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Práticas de Leitura e Escrita Organização Maria Angélica Freire de Carvalho Doutorado em Lingüística pela Unicamp, Analista Educacional do programa Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC. Rosa Helena Mendonça Mestrado em Educação pela PUC-Rio, Supervisora Pedagógica do programa Salto para o Futuro/ TV Escola/SEED/MEC.

práticas de leitura e escrita

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  • Prticas de Leitura e Escrita

    Organizao

    Maria Anglica Freire de CarvalhoDoutorado em Lingstica pela Unicamp, Analista Educacional do programa

    Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC.

    Rosa Helena MendonaMestrado em Educao pela PUC-Rio, Supervisora Pedaggica do programa

    Salto para o Futuro/ TV Escola/SEED/MEC.

  • Presidente da Repblica Federativa do BrasilLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da EducaoFernando Haddad

    Secretrio-ExecutivoJos Henrique Paim Fernandes

    Secretrio de Educao a DistnciaRonaldo Mota

    Departamento de Produo e Capacitao em Programas de EaDLeila Lopes de Medeiros

    Coordenao-Geral de Produo e Programao da TV EscolaViviane Viana

    OrganizaoMaria Anglica Freire de CarvalhoRosa Helena Mendona

    Colaborao TcnicaCarlos Frederico Rolim

    RevisoOmar Santos

    Projeto Grfico, Diagramao e CapaBrbara Bela Editora Grfica e Papelaria Ltda.

    ImpressoBrbara Bela Editora Grfica e Papelaria Ltda.

    Tiragem desta edio: 82.000 exemplares

    PblicaoMinistrio da Educao - MECSecretaria de Educao a Distncia - SEEDEsplanada dos Ministrios, Bloco L, 1 andar70047-900 - Braslia-DFTelefone: (61) 2104-8975Fax: (61) 2104-9159E-mail: [email protected] [email protected]

    Internet: http://tvescola.mec.gov.brP912 Prticas de leitura e escrita / Maria Anglica Freire de

    Carvalho, Rosa Helena Mendona (orgs.). Braslia : Ministrio da Educao, 2006.

    180 p. ; 28 cm.

    1.Alfabetizao. 2. letramento. 3. educao. 4. leitura. I. Carvalho, Maria Anglica Freire de. II. Mendona, Rosa Helena.

    CDU: 37 CDU: 37.014.22

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao

  • Cara Professora, Caro Professor,

    No ar desde 1991, e na grade da TV Escola a partir de 1996, o programa Salto para o Futuro produz sries voltadas para a formao continuada de professores e de alunos do Magistrio, pro-movendo um dilogo por meio de diferentes mdias TV, internet, telefone e material impresso democratizando, assim, as oportunidades de interao e de acesso ao conhecimento.

    A riqueza e a contemporaneidade dos temas abordados, bem como a pluralidade/diversi-dade brasileira que as sries retratam, fazem do Salto como carinhosamente chamado pelos professores um convite ao exerccio da autonomia e da criatividade.

    Os boletins, os programas televisivos e o site no qual se encontram entrevistas, fotos e outros recursos multimdia (http://tvescola.mec.gov.br) oferecem aos professores, aos gestores, aos cursos de formao de docentes, s escolas e aos sistemas educacionais um poderoso instrumento para que, autonomamente, possam organizar processos de formao em servio, propor reflexes e implementar projetos de trabalho que contribuam para o desenvolvimento profissional e para o aprimoramento contnuo do trabalho em sala de aula.

    A recepo organizada do Salto para o Futuro e a explorao de seu potencial pedaggico proporcionam comunidade educacional o acesso formao continuada, incentivando a adoo de uma cultura de permanente qualificao profissional.

    Esta publicao que a Secretaria de Educao a Distncia do Ministrio da Educao oferece aos educadores brasileiros traz a possibilidade de uma reflexo sobre os processos de leitura e de escrita, sob o enfoque dos gneros discursivos e das prticas de letramento, por meio da seleo de textos publicados em sries produzidas pelo Salto para o Futuro, compreendendo os anos de 2000 a 2005.

    Por isso, desejo que todos faam o melhor uso deste material e que possam desfrutar das riquezas que ele dispe em sua totalidade.

    Boa leitura,

    Ronaldo MotaSecretrio de Educao a Distncia/MEC

  • Escrever, eu j andava rabiscando mesmo antes de entrar para a escola. Escrevia nas paredes do galinheiro, no cimento do tanque ou no passeio da rua. Arranjava um pedao de carvo, de tijolo, de caco de telha, pedra de cal. Minhas irms me pediam para traar amarelinha no quintal. Eu caprichava. Usava uma vareta de bambu sobre a terra batida. Alm de fazer as casas bem quadradas e certas, ainda escrevia os nmeros e as palavras cu e inferno. De tanto as meninas pularem em cima, as palavras se apagavam, aos poucos, mas escrever de novo no era sacrifcio para mim.

    Comecei a escrever um nome feio e pequeno, por onde passava. Descontava minha raiva na parede da igreja ou nos muros do cemitrio. Escrevia na maior rapidez. Meu irmo, Jos, ia atrs arrumando minha indecncia e desrespeito. Crescia em mim uma inveja grande de sua inteligncia. Ele puxava mais uma perninha no u e fazia uma voltinha em outra perna e virava e. Ento ele botava um acento, e pronto! A palavra feia e imoral se transformava na palavra cu*.

    *QUEIRS, Bartolomeu Campos. Ler, escrever e fazer conta de cabea, Belo Horizonte, Miguilim, 1997, p.40-41

  • 6Sumrio

    Apresentao dos Organizadores ..............................................................................................................................08

    1. Prticas de letramento e processos de alfabetizao ............................................................................................101.1. Alfabetizao, leitura e escrita - (Antnio Augusto Gomes Batista) ..............................................................12

    1.1.1. Alfabetizao e letramento: os desafios contemporneos ....................................................................131.1.2. Fracasso da alfabetizao ......................................................................................................................141.1.3. Alfabetizao no Brasil .........................................................................................................................151.1.4. A ressignificao do conceito de alfabetizao nos Censos ..................................................................16

    1.2. O que ser alfabetizado e letrado? - (Maria da Graa Costa Val) .................................................................181.2.1. Conceituao ........................................................................................................................................191.2.2. Alfabetizao e letramento na sala de aula ..........................................................................................191.2.3. Palavras finais .......................................................................................................................................23

    1.3. Letramento e diversidade textual - (Roxane Rojo) .......................................................................................241.3.1. Prticas de uso e atividades de linguagem ...........................................................................................251.3.2. Textos (enunciados) e gneros .............................................................................................................261.3.3. As situaes comunicativas ...................................................................................................................271.3.4. Alfabetizao, letramento e gneros do discurso .................................................................................281.3.5. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................29

    1.4. Organizando as classes de alfabetizao: processos e mtodos - (Maria das Graas de Castro Bregunci) ...301.4.1. A metodologia da alfabetizao: trajetria de alguns princpios permanentes ..................................311.4.2. Desafios atuais quanto s escolhas metodolgicas para a alfabetizao ..............................................311.4.3. O planejamento e a organizao do trabalho em torno da alfabetizao ...........................................321.4.4. Palavras finais .......................................................................................................................................33

    1.5. Alfabetizar em contextos de letramento - (Beatriz Gouveia e Miriam Rensztejn) .................................341.5.1. O Letramento na educao escolar: desfazendo alguns mitos ............................................................36

    1.6. Formas de organizao do trabalho de alfabetizao e letramento (Isabel Cristina Alves da Silva Frade) .........381.6.1. Preocupaes e eixos gerais que auxiliam na organizao ..................................................................391.6.2. Alguns modos de organizao das atividades ......................................................................................391.6.3. Concluso .............................................................................................................................................431.6.4. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................43

    2. Os modos orais de comunicao e a sua tradio cultural .................................................................................442.1. Quem conta um conto - (Maria Laura Van Boekel Cheola) ..........................................................................46

    2.1.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................492.2. Fbulas fabulosas - (Marcos Bagno)...............................................................................................................502.3. Contadores de histrias - Aventura partilhada - Francisco Marques - (Chico dos Bonecos) .......................542.4. A palavra reinventada: seus usos na educao - (Edmir Perroti)...................................................................582.5. O que vamos aprender hoje? - (Marisa Silva) ................................................................................................64

    2.5.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................672.6. Escola, Leitura e Vida - (Ceclia Maria Aldigueri Goulart) ...........................................................................68

    2.6.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................712.6.2. Sugestes de leitura..............................................................................................................................71

    2.7. Oralidade, escrita e letramento - (Ceclia Maria Aldigueri Goulart) ............................................................722.7.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................75

    2.8. Oralidade e escrita: dificuldades de ensino-aprendizagem na alfabetizao(Antnio Gomes Batista - Maria Lcia Castanheira - Ana Lydia Santiago) .........................................................76

    2.8.1. Fracasso escolar: buscando explicaes para as dificuldades de ensino-aprendizagem ma alfabetizao ..... 772.8.2. Uma reflexo sobre diferentes explicaes para o fracasso escolar .....................................................772.8.3. Elementos para o questionamento de teorias do dficit .....................................................................792.8.4. guisa de concluso ............................................................................................................................80

    3. Literatura e leitores: os livros e seus temas..........................................................................................................823.1. Letramento e leitura da literatura - (Eleonora Cretton Ablio e Margareth Silva de Mattos) ......................84

    3.1.1. Retomando a experincia de narrar ....................................................................................................853.1.2. Ouvir, contar e ler histrias: um prazer? Uma aventura? Um desafio lembrana? .........................85

  • 73.1.3. Fbulas .................................................................................................................................................863.1.4. Contos de fadas e contos maravilhosos ................................................................................................863.1.5. Contos populares .................................................................................................................................873.1.6. Mais algumas palavras .........................................................................................................................883.1.7. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................89

    3.2. Escritores e leitores - (Verbena Maria) ...........................................................................................................903.2.1. Cenas de leitura ...................................................................................................................................913.2.2. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................95

    3.3. Livros em sala de aula - modos de usar - (Roxane Rojo) ..............................................................................963.3.1. Escrita, livro e escola - uma relao muito antiga ................................................................................973.3.2. Livros didticos contemporneos - um brevssimo perfil ....................................................................983.3.3. Livros e outros impressos em sala de aula - trs modos de usar ..........................................................993.3.4. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................101

    3.4. Material adequado, escolha qualificada, uso crtico - (Egon de Oliveira Rangel) ........................................1023.4.1. Uma provocao ...................................................................................................................................1033.4.2. O que torna um material didtico? ......................................................................................................1033.4.3. Materiais didticos no Brasil de hoje: excesso ou escassez? ................................................................1043.4.4. O livro didtico ....................................................................................................................................1053.4.5. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................107

    3.5. Literatura e pluralidade cultural - (Marisa Borba) ........................................................................................1083.5.1. O preconceito no livro didtico ...........................................................................................................1093.5.2. A escola e a pluralidade cultural ..........................................................................................................1103.5.3. Que livros oferecer criana e ao jovem? ............................................................................................1103.5.4. Algumas consideraes ........................................................................................................................1113.5.5. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................111

    3.6. Leitura da literatura: a produo contempornea - (Margareth Silva de Mattos) ........................................1123.6.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................115

    3.7. A leitura literria nos livros didticos - (Aracy Alves Martins) ......................................................................1163.7.1. Introduo ............................................................................................................................................1173.7.2. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................119

    3.8. Livros de literatura e televiso - (Elizabeth DAngelo Serra) ........................................................................1203.8.1. Televiso afasta as crianas da leitura e da literatura ..........................................................................1213.8.2. A literatura e a TV ................................................................................................................................122

    4. A leitura da literatura e o fazer potico ................................................................................................................1244.1. Alfabetizao e leitura literria - (Aparecida Paiva).......................................................................................126

    4.1.1. A leitura literria no processo de alfabetizao: a mediao do professor ..........................................1274.1.2. A produo cultural para a criana ......................................................................................................1274.1.3. A escolarizao da literatura ................................................................................................................1284.1.4. A literatura e o leitor-criana: algumas possibilidades ........................................................................1284.1.5. Repertrios de leituras .........................................................................................................................1294.1.6. Capacidade de anlise crtica ...............................................................................................................1294.1.7. Escolhas ................................................................................................................................................1304.1.8. Para comear a conversa ......................................................................................................................1304.1.9. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................130

    4.2. Poesia na escola - (Eduardo Calil) .................................................................................................................1324.3. Bardos e trovadores - (Maria Auxiliadora Cunha Grossi) .............................................................................136

    4.3.1. Poesia, msica e jogo: nas malhas do bordado, o risco da palavra ......................................................1374.3.2 Referncias bibliogrficas ......................................................................................................................145

    4.4. Como vai a poesia? - (Silvia Boerg) ...............................................................................................................1464.4.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................149

    4.5. Leitura da literatura: a construo do ser potico - (Eleonora Vretton Ablio) ............................................1504.5.1. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................154

    5. Processos de leitura e de escrita nas diferentes reas do conhecimento ............................................................1565.1. Para alm da Lngua Portuguesa - (NIUF/UFRGS) ......................................................................................158

    5.1.1. Ensinar a ler .........................................................................................................................................1595.1.2. Ensinar a escrever ................................................................................................................................1605.1.3. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................161

    5.2. Professor: leitor e formador de leitores - (Ana Maria Ribeiro Filipouski) .....................................................1625.2.1. Leitura e escrita competncia de todas as reas: o professor como leitor e domador de leitores ......163

    5.2.1.1. Teorias do ler e do escrever: o papel do ensino .........................................................................1635.2.1.2. Ler e produzir textos: tarefa de professor ..................................................................................163

    5.3. Lendo e produzindo textos cientficos - (Eduardo Calil) ..............................................................................1665.4. Impressos e outros materiais didticos em sala de aula - (Joo Bosco Pitombeira de Carvalho) .................1705.5. Outras mdias e linguagens na escola - (Jaqueline Peixoto Barbosa) ............................................................174

    5.5.1. Por que trabalhar com diferentes mdias e linguagens na escola hoje? ..............................................1755.5.2. O que e como trabalhar com outras mdias e linguagens na sala de aula? .........................................1775.5.3. Aprendendo com a histria - uma nota a respeito de formao de professores .................................1795.5.4. Referncias bibliogrficas .....................................................................................................................180

  • por meio da linguagem que o ser humano age, criando e recriando um mundo que no s fruto de projees e representaes individualizadas por meio da lngua, mas resultado de prticas scio-interativas. Da, afirmar-se que a lngua uma atividade constitutiva e criativa, que implica ao conjunta dos sujeitos.

    Em razo disto, a lngua vista de forma integrada e dinmica. Neste sentido, o agir discursivamente por meio de textos orais e escritos constitui eventos comunicativos que tm a ver, em parte, com a produo e a transmisso de conhecimentos que so expressos por meio de enunciados diversos, dependentes dos diferentes interlocutores e contextos e, muitas vezes, independentes dos processos formais de aquisio da escrita. Este entendimento se integra concepo dos processos de oralidade e de escrita como prticas sociais e histricas atualizadas no uso efetivo da lngua.

    Oralidade e escrita so, portanto, prticas interdependentes nas sociedades atuais e no podem ser tomadas como estanques e isoladas. Trata-se de processos que no so neutros, enquanto condies discursivas das formas de produo de conhecimento, e nem h entre eles uma supremacia em termos cognitivos, pois so modos de re-presentao cognitiva e social que se revelam em prticas especficas.

    Com o propsito de problematizar a relao entre conhecimento e linguagem que envolve, dentre os mais variados aspectos, a questo dos gneros e, especialmente, das prticas pedaggicas em leitura e escrita, que se renem, aqui, textos de autores diversos, originariamente produzidos para sries do Programa Salto para o Futuro/TV Escola, reunidos sob o ttulo de Prticas de leitura e escrita.

    Estes textos fazem parte dos boletins de sries produzidas pelo Programa, no perodo que compreende os anos de 2000 a 2005, com diferentes abordagens e especificaes, mas com caractersticas comuns no que diz respei-to temtica sobre as prticas de linguagem e ao enfoque educacional. Em razo de essas sries buscarem sempre um mesmo interlocutor, o professor, e de resultarem numa proposta de atualizao deste profissional, contribuindo para sua formao continuada, organiza-se esta coletnea de textos com o objetivo maior de garantir a atuao e o engajamento do professor nos projetos pedaggicos que ele desenvolve com seus alunos.

    Ao organizar esta coletnea, no se manteve uma ordem cronolgica, no que se refere publicao dos textos, os quais foram selecionados por suas temticas, independente da relao especfica com o boletim da srie em que foram divulgados. Isto significa afirmar que os textos, aqui apresentados, apresentam uma nova forma de organizao, segundo seus tpicos principais, listados em cinco grupos: 1. Textos que tratam do contato com a escrita para alm dos processos de escolarizao (Prticas de Letramento e processo de alfabetizao); 2. Textos que abordam, mais especificamente, a oralidade nos contextos formais e informais de uso da lngua (Os modos orais de comunicao e a sua tradio cultural); 3. Textos em que o processo de ensino da leitura e da formao leitora, em conjunto com suas implicaes pedaggicas e sociais como, por exemplo, a presena da literatura e o seu engajamento sociocultural, so alvo de enfoque (Literatura e leitores: os livros e seus temas); 4. Textos em que o gnero potico enfatizado como prtica que envolve cultura, arte e sensibilizao por meio da palavra (A leitura da literatura e o fazer potico); 5. Textos que concebem a leitura e a escrita como atividades situadas socialmente, bem como atividades plurais sociedade e, por extenso, s diversas reas/disciplinas escolares (Processos de leitura e de escrita nas diferentes reas do conhecimento).

    Outro fator importante a se considerar que a organizao e a seleo dos textos se pautaram na especifica-o da temtica e na discusso sobre letramento e suas implicaes e, ao mesmo tempo, na projeo de abordagens,

    Apresentao

  • servindo como um eixo norteador para os textos que compem o boletim, do qual ele originalmente faz parte, e funcionando como um hiperlink, convidando o leitor para complementar suas leituras com textos variados sobre o mesmo assunto ou, ainda, com temas presentes nas demais sries divulgadas pelo Programa Salto para o Futuro. Com a pluralidade de informaes e de conhecimentos que se pode encontrar nos materiais deste programa, pos-svel afirmar que novas coletneas so possveis, tendo como objetivo proporcionar ao professor outras instigantes reflexes acerca do seu trabalho no cotidiano escolar.

    Assim, a presente coletnea organiza-se nas seguintes unidades:

    1. Prticas de Letramento e processos de alfabetizao;

    2. Os modos orais de comunicao e a sua tradio cultural;

    3. Literatura e leitores: os livros e seus temas;

    4. A leitura da literatura e o fazer potico;

    5. Processos de leitura e de escrita nas diferentes reas do conhecimento.

    Como se verifica, os temas so interdependentes e circundam a questo do conhecimento e da linguagem. Assim, as concepes e as abordagens se atravessam e se complementam e, algumas vezes, as temticas se repetem, validando a integrao dos saberes e dos propsitos voltados para as prticas que envolvem a oralidade e a escrita nos mbitos sociais e pedaggicos. Nesta perspectiva, esta coletnea desenha uma concepo de ensino dinmica e crtica de promoo cidadania, projeto que norteia os trabalhos desenvolvidos nas instituies que contriburam para a elaborao desta publicao e que so as grandes responsveis pela inscrio das diferentes idias que circulam nos textos: Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita (CEALE-UFMG); Ncleo de Integrao Universidade e Escola da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NIUE-UFRGS), Programa de Alfabetizao e Leitura (PROALE/UFF), Fundao Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLIJ), entre outras, e, ainda, de professores e pesquisadores de diferentes espaos que se apresentam como parceiros na busca de um ensino produtivo e de qualidade.

    Maria Anglica Freire de CarvalhoRosa Helena Mendona

  • As prticas sociais que se realizam entre os sujeitos por meio da linguagem encontram-se inevitavelmente baseadas no Letramento, condio em que existe um conhecimento sobre a escrita que as pessoas, mesmo sem saber ler ou escrever, dominam. Tal conhecimento adquirido pelo fato de que estas pessoas esto inseridas numa sociedade letrada. Neste tipo de sociedade, a escrita passa a funcionar como mediadora entre tais prticas e os sujeitos, cons-tituindo eventos de letramento. Assim, as prticas letradas influenciam todos os indivduos. Por esta razo, pessoas que vivem em sociedades letradas no podem ser chamadas de iletradas, mesmo que sejam no-alfabetizadas.

    O letramento pode ser considerado um processo complexo, que quase sempre visto como associado al-fabetizao. Contudo, existem letramentos de natureza variada, inclusive, sem a presena da alfabetizao. Trata-se de um termo que conceituado de modo diferente por autores que estudam o fenmeno; mas, em suma, pode-se dizer que o letramento um processo histrico-social.

    de compreenso razovel, portanto, que o letramento influencie at mesmo culturas e indivduos que no dominam a escrita, pois se trata de um processo mais amplo do que a alfabetizao, embora esteja intimamente relacionado existncia de um cdigo escrito. Assim, culturas ou indivduos que podem ser considerados grafos ou iletrados so somente aqueles que vivem em uma sociedade que no possui, nem sofre, a influncia, mesmo que indi-reta, de um sistema de escrita. Por esta razo, pode-se afirmar que no existe uma relao direta entre escolaridade e letramento, embora a escolarizao possibilite uma insero mais democrtica do sujeito nas sociedades letradas.

    O letramento abrange a capacidade de o sujeito colocar-se como autor (sujeito) do prprio discurso, no que se refere no s relao com o texto escrito, mas tambm relao com o texto oral. Logo, para uma concepo histrico-social do letramento, h de se considerar uma concepo de lngua - e de linguagem - constitutiva das aes sociais. Aes que se organizam em enunciados que se criam e se recriam nas prticas comunicativas, configurando os variados gneros e seus suportes, os quais podem ser vistos como o resultado das prticas discursivas convencionadas e institucionalizadas de comunidades discursivas especficas.

    Estes pressupostos tericos perpassam os artigos apresentados neste primeiro captulo da coletnea, que foram agrupados num campo discursivo da diversidade cultural, da heterogeneidade dos gneros, de seus suportes e dos usos de linguagem no cotidiano comunicativo e sua constituio contextual interativa.

    So sete artigos que seguem a abertura deste documento e tomam como objeto o funcionamento da lingua-gem nos processos de alfabetizao e de letramento. Na seqncia, so apresentados textos diversos em que os usos de linguagem e as prticas pedaggicas so o mote fundador das idias expostas. No primeiro texto, Alfabetizao, leitura e escrita, atravs de uma abordagem crtica sobre os desafios da alfabetizao e do letramento, bem como sobre o problema do analfabetismo e os fatores sociopolticos que o agravam como, por exemplo, desigualdade e injustia social e, por extenso, a excluso social, Antonio Augusto Gomes Batista expe um panorama das questes sobre a alfabetizao e a utilizao da lngua escrita nos mais variados contextos sociais. O autor prope, dialogando com vrios posicionamentos tericos, uma reavaliao do significado de alfabetizar, em que se ultrapasse o domnio das primeiras letras e sejam envolvidas perspectivas de uso, reflexo e produo nas prticas lingsticas.

    Com um objetivo semelhante ao do artigo anterior, o texto de Maria da Costa Val - O que ser alfabetizado e letrado?, apresenta a apropriao da escrita como um processo complexo e multifacetado, que envolve no s a

  • apropriao do sistema alfabtico-ortogrfico, mas tambm o seu funcionamento nas prticas sociais de leitura e escrita. A autora aborda os usos e as funes sociais da lngua, trazendo os conceitos de alfabetizao e letramento de modo articulado, reconhecendo tais processos como diferentes, mas interdependentes, o que implica uma proposta de alfabetizar letrando.

    Ler melhor que estudar a frase de Ziraldo trazida por Roxane Rojo para delinear seus argumentos sobre os processos de escolarizao, no Brasil, quanto ao uso e domnio da escrita. No artigo Letramento e diversidade textual, a autora chama a ateno para o fato de que a formao de leitores e de produtores de textos na escola deficiente, na medida em que no se promovem prticas sociais significativas com a linguagem. Complementa, ainda, que tais prticas so mediadas pelos gneros do discurso que constituem formas historicamente cristalizadas nas atividades de linguagem dos indivduos nos diferentes contextos e situaes de comunicao. Sob esta pers-pectiva, Roxane defende que as prticas letradas se configuram como o domnio, por parte do falante ou escriba, dos gneros, em geral - mas no unicamente - formais e pblicos, que envolvem, de uma ou de outra maneira, a modalidade escrita da linguagem para a sua produo ou compreenso.

    Neste cenrio de mudanas conceituais ocorridas no campo da alfabetizao, Maria das Graas de Castro Bregunci, em seu artigo Organizando as classes de alfabetizao: Processos e mtodos, focaliza a discusso sobre metodologias de alfabetizao, apresentando um percurso histrico deste processo at chegar s reflexes sobre Letramento, trajetria que lhe permite focalizar a insero da criana em prticas sociais que abrangem a leitura e a escrita. A autora prope, neste trabalho, em relao s diferentes metodologias da alfabetizao, que se avaliem os pontos de encontro e de desencontro, com o objetivo de promover articulaes produtivas na prtica pedaggica.

    No rastro dessas discusses sobre letramento, as autoras Beatriz Gouveia e Miriam Orensztejn, no texto Alfa-betizao e ensino da lngua,ressaltam que dominar as caractersticas e o funcionamento da escrita, bem como saber utilizar a linguagem nos diferentes contextos sociocomunicativos, so fatores essenciais que geram a alfabetizao em situaes de letramento. Isto significa afirmar que a aprendizagem da leitura e da escrita deve ser atrelada aos contextos de letramento, o que solicita ao educador realizar movimentos de articulao entre o cotidiano social e o cotidiano escolar, de modo a promover uma reflexo sobre a escrita.

    A reflexo em relao produo escrita e s prticas sociointerativas no cotidiano da linguagem o fio con-dutor para os argumentos de Isabel Cristina Alves da Silva Frade que, com propostas de atividades que sistematizam o trabalho com a alfabetizao, sugere uma atuao crtica do professor no trabalho de leitura e escrita, ressaltando a organizao desses processos em classes de crianas de seis anos. Neste texto, a autora considera importante a elaborao de um planejamento pedaggico que esteja em sintonia com a cultura, os conhecimentos prvios, a experincia dos alunos nos diversos espaos sociais, especialmente, o familiar e o escolar, objetivando ampliar os contextos significativos de funcionamento da leitura e da escrita.

    Os debates sobre alfabetizao e letramento se intensificam a cada dia e novas perspectivas so apontadas, ora complementando as que se firmaram, ora promovendo dilogos e ampliando horizontes de abordagem. Por esta razo, os textos aqui selecionados so tpicos que, como tais, abrem possibilidades para novas discusses. Aqui, em razo de uma metodologia e da origem do projeto desta Coletnea, esses oito textos ilustram as representaes sobre letramento que foram partilhadas no Programa Salto para o Futuro, ao longo dos anos de 2000 a 2005.

  • Alfabetizao, leitura e escrita

    Antnio Augusto Gomes BatistaProfessor da Faculdade de Educao da UFMG. Pesquisador do Centro de Alfabetizao,

    Leitura e Escrita (Ceale) e do CNPq.

  • No Brasil, quase um tero da populao possui baixos nveis de letramento. Entre os jovens e adultos, conside-rando-se aqueles que tm mais de 15 anos, cerca de 13% so analfabetos, ainda que um tero deles j tenha passado pelo Ensino Fundamental. Entre as crianas, mais da metade das que chegam 4 srie no tm apresentado um rendimento adequado em leitura. Quase 30% dessas crianas no sabem ler.

    Esses dados nos levam a refletir: o que acontece com o nosso pas? O que acontece em nossas escolas? Por que parte significativa de nossas crianas no se alfabetiza?

    Segundo Magda Soares1:

    dissociar alfabetizao de letramento um equvoco porque, no quadro das atuais concepes psicolgicas, lingsticas e psicolingsticas de leitura e escrita, a entrada da criana (e tambm do adulto analfabeto) no mundo da escrita se d simultaneamente por esses dois processos: pela aquisio do sistema convencional de escrita a alfabetizao, e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas prticas sociais que envolvem a lngua escrita o letramento. No so processos independentes, mas interdependentes, e indissociveis: a alfabetizao se desenvolve no contexto de e por meio de prticas sociais de leitura e de escrita, isto , atravs de atividades de letramento, e este, por sua vez, s pode desen-volver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relaes fonema/grafema, isto , em dependncia da alfabetizao.

    1.1.1. Alfabetizao e letramento: os desafios contemporneosDiscutem-se neste artigo os principais desafios da alfabetizao e do letramento e as principais perspectivas

    para fazer com que cada criana tenha assegurado o seu direito a aprender a ler e a escrever e, assim, a participar do mundo da escrita.

    Dbora

    Dbora2 tem 12 anos e j repetiu duas vezes de ano. Ela est numa turma equivalente 4 srie da educa-o fundamental. Ela l e escreve com tanta dificuldade que no se considera alfabetizada. Numa entrevista com a supervisora de sua escola, ela disse: no sei escrever direito, quando fao alguma coisa, fao errado. Na mesma entrevista, quando indagada sobre as pessoas que, em sua casa, sabem ler e escrever, ela respondeu que todos sabiam, menos ela e sua irm. Sua irm est na terceira srie e tem dez anos.

    Dbora vive na regio metropolitana de Belo Horizonte, na periferia de uma das vrias cidades que compem a metrpole. Sua famlia pobre e, s vezes, passa por perodos difceis. Mas seus pais so alfabetizados e, de acordo com ela, sua me anota as coisas para no ficar devendo e seu pai costuma escrever as contas. De outras pessoas que, na vizinhana, usam a escrita, Dbora se lembra de uma vizinha que escreve para saber o que faz no servio e as coisas que est precisando em casa.

    Dbora j sabe que a escrita representa sons da lngua, o que um passo muito importante em seu processo de alfabetizao. Ela escreve e l corretamente muitas palavras: algumas porque decorou sua forma e outras porque so mais simples. Por exemplo, num ditado, escreveu corretamente caneta e caderno, dentre outras palavras.

    Mas Dbora apresenta tambm erros estranhos de escrita, que no condizem com seus acertos. Ela troca sempre, por exemplo, o P pelo T, duas letras muito diferentes graficamente e que representam sons muito diferentes, escrevendo latis, em vez de lpis; latiseira, em vez de lapiseira. Dbora tambm escreve de maneira pouco previsvel, outras palavras: zir, em vez de giz; sena, em vez de semana; trino, em vez de tio.

    Na leitura, a lentido, a hesitao e a necessidade de decompor cada slaba mostram como, para ela, difcil decodi-ficar palavras. To difcil que, lendo textos, o sentido de palavras e passagens se perde. Dbora manifesta vrias dificuldades na leitura e no consegue ler globalmente palavras como elefante, tigre, leo e coelho. Slabas pouco comuns, em geral, mais difceis para um aprendiz, terminam por exigir dela, um grande dispndio de tempo e de energia.

    Com certeza, Dbora j sabe muitas coisas importantes sobre a lngua escrita, mas deveria saber muito mais aos 12 anos e na 4 srie. Em razo de suas dificuldades na codificao e na decodificao de palavras, apresenta srias limitaes para escrever e ler textos e tambm srias limitaes para usar a escrita na escola, para aprender novos contedos e para desenvolver novas habilidades.

    De acordo com as informaes da supervisora da escola onde Dbora estuda, ela uma menina bem compor-tada e quieta. Est sempre com o uniforme limpo, o cabelo arrumado em tranas que correm rentes sua cabea. No recreio, conversa com os colegas, brinca, corre. Dbora uma menina normal.

    1 SOARES, Magda. Letramento e alfabetizao: as muitas facetas. 26 Reunio Anual da Anped. GT Alfabetizao, Leitura e Escrita. Poos de Caldas, 7 de outubro de 2003.2 O caso de Dbora baseia-se em diferentes casos reais de crianas com dificuldades no aprendizado da leitura e da escrita. Mas a maior parte das informaes foi extrada de casos relatados e analisados pela professora Ana Maria Prado Barbosa. Ela atua como docente e como supervisora na rede de ensino do estado.*Esse texto se integra ao boletim da srie Alfabetizao, leitura e escrita, maro/2004.

  • A supervisora da escola estava fazendo uma complementao de seu curso de Pedagogia. E Dbora se correspondeu com um dos professores da supervisora.

    Na primeira carta3, ela escreveu, com a ajuda da supervisora:

    oi

    brigada tela [pela] carta ce [que] voc mondou [mandou] para min [...] voc deve ser legau No pre siza desipre acuta [no precisa de se preocupar]

    descute [desculpe] pela

    com a letre [letra]

    um abrao

    Dbora

    Na mesma turma de Dbora, outras crianas apresentam difi culdades parecidas. H o William, h o Jonathan. William l, mas escreve com muitas difi culdades. Jonathan, como Dbora, l e escreve com difi culdade.

    Como eles, mais da metade das crianas de 4 srie manifestam tantas difi culdades que no podem ser consideradas alfabetizadas, ou alfabetizadas funcionalmente. Descobrimos isso em 2003.

    1.1.2. Fracasso da alfabetizaoEm 2003, os jornais e as revistas noticiaram o fracasso da escola brasileira em fazer com que seus alunos se

    alfabetizem, aprendendo a ler e a escrever.

    As notcias foram a propsito da divulgao dos resultados de duas avaliaes das habilidades de leitura de crianas e jovens brasileiros. A primeira a do Sistema de Avaliao da Educao Bsica, o Saeb, desenvolvida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep). A segunda a do Programa Inter-nacional de Avaliao de Estudantes (Pisa), desenvolvida pela Organizao para a Cooperao e Desenvolvimento Econmico (OCDE) e envolvendo diferentes pases4.

    E os resultados no so nada bons. De acordo com os dados do Pisa, a proficincia em leitura de estudantes brasileiros de 15 anos significativamente inferior de todos os outros pases participantes da avaliao.

    De acordo com os dados do Saeb5, na avaliao realizada em 2001 (divulgada em 2003), apenas 4,48% dos alunos de 4 srie possuem um nvel de leitura adequado ou superior ao exigido para continuar seus estudos no segundo segmento do Ensino Fundamental.

    Uma parte deles apresenta um desempenho situado no nvel intermedi rio, 36,2%, segundo o Saeb, esto comeando a desenvolver as habilidades de leitura, mas ainda aqum do nvel exigido para a 4 srie (p. 8).

    A grande maioria se concentra, desse modo, nos estgios mais elementares de desenvolvimento, 59% dos alunos da 4 srie apresentam acentuadas limitaes em seu aprendizado da leitura e da escrita. Dito de outra for-ma, cerca de 37% dos alunos esto no estgio crtico de construo de suas competncias de leitura, o que significa que tm dificuldades graves para ler, e 22% esto abaixo desse nvel, no estgio muito crtico, o que significa que no sabem ler.

    Segundo o Saeb, as crianas no estgio crtico se caracterizam pelo fato de no serem leitores competentes, por lerem de forma truncada, apenas frases simples (p. 8). As crianas no estgio muito crtico, por sua vez, so aquelas que no desenvolveram habilidades de leitura. No foram alfabetizadas adequadamente. No conseguem responder aos itens da prova (p. 8).

    Uma comparao, feita por pesquisadores6, entre os resultados no Saeb de alunos da 4 e da 8 sries do Ensino Fundamental e do 3 ano do Ensino Mdio, tambm desalentadora. O aumento da proficincia em leitura de uma para outra srie bastante modesto, o que significa uma aquisio ainda muito restrita de novas habilidades e competncias em Lngua Portuguesa ao longo da escolaridade bsica.

    3 Na primeira carta, o professor disse a Dbora para desculp-lo pela letra ruim. Foi por isso que ela respondeu que no era para se preocupar com a sua letra.4 32 pases participaram do Pisa, dentre eles Coria do Sul, Espanha, EUA, Federao Russa, Frana, Mxico, Portugal e Brasil.5 Qualidade da Educao: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 4 srie do Ensino Fundamental. Braslia: MEC/Inep, abril 2003.6 Trata-se do trabalho realizado por Alcia Bonamino, Carla Coscarelli e Creso Franco (Avaliao e letramento: concepes de aluno letrado subjacentes ao Saeb e ao Pisa. Educao e Sociedade, Campinas, vol. 23, n. 81, pp. 91-113, dez. 2002). A comparao foi feita com os dados do Saeb 1999. As citaes foram extradas da pgina 103.

  • A concluso uma s e assustadora. Um nmero expressivo de estudantes no aprende a ler na escola bra-sileira. Essa escola produz um grande contingente de analfabetos ou de analfabetos funcionais quer dizer, pessoas que, embora dominem as habilidades bsicas do ler e do escrever, no so capazes de utilizar a escrita na leitura e na produo de textos na vida cotidiana ou na escola, para satisfazer s exigncias do aprendizado.

    1.1.3. Alfabetizao no BrasilDiante dos problemas educacionais, todos ns temos a tendncia a acreditar que em nosso tempo ou no tempo

    de nossos avs, as coisas eram melhores. As escolas alfabetizavam com sucesso, os professores eram mais qualificados e os alunos eram mais dispostos a aprender e mais disciplinados.

    Diante dos difceis momentos do presente, acreditamos que voltar ao passado seria uma boa soluo. Mas, no caso da alfabetizao, no vale a pena voltar no tempo. Boa parte dos problemas que enfrentamos hoje tem a ver justamente com esse passado.

    Assim como Portugal, o Brasil, sua ex-colnia, ps em prtica um modo restrito ou gradual de difuso da alfa-betizao. Pouco antes da independncia, em 1820, apenas 0,20% da populao, estima-se7, alfabetizada. Assim, o ler e o escrever so privilgios das elites que, aps esses primeiros aprendizados, do continuidade a seus estudos.

    Ao longo do sculo, porm, novas fraes da populao se alfabetizam, mas muito gradualmente. Em 1872, quando se realiza o primeiro censo nacio nal, o ndice de alfabetizados de apenas de 17,7% entre pessoas de cinco anos e mais. A partir do sculo XX, esse ndice vai sempre progredir, embora permanea, at 1960, inferior ao ndi-ce de analfabetos, que constituem 71,2% em 1920, 61,1% em 1940 e 57,1% em 1950. Em 1960, pela primeira vez, conseguimos inverter a proporo. Contamos, ento, com 46,7% de analfabetos. A partir de ento, as taxas caem sucessivamente. De 1970 a 2000, essas registram 38,7%, 31,9%, 24,2% e 16,7%8.

    As mesmas desigualdades tambm se manifestam em matria de escolarizao. S no final da dcada passada, o pas conseguiu universalizar o acesso escola, embora em muitos estados persistam percentuais expressivos de crianas fora dela.

    Sabemos sobre quais parcelas da populao incidem o analfabetismo e o fracasso escolar e quais grupos so-ciais no tm acesso escolarizao. Os dados do Saeb so exemplares. O fracasso na alfabetizao maior entre as crianas que vivem em regies que possuem piores indicadores sociais e econmicos, entre as crianas que trabalham e entre as crianas negras.

    Quer dizer, o problema do analfabetismo, na escola ou fora dela, parte de um problema maior e de natureza poltica. o problema da desigualdade social, da injustia social, da excluso social.

    Assim, as dificuldades que enfrentamos no presente no so, em certa medida, dificuldades novas. Fazem parte de uma dificuldade antiga e persistente em nosso pas, a de assegurarmos a todos os brasileiros a igualdade de acesso a bens econmicos e culturais, neles compreendidos a alfabetizao e o domnio da lngua escrita.

    Mas os mesmos dados que mostram a difcil herana que nos foi legada e as dimenses de nosso desafio mostram tambm que, ainda que muito lentamente, avanamos. Ao longo de todo o sculo passado, conseguimos incluir novas parcelas da populao no mundo da escrita. Quase no final do sculo XIX, ramos cerca de 18% de alfabetizados, no incio do sculo XXI, somos quase 83%.

    Conseguimos, tambm, na dcada passada, reduzir os percentuais de analfabetismo entre crianas e jovens em idade escolar. As taxas de analfabetismo nas faixas etrias de 10 a 19 anos relativas a crianas e jovens que esto ou estiveram na escola apresentam uma reduo expressiva nos ltimos anos. Entre 1996 e 2001, os percentuais de analfabetos nessa faixa de idade caem pela metade, isto , de cerca de 14% para cerca de 7%9.

    Mais importante, avanamos, mesmo que lentamente, ao mesmo tempo em que aumentamos nossas expectativas em relao alfabetizao. Quer dizer, avanamos ao mesmo tempo em que progressivamente ampliamos o nosso conceito de alfabetizao, em resposta a novos problemas colocados pelo mundo contemporneo.

    O Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa apresenta a definio estrita de alfabetizao. Ela o ato ou efeito de alfabetizar, de ensinar as primeiras letras. Assim, uma pessoa alfabetizada entendida como aquela que domina as primeiras letras, que domina as habilidades bsicas ou iniciais do ler e do escrever.

    7 A estimativa feita por Lawrence Hallewell (O livro no Brasil: sua histria. So Paulo: Edusp, 1985, p. 176).8 Os dados ao lado so encontrados no artigo de Alceu Ravanello Ferraro (Analfabetismo e nveis de letramento no Brasil: o que dizem os censos?. Educao e Sociedade, Campinas, vol. 23, n. 81, pp. 21-47, dez.2002).9 Ver, a respeito, o Mapa do analfabetismo no Brasil. Braslia: Inep, 2003.

  • Um exemplo: voc capaz de ler global e instantaneamente de uma s vez sem analisar cada elemento, a pri-meira palavra ao lado, porque alfabetizado. Outro exemplo: voc capaz de decodificar, analisando seus elementos (letra, slaba), a segunda palavra ao lado, embora ela no exista, porque voc alfabetizado. Em sntese, alfabetizao, em seu sentido estrito, designa, na leitura, a capacidade de decodificar os sinais grficos, transformando-os em sons, e, na escrita, a capacidade de codificar os sons da lngua, transformando-os em sinais grficos.

    Ao longo do sculo passado, porm, esse conceito de alfabetizao foi sendo progressivamente ampliado, em razo de necessidades sociais e polticas, a ponto de j no se considerar alfabetizado aquele que apenas domina as habilidades de codificao e de decodificao, mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prtica social em que a escrita necessria10.

    Essa ampliao se manifesta, por exemplo, nos censos, cujos dados utilizamos acima. Leia o texto abaixo, de Magda Soares, sobre como os censos foram progressivamente ampliando seu conceito de alfabetizao11.

    1.1.4. A ressignificao do conceito de alfabetizao nos censos

    (...) at os anos 40 do sculo passado, os questionrios do censo indagavam, simplesmente, se a pes-soa sabia ler e escrever, servindo, como comprovao da resposta afirmativa ou negativa, a capacida-de de assinatura do prprio nome. A partir dos anos 50 e at o ltimo censo (2000), os questionrios passaram a indagar se a pessoa era capaz de ler e escrever um bilhete simples, o que j evidencia uma ampliao do conceito de alfabetizao. J no se considera alfabetizado aquele que apenas de-clara saber ler e escrever, genericamente, mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prtica social em que a escrita necessria.

    Essa ampliao do conceito se revela mais claramente em estudos censitrios desenvolvidos a partir da ltima dcada, em que so definidos ndices de alfabetizados funcionais (e a adoo dessa termi-nologia j indica um novo conceito que se acrescenta ao de alfabetizado, simplesmente), tomando como critrio o nvel de escolaridade atingido ou a concluso de um determinado nmero de anos de estudo ou de uma determinada srie (em geral, a 4 srie do Ensino Fundamental), o que traz implci-ta, a idia de que o acesso ao mundo da escrita exige habilidades para alm do apenas aprender a ler e a escrever. Ou seja, a definio de ndices de analfabetismo funcional utilizando-se como critrio, anos de escolaridade, evidencia o reconhecimento dos limites de uma avaliao censitria baseada apenas no conceito de alfabetizao como saber ler e escrever ou saber ler um bilhete simples, e a emergncia de um novo conceito, que incorpora habilidades de uso da leitura e da escrita desenvol-vidas durante alguns anos de escolarizao.

    A ampliao do conceito de alfabetizao se manifesta tambm na escola. At muito recentemente, con-siderava-se que a entrada da criana no mundo da escrita se fazia apenas pela alfabetizao, pelo aprendizado das primeiras letras, pelo desenvolvimento das habilidades de codificao e de decodificao. O uso da lngua escrita em prticas sociais de leitura e produo de textos, seria uma etapa posterior alfabetizao, devendo ser desenvolvido nas sries seguintes.

    Desde meados dos anos 80, porm, concepes psicolgicas, lingsticas e psicolingsticas de leitura e escrita vm mostrando que se o aprendizado das relaes entre as letras e os sons da lngua uma condio do uso da lngua escrita, esse uso tambm uma condio da alfabetizao ou do aprendizado das relaes entre as letras e os sons da lngua.

    Talvez essa idia12 tenha-se manifestado, primeiramente, na defesa da criao, em sala de aula, de um am-biente alfabetizador.

    Metodologicamente, a criao desse ambiente se concretizaria na busca de levar as crianas em fase de alfa-betizao a usar a lngua escrita, mesmo antes de dominar as primeiras letras, organizando a sala de aula com base na escrita (registro de rotinas, uso de etiquetas para organizao do material, emprego de quadros para controlar a freqncia, por exemplo). Conceitualmente, a defesa da criao de um ambiente alfabetizador estaria baseada na constatao de que saber para que a escrita serve (suas funes de registro, de comunicao a distncia, por exem-plo) e saber como usada em prticas sociais (organizar a sala de aula, fixar regras de comportamento na escola, por exemplo) auxiliariam a criana em sua alfabetizao. Auxiliariam por dar significado e funo alfabetizao; auxiliariam por criar a necessidade da alfabetizao; auxiliariam, enfim, por favorecer a explorao, pela criana, do funcionamento da lngua escrita.

    10A definio entre aspas de Magda Soares, Alfabetizao: a ressignificao do conceito. Alfabetizao e Cidadania. Revista de Educao de Jovens e Adultos. RaaB, n. 16, julho 2003, pp. 10-11).11 O trecho foi extrado do mesmo artigo da educadora, citado acima.12 Essa idia se manifesta tambm em muitas outras prticas pedaggicas realizadas antes, durante e depois da alfabetizao, como, por exemplo, a leitura em voz alta pelo professor, a redao de textos coletivos em que o docente serve de secretrio ou escriba, o contato com textos que circulam na sociedade e no apenas com textos produzidos para a explorao das relaes entre letras e sons.

  • A necessidade desse conhecimento sobre os usos e as funes da lngua escrita seria particularmente relevante para crianas de famlias muito afastadas do mundo da escrita, que no teriam muitas oportunidades de manusear textos, de participar de situaes de leitura e produo de textos, de, antes da escola, imergir na cultura escrita.

    Assim, alfabetizar no se reduziria ao domnio das primeiras letras. Envolveria tambm saber utilizar a lngua escrita nas situaes em que esta necessria, lendo e produzindo textos. para essa nova dimenso da entrada no mundo da escrita que se cunhou uma nova palavra: letramento. Ela serve para designar o conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades, necessrio para usar a lngua em prticas sociais.

    Por meio desse conceito, a escola ampliou, assim, o seu conceito de alfabetizao. O que boa parte dos dados do Saeb mostra que muitas crianas, embora alfabetizadas, no so letradas, ou manifestam diferentes graus de analfabetismo funcional, j que os dois conceitos tendem a se sobrepor. Em outras palavras, no so capazes de utilizar a lngua escrita em prticas sociais, particularmente naquelas que se do na prpria escola, no ensino e no aprendizado de diferentes contedos e habilidades.

    Assim, as dificuldades que hoje enfrentamos na alfabetizao, so agravadas tanto pelo passado (a herana do analfabetismo e das desigualdades sociais) quanto pelo presente (a ampliao do conceito de alfabetizao e das expectativas da sociedade em relao a seus resultados).

  • O que ser alfabetizado e letrado?

    Maria da Graa Costa ValProfessora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG. Pesquisadora do Centro de Alfabetizao,

    Leitura e Escrita (Ceale).

  • 1.2.1. ConceituaoA apropriao da escrita um processo complexo e multifacetado, que envolve tanto o domnio do sistema alfa-

    btico/ortogrfico quanto a compreenso e o uso efetivo e autnomo da lngua escrita em prticas sociais diversificadas. A partir da compreenso dessa complexidade que se tem falado em alfabetizao e letramento, como fenmenos diferentes e complementares.

    De incio, pode-se definir alfabetizao como o processo especfico e indispensvel de apropriao do sistema de escrita, a conquista dos princpios alfabtico e ortogrfico que possibilitem ao aluno ler e escrever com autonomia. Noutras palavras, alfabetizao diz respeito compreenso e ao domnio do chamado cdigo escrito, que se organiza em torno de relaes entre a pauta sonora da fala e as letras (e outras convenes) usadas para represent-la, a pauta, na escrita.

    J letramento pode ser definido como o processo de insero e participao na cultura escrita. Trata-se de um processo que tem incio quando a criana comea a conviver com as diferentes manifestaes da escrita na sociedade (placas, rtulos, em-balagens comerciais, revistas etc.) e se prolonga por toda a vida, com a crescente possibilidade de participao nas prticas sociais que envolvem a lngua escrita, como a leitura e redao de contratos, de livros cientficos, de obras literrias, por exemplo.

    O termo letramento foi criado, portanto, quando se passou a entender, que nas sociedades contemporneas insuficiente o mero aprendizado das primeiras letras, e que se integrar socialmente hoje, envolve tambm saber utilizar a lngua escrita nas situaes em que esta necessria, lendo e produzindo textos. Essa nova palavra veio para designar essa nova dimenso da entrada no mundo da escrita, a qual se constitui de um conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades, necessrio para usar a lngua em prticas sociais (cf. Batista, 2003).

    possvel encontrar pessoas que passaram pela escola, aprenderam tcnicas de decifrao do cdigo escrito e so capazes de ler palavras e textos simples, curtos, mas que no so capazes de se valerem da lngua escrita em situaes sociais que requeiram habilidades mais complexas. Essas pessoas so alfabetizadas, mas no so letradas. Essa condio, embora freqente dentro da prpria escola, particularmente dolorosa e indesejvel, porque acarreta dificuldades para o aprendizado dos diferentes contedos curriculares, ou mesmo inviabiliza esse aprendizado.

    Por isso que se tem afirmado que alfabetizao e letramento so processos diferentes, cada um com suas espe-cificidades, mas complementares, inseparveis e ambos indispensveis. O desafio que se coloca hoje para os professores o de conciliar esses dois processos, de modo a assegurar aos alunos a apropriao do sistema alfabtico/ortogrfico e a plena condio de uso da lngua nas prticas sociais de leitura e escrita.

    Entretanto, o surgimento do conceito de letramento, bem como a difuso e o emprego desse termo, tm suscitado polmicas e equvocos (por exagero ou por simplificao), que bom tentar esclarecer.

    Pode-se dizer que a fonte desses equvocos e polmicas a no compreenso de que os dois processos so complemen-tares, e no alternativos. Explicando: no se trata de escolher entre alfabetizar ou letrar, trata-se de alfabetizar letrando. Quando se orienta a ao pedaggica para o letramento, no necessrio, nem recomendvel, que, por isso, descuide-se do trabalho especfico com o sistema de escrita. Noutros termos, o fato de valorizar em sala de aula os usos e as funes sociais da lngua escrita no implica deixar de tratar sistematicamente da dimenso especificamente lingstica do cdigo, que envolve os aspectos fonticos, fonolgicos, morfolgicos e sintticos. Do mesmo modo, cuidar da dimenso lingstica, visando alfabetizao, no implica excluir da sala de aula o trabalho voltado para o letramento. Outra fonte de equvocos pensar os dois processos como seqenciais, isto , vindo um depois do outro, como se o letramento fosse uma espcie de preparao para a alfabetizao, ou, ento, como se a alfabetizao fosse condio indispensvel para o incio do processo de letramento.

    Considerando-se que os alfabetizandos vivem numa sociedade letrada, em que a lngua escrita est presente de maneira visvel e marcante nas atividades cotidianas, inevitavelmente eles tero contato com textos escritos e formularo hipteses sobre sua utilidade, seu funcionamento, sua configurao. Excluir essa vivncia da sala de aula, por um lado, pode ter o efeito de reduzir e artificializar o objeto de aprendizagem que a escrita, possibilitando que os alunos desen-volvam concepes inadequadas e disposies negativas a respeito desse objeto. Por outro, deixar de explorar a relao extra-escolar dos alunos com a escrita significa perder oportunidades de conhecer e desenvolver experincias culturais ricas e importantes para a plena integrao social e o exerccio da cidadania.

    Assim, entende-se que a ao pedaggica mais adequada e produtiva aquela que contempla, de maneira articulada e simultnea, a alfabetizao e o letramento. No prximo item, vamos apresentar, rapidamente, algumas possibilidades de se desenvolver esse trabalho integrado em sala de aula.

    1.2.2. Alfabetizao e letramento na sala de aulaA reflexo sobre como integrar alfabetizao e letramento em sala de aula vai se organizar em torno de qua-

    tro componentes do aprendizado da escrita: 1) a compreenso e valorizao da cultura escrita; 2) a apropriao do sistema de escrita; 3) a leitura; e, 4) a produo de textos escritos.

    *Esse texto se integra ao boletim da srie Alfabetizao, leitura e escrita, maro/2004.

  • 1. Compreenso e valorizao da cultura escrita.Vivemos num tipo de sociedade que costuma ser chamada de grafocntrica, porque, no dia-a-dia dos cidados,

    a escrita est presente em todos os espaos e a todo o momento, cumprindo diferentes funes. Ter clareza quanto diversidade de usos e funes da escrita e s incontveis possibilidades que ela abre importante tanto do ponto de vista conceitual e procedimental, para que o aluno seja capaz de fazer escolhas adequadas, ao participar das prticas sociais de leitura/escrita, quanto do ponto de vista atitudinal, porque o interesse e a prpria disposio positiva para o aprendizado tendem a se acentuar com a compreenso da utilidade e relevncia daquilo que se aprende.

    Fora da escola, esse saber adquirido, em geral, quando as crianas tm acesso aos diversos suportes de escrita e participam de prticas de leitura e de escrita dos adultos. Entretanto, sabemos que muitos alunos chegam escola sem ter tido oportunidade de conviver e de se familiarizar com os meios sociais de circulao da escrita. Nessas condies, no de surpreender que faam hipteses inusitadas sobre a natureza, as funes e o uso desses materiais, inclusive daqueles mais simples e indispensveis ao dia-a-dia na escola, como livros e cadernos. Por isso que esse conhecimento deve ser trabalhado didaticamente em sala de aula, oferecendo possibilidades para que os alunos observem e manuseiem muitos textos pertencentes a gneros diversificados e presentes em diferentes suportes. Ao lado disso, o trabalho deve orientar a explorao desse material, explicitando informaes desconhecidas, mas sem deixar de valorizar os conhecimentos prvios das crianas e de favorecer dedues e descobertas. Essas prticas tero repercusso positiva no processo de apropriao do sistema de escrita, mas tambm, e principalmente, na leitura e na produo de textos escritos.

    2. Apropriao do sistema de escrita.Para compreender as regras que orientam a leitura e a escrita, os alunos precisam desenvolver conheci-

    mentos e capacidades diversas, relativas no somente natureza e ao funcionamento do sistema alfabtico e da ortografia da Lngua Portuguesa, mas tambm ao uso geral da escrita. Nesses momentos, possvel e produtivo aliar alfabetizao e letramento e propor observaes e reflexes sobre as convenes do sistema de escrita, a partir do exame e da produo de textos escritos. Alguns exemplos disso sero apontados a seguir.

    O alinhamento e a direo da escrita, bem como a funo de segmentao dos espaos em branco, so conhe-cimentos bsicos indispensveis, que muitos aprendizes iniciantes podem no ter tido oportunidade de observar e identificar como convenes a serem seguidas. Por isso, esses conhecimentos precisam ser abordados sistematicamente na escola. Um procedimento til para familiarizar os alunos com as marcas de segmentao da escrita, adotado por muitos professores no comeo do processo de alfabetizao, o de ler em voz alta para as crianas, apontando cada palavra lida e os sinais de pontuao no final das frases. Outra maneira de trabalhar nesse sentido , ao fazer a leitura oral em sala de aula, solicitar que os prprios alunos identifiquem os diferentes marcadores de espao (espaamentos entre as palavras, pontuao e pargrafos). A explorao desses marcadores, aliada ao processo de leitura, permite que os alunos descubram diferenas entre a segmentao da fala e a da escrita, o que lhes ser til para o domnio da ortografia, da morfossintaxe escrita, da pontuao e da paragrafao, em momentos posteriores de seu aprendizado.

    Outra capacidade inicial imprescindvel conhecer e compreender o alfabeto: (i) identificar e saber os nomes das letras, entender que o nome de cada letra tem relao com pelo menos um dos fonemas que ela pode representar na escrita (as excees h, y, w, por exemplo so poucas e de uso menos freqente); (ii) compreender que as letras desempenham uma funo no sistema, que a de preencher um determinado lugar na escrita das palavras. Isso significa conhecer a categorizao grfica e funcional das letras, entendendo que determinadas letras devem ser usadas para escrever determinadas palavras, em determinada ordem. Apesar das diferentes formas grficas das letras em nosso alfabeto (maisculas, minsculas, imprensa, cursiva), uma letra permanece a mesma porque exerce a mesma funo no sistema de escrita, ou seja, as letras tm valores funcionais fixados pela histria do alfabeto e, principalmente, pela ortografia das palavras, em cada lngua. Assim, uma das implicaes do princpio de identidade funcional das letras para o processo de alfabetizao o aluno aprender que no pode escrever qualquer letra em qualquer posio numa palavra, porque as letras representam fonemas, os quais aparecem em posies determinadas nas palavras.

    O investimento nessa questo to especfica do processo de alfabetizao, pode ser feito em cooperao com o trabalho voltado para o letramento. Por exemplo, o estudo do alfabeto feito com a apresentao de todas as 26 letras, seguindo a ordem alfabtica, pode facilitar ao aluno uma viso do conjunto, a compreenso do todo e a distino de cada letra, alm de lhe propiciar a familiarizao com um conhecimento de grande utilidade social, visto que, em nossa sociedade, muitos escritos se organizam pela ordem alfabtica. Outro exemplo, mantendo o foco nas letras como unidades de aprendizado, pode-se propor aos alunos iniciantes a produo de textos simples (etiquetas, crachs, listas), de modo a possibilitar-lhes, por um lado, operar direta e produtivamente com a categorizao grfica e funcional das letras e, por outro, experienciar a escrita de textos que tm efetiva aplicao e utilidade na vida social.

    Apropriar-se do sistema de escrita depende fundamentalmente de compreender o princpio bsico de que as letras representam sons, ou, em termos tcnicos mais apropriados, os grafemas representam fonemas. A conquista desse conhecimento fundamental se realiza quando a criana comea a tentar ler e escrever relacionando cada letra

  • a um som, cada som a uma letra, porque entendeu que o princpio geral que regula a escrita a correspon-dncia entre som e letra. Isso significa que ela compreendeu a natureza alfabtica do sistema de escrita.

    Conquistado o princpio alfabtico, preciso que o aluno aprenda as regras de correspondncia entre grafemas e fonemas na ortografia da Lngua Portuguesa. Essas regras de correspondncia so variadas, ocorrendo relaes mais simples e regulares e outras mais complexas, que dependem da posio do grafema/fonema na palavra (so posicionais), ou dos grafemas/fonemas que vm antes ou depois (so contextuais). Na escrita do Portugus, h pouqussimos casos em que h apenas uma correspondncia entre um grafema e um fonema. Mas, mesmo assim, h padres bsicos nos valores atribudos aos grafemas, h regras que o professor alfabetizador precisa compreender para saber propor ativi-dades adequadas a seus alunos e para interpretar com pertinncia as dificuldades que eles apresentam. importante que o professor, pela explorao sistemtica, contrapondo exemplos adequados, possibilite aos alunos observarem, analisarem e entenderem as correspondncias, que, apesar de dependentes de posio ou de contexto, so regulares e obedecem a padres apreensveis. A superao das dificuldades pode advir de situaes didticas que permitam aos alunos enxergar e entender as regularidades que h por trs das complicaes.

    No processo de aprendizagem, a compreenso das relaes alfabticas e ortogrficas pode se beneficiar da explora-o de relaes semnticas e contextuais significativas para as crianas. Elementos do texto, de seu suporte e de sua esfera de circulao podem ser usados pelos alunos como pistas para inferir palavras que devem ser lidas ou grafias que devem ser escritas. H dificuldades ortogrficas que podem ser sistematizadas e tornadas mais fceis para os alunos com a ajuda de conhecimentos da morfologia da lngua, por exemplo, as regularidades de sufixos e de desinncias verbais. Mas h tambm, irregularidades ortogrficas que s sero aprendidas por memorizao, sobretudo em funo da freqncia das palavras nos textos escritos que as crianas vo ler e escrever.

    Diante da complexidade do objeto de aprendizagem, de se esperar que algumas dificuldades ortogrficas permaneam ao longo dos primeiros anos escolares e tenham que ser retomadas. importante que o professor pro-cure estudar e ter clareza sobre as particularidades de cada tipo de problema, para poder conduzir adequadamente seu trabalho e dimensionar com equilbrio, suas expectativas.

    3. Leitura.A leitura uma atividade que se realiza individualmente, mas que se insere num contexto social, envolvendo

    disposies atitudinais e capacidades que vo desde a decodificao do sistema de escrita at a compreenso e a produo de sentido para o texto lido. Abrange, pois, desde capacidades desenvolvidas no processo de alfabetizao stricto sensu at capacidades que habilitam o aluno participao ativa nas prticas sociais letradas que contribuem para o seu letramento.

    A compreenso dos textos pela criana a meta principal do ensino da leitura. Ler com compreenso inclui, alm da compreenso linear, a capacidade de fazer inferncias. A compreenso linear depende da capacidade de construir um fio da meada que unifica e inter-relaciona os contedos lidos, compondo um todo coerente. Por exemplo, ao acabar de ler uma narrativa, ser capaz de dizer quem fez o qu, quando, como, onde e por qu. J a capacidade de produzir inferncias diz respeito ao ler nas entrelinhas, compreender os subentendidos, os no ditos, realizao de operaes como associar elementos diversos, presentes no texto ou que fazem parte das vivncias do leitor, para compreender informaes ou inter-relaes entre informaes que no estejam explicitadas no texto.

    Como a capacidade de compreenso no vem automaticamente, nem plenamente desenvolvida, precisa ser exercitada e ampliada em diversas atividades, que podem ser realizadas antes mesmo que as crianas tenham aprendido a decodificar o sistema de escrita. O professor contribui para o desenvolvimento dessa capacidade dos alunos quando: a) l em voz alta e comenta ou discute com eles os contedos e usos dos textos lidos; b) proporciona a eles familiaridade com gneros textuais diversos (histrias, poemas, trovas, canes, parlendas, listas, agendas, propagandas, notcias, cartazes, receitas culinrias, instrues de jogos, regulamentos etc.), lendo para eles em voz alta ou pedindo-lhes leitura autnoma; c) aborda as caractersticas gerais desses gneros (do que eles costumam tratar, como costumam se organizar, que recursos lingsticos costumam usar); e, d) instiga os alunos a prestarem ateno e explicarem os no ditos do texto, a descobrirem e explicarem os porqus, a explicitarem as relaes entre o texto e seu ttulo.

    Saber reconhecer diferentes gneros textuais e identificar suas caractersticas gerais favorece bastante o trabalho de compreenso, porque orienta, adequadamente as expectativas do leitor diante do texto. O professor contribui para isso quando prope, antes da leitura, perguntas que suscitam a elaborao de hipteses interpretativas, que sero verificadas (confirmadas ou no) durante e depois da leitura: de que assunto trata esse texto?, uma histria?, uma notcia?, triste?, engraado?, o que vai acontecer?. At o leitor iniciante pode tentar adivinhar o que o texto diz, pela suposio de que alguma coisa est escrita, pelo conhecimento do seu suporte (livro de histria, jornal, revista, folheto, quadro de avisos etc.) e de seu gnero, pelo conhecimento de suas funes (informar, divertir etc.), pelo ttulo, pelas ilustraes.

    Outras atividades adequadas para desenvolver a capacidade de compreenso e que podem ter incio desde antes da alfabetizao stricto sensu, porque podem ser realizadas a partir da leitura em voz alta feita pelo professor, so as que levam os alunos a partilhar sua emoo e sua compreenso com os colegas, avaliando e comentando afeti-vamente o texto, resumindo-o, explicando-o, fazendo extrapolaes (isto , projetando o sentido do texto para outras

  • vivncias, outras realidades). Resumir, explicar, discutir e avaliar o texto requer t-lo compreendido globalmente, ter interligado informaes e produzido inferncias. Fazer extrapolaes pertinentes sem perder o texto de vista contribui para o aprendizado afetivo e atitudinal de descobrir que as coisas que se lem nos textos, podem fazer parte da nossa vida, podem ter utilidade e relevncia para ns.

    4. Produo escrita.O domnio da escrita, assim como o da leitura, abrange capacidades que so adquiridas no processo de

    alfabetizao e outras que so constitutivas do processo de letramento, incluindo desde as primeiras formas de registro alfabtico e ortogrfico at a produo autnoma de textos. A escrita na escola, assim como nas prticas sociais fora da escola, realiza-se situada num contexto, orienta-se por algum objetivo, tem alguma funo e se dirige a algum leitor. O objetivo geral do ensino de redao proporcionar aos alunos o desenvolvimento da capacidade de produzir textos escritos de gneros diversos, adequados aos objetivos, ao destinatrio e ao con-texto de circulao. O trabalho nesse sentido pode ser feito na sala de aula mesmo antes que as crianas tenham aprendido a escrever, porque o professor estar orientando seus alunos para a compreenso e a valorizao dos diferentes usos e funes da escrita, em diferentes gneros e suportes, quando: a) ler em voz alta para eles histrias, notcias, propaganda, avisos, cartas circulares para os pais etc.; b) trouxer para a sala de aula textos escritos de diferentes gneros, em diversos suportes ou portadores e os explorar com os alunos (para que ser-vem, a que leitores se destinam, onde se apresentam, como se organizam, de que tratam, que tipo de linguagem utilizam); c) fizer uso da escrita na sala de aula, com diferentes finalidades, envolvendo os alunos (registro da rotina do dia no quadro de giz, anotao de decises coletivas, planejamento e organizao de trabalhos, jogos, festas); d) orientar a produo coletiva de textos, em que os alunos sugerem e discutem o que vai ser escrito e o professor registra a forma escolhida no quadro de giz.

    Para realizar esse trabalho importante compreender que uma palavra qualquer, como por exemplo, um nome prprio, pode ser um texto, se for usada numa determinada situao para produzir um sentido. Com essa compreenso, pode-se propor s crianas produzir textos escritos desde os primeiros dias de aula. Por exemplo: copiar o prprio nome ganha razo de ser quando se conjuga confeco de um crach que ser efetivamente usado e permitir aos colegas memorizarem a escrita dos nomes uns dos outros. Distinguir e aprender a traar as letras e a memorizar a ordem alfabtica, constituem um aprendizado cuja utilidade se manifesta na organi-zao de agenda de telefones dos alunos da turma, ou de um caderno de controle de emprstimo e devoluo de livros de histria, ou de listas de alunos escalados para realizar determinadas tarefas.

    Atividades como essas envolvem, simultaneamente, aprendizagens na direo da alfabetizao e do le-tramento, porque requerem habilidade motora, perceptiva e cognitiva no traado das letras e na disposio do escrito no papel, convidam reflexo sobre o sistema de escrita e suscitam questes sobre a grafia das palavras, ao mesmo tempo em que do oportunidade s crianas de vivenciarem importantes funes da escrita.

    A necessria capacidade de dominar o sistema ortogrfico pode ser associada produo de textos escri-tos com funo social bem definida. Por exemplo, cartazes, avisos e murais so gneros textuais que, em razo de seus objetivos e de sua circulao pblica, devem apresentar a ortografia padro. Assim, se as crianas se envolverem na produo, individual ou coletiva, de textos como esses, tendo em mente as circunstncias em que sero lidos, compreendero que, nesses casos, justificvel dedicar ateno especial grafia das palavras.

    Saber planejar a escrita do texto considerando o tema central e seus desdobramentos, de modo que ele parea, para seus leitores, sensato, lgico, bem encadeado e sem contradies, outra capacidade importante a ser desenvolvida na escola, porque a organizao e o encadeamento dos textos da conversa cotidiana, que as crianas conhecem, so diferentes do que se espera no caso de textos escritos, princi-palmente, se tiverem circulao pblica. Essa capacidade pode comear a ser desenvolvida na produo coletiva de diversos gneros, em textos mais longos ou mais curtos que o professor escreve no quadro de giz a partir das sugestes dos alunos. As crianas precisam aprender que, no planejamento da coerncia do texto escrito, sempre necessrio levar em conta para que e para quem se est escrevendo e em que situao o texto ser lido. Normalmente, esses elementos que orientam o processo de escrita, e bom que os alunos aprendam a lidar com eles desde cedo.

    Saber escrever inclui, tambm, a capacidade de usar a variedade lingstica adequada ao gnero de texto que se est produzindo, aos objetivos que se quer cumprir com o texto, aos conhecimentos e interesses dos leitores previstos, ao suporte em que o texto vai ser difundido, fazendo escolhas adequadas quanto ao vocabulrio e gramtica. Isso envolve dedicar ateno escolha de palavras e de construes morfossin-tticas, com sensibilidade para as condies de escrita e de leitura do texto. preciso, ainda, saber se valer de recursos expressivos apropriados ao gnero e aos objetivos do texto (produzir encantamento, comover, fazer rir, ou convencer racionalmente). Essas capacidades de uso da escrita tambm podem ser ensinadas e aprendidas na escola desde cedo, num trabalho que alie alfabetizao e letramento.

  • Finalmente, importante adquirir as capacidades de revisar e reelaborar a prpria escrita, segundo critrios adequados aos objetivos, ao destinatrio e ao contexto de circulao previsto. Tornar-se um usurio da escrita efi-ciente e independente implica saber planejar, escrever, revisar (reler cuidadosamente), avaliar (julgar se est bom ou no) e reelaborar (alterar, reescrever) os prprios textos. Isso envolve atitude reflexiva e metacognitiva de voltar-se para os prprios conhecimentos e habilidades para avali-los e reformul-los. Por sua importncia e necessidade, esta capacidade pode comear a ser desenvolvida na escola desde os primeiros e mais simples textos que as crian-as produzem. A escrita do prprio nome num crach, por exemplo, vai requerer critrios especficos de reviso e [re]elaborao com letra legvel, de tamanho e cor que facilitam a visualizao e disposio adequada no papel.

    1.2.3. Palavras finaisConsiderando que a possibilidade de integrao social, hoje requer do cidado, mito mais do que o mero

    conhecimento das primeiras letras, procurou-se, neste texto, discutir as noes de alfabetizao e letramento e, alm disso, demonstrar como vivel contemplar esses dois processos, de maneira articulada, no trabalho pedaggico com as sries iniciais do Ensino Fundamental. Nas breves reflexes e sugestes esboadas, deve ter ficado claro para os professores, que a implementao de propostas como a que aqui se delineou, requer, por um lado, a apropriao pelos docentes dos conhecimentos terico-metodolgicos envolvidos e, por outro lado, a presena, nas escolas, de material impresso disponvel e suficiente para o uso dos alunos. Espero que os argumentos desenvolvidos neste texto se componham com os de outros trabalhos que apontam na mesma direo, de modo a convencer os professores a inclurem em sua pauta de lutas, mais esses dois objetos de reivindicao.

  • Roxane RojoProfessora do Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem da

    PUC-SP. Pesquisadora do Centro de Alfabetizao, Leitura e Escrita (Ceale) e do CNPq.

    Letramento e diversidade textual

  • Ler melhor que estudar, esta frase de Ziraldo, j famosa, virou botton e foi carregada do lado esquerdo do peito, por parte de nossa juventude. Ela nos remete ineficincia da escola e sua distncia em relao s pr-ticas sociais significativas. Um depoimento da cantora Micha, irm mais velha de Chico Buarque e filha de Srgio Buarque de Hollanda, historiador de Razes do Brasil, pode nos esclarecer a razo da unanimidade dessa parcela da juventude sobre como se aprende a ler fora da escola:

    Sua [de Srgio] influncia sobre Chico e os outros filhos se dava de forma sutil. As paredes da casa da famlia eram cobertas por livros, e o pai incentivava a leitura atravs de desafios. Ele no ficava falando para a gente ler, conta Micha. Mas era um apaixonado por Dostoievski, conversava muito sobre ele. Ns todos lamos. E tinha Proust, aquela edio de 17 volumes. Ele dizia, desafiando e instigando: Proust muito interessante, vocs no vo conseguir ler, muito grande. Ah, mas se vocs soubessem como era madame Vedurin... A todo mundo pegava para ler (Regina Zappa, Chico Buarque, pp. 93-94).

    Ler melhor que estudar. Esta uma opinio quase unnime e compartilhada pela populao letrada e perten-cente s elites intelectuais brasileiras. intelectuais, professores do Ensino Fundamental, Mdio e Universitrio, jornalistas, comunicadores da mdia. No entanto, a maior parcela de nossa populao, embora hoje possa estudar, no chega a ler. A escolarizao, no caso da sociedade brasileira, no leva formao de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e, s vezes, chega mesmo a impedi-la. Ler continua sendo coisa das elites, nesse novo milnio.

    Neste sentido, a elaborao e publicao dos referenciais curriculares nacionais (PCN) representam um avano considervel nas polticas educacionais brasileiras em geral e, em particular, no que se refere aos PCN de Lngua Portu-guesa nas polticas lingsticas contra o no letrismo e em favor da cidadania crtica e consciente.

    um avano, na medida em que so estabelecidos os referenciais nacionais respeitada a pluralidade cultural do pas , que so relativamente consensuais, sobre o ensino e a educao desejveis para os jovens brasileiros.

    Configura um avano nas polticas lingsticas contra o no letrismo e em favor da cidadania crtica e consciente, na medida em que so preconizadas prticas e atividades escolares mais aproximadas das prticas sociais letradas e cidads. Um dos pontos relevantes e inovadores na proposta dos PCN relaciona-se viso de leitor/produtor de textos que, em muitos pontos, implica revises conceituais e prticas por parte das escolas e dos professores.

    A viso de leitor/produtor de textos presente nos PCN a de um usurio eficaz e competente da linguagem escrita, imerso em prticas sociais e em atividades de linguagem letradas que, em diferentes situaes comunicativas, utiliza-se dos gneros do discurso para construir, ou reconstruir, os sentidos de textos que l ou produz. Essa viso bastante dife-rente da viso corrente do leitor/escrevente, entendido como aquele que domina o cdigo escrito para decifrar ou cifrar palavras, frases e textos e, mesmo daquele leitor/escrevente que, dentre os seus conhecimentos de mundo, abriga, na memria de longo prazo, as estruturas grficas, lexicais, frasais, textuais, esquemticas necessrias para compreender e produzir, estrategicamente, textos com variadas metas comunicativas.

    1.3.1. Prticas de uso e atividades de linguagemOs objetivos gerais de Lngua Portuguesa para o Ensino Fundamental (PCN, p. 32) situam, como principal

    objetivo de seu ensino, a tarefa de levar o aluno a:

    utilizar a linguagem na escuta e produo de textos orais e na leitura e produo de textos escritos de modo a atender a mltiplas demandas sociais, responder a diferentes propsitos comunicativos e expressivos e considerar as diferentes condies de produo do discurso.

    J, aqui, desloca-se a viso corrente de ensino de Lngua Portuguesa como objetivando a construo de conheci-mentos e conceitos sobre a lngua e a construo da capacidade de anlise lingstica, em favor de uma viso comunicativa ou enunciativa, em que se trata de ensinar usos da linguagem ao invs de anlises da lngua. Estes usos so, desde o incio, qualificados como usos das duas linguagens, a oral e a escrita, na compreenso e produo de textos socialmente situados e com finalidades comunicativas, as quais ocorrem em situaes de produo especficas do discurso.

    Trata-se, portanto, de prticas sociais de uso da linguagem, que podem tambm ser vistas como atividades de linguagem (Schneuwly & Dolz, 1997).

    Neste sentido, prticas de linguagem uma noo de ordem social, que implica a insero dos interlocutores em determinados contextos ou situaes de produo, a partir dos quais, tendo a linguagem como mediadora, os agentes sociais estabelecem diferentes tipos de interao e de interlocuo comunicativa, visando diferentes finalidades de comunicao, a partir de diversificados lugares enunciativos. Est claro, que esses agentes sociais dependem de suas experincias de vida, de seu conhecimento acumulado a respeito de tais prticas, para poderem enunciar.

    *Esse texto se integra ao boletim da srie Alfabetizao, leitura e escrita, maro/2004.

  • Vistos assim, o desenvolvimento ou a aprendizagem so sempre um processo de apropriao das experincias acumuladas pela sociedade no curso de sua histria (prticas sociais e atividades). A apropriao , por sua vez, um processo de aprendizagem que conduz interiorizao de uma prtica social.

    Assim que os referenciais enfocam o ensino escolar da lngua materna como um processo de continuidade da apropriao de prticas sociais em circulao em espaos pblicos e formais. E estas prticas sociais circulam na forma de textos orais ou escritos.

    1.3.2. Textos (enunciados) e gnerosJ h uma tradio estabelecida na reflexo sobre o ensino de Lngua Portuguesa na escola, segundo a qual, a

    unidade mais relevante de ensino o texto, que no se deve dar como pretexto para outras atividades de ensino sobre a lngua ou sobre a escrita (alfabetizao, ortografizao), mas que se constitui em objeto de estudo, por si mesmo.

    Mas os novos referenciais inovam tambm na definio do que dever ser estudado com respeito aos textos:

    Ainda que a unidade de trabalho seja o texto, necessrio que se possa dispor tanto de uma descrio dos ele-mentos regulares e constitutivos do gnero, quanto das particularidades do texto selecionado (...) (PCN, p. 48).

    Os textos se organizam sempre dentro de certas restries de natureza temtica, composicional e esti-lstica, que os caracterizam como pertencentes a esse ou aquele gnero. Desse modo, a noo de gnero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino (PCN, p. 23).

    Ou seja, para alm de se estudar o texto em suas propriedades formais e estilsticas particulares, o texto visto como um exemplar de gnero do discurso e por meio da explorao das propriedades temticas, formais e estilsticas comuns e recorrentes num conjunto de textos pertencentes a um certo gnero que se pode chegar apropriao destas formas estveis de enunciado.

    Os gneros podem ser considerados como instrumentos que fundam a possibilidade de comunicao (Schneuwly & Dolz, 1997; Dolz & Schne