o conhecimento dos encontros de corpos/ideias, seja pelo acaso, seja pela relao (regra). Nessas duas observaes, est em evidncia o aspecto prtico do primeiro e segundo gneros de conhecimento, na medida em que ambos dependem do encontro de corpos.

    O vnculo pragmtico do pensamento de Espinosa parece romper--se quando passamos ao terceiro gnero de conhecimento, que lida com essncias singulares. Aparentemente, haveria uma clivagem na gradao dos gneros de conhecimento, separando os dois primeiros do terceiro. Tal clivagem parece ser ainda mais prejudicial no que toca a aspectos ontolgicos, pois se as essncias singulares compem o mltiplo substantivo, ento os corpos/ideias com seus encontros parecem dele estar excludos, constituindo estes um compartimento inferior da imanncia, no mundo espinosano.

    De fato, haveria ento duas espcies de imanncia, a saber, uma formada por corpos/ideias em seus encontros, e outra formada por essncias singulares em sua coexistncia. A imanncia dos corpos dis-poria de um vnculo prtico efetivado pelas relaes de corpos/ideias e pelas regras de seus encontros. A imanncia das essncias singulares no disporia desse vnculo prtico, dependendo to somente da coexis-tncia de essncias. Parece haver, enfim, um obstculo intransponvel entre a definio substancial do ser e a definio dinmica dada aos corpos/ideias.

    Essa configurao problemtica, pois, nela, a clusula ontolgica da imanncia no poderia valer. Um mundo imanente rompido por degraus ontolgicos ou, no mnimo, alquebrado pelo modo diverso de convivncia de seus elementos, no efetivamente imanncia nenhu-ma. Espinosa corre o risco de recair na configurao ontolgica de um ser que se degrada quando se aproxima da existncia de corpos/ideias, anulando assim sua suposta conquista, ou seja, propor um pensamento que se mantm numa imanncia inquebrantvel. Por um momento, na prpria explorao de elementos internos ao pensamento de Espi-

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    nosa, parece que teremos de nos render imagem hegeliana de que a vigoraria, em virtude dos degraus de imanncia e da gradao dos gneros de conhecimento, certo carter emanativo. Chegamos assim a um impasse, pois a gradao dos gneros de conhecimento parece estar baseada num rompimento da imanncia, complicando igualmente o problema epistemolgico. Conhecer envolveria um deslocamento por degraus ontolgicos diversos.

    Tal complicao parece-nos produtiva e, de fato, enseja uma boa questo filosfica para prosseguirmos com uma caracterizao mais detalhada dos gneros espinosanos de conhecimento e, ao mesmo tem-po, para desdobrarmos, procura de novas derivaes, a apresentao que deles faz Deleuze, do ponto de vista pragmtico.

    Aspectos onto-epistemolgicos da questo pragmtica: corpos e ideias na imanncia da substncia mltipla

    Paralelismo ontolgico

    Realidade formal e realidade objetiva de corpos e ideias

    Situemos, antes de qualquer coisa, a ambincia do mltiplo subs-tantivo ou substncia mltipla em face de corpos e ideias, visto que quanto a estes ltimos que se pode referir, com propriedade, o carter operatrio da pragmtica menor em sua alada ontolgica. Sob este aspecto, apropriado definir a substncia mltipla, em Espinosa, pelo chamado paralelismo ontolgico.

    O problema de Espinosa, diga-se apenas a ttulo de ilustrao, demonstrar que no existem duas substncias, mas apenas uma nica que formada por uma infinidade de atributos, pois embora dois atributos sejam concebidos como realmente distintos no podemos, no entanto, da concluir que eles constituem dois seres, isto , duas substncias diferentes (Spinoza, 1983, t.1, parte I, proposio X, esclio p.35). Ento, todos os atributos, embora diversos, convivem

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    no seio da substncia mltipla. A fim de explicar a coexistncia dos atributos, desenvolvemos o conceito denominado por Deleuze de multiplicidade virtual. Ao mesmo tempo, essa substncia ml-tipla exprime-se por meio de afeces, que so os modos da substncia, ou seja, as maneiras pelas quais a substncia pode ser concebida em outra coisa (ibidem, t.1, parte I, definio V, p.19). A expresso da substncia em seus modos denominada por Deleuze de multiplicidade atual. O problema como a imanncia mantida entre a multiplicidade virtual (atributos ou realidade formal) e a mul-tiplicidade atual (modos ou realidade objetiva) desta substncia. Este aspecto foi abordado em sua ambincia ontolgica e lgica em outro momento, de modo a extrair certas convergncias entre a substncia mltipla de Espinosa e o conceito deleuzeano de multiplicidade (cf. Cardoso Jr., 1996, p.73-9).5

    A substncia formada por uma infinidade de atributos ou modi-ficaes da substncia que coexistem virtualmente e por isso tm um ser ou realidade formal (extenso, pensamento etc.) que, por sua vez, atualizam-se em modos finitos que convivem extrinsecamente e por isso tm um ser ou realidade objetiva (corpos, ideias etc.). Do ponto de vista do ser formal, ideias e corpos so considerados diretamente a partir dos atributos a que pertencem, pois, afirma Espinosa, o ser formal das coisas [...] deduz-se dos seus atributos da mesma maneira e com a mesma necessidade que demonstramos que as ideias se seguem do atributo do pensamento (Spinoza, 1983, t.1, parte II, proposio VI, corolrio, p.127). Do ponto de vista do ser objetivo, observa-se a paridade entre formaliter e objective no seio da substncia mltipla, j que tudo o que se segue formalmente da natureza infinita de Deus segue-se tambm objetivamente em Deus (ibidem, t.1, parte II, proposio VII, corolrio).

    O elo imanente das multiplicidades (virtual e atual), que ter uma funo destacada para a questo pragmtica, como veremos, especifica-se em direo a um paralelismo ontolgico, que pode ser

    5 Em Substncia/atributo/essncia: trade da multiplicidade, Produo do finito e multiplicidade, Distino real-formal e distino quantitativa.

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    inicialmente definido como uma determinada chancela presente na clusula de imanncia. Para utilizarmos uma expresso deleuzeana qual j recorremos, digamos que esse paralelismo atuaria como uma das garantias da pureza do plano de imanncia. Como funciona o paralelismo ontolgico?

    Hardt assinala que o tema do paralelismo uma inovao deleu-zeana no campo dos estudos espinosistas. Faz esse reparo refutando uma objeo dos espinosistas tradicionais, para os quais a proposio de tal paralelismo ontolgico no pensamento de Espinosa no decor-reria de sua concepo de substncia, j que haveria certa precedncia do pensamento em relao aos demais atributos do ser, de maneira que a definio da substncia teria um vis necessariamente episte-molgico. Deleuze, ao contrrio, teria demonstrado que a substncia espinosana mltipla e, portanto, a igualdade do princpio implica um paralelismo imanente calcado na autonomia dos atributos (cf. Hardt, 1993, p.80-2). Quer dizer, o paralelismo implica que o atributo pensamento e o atributo extenso, assim como quaisquer outros atri-butos no conhecidos pelo homem, desfrutam de um mesmo estatuto como modificaes da substncia mltipla. De acordo com o mesmo comentador, que procura aquilatar o alcance da abordagem deleuzeana, a aliana conceitual que Deleuze celebra com o pensamento de Espi-nosa lhe teria valido uma proposio que contraria a linha mestra dos estudos tradicionais a respeito de Espinosa, ou seja, tanto a tradio do idealismo ontolgico quanto qualquer abordagem ontolgica filosofia (cf. ibidem, p.74-6), uma vez que o paralelismo ontolgico seria simplesmente uma extenso lgica ou desenvolvimento da ideia de univocidade do ser (ibidem, p.80).

    Tratemos esta questo com o devido vagar, pois nosso objetivo derivar do problema ontolgico do paralelismo uma questo que incidir sobre a pragmtica deleuzeana.

    Podemos chamar o Deus de Espinosa de mltiplo substantivo, pois se trata de uma substncia nica contendo uma infinidade de atri-butos. Em relao ao mltiplo substantivo, que Deus, h imanncia da realidade formal (atributos) com a realidade objetiva (modos finitos). O problema, na produo dos seres finitos, para redefinirmos a questo

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    estabelecida acima, de que maneira as modificaes da substncia ou atributos (realidade formal) atualizaro esse ser simultaneamente uno e mltiplo em modos finitos (realidade objetiva). Assim, se dois dos atributos do mltiplo substantivo aqueles que o homem conhece so o pensamento e a extenso, coexistindo na substncia infinita, ento, as expresses finitas desses atributos respectivamente, a ideia (ou a alma) e o corpo so modos finitos que exprimem o paralelismo dos atributos, e por isso desfrutam de um mesmo estatuto ontolgico no mundo, ou seja, em sua existncia atual. A comear por sua definio como modos da substncia infinita, a equivalncia entre corpo e alma assegurada por Espinosa em duas proposies bsicas: o pensamento um atributo de Deus, ou seja, Deus uma coisa pensante, e a extenso um atributo de Deus, ou seja, Deus uma coisa extensa (Spinoza, 1983, t.1, parte II, proposies I e II, p.120-1).

    O paralelismo ontolgico no serve somente para assegurar a ma-neira como coexistem os atributos no seio da substncia mltipla; ele estende o alcance do princpio de imanncia existncia dos modos fi-nitos. Corpos e ideias so existncias em p de igualdade na imanncia. Em vista disso, em relao a todo privilgio da mente sobre o corpo que se insurge em ltima instncia a tese do paralelismo ontolgico, incluindo a maneira cartesiana de tratar esta questo, posto que, como afirma ainda Hardt, essa tese contm a rejeio integral da posio cartesiana: o corpo no apenas formalmente independente da mente, mas tambm igual mente em princpio (Hardt, 1993, p.80).

    Analisando essa demonstrao de um problema ontolgico, De-leuze j extrai a novidade trazida pelo pensamento de Espinosa quanto s implicaes pragmticas desse paralelismo. Tradicionalmente, quando a filosofia se dedica a questes ticas, est muito preocupada em saber se agimos corretamente, de acordo com alguma virtude ou relativamente a algum consenso conforme valores humanos, adverte Deleuze, mas no se preocupa em saber do que um corpo capaz, como adverte Espinosa, j que

    agir absolutamente por virtude, no , em ns, outra coisa seno agir, viver e conservar seu ser (estas trs coisas significam o mesmo) sob a

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    conduo da Razo, segundo o princpio da procura da prpria utili-dade. (Spinoza, 1983, t.2, parte IV, proposio XXIV, p.49)

    A pergunta pragmtica sobre a potncia de um corpo torna-se pertinente, uma vez que o mesmo disponha de um estatuto equiva-lente ao da ideia (SPE, 1968 [1968a], p.233-4; CC, 1993a, p.154). Caso contrrio, estaramos indagando e a estaramos diante de um questionamento moral em qu a ideia ou a alma completa uma falta ou deficincia devida ao modo de existncia dos corpos. A fim de que a questo prtica seja uma extenso imediata do paralelismo ontolgico, corpos e ideias precisam atender s mesmas regras, muito embora suas propriedades sejam diferentes, visto que so modos de atributos diversos. A tica espinosana, ento, compreende uma fsica dos corpos e das ideias, tendo em vista seus encontros. Sem esse aspecto, o que comumente denominamos tica, para Espinosa nada mais seria do que uma moral uma moral na qual estivesse em evidncia algum tipo de precedncia da ideia ou do esprito sobre o corpo, assevera Deleuze (SPE, 1968 [1968a], p.247-51; CC, 1993a, p.27-43). Tal equivalncia d-se estritamente em virtude da relao entre objeto e ideia especficos que constituem alma, posto que, afirma Espinosa, o objeto da ideia que constitui a Alma humana o Corpo, isto , certo modo da extenso existente em ato e nada mais (Spinoza, 1983, t.1, parte II, proposio XIII, p.143). E no se pode atribuir alma qualquer domnio sobre o corpo, pois, alm de essa precedncia no ser demonstrvel do ponto de vista ontolgico, tambm no o do ponto de vista da conteno do senso comum, j que assevera Espinosa:

    o Corpo pode, pelas prprias leis de sua natureza, muitas coisas que causam admirao sua Alma [...] Disso se segue que os homens, quando eles dizem que tal ou qual ao do corpo vem da Alma e que ela tem um imprio sobre o Corpo, no sabem o que dizem e no fazem nada mais do que confessar em uma linguagem especiosa sua ignorncia da verdadeira causa de uma ao. (ibidem, t.1, parte III, proposio II, esclio, p.251)

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    Tomemos, ento, o paralelismo entre o atributo pensamento e o atributo extenso e afirmemos que ambos so atributos da substncia mltipla. Considerados separadamente, temos que o pensamento leva para seus modos existentes que so as ideias a marca da coexistncia com a extenso, no seio da substncia mltipla. O mesmo pode ser dito dos corpos como modos do atributo extenso; eles trazem para a existncia do modo a marca virtual da substncia mltipla.6 Assim, existe uma correspondncia entre a srie das ideias e a srie dos corpos que permanece virtual na existncia individual de cada exemplar de ideia e de corpo. Ora, isto claramente declarado por Espinosa: a ordem e a conexo das ideias so as mesmas que a ordem e a conexo das coisas (ibidem, t.1, parte II, proposio VII, p.127). Isto equivale a dizer, segundo Deleuze, que cada modo possui um ser formal devido sua coexistncia paralela, alm de um ser objetivo devido sua existncia modal. As realidades objetiva e formal de um modo, e particularmente dos corpos e das ideias, so uma decorrncia necessria da aplicao do paralelismo ontolgico substncia mltipla, do ponto de vista da coexistncia entre os atributos extenso e pensamento.

    Por conseguinte, um corpo tem uma realidade objetiva, isto , ele este corpo, um modo existente, juntamente com uma realidade formal, quer dizer, este corpo uma modificao da extenso, a qual, sendo uma intensidade deste atributo, coexiste em imanncia com o atributo pensamento e com uma infinidade de outros atributos no aces-sveis ao homem. As realidades formais de nossos corpos e de nossas ideias, portanto, ligam-nos com uma infinidade de modificaes da substncia. O inatismo, em Espinosa, pode ser associado fielmente a essa coexistncia virtual dos atributos. O curioso, a propsito, que esse inatismo no apenas relativo s ideias, mas tambm aos corpos.

    6 O problema ontolgico da coexistncia dos atributos foi tratado por ns em Car-doso Jr. (1996, p.92-3, Coexistncia/coextenso dos regimes de multiplicidade: Imanncia de paralelismo e imanncia harmnica).

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    Pequeno excurso sobre o paralelismo ontolgico e a noo de inconsciente em Espinosa

    Encontra-se a, igualmente, a via para um conceito espinosano de inconsciente, pois a realidade formal de corpos e ideias coloca o ho-mem em contato com uma infinidade de qualidades no conscientes ou desconhecidas. Segundo expresso de Espinosa, a infinidade de atributos deve ser considerada com uma ressalva em relao aos dois atributos conhecidos pelo homem (pensamento e extenso), de maneira que somos obrigados a dizer desses infinitos atributos desconhecidos que existem sem, todavia, dizer que coisas so. A respeito desses atributos inconscientes, continua Espinosa, no mesmo trecho:

    serei constrangido a dizer que no deixariam de ser as mesmas, ainda que eu ou qualquer homem jamais nelas tivesse pensado e por isso, ento, no so criadas por mim e devem mesmo ter fora de mim um subjectum que no sou eu sem o qual no podem existir. (idem, 1986a, parte I, cap. 1, 7, p.135)

    De certa forma, a conquista desse inconsciente passa pelo conhe-cimento proporcionado pelos encontros de corpos e de ideias. que, segundo Deleuze, o inato em Espinosa possui uma dupla face, ou seja, os corpos comunicam-nos com uma potncia de agir e as ideias com uma potncia de pensar que so inatas em ns, mas temos acesso a essas potncias e estamos em posse das mesmas em graus diversos (SPE, 1968 [1968a], p.285-7). A ligao entre a alma e o corpo, entre a potncia de agir e a potncia de pensar, d-se por meio do desejo, pois, segundo Espinosa,

    o apetite no por isso nada mais do que a prpria essncia do homem, da natureza do qual provm necessariamente o que serve para sua con-servao; e o homem assim determinado a faz-lo. Alm disso, no h nenhuma diferena entre Apetite e Desejo, seno que o Desejo se refere geralmente aos homens, enquanto eles tm consciente de seus apetites e pode, por essa razo, se definir assim: o Desejo o Apetite com conscincia de si mesmo. (Spinoza, 1983, t.1, parte III, proposio IX, esclio, p.265)

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    O desejo a expresso da ligao entre a alma e o corpo porque ele indica o esforo da alma em perseverar nas ideias que constituem sua essncia e, como as ideias que constituem os corpos so ideias de corpos, ento, o corpo tambm est implicado nesse esforo da alma. O desejo, como um elemento vital para a alma e para o corpo, determina o que so as coisas boas, pois que contm o elo entre as afeces do corpo e as ideias da alma; ento, no desejamos qualquer coisa porque a julgamos boa; mas, ao contrrio, ns julgamos que uma coisa boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e desejamos (ibidem). O desejo, assim, relaciona-se com a variao de nossas potncias inatas, visto que, se qualquer coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potncia de agir de nosso Corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, facilita ou reduz a potncia de nossa Alma (ibidem, t.1, parte III, proposio XI, p.267).

    Assim, o conhecimento tanto uma experimentao dessas potncias desejantes que so as ideias e os corpos, quanto uma ver-dadeira conquista do inconsciente que se abre para a multiplicidade da substncia mltipla, do no dado (cf. Silva, 2000, p.145-9, a res-peito de um inconsciente definido a partir de recursos do ontologia de Espinosa).

    Paralelismo ontolgico sem equivalncia de corpos e ideias quanto s suas propriedades

    O paralelismo ontolgico confere um mesmo estatuto a corpos e ideias com relao imanncia da substncia mltipla; no implica que ambos tambm se equivalham quanto a suas propriedades em face dessa mesma substncia. Tratemos de mais este aspecto do paralelismo, para terminar esta parte.

    De fato, uma ideia, tambm possuidora de realidade formal e objetiva, participa de um carter distinto: que a ideia, alm de sua relao atributo pensamento/modo do pensamento, conjuga o ser formal e o ser objetivo dos corpos. um modo, por assim dizer, do-tado de plasticidade, mas sua constituio ontolgica perfeitamente

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    equivalente dos modos da extenso, diferindo apenas em sua funo atributiva. Tal caracterizao do modo do pensamento confere-lhe, como veremos, uma funo de representao em relao aos modos da extenso; no entanto, as ideias no se definem essencialmente por este papel.

    Uma ideia, enquanto vnculo entre o ser formal e o ser objetivo deste corpo, encontra nele uma realidade objetiva, quer dizer, a ideia, por um lado, representa alguma coisa, um modo repre-sentativo do pensamento, diz Deleuze (aula, 1978). A ideia, por outro lado, possui uma realidade formal, pois tambm uma mo-dificao da substncia com relao ao atributo pensamento; assim como um corpo, ela alguma coisa. Neste caso, Espinosa refere-se realidade formal de uma ideia como o grau ou perfeio de uma ideia enquanto tal (idem, ibidem). Para Espinosa, aqui enfatizando o aspecto no representacional das ideias, a realidade formal de uma ideia so suas propriedades ou denominaes intrnsecas, independentes do que extrnseco, a saber, o acordo da ideia com o objeto do qual ela ideia (Spinoza, 1983, t.1, parte II, definies III e IV, explicao p.117), quer dizer, quanto ao ser formal das ideias, remata Espinosa, as ideias tanto dos atributos de Deus quanto das coisas singulares no reconhecem por causa eficiente os objetos dos quais elas so ideias (ibidem, t.1, parte II, proposio V, p.124-5). E a realidade formal sua perfeio, visto que por realidade e por perfeio eu entendo a mesma coisa (ibidem, t.1, parte II, definio VI, p.117). Assim, temos que a realidade objetiva de uma ideia o objeto que ela representa, e a sua realidade formal tal que somos por ela afetados, de acordo com sua perfeio. O problema pragmtico contido nessa passagem que, quando encontramos uma ideia, sua realidade formal nos afeta sem que se desfaa a ligao com o corpo por ela representado, isto , sua realidade objetiva. Contudo, o que os graus variados de perfeio de uma ideia provocam em ns?

    Surge, quanto a essa questo, o importante conceito espinosano de afecto.

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    Conceito de afecto e encontro de corpos/ideias: o no representacional como carter da questo pragmtica

    O conceito de afecto, como veremos, tem um papel importante com relao ao paralelismo ontolgico em pauta, pois ele permite que haja reciprocidade o afecto transitivo, diz Deleuze entre o atributo pensamento e o atributo extenso sem que a distino entre ambos seja destituda. O afecto um agente de complicao do paralelismo ontolgico e, na medida em que ele ter algum efeito sobre a relao entre copos e ideias (relao modal), constitui-se, igualmente, como importante elo a ser delineado para a questo pragmtica presente no pensamento de Deleuze, posto que o conhecimento depende da percepo que tal ou qual alma tem das afeces por que passa o corpo ao qual ela est unida, j que a Alma somente se conhece a si mesma enquanto ela percebe as ideias das afeces dos corpos. Em outras palavras, a Alma humana no se conhece por si mesma (ibidem, t.1, parte II, proposio XXIII e demonstrao, p.175).

    O afecto (affectus) o efeito de outros corpos sobre nosso corpo, na medida em que, sendo um corpo realidade objetiva para uma ideia e dispondo de sua prpria realidade formal, este corpo nos afeta de alguma maneira. O mesmo raciocnio pode ser estendido a uma ideia, pois ela tambm produz afecto como efeito de sua realidade formal, ou seja, de seu grau de perfeio. Uma ideia, portanto, devido a um corolrio decorrente do paralelismo ontolgico, tambm deve dispor de um poder de afetar (SPE, 1968 [1968a], p.199-200; SPP, 1981 [1981a], p.70-2). Mas, seja em funo de um corpo seja em funo de uma ideia, um afecto sempre suscita uma ideia que nada representa. Quer dizer, os afectos so efeitos dos corpos ou das ideias que produzem ideias que so modos do pensamento. As ideias relacionadas com os afectos, como veremos adiante, so o alicerce sobre o qual se erguem os gneros de conhecimento. O afecto, por um lado, , como a ideia, um modo do pensamento, porm, como nada representa, um modo no represen-tativo do pensamento, diz Deleuze (aula, 1978). Um modo no repre-sentativo do pensamento. O que isso? E por que o pensamento no re-presentacional efetuado pelo afecto conteria uma questo pragmtica?

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    Se, como vimos, a ideia com sua realidade formal prpria liga a realidade objetiva do corpo sua realidade formal, ento o afecto o que h de diverso entre um corpo e a ideia que representa tal corpo, ou seja, suas respectivas realidades formais. O afecto , por assim dizer, um modo que participa tanto das ideias quanto dos corpos. E deles participa da tal modo que no permite que a relao entre ideias e cor-pos se restrinja representao. Por isso, diz Deleuze, apoiando-se na tica, certo que o afecto supe uma imagem ou ideia, e dela decorre como de sua causa [...] Mas a ela no se reduz, de outra natureza, sendo puramente transitivo, e no indicativo ou representativo (SPP, 1981 [1981a], p.70).

    Naturalmente, alerta Deleuze, h uma precedncia lgica e cro-nolgica da ideia sobre o afecto, mas seria empobrecedor transformar essa precedncia em reduo do afecto ideia, pois, ento, a realidade formal da ideia tambm se reduziria sua realidade objetiva. Se as-sim fosse, nossas ideias seriam to somente representativas e nossas sensaes passariam como meros efeitos dessas representaes. Com isso, as ideias e os corpos no nos afetariam diretamente por sua reali-dade formal, nem poderamos aferir nossa capacidade de ser por eles afetados. Se essa reduo prevalecesse, ento as ideias se tornariam categorias segundo as quais as caractersticas dos corpos so distri-budas (por exemplo, no registro aristotlico, a qualidade, quantidade, relao etc.). J os afectos desfazem os limites categoriais, no so mais as ideias que se atribuem aos corpos como categorias; corpos e ideias passam a variar segundo graus de potncia, isto , de acordo com os afectos correspondentes.

    Eu, por exemplo, posso ter minha potncia aumentada ao ser afetado por meu co de estimao; uma ideia filosfica, como a ideia kantiana de Deus, pode me afetar bem menos. Sei, alm disso, que outros corpos ou outras ideias podem me afetar de maneiras variveis; saio na rua e um cachorro me morde, no lhe apraz meu odor, sou afe-tado de tristeza (minha potncia decresce); pego ao acaso um livro de Espinosa e encontro uma ideia de Deus que no possui a mesma face que a kantiana, sou afetado de alegria (minha potncia cresce). Eis um mundo pragmaticamente concebido segundo o carter operatrio dos

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    afectos, um mundo de intensidades e de suas variaes instantneas, onde cada um precisa conhecer/experimentar os afectos e com eles elaborar uma cartografia de seu poder de afetar e de ser afetado. Trata--se de um mundo onde a ordem das categorias foi desmontada ou, pelo menos, onde seus limites se mostram bem mais fluidos.

    Em que pesem os exemplos anteriores e prosseguindo nos desdo-bramentos da reduo representacional apontada, pode-se afirmar que, se houvesse to somente realidade objetiva da ideia, ento a liga-o que funo da ideia entre o ser formal e o ser objetivo de um corpo se daria de tal modo que a ideia somente encontraria no corpo um objeto de representao. O ser formal do corpo seria assimilvel a seu ser objetivo. Desta maneira, estaria perdida a marca da pertena do modo existente corpo ao atributo extenso em sua imanncia com o atributo pensamento, e com uma infinidade de outros atributos no humanos, no seio da substncia mltipla.

    Somente pelo conceito de afecto um inconsciente espinosano torna--se possvel, j que, como informa Espinosa, toda ideia deve partir de algo que surge atualmente na natureza e, sendo a mente modificao do pensamento que rene todas as ideias, ento, a mente no s envolve as ideias que nascem das modificaes do corpo, mas igualmente aquelas que nascem da existncia de uma modificao qualquer dos atributos restantes (Spinoza, 1986a, apndice II, 12).

    Igualmente, a ideia, no sendo mais do que realidade represen-tacional, somente teria o ser formal, enquanto esse no fosse mais a marca de imanncia do atributo pensamento, mas a possibilidade de representar-se como ser objetivo, isto , como existncia da ideia necessariamente ligada representao de um objeto. O paralelismo ontolgico de Espinosa estaria assim destitudo por duas vias. Ou a representao seria uma prerrogativa da ideia, dotando-a assim de um vetor que visa objetividade, a fim de que a relao entre as ideias e os corpos pudesse ser resolvida to somente em nvel de suas existncias atuais, ou a representao seria uma funo mediadora entre ideias e corpos, neste caso situando-se alm de suas existncias e, ao mesmo tempo, outorgando ideia uma existncia mais agraciada que a dos corpos.

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    O mundo de Espinosa , em certo sentido, antirrepresentacional. Dissolve-se em cadeia desde que, no nvel mais simples, o dos modos existentes, a representao assuma um papel proeminente ou media-dor. At mesmo a substncia mltipla, que Deus, desfaz-se. O Deus de Espinosa , segundo Deleuze, um plano de imanncia para a criao de conceitos inovadores, como vimos (cf. Cardoso Jr., 1996, p.87-9),7 e no uma substncia dcil a uma lgica da representao. Assim, pode--se dizer com nfase que a pragmtica menor de Deleuze baseia-se em um pensamento da no representao. No se trata apenas, diga-se, da rejeio de um modo de pensar cannico ou estatutrio na histria da filosofia, mas dos desdobramentos que esta rejeio apresenta em termos de pensar a imagem do pensamento como um todo, particu-larmente quanto questo pragmtica nela contida.

    Determinando a questo pragmtica segundo os afectos passivos: apresentao do primeiro gnero de conhecimento

    Sucesso de ideias x variao de afectos; critrio pragmtico-etolgico para classificao das ideias de acordo com os afectos que as mesmas determinam

    Agora j podemos afirmar que, na exposio anterior da teoria espinosana das ideias, o afecto surge como o vetor do suposto vnculo prtico ou questo pragmtica que dizamos figurar na epistemologia espinosana. Tal funo ainda precisa ser demonstrada, em vista dos gneros de conhecimento. No obstante, j possvel inferir uma lio deleuzeana. que o afecto, seja qual for seu alcance em uma epistemologia prtica, confere teoria das ideias uma dimenso no representacional, o que afetar sobremaneira, como veremos, a noo de conhecimento em Espinosa. O modo representativo do

    7 Em Representao e conceito como expresses da substncia mltipla.

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    pensamento tem um lugar na teoria do conhecimento de Espinosa, na medida em que respeite estritamente a sua diferena de natureza com relao ao modo no representativo do pensamento. Vejamos, portanto, mais de perto, a definio de afecto, enfatizando agora a sua diferena para com a definio de ideia, tendo em vista que a relao entre ambos constitui o elemento-chave do modo no representativo e pe em questo um problema prtico-epistemolgico como inte-grante da pragmtica menor.

    J sabemos, e foi Deleuze quem nos alertou para esse aspecto, que o afecto refere-se ao grau de perfeio de uma ideia realidade formal e que, por isso, pressupe o grau de perfeio que essa ideia representa. Contudo, no custa repetir, afecto e objeto no se confundem. Para ilustrar esta pressuposio sem reduo, Deleuze fornece o exemplo de Deus e da r. A ideia de Deus e a ideia de r tm realidades objetivas diversas, mas tambm no tm a mesma realidade formal, pois a ideia de Deus contm um grau de perfeio infinitamente superior ao da ideia de r. Portanto, os afectos produ-zidos pela ideia de Deus so infinitamente maiores que os produzidos pela ideia de r (Deleuze, aula, 1978).

    Um afecto no representa, por exemplo, dois estados de um corpo (o meu) quando ele afetado por duas ideias (a de r e a de Deus), mas uma variao da potncia de agir ou fora de existir desse corpo, da mesma forma que a ideia que surge desse afecto apresenta uma variao da potncia de pensar da alma afirmando um grau de perfeio ou realidade formal, pois l-se em Espinosa:

    se digo fora de existir maior ou menor que antes, no entendo absoluta-mente com isso que a Alma compara o estado presente do Corpo com o passado, mas que a ideia constituindo a forma da afeco afirma do Corpo algo que envolve efetivamente mais ou menor realidade que an-tes. E como a essncia da Alma consiste em que ela afirma a existncia atual de seu Corpo, e que por perfeio entendemos a prpria essncia de uma coisa, segue-se ento que a Alma passa a uma perfeio maior ou menor, quando lhe acontece afirmar de seu Corpo, mais ou menos realidade que antes. (Spinoza, 1983, t.1, parte III, definio geral dos afectos, explicao, p.401-2)

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    Uma vez mais pode-se dizer: os afectos e as ideias deles decorrentes so da ordem da variao da potncia (de existir ou de pensar), so da ordem da transitividade das realidades formais e no da representao objetiva.

    Mas, afinal, o que os afectos afetam, de maneira que se justifique sua diferena como modo de pensamento que no representativo?

    Em primeiro lugar, as ideias e os afectos so recebidos de modo diverso. Outro exemplo utilizado por Deleuze (ibidem), ilustrando a maneira como recebemos ideias ao passearmos pela rua, pode ser apropriadamente retomado aqui, a fim de respondermos questo formulada. As ideias sucedem-se: olho para um lado e para outro; saio na rua, encontro Paulo e Joo; tenho ideias das coisas que vejo a cada instante. Em todo caso, as ideias no param de se suceder. Espinosa caracteriza o aparecimento das ideias, afirmando que, em relao a elas, somos automaton. Quer dizer, segundo Deleuze, no podemos afirmar, a rigor, que temos ideias, pois so as ideias que aparecem e nos foram a pens-las: as ideias so afirmativas. J, parte a sucesso de ideias, que como a projeo de um filme em que ns prprios somos a tela, alguma coisa varia em ns e no cessa de variar enquanto passam as ideias. As ideias de Joo e Paulo sucedem-se quando os encontro na rua, mas acontece em mim outra coisa: Joo me antiptico e me deixa triste; ao contrrio, quando vejo Paulo, fico alegre. O que varia minha fora de existir (vis existendi) ou potncia de agir (potentia agendi), comenta Deleuze (ibidem).

    O mais importante que a sucesso das ideias diferente da va-riao dos afectos.

    De acordo com Deleuze, este carter da teoria espinosana das ideias possui uma face bastante prtica e concreta, ou seja, ela est mergulha-da na existncia comum, e prope uma etologia dos afectos. A ideia de Joo e a ideia de Paulo tm realidades formais diferentes, ou seja, para mim, o grau de perfeio da ideia de Paulo maior que o grau de perfeio da ideia de Joo. Se a ideia de Paulo sucede ideia de Joo, do ponto de vista da potncia de pensar, do ponto de vista da potncia de existir, pode-se dizer que a ideia de Joo diminui minha fora de existir ou minha potncia de agir, ao passo que a ideia de Paulo a aumenta.

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    Pode-se afirmar, para lanar mo de termos equivalentes, que quando a ideia de Paulo sucede ideia de Joo, passo de um nvel de perfeio a outro, isto , varia minha potncia de agir ou fora de existir, conforme caracteriza Deleuze a partir do exemplo que desenvolve.

    A variao define o afecto, na medida em que este, ao mesmo tempo, relaciona-se com as ideias (realidade formal) em sua diferena de natureza com elas. A passagem entre um grau de perfeio e outro determinada pela ideia, porm essa transio no ela prpria uma ideia. um afecto, um modo do pensamento que no representativo, vale lembrar. Quando passo da ideia de Joo ideia de Paulo minha potncia de existir se v aumentada, mas isso significa simultaneamente que Joo afeta-me de tristeza e Paulo de alegria. Os afectos so deter-minados por ideias. H, portanto, vrias espcies de ideias segundo os afectos que elas determinam e seu vnculo pragmtico com a potncia de existir declarado por Espinosa da seguinte maneira: a Alegria a passagem do homem de uma menor para uma maior perfeio, e a Tristeza a passagem do homem de uma maior a uma menor perfei-o (Spinoza, 1983, t.1, parte III definio dos afectos II e III, p.367).

    Os gneros de conhecimento so definidos de acordo com esses tipos de ideias e os afectos especficos que correspondem a cada um desses tipos.

    Primeiro gnero de conhecimento e ideias-afeco, viver ao acaso dos afectos passivos, alegria e inteligncia

    Em primeiro lugar, h as ideias-afeco. A afeco o estado de um corpo quando ele sofre a ao de outro corpo (Deleuze, aula, 1978). o efeito ou ao de um corpo sobre meu corpo, supondo que haja mistura ou encontro de corpos. Como a afeco est ligada a um efeito, as ideias que se formam a partir da (ideias-afeco) permitem que eu conhea mais sobre a constituio de meu corpo do que sobre a constituio do corpo que me afeta. A ideia-afeco prende-se sucesso das ideias e s suas realidades objetivas, isto , registra passivamente os afectos dos corpos e, por isso, diz-nos mais sobre o

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    estado atual de nosso corpo do que sobre a causa desse estado (SPE, 1968 [1968a], p.199-200).

    Segundo exemplo de Espinosa, quando observamos o Sol, supo-mos que ele est prximo da Terra devido afeco que ele provoca em ns. Imaginamos, assim, que a distncia entre a Terra e o Sol pequena. Contudo,

    mais tarde, com efeito, ao saber que o sol est distante mais de seiscentas vezes o dimetro terrestre, ns no deixaremos de imaginar que ele est perto de ns; pois imaginamos o sol to prximo porque ignoramos sua verdadeira distncia, mas porque uma afeco de nosso Corpo envolve a essncia do sol, enquanto o prprio corpo afetado por este astro. (Spinoza, 1983, t.1, parte II, proposio 35, esclio, p.193)

    Em suma, o conhecimento que podemos alcanar com uma afeco simplesmente baseado no efeito da mistura entre dois corpos, no caso, o encontro do sol com os olhos, e no na causa dessa mistura. O conhecimento fornecido pelas afeces no nos permite conhecer as causas. De certa forma, apenas indica que estamos numa condio bastante desfavorvel, ou melhor, incipiente ou imperfeita, com relao ao encontro de corpos. Alm disso, esse conhecimento classificado por Espinosa como de primeiro gnero totalmente relativo, quer dizer, diz respeito a um corpo em particular e ao efeito peculiar que nele se deu. Por exemplo, outro animal, como uma mosca, receberia outra ideia-afeco com respeito ao sol, pois seus olhos so um corpo diferente dos olhos humanos. um conhecimento relativo pois depende do encontro de corpos cuja diversidade, por sua vez, interfere no efeito provocado pelo seu encontro. O primeiro gnero de conhecimento um conhecimento por signos, isto , indica a natureza do corpo modificado e envolve a natureza do corpo modi-ficador, pois afirma Espinosa: todas as maneiras, com efeito, pelas quais um corpo afetado provm da natureza do corpo afetado e, ao mesmo tempo, da do corpo que o afeta; ento, a sua ideia envolver necessariamente a natureza de um e de outro corpo (ibidem, t.1, parte II, proposio XVI p.159).

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    Mas no se pode conhecer, afinal, de que maneira se d o encontro entre os dois corpos, qual a razo de um encontro entre corpos. um conhecimento, mas, segundo expresso de Espinosa, o obtemos mediante ideias inadequadas, isto , ideias que esto separadas da causa do encontro dos corpos, so ideias da imaginao (SPE, 1968 [1968a], p.130-2). Em todo caso, caracteriza Espinosa, a ideia de uma afeco qualquer do Corpo humano no envolve o conhecimento adequado do corpo exterior (ibidem, t.1, parte II, proposio XXV, p.177). Mas o dficit das ideias-afeco, como vimos, vale para o prprio corpo que sofre a afeco, j que a ideia de uma afeco qualquer do Corpo humano no envolve o conhe-cimento adequado do prprio corpo humano (Spinoza, 1983, t.1, parte II, proposio XXVII, p.181).

    Como esse gnero de conhecimento o mais simples baseia-se em ideias que esto separadas das causas, os afectos que o acom-panham so passivos tristeza e alegria; so, a bem dizer, paixes, ensina Deleuze, com o respaldo de Espinosa: uma coisa qualquer pode ser por acidente cause de Alegria, de Tristeza e de Desejo (ibidem, t.1, parte III, proposio XV, p.273).

    Este conhecimento por afeces corresponde ao conhecimento representativo, pois nele os afectos modo no representativo do pensamento indicam to somente que a realidade formal da ideia est apontando com certa exclusividade para sua realidade objeti-va, ou seja, para o objeto que ela representa. O que efetivamente os afectos indicam que estamos presos, suscetveis, variao de nossa potncia de agir; isto porque as ideias que temos dos corpos ou ideias que encontram nosso corpo so apenas representaes dos traos que estes corpos ou ideias exteriores deixaram sobre ns. Logo, tanto no nvel dos afectos quanto no das ideias, este conhecimento nos deixa relegados ao acaso dos encontros. Somente posso dizer que tal encontro me convm ou no, pois somente a convenincia dos corpos e das ideias que chego a conhecer por meio de seus efeitos. Deste ponto de vista, o da casualidade dos encontros e o do imedia-tismo do primeiro gnero de conhecimento, as misturas de corpos e as misturas de ideias no diferem.

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    As ideias-afeco, portanto, implicam uma variao de nossa potncia de agir. Em contrapartida, como elas determinam afectos, pode-se dizer que, em relao ao primeiro gnero de conhecimento, so afectos passivos alegria e tristeza que vm preencher a capaci-dade de sermos afetados. Outra maneira de exprimir esta passagem, para lanarmos mo de termos j empregados, que o conhecimento de primeiro gnero, por meio de ideias-afeco, observa a variao de nossa potncia de agir sob o prisma da sucesso das ideias e, portanto, de sua realidade objetiva. As ideias-afeco, logo, no esto atentas realidade formal (no representativa) das ideias. O encontro com um corpo altera nossa potncia de agir, mas como estamos presos ao imediatismo desse encontro, isto , afeco de outro corpo sobre o nosso, a ideia que temos dessa afeco a ideia de um efeito, que o estado em que meu corpo se encontra enquanto afetado. Assim, diz Deleuze, a ideia-afeco afeco de afeco (SPE, 1968 [1968a], p.199); ela somente nos faz conhecer a maneira pela qual dois modos se encontram.

    A principal implicao filosfica do primeiro gnero de conheci-mento espinosano, destaca Deleuze, seu anticartesianismo (ibidem, p.13). Pois, se o conhecimento disponvel para ns se d por meio dos corpos (modificaes da extenso) e das ideias (modificaes do pen-samento), se estamos fadados, necessariamente no incio, a conhecer os corpos exteriores apenas pelas ideias-afeco que eles produzem sobre nosso corpo, ento a coisa pensante cartesiana seria um ponto de partida excessivamente privilegiado. O cogito, na medida em que pressupe isolamento com relao ao mundo exterior, atribuiria ao homem uma perfeio que ele no possui. Seria, de certa forma, mim--lo, protegendo-o dos encontros fortuitos de corpos e ideias.

    Sem dvida, para Espinosa (s. d., 19, ver tb. 29), conhecer a ideia verdadeira, a certeza, diz respeito ao melhor modo de percepo, isto , a percepo em que uma coisa percebida apenas mediante sua essncia. Porm, a essncia corresponde a um modo de percepo que necessita precipuamente do conhecimento da essncia objetiva, isto , no necessria a posse formal do conhecimento cogito. Nas palavras de Espinosa, para a certeza da verdade, mais nenhum sinal

  • PRAGMTICA menor EM GILLES DELEUzE 49

    necessrio alm da posse da verdadeira ideia, pois, como ficou de-monstrado, nem necessrio saber que eu sei (ibidem, 35).8

    A partir da o problema da teoria das ideias, e consequentemente de sua tica, saber de que maneira poderemos sair do mundo das ideias-afeco, dessas ideias inadequadas que nos parecem condenar ao conhecimento dos efeitos e no das causas e, portanto, casualidade dos encontros e de seus afectos passivos. Bem, as ideias-afeco esto relacionadas aos afectos passivos de alegria e tristeza. Contudo, ser que o carter passivo desses afectos encobre ou equaliza, do ponto de vista do conhecimento de primeiro gnero, a diferena entre tristeza e alegria? Essa pergunta importante para prosseguirmos no exame da questo pragmtica contida no primeiro gnero de conhecimento, conforme fora estipulado por Espinosa.

    As variaes dos afectos (alegria/tristeza) significam que estamos merc dos aumentos-diminuies de nossa potncia de agir, embora estejamos momentaneamente menos presos a essa variao quando nossa potncia de agir aumenta, isto , quando somos afetados de alegria. Quando experimentamos alegria, desejaramos permanecer nesse estado, portanto o aument