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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA Marizete Gasparin Prazer e Sorte: o jogo do bicho em Porto Alegre (1893-1903) Passo Fundo, Abril de 2007

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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM HISTÓRIA

Marizete Gasparin

Prazer e Sorte:

o jogo do bicho em Porto Alegre (1893-1903)

Passo Fundo, Abril de 2007

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Marizete Gasparin

Prazer e Sorte: o jogo do bicho em Porto Alegre

(1893-1903)

Passo Fundo, Abril de 2007

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo, como requisito parcial e final para a obtenção do grau de Mestre em História, sob orientação da Profª. Drª. Janaína Rigo Santin.

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Elaborada pela Bibliotecária Maria Salete Neckel Zorzan – CRB-14/158

GG249 Gasparin, Marizete Prazer e Sorte: o jogo do bicho em Porto Alegre (1893-1903) /

Marizete Gasparin. - 2007. x. 96 f. : il.; 31cm Dissertação (mestrado) – UPF / Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre, 2007. Bibliografia: f. 93-96. 1. Rio Grande do Sul – História. 3. Jogo do bicho 4. Contravenção – Dissertação. I. Santin, Janaína Rigo. II. Universidade de Passo Fundo, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. III. Titulo. CDD 343.91865

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A composição de uma dissertação traz a consciência da distância da família, dos amigos e dos carinhos. O tempo de festar, curtir, abraçar e rir não chega. A gente se acostuma a ler, escrever, pesquisar, reler, reescrever, revisar. É um ciclo que vai longe... Sua compreensão e seu apoio estão em cada capitulo escrito aqui. Dedico a você que, em silêncio, esperou que esse tempo passasse.

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Agradecer é explicitar reconhecimentos às pessoas e instituições que compartilharam saberes e colaboraram durante a realização desta pesquisa. São muitas: algumas citadas nesse trabalho e outras, apenas presentes nos rascunhos e na minha memória.

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O Bicheiro Conheceis o bicheiro? Ei-lo que passa Na louca taina de iludir a gente Pálido, acanalhado, impertinente, Entra aqui, surge ali, tudo devassa. Cruza ruas inteiras, vai à praça, Bate à porta do rico e à do indigente Promete lucros mil e, indiferente, Suga ao pobre o suor, causa desgraça. Oh! Vós homens da lei e da verdade Que a espada da justiça manejais Em defesa da sã moralidade Em nome dos mais puros ideais Fazei com que o bicheiro, à sociedade, Oculte o bicho e não abuse mais. (Lúcio de Caruaúba, Cachoeira) In: A Gazetinha, 25 mar. 1889.

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RESUMO

O jogo do bicho, criado a pouco mais de um século, no Rio de Janeiro,

espalhou-se pelo país, ganhando popularidade. Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, presenciou sua chegada, ainda em fins do século XIX, acompanhada pela imprensa e pela lei. O tema dessa dissertação traz uma abordagem inédita sobre a inserção do jogo do bicho em Porto Alegre, entre os anos de 1893 e 1903, possibilitando conhecer a contravenção na região sul. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, elaborada através da análise de diversos documentos: os jornais Gazetinha, O Independente e A Federação, que nesse período noticiaram, juntamente com assuntos referentes a esportes, economia, e crimes, a prática do jogo do bicho; e os Processos-crimes e a Documentação de Polícia, que relataram a realização de apreensões de materiais e indivíduos envolvidos nessa prática. Conhecer as representações construídas em torno do jogo do bicho e como essa atividade refletiu-se na sociedade, na política e na economia porto-alegrense na transição do século XIX para o XX, contribui para a compreensão da existência atual de práticas contraventoras na sociedade. No momento das reformas urbanísticas pautadas no processo de modernização da política republicana, Porto Alegre foi alvo da presença de indústrias e investimentos financeiros, atraindo indivíduos e com eles diversas práticas contraventoras, como por exemplo, o jogo do bicho. A capital Rio-grandense compartilhou de práticas contraventoras existentes em âmbito nacional, mas com peculiaridades próprias, principalmente nas apostas, com novas modalidades e tabelas de bichos. Pobres, ricos, representantes policiais e servidores públicos administrativos, envolveram-se com o jogo do bicho, tornando-o mais que uma paixão, um vício, um sonho, uma oportunidade de ascensão econômica, uma contravenção.

Palavras- chave: Jogo do bicho, Porto Alegre, Contravenção.

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ABSTRACT

The game of the bug, servant the little more than one century, in Rio de Janeiro, it dispersed for the country, winning popularity. Porto Alegre, capital of Rio Grande do Sul, witnessed its arrival, still in the end of the century XIX, accompanied by the press and for the law. The theme of that dissertation brings an unpublished approach about the insert of the game of the bug in Porto Alegre, among the years of 1893 and 1903, making possible to know the misdemeanor in the south area. It is a qualitative research, elaborated through the analysis of several documents: the newspapers Gazetinha, O Independente and A Federação, that in those period announced, together with subjects regarding sports, economy, and crimes, the practice of the game of the bug; and the Process-crimes and the Documentation of Police, that told the accomplishment of apprehensions of materials and individuals involved in that practice. To know the representations built around the practice of the game of the bug and as that activity it was reflected in the society, in the politics and in the economy porto-alegrense in the transition of the century XIX for the XX, contributes to the understanding of the practices offenders' current existence in the society. In the moment of the ruled town plannings reforms in the process of modernization of the republican politics, Porto Alegre was white of the presence of industries and financial investments, attracting individuals and with them several practices offenders, as for instance, the game of the bug. The capital Rio-grandense its shared of practices existent offenders in national extent, but with own peculiarities, mainly in the bets, with new modalities and tables of bugs. Poor, rich, representatives policemen and administrative public servants wrapped up with the game of the bug, turning its more than a passion, an addiction, a dream, an opportunity of economical ascension, a misdemeanor.

Keywords: Game of the bug, Porto Alegre, Misdemeanor.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Detenções efetuadas pela polícia referente aos jogos de azar em Porto Alegre, de 1895 a 1905………………......………………………...........…26

Tabela 2 – Jogo do bicho carioca.............................................................................30 Tabela 3 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade corrida......................52 Tabela 4 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade moderna e

moderníssima .........................................................................................53 Tabela 5 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade não identificada .......54 Tabela 6 – Animais mais apostados pelos jogadores porto-alegrenses ..................56

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS:

AHPA: Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Velhinho;

AHRS: Arquivo Histórico do Estado do Rio Grande do Sul;

APERGS: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul;

MCSHJC: Museu de Comunicação Social Hipólyto José da Costa;

PRR: Partido Republicano Rio-grandense;

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................11

1- OS HOMENS E OS JOGOS: contribuições à História...................................19

1.1- Abrem alas: o jogo do bicho chegou.........................................................28

1.2- A Sociedade e o Jogo do Bicho: mais de um século de parceria.............31

2- SONHAR , APOSTAR E “TALVEZ” GANHAR................................................44

2.1- Um número, vários animais: adaptações ao jogo do bicho..........................50

3- O INVENCÍVEL JOGO DO BICHO: legalizado ou proibido?.........................60

3.1- O xadrez ilusório: o jogo do bicho de mãos dadas com a polícia.................66

3.2- O contágio da imoralidade: o jogo do bicho no quadro político....................79

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................93

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INTRODUÇÃO

Desde as sociedades antigas, os jogos (de azar ou não) tiveram relações

com os homens. Por passatempo, prazer ou risco, fizeram parte das atividades

lúdicas, participando da vida social e adaptando-se aos valores de cada época. No

Brasil, as atividades lúdicas estão presentes no universo popular desde o início de

sua história, oscilando, com diversas feições, nos diferentes tempos e espaços. Mas

ao contrário da maioria, o jogo do bicho é uma prática criada aqui há pouco mais de

um século. Com a transição do Estado Imperial para o Estado Republicano,

ocorreram mudanças na sociedade e com elas, as atividades lúdicas ganharam um

novo parceiro: o jogo do bicho que em pouco tempo, alastrou-se pelo universo

popular brasileiro. Fazendo seu “show” no escuro, conquistou clientes de

“carteirinha” e até fidelidade. Com tanto sucesso, o Rio Grande do Sul,

especificamente Porto Alegre, não podia ficar de fora.

O presente estudo pretende elaborar a história da inserção do jogo do bicho,

em Porto Alegre, desde 1893, período de seu surgimento no Rio de Janeiro, até

1903, quando ocorre a morte de Júlio de Castilhos, presidente do Estado Rio-

grandense, no momento da expansão do jogo do bicho carioca, para a capital do

Rio Grande do Sul. A morte de Júlio de Castilhos marca o fim de uma

administração, mas não o fim do período Castilhista, uma vez que, apesar de

Borges de Medeiros ser do mesmo partido (PRR) e estar administrando o Rio

Grande do Sul desde 1898, Júlio de Castilhos era chefe de partido e agia nos

bastidores: “com a morte de Júlio de Castilhos em 1903, Borges irá acumular a

direção governamental e a chefia política do PRR.”1 Contempla-se, portanto,

conhecer se Julio de Castilhos tomou alguma atitude em relação ao jogo do bicho

no período de 1893 a 1903, coibindo ou estimulando essa prática.

Nesse sentido, essa pesquisa procura identificar o comportamento do jogo do

bicho porto-alegrense nos primeiros dez anos de existência nacional, analisando as

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representações construídas em torno do jogo do bicho e como ele reflete na

sociedade, na política e na economia de Porto Alegre na transição do século XIX

para o XX.

Após sair do jardim Zoológico, no Rio de Janeiro, o jogo do bicho se alastrou

pelo país e teve três fortes olhares: a justiça que tentava eliminá-lo através das leis;

a sociedade que era sua forte aliada, exercendo a “fezinha”; e a imprensa que

auxiliava dos dois lados – ora à justiça, pedindo a ação dos responsáveis, e ora à

sociedade, divulgando os resultados da loteria ou do jogo do bicho. Torna-se

pertinente aqui, conhecer os olhares da justiça e da sociedade, relacionando as

condições de sua chegada no Rio de Janeiro, capital, e posteriormente, em Porto

Alegre, num momento de transição política, social, econômica, em que a nova

ordem republicana se instaurava e com ela, as Províncias se tornavam Estados.

Objetiva-se apresentar as relações que o jogo do bicho estabeleceu com a

sociedade porto-alegrense na primeira década de existência nacional. Sociedade

essa que seguia o padrão nacional de modernização, inserindo-se na formação de

um espaço normatizador, inspirado no modelo europeu. A preocupação das elites2

com as camadas menos privilegiadas da população, era de inserí-las no trabalho.

Dessa forma, o trabalho ganha um novo significado, buscando auxiliar na

organização social daquele que deixara de ser escravo para ser livre e que

praticava formas alternativas de sobrevivência. Juntamente com isso, existia a

preocupação de críticos que escreviam acerca dessa atividade, bem como a lei

Constitucional, frente ao jogo.

A contravenção na região sul, especificamente o jogo do bicho em Porto

Alegre, na transição do século XIX para o XX, acompanhou as reformas

urbanísticas, pautadas no processo de modernização da política republicana. Se

por um lado havia a presença de indústrias, capitais e indivíduos auxiliando no

desenvolvimento da cidade; por outro lado, as práticas contraventoras infiltravam o

universo da ordem, oscilando entre a lei e o prazer, o vício e a sorte, a proibição e a

ação.

1TRINDADE, Hélgio.; NOLL, Maria Izabel. Subsídios para a História do Parlamento Gaúcho (1890-1937). Porto Alegre: CORAG, 2005, p. 46.

2Entende-se por elite o conjunto de grupos sociais que dominam a sociedade mediante sua influência, seu prestígio, suas riquezas, seu poder econômico, cultural ou político. (CHAUSSINAND-NOGARET, G. Elites. In: BURGUIÈRE, André.(org.). Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 283-286.

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O estudo do jogo do bicho porto-alegrense, apresenta-se como inédito à

temática. Não se tem conhecimento de trabalho desenvolvido, segundo essa

proposta, na capital ou até mesmo em outras cidades do Rio Grande do Sul. Há

apenas a existência das obras: Uma Outra Cidade, de Sandra Jatahy Pesavento3

que aborda, superficialmente, o jogo do bicho em Porto Alegre quando refere às

práticas contraventoras da cidade; O Cassino Guarani, de Sirlei Rossoni4 que faz

um breve histórico do jogo do bicho no Brasil, juntamente com outros jogos de azar;

e Águias Burros e Borboletas de Roberto da Matta e Elena Soárez5 que apresenta

um estudo antropológico do jogo do bicho no Rio de Janeiro mencionando

superficialmente a organização desse jogo em outros Estados brasileiros, incluindo

o Rio Grande do Sul.

Aliás, é necessário repensar o momento em que a prática do jogo do bicho

conquistou o universo popular porto-alegrense, para colaborar com a historiografia

rio-grandense, uma vez que há deficiência desse objeto de pesquisa em tal recorte

espacial. A história regional interage com a história nacional, através de um estudo

sobre o jogo do bicho. A sociedade de Porto Alegre, desse período (transição do

século XIX para o XX), não era referência ao país, mas consolidava práticas

semelhantes àquelas adotadas na cidade do Rio de Janeiro (capital nacional), como

por exemplo, o jogo do bicho que iniciou no Rio de Janeiro e também conquistou

adeptos no Rio Grande do Sul.

Justifica-se a relevância do tema pela importância sócio-histórica,

considerando a interação entre história e modernidade, visto que uma inexiste sem a

outra. Conhecer o universo de inserção e alastramento da prática do jogo do bicho

no contexto porto-alegrense, auxilia a compreensão da atual existência de práticas

contraventoras na sociedade, bem como, a relação das mesmas com os ideais

políticos que através da lei, organizam as normas sociais.

Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa sobre a temática do

jogo do bicho, em Porto Alegre, realizada através de uma análise crítica. As fontes

3 Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma Outra Cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001, p. 227-232.

4Ver ROSSONI, Sirlei. O Cassino Guarani: historias, memórias e personagens – Irai- RS (1940-1994). Passo Fundo: UPF, 2001.

5MATTA, Roberto da; SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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para sustentação da problemática citada, foram documentos oficiais do período,

referentes à Polícia, como os Processos-crimes arquivados no APERS e a

Documentação de Polícia localizada no AHRS, e, principalmente, a imprensa

discutida a seguir.

Para Nelson Werneck Sodré, a imprensa “nasceu com o capitalismo e

acompanhou todo o seu desenvolvimento”6. Por isso que no Brasil, teve traços

particulares, dividindo-se em pequena, média e grande imprensa, sendo industrial

ou jornalística. Vivenciou os avanços tecnológicos, tornando-se um veículo de

comunicação de massa, com a presença do rádio, televisão e meios eletrônicos,

como a internet.

Entre os vários tipos de imprensa, discute-se aqui, o caso específico dos

jornais escritos que, ora com sucesso de vendas, ora com tréguas, foi um dos

meios de comunicação em que a informação alastrou-se e continua alastrando-se

pela sociedade. Em fins do século XIX, quando os meios de comunicação de

massa, eletrônico e televisionado (de som e imagem) não participavam na história

da humanidade, os jornais, como membros da imprensa, faziam grande sucesso na

divulgação de idéias e organização da sociedade7. Segundo Nelson Werneck

Sodré, o número de pessoas que tinham acesso aos jornais nesse período era

reduzido, devido à alta porcentagem de analfabetos e baixo poder aquisitivo de

grande parte da população. Mesmo assim, estavam presentes na história da

sociedade, uma vez que, a informação estava além do número de leitores, pois o

jogo do bicho fazia parte da cultura popular, e aqueles que não sabiam ler recebiam

as informações das notícias publicadas. Carlo Ginzburg denomina isso de

circularidade cultural entre cultura subalterna e cultura hegemônica, sendo os

jornais lidos em voz alta, ou contados a um grande número de analfabetos8.

Nesse período, a confecção dos jornais era precária, sem muita tecnologia,

facilitando as fraudes de notícias de outros Estados9. De poucas páginas e em

6SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. X.

7Ver COELHO, Teixeira. O que é industria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2003.

8 Ver GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Editora Àtica, 1987, p.15 – 34.

9Acompanhando os jornais torna-se possível perceber as fraudes das informações existentes na imprensa no final do século XIX. A Federação 28 ago. 1898.

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tamanho grande, logo foram ganhando uma nova estrutura: aumento das sessões

de publicação ao longo da semana, aperfeiçoamento das técnicas de confecção,

com a velocidade na impressão, ampliação das informações e auxílio no telégrafo

para maior rapidez nas informações.10

Além da tecnologia implantada na imprensa para melhorar a qualidade dessa

fonte de pesquisa, é importante salientar que o contexto exercia grande influencia

nas representações das notícias. No período em que o país saía do escravismo e

ingressava no processo de construção de uma sociedade capitalista urbano-

industrial, a imprensa auxiliava no ordenamento político-cultural de implantação de

um universo modernizante, querendo libertar-se dos resquícios rurais coloniais. A

ordem do momento era “civilizar”, aproximando as idéias, o cotidiano, a economia e

as instituições brasileiras com as Européias. Inventaram um “Brasil Moderno” e

instauraram novas práticas para torná-lo possível11, e a imprensa auxiliava nessa

tentativa de “reconstrução de um novo Brasil”.

A esperança dos responsáveis pela remodelação do país era de que “essa

projeção externa, [aparência física da cidade modernizada] pública, citadina,

pudesse atingir e orientar os indivíduos”.12 Os jornais eram os transmissores dessa

“cultura introjetada socialmente”, como se pode ver nos jornais selecionados para

este trabalho.

A Federação no período de 1894 a 1903 circulava de segunda a sábado,

com o objetivo de ser porta-voz oficial do Partido Republicano Rio-grandense,

nesse período, representado por Júlio de Castilhos. Fundado por Venâncio Ayres,

foi o primeiro jornal da província e um dos primeiros do país a usufruir de um

serviço telegráfico nacional e internacional, por isso, considerado um dos mais

modernos nacionalmente. Abordava assuntos referentes ao comércio, economia,

arte, literatura e esportes.

Para fazer a dialética, optou-se pela Gazetinha de 1895 a 1900, com caráter

mais popular e opositor ao Partido Republicano Rio-grandense, embora em alguns

momentos apresenta-se favorável a este partido. O jornal abordava assuntos como

10 Ver Sodré, op. cit.

11WEBER, Beatriz Teixeira. Códigos de posturas e regulamentação do convívio social em Porto Alegre no século XIX. (Dissertação). Porto Alegre: UFRGS, 1992, p.86. 12HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs.). A Invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 27.

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crimes, julgamentos, entre outros, e circulava nas quintas e domingos. Fundado por

Octaviano Manoel de Oliveira, a Gazetinha deixa de circular em 1900, após seu

fundador sofrer um atentado, devido aos artigos ásperos que escrevia em seu

jornal.

A partir de então, Octaviano Manoel de Oliveira funda O Independente, de

circulação semanal, com o lema “defensor das classes populares”, que de 1900 à

1903, participa desse trabalho13. Todos os jornais apresentam claramente sua

posição política.

Analisando os jornais pesquisados, pode-se dizer que o desenvolvimento da

imprensa acompanhou também a concentração demográfica urbana, principalmente

das capitais. Conforme aumentava o número de pessoas que “consumiam” o jornal,

aumentava também o número de anunciantes que buscavam, nesse tipo de

imprensa, a abertura de novos mercados, devido à importância da propaganda.

Assim, a imprensa saía de informativa para opinativa e as ilustrações auxiliavam as

críticas oferecidas ao leitor. Notícias relacionadas à política, economia, sociedade,

valores, crimes e diversões estavam presentes nas informações publicadas.

No final do século XIX, a imprensa jornalística brasileira poderia situar-se de

forma mais burguesa ou mais operária, dependendo das informações divulgadas e,

conseqüentemente, do público leitor. E sempre que críticas ferozes permaneciam

por determinado período, os jornais encontravam dificuldades na publicação, tendo

as vezes que desaparecer, devido às perseguições, como foi o caso da

Gazetinha14.

Portanto, desenvolver estudo sobre o jogo do bicho em Porto Alegre na

transição do século XIX para o XX, deixando fora uma importante fonte de

pesquisa, como a imprensa, não é possível. Mas é preciso que seja analisada “com

toda a atenção, devido a certos fatores que cercam a imprensa, tais como

dependência econômica, mistura do imparcial e do tendencioso, do certo e do

errado”15, por parte daqueles que publicam a propaganda, pagando por ela, quanto

13Ver VIEIRA, Silvia Rita de Moraes. Acervos Hemeroteca: jornais, revistas e almanaques. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2003.

14Idem.

15FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil (1880-1920). Petrópolis: Vozes, 1978, p. 87.

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daqueles que pagam para conhecer as notícias. A imprensa tem lucro dobrado e

por sua vez, atende aos dois clientes, selecionando as informações.

Não só dependência econômica, mas também política, aspirações e

interesses particulares, enfim, todos os elementos presentes na sociedade era

possível encontrar na imprensa. Nesse contexto de inserção do capitalismo, o

controle dos meios de difusão das idéias e das informações era grande, até mesmo

nas técnicas de produção. Tem-se, como exemplo, os jornais pesquisados aqui. A

seleção do conteúdo exposto e a liberdade de expressão conflitavam de forma

passiva, uma vez que os escritores sabiam quem procurar no momento de uma

crítica.

Nesse sentido, afirma-se que os jornais – já no final do século XIX – não

eram imparciais. As expressões em seus artigos estavam imbutidas na orientação

dos leitores para a formação de opinião e tomada de posições. A manipulação

ocorria de acordo com a posição política do responsável, uma vez que no Brasil,

grande parte da produção jornalística sempre pertencia à propriedade privada. A

imprensa rio-grandense trabalhada aqui, não é diferente.

Para instrumentalizar a análise das fontes documentais, trabalha-se com

material bibliográfico de suporte, como artigos e livros sobre o contexto político,

econômico e social da época, auxiliando o conhecimento histórico da teoria e da

prática. Portanto, trata-se de uma pesquisa de cunho histórico, em que o objeto

(jogo do bicho) está vinculado ao contexto constituído de transformações históricas.

Frente aos novos temas, trata-se de um trabalho inédito, que faz parte de

uma cultura historiográfica, com publicações referentes ao jogo do bicho no Rio de

Janeiro, Brasília, Fortaleza16. Com a ampliação dos objetos de pesquisa em história

e conseqüente abertura para novos métodos e novos documentos, pode-se tomar o

jogo do bicho, como tema relevante, para a compreensão de Porto Alegre, na virada

do século: o elemento lúdico justificando a difícil construção de uma ética positivista

do trabalho. As pessoas buscavam outros meios de obter a ascensão social - os

jogos de azar – e não necessariamente o trabalho e a disciplina. A característica

bipolar (entre discurso e prática) da época era visível nas resistências de

16 Ver HERSCHMANN, Micael; LERNER, Kátia. Lance de Sorte: o futebol e o jogo do bicho na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993; e EVANGELISTA, Helio de Araújo. Rio de Janeiro: Violência, Jogo do Bicho e narcotráfico segundo uma interpretação. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Ambas fazem referencia ao jogo do bicho no Rio de Janeiro, enquanto SOARES, Simone Simões

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implantação do sistema republicano, centrado no lema “Ordem e Progresso”. A

tentativa fracassada de construção de cidades ‘parisienses’ (principalmente nas

capitais das províncias) enfatizou a difícil desvinculação do passado colonial para o

republicano.

Os lugares, as ações e os sujeitos, oculto nas pesquisas do início do século

XX, ganharam voz na historiografia, podendo ser problematizados e confrontados

com o contexto já descrito. Faz-se isso através de um estudo sobre o

comportamento do jogo do bicho, em Porto Alegre, na primeira década de

existência nacional.

O presente trabalho está dividido em três momentos. Primeiramente,

apresenta-se a história dos jogos de azar, inserindo o surgimento do jogo do bicho

no Rio de Janeiro e sua expansão até o Rio Grande do Sul, mais especificamente,

Porto Alegre. Questiona-se o tipo de sociedade que acolheu essa prática e os locais

dos jogos. A imprensa e os processos-crimes fornecem suporte para a

compreensão da expansão do jogo do bicho em Porto Alegre num momento de

construção de uma sociedade do trabalho.

No segundo momento, apresenta-se as formas de apostas do jogo do bicho

traçando um paralelo entre Porto Alegre e Rio de Janeiro, com as respectivas

tabelas dos bichos. A interpretação dos sonhos torna-se fundamental para

compreender a fé depositada neste jogo. Os processos-crimes e a imprensa

auxiliam no levantamento desses dados.

Num terceiro momento, trabalha-se com o olhar da justiça sobre o jogo do

bicho. Busca-se conhecer a relação entre ambos, num momento em que a lei era

uma das formas de coerção da sociedade, auxiliando o discurso ordem e progresso.

Objetiva-se apresentar a história da lei sobre o jogo do bicho e nesse contexto

conhecer as práticas executadas além dela. O código penal brasileiro caminhava

para a organização do espaço, com auxilio das leis e as respectivas autoridades

competentes. Dessa forma, este trabalho visa compreender como o jogo do bicho

conseguiu sobreviver a esse “cerco”, mantendo-se na sociedade até hoje. Tal

compreensão baseia-se em documentos de polícia, processos-crimes, leis e a

imprensa.

Ferreira. O Jogo do Bicho: a saga de um falto social brasileiro. Rio de Janeiro : Bertrand, 1993, apresenta capítulos sobre o jogo do bicho em Fortaleza e em Brasília.

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Dessa forma, o presente trabalho auxilia nos estudos regionais contribuindo,

para a história nacional, uma vez que Porto Alegre não esteve desconectada do

restante da nação no processo de construção de uma sociedade capitalista,

disciplinada aos moldes do positivismo.

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1- OS HOMENS E OS JOGOS: Contribuições à história

O poker e a roleta, a loteria e o bicho, o dado e a campista, são os árbitros da sorte dos cidadãos.

Debaixo deste ou daquele aspecto, com esta ou aquela derivação, todos os lances da existência correm ao acaso,

o destino de cada vida se reduz a um castelo de cartas, o país é uma grande barraca de jogo.

Rui Barbosa.

Definir a palavra jogo não é tarefa fácil, cada autor a entende de uma forma.

Embora recebam a mesma denominação, os jogos possuem especificidades:

alguns tipos de jogos usam a imaginação; outros, a representação mental ou a

habilidade manual; há aqueles que necessitam de estratégias e astúcia (como o

caso do jogo político); mas todos possuem regras implícitas ou explicitas.

Huizinga escreve sobre as práticas lúdicas e se refere ao jogo, não apenas

como uma estratégia de sobrevivência, mas como elemento da cultura popular que

fornece prazer: “Ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as

representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar”.33 O jogo é uma forma de

expressar sentimentos e emoções, encontrada pelo homem. Ele nutre todas as

atitudes dos seres humanos. Os homens, desde criança até adulto, praticam

atividades culturais necessárias à sobrevivência que são chamadas de atividades

lúdicas. Nessas atividades, desenvolvem a imaginação, através do jogo. Essa

‘viagem’ tem limites no tempo e no espaço: são regras delimitadas, sendo assim

ordem e liberdade inerentes ao jogo, que se pode denominar play. Diferencia-se um

pouco, o jogo como competição, com regras que se denomina game. Quase

sempre se utiliza a expressão play para uma ação, mas quando se refere aos jogos

de azar, utiliza-se a denominação game, pois as regras prevalecem ao prazer –

principalmente, no caso do jogo do bicho, em que a fidelidade é um elemento

33HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 41.

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imprescindível, por não ser conduzido pelo jogador e sim, pela sorte: o jogador joga

na sorte.34

A história dos jogos tem início com a origem das sociedades, adaptando-se

aos valores e espaços de cada época. Por passatempo, diversão, ascensão social

ou vício, o homem sempre desempenhou essa atividade. Philippe Áriès35 apresenta

a relação dos jogos com os homens, ao longo da história e mostra que, desde as

sociedades antigas até o Antigo Regime, a importância dos jogos e das festas era

grande, tanto entre a nobreza, quanto entre o povo. Essa era uma forma de estreitar

os laços coletivos. Os adultos participavam das práticas lúdicas infantis e as

crianças das práticas lúdicas adultas. Além disso, as festas e os jogos estavam

ligados ao trabalho: nos momentos de grandes colheitas, chegando ao final da

atividade, faziam festas e realizavam jogos como forma de diversão e

agradecimento ao bom resultado das safras. Aristóteles e Sócrates36 viam no jogo a

recreação, sendo praticada como relaxamento necessário às atividades que

exigiam esforço físico, intelectual e escolar. Na França do século XVII, a prática dos

jogos de azar era uma espécie de brincadeira que ocorria naturalmente entre as

pessoas, não sendo condenada ou considerada um problema social37.

Dessa forma, a repugnância moral em relação à prática de determinados

jogos, torna-se um fenômeno histórico ao nível das mentalidades que tem a ver com

as transformações econômicas e sociais a partir do final do século XVIII. As

atividades lúdicas possuem valores diferentes. De acordo com o espaço e tempo

em que são praticadas adquirem novos significados. O lúdico, enquanto prática da

sociedade, passava a ser condenado quando atentava contra valores morais. Com

o advento da sociedade do trabalho, da produção e da poupança, determinadas

práticas lúdicas, principalmente os jogos de azar, passaram a ser representadas

como negativas. O contexto social constrói uma imagem de jogo, conforme os

valores e o modo de vida de cada sociedade expressado por meio da linguagem. As

diferentes culturas possuíam diferentes significados e regras aos jogos, que por sua

34Ver idem.

35Ver ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.

36Ver TIZUKO M. Kishimoto. Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Cortez, 1997. Pp. 7-43.

37Ver Ariès, op. cit

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vez, caracterizavam o jogo.38 Pode-se dizer que o jogo assumiu a imagem e o

sentido que cada sociedade lhe atribui.

No Brasil, os jogos de azar tiveram repercussão social ao longo do século

XIX. Sirlei Rossoni destaca que a presença dos nobres e funcionários do Estado

Português, em 1808, e a conseqüente divulgação da cultura européia, inseriram os

jogos no cenário nacional.39 Já Gilberto Freyre remota um pouco mais a história dos

jogos no Brasil:

Da tradição indígena ficou no brasileiro o gosto pelos jogos e brinquedos infantis de arremedo de animais: o próprio jogo de azar, chamado do bicho, tão popular no Brasil, encontra base para tamanha popularidade no resíduo animista e totêmico de cultura ameríndia reforçada depois pela africana.40

Seja ele de origem indígena, africana ou européia, o certo é que os jogos

também presenciaram o espaço brasileiro, e desde sua chegada, mantêm raízes

impossíveis de extinguir.

Porto Alegre na transição do século XIX para o XX, encontrava-se dividida

socialmente: de um lado a elite, responsável pela ordem; do outro o ‘povinho’, que

causava desordens. A imprensa construía essa dualidade social a partir da visão

de normas e valores da época e representava em sua redação.

O povo, conhecido também como as “classes perigosas”,41 representava os

pobres urbanos e se mostravam, segundo a ótica burguesa, mais propícios no

envolvimento de práticas ilícitas, além de incapazes de adquirirem hábitos

civilizados.42 Para os jornais, esses indivíduos pobres apresentavam periculosidade

na sociedade, uma vez que, sua imagem era reforçada com referências ao álcool, a

prostituição e outras atividades consideradas imorais. Enquanto isso, os outros

indivíduos da sociedade, mesmo praticando a imoralidade, estavam ilesos das

imagens denegridas.

38Ver Tizuko, op. cit.

39Ver ROSSONI, Sirlei. O Cassino Guarani: histórias, memórias e personagens – Irai – RS (1940-1994). Passo Fundo: UPF, 2001. Pp. 57-59.

40FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005. p. 206

41CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da “Belle Epoque” . São Paulo: Brasiliense, 1986.

42Ver MAUCH, Cláudia. Ordem pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.

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Essa ambigüidade de tratamento da população era visível na imprensa,

principalmente na Gazetinha, que mesmo se dizendo popular, fazia referência ao

povo com a imagem de um senhor de cabelos escuros despenteados, com pele

morena e enrugada, sem fazer a barba, nariz e orelhas grandes, com poucos

dentes na boca, vestindo roupas sem muito contorno, mas aparentemente feliz.

Fonte: Gazetinha, 27 de out. 1895. (AHPA)

Os escritos na imprensa especificavam as características físicas e os hábitos

de vida deste figurino:

O Zé! Era um tipo franzino. Tez morena, bigodes pretos e retorcidos, olhos grandes e negros, apresentava um todo simpático. Sua vida era uma tempestade contínua. Oscilava entre as vendas das quais era o mais acérrimo e famoso diletante e às Pontes das Pedras onde ia filosofar sobre as contrariedades da vida. Tinha um predicado: abominava o jogo sob todas as suas formas. Nos seus momentos alcoólicos quando sentia em si uma veia de Demóstenes, profligava o jogo.43

Já as pessoas com melhor poder aquisitivo, entre elas, as autoridades

policiais e administrativas que eram responsáveis pela organização da sociedade,

recebiam outra imagem, mesmo em casos de críticas do trabalho. Um exemplo

disso é a imagem ilustrada que representa as sombras das autoridades, sendo que

essas nunca andavam sozinhas. Sempre com o corpo bem coberto e uniformizado,

43Gazetinha, 01 out. 1895.

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conforme sua profissão, de pele branca e bigodes bem aparados. Na cabeça,

usavam chapéu ou um complemento da farda. De postura reta e cara fechada,

exigiam respeito.

Fonte: Gazetinha 27 out. 1895 (AHPA)

Essa sociedade apresentada nos jornais auxiliou na existência das práticas

de jogos de azar. Por volta de 1895, a imprensa rio-grandense44 divulgava

propagandas de jogos de azar: poule, vísporas, pelegas e loterias, tanto nacionais,

quanto estrangeiras. Entretanto, o jogo do bicho ainda estava escondido, mas as

casas de jogos proliferavam mesmo que as autoridades ‘ficassem de olho’:

Sabemos que um ousado aventureiro cremos que de nome Manuel Antonio, que vive da jogatina, se dirigiu esta tarde à casa de um amigo nosso, solicitando-lhe proteção para abrir uma casa de jogo. O nosso amigo, sem mais preâmbulos, pôs imediatamente no olho da rua a audaz solicitante.45

Além desse, muitos outros indivíduos viviam da jogatina. Aos poucos, os

espaços eram organizados para tais atividades. Ser dono de uma casa de jogos de

azar, conhecida como tavolagem, era uma das formas de ocupação e ‘ganha-pão’ e

investiam nisso com auxílio da imprensa que divulgava propaganda para o novo

meio de adquirir fortuna, apresentando os locais de jogos e atenuando as

44E neste caso trabalhamos com o jornal a Gazetinha e a Federação.

45Federação, 08 mai. 1896.

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dificuldades financeiras de subsistência da população, através da Loteria Brasileira

do vendedor Lapporta :

O La Porta... ora o La Porta É mesmo o amigo do povo; Sempre se arranja um meio novo Que um lucro do Zé importa Para melhorar a vida Que é muito cara hoje em dia Oferece a loteria Que vence a invalida Custa o bilhete somente Oito mil reis! Nada mais È de seduzir a gente De acordo ó povo, não estais? Basta que ao menos se pense No tal, Cem contos de réis É de se espalhar os pés E jogar na Rio-Grandense46

Enquanto o povo se ‘divertia’ com a prática, outros, como as autoridades

policiais e os jornais, ‘atacavam’ para prevenir males. Tanto autoridades policiais e

administrativas, quanto o povo, ilustrado pelos jornais, participavam de práticas

contraventoras. Comerciantes, operários, desocupados e pessoas que viviam de

expedientes diversos, inclusive do jogo e da prostituição, formavam a sociedade

porto-alegrense na virada do século XIX para o XX. A cidade concentrava o maior

contingente de trabalhadores do Rio Grande do Sul e entre eles, havia um grande

número de desempregados. Os ociosos ocupavam quase toda a atenção dos

chefes de polícia por serem considerados perigosos para a ordem pública e uma

ameaça moral à sociedade e, conseqüentemente, levados à prisão, devido à

vadiagem, desordens, jogo, embriaguez - todas atividades contraventoras descritas

no Código Penal de 189047. Alguns eram presos para averiguações, tornando,

dessa forma, a prisão um meio de moralização.

Mesmo com a ação das autoridades policiais, o número de jogadores

aumentava. Aqueles que, inicialmente praticavam as loterias, começaram a praticar

46Gazetinha, 15 out. 1896.

47Ver BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, 1890.

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o jogo do bicho quando esse chegou na sociedade. Isso quando não praticavam os

dois jogos:

Hoje, em cada canto da cidade, há, por assim dizer, um antro de tavolagem, onde o dinheiro corre parelhas com o aviltamento do caráter; há casas de jogos proibidos, freqüentados assiduamente por pessoas de todas as categorias e de todas as classes sociais, desde o caixeiro ao comerciante abastado, desde o humilde operário ao industrialista, desde o marinheiro até o oficial , desde o vagabundo até o ricaço que vive de rendimentos48

Todas as classes sociais praticavam jogos de azar proibidos: ricos, pobres,

trabalhadores e desempregados auxiliavam a proliferação das casas de jogos.

Analisando a documentação de polícia, foi possível perceber um aumento gradativo

do número de registros policiais sobre atividades ilícitas, como jogos de azar,

principalmente do jogo do bicho, na capital do Rio Grande do Sul após o ano de

1895. Embora no ano de 1903, em que ocorreu a morte de Julio de Castilhos, não

se tem registro de indivíduos envolvidos com jogos de azar, este não tinha sido

extinto, uma vez que, nos anos seguintes de 1904 e 1905 houve um aumento dos

registros dessa prática.

Tabela 1 – Detenções efetuadas pela polícia referente aos jogos de azar em Porto Alegre de 1895 a 1905.

Ano Nome Idade Profissão Crime

1895 Aníbal Pereira Pinto __ ____ Jogatina

1895 Achylles Pereira Pinto __ ____ Jogatina

1895 Afonso Correa da Silveira __ Proprietário do

Café Pátria

Jogatina

1898 Joaquim Martins Flores __ Vendedor de

cartelas

Vendedor de cartelas do

Jogo do bicho

1898 Josino Barreto 36

Comerciante

Proprietário do jogo do bicho

1898 Manoel Rodrigues de Lima __ Banqueiro do jogo Proprietário do Jogo do

bicho

1899 Alcides Gonçalves Ferreira 19 Aprendiz de

pedreiro

Jogo

1899 Antônio Rodrigues de

Oliveira

39 Marítima Jogo na casa nº 30, à rua da

Margem

1899 Flamenais Francisco Paulo 18 Carpinteiro Jogo

1899 Germano de Oliveira 26 Pedreiro Jogo

1899 João Talentino 29 Carpinteiro Jogo na casa nº 30, à rua da

48Gazetinha, 03 jun. 1896.

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26

Margem

1899 Manoel Cardozo 23 Carroceiro Jogo na casa nº 30, à rua

da Margem

1899 Maurício de Mello 26 Pedreiro Jogo

1899 Otávio Fagundes 21 Caixeiro Jogo na casa nº 30 a rua da

Margem

1899 Ventura Afonso da Silva 35 Carregador Jogador

1899 Virgílio Bispo dos Santos 30 Negociante Proprietário da casa de jogo

1900 Albino Martins __ _____ Banqueiro

1900 Antônio Perez 22 Pedreiro Jogo

1900 Artur de Souza Borges __ _____ Protagonista do jogo

1900 Felipe Viale 24 Proprietário da

casa de jogos

Jogo

1900 Frederico Pereira da Silva __ _____ Vendedor de cartelas

1900 Galtendo Giovanni __ _____ Vendedor de cartelas

1900 Geraldo Jose Coutinho 42 Carroceiro Furto de uma poule

premiada e bicheiro

1900 Gladis Ferreira da Motta __ Sócio da casa de

jogos

Jogos de azar

1900 Jeremias de Souza Estrela 78 Carvoeiro Furto e jogo de poule

premiada

1900 João Masson M. Luiz 27 Paguista Vagabundagem e jogo

1900 Joaquim Alves __ Proprietário da

casa de jogos

Proprietário da casa de

jogos

1900 José Alves de Moura 48 Hoteleiro Jogo no 1º distrito

1900 José Garcia 50 Jornaleiro Jogo

1900 José Viale __ Proprietário de

casa de jogos

Jogos de azar

1900 Juvenal de Magalhães 25 Cobrador Jogo

1900 Luiz Maya __ Banqueiro Banqueiro do bicho

1900 Manoel Ramires 40 Jornaleiro Jogo

1900 Maximino Antônio Limonge 31 Cobrador Jogo

1900 Seven Ferreira 29 Sapateiro Jogador na casa nº 30, à rua

da Margem

1900 Virgilio Bispo dos Santos 31 Negociante Proprietário da casa de jogo

1901 Augusto Marques

Guimarrães

60 Operário Vendedor de cartelas do

jogo do bicho

1901 Cipriano Grainha 70 Agência Vendedor de cartelas do

jogo do bicho

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1901 José Bento da Siqueira 66 Agência Vendedor do jogo do bicho

1901 José Jorge de Egídio 17 Jogador Vendedor de cartelas do

jogo do bicho

1902 Alberto Bordone __ Comerciante Loteria falsa (jogo do bicho)

1902 João Marsicano __ Contratador de

loteria

Loteria falsa

1904 Agostinho Rosa __ ____ Jogo do bicho

1904 Antônio de Oliveira Filho __ ____ Jogo do bicho

1904 Caetano Camarata 32 Ourives Jogo do bicho

1904 Francisco Pedro Olivaes __ ____ Jogo do bicho

1904 Henrique Brucker 33 Negociante Jogo do bicho

1904 Marciano Maria Silva 13 Caseiro Jogo do bicho

1905 Antônio Francisco da Silva __ ____ Praticando o jogo do bicho

1905 Emílio Coelote 22 Comércio Praticando o jogo do bicho

1905 Eugênio de Castro 51 Comércio Praticando o jogo do bicho

1905 Floranpeho de Castro

Loureiro

__ ____ Jogo do bicho

1905 João Emílio Machado 38 Comércio Jogo do bicho

1905 João Monteiro de

Albuquerque

__ ____ Jogo do bicho

1905 João Moreira __ ____ Jogo do bicho

1905 José Caetano da Silva __ ____ Jogo do bicho

1905 Liberalino de Fraga 14 Empregado do

comércio

Jogo do bicho

1905 Luiz Daleto Primavera __ ____ Praticando o jogo do bicho

1905 Manoel Vieira da Costa __ ____ Jogo do bicho

1905 Mariani Aliso __ ____ Jogo do bicho

1905 Mariano da Fontoura

Bacelar

__ ____ Jogo do bicho

1905 Miguel de Giorgi __ ____ Jogo do bicho

Fonte: Instrumento de Pesquisa da Secretaria de Segurança Pública. Registro de Prisões 1896/1904, Códice 38 AHRS; RIO GRANDE DO SUL, Cadastro de processos-crimes (1849-1912) nº 42, 46, 48, 68, 74, 90, 106, 108, 111, 112, 116, 121, 122, 125, 126, 127, 129, 130 maço 2, 3, 4, 5, 6 e (1891-1897) nº 1841, 1843, maço 76. APERS.

Observa-se que dos 62 indivíduos que tiveram passagem pela polícia, devido

aos jogos de azar, 2 eram mulheres, ou seja, apenas 3,2% dos envolvidos, e estas

não tiveram idade registrada. Já entre os indivíduos do sexo masculino, 43,3% não

apresentaram a idade, e o restante variava entre 13 e 78 anos.

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O tipo de crime também era diversificado: uns por serem jogadores, outros

vendedores de cartelas, havia até os donos de casas de jogos e aqueles que se

envolviam no furto das cartelas premiadas, ou mesmo os que divulgavam a loteria

falsa. A condição financeira dos praticantes oscilava desde desempregados que

praticavam como ganha-pão até aqueles que possuíam bom poder aquisitivo,

podendo bancar o jogo do bicho, embora a maioria era pobre.

Dessa forma, percebe-se que indivíduos de várias idades, sexo e profissões

se envolviam nas práticas de jogos de azar. Conforme surgia novos jogos, estes

eram praticados pela população. No subcapitulo seguinte, discute-se o surgimento

do jogo do bicho, no Rio de Janeiro, e sua expansão até Porto Alegre.

1.1- Abre alas, o jogo do bicho chegou

A história da inserção do jogo do bicho, em Porto Alegre, está ligada à

história nacional do final do século XIX. Pensar o Rio de Janeiro como capital do

país, requer conhecer esse espaço, no momento da criação do jogo do bicho, e o

conseqüente alastramento dessa prática, para outros estados brasileiros, como o

caso do Rio Grande do Sul.

Roberto da Matta e Elena Soarez49 discutiram a chegada do jogo do bicho no

Brasil, lembrando que tudo começou por volta de 1872, quando João Baptista

Vianna Drummond, conhecido popularmente por ‘barão de Drummond’, comprou

um terreno no bairro Vila Isabel (Rio de Janeiro), e investiu em negócios

imobiliários, inspirando-se na arquitetura parisiense. Logo, fez a ligação desse

bairro com o centro da cidade, através da Companhia Ferro-Carril que transportava

as pessoas de bonde. Somente em 1888 criou um jardim Zoológico, num acordo

com a Câmara Municipal, devido à extensão de 300 metros quadrados de reserva

que, além de expor animais ‘raros e exóticos’, auxiliaria em pesquisas de estudiosos

brasileiros. Devido às dificuldades para mantê-lo, o barão de Drummond solicitou

auxílio à Câmara Municipal que, inicialmente, contribuía com 10 contos anuais. Mas

em 1890, esta firmou um acordo com o mesmo, fornecendo “o direito de

49Ver Matta e Soarez op. cit.

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estabelecer e explorar, dentro dos limites do Jardim Zoológico, jogos públicos e

lícitos”50, e, posteriormente, cortou o auxílio financeiro que fornecia. Foi então que o

mexicano Manoel Ismael Zevada prestou auxílio. Já que possuía um jogo de flores51

num sobrado à Rua Ouvidor, resolveu bancar o jogo do bicho. Dividiu as 100

dezenas (01-00) em 25 grupos de 4 dezenas cada, correspondendo a um

determinado bicho. Estampava a figura de um animal no alto de um mastro, no

interior do Zoológico, sendo baixado ao final da tarde. Os visitantes do Jardim

Zoológico pagavam, na entrada, o valor de mil réis e recebiam os ingressos

enumerados com a figura do referido animal, e ao final do dia, quem tivesse a sorte

de ter, no ingresso, o animal estampado, receberia o prêmio de vinte vezes o

referido valor.52 Assim, em fins do século XIX (aproximadamente 1893)53 surgiu um

novo jogo de azar que se espalhou por todo o território nacional, e passou a fazer

parte da cultura brasileira: o jogo do bicho.

Tabela 2 – Jogo do bicho carioca54.

AVESTRUZ 1

01-02-03-04

ÁGUIA 2

05-06-07-08

BURRO 3

09-10-11-12

BORBOLETA 4

13-14-15-16

CACHORRO 5

17-18-19-20

CABRA 6

21-22-23-24

CARNEIRO 7

25-26-27-28

CAMELO 8

29-30-31-32

COBRA 9

33-34-35-36

COELHO 10

37-38-39-40

CAVALO 11

41-42-43-44

ELEFANTE 12

45-46-47-48

GALO 13

49-50-51-52

GATO 14

53-54-55-56

JACARÉ 15

57-58-59-60

LEÃO 16

61-62-63-64

MACACO 17

65-66-67-68

PORCO 18

69-70-71-72

PAVÃO 19

73-74-75-76

PERU 20

77-78-79-80

TOURO 21

81-82-83-84

TIGRE 22

85-86-87-89

URSO 23

89-90-91-92

VEADO 24

93-94-95-96

VACA 25

97-98-99-00

50Idem. P. 65.

51O jogo de flores é muito semelhante ao jogo do bicho. Cada flor corresponde a um grupo que possui quatro dezenas. Para conhecer melhor a ordem das flores ver PACHECO, Renato José Costa (org.). Antologia do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1957. p. 16.

52Ver MADUREIRA, Ari. Jogo do Bicho: como jogar, como ganhar. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2001; PADILHA, Ricardo. O jogo: uma paixão. Porto Alegre: Solivros, 1995.

53Esse período de surgimento do jogo do bicho no Rio de Janeiro segue a obra Antologia do jogo do bicho de Renato José da Costa Pacheco. Outras obras citadas nesse trabalho, como Lance de Sorte de Micael Herschmann e Kátia Lerner, ou Águias Burros e Borboletas de Roberto da Matta e Elena Soarez, apresentam o ano de 1902 ou até 1900, como sendo o ano de origem deste jogo.

54Lembra-se que, até hoje o jogo do bicho segue a tabela carioca citada acima.

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Fonte: MADUREIRA, Ari. Jogo do Bicho: como jogar, como ganhar. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p. 8.

Nem bem a novidade chegou, e com a vantagem do prêmio ser em dinheiro,

já tomou conta da população, tanto dos visitantes que se faziam presentes cada vez

mais ao velho Jardim Zoológico, quanto de comerciantes que bancavam essa

atividade, tornando-se, mais tarde, conhecidos como banqueiros do bicho.55

Do Rio de Janeiro, o jogo do bicho espalhou-se pelo Brasil. São Paulo,

Brasília e Fortaleza56 são alguns exemplos de locais em que os jogos de azar

tiveram popularidade. Quando se refere ao jogo do bicho, vê-se iguais proporções

deste no universo social porto-alegrense.

Os amadores dos jogos de azar, no Rio Grande do Sul, que inicialmente só

participavam das rifas57 estrangeiras (Montevidéo, Argentina e Paraguai), logo

tornaram-se fregueses das rifas nacionais. Os sorteios eram realizados no Rio de

Janeiro e transmitidos à capital do Rio Grande do Sul, por telegrama. Juntamente

com essa rifa, veio o jogo do bicho que, em pouco tempo, ameaçava diminuir o

sucesso daquela. Aqueles indivíduos que lucravam com as rifas, viam o novo jogo

como ameaça e buscavam seu fim. Já os amantes desse jogo, diziam não enxergar

o motivo que autorizava a sua morte58 Tanto as rifas (estaduais, federais ou até

estrangeiras) quanto o jogo do bicho, atingiam a moralidade social, já que faziam

parte dos jogos de azar. Extingui-lo, só se fosse por total, começando pela raiz, que

neste caso, eram as rifas.

A maior parte da população porto-alegrense investiu nos jogos de azar, com

a prática das loterias, mas quando o jogo do bicho chegou, desenvolveram ambas,

isso quando não mudavam de atividade porque tinham preferência por esse jogo.

Como é o caso de um ex-freguês das rifas quando diz que “prefere torrar seu

55Ver SOARES, Simone Simões Ferreira. O Jogo do Bicho: a saga de um fato social brasileiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, p. 257.

56Ver Matta e Soarez. op. cit.

57Rifa aqui se refere às loterias. Essa expressão aparecia constantemente nos jornais. Acredita-se que como o Rio Grande do Sul fica próximo da região do Prata que tem como língua oficial o espanhol e neste, rifa significa sorteio. Sempre que eram enviados ao Rio Grande do Sul as cartelas ou os resultados das apostas do Uruguai, Argentina e Paraguai, denominavam rifas. Ver: SEÑAS: Dicionário para la enseñanza de la lengua española para brasileiros/ Universidad de Alcacá de Henares; tradução: Eduardo Brandão, Cláudia Berliner. 2ªed. São Paulo: Martins Flores, 2001, p.1121.

58Ver Gazetinha, 27 mai. 1898.

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dinheiro na bicharia a deixar-se explorar pelos rifeiros”.59 Além desse, muitos outros

deveriam ter exercido essa prática, uma vez que o Estado se preocupava com a

renda que deixava de ganhar do jogo do bicho, quando fiscalizava mais esse jogo

do que as loterias, e ambos se enquadravam na mesma lei. Havia manifestação de

um sentimento de ódio com os cofres públicos. Banqueiros e rifeiros exploravam da

mesma forma. Dessa forma, percebe-se que esse apostador poderia ser opositor

político do administrador público do Estado Rio-grandense, uma vez que não queria

destinar seu dinheiro para o Estado.

Segundo os jornais da época, o abre alas ao jogo do bicho, em Porto Alegre,

só ocorreu em fins de 1897. A primeira referência deste jogo encontrada na

imprensa pesquisada dizia:

Um dos inspetores municipais intimou hoje, o proprietário do Club dos Fumantes a fazer cessar ali a venda de bilhetes do jogo dos bichos, cientificando-o mais de que, caso continue a fazê-lo, ficará sujeito à multa de 30$000. Igual intimação vão receber os outros vendedores de tais bilhetes60.

Para tal prática, por parte de autoridades municipais, acredita-se que não era

a primeira vez que o jogo do bicho estava sendo praticado. Ao contrário, ele já tinha

ganhado proporções que preocupavam, tanto os administradores públicos, quanto

os responsáveis pela ordem, e então pediam uma ação: o cumprimento da lei.

Logo após essa notícia, outras, seguidamente, apareciam nos jornais. Em

menos de uma semana, a Gazetinha publicava o texto com o tema ‘O jogo do bicho

e a prostituição’, dizendo que ambas práticas circulavam pelos mesmos espaços,

não fiscalizados pelas autoridades.61 Dessa forma, o malefício da atividade era

dobrado. Ela não chegou sozinha, foi unindo-se a outras práticas proibidas que

conquistavam o indivíduo por meio do vício.

Assim, o jogo do bicho surgiu em Porto Alegre. E em pouco tempo,

conquistou vários parceiros: pobres, ricos trabalhadores, desocupados, eram só

alguns dos indivíduos que praticavam o jogo. Conhecer o envolvimento do jogo do

bicho com a sociedade e o contexto no qual esse se inseriu, é o que se faz no

próximo subcapitulo.

59Idem.

60A Federação, 02 dez. 1897.

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1.2-A Sociedade e o Jogo do bicho: mais de um século de parceria

No Brasil, a relação do homem com as atividades lúdicas datam desde o

início de sua história. O jogo do bicho não surgiu com os primórdios da história

brasileira, mas foi criado aqui, e desde então, mantém parceria, há mais de um

século, com a sociedade.

O contexto social da época era marcado por uma série de mutações do

capitalismo: novas relações de trabalho, novos comportamentos e valores. Os

representantes dos Estados tinham como objetivo, modernizar (principalmente) as

capitais, tornando-as um espaço normatizador. A consolidação do sistema

capitalista estabeleceu características de convívio social, puramente ocidental62.

Para isso, foi necessário inserir a população menos privilegiada

financeiramente, no trabalho e na produção. O descontentamento por parte do

imigrante (italiano e alemão), e do ex-escravo, devido às promessas não cumpridas

da ‘nova sociedade’ do capital, fazia com que muitos buscassem formas alternativas

de sobrevivência, como: a prostituição, a mendicância, o comércio ambulante, a

jogatina e os pequenos crimes. Essas atividades exercidas como táticas de

sobrevivência no contexto de um capitalismo selvagem, eram vistas pelas elites do

poder, como formas de ‘desvio’, de ‘não trabalho’, conforme o termo contravenção

do Código Penal de 1890: “Consideram-se jogos de azar aqueles em que o ganho e

a perda dependem, exclusivamente, da sorte.”63.

Elaboração de manuais orientando os trabalhadores para o afastamento dos

jogos e do álcool, no período de lazer, e campanhas com auxílio da Imprensa,

contribuíram para mostrar que alguns jogos (entre eles, o jogo do bicho) faziam

parte do ‘lazer pobre’ e eram proibidos.

A modernidade (representada pela ciência e pela técnica) trazia mudanças

nas noções de tempo, espaço, valores, como mostra Nicolau Sevcenko:

...nunca em nenhum período anterior, tantas pessoas foram envolvidas de modo tão completo e tão rápido num processo dramático de transformação de

61Ver Gazetinha, 23 mai. 1898.

62Ver Herschmann e Lerner, op.cit.

63 BRASIL. Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, 1890, art. 370.

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seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até seus reflexos instintivos.64

Este momento de passagem do Império para a República foi um processo de

tensão social, econômica e política. Em alguns momentos, a coerção e a burocracia

do Império fazia-se presente; já em outros, os setores dominantes tentavam romper

com as idéias, imagens, moralidade e valores imperiais, ‘embutindo’ na população o

que chamavam de modernização, progresso e trabalho.

Não existindo trabalho para todos, certas formas de ociosidade passavam a

ser, cada vez mais, vigiadas e reprimidas. Era preciso combater a ociosidade, vista

como uma ameaça à ordem. De acordo com Sidney Challoub: “procurava-se uma

justificativa ideológica para o trabalho, isto é, razões que pudessem justificar a sua

obrigatoriedade para as classes populares.”65

No Brasil, a partir do final do século XIX, a valorização do trabalho ganhou

novo significado. Da perspectiva das elites era necessário inserir no povo, novos

hábitos, atitudes, comportamentos, costumes, em suma, uma disciplina e uma

mentalidade típica de uma sociedade do trabalho, evitando uma suposta tendência

à vadiagem66 e imoralidade do trabalhador. Nesse sentido, o trabalho passou a ser

representado como forma de retribuição do cidadão, por tudo que este recebia da

sociedade, principalmente, ‘segurança’, ‘liberdade’ e ‘honra’. O trabalho, dever do

indivíduo para com o ‘bem geral’, tornaria possível o progresso e a riqueza da

nação. Ele deixou de ser visto como algo negativo, penoso, praticado pelo pobre,

‘coisa de escravo’, e passou a ganhar um novo significado, agora positivo, ‘gerador

de riqueza’. Também era preciso convencer, de forma gradual, os envolvidos com o

trabalho, da sua real necessidade.67

64SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio Republicano: astúcia da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida Privada no Brasil: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das letras, 1998, p.7-8.

65Chalhoub, op.cit., p.43.

66A expressão vadiagem é extensa de significados. Na Europa pré-capitalista com o fim da servidão, aumentou o número de desocupados, mendigos, criminosos e outros pobres que passaram a ser visto como ameaça a ordem social, sendo portanto, considerados vadios e destinados à outras regiões. No Brasil, o termo vadiagem tem um diferencial da Europa - embora seja fruto europeu - sendo todos aqueles que não se inserem nos padrões de trabalho, com busca do lucro imediato e estão destinados à pratica de atividades ilícitas, são considerados vadios. Ver SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira do século XVIII, 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 51-66.

67 Ver Mauch, op. cit.

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Margareth Rago68 apresenta a utopia da cidade disciplinar, mostrando que o

tempo ganhou sinônimo de riqueza e o espaço tornou-se o normatizador dos

indivíduos, evitando o desvio de conduta: enquanto se trabalhava, não pensava em

malandragem. Já para os trabalhadores, o significado desse conceito não era o

mesmo, ou seja, a fábrica era uma prisão e ser operário, seria estar sujeito às

imposições exarcebadas do patrão. Frente a esse valor dicotômico do trabalho, não

foi possível realizar os objetivos de reorganizar a sociedade na perspectiva da elite.

Ao contrário, muitos indivíduos passavam horas e horas junto às mesas de jogo, a

esbanjar o dinheiro de melhor destino69.

Já nos primeiros anos de República, a elite dirigente da sociedade pensava

no modelo de organização social que seria implantado no país. Para eles, os

brasileiros tinham dificuldade de organizar-se coletivamente. Em todo o Brasil,

principalmente nas cidades, esse ideal de sociedade esteve presente, uma vez que,

era necessário organizar o espaço urbano, o trabalho e o convívio social para

garantir a formação de indivíduos fortes, sadios, moralizados e ordeiros,

fundamental para a expansão do mercado de trabalho, capaz de construir e manter

a ordem social no século XIX.70

No Rio Grande do Sul, o processo de fim da escravidão teve traços

peculiares. A transformação das novas relações de trabalho não foi um processo

linear, com características definidas, postas facilmente em prática. Beatriz Weber

diz que a presença do escravo artesão, doméstico, da economia diferenciada do

centro do Brasil com a presença de charqueadas, da vinda do imigrante para a

ocupação de pequenas propriedades de terras para uso familiar, fez com que o

escravo fosse, automaticamente, se desvinculando desse sistema de trabalho e

ocupando as cidades para outras atividades.71 Para Mario Maestri, não foi

necessário impedir a grande leva de escravos para as cidades, uma vez que a Lei

Eusébio de Queirós, de 1850, extinguia o tráfico de escravos, e como

68Ver RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

69Ver Gazetinha, 31 set. 1896.

70Ver HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (orgs. ). A Invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de janeiro: Rocco, 1994.

71Ver Weber, op.cit.

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conseqüência, despovoava as províncias do norte, de trabalhadores, sendo

necessário substituí-los pelo trabalho livre ou importar de outras províncias. O Rio

Grande do Sul, desde 1824, recebia imigrantes europeus para trabalhar como

pequenos proprietários e vendia escravos para as províncias do norte, tornando-se

um ônus para os coronéis.72 Dessa forma, além dos libertos nacionais, também

imigrantes ocupavam o mercado de trabalho urbano de Porto Alegre. E a

preocupação da elite era maior com o ex-escravo, agora livre, do que com o

imigrante que já possuía ‘disposição’ para o trabalho.

Sandra Jatahy Pesavento defende que a delimitação espaço-tempo não

ocorre por acaso. A condição discutida anteriormente refletiu no crescimento

populacional das cidades do Rio Grande do Sul de meados para o final do século

XIX. Porto Alegre, por exemplo, que tinha 52.186 habitantes em 1889, chegava em

1900 com mais ou menos 70.000 mil habitantes, totalizando assim, um aumento de

37%. Acomodar essas pessoas no espaço urbano e inseri-las nos valores definidos

pelas autoridades como necessários para a boa ordem e o progresso das cidades,

era difícil. A presença do negro ex-escravo que vinha ocupar o maior centro urbano

do sul do país, procurando nas cidades, formas de sobrevivência, juntamente com o

branco imigrante (italianos e alemães) que chegavam à capital da província, para de

lá serem redistribuídos na zona colonial, gerou problemas. 73

Com o aumento das cidades, ocorreu uma supervalorização dos terrenos e

as pessoas de baixa renda passaram a ocupar as vias públicas, como os becos.

Devido à falta de condição de adquirir casa própria, os menos endinheirados

pagavam aluguel em habitações precárias como os cortiços, cômodos, porões.

Mesmo a elite querendo construir uma outra cidade em que a violência, a fome, os

pobres e as práticas contraventoras não estivessem presentes, era impossível

frente à realidade urbana do período. Não havia preocupações de encontrar meios

para extinguir esses problemas, apenas objetivavam deixá-los à margem. Frente a

isso, uma outra cidade74 era construída dentro da ‘cidade disciplinar’ e novas

características se faziam presentes. Nesse espaço urbano, o jogo também andava

72Ver MAESTRI FILHO, Mario J. O Escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/ Caxias do Sul: EDUCS, 1984.

73Ver Pesavento, op.cit.

74Ver Pesavento op.cit

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solto, tanto em locais fechados quanto em locais abertos. Construía-se o espaço de

sociabilidade daqueles considerados desviantes, como cortiços, bordéis, botequins

e casas de jogos.

O crescimento populacional trouxe problemas urbanos e preocupações ao

poder público, que buscou formas de regulamentar a sociedade. A alta

concentração de população gerou péssimas condições de salubridade e com ela,

epidemias se alastravam, como a peste bubônica em 1902.75

Por outro lado, houve um remodelamento físico nas cidades, sendo criados

clubes noturnos que permitiam atividades lúdicas, como os jogos de azar. Esse

espaço público de ordem, só freqüentado pelas elites, era o refúgio das

expectativas, normas e modelos da vida privada. Porto Alegre, mesmo distante de

ser uma metrópole, já contava com um espaço organizado:

...a presença de cafés e confeitarias, pontos de encontro privilegiados para os mais variados grupos e assuntos. Os estabelecimentos mais freqüentados eram o Guarani, o América, o Ferro-Carril, o ‘Bohemia’, o Schram e outros; alguns deles dispunham de enormes salões de bilhar, funcionando o dia inteiro.76

Os espaços lúdicos destinados às camadas privilegiadas da população

foram criados tanto por iniciativas privadas, quanto públicas, como é o caso dos

clubes, teatros, casas lotéricas e jardins zoológicos. Enquanto isso, os setores

desprivilegiados dedicavam-se a festas religiosas, carnavais e jogos de azar, de

forma clandestina, passando logo a ocupar também o espaço das camadas

privilegiadas, como o caso da casas lotéricas.

Em contrapartida ao local de ordem, privado, havia o local de desordem,

público, que chamou a atenção dos órgãos dirigentes da sociedade, os quais, em

pouco tempo, passaram a reprimir, atacar ou tolerar atividades como a jogatina.

“Sempre que a elite dirigente se via ameaçada pelos outros estratos da população,

burlava as ‘regras do Jogo’, uma atitude, aliás, bastante comum ainda hoje.”77

75Ver FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/ UFRGS, 1988. p.152-153.

76BILHÃO, Isabel. A cidade como Palco das Manifestações Operárias (Porto Alegre – 1906). In: Histórica. Porto Alegre: APGH-PUCRS, nº 6, 2002, p.123.

77Herschmann e Perreira, op.cit. p. 27.

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Logo que o jogo do bicho chegou em Porto Alegre, foi instaurado em vários

espaços. Desde as luxuosas salas da alta camada social78, até as casas em locais

mais pobres ou na rua. Exemplo disso, é a “casa nº 30 à rua da margem”79. Esse

local está descrito no registro de prisões de vários indivíduos que praticavam o jogo

do bicho, entre eles, Manoel Cardoso em 1899. A rua da Margem80 era só um, entre

os muitos estabelecimentos em que o jogo se alastrava, ou seja, na rua Dr. Flores

também era praticado a venda deste jogo: “O tenente-coronel João Leite, delegado

judiciário do 1º distrito, tendo denuncia que na casa de residência do italiano João

Giovazzini à rua Dr. Flores nº 31, vendiam as cartelas da vergonhosa exploração do

jogo do bicho...”81

Pergunta-se: porque existir espaços exclusivos para a elite, já que ela era

responsável pela administração da cidade?

Essa organização do espaço, separando o público do privado, deixava

muitos indivíduos limitados pela condição econômica, de freqüentar determinados

ambientes. Existia uma ‘válvula de escape’ para a elite usufruir daquilo que gostava,

mas que era proibido.

Aqueles que não tinham espaços improvisaram. Como se vê nas várias

categorias sociais que passaram a envolver-se nessa atividade. Homens e

mulheres das mais diversas profissões e, até mesmo as crianças, saíram do play

para chegar ao game, quando estas criaram os jogos em miniatura, perdendo a

noção dos limites do jogo do bicho e praticavam na praça Marechal Deodoro, como

mostra o jornal a Gazetinha:

Assistimos ontem a um espetáculo gaiato, porém que nos deixou tristes ao ver que a maldita jogatina arraigou-se tanto em Porto Alegre que até as crianças estabeleceram um jogo de bichos em miniatura. Não falta nada – banqueiro, vendedores e compradores. O caso é que o banqueiro, um menino ave, tinha gasto o produto de sua especulação e não tinha dinheiro

78Ver Gazetinha, 06 abr. 1899.

79 Instrumento de Pesquisa da Secretaria de Segurança Pública. Registros de Prisões 1896/1904. Códice 38. AHRS.

80 A Rua da Margem é denominada atualmente como “Rua João Alfredo. Inicia na Av. Loureiro da Silva e termina na confluência da Av. Aureliano de Figueiredo Pinto com a Rua Lopo Gonçalves. Era uma rua socialmente pobre e marcada, pela má implantação de suas casas do lado, por serem construídas bem à margem do riacho, praticamente sem quintal, mas populosa e festeira.” Ver Franco, op. cit., p. 225-226.

81A Federação, 21 ago. 1899.

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para pagar os vencedores. O resultado foi uma gritaria medonha na praça Marechal Deodoro e alguns sopapos.82

Essa prática, às vezes, saía do lazer, propriamente dito, passando a ter

caráter estreitamente econômico, resultando em violência física quando os

envolvidos na prática presenciavam a infidelidade, mesmo sendo crianças. Estas

jogavam como adultos, com os mesmos valores, certamente porque aprendiam com

eles e estavam em constante convivência com o jogo do bicho. Se em outros

tempos as crianças praticavam jogos como divertimento, aqui este foi além do

momento de prazer, gerando agressões entre os envolvidos. Isso, quando os

menores não freqüentavam as próprias casas de jogos.83

Analisando os registros de prisões efetuadas pela Delegacia de Polícia de

Porto Alegre, e os processos-crimes de 1893-1903, conforme a tabela das páginas

25 a 27, torna-se possível confirmar que a clientela do jogo do bicho possuía as

mesmas características profissionais daqueles que praticavam outros jogos de

azar84, sendo os envolvidos nesta prática, das mais diversas profissões, atividades

e idades.

A imprensa publicava na seção policial, outros indivíduos implicados no jogo

do bicho, que não foram apresentados nos documentos policiais:

Foram hoje chamados à presença do delegado do 1º Distrito, Tenente-coronel João leite, os indivíduos Antônio Cândido de Freitas, morador à rua General Auto, nº 31; Estevam Ferreira morador à rua da Concórdia nº 32; ambos implicados no jogo do bicho.85

E assim, muitos indivíduos estavam envolvidos com o jogo do bicho em Porto

Alegre. O Relatório de Polícia, em julho de 1899, dizia:

...Os banqueiros e seus agentes fervilham e surgem em toda a parte. Estes então, multiplicam-se e invadem todas as repartições públicas, o lar, as oficinas, na fatal propaganda do vício denominado profundamente as suas cartelas do bicho em troca de uma extorsão consciente e perversa. Segundo o que tem chegado ao meu conhecimento, moços empregados no comércio, artistas, operários até tem abandonado espantosamente as suas profissões humanas para a vadiagem de vendedores de bichos, por causa de outros de quem obtém rendosas porcentagens. Senhoras, aliás, respeitáveis, casadas, solteiras e viúvas em grande número sobrevivendo das porcentagens de banqueiros do bicho desnaturados, despuram, deploravelmente das suas nobres preocupações, classes ricas e de casa tão religiosamente acatado no

82Gazetinha, 31 mai. 1896.

83Ver Gazetinha, 20 mar. 1899.

84Ver Gazetinha, 03 set. 1896.

85A Federação, 14 set. 1889.

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seu sexo para darem-se de corpo e avulsa ao imoral comercio de passadoras de cartelas de tão desastrado vício, sabendo mesmo que são publicamente apanhadas sob o prosaico adjetivo de bicheiras.86

Na opinião dos críticos, o jogo era visto como uma forma de vadiagem,

até mesmo para aqueles indivíduos que faziam dele, uma forma de ocupação e

ganha-pão. O discurso da exploração estava presente na expressão ‘rendosas

porcentagens’ que uns ganhavam com essa prática, enquanto outros apenas

sobreviviam, num momento em que não havia trabalho para todos. Nos jornais

não eram mencionados que os indivíduos precisavam desenvolver atividades

ilícitas para a sobrevivência. Para muitas mulheres que praticavam o jogo do

bicho, nem mesmo o adjetivo de bicheiras fazia desistí-las, uma vez que, essa

poderia ser a única forma de manter seu sustento.

Já no final do século XIX, quando o jogo do bicho estava chegando ao Rio

Grande do Sul, havia interesse de pessoas de classes mais abastadas, em lucrar

grande quantidade com o jogo. Se não através de apostas, mas da manutenção de

casas e também do não pagamento do prêmio, quando o cliente fosse o ganhador:

Com este vos faço apresentar os cidadãos Felipe Lapporta, Manoel Rodrigues de Lima e José Maria Mauro, todos incursos no artigo 369 do Código Criminal, por terem estabelecido em lugar freqüentado e público, o jogo de azar denominado dos bichos. Diversas vezes tenho aplicado a multa de que trata o art. 08 da lei 405 de 18 de janeiro de 1857 e intimando-os a não continuar com tão escandaloso jogo, verdadeira extorsão feita ao incauto povo, pois que muitas vezes, jogando a quantia de quarenta e cindo mil réis como jogou o cidadão Umpierre e tem sido vencedor o tigre, devendo portanto receber novecentos mil réis, não somente os cidadãos Lapporta e Mauro negaram-se a pagar o prêmio, como também a restituição das importâncias dos bilhetes comprados por Umpierre.87

Enquanto uns praticavam o jogo apenas por sobrevivência, ganhando

‘migalhas’, outros pensavam em adquirir fortuna, nem que para isso fosse preciso

negar o pagamento do prêmio ao vencedor. Multas e apreensões eram algumas

das práticas existentes na tentativa de extinguir o jogo da sociedade, mas não

resolviam, pois a paixão era maior.

Em Porto Alegre, o jogo se alastrou de tal forma, que os jornais registravam

sobre o vício: “todo mundo joga no bicho e em cada taberna existe uma banca;

numerosos agentes percorrem as ruas, batendo as portas e seduzindo até as

mulheres para que joguem. O vintém da criança, a esmola do mendigo, a economia

86Delegacia de Polícia, códice 9, 28 jul. 1899. AHRS

87A Federação, 10 dez 1897.

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da costureira.”88 O bicheiro arrecadava tudo, sem alma. Mas muitas vezes, com o

bicheiro sério circulavam os bicheiros falsos, vendendo bichos que jamais saíram. O

jogo estava criando fortes raízes “não são só os homens que se entregam ao

pernicioso jogo, também as mulheres e, o que ainda é pior, a nossa juventude se

acha verdadeiramente enfeitiçada pelo imoral jogo, fazendo dela a sua ocupação

predileta.”89 Isso questionava o real trabalho da justiça e também apresentava um

esboço dos futuros cidadãos porto-alegrenses. Os responsáveis pela repressão

tentavam evitar ou diminuir as possíveis desgraças resultantes da prática do jogo do

bicho.

Essa condição social era fruto das modificações econômicas e políticas, que

por sua vez, aumentavam as desigualdades. Os indivíduos, considerados excluídos,

buscavam formas de sobrevivência não compatíveis aos ideais das autoridades,

que reagiam com discursos moralizantes.

O discurso da moralidade aparecia, constantemente, nos jornais. A

população de Porto Alegre estava envolvida nos jogos e críticos anônimos

escreviam à imprensa. A Gazetinha publicava notícias relacionando o jogo do bicho

à ruína da cidade. Porto Alegre era considerada a ‘leal’ e ‘valorosa' cidade que

estava se transformando em um foco de perdição. Em todos os cantos (cafés,

praças) ouvia-se o barulho do jogo. Causava indignação aos críticos, o fato de Porto

Alegre ser a capital do Estado – centro da segurança pública e autoridade – e ter

mais locais de jogos que outras cidades menores. Os críticos parabenizavam “pela

maneira correta por que se conduzem às autoridades de Santa Maria que

inspirados no sagrado dever de sua missão, buscam varrer do seu seio o inimigo da

paz, do lar e da família – o jogo”.90 E não era apenas Santa Maria, mas também a

cidade de Rio Grande que, conforme a imprensa, em 1898 já tinha extinguido as

bancas de jogos.91 Por outro lado, Pelotas também possuía um grande banqueiro,

mas a polícia de lá estava de olho: “o sub-chefe de polícia major Euclydes Moura

enviou ao promotor, com um minucioso relatório, os autos de investigação feita a

88Gazetinha, 30 ago. 1898.

89Gazetinha, 27 ago. 1898.

90Gazetinha, 21 mar. 1899.

91Ver Gazetinha, 09 ago. 1898.

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propósito da busca que deu no escritório comercial de Rosauro Zambrano, onde

apreendeu objetos e listas de jogo do bicho.”92 Porto Alegre por ser capital, deveria,

na opinião dos críticos, servir de exemplo, extinguindo essa prática da sociedade.

Assim como as demais capitais brasileiras, Porto Alegre vivenciou a

existência de práticas contraventoras no final do século XIX. Embriagados,

desordeiros, vadios eram algumas das características presentes na população da

época.

O jogo era considerado pela imprensa, um dos mais ‘venenosos cancros

sociais’. Causava desgraças a um grande número de indivíduos, e estes o levavam

para dentro de suas famílias. Quando se jogava, deixava de estar com a família, ou

se jogava com ela, e gastava o pouco dinheiro que tinha, ao invés de dar outro

destino a esse financeiro. O jogador viciava-se fácil e tornava-se propagandista do

jogo, podendo expandir esse ‘mal’ para outros elementos da sociedade. De jogador,

podia tornar-se ladrão e conseqüentemente assassino, por perder a vontade de

prosperar economicamente através do trabalho, uma vez que o jogo apresentava

um lucro fácil. Em outros casos, a família que gozava de bem-estar provindo da

riqueza, perdia-a no jogo e mendigava à sociedade. Isso quando não destinava

outras profissões às filhas, como a prostituição, para recuperar a sorte perdida.93.

Dessa forma, para a imprensa a jogatina era considerada o caminho mestre de

todos os problemas sociais, já que poderia ter várias ramificações, dependendo da

condição vivida pelo jogador.

A preocupação com os danos que o jogo poderia causar na sociedade e

também nas famílias, era apresentado em discursos: “o mais que estremeceis de

amor por vossos filhos -cuidai-os, institui em vossos lares caixas de economia,

estimulai-os a juntar e a ter aversão aos jogos, se quereis que eles mais tarde

sejam cidadãos úteis à Pátria e o prazer de vossos corações”.94 As famílias eram

comovidas para a boa formação educacional de seus filhos, evitando que o jogo se

alastrasse por novas gerações, e justificando, o futuro da nação, como resultado da

moralidade. Possuir espírito de poupança auxiliava na prosperidade econômica de

um indivíduo, e aquele que sabia administrar os gastos pessoais com o financeiro

92A Federação, 10 ago. 1900.

93Ver Gazetinha, 03 set. 1896.

94Gazetinha, 30 ago. 1898.

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que possuía, auxiliava na redução dos problemas sociais, uma vez que, a maior

parte desses problemas, resultavam do baixo poder aquisitivo das pessoas.

Salienta-se que essa preocupação ficava quase só no âmbito moral, já que

as autoridades tentavam solucionar os problemas que muitas vezes fomentava a

esperança no jogo, mas não conseguiam. Não possuir interesse em tentar mudar

de vida arriscando, numa sociedade em que o próprio governo mantinha a atividade

do jogo, certamente era pedir demais.

O que havia de tão interessante que apaixonava as pessoas, viciando-as ao

jogo? Será por prazer da vitória? Pela ânsia do resultado após as apostas? O hábito

de repetir a prática? Curiosidade em conhecer o jogo? Busca de ascensão

financeira? Desejo de fazer o que é proibido? Crença na chance de ser bem

sucedido?

Herschmann e Lerner95 dizem que, a contradição entre o discurso liberal e o

democrático presente na sociedade e a prática autoritária do Estado despertava nos

indivíduos, principalmente pobres, o interesse pelo jogo, que oferecia prazer e

segurança, uma vez que, os jogadores disputam com igualdade de chance e

possibilidades.

Analisando a presença do jogo do bicho no Brasil, é possível questionar a

afirmação de Gilberto Freyre, citada no início deste capítulo. Não se nega que essa

prática faz parte da cultura brasileira, mas que além do elemento cultural também o

fator econômico esteve presente no interesse das pessoas pelo jogo do bicho, uma

vez que este jogo nasceu da oferta de prêmios em dinheiro (vinte mil réis) tanto no

Jardim Zoológico, quanto em outros espaços pelo qual se espalhou. Acreditar que

só por amor aos bichos este jogo alastrou-se em vários Estados, chegando ao Rio

Grande do Sul, em menos de uma década de sua origem e mantendo fiel existência

por mais de cem anos, não é possível. Conquistar tantos vendedores, jogadores e

até bicheiros, sem interesse econômico, certamente é ilusão. Qualquer amante de

bichos teria antes instalado um zoológico, do que casas de jogos. E não se

encontram tantos Jardins Zoológicos em Porto Alegre, em fins do século XIX,

quanto, casas de jogos. O indivíduo poderia até não conhecer os bichos, mas sabia

o momento certo de apostá-lo.

95Ver Herschmann e Lerner, op. cit.

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O jogo oferecia mais do que um refúgio financeiro. Quando ocorria à vitória,

amenizava as dificuldades da vida que, na esperança de ganhar a aposta, fugiam

da monotonia diária. Enquanto uns preferiam o álcool e a prostituição, outros

praticavam jogos. Isso, quando não praticavam ambos.

A fuga da luta cotidiana e a esperança de receber do jogo a sorte de melhoria

da vida, fomentava os jogadores otimistas que, num momento de insucesso,

acreditavam que a sorte estava por vir e, possivelmente, ganhariam no dia seguinte.

Já os pessimistas aumentavam as desilusões com as perdas e somavam outros

vícios maléficos (álcool) com o objetivo de esquecer o que perderam.

Porto Alegre, assim como o Rio de Janeiro, presenciou essa prática que,

segundo a imprensa96, muitas vezes, consumia o último tostão das famílias. Mesmo

querendo construir a capital, uma cidade disciplinar, ela não fugia de práticas

contraventoras, que cada vez mais se alastravam pela sociedade. Em locais fixos

ou ambulantes, o jogo passeava entre o discurso da ordem e o sonho de fortuna,

mesclados ao prazer por parte da população.

É difícil afirmar se o jogo do bicho, em Porto Alegre, ganhou primeiro crédito

da população pobre que depositava uns trocados na ‘fezinha’, atraída pela tentativa

de obter riqueza rápida e fácil, e depois foi se popularizando chegando a ser

conhecido pela elite que fazia grandes apostas; ou se iniciou pela classe mais

abastada, ganhando aos poucos a credibilidade dos pobres. Mas o certo é que em

Porto Alegre os locais de jogos, entre eles o jogo do bicho, não estavam nos

subúrbios e sim, bem ao centro, local de grande movimento e de fácil acesso tanto

aos funcionários de altos cargos públicos quanto aos pobres que vagavam pelas

ruas. Pode-se dizer que o local de disseminação do bicho foi fundamental para

firmar ‘raízes’ e presenciar os diferentes grupos sociais, espalhando-se por outros

espaços – os bairros.

O jogo do bicho foi se constituindo enquanto prática social, num momento de

consolidação e fragilidade republicana nacional. No mesmo tempo em que se

tentava instaurar uma nova ordem, lançando mão da coerção imperial, tentava-se

impor os valores europeus, promovidos pela elite dirigente do país. Essa fragilidade

na implantação do sistema era justificada através da intervenção do Estado na vida

publica e privada. As elites produziam discursos à imprensa na tentativa de formar a

96 Ver A Gazetinha 30 ago 1898.

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consciência dos indivíduos urbanos, evitando que estes se entregassem ao lado

obscuro da cidade. Por outro lado, não havia uma preocupação com a condição de

vida dessas pessoas, mas somente com o seu envolvimento na prática de

atividades ilícitas, como o jogo do bicho, uma vez que isso não estava presente na

formação do cidadão, prescrita pela Constituição e prejudicava a formação de uma

sociedade disciplinada.97

Dessa forma, percebe-se que o homem ao longo da história, participou de

atividades lúdicas. Indivíduos de todas as idades, sexo e até profissões, praticavam

os jogos de azar, entre eles, o jogo do bicho que driblou a imprensa e as

autoridades, espalhando-se pela sociedade e ampliando as modalidades de

apostas, fornecendo aos jogadores três prazeres a um custo: o sonho, a aposta e

talvez a vitória.

97 Ver Weber, op.cit.

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2-- SONHAR, APOSTAR, E “ TALVEZ” GANHAR

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária,

exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, dotada de um fim em si mesma,

acompanhada de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana.

Johan Huizinga

O jogo do bicho foi, cada vez mais, conquistando a simpatia do povo.

Jogadores, vendedores e banqueiros se entregavam a essa prática com o mesmo

objetivo, adquirir lucro. O sonho do enriquecimento era colocado em prática, através

das apostas e em caso de sorte, poderia aumentar os ganhos do jogador. Essa

trama sustentava a existência da prática do jogo do bicho e conquistava seus

adeptos. Portanto, sonhar, apostar e esperar o resultado era uma prática certeira na

vida de um jogador. Conhecer esse universo de interpretação dos sonhos e

modalidades de jogos, em Porto Alegre, no final do século XIX e início do XX,

traçando um paralelo com esses mesmos elementos, no Rio de Janeiro, é o que se

discute nesse capítulo.

Conforme o jogo do bicho ganhava dimensão, novas formas de apostas eram

possíveis. Alguns apostavam nas representações pelos quais cruzavam durante o

dia, ou simplesmente seguiam palpites fornecidos pelos vendedores ou publicados

nos jornais. Outros perseguiam o bicho até acertá-lo, ou então apostavam no bicho

esquecido, tentando equilibrar os resultados do sorteio em probabilidades

matemáticas. E havia até aqueles que seguiam os sonhos com interpretações

definidas.

A interpretação dos sonhos associada à simbologia de animais variava de

região para região. Há inúmeros autores que fornecem indicações de bichos, a

certos sonhos. Ari Madureira, Micael Herschmann e Kátia Lerner, Roberto da Matta,

Simone Simões Ferreira Soares163, e tantos outros citados nesse trabalho

apresentam alguns significados semelhantes e outros bem distintos. A seguir,

163 Ver Madureira, op. cit.; Herschmann, e Lerner, op.cit.; Da Matta e Soarez. op. cit.; Soares, op. cit.

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explicita-se comentários sobre alguns sonhos: sonhar com criança, filho, gêmeos,

gravidez, parteira, jogava-se no coelho, pois este é o animal de rápida reprodução;

sonhar com adultério, divórcio, comadre, veneno, jogava-se na cobra, devido à

destruição através do veneno de sua boca (expressões); sonhar com telhado,

mãos, inimigo, cadeia, gaiola, bandido, jogava-se no gato que possui estas

habilidades; apostavam no leão quando sonhavam com rei, ou sol; no galo, quando

sonhavam com milho ou música. Para outros significados que existiam, não

encontra-se explicação: sonhar com papagaio jogava-se no macaco ou no cachorro;

sonhar com polícia jogava-se no jacaré ou no urso; sonhar com hotel jogava-se no

galo ou na vaca. E assim, muitos palpites eram fornecidos ao jogador.

Roberto da Matta e Elena Soárez dizem que:

...o sonho surge como fonte privilegiada de palpite. Nos sonhos visitamos lugares desconhecidos; estabelecemos relações insuspeitadas; travestimos pessoas, lugares e objetos; compomos música; falamos idiomas que não sabemos; conversamos com mortos, voamos e vivemos debaixo d’água; matamos e morremos.164

Pode-se dizer então que existiam duas formas de processar o sonho como

palpite. Na primeira, o jogador recebe a mensagem direta da fonte, ou seja, aposta

no bicho sonhado ou identificado no sonho. Na segunda, o jogador traduz a fonte

para um bicho ou um algarismo e executa a aposta. Ex. Sonhar com gato caindo do

telhado. Gato não cai do telhado e, portanto, é um gato burro. Então, jogava-se no

burro165.

Sonhos eram transformados em bichos, e esses em números, (associados às

dezenas, centenas ou milhares da loteria). Se tivesse sorte no palpite, rendia algum

dinheiro, melhorando a vida do indivíduo. Essa trama infinita sustentava o vício. Por

um ou outro motivo, as pessoas acreditavam no jogo do bicho.

O elemento mágico dos sonhos unia-se à emoção. O sonho absorvia os

jogadores à prática dos jogos, devido ao prazer que gerava no indivíduo a espera

do resultado da competição. Sendo vitória ou derrota, a sensação de excitação

movia as pessoas que procuravam, no dia-a-dia, sinais para realizar suas apostas.

E depois aguardavam o sorteio para consumir esse sentimento.

164 Da Matta, op.cit., p. 115.

165 Soares, op.cit, p. 98.

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Para os jogadores, as apostas estavam relacionadas ao que Herschmann

denominou de atribuições mágico religiosas.166 Acreditava-se que a fé, ligada à

sorte traria bons resultados. Até orações foram criadas para aumentar as chances

dos jogadores na ‘fezinha’. A religião ‘auxiliava’ os apostadores e vendedores do

jogo do bicho. Se não oferecia sorte, pelo menos participava da fé do jogador.

Nesta, não havia um pedido específico voltado à religião, mas unicamente ao jogo.

A preocupação do jogador em acertar o grupo, obter lucro, ficar longe do azar, dos

bicheiros falsos e da polícia, era lembrada constantemente, tanto pelos jogadores,

como pela imprensa que divulgava essa oração:

Bicho nosso, que estás na loteria sorteado seja teu grupo; venha a nós o teu lucro, seja feita a nossa vontade, assim na sorte como no reconhecimento. Dinheiro para a poule de cada dia nos dae hoje; livrai nos do azar, assim como nós nos livramos dos bicheiros ladrões; não nos deixei cair nas mãos da polícia e livrai nos dos banqueiros que fogem.167

Uma semelhança com a oração do Pai Nosso, embora o texto estava

diretamente ligado à vida dos bicheiros, vendedores e apostadores. Essa oração

poderia não auxiliar em nada, mas alimentava a fé dos indivíduos envolvidos nessa

prática uma vez que se identificavam com a oração, por encontrar característica do

seu dia-a-dia. Depois do sonho, era a vez da oração para proteger a trama ilegal

que participavam.

E não eram apenas os porto-alegrenses que realizavam orações para

obterem sucesso no jogo do bicho. Roberto da Matta apresentou outra oração

encontrada.

Meu menino jogador, um baralho, sete cartas vós jogastes, todas sete vós ganhastes, que me mostre o animal que tem que dar hoje. Já, já, já! Eu fiz em nome de Deus Todo-Poderoso, meu Santo Jesus Cristo e minha mãe Maria Santíssima e do divino Espírito Santo. Eu requeiro a alma de F. para que ele venha à minha presença me mostrar o animal e me dizer a centena da loteria de amanhã da primeira sorte...168

O elemento religioso acompanhava aqueles que depositavam fé no jogo do

bicho. Nesta oração, todos os pedidos estavam voltados para a sorte. O auxílio para

os santos indicarem o palpite certo era solicitado. Até mesmo os mortos

participavam do jogo, eram transformados em espíritos protetores que tinham

166Ver Herschmann e Lerner, op.cit., p. 73.

167Gazetinha, 21 jun. 1898.

168Da Matta e Soarez, op. cit., p. 119.

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determinada ligação com os vivos e poderiam aparecer em sonho, insinuando

palpites infalíveis. Os jogadores cultuavam a alma dos mortos, no jogo, com a

esperança de mudar de posição social.

Quando os jogadores não tinham palpite para o jogo, os vendedores de

cartelas ofereciam algumas sugestões, capazes de conquistar os fregueses que os

esperavam ansiosos. O jornal O Independente publicou o discurso de um vendedor

(com a denominação de gralha) na execução de seu trabalho:

A freguesia que já espera essa visita matinal, está de corrida, moderna ou moderníssima em punho, estudando a lição. Entra o gralha e começa as cenas de palpitação. -Bom dia! -Bom dia. -Então que temos pra hoje? -Não sei. Eu hoje estou sem palpite...Sonhei com o gato do vizinho que havia passado nas engolideiras a pombinha da Sinhá, mas o gato e a pomba não saem hoje, saíram ontem. O gralha que não tem tempo a perder diz: -Eu vou dar o meu palite, d. Sinforosa. Essa noite eu sonhei com um buraco muito fundo, mesmo muito fundo e escuro; ora em buraco, mora o tatu, logo buraco é tatu. -Homem é verdade, então sai mesmo o tatu. Dê-me 200 reis no tatu, pela moderníssima, mais 200 pela corrida e 200 pela moderna. O gralha passa o talão recolhe o cobre e ala o vôo em demanda de outra casa, onde vai palpitando até terminar os 25 bichos das 3 listas. Ele deu 24 palpites e saiu exatamente o que ele não palpitou. Isso em nada altera o jogo do dia seguinte e a palpitação do gralha na corrida, moderna ou moderníssima.169

As pessoas poderiam não ter palpite, mas aguardavam o vendedor do jogo

do bicho e depositavam uma certa quantia no animal palpitado. Além de acreditar

no jogo do bicho, confiavam no vendedor, aceitando suas sugestões, sem perceber

que jamais este daria o mesmo palpite a várias pessoas, porque o excesso de

apostas num bicho, poderia trazer prejuízo ao vendedor, caso o bicho fosse

sorteado, uma vez que o prêmio não era dividido entre os apostadores.

Palpite era o que todo jogador gostava. Roberto da Matta e Elena Soárez

fizeram um estudo antropológico sobre o jogo do bicho e relataram que em outros

tempos, isso também acontecia. Numa das entrevistas realizadas com um jogador,

este sugeriu o número da matrícula, no mestrado da pesquisadora, como palpite

para o jogo.

“Depois que ela esclareceu sua presença, o jogador perguntou o número de sua matrícula no curso de mestrado do Museu Nacional, pois, segundo ele, tal número certamente configurava um bom palpite. Diante da

169O Independente, 14 jun.1903.

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impossibilidade de lembrar o número, Elena Soárez foi indagada sobre outros algarismos que faziam parte de sua identidade, como a placa do seu carro, que era 5721 – milhar na cabra.170

Simone Soares dizia: “Um carro de marca diferente, ao passar diante de um

jogador, terá sua placa imediatamente anotada”.171 Qualquer número que tivesse

ligação com um indivíduo ou que cruzavam durante o dia, era relacionado a um

bicho e servia de palpite para o jogo: idade das pessoas, placas de carro, número

de ruas, ano do nascimento. Tudo isso sugeria algum tipo de sorte para o indivíduo

viciado no jogo do bicho.

Enquanto uns aguardavam a sorte através da fé e dos palpites, outros davam

um jeito para conquistá-la. “O Affasta (...) tem estado de uma sorte! No dia do urso

tinha também no cachorro. Ganhou nos dois”172 Certamente isso não foi sorte, pois

acompanhando a publicação no jornal, o urso foi o resultado fornecido pelo

telegrama, e o cachorro foi o animal sorteado. Para acertar o palpite certo e o

errado, o Affasta deveria ter feito várias apostas, diferente de outros indivíduos que

apostavam em apenas um bicho. O que muitos pensavam ser sorte poderia ter sido

apenas excesso de palpite.

Muitos jogadores viciados nessa prática, mesmo sem dinheiro, não

conseguiam conter as apostas. Espertos, buscavam outra forma de realizar a

‘fezinha’: a malandragem. O Affasta, ‘jogador de carteirinha’, fez isso no pagamento

com vales, e deixou grande prejuízo ao bicheiro que, por sua vez, não pôde mais

ser vendedor de cartelas.

O Affasta tem se aperfeiçoado na arte... de enganar. Assim é que o homem durante a semana toda, comprou diariamente cinqüenta bilhetinhos repartidamente no gato e no porco e em pagamento passou vales que resgataria oportunamente. O banqueiro do bicheiro opôs embargos à ligeireza, mandando fechar a igrejinha dos bichos. Resigna-se ao prejuízo que lhe deu o Affasta – Jamais, nunca!173

A crença na ascensão social movia a paixão pelas apostas. Os apostadores

inventavam de tudo para se aproximar da sorte. Mas sabe-se que esse jogo

dependia exclusivamente da sorte, não sendo fiel nenhum dos meios de apostas

170Da Matta e Soarez, op.cit,. p. 117.

171Soares, op. cit., p. 169

172Federação, 29 ago. 1898.

173Federação, 25 mai. 1898.

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citadas anteriormente. O número de acertos ou perdas, não influenciava os futuros

resultados e a fé era o pilar que sustentava a esperança do apostador em vencer,

que para isso, realizava até orações. O destino não era possível prever. Azar ou

sorte era apenas o resultado do risco que o indivíduo tinha sobre sua aposta.

Os jogadores acreditavam influenciar o destino do jogo. Orações à Senhora

Fortuna facilitavam a obtenção de ganhos a todos: bicheiros, vendedores e

apostadores. Comprava-se a esperança num bilhete de apostas. A superstição

fomentava o jogador.

O destino só era previsto quando a ‘máfia’ dos banqueiros auxiliava nos

sorteios e neste caso, nem a famosa ‘fezinha’, com orações à ‘Senhora Fortuna’,

poderia ajudar no resultado. Isso ocorria constantemente, principalmente, no final

do século XIX, quando o jogo do bicho chegou em Porto Alegre e os resultados

vinham do Rio de Janeiro sem muita tecnologia. Alguns sabiam o resultado do jogo

do bicho antes de chegar na capital do Rio Grande do Sul, outros, informavam aos

porto-alegrenses, resultados diferentes do sorteado.174 Até mesmo porque essa

prática era ilícita, portanto não havia a quem recorrer quando ocorressem fraudes.

Uma espécie de confiança mágica ocorria tanto com os apostadores, quanto

com os banqueiros, que investiam como se fosse a lei de mercado em que os

bichos eram cotados. A modernidade do capitalismo se juntava ao selvagem e

mostrava que o jogo do bicho também se adequava ao sistema: “Se um banqueiro

pode falar seriamente em investimento, se um político elabora um projeto de lei

inspirado no liberalismo, o jogo do bicho apresenta uma versão popular, barata, e

realista dessas coisas.“175

O jogo do bicho além de ter formado um universo social de grupos de

interesse econômico, também se inseriu como cultura, formada a partir de um

sistema. Para Geertz “em vez de a cultura funcionar simplesmente para

suplementar, desenvolver e ampliar capacidades organizadamente fundada, lógica

e genericamente, anteriores a ela, ela própria parece ser o ingrediente dessas

capacidades”.176 Ou seja, o jogo do bicho não era uma prática que resultava da

174Ver A Federação, 22 ago. 1898.

175 Matta e Soarez, op. cit. p. 34.

176 GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 80.

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ignorância da população, mas estava inserido num sistema político e econômico

que facilitava a sua permanência na sociedade.

Os jogadores se esforçavam por traduzir as representações dos animais.

Havia a humanização da natureza na tentativa de mudar o curso da vida dos

indivíduos, através da fé depositada nos bichos e no bicheiro. Mesmo com um

sistema de categorias sociais hierarquizadas, configurado a partir do jogo do bicho,

havia esperança dessa prática ser uma alavanca para a mobilidade social. Nesse

sentido, o jogo do bicho adquiriu um conjunto de significados: a probabilidade, o

jogo da sobrevivência, o prazer da aposta, o credo divino, e a mudança de destino.

Tudo isso, levou o indivíduo a conspirações e desejos, mantidas mesmo na

racionalidade de um jogo.

Dessa forma, o jogo do bicho foi se definindo em Porto Alegre. Sonhar,

apostar e talvez ganhar, era o que fomentava o indivíduo na prática desse jogo. E o

sonho quase sempre era duplo: primeiro sonhavam com algo que pudesse ser

relacionado com algum animal; depois ficavam sonhando num possível resultado do

prêmio que poderia mudar a vida do indivíduo. Esse sentimento ajudava o tempo

passar para aqueles que encontravam no jogo do bicho, mais do que uma chance

de ascender-se financeiramente, um momento de prazer. Assim, a sociedade porto-

alegrense se identificou com o jogo e mesmo o resultado vindo do Rio de Janeiro,

esses criaram logo a tabela e as modalidades próprias para seus bichos, conforme

se apresenta no sub-capítulo a seguir.

2.1-Um número, vários animais: adaptações ao jogo do bicho

O jogo do bicho criado aqui no Brasil teve diferenças de uma região para

outra. A tabela apresentada no primeiro capítulo desse trabalho, não era a mesma

das apostas no Rio Grande do Sul.

Analisando o relatório, as cartelas e demais materiais presentes nos

processos-crimes de Josino Barreto, Manoel Rodrigues de Lima, Joaquim Martins

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Flores e Agostinho Rosa177 foi possível elaborar a tabela do jogo do bicho, no Rio

Grande do Sul, com a linguagem da época, especificando os animais que

pertenciam a cada grupo. Não se sabe quem criou essa tabela e nem como foi

constituída a lista dos bichos, mas o certo é que não resultou de um Jardim

Zoológico, como no caso do Rio de Janeiro, uma vez que, o boi, o porco, o

cachorro, o gato e o rato, dificilmente seriam atração em um Zoológico. Mas pode-

se dizer, que a tabela carioca serviu de exemplo para os rio-grandenses, que

adaptaram os animais às peculiaridades locais e aos significados simbólicos que

muitos deles possuem, ou até, ao envolvimento com textos bíblicos ou históricos.

Tabela 3 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade corrida. TIGRE 1

01-02-03-04 PERU 2

05-06-07-08 CACHORRO 3

09-10-11-12 ABESTRUZ 4 13-14-15-16

CERVO 5 17-18-19-20

BOI 6

21-22-23-24

VEADO 7 25-26-27-28

CAVALLO 8 29-30-31-32

GATTO 9 33-34-35-36

OVELHA 10 37-38-39-40

RATTO 11 41-42-43-44

CAMELO 12 45-46-47-48

PORCO 13 49-50-51-52

BURRO 14 53-54-55-56

COELHO 15 57-58-59-60

MACACO 16 61-62-63-64

TATU 17 65-66-67-68

LEÃO 18 69-70-71-72

POMBA 19 73-74-75-76

ELEPHANTE 20 77-78-79-80

GIRAFA 21 81-82-83-84

URSO 22 85-86-87-89

CABRITO 23 89-90-91-92

GALLO 24 93-94-95-96

ÁGUIA 25 97-98-99-00

Fonte: Processos-crimes, maço 2, nº 42 e 46, 17 ago. 1898 e 16 de ago.1898; maço 3, nº 48, 27 mai. 1898; e maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS. Comparando a tabela acima que representa o jogo do bicho rio-grandense,

com aquela apresentada no primeiro capítulo desse trabalho, representando o jogo

do bicho do Rio de Janeiro, percebe-se que a ordem das dezenas era a mesma,

apenas mudava o grupo e alguns animais, como é o caso do cervo, boi, ovelha,

rato, tatu, pomba, girafa e cabrito da tabela do Rio Grande do Sul que não estavam

presentes na tabela carioca, enquanto outros, como: borboleta, cabra, carneiro,

cobra, jacaré, pavão touro e vaca apareciam na tabela carioca, mas ficavam de fora

na tabela do Rio Grande do Sul. Alguns desses animais eram da mesma família e

mudavam apenas o sexo, de uma região para outra: a ovelha, o cabrito e o boi da

177Processo-crime, nº 48, Maço 03, 27 mai. 1898. APERS.

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tabela do Rio Grande do Sul são, respectivamente, da mesma família do carneiro,

da cabra e da vaca ou do touro, presentes na tabela do Rio de Janeiro. Dessa

forma, se um indivíduo sonhava com um dos animais que não existia na tabela rio-

grandense, deveria apostar no animal correspondente que se encontrava nessa

tabela. Outra diferença era que os bichos da tabela porto-alegrense não estavam

em ordem alfabética, como na tabela carioca.

A tabela acima que representa a aposta no grupo, era uma das muitas que

existiam. O jogo do bicho, em Porto Alegre, oferecia outras modalidades de

apostas, como a Moderna e a Moderníssima que estavam no panfleto Palpite Para

Todos, anexado no processo-crime de Agostinho Rosa.

Tabela 4 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade moderna e moderníssima.

Moderna Modernissima TIGRE 01 26 51 76 TIGRE 01 27 53 79 PERU 02 27 52 77 PERU 02 28 54 80 CACHORRO 03 28 53 78 CACHORRO 03 29 55 81 ABESTRUZ 04 29 54 79 ABESTRUZ 04 30 56 82 CERVO 05 30 55 80 CERVO 05 31 57 83 BOI 06 31 56 81 BOI 06 32 58 84 VEADO 07 32 57 82 VEADO 07 33 59 85 CAVALLO 08 33 58 83 CAVALLO 08 34 60 86 GATTO 09 34 59 84 GATTO 09 35 61 87 OVELHA 10 35 60 85 OVELHA 10 36 62 88 RATO 11 36 61 86 RATO 11 37 63 89 CAMELLO 12 37 62 87 CAMELLO 12 38 64 90 PORCO 13 38 63 88 PORCO 13 39 65 91 BURRO 14 39 64 89 BURRO 14 40 66 92 COELHO 15 40 65 90 COELHO 15 41 67 93 MACACO 16 41 66 91 MACACO 16 42 68 94 TATU 17 42 67 92 TATU 17 43 69 95 LEÃO 18 43 68 93 LEÃO 18 44 70 96 POMBA 19 44 69 94 POMBA 19 45 71 97 ELEFANTE 20 45 70 95 ELEFANTE 20 46 72 98 GIRAFA 21 46 71 96 GIRAFA 21 47 73 99 URSO 22 47 72 97 URSO 22 48 74 00 CABRITO 23 48 73 98 CABRITO 23 49 75 76 GALLO 24 49 74 99 GALLO 24 50 51 77 ÁGUIA 25 50 75 00 ÁGUIA 25 26 52 78 Fonte: Processo-crime, maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.

Os porto-alegrenses tinham diversas formas de apostas para tentar a sorte.

Nas modalidades moderna e moderníssima havia algumas regras de aposta citadas

no panfleto de propaganda: “qualquer bicho 30$000 por 1$000 com exceção do

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porco que é 25$000 por 1$000”178. Dessa forma, a cada 1$000 de aposta o

ganhador receberia 30$000, com exceção do porco que valia menos, apenas

25$000.

Além dessas, existia outra modalidade de aposta que não constava título no

panfleto de propaganda. Nessa modalidade de jogo, existia 33 grupos e cada grupo

era composto por apenas 3 dezenas e representava um animal, existindo assim um

número maior de animais. Ao final da tabela era citado: “final 00 50$000 por

1$000”179 sendo que a cada 1$000 apostado, o ganhador receberia 50$000, mas

não encontra-se o animal correspondente à dezena 00.

Tabela 5 – Jogo do bicho no Rio Grande do Sul: modalidade não identificada 01 34 67 AVESTRUZ 12 45 78 CERVO 23 56 89 OVELHA 02 35 68 AGUIA 13 46 79 CAMELO 24 57 90 PERU 03 36 69 BURRO 14 47 80 ELEFANTE 25 58 91 PAVÃO 04 37 70 BOI 15 48 81 GATO 26 59 92 POMBA 05 38 71 BORBOLETA 16 49 82 GIRAFA 27 60 93 PORCO 06 39 72 COBRA 17 50 83 GALO 28 61 94 PAPAGAIO 07 40 73 CACHORRO 18 51 84 JACARÉ 29 62 95 URSO 08 41 74 CAVALO 19 52 85 LEÃO 30 63 96 TIGRE 09 42 75 CORVO 20 53 86 LOBO 31 64 97 TATU 10 43 76 CABRITO 21 54 87 LONTRA 32 65 98 VEADO 11 44 77 COELHO 22 55 88 MACACO 33 66 99 ZEBRA Fonte:Processo-crime maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.

Essa deveria ser uma modalidade de aposta pouco procurada pelos

jogadores, um vez que, a imprensa não divulgava essa modalidade de aposta, e o

jogador tinha 25% a menos de chance de ganhar, devido ao animal que possuía

somente 3 dezenas, enquanto que nas outras modalidades de apostas, o animal

era representado por 4 dezenas.

A imprensa indicava três modalidades de apostas: moderna, moderníssima e

corrida, conforme se visualiza na referência a seguir, em que os vendedores do jogo

do bicho foram denominados aves de arribação, pois apareciam à população para

vender o bicho e nem sempre voltavam para efetuar o pagamento, no caso do

apostador acertar o animal.

E são mais ou menos essas as aves de arribação que dia a dia nos aparece nesse grande viveiro de raridades a perguntar-nos:- qualquer: a moderna,

178Processo-crime, maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.

179 Processo-crime, maço 5, nº 106, 21 nov. 1904. APERS.

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moderníssima, ou a corrida? E se algum ingênuo deixa-se encantar nos melidiosos gorjeios dessas aves, o negócio é certo –nem é corrida!180

Dessas três modalidades de apostas, pode-se dizer que a corrida também

era a conhecida como aposta no grupo, uma vez que o resultado sempre era

informado pelo número do grupo com seu respectivo animal.

As apostas eram variadas. Os jogadores poderiam apostar em um animal

que representava o grupo, com algumas dezenas ou apostar em uma dezena que

correspondia a um animal. Assim, o número deixava de ser quantidade (apenas

número) e passava a ser um símbolo (animal). Os indivíduos também poderiam

escolher a modalidade de aposta, fornecendo aos animais os mais variados

números. Após o sorteio do prêmio da loteria federal, no Rio de Janeiro, os

resultados eram repassados aos Estados. O Estado do Rio Grande do Sul adaptava

os resultados às modalidades de apostas prescritas nas tabelas e nas terminações

das dezenas apostadas para saber o ganhador.

Portanto, se o número sorteado fosse 4109, o ganhador seria o indivíduo que

apostou no grupo 9, saindo então o gato, ou na terminação 09, representado pelo

cachorro. Assim também, todos os números sorteados com terminações em 09

teriam o respectivo resultado. Os jornais sempre faziam referência ao grupo e não

nas dezenas.

As diferentes modalidades de apostas apresentavam diferentes valores em

prêmios: enquanto a aposta no grupo fornecia o prêmio de até vinte vezes o referido

valor apostado, a aposta na moderna e moderníssima ampliava o prêmio para 30

vezes, com exceção no grupo do porco em que o prêmio era de 25 vezes o valor

apostado.

Outras modalidades de apostas, no jogo do bicho, surgiram conforme o jogo

conquistava apostadores. Hoje um indivíduo tem 21 modalidades diferentes para

escolher na hora de jogar e cada uma paga um valor diferente, de acordo com a

quantia apostada.181

Na capital carioca do início do século XX, o jogo do bicho possuía

característica diferenciada de Porto Alegre: a tabela dos bichos não era a mesma e

o número de modalidades de apostas fornecidas ao jogador era bem maior.

180 O Independente, 14 jun. 1903.

181 Ver Soares, op. cit. p. 177-191.

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Herschmann e Lerner dizem que no Rio de Janeiro “podia se apostar no antigo,

salteado, Rio, buraco, moderno, lotto, talismã da sorte, etc, todos com premiação

distinta”.182

Observa-se que um mesmo número pertencia a um referido grupo e este

representava vários animais, de acordo com as tabelas de cada região ou com as

modalidades de apostas. O indivíduo poderia jogar no grupo, na moderna,

moderníssima ou outra modalidade não nomeada nos documentos. Além dos

interesses pelas modalidades, os jogadores também escolhiam os animais que

representavam sorte. Analisando a documentação pesquisada, pode-se conhecer

os animais mais apostados pelos jogadores de Porto Alegre.

Tabela 6 – Animais mais apostados pelos jogadores em Porto Alegre.

Dias Nº de jogado-res

Bicho mais jogado (vezes)

Bichos menos jogados (vezes)

Bichos não jogados

Apostas em terminações

Valor total das apostas

10/12/1897 30 Burro (4) Águia (1) Peru (1) Porco (1) Cabrito (1) Elefante (1) Camelo (1) Cachorro (1)

Tigre Leão Veado Ovelha Coelho Girafa

____ 67$050

05/04/1898 04 Galo (1) Ovelha (1) Cavalo (1) Elefante (1) Gato (1)

___ Todos os bichos que não constam na lista dos mais jogados

____ 12$500

08/05/1898 01 Coelho (1) Águia (1)

___ Todos os bichos que não constam na lista dos mais jogados

____ 1$000

10/05/98 08 Gato (4) Cavalo (1) Burro (1) Aguia (1) Porco (1) Veado (1) Galo (1) Coelho (1)

Peru Cachorro Avestruz Cervo Boi Camelo Macaco Leão Urso

Term. 35 19$000

182 Herschmann e Lermer, op.cit., p. 69.

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Girafa Pomba Elefante

11/05/1898 08 Cabrito (4) Gato (1) Porco (1) Rato (1) Tigre (1) Macaco (1) Elefante (1) Tatu(1)

Peru Cachorro Avestruz Cervo Boi Veado Ovelha Camelo Coelho Leão Pomba Girafa Urso Galo Águia

Term. 23 Term. 23 Term. 89

22$000

12/05/1898 09 Tatu (2) Cabrito (2) Veado (2) Galo (2)

Camelo (1) Cachorro (1) Burro (1) Elefante(1) Gato (1)

Todos os bichos que não constam nos mais ou menos jogados.

Term. 48 29$500

14/05/1898 12 Tatu (5) Burro (1) Veado (1) Coelho (1)

Tigre Peru Avestruz Cachorro Cervo Boi Ovelha Camelo Porco Macaco Leão Pomba Girafa Urso Galo Águia

Term. 23, 32 44$000

16/05/1898 06 Gato (3) Ovelha (3)

Rato (1) Burro(1) Cabrito (1) Veado (1) Coelho (1) Cervo(1) Galo (1) Camelo(1) Tigre (1) Cachorro(1) Elefante (1)

Peru Avestruz Boi Porco Macaco Tatu Pomba Girafa Urso Águia

Term. 23, 32 17$500

17/05/1898 05 Cavalo (2) Urso (1) Tatu (1) Coelho (1) Cachorro (1)

Todos aqueles bichos que não constam na lista dos mais ou menos

____ 9$500

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jogados. 19/05/1898 08 Gato (2) Galo (1)

Cavalo(1) Elefante (1) Burro (1) Coelho(1) Veado (1) Rato (1) Cabrito (1)

Todos os bichos que não constam na lista dos mais ou menos jogados.

Term. 82 21$500

21/05/1898 04 Coelho (1) Macaco (1) Ovelha (1) Cachorro (1) Leão (1)

___ Todos que não constam na lista dos mais jogados

____ 4$000

Fonte: Processos crimes nº42, 46 e 48, maço nº 02 e 03, 17 ago. 1898,

16 ago. 1898 e 27 mai. 1898, respectivamente. APERS.

Entre os documentos pesquisados, observa-se que a maioria dos jogadores

apostavam no grupo, poucos eram aqueles que apostavam nas terminações, e

quando faziam isso, coincidentemente apostavam também no veado e no cabrito.

Nos onze dias que foram realizadas as apostas, os bichos mais procurados pelos

apostadores foram o gato com 18 apostas e o tatu com 13 no grupo, e o boi com 4

apostas nas terminações. A girafa não foi apostada nenhuma vez no grupo, apenas

nas terminações e o peru apenas 1 vez no grupo. Simone Simões analisou a

preferência dos jogadores por determinados animais, acompanhando as apostas,

em uma casa de jogo de Fortaleza, durante 40 dias e constatou que “apenas em

dois dias, 29 de janeiro e 14 de fevereiro, houveram apostas em todos os 25 bichos.

Nos outros dias, encontram-se bichos não jogados”.183 Muitos jogadores não tinham

preferência fixa por determinado animal. Eles analisavam os sonhos e os animais já

sorteados em um curto espaço de tempo.

Dos animais apostados, o tigre recebeu o valor mais baixo, apenas 2$000 em

quatro apostas, tendo uma média de $500 por aposta. Já no elefante, eram

depositados altos valores, ou seja, 39$000 em 9 apostas, ficando com média de

4$500 por aposta. Essa variação de investimento gerava também variação de

prêmio, no caso do jogador acertar a aposta.

Além do jogo do bicho fornecer algumas modalidades de apostas,

diferenciava-se da loteria federal, por pagar aos ganhadores de acordo com a

183 Soares, op.cit., p. 190.

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quantia apostada, enquanto a loteria fazia rateio do prêmio, entre os ganhadores.

Essas talvez eram algumas das motivações que fomentavam os jogadores para

deixar de lado a loteria e apostar no jogo do bicho.

Os animais apostados e apresentados na tabela anterior não foram

publicados na imprensa, apenas estão presentes nos processos-crimes arquivados

na documentação de polícia, mas mesmo assim, visualiza-se um grande auxílio,

prestado pela imprensa, aos jogadores: ora divulgando o resultado do jogo ou

alguns ganhadores e ora criticando a prática e mostrando o lado negativo. O certo

era que em ambos lembrava o leitor da existência da prática, como mostra na

divulgação de que “a grande sorte tornou rico, de um dia para o outro, o empregado

do palácio”184. Talvez o valor adquirido não chegava a uma grande fortuna, mas

pode-se concluir que os responsáveis pela administração também depositavam fé

no jogo do bicho e com isso ganhavam um dinheiro, além de possuírem créditos

com a ‘Senhora Fortuna’, que fazia o pagamento aos empregados do palácio

através da sorte nos jogos. Se para a imprensa divulgar o ganhador era sinônimo

de que esse jogo não seria confiável, para a população, poderia ser uma forma de

estimular a prática e para os bicheiros, essa poderia ser uma excelente

propaganda. Nos versos publicados pela Gazetinha, na seção “Palestra, entre dois

velhos”, foi possível visualizar isso:

Precisando de dinheiro Do bicho lembrei-me logo E risonho, prazenteiro Na bicharia me afogo Fui na pomba um patação Neste dia saiu boi Fui porco, fui burro, fui cão E a cobra também se foi Mas homem, não és criança, Não compres mais o tal bicho, Mas que quer? Tenho esperança De ganhar... É um capricho Capricho perder dinheiro? Loucura quadra melhor, Enquanto ganha o bicheiro Tu vais de mal a pior. Mas onde compras o tal, Não é segredo de certo? Quem te vende o animal?

184Gazetinha, 21 mai. 1896.

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Diz-me o nome desse esperto. É um homem pequenino Que se encontra num cartório Na ladeira, ele é franzino E faz papel de casório... -Vende bicho o advogado? -Não compadre, advoguerio, O negócio está parado E ele quer ganhar dinheiro185

A oposição de pensamento sobre o jogo do bicho, citada em versos,

favorecia tanto como estímulo aos jogadores que buscavam auxilio financeiro,

embora nem sempre ganhavam; quanto aos críticos que, além de discursar

moralmente à sociedade, apresentando o prejuízo que este jogo trazia, divulgavam

mais um vendedor para auxiliar o trabalho da polícia. E poderia até fornecer palpite

de jogo, uma vez que informava o animal que saiu no dia em que ele apostou em

outros.

Dessa forma, percebe-se que os jornais tiveram grande participação na

permanência e no alastramento do jogo do bicho pela sociedade. A divulgação de

sonhos, de palpites, modalidades de apostas, de resultados do bicho ou números

da loteria, e até críticas sobre a existência dessa prática, contribuiu para o seu

sucesso. Os versos atraíam o público leitor e os porto-alegrenses, em pouco tempo,

adquiriram um novo hábito: jogar no bicho. A elaboração de uma tabela própria com

animais diferentes da tabela do Rio de Janeiro, comprovou a paixão pelo jogo,

embora neste trabalho não foi possível identificar seu autor e nem explicar a

seleção de bichos presente nela.

Por ser uma ‘válvula de escape’ fácil, acessível e confiável (passatempo) a

essa sociedade com a rotina diária de trabalho, ou sem ele – vagando pelas ruas-, e

até por se tratar de uma possibilidade de ascensão social, em diversas modalidades

de apostas, com altos ou baixos valores e riscos - caso a sorte chegasse -, a

jogatina conquistou o público que depositava nela a ‘fezinha’.

A ordem da virada do século XIX para o XX, fundada na ética do trabalho, no

esforço pessoal, no abandono do lazer pelo emprego, na busca de um futuro

incerto, foi invadida por uma alternativa de ver a vida como destino. O jogo do bicho

chegou criando códigos que se decifrados, poderia mudar a vida do indivíduo. Mais

185 Gazetinha, 17 ago. 1898.

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do que uma prática cultural, o jogo do bicho estava inserido num sistema. Neste, o

sonho de ascensão econômica fornecia um novo sentido à vida do indivíduo: os

acontecimentos desagradáveis eram traduzidos em palpites e esses, em números e

animais que poderiam trazer prazer e sorte e perdurar até que as autoridades

administrativas e policiais não fizessem interferência, como se apresenta no

próximo capítulo.

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3- O INVENCÍVEL JOGO DO BICHO – Legalizado ou proibido?

Não vemos, efetivamente, que necessidade haveria de se proibir o que ninguém deseja realizar. Aquilo que se acha severamente

proibido, tem que ser objeto de um desejo. Freud

Desde as primeiras sociedades referencia-se a presença dos jogos de azar.

Rui Barbosa mostra que os jogos de azar estavam presentes na sociedade desde a

antiguidade: “Alexandre, o Grande, jogou. Fox jogava. Também jogava Napoleão III.

Barão do Cotegipe gostava de jogar209. Outros tantos jogaram por prazer, vício ou

até competição. Nesta ocasião, os jogos serviam para estreitar laços coletivos,

principalmente nos momentos de festas, pois o trabalho não ocupava tanto tempo e

nem visava lucro, apenas a sobrevivência.

No período medieval, os jogos também estavam presentes em festas de

escola e da juventude: brigas de galo, jogo de bola a dinheiro, juntamente com

músicas, danças e representações dramáticas, recheavam as festas, misturando as

idades. Somente a Igreja condenava os jogos (sem exceção), privilegiando as

atividades domésticas e intelectuais. Mas mesmo proibidos, eram jogados: “os

estudantes, assim como os outros meninos, não tinham o menor problema em

freqüentar as tavernas e os bordéis, em jogar dados e dançar”210 Naquele período,

as escolas eram conduzidas pelo clero: as proibições não representavam eficácia.

Os centros de moralização conviviam com os delitos de jogos a dinheiro. A

preocupação em educar os jovens era maior do que apenas evitar o jogo. Muitas

atividades de lazer eram proibidas: jogos de azar, de salão e esportivos, comédias e

danças. Acreditava-se que não existiam divertimentos inocentes. Como era difícil

controlar os leigos, a Igreja tentava controlar os clérigos, embora em alguns

209 BARBOSA, Ruy. Ruínas de um Governo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1931, p. 171.

210Ver Áries, op.cit. p 111.

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61

momentos desenvolvia jogos paroquiais, como passatempo, ou com apostas de

uma fruta ou uma jarra de vinho211.

Por volta do século XVII, na Europa, os jogos foram classificados como bons

ou maus: “uma preocupação antes conhecida de preservar sua moralidade e

também de educá-la, proibindo-lhes os jogos então classificados como maus, e

recomendando-lhes os jogos então reconhecidos como bons”212. Moralistas uniram-

se ao clero para condenar aqueles jogos considerados maus. Isso, sem considerar

que o universo do jogo de azar era contraditório – enquanto uns (pobres) tinham

tudo a ganhar e jogavam pouco, outros (ricos) tinham tudo a perder e jogavam

fortunas. Philippe Ariès apresenta a contradição do jogo: “o jogo produz bons efeitos

quando o jogador se comporta como um homem hábil e de boa vontade: é através

dele que um homem pode ter acesso a toda parte onde se joga e os príncipes,

muitas vezes, se entediariam se não pudessem jogar”213

Durante longo tempo, as atividades lúdicas andaram distante da lei. Mas, nos

tempos modernos, com a invenção da sociedade do trabalho como sinônimo de

progresso e boa moral214, os jogos foram proibidos, tanto na Europa, quanto no

Brasil (que absorvia seus valores).

A falta de moral dos jogadores difundia, na sociedade, o sentimento de que o

jogo era uma paixão perigosa, um vício grave, sendo necessário proibi-lo. Mas

alguns jogos, como cartas e xadrez, não estavam sujeitos à condenação, porque

segundo Huizinga “não dependiam exclusivamente da sorte, mas sim, da habilidade

dos jogadores”.215, Distinguiram então, os jogos permitidos dos proibidos: enquanto

os primeiros eram liberados, estes últimos, juntamente com embriaguez e

211 Ver Idem.

212Ibidem, p. 104.

213Ibidem, p.106.

214 Por ‘moral’ entende-se um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc. Acontece dessas regras e valores serem bem explicitamente formulados numa doutrina coerente e num ensinamento explicito. Mas acontece também delas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar ‘código moral’ esse conjunto prescritivo. FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. Vol. II: O uso dos prazeres. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.26. 215Huizinga, op. cit., p. 42.

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prostituição, tornaram-se contravenção. Essa distinção também foi alçada às

crianças e aos adultos, aos fidalgos e aos vilões. Normas de convivência foram

criadas para coibir os comportamentos indesejáveis.

No Brasil, o governo de Floriano Peixoto (1891-1894) foi um período

extremamente conturbado, ele, para se preservar de possíveis ataques tolerava os

jogos: “enquanto se jogava não se conspirava”216. Dessa forma, o jogo auxiliava a

administração, era um apaziguador social.

Logo, quando o jogo fez ‘movimentar a cidade’, foi necessário a intervenção

da polícia, proibindo as loterias e, com elas, outros jogos de azar, vistos como

atividades degradantes e desestabilizadoras. Até mesmo o jogo do bicho, após seu

surgimento, conquistou a artimanha dos jogadores, espalhando-se pela cidade,

enquadrou-se como contravenção. E antes mesmo que a polícia o extinguisse, foi

incorporado à Loteria Federal.

Embora a legislação brasileira nunca tenha sido favorável aos jogos de azar,

somente em 1890, passou a enquadrá-los, juntamente com outras práticas que não

atingiam a moral prescrita pelos representantes do Estado, como contravenção217.

Para Montoro, “as leis do direito estão ligadas ao conceito de norma do

comportamento humano”218. E este comportamento resulta do meio em que o ser

humano se insere. Dessa forma, entende-se que realidade social, econômica, e

política tornam-se um fator básico na elaboração das leis.

Em fins do século XIX, quando a imprensa passou a divulgar a expansão do

jogo do bicho, no Rio Grande do Sul, legisladores e juristas passaram a combater,

intensamente, a jogatina, com o objetivo de extinguir as casas que exploravam

essas práticas. A polícia começou a intervir mais sistematicamente, objetivando

reprimir, principalmente, os jogos populares nas grandes cidades. A própria

abrangência do conceito jurídico de jogo de azar garantia o enquadramento de uma

216Ver Herchmann e Lerner, op.cit.., p.62.

217Ver Código Penal de 1890 op.cit.

218 MONTORO, André franco. Introdução à Ciência do Direito. 26ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 350.

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série de atividades lúdicas como contravenção, ou seja, um ilícito penal passível de

punição (multa e prisão simples)219.

Como não havia lei específica para o jogo do bicho, este se enquadrava na

lei das loterias, que eram as responsáveis por abrir caminho para aquele jogo. O

artigo 71 § 18 da Constituição Política do Estado do Rio Grande do Sul dizia: “Ficam

abolidas as loterias, não sendo lícito ao Estado transformar o vício em fonte de

renda.”220 Dessa forma, o jogo do bicho não poderia existir, assim como outros

jogos que dependiam das loterias.

Somente a Lei das Contravenções Penais de 1941, cap VII (Das

contravenções Relativas a Polícia de Costumes), art 58, extinguiu legalmente o jogo

do bicho:

Art. 58: Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato à sua realização e exploração. Pena – prisão simples, de 4 meses a 1 ano, e multa. Parágrafo único: Incorre na pena de multa aquele que participava da loteria, visando à obtenção de prêmio, para si ou para terceiros221.

Para o Direito não há contrato de jogo ou de aposta, uma vez que estes, ou

são tolerados por ser divertimento, e assim a lei não os proibi e nem os autoriza, ou

são contravenções punidos pela lei das Contravenções Penais, por ser contrário

aos bons costumes e nocivo à vida social.

Apenas as loterias nacionais e estaduais e as apostas sobre corridas de

cavalos222 não se enquadraram como contravenção após 1941 e continuaram

sendo permitidas e regularizadas por lei.

Se por um lado a lei proibia as loterias para não sustentar o vício, por outro o

Estado continuava a manter a atividade. A imprensa porto-alegrense produziu

219 A diferença entre crime e contravenção segundo Magalhães Noronha é meramente quantitativa, não havendo distinção ontológica, de natureza, enfim. Ver NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999. Dessa forma, a diferença está na sanção que por ser um ilícito menos grave, tem pena mais branda: para o crime aplicam a reclusão e a detenção; para a contravenção, aplicam prisão simples.

220Gazetinha, 09 jun. 1899.

221BRASIL, Decretos-lei do Brasil, 1941. In: Atos do Governo Provisório. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941. 222 As loterias seguiam o Decreto-lei 2980 de 24 de janeiro de 1941, Art 2º,§ 1º A loteria federal terá livre circulação em todo o território do país, enquanto que as loterias estaduais ficarão adstritas aos limites do Estado respectivo; As apostas sobre corridas de cavalos seguiam o Decreto-lei nº 3688 de 03 de out. de 1941, Art. 50, § 3º, letra b que considerava jogos de azar as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas, sendo assim permitidos nos hipódromos. BRASIL, Decretos-lei do Brasil, 1941. In: Atos do Governo Provisório. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.

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discursos moralizantes frente a esse contexto político e social: “o jogo é um cancro

social que precisa ser extirpado, visto que rouba trabalhadores ao trabalho, cidadão

honesto ao cumprimento do dever e deste modo transforma-os em desonestos”.223

O discurso moralizador de que o jogo era maléfico para a sociedade, sendo

necessário extingui-lo e para isso o auxílio da polícia que perseguia juridicamente,

entrava em contradição com o fato do próprio Estado explorar o negócio da

jogatina, com a manutenção das loterias. Se por um lado a prática das loterias

sustentava as instituições de caridade, por outro, auxiliava o exercício de outros

jogos, como o jogo do bicho. Uma vez que as casas para esse exercício ficavam

livres para funcionar e os seus donos tendo lucro em outros jogos não negavam as

apostas. O jogo do bicho era apenas uma conseqüência das loterias.

Essa contradição entre a Constituição Estadual e a prática do Estado rendeu

críticas: “Se existe uma lei que permite o jogo de loterias do Estado, há outra que

proibi. Logo, entre duas leis contraditórias, escolha-se a melhor, a que proíbe”.224

‘Faça o que eu digo, mas não o que eu faço’ era o verdadeiro lema para a ação das

autoridades sobre a jogatina, uma vez que as loterias eram praticadas, mesmo

caracterizando-se como jogo de azar, um vício condenável. Se o jogo do bicho

tornou-se “filho” da loteria e não fosse extirpado o mal pela “raiz”, certamente

continuaria existindo.

Segundo Waldyr de Abreu, “nenhuma Assembléia Legislativa Estadual

poderá regulamentar o jogo do bicho ou qualquer outro jogo de azar”,225 pois a

legislação penal brasileira é de competência exclusiva da União e os jogos de azar

constituem-se um delito previsto na Lei das Contravenções Penais. Assim,

enquanto a União não legalizará o jogo do bicho este continuará existindo na

clandestinidade.

Lembra-se que a lei brasileira é muito falha e isso dificulta a extinção dos

jogos de azar. Acompanhando a defesa do réu Afonso Correa da Silveira, em 1895,

proprietário do Café Pátria (onde praticavam jogos de azar), visualiza-se a má

elaboração da lei brasileira, quando o réu diz:

223Gazetinha, 24 jul. 1899.

224Gazetinha, 24 jul. 1899.

225ABREU, Waldyr de. O Submundo da Prostituição, Vadiagem e Jogo do Bicho: aspectos sociais, jurídicos e psicológicos. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A. 1957, p. 114.

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Tavolagem é simplesmente a casa em que se joga, que pode ser particular e lícita; ordinariamente porém, se entrega este termo para significar a casa pública em que se joga jogos proibidos, significação em que a tomou o nosso código não determinando, por isso como fez o artigo 484 do Código Penal Italiano [de 30 de junho de 1889] que o jogo seja un luogo publico o aperto al publican . Mas onde a prova que a casa nº 20 da rua da ladeira era frequentada pelo público quer pagasse ou não entrada? (...) O Código Italiano em seu art. 487 expressamente exige que o jogo seja a fim de lucros, mandando confiscar o dinheiro exposto juntamente com todos os demais objetos mencionados na segunda parte do nosso artigo 369; o Código Penal do Brazil, porém não aponta esse elemento, que no entanto tem de subentendê-lo.226

A defesa do réu criticava a lei brasileira, sendo cópia mal feita da italiana,

uma vez que não estava claro o que era um jogo ilícito. Essa astúcia de

interpretação, ligada ao fato de terem sido apreendidos mesas de jogos e uns

poucos jogadores que diziam serem companheiros limitados do réu nesse passa-

tempo que antes da sorte dependia do ‘capricho’ dos jogadores, fragilizava a lei que

por sua vez, não tinha argumentos para condená-lo, sendo o réu absolvido.

Além desse, outros casos como o de Felipe Viale227, vencia a lei. Este, de

apenas 24 anos, em 1900, foi surpreendido com a visita dos agentes municipais em

seu estabelecimento, situado à rua Riachuelo 343, e posterior apreensão de

materiais de jogos e dos indivíduos que lá se encontravam. Na defesa alegava que

por não ter profissão fixa há cinco anos, resolveu viver do lucro da casa de jogos

que abrira há cinco meses. Todas as testemunhas encontradas no local, quando

interrogadas, defendiam-se dizendo que estavam à procura de amigos, ou cobrança

de terceiros que deviam em seu estabelecimento; era a primeira vez que jogava;

estavam na casa, mas desconheciam o jogo, etc. E assim, driblavam a lei e eram

absolvidos.

Em agosto de 1898, a Gazetinha abriu a seção ‘Sport do Bicho’ que teve

pouca duração, apenas de 09 a 13 daquele mês, na qual divulgava o bicho

sorteado, seguido de informações do art. 367 do código penal em que dizia:

fazer loterias e rifas de qualquer espécie não autorizada por lei [e nesse caso se inseria o jogo do bicho] sofre pena de perda de bens e valores além de multa de 200$ a 500$, isso para os agentes de loterias, os distribuidores e vendedores, e os que promovem a extração.228

226Processo-crime, nº 1843, maço 76, 06 jun. 1895.

227Ver processo-crime, nº 68, maço 04, 02 mar. 1900.

228Ver Gazetinha, 08, 09, 10, 11 e 13 ago. 1898.

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Talvez a existência da lei forneceu pouca durabilidade dessa seção explícita

no jornal. Em outros momentos, o número sorteado na loteria era divulgado como

parâmetro do bicho.

A má elaboração da lei brasileira, juntamente com a participação de diversas

classes sociais, como apresentou-se no primeiro capítulo desse trabalho, auxiliaram

a continuidade da existência de práticas contraventoras na sociedade e dificultaram

o trabalho de extinção, por parte das autoridades administrativas e policiais.

Pela análise feita nos jornais e nos processos crimes de Porto Alegre, a

extinção do jogo do bicho não era somente em favor da moralidade pública, mas

também, em favor do Estado que tinha a renda das loterias reduzida pela

concorrência. Se o Estado via como ameaçador o jogo do bicho e queria extingui-lo,

era preciso eliminar as loterias. Sem a extinção das loterias o jogo do bicho não

seria eliminado, pois muitas pessoas tinham mais confiança no jogo do bicho, do

que no jogo oficial do governo, mesmo que o primeiro dependesse do segundo. A

extinção do jogo do bicho não auxiliava na extinção dos jogos de azar, pois ele era

só um jogo que dependia das loterias, enquanto que a extinção destas auxiliaria na

eliminação de todos os jogos que dependiam deste229.

Certamente era o desejo descrito por Freud230, na epígrafe deste capítulo,

que movia a ânsia da prática do jogo do bicho. Portanto, se esse jogo era visto

como maléfico na sociedade, era necessário punir quem o praticasse, para isso

nada melhor do que as leis. Como as leis andavam um pouco distantes do jogo do

bicho, foi necessário enquadrá-lo de acordo com as características do crime.

Pergunta-se. Quem era o verdadeiro responsável para auxiliar na boa conduta da

sociedade, uma vez que a moral já prescrevia o jogo do bicho como uma

contravenção, e a lei era falha? A seguir, apresenta-se como se comportaram a

polícia e os administradores frente à lei e o jogo do bicho.

3.1 O xadrez ilusório – jogo do bicho de mãos dadas com a polícia

229Ver Gazetinha, 24 jul 1899.

230Ver FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1999.

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Sempre que algo é visto como maléfico, na sociedade, torna-se proibido e

conseqüentemente, alguém é colocado como responsável para fiscalizar. Com o

jogo do bicho não foi muito diferente. Assim que chegou, uniu-se a outras atividades

imorais praticadas pela população e logo esteve na mira das autoridades policiais,

ou para proibir ou para praticar.

O jogo do bicho era uma prática que estava se iniciando em Porto Alegre e

portanto, dificilmente os locais de jogos eram únicos para essa atividade. O jogador

circulava no mesmo espaço da prostituta, do bêbado e de indivíduos que

praticavam outros crimes. Dessa forma, estava sujeito ao envolvimento com tais

atividades. A imprensa dizia:

Os vícios andam sempre juntos. Os melhores fregueses d’aquela pouca vergonha, chamada jogo do bicho, são as mulheres perdidas da rua do Ponto e becos adjacentes. (...) Era uma gritaria de galo, rato, burro, cavalo misturado com um sobe senhor – convite que a prostituta faz no transporte para receber dele o preço da vergonha a mais aviltante e entregá-lo as servidoras.231

Viver nesse meio onde várias atividades ilícitas estavam presentes, não era

bem visto por parte das autoridades administrativas. O jogador ao buscar prazer,

poderia perdê-lo em dobro: tanto na sorte, quanto na vontade de exercer atividades

profissionais. E isso caracterizava a época com um desmoronamento social, devido

a permanência das práticas contraventoras.

Algumas vezes, quando a atividade do jogo do bicho se mostrava danosa, as

autoridades policiais e administrativas uniam-se aos discursos morais numa

tentativa de eliminá-la da sociedade. Como responsáveis pela boa administração,

disciplina e autoridade, tentavam aproximar o jogo à lei, para regrar os indivíduos.

Assim, a repressão era efetivada com apreensão de bicheiros e jogadores, como foi

o caso do Sr. José Alves Garcia que foi multado em 60$000 pelo subtendente do 2º

distrito, por ser encontrado vendendo o jogo do bicho.232 Além desse muitos outros,

divulgados na imprensa ou presentes nos processos-crimes, foram apreendidos

pelas autoridades policiais. Estas realizavam seu trabalho ora com fiscalizações e

ora com tolerância, mas sempre acompanhados pelo juiz que multava os envolvidos

no jogo do bicho:

231Gazetinha, 23 mai. 1898.

232Gazetinha, 23 mar. 1899.

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O Dr. Marinho Loureiro Chaves, juiz distrital, multou em 500$ cada um, os banqueiros do jogo dos bichos. Francisco Barboza Fusquine e Manoel Rodrigues de Lima”.233 “Foi preso o bicheiro Carlos Palma Dias em cujo poder foi encontrada uma carteira contendo as notas do jogo de hoje.234

Herschmann e Lerner mostram que isso não ocorria somente em Porto

Alegre. No Rio de Janeiro, a formação de uma cidade ‘ideal’ era mais conturbada.

Tentar eliminar as práticas contraventoras somente seria possível com o auxílio da

polícia que fazia severa repressão às prostitutas, mendigos ou quaisquer grupos de

marginais que vagassem pela cidade. E quando isso acontecia, a população reagia:

“Se o jogo era proibido nas ruas, ele ia a domicilio, nos botecos, onde fosse preciso

para que se realizasse. Se havia repressão por parte da polícia, os estudantes iam

às ruas, protestando.”235

Sandra Pesavento afirma que “em sucessivas batidas a polícia empenhou-se

em desmantelar, no final do século, as casas que abrigavam o jogo do bicho em

Porto Alegre e do encarceramento daqueles que se dedicavam a esse negócio”.236

Mas sempre sem muito sucesso, pois, a cada ano, os jornais anunciavam que a

polícia começara a atuar na perseguição à jogatina. Dessa forma, vê-se que o

trabalho era realizado, mas não solucionava o problema. Com o aumento da

população porto-alegrense, na transição do século, aumentou também os crimes e,

conseqüentemente, o trabalho da polícia, embora os resultados pouco apareciam.

Sempre que eram realizadas apreensões, a imprensa porto-alegrense

aplaudia o trabalho da polícia, divulgando na seção policial os indivíduos envolvidos

no jogo do bicho e publicando, com satisfação, textos que falavam da preocupação

moral das autoridades, para com a sociedade:

O movimento ativo que ora se opera, por parte das autoridades, na repressão do malfadado jogo do bicho, não enfraquecendo, não diminuindo sua energia, antes argumentando-a tanto quanto se tornar necessário, não poderá deixar de ser coroado dos mais benéficos efeitos para o povo.237

233A Federação, 01 jul. 1898.

234A Federação, 31 ago. 1898.

235Herschmann e Lerner, op. cit., p. 94

236Pesavento, op. cit., p.228.

237A Federação, 08 ago. 1899.

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A imprensa, ao mesmo tempo que, parabenizava o trabalho da polícia,

salientava a importância de continuar com a repressão do jogo do bicho, mas que

para isso, era preciso a autoridade andar dentro da lei. Uma vez que seria difícil

combater uma prática contraventora exercida pelas autoridades:

A nossa ativíssima polícia que todos os crimes descobre, pelo modo que descobriu o roubo da casa do Sr Felix Kessler, que descobriu os autores ou mandatários da agressão de que fomos vítimas – continua na sua faina criminosa, prendendo contra a lei escrita, cidadãos imputados como vendedores do jogo do bicho. (...) É preciso que a autoridade se mostre fiel executora e cumpridora da lei, para que tenha direito a punir o cidadão que se tornar infrator dessa mesma lei. Mas quando a autoridade é a primeira a infringir a lei, não tem direito de exigir que o cidadão seja fiel cumpridor dela.238

O sucesso do trabalho das autoridades, tanto administrativas quanto

policiais, dependeria de como estas se apresentavam à sociedade, enquanto

cidadãos. Nada adiantava exigir do povo o cumprimento da lei, se nem as

autoridades faziam isso. Às vezes, havia um certo exagero no elogio ao trabalho

das autoridades, dizendo que conseguiram, pelo menos aparentemente, extinguir

as práticas de jogos, diminuindo os problemas sociais:

Devido às enérgicas providências e censurada vigilância das autoridades, o jogo do bicho acha-se quase extinto, cessando, pelo menos às claras, as exibições e ajuntamentos que a condenável jogatina diariamente determinava nos lugares mais freqüentados d’esta capital239.

Analisando a imprensa e os documentos policiais240, observa-se que as

notícias eram temporárias: às vezes concentravam em incêndios, outras em

violência sexual, depois em vagabundagem e de repente, era a vez do jogo do

bicho aparecer numa seqüência. Isso leva a impressão de que, após a fiscalização

da polícia por vários dias consecutivos, a sociedade ficava longo tempo sem

praticá-lo, ou então, a polícia, por determinados momentos, priorizava outras

práticas contraventoras, deixando de lado a jogatina, isso se ela não abafava o jogo

do bicho com o registro de outros crimes. “À proporção que afrouxa no mercado a

cotação da rifa aumenta a sanha da polícia na perseguição do bicho”.241 Vê-se que

238 O Independente, 20 abr. 1902.

239A Federação, 01 set. 1898.

240Ver Gazetinha, Federação e os Processos-crimes entre os anos de 1898 à 1900, localizada no AHPA e APERS.

241Gazetinha, 27 mai. 1898.

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quando eram baixas as apostas na loteria, a polícia fiscalizava seu concorrente: o

jogo do bicho.

Muitas vezes a prática não conhecia a lei, devido a falta de registros policiais.

Os documentos analisados reduzem os números de apreensões e multas frente

àquelas apresentadas nos jornais.

Em setembro de 1899, ocorreu grande apreensão de indivíduos envolvidos

no jogo do bicho. A relação abaixo, recebida da polícia e publicada na imprensa,

mostra o trabalho desta e a seleção dos crimes, uma vez que, em nenhum outro

mês, teve semelhante ou superior número de apreensões:

Relação, recebida da polícia, dos indivíduos chamados à presença do delegado do 1º distrito tenente-coronel João Leite, uns como banqueiro, outros como vendedores de cartelas do jogo do bicho durante o mês de Setembro: Pedro Olivaes, Angelino Laporta, Jorge Valle, Prudêncio Mareant, Antônio da Costa Castanho, Elias Lippe, Francisco Gianonne, Antero Salgado, Salvador Oliva, Lauro dos Santos, Cesário Gairosa, Francisco Pedro de Vasconcelos, Augusto Palma Dias, Afonso Salatino, Salvador Maironi, José Antônio de Souza Guimarães, Salvador Sirangelo, Guilherme de Andrade Araújo, Serafim Agostinho de Vasconcelos, Leopoldino Ribeiro Alves, Aníbal Pereira Pinto, Antônio Cândido de Freitas, Estevão Pereira, Jorge Dias, Boaventura Maia, Alcides José da Costa, Manoel Vieira da Costa, Miguel Francisco, Joaquim Antônio Mourão Ennes, Henrique Adolph Schusty, José Bento da Siqueira, Miguel Juliano, Vicente Brasileiro Cidade, Octacílio Amarante, Laffayete Corrêa da Câmara, Justino Aniceto de Araújo, Manoel Gonçalves Moreira, Miguel Esparano, José Luiz Soares, João Lelis Cordeiro, Emigdio Ribeiro de Oliveira, Francisco José da Costa Júnior.242

Esta foi a maior apreensão de indivíduos envolvidos com o jogo do bicho

realizada no período pesquisado. Os indivíduos nomeados nessa lista não constam

na tabela apresentada nas páginas 25 a 27 desse trabalho, porque não se

encontram na documentação de polícia. Dentre os listados, dois reincidiram na

contravenção: Aníbal Pereira Pinto que havia praticado a jogatina em 1895; e

Manoel Vieira da Costa que em 1905 voltou a praticar o jogo do bicho. Quanto mais

proibido, mais prazeroso parecia ser o jogo do bicho, cuja prática ao invés de

diminuir, aumentava cada vez mais243.

E não era somente em Porto Alegre que as apreensões ocorriam. A

Federação relatou a condenação de um banqueiro que, por muito tempo, vinha

exercendo a prática em Pelotas. Estava no olho das autoridades que por fim,

242A Federação, 02 out. 1899.

243Acompanhando as notícias dos jornais Gazetinha, Federação e O Independente entre o período pesquisado, visualiza-se um gradativo aumento nos registros de apreensão de pessoas envolvidas com o jogo do bicho, bem como, de casas de tavolagem e de críticas destinadas à essa prática.

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reagiram: “o juiz da comarca condenou o sr. Rosauro Zambrano, como banqueiro

do jogo do bicho”244. Este era só um dos (banqueiros) responsáveis pela família de

banqueiros do Rio Grande do Sul e vinha, há muito tempo mantendo essa atividade.

A imprensa, a polícia e demais autoridades estavam de olho. Era necessário

encontrar o momento certo. Após várias tentativas fracassadas - que encorajavam

mais ainda os banqueiros e bicheiros a prosseguirem na atividade desmoralizadora,

zombando das autoridades – a polícia conseguiu dar “um susto’ naqueles que

viviam do jogo do bicho.

Elogios à administração pública, à Justiça e à polícia, pela atuação da lei

sobre as práticas danosas do jogo do bicho, eram constantes, principalmente no

ano de 1900: a sentença aí está, pois, condenando o bicho e dando a vitória às

dignas e ativas autoridades policiais desta cidade, cujos esforços e cujos generosos

intuitos hão de, um dia, merecer as bênçãos e os aplausos da sociedade bem

intencionada da nossa terra”245.

Se o jogo trazia tantos problemas, era necessário extingui-lo. Mas como fazer

isto? Buscava-se uma resposta a essa questão, já que todos sabiam da dificuldade

de extinguir totalmente os delitos sociais e esse, era só mais um. Fechar os olhos

para o problema era “exercer ação digna de acrimoniosa censura”246. A imprensa

constantemente publicava sobre o jogo do bicho em Porto Alegre e assim como

parabenizava as autoridades pelo efetivo trabalho, também criticava quando não

havia apreensões ou as práticas se proliferavam:

...infelizmente a polícia de Porto Alegre não se livra facilmente de uma censura em tais condições. Nesta capital, a jogatina desenvolve-se as escancarias. Há aqui infinidades de casas de jogo, antros de perdição de muita gente. Todos nós sabemos, o público em sua maioria sabe d’isto, e é admirável portanto, que a própria polícia não o saiba!247

A crítica não era em relação à má aplicação financeira por parte da

população, mas à polícia que deixava de agir quando deveria evitar a manutenção

das casas de jogos, por estas serem imorais e prejudicar a imagem da cidade.

Havia até quem se oferecia para divulgar os locais desse crime: “Quisesse a polícia

244A Federação, 3 dez. 1900.

245Idem.

246Ibidem.

247Ibidem.

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acabar com a jogatina, desprezando conseqüências mais ou menos importantes

que isto originasse, quisesse, e nós sem o mínimo de temor, com segurança

indicar-lhe-íamos o caminho a seguir”.248 Observa-se que a polícia não fiscalizava

porque não queria e porque não havia pressão por parte das autoridades

administrativas, ou seja, talvez as autoridades administrativas não estavam tão

preocupadas com os jogos de azar. Pergunta-se então: se as autoridades não

agiam, poderiam elas participar dessa prática? Resposta para isso, não se encontra

nesse trabalho. Mas que é questionador ver tantos elementos negativos em uma

prática e mesmo assim não ser extinta, é.

Analisando a imprensa, percebe-se que em alguns momentos a polícia até

amedrontava os jogadores com diligências, mas logo interrompia a fiscalização e

então, estes voltavam com mais força, abrindo um maior número de casas de jogos.

De acordo com a imprensa, a polícia também estava envolvida com essa

prática: fugindo ou punindo. Mas existiam aqueles que duvidavam de seu trabalho e

tinham razão. Os policiais também praticavam o jogo: “Foi detido e apresentado à

chefatura de polícia, por ter sido preso em flagrante, o cabo Felix Botica, por estar

vendendo cartelas do jogo dos bichos”.249

Para Roberto da Matta e Elena Soárez o jogo do bicho ganhou a legitimidade

social, impedindo o término da atividade, ou seja, até os policiais se tornaram presa

fácil dos banqueiros:

Com a perseguição ao jogo, o grande paradoxo foi a sua incondicional aprovação popular, o que lhe dava legitimidade social, contra uma elitista e mal intencionada proibição legal, que fazia com que o governo passasse a ser visto como um inimigo comum e tornava a polícia presa fácil dos banqueiros do jogo que a aliciavam.250

Os jornais publicavam que cada vez mais a população estava envolvida

nessa prática, dificultando o trabalho da justiça e fazendo-o existir para sempre. “O

bicho campeia impunemente no seio das grandes cidades, afrontando

atrevidamente a moral e a justiça porque está sagrado pelo público que o quer e

248Ibidem.

249A Federação, 16 mai. 1898.

250 Da Matta e Soárez, op.cit., p. 84

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não o abandonará”251 Essa previsão da existência do jogo do bicho se concretizou

na sociedade.

Dessa forma, percebe-se que quase todos sabiam os locais dessas práticas,

mas aqueles que mais deveriam saber, ou não sabiam ou faziam de conta que não:

“onde dia e noite se joga desbragadamente são conhecidas por Deus e todo mundo

e só o não são pela polícia que é quem tinha por dever saber-lhes o paradeiro”252. O

trabalho da polícia não era tão fácil assim. Não bastava saber onde os jogadores

estavam, era preciso ter provas de que os indivíduos apreendidos estavam

envolvidos com o jogo do bicho. Para Waldyr de Abreu “a lei processual penal exige

da polícia judiciária a observância de formalidades, tidas como necessárias à

apuração da verdade”.253 Apreender algum vendedor que trabalhava para

determinado bicheiro, sem nenhum material em posse, não era prova suficiente

para sua condenação, uma vez que este poderia mentir em Juízo, restando então, a

palavra de um ou dois detetives, principalmente se o acusado não estava em local

de jogo, vendendo nas vias públicas.

Acompanhando os processos crimes, observa-se que a apreensão ocorria

quase sempre, com a presença de cartelas em posse dos vendedores,

proprietários, ou jogadores. Todos os acusados tinham como sentença, o

pagamento de multa ao Estado, e a devolução do dinheiro das apostas da cartela,

às autoridades do processo, conforme mostra os trechos do processo-crime de

Joaquim Martins Flores:

Disse o mesmo inspetor [Arthur Corrêa] ter apreendido um caderno de contas e talões da rifa denominada jogo do bicho (...) Flores como vê-se do aludido auto que também assina confessa ser com efeito o dono do caderno apreendido e ocupa-se em vender cartelas do jogo de que se trata. (...) Julgo provado o alegado na denúncia para condenar como condeno o denunciado, Joaquim Martins Flores, nos termos do art. 367 do Código Penal da República, a entrar para os cofres do Estado com a multa de Trezentos e cinqüenta mil reis (350$000) e mais com a quantia de 142$300, valor da apreensão realizada. Paga o réu às custas.254

Neste caso, a defesa não tinha quase argumentos, uma vez que o vendedor

foi pego em posse do material e do dinheiro. Nem sempre o trabalho da polícia de

251Gazetinha,12 dez. 1898.

252Idem.

253 Abreu, op. cit., p. 122.

254 Processo-crime, maço 2, nº42, 1898. APERS

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fazer cumprir a lei, ocorria dessa forma. O processo-crime de Manoel Rodrigues de

Lima apresenta a esperteza do vendedor quando percebeu a presença das

autoridades:

O agente municipal Arnaldo Palma Dias apreendeu na casa de Manoel Rodrigues de Lima,à rua do comercio, nesta capital, em mão de um indivíduo proposto do mesmo Lima um pequeno caderno e talões da cartela do denominado jogo do bicho. Nesta ocasião, Lima tinha também em uma das mãos uma tabela com as gravuras e nomes dos bichos. Ao perceber-se que Palma Dias era um agente policial, a quem momentos antes confessara que era banqueiro, vendedor de cartelas desse jogo – subtraiu a referida tabela das vistas dos referidos agentes, indo esconder-se no compartimento da sua loja de fundos, onde o mesmo agente não era lícito entrar. (...) Manoel Rodrigues de Lima que tem sido tenaz em zombar da ignorância da autoridade pública, incorre-se nas penas do art. 367 do Código Penal.255

Assim vê-se que o esperto bicheiro quis se livrar da polícia, mas não

conseguiu, embora essa teve trabalho para apreendê-lo. Não eram apenas os

vendedores, mas principalmente os banqueiros, que deveriam ser apreendidos,

uma vez que, estes controlavam o jogo em toda a cidade. Tem-se outros casos de

indivíduos envolvidos com o jogo do bicho, que só pensavam no lucro e esqueciam

da lei. Como é o fato de um banqueiro que quis ser “esperto” vendendo cartelas do

jogo do bicho desde as primeiras horas do dia, até às quatros horas da tarde

(mesmo depois de ser conhecido o número do primeiro prêmio da loteria federal) e

se deu mal. Muitos jogadores aproveitaram a chegada do telegrama do Rio de

Janeiro (14 horas) para apostar na sorte grande. O porco que era o animal

vencedor, teve tantas apostas como até então nunca tivera. O banqueiro, vendo-se

em apuros, chamou a polícia para socorrê-lo. Se por um lado foi salvo de alguns

sopapos, por outro, acredita-se que houve uma grande multa a ser paga256. Dessa

forma:

...a polícia se quisesse ou pudesse ser enérgica e ativa como lhe cumpri, terminaria de vez com a maldita jogatina dos bichos. Hoje em dia não é difícil descobrir, uma por uma, todas as casas onde se vendem cautellas de tal jogo, e muito mais fácil ainda é encontrar-se os vendedores. Apresentam-se às claras, indicam-se da mesma forma os “banqueiros”, esses fazem alarde de seu negócio, e até já ouvimos um deles blasonar de vender bichos a autoridades policiais... Não descremos que o bicheiro falasse a verdade, e para isso influi muito em nosso espírito o fato do freguês de autoridades ainda não haver sido multado.257

255 Processo-crime, maço 2, nº46, 1898. APERS

256Ver Gazetinha, 22 jun. 1898.

257Idem.

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A imprensa fazia pressão para a extinção desse jogo, em nome do povo:

“Dizem todos brasileiros que a polícia, por capricho, há de prender os bicheiros,

para então, matar o bicho”258 A polícia, em alguns momentos, corria atrás dos

bicheiros, como em 1899 quando bateu em algumas casas de jogos, mas por

coincidência, nestas não se jogavam mais: “Já há dias a autoridade visita duas

casas de tavolagem na mesma rua e... não encontrou ninguém jogando.”259

Para a imprensa, a lei e o jogo tinham grandes afinidades: ambas eram

pouco fiscalizadas e auxiliavam no alastramento de práticas contraventoras nas

grandes cidades, como Porto Alegre, uma vez que lá era o centro da lei e da

autoridade rio-grandense, e se os bicheiros - donos de casas de jogos - não se

preocupavam com a ação da polícia, certamente ela estava envolvida no caso, ou

pelo menos, facilitava o desempenho dessa prática e a aquisição da fortuna por

parte dos banqueiros:

falar-se em autoridade e na Lei a esses ‘senhores banqueiros’ é o mesmo do que falar-se na mais insignificante cousa. Eles têm a resposta sempre pronta: a minha casa está garantida. Pela maneira franca e desassombrada por que falam, eles dão a entender que tem o consentimento da polícia. Entretanto, é ela, a polícia que está tolerando esses abusos.260

Como a polícia era quem fazia a ação, era ela também quem recebia as

críticas. Muitos cidadãos não entendiam a prática das autoridades policiais e

questionavam a lei que incumbiu a polícia para realizar tal procedimento:

“a polícia rasga o texto do código do Estado, prende os cidadãos como implicados no jogo do bicho, mete-os no calabouço da chefatura por 24 e mais horas, transfere-os para a casa de correção, tira-lhes o dinheiro que com eles encontra, sob pretexto de ser produto do jogo do bicho e solta-os quando muito bem aprove a autoridade (...) quem é o mais criminoso, o cidadão que vende o jogo do bicho autorizado por um acórdão do primeiro Tribunal Judiciário do Brasil ou a autoridade policial que desrespeita desse acórdão e legisla para si – e descrissionariamente considera crime o fato ou ato, que o mesmo Tribunal disse não ser crime?261

Pergunta-se então: porque quase sempre os pobres bicheiros eram presos e

dificilmente os senhores banqueiros? Algumas pessoas estavam sendo

privilegiadas nesse vício. Talvez o sossego fornecido aos banqueiros era devido a

258Gazetinha, 02 set 1898

259Gazetinha 17 jul. 1899.

260Gazetinha, 20 mar. 1899.

261O Independente, 30 mar. 1902.

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sua importância: encontrar um bom banqueiro não era tão fácil como um bom

bicheiro. Numa sociedade que pregava o trabalho como progresso da nação, mas

muitos permaneciam desempregados, não era difícil encontrar indivíduos que

quisessem sobreviver dessa atividade.

Parecia estranho na sede (capital) da autoridade e da lei, estar presente esse

fato. Até mesmo porque os jornais traziam colunas sobre o jogo do bicho: locais do

crime, os delinqüentes e até pediam providências. Mais estranho ainda, era ver a

aceitação dessa prática, por parte das autoridades. Nos locais dessa atividade

sabe-se que, as mais diversas camadas sociais, bem como crianças, participavam

do jogo. Aqueles considerados “vadios”, “inimigos do trabalho” acostumados a viver

com o suor alheio, eram amigos do jogo do bicho e não sentiam remorso em

crescer em pouco tempo, à custa de suas vítimas.

Quando a fiscalização apertava, o jogo do bicho não desaparecia e por meio

de “códigos”, como por exemplo, as cautelas de jogo (querendo dizer cartelas),

circulavam na sociedade, participando de versos, entre os mais velhos. Como

mostra o jornal A Gazetinha:

-Vem pra cá, compadre vem cá, Onde vai com tanta pressa?.. -Não posso passar por lá Adeus, que não caio nessa.

-Mas escuta eh! Meu casmurra, Dá-me três mil reis de cão, -Nem cão, nem gato, nem burro Eu não sou de ferro, não...

-Ao menos, espera um pouco Vamos juntos palestrar -Deixa esses ares de louco, Esta cara de espantar.

-Sim eu vou mas reparando, Pra não sofrer o desgosto -De ver meu cobre voando E ficar ainda no posto

-O bicho agora não vendes Não cai mais nesta esparela? -Digo que não, mas compreendes Que vendereis com cautela262

Ao analisar o trabalho da imprensa em abrir colunas para o caso dos bichos,

pedindo providências e apresentando os lugares do crime com os respectivos

delinquentes, torna-se curioso à indiferença dada pelas autoridades administrativas

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referente ao mesmo caso. Isso porque não há registros na imprensa do

posicionamento das autoridades administrativas porto-alegrenses sobre o jogo do

bicho na transição do século XIX para o XX.

Em 1898 havia grande discussão na imprensa sobre o processo do jogo do

bicho, dizendo:

... os acusados por envolvimento nesse jogo tem sido feitos em audiência com a forma dos processos de julgamento definitivo, de que reza o art. 47 do já citado regulamento quando sua forma deve ser a de sumário com julgamento pelo tribunal do júri; e por isso são nulos todos os processos de venda do bicho – pela incompetência do juiz e forma processual263.

No olhar da imprensa, o juiz não tinha competência para julgar processos

desse grau. Já para o judiciário, “todos os crimes que se enquadravam no art.12 §7

do código criminal em que a pena não excede a multa de 100$ ou prisão de seis

meses, com ou sem multa, devem ser processados e julgados pelos juízes de

paz”264. Dessa forma, os crimes que se enquadravam na categoria citada

escapavam da atribuição das autoridades, sendo julgados pelo júri. Por não haver

lei específica para o jogo do bicho e as autoridades exercerem múltiplas

interpretações das leis em que se enquadrava essa prática, o jogo do bicho foi

permanecendo na ilegalidade.

Pelo visto, para a Gazetinha, a polícia fiscalizava muito mal, ou seja, não

perseguia os donos das casas de jogos continuamente. De vez em quando,

mostrava trabalho, mas a maior parte do tempo, suspendia as investigações.

Mesmo havendo outros crimes importantes, era necessário perseguir a jogatina, até

mesmo extingui-la, o que não estava acontecendo. Dessa forma, aumentavam os

antros de perdição de muita gente que iniciava no jogo e depois seguia por outras

atividades maléficas. Para auxiliar no trabalho da polícia ou para criticar seu

trabalho, a Gazetinha informava ter conhecimento dos locais de jogos e até se

disponibilizava em auxiliar a polícia, caso essa quisesse.

Notícias sobre o jogo do bicho em outros Estados brasileiros eram

freqüentes, principalmente quando havia a ação da polícia. Nas entrelinhas, a

imprensa de Porto Alegre queria despertar a polícia local para um efetivo trabalho

262Gazetinha, 27 ago. 1898.

263Gazetinha, 28 jun. 1898.

264Idem.

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na repressão ao jogo. Um exemplo é o texto ‘O Bicho em São Paulo’265 quando

após apresentar o fato naquela cidade, chama a atenção da polícia de Porto Alegre,

não com o intuito de que esta abra mão de meios que não estejam em sua alçada,

mas que persiga os indivíduos desocupados que andam a bater às portas das

casas de famílias, oferecendo e insistindo para fazer o cruel jogo. E também

àqueles que fazem escândalos – à espera do telegrama do Rio de Janeiro,

comunicando o resultado do primeiro prêmio da loteria – dificultando o trânsito em

frente às casas de jogos, devido o grande número de indivíduos que aguardavam

os resultados. E salientava: “nesta capital ainda há devotos do bicho e lugares

sabido do povinho, cuja existência está visível no telegrama do Correio do Povo,

dando o número do bilhete premiado na loteria federal”266 Por outro lado, essa

notícia mostrava a necessidade de um saneamento moral na capital do Rio Grande

do Sul. Essa era uma forma de pedir a participação das autoridades contra a

imoralidade. Pelo visto, a polícia não fazia nem mesmo o que estava ao seu alcance

e por isso, havia tantas pessoas que pareciam ‘desocupadas’ – denominadas pela

Gazetinha de “povinho” e que conheciam os locais das casas de jogos –

perambulando nas ruas, atrás de compradores de cartelas do jogo do bicho.

Enquadrado como contravenção, o jogo do bicho circulou entre o não

cumprimento da lei, por parte da ação policial e a repressão policial, com prisão de

bicheiros e outros contraventores. Assim como os furtos, o jogo do bicho é uma

prática que nunca estivera perto da tolerância, por parte da lei e nem longe dos

olhos do povo que buscam as apostas. Já os policiais, delegados e detetives

encontravam dificuldades em realizar a efetiva repressão: ou por não querer fazê-la,

ou por não ter apoio superior para tal tarefa. A lei raramente funcionava na prática,

pois quando a polícia agia, as vítimas eram, na maioria, os vendedores de cartelas

ou apostadores e, mínimas vezes, os bicheiros267. Em ambos os casos, faziam-se

cumprir uma insignificante pena que não afastava outros viciados, uma vez que

casas de jogos e outros vendedores ou apostadores continuariam existindo.

Exemplo disso, é a existência do jogo do bicho até hoje na sociedade.

265Ver A Federação, 21 ago. 1901.

266A Federação, 21 ago. 1901.

267Ver Processos-crimes referente ao jogo do bicho de 1895 a 1902. APERGS.

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Associadas ou não à contravenção, era sempre a autoridade civil que sofria

as críticas pelo não cumprimento da lei268. Isso talvez não era “de graça”. Eram eles

os responsáveis pela prisão e quase sempre só efetuavam isso, mediante denuncia.

Analisando os relatórios de polícia e a imprensa percebe-se que havia um número

maior de vendedores e apostadores flagrados, do que de banqueiros. “A justiça e a

polícia abandonam os banqueiros, caindo porém sobre os vendedores de cartelas

do bicho, apreendendo-lhes os talões, conduzindo-os aos postos donde sofrerão

prisões correcionais e multas pesadas, em dobro na reincidência”269. Isso sem falar

se a prisão era mesmo do esperto vendedor de cartelas, ou se outros indivíduos

eram autuados no lugar destes, por estarem nos ambientes de jogos.

Visualiza-se que o fato se esgotava, a partir do registro policial, no momento

da autuação, seguindo apenas a sentença, sem a busca de novos parceiros dessa

atividade. Certamente, essa frágil forma de explicitar a lei abria caminho para novos

contraventores.

Ninguém podia determinar o descumprimento da lei, pois ninguém era dono

dela, e neste caso, tornava-se prevaricador270 aquele que isso fizesse. Também não

podia fornecer vantagens a terceiros para o descumprimento da lei, sendo isso

considerado propina, crime grave. A polícia tinha como função auxiliar na correção

da sociedade, frente às práticas contraventoras, prendendo os infratores. Para que

isso ocorresse, era necessário que Juiz, chefe de Polícia e demais responsáveis

pela extinção de atividades contraventoras, agissem em conjunto.

Percebe-se que a polícia realizava flagrantes desses antros de perdição, mas

não o suficiente para eliminar essa prática, uma vez que não possuía recursos

pessoais e materiais para tal tarefa. Prender todos os envolvidos com o jogo do

bicho, num momento em que outras atividades danosas também requeriam

atenção, seria muito difícil. Espaços físicos para abrigar os indivíduos apreendidos

nesse e em outros procedimentos judiciais, não existiam. Talvez por isso, essa

atividade era considerada contraventora com pena de prisão simples e multa.

268Ver as publicações nos jornais Gazetinha, A Federação e O Independente entre os anos de 1897 a 1903, que periodicamente atacavam os responsáveis pelo controle de práticas contraventoras.

269Gazetinha, 28 jun. 1898.

270Entende-se por prevaricação o crime realizado por funcionário público, que deixa de praticar indebitamente ou pratica contra a disposição legal expressa para satisfazer interesse ou sentimento nacional. Ver Abreu, op.cit.

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Outros crimes maiores preocupavam mais os responsáveis pela ordem na

sociedade.

De acordo com o discurso da Gazetinha, tolerar a prática do jogo do bicho

era procedimento vergonhoso à nação, contrário à moral, às leis de contravenção,

ao lema da administração pública e não trazia vantagem a nenhum segmento.

Extingui-la, mesmo com providências policiais, era impossível. Enquanto isso, o

jogo do bicho ganhava espaço na capital porto-alegrense.

A lei penal era competência exclusiva da União. Portanto, nenhuma

Assembléia Legislativa Estadual ou Câmara Municipal poderia regulamentar

qualquer espécie de jogos de azar.

Para a lei, a exploração do jogo do bicho era mera contravenção penal. Com

baixas penalidades, a ilicitude do negócio era mais vantajosa para os envolvidos

com a prática, do que sua legalização. Na clandestinidade, o jogo permaneceu

longe dos tributos. Com alta lucratividade, nem os que trabalhavam com essa

prática, nem aqueles que depositavam a “fezinha” no jogo do bicho queriam se ver

longe dele. Portanto, o jogo do bicho burlava a lei e crescia na sociedade, chegando

até nos representantes políticos, conforme se apresenta a seguir.

3.2- O Contágio da Imoralidade: o jogo do bicho no quadro político

Entre os anos de 1893 a 1903, a cidade de Porto Alegre foi impulsionada

pelo crescimento do mercado consumidor, uma vez que sua população aumentara,

assim como nas maiores cidades do país. Sua configuração passou de capital de

um Estado de economia agrária para a fase inicial de uma economia industrial,

sendo um atrativo para as migrações oriundas das áreas coloniais do Estado.

Agentes sociais (médicos, engenheiros, e educadores) auxiliavam a produção de

bens e saberes que justificavam a intervenção do Estado na vida pública e na vida

privada. A medicina formava novos valores na sociedade com seus discursos

higienistas e sanitaristas. O jornal A Federação271 enfocou fortemente o estado

sanitário, principalmente na capital do Rio Grande do Sul, em que eram exercidas

visitas nas casas, para prevenir a peste bubônica.

271Ver A Federação, jan. a jun. 1902.

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Beatriz Weber fez um estudo sobre a relação da sociedade sã272 com a

sociedade desenvolvida e apresentou Porto Alegre no discurso positivista: “as

condições para o estabelecimento de fábricas, de qualquer natureza, na cidade,

ficava sujeita a exame para conhecer as condições higiênicas mesmo no interior do

terreno”.273 Acreditava-se que o progresso tão almejado seria resultado da

combinação da saúde física com a moral. Portanto, os indivíduos das prisões não

tinham boa conduta devido ao espaço de superlotação e falta de higienização que

viviam, e os indivíduos que queriam vender sua força de trabalho deveriam

apresentar um comportamento higienizado, moralizado e ordeiro. Segundo

Margareth Rago274, o meio era o principal responsável pela saúde do corpo social e,

ao mesmo tempo, de cada indivíduo. Para tanto, era necessário criar condições que

favoreciam a circulação dos fluídos, como o ar e a água, evitando o surgimento de

doenças, formando personalidades sadias.

Em seu trabalho, Beatriz Weber explica como eram as habitações de Porto

Alegre e a presença da sociedade civil, auxiliando a sociedade política, na

fiscalização e na limpeza da cidade, principalmente nos momentos de epidemias.

Afinal, uma boa imagem era fundamental. E nada melhor do que organizar a cidade

com normas para o estabelecimento de residências no centro da cidade – cortiços à

distância. Nem sempre todo esse trabalho tinha sucesso. A rua Coronel Fernando

Machado, que parecia socialmente modesta, no final do século XIX, possuía uma

área de prostituição.275 Por mais que houvesse fiscalização e informação para a

organização dos espaços, algumas vias instalavam atividades ilícitas.

Juntamente com o discurso sanitarista, a elite queria conscientizar as

pessoas para que não se entregassem à prostituição e jogos – elementos nocivos à

sociedade disciplinada, que ameaçavam o tipo de cidadania presente na

Constituição. Por outro lado, esses elementos exerciam grande força de atração

sobre a população urbana.

272 Sociedade sã é uma sociedade “sem doenças, sem crimes, sem revoltas” . Weber, op. cit., p.88.

273Idem, p. 106.

274Ver Rago, op.cit., p. 163-167.

275Ver Weber, op. cit, p. 86-108.

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Ao mesmo tempo que os administradores buscavam tentativas de educar o

homem ao trabalho, disciplina e família, também passaram a organizar os espaços,

tolerando atividades lúdicas, como jogos de azar, principalmente aqueles dirigidos à

classe dominante, como os clubes noturnos. E não era só o Rio de Janeiro que

possuía esses espaços organizados para o lazer da elite, pois no Rio Grande do Sul

isso também existia. Exemplo disso era Porto Alegre, já em fins do século XIX, com

vários espaços para a elite frequentar: na Rua da Olaria276, situava-se o Club Sport

com corridas de cavalos, rinhas de galos e outros divertimentos; na rua Sete de

Setembro funcionava o Club Júlio de Castilhos: uma casa de dois andares, que

tinha, no primeiro andar, salas para sessões, jogos diversos, leituras e palestras, e

no segundo, restaurante, além do pátio, no térreo, em que eram praticado jogos de

bola e tiro ao alvo, “tudo quanto se pode desejar de comodidade, bom gosto e

conforto em uma casa desse gênero, de modo a tornar-se um centro atraente,

seleto e digno em tudo, da nossa culta sociedade” 277. Também existia o Café Pátria

localizado na rua dos Andradas, “onde se reuniam, habitualmente, diversas pessoas

para jogar”278 E assim, outras casas de lazer noturno, com práticas contraventoras

estavam espalhadas em Porto Alegre, a fim de atender o lazer da elite.

As autoridades administrativas tentavam diversas formas de orientação à

população sobre o perigo das atividades contraventoras, como o jogo do bicho: uma

delas era os discursos moralizantes presente na imprensa; a outra forma era a

organização dos espaços de lazer, separando o publico do privado; e por fim

contavam com o auxílio policial.

Considerados os jogos de azar como algo perigoso, juntamente com outras

práticas contraventoras, a imprensa atacava a população mais pobre, com

discursos moralizantes, para que estes valorizassem a família, o trabalho e a

disciplina, ao invés dos jogos. Enquanto isso, outros jogavam: “tolerância junto às

camadas dominantes. A elas era permitido que jogassem, mesmo os jogos que

poderiam ser classificados como de azar, como no caso, aqueles que ocorriam nos

276Ver O Independente, 10 set. 1903.

277A Federação, 26 jun. 1901.

278Processos-Crimes, nº 1843, maço 76, 06 jun. 1895. APERGS.

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cassinos e prados.”279 Essa ‘tolerância’ dos jogos de azar para com as camadas

dominantes dificultava a correção de grande parte da população frente às práticas

contraventoras.

Dessa forma, percebe-se que a lei existia e as autoridades, às vezes, se

esforçavam na fiscalização do jogo do bicho. Mas os interesses políticos estavam

além da ‘limpeza social’, até porque, certamente, alguém ganhava com isso.

Analisando a imprensa da época, torna-se possível identificar uma relação amigável

entre os responsáveis pelas concessionárias (Marsicano e Laportta) e os

administradores públicos. Exemplo disso é o processo-crime de Alberto Bordone.

Um comerciante que baseado no resultado errado da loteria nos jornais, tentou

receber o prêmio do concessionário João Marsicano. Esse, inicialmente, se negou a

pagar o prêmio. Logo, Alberto Bordone procurou a justiça requerendo o prêmio,

divulgou na imprensa o caso ocorrido, e distribuiu o seguinte panfleto pela cidade:

Atenção Como explicar-se este caso? Tenho em meu poder um bilhete da loteria do Estado extraída no dia 19 de novembro. Este bilhete tem o número 23251 e que, segundo as noticias publicadas pelos jornais Federação, Correio do Povo, Jornal do Comércio, Petit Journal e Gazeta do Comércio (noticias cujos apontamentos certamente foram dados ou pelo Sr. Marsicano ou por algum de seus empregados) coube o prêmio de 200$000. No entanto o Sr. Marsicano nega a pagar o aludido prêmio, socorrendo-se da lista que mandou imprimir e onde não consta o número por ele mesmo escrito na nota que mandou às diversas redações. Si essas notas continham um erro, se esse erro foi repetido cinco vezes e publicado por cinco jornais por que motivo e em tempo, o Sr. Marsicano, não pediu retificação das noticias? Não o fez, e só agora porque quero cobrar o prêmio que me coube e sua senhoria não o quer pagar, foi que descobriu que os jornais publicaram o número errado? Na vitrine da minha casa à rua Marechal Floriano estão em exposição o bilhete em questão e os cinco jornais que deram a noticia. É esta a verdade Sr. Marsicano e contra ela não valem vossos subterfúgios. Porto alegre 11 de Dezembro de 1902 ALBERTO BORNONE280

Após a circulação deste, pela cidade, a polícia encaminhou o processo,

restando ao Sr. Marsicano, pagar o referido prêmio. Alberto Bordone, ainda não

satisfeito com o incômodo, lançou novo panfleto à sociedade:

Ao Público Graças aos cinco jornais que me deram razão e que são os seguintes: Federação, Correio do Povo, Jornal do Comercio, Petit Journal e Gazeta do

279Herschmann e Lerner, op. cit. p.65.

280Processo-crime, maço4, nº 90, 1902. APERGS.

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Comércio dos dias 19 e 20 de novembro próximo findo, o S. João Marsicano me pagou o premio de 200$000 reis que coube como possuidor bilhete do número 23251. Tive porém que espalhar 3000 boletins, pagar consultas a advogados e perder cerca de 12 dias de trabalho, ficando assim prejudicado em 500$00 reis, mais ou menos. Como se vê a loteria do Marsicano não há nada a ganhar e sim tudo a perder. ALBERTO BORDONE

Mas deste panfleto teve uma surpresa nada agradável. Foi condenado, de

acordo com o art. 319 §2º do Código Penal da República, por ofender a reputação e

o crédito do Sr. Marsicano, espalhando os bilhetes para mais de quinze pessoas.281

Observa-se que dificilmente os donos de concessionárias eram autuados

pela polícia. A concessionária do Sr. João Marsicano era quem recebia o resultado

da loteria federal do Rio de Janeiro e repassava à imprensa de Porto Alegre. Se

estas divulgaram o resultado errado, obviamente João Marsicano deveria ser

condenado. Mas isso só ocorreu com intenso trabalho do apostador de exposição

da casa de apostas, ficando o mesmo no final, sem muito lucro. Com tanta

dificuldade para a solução do caso, leva-nos a pensar que João Marsicano tinha

aprovação de autoridades administrativas e ou policiais. Não havia muita segurança

nas apostas e divulgação dos resultados, o interesse mesmo se concentrava no

lucro que o Estado adquiria. Analisando este caso, não pode-se dizer que as

autoridades não fiscalizavam, uma vez que, notícias como a ação do juiz distrital na

multa de banqueiros, aparecia em alguns momentos na imprensa, não só com o

objetivo de dizer que essa prática existia na sociedade, mas que os responsáveis

pela moralidade estavam agindo – cumprindo seu papel.282 Também alertava a

sociedade sobre a falta de confiabilidade do jogo do bicho.

...o cidadão Umpierre, negociante, teve lá seu palpite e deu-lhe para jogar no tigre. Foi às casas de José Maria Mauro, barbearia situada á rua dos Andradas, e Felippe Lapporta, estabelecido à rua do Comercio, e jogou no referido bicho, 20$000, na primeira agencia e 25$000 na segunda. Ganhou o Tigre, e aqui começa a ladroeira. Os dois citados vendedores de bilhetes negaram-se a pagar os respectivos prêmios. O sr Umpierre [...] foi queixar-se à polícia administrativa [...]. O sr. Francisco Louzada [chefe de polícia] deu nova busca nas aludidas agências, onde apreendeu talões, etc... que remeteu com os bilhetes depositados...”283

281Idem.

282A Federação, 01 jul. 1898.

283A Federação, 10 dez. 1897.

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Ao mesmo tempo que favorecia os jogadores, apresentando mais um local

em que o jogo era exercido, enfraquecia a credibilidade, demonstrando que nem

sempre o sonho da vitória, tornava-se real. Precisava ter sorte dupla: acertar o

bicho no jogo e receber o prêmio. Certamente, a um viciado, pouco servia a

segunda referência, uma vez que o sonho da sorte parecia ser mais real do que o

engano e também porque poucos eram os casos em que o jogador tivesse tão alto

prejuízo.

Quando o resultado saía errado, aí sim, a Federação atacava

disfarçadamente. Pouco depois do citado acima, outro fato revelou que a prática do

jogo do bicho não era tão segura:

O jornal do bicho neutro pediu desculpas aos povos do referido bicho ter virado cachorro, de urso que era. Confessou tudo, Tim-tim por Tim-tim. O culpado foi o Martim Gravata, o correspondente do Rio. Está regulando. Se alguém duvidar levante o dedo para o ar. O órgão do bicho atribuía o fato a um equívoco do correspondente, ou a qualquer outra circunstancia. Nós também. Declara que providenciou mediamente para que o caso não se reproduza. Franqueza no caso.284

O jornal mostrava o perigo no erro cometido, alertando aos fregueses que o

jogo não era tão confiável. Satirizava o jogo do bicho quando informava que

‘francamente’ haviam se equivocado no resultado, e com isso evitavam conquistar

mais fregueses que viam, nessa atividade, a preocupação em ser um jogo incerto

que poderia lesar os jogadores.

Embora os lesados não tinham nenhum órgão para recorrer quando ocorriam

possíveis erros - já que a prática era proibida no país - ela existia com grande

fidelidade, ou seja, mesmo com os bicheiros ladrões, como o caso citado acima,

existia um grande esclarecimento e fiscalização por parte dos amantes do jogo do

bicho. Não queriam sujar a imagem deste jogo, já que estava ‘dando os primeiros

passos’ em Porto Alegre, com grande sucesso.

Enquanto o jogo do bicho estava recheado de ladroagem, os defensores das

loterias aproveitavam para lucrar. Publicavam nos jornais que a loteria é uma

prática legal e honesta, além de auxiliar estabelecimentos com a ação beneficente

de prestação de serviços à sociedade e dessa forma, honrando com os sentimentos

filantrópicos do Rio Grande285.

284A Federação, 22 ago. 1898.

285Ver A Federação, 29 ago. 1898.

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Já outras pessoas defendiam o jogo do bicho: ou ganhavam muito com ele,

ou queriam se defender dos impostos municipais, atribuindo a este jogo (que não

possui imposto), a vingança. Na verdade, aqueles que apostavam e não ganhavam,

estavam gastando tanto quanto pagar impostos, só que não destinado aos cofres

públicos e sim, a particulares. O imposto do governo era o lucro dos banqueiros.

“Que a cousa vai rendendo enquanto a raia miúda está pagando a mula

roubada”.286

Para a imprensa, qualquer prática de jogos de azar, até mesmo as loterias do

governo, causavam desgraças, tanto ao indivíduo, quanto à sua família, que

passavam horas e horas nessa atividade, esbanjando o dinheiro que poderia ter

outro destino e o tempo em que poderia ganhar dinheiro. Havia a tentativa de inserir

essa mentalidade na população, uma vez que com a inserção do capitalismo, o

tempo tornou-se sinônimo de dinheiro, e quanto mais se produzia, mais se ganhava.

Mas a sociedade não tinha esse mesmo ideal, até porque não havia trabalho para

todos. Para muitos indivíduos, a melhor forma de ganhar dinheiro, era o jogo. E

para outros o pouco que se ganhava investia no jogo com a esperança de ascensão

social, uma vez que, essa prática fazia parte da cultura popular e mesmo os pobres

jogavam.

Os administradores públicos utilizavam um discurso pautado na preocupação

com as pessoas menos favorecidas, economicamente, para extinguir o jogo:

“muitas vezes o pobre deixa de comprar mais um pão reclamado por seus filhos e

guarda o exíguo dinheiro para esse jogo infame”287 Esta era uma forma de

encontrar elementos que justificassem a condenação da prática. Real preocupação

com os pobres não havia, pelo menos no que diz respeito em querer auxiliá-los com

uma melhor condição financeira, pois nada faziam para isso. A preocupação estava

centralizada no interesse de extinguir o jogo do bicho e evitar que as pessoas de

baixa renda estragassem a imagem social do país com a ociosidade, os crimes, e

as práticas ilícitas de trabalho.

O fato era que em Porto Alegre os bicheiros andavam livremente, sem se

importar com as autoridades: “O bicheiro atual perdeu o ar orgulhoso de outrora; o

286Idem.

287Gazetinha, 06 abr. 1899.

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seu campo favorito, onde ele perlustra livremente, sem que a importuna autoridade

lhe vá pedir contas dos seus atos”288.

Agir completamente para a extinção do jogo do bicho era difícil. O próprio

Estado rio-grandense fornecia a esse jogo um duplo sentido: para a lei era proibido,

e praticá-lo poderia levar à prisão; mas para o Estado era legal, eis que organizava

loterias estaduais, além de aceitar a federal e as estrangeiras (Paraguai, Argentina

e Montevidéo). Se o Estado visava lucro com a exploração dos jogos, então porque

não ter mais uma renda, legalizando o jogo do bicho? Herschmann e Lerner

discutem o ataque do Estado carioca ao jogo do bicho.

...ao combater o bicho acabava por defender também os rendimentos de sua concessionária que lhe pagava tributos sobre as vendas de poules, por outro, havia uma rede de corrupção que aos poucos se difundia e que favorecia desde os bicheiros, até os policiais e membros do governo” 289

Em Porto Alegre, essa era a relação entre jogo do bicho, polícia e governo.

Acompanhando a imprensa, percebe fortes ataques lançados ao Estado, devido a

existência de práticas contraventoras. Por outro lado, em nenhum momento, o jogo

do bicho chegou nos discursos de Parlamentares ou de Vereadores para pedir

licença e entrar na sociedade ou mesmo para ser demitido. E isso é curioso! Com o

alvoroço da Imprensa, a Assembléia e a Câmara optaram pelo silêncio. Questiona-

se: o bicho se escondeu dos representantes políticos da sociedade ocupando

apenas os cantos da cidade, ou estes se escondiam do bicho no momento de criar a

lei?

A presença de políticos envolvidos no jogo do bicho inexiste explicitamente.

Mas ‘escavando’ um pouco, visualiza-se foscamente, autoridades porto-alegrenses

que fraudavam resultados da loteria para proveito próprio. Foi o caso de

funcionários da Estação Telegráfica de Cachoeira, como o Senhor Raul Abbott,

chefe da Estação Senhor Sommer, e outros que antes de descobrirem a fraude

foram removidos para a Estação de Vitória (ES) e de Goiás (conhecida como

“Cucuhy” do pessoal telegráfico290). Difícil explicar a expressão grifada, mas

entende-se pela análise da notícia, ser uma espécie de esconderijo daqueles que

praticavam fraudes nos telegramas. Com apuração de sindicância descobriram os

288Gazetinha, 06 abr. 1899.

289Herschmann e Lerner, op. cit. p. 67.

290Ver A Federação, 18 mai. 1898.

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falsários e, por sua vez, já estavam no tal castigo ‘feroz’: apenas um refúgio em

outra cidade. Algo tão simples para tamanha prática: além de jogar, falsificar

bilhetes. 291

E não eram só estes que jogavam. No meio do caso citado acima, também

estava o denominado ‘nosso velho’ que era feitor de linha, mas ocupava o cargo de

chefe de gabinete (com o nome de Rodolfo). Esse aparece em diversos momentos

no ‘flash’ da imprensa: “o nosso velho mandou servir chope e depois,

encarreirando-se a palestra para a bicharia, sem alusão aos percevejos, verificou-se

que eles estavam nos seguintes palpites: o Affasta, no porco; o nosso velho, no

gato; e o trocista , no ganso”.292

Assim, a conhecida “tropa engrossadora”293 (autoridades) jogava as

escancarias, sem medo nenhum. A imprensa listava-os com seus apelidos:

O Affasta tem suas predileções pelo gato, pelo porco e pelo ganso. Mas o Caipora porque varia muito no palpite, que ora está num, ora noutro daqueles bichinhos. Assim é que seu Câmara pisca-pisca ontem esteve no gato, hoje está no porco e amanhã, com certeza, ficará no ganso. O favorito do Moysés é o lobo por ser este animal de mais instinto. O Pedruca atira-se desesperadamente na cobra... sem receio do veneno do réptil. O Papa-ranho é todo jumento. O Maribondo arrisca na hiena porque na repartição é conhecido pelo homem fera. O Parroá tem suas simpatias pelo boi, pro modo, diz ele, do apelido do mano. Não joga porém porque é banqueiro e ... um unha de fome dizemos nós.294

Estes, por volta de duas horas da tarde, abandonavam o serviço e se

agrupavam na porta da agência, discutindo palpites, até a chegada do bicheiro.

Estavam todos protegidos, juntamente com o banqueiro que era irmão de um dos

apostadores. Autoridade (judiciária) julgar autoridade (administrativa) seria meio

difícil, ainda mais contando com a ‘sorte’. Por isso não tinham medo do ‘veneno da

cobra’. Ironicamente, respondiam à imprensa quando questionavam sobre a real

execução da ‘fezinha’: “vão tentar fortuna no rato porque este bichinho é da família

dos roedores.”295 É, bons roedores certamente eram, se não na sorte, mas na

291Idem.

292A Federação, 25 abr. 1898.

293Os jornais A Federação, Gazetinha e O Independente constantemente apresentavam metáforas, referindo-se às autoridades judiciárias e administrativas. Certamente, o medo de sofrer pressão fazia com que a imprensa utilizasse essa linguagem.

294A Federação, 20 mai. 1898

295Idem.

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administração, já que deixavam o trabalho na repartição para entrar na

contravenção. Os ‘doutores da lei’ auxiliavam na criação de um ‘país de bichos’.

Por meio desses códigos (apelidos), não foi possível identificar a exata

relação dos jogadores com as autoridades políticas e judiciárias, mas sabe-se, pela

exposição da imprensa, que todos tinham ligação com o governo, uma vez que,

desde o apostador até o dono da banca estavam ‘protegidos’ para a realização de

práticas contraventoras, como o jogo do bicho. Também a expressão ‘repartição’

pode ser referida aos espaços públicos, já que muitas pessoas o denominam

‘repartições públicas’, e não usam a mesma expressão para o contrário, ‘repartições

particulares’.

Observando os jornais, questiona-se porque a sociedade de Porto Alegre

(que era capital), seguida de Pelotas, desenvolvia tal atividade, sem a extinção por

parte da polícia e outras autoridades, enquanto em outras cidades, como o caso de

Rio Grande, essa prática já tinha sido extinta há tempo, pelo menos visivelmente, já

que as bancas estavam às escondidas.296 Pensar que os ‘modernos’ exerciam essa

prática, parecia impossível para os críticos da imprensa, que então justificavam a

partir do ‘compadresco’, em que todos tinham algo em comum - polícia, autoridades

e bicheiros:

O jogo, condenado hoje pela geração moderna e considerado como um abuso inqualificável e como a maior afronta à sociedade, entrou, a contra-gosto nosso, para a galeria do compadresco. (...) Porque razão a autoridade não se sente cheia de valor e de ânimo para a repressão desse abuso sem nome? Alguma coisa há de superior...e não estará mui longe o dia em que os arrojados roleteiros estabeleçam, bem junto a um dos postos policiais, uma banca de roleta297

Para a imprensa, os jogos eram praticados não apenas pelas classes mais

populares. Se estas realizavam pequenas apostas diárias e acompanhavam o

resultado no jornal, outras misturavam os jogos com política partidária, fazendo das

eleições, um novo jogo. O vício andava até pelo Congresso, como se pode ver no

texto ‘Novo Jogo...Presidencial’ publicado pela Gazetinha que apresentava a

semelhança dos jogos de azar com os candidatos à presidência da República:

O banqueiro organizou o jogo e propõe-se a pagar aos apostadores triunfantes o dividendo que lhe couber, deduzidos 20% do movimento total para si. O pagamento será feito no dia em que forem oficialmente proclamados os futuros presidente e vice-presidente pelo congresso Nacional.

296Ver Gazetinha, 09 ago. 1898, e A Federação 03 dez 1900.

297Gazetinha, 09 ago. 1898.

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As poules custam 10$ e os demais jogos são francos. Se não houver pleito entre os partidos, serão considerados vencedores os dois candidatos do governo e neste caso o pagamento será feito no dia seguinte ao da eleição. O jogo já começou, organizando o banqueiro a seguinte lista de competidores para ambos os cargos: Murtinho Julio de Castilhos Quintino Bocayuva Prudente de Morais Luiz Vianna Rodrigues Alves Silviano Brandão Paes de Carvalho Severino Vieira

Além destes nomes, o banqueiro oferece-se para vender em quaisquer outros, de palpite do jogador. São por ora favoritos para a presidência: Murtinho e Quintino Bocayuva e para vice presidência: Severino Vieira e Silviano Brandão. O banqueiro aconselha como bons azares: Julio de Castilhos, Prudente de Morais e Rodrigues Alves para a presidência, e Paes de Carvalho para vice. A venda de poules ficará encerrada no dia 29 de junho do corrente ano. É escusado dizer que o jogo tem tido, extraordinária animação, calando-se já em mais de dez contos de réis o total das apostas.298

Este fato citado é uma mostra da influência dos jogos na sociedade, inclusive

em momentos eleitorais. Cada vez mais o jogo ganhava espaço na sociedade. A

contaminação dessa prática já se espalhava até pelo Congresso, que possuía

novos personagens para a realização das apostas. Enquanto uns eram sinônimo de

sorte, outros estavam mais próximos do azar, por não apresentarem sucesso

eleitoral com possibilidade de vitória. Para a imprensa, a população estava viciada

no jogo, não importando quem fosse o personagem e as apostas rendiam altos

lucros.

A Gazetinha atacava outros meios de informação, principalmente ligados ao

governo, que quase não apresentavam artigos doutrinários mostrando ao povo o

erro dessa prática. Assim, cabia à imprensa divulgar e criticar a atividade do jogo do

bicho.299 Talvez isso auxiliava para o alastramento da atividade: lei constitucional

burlada, polícia impotente e imprensa omitida auxiliavam a desmoralização da

capital do Rio Grande do Sul.

Outra critica presente na imprensa estava relacionada à administração do

país. Apresentava-se a possibilidade de regulamentação do jogo através da criação

de impostos, já que isso era comum no Brasil: “nesta terra de tudo se impostos,

porque não se há de criar um para aquele que atualmente tomou proporções

298A Federação, 04 abr. 1901.

299Gazetinha, 09 ago. 1898.

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espantosas tornando-se uma fonte de renda para certas pessoas que se empregam

nesse negócio ou como banqueiro ou como agenciadores.”300 E dessa forma, talvez

fosse possível extinguir o jogo com um decreto do governo, uma vez que mesmo

proibido, era praticado clandestinamente.

A Federação defendia nas entrelinhas o governo: queria extinguir o jogo do

bicho para favorecer as loterias. Não admitia que outros indivíduos estivessem

enriquecendo com aquilo que poderia pertencer ao Estado, mesmo sabendo que o

bicho era da família das loterias. Pensar na manutenção das loterias e na

perseguição ao bicho, por parte do governo, era muito estranho, sendo que o

primeiro tinha lei que o proibia e o segundo nada possuía de específico.

Não havia menção, por parte dos banqueiros, sobre a legalização do jogo do

bicho ou possível cobrança de impostos. Já que no Brasil a lei era fraca, melhor

obter altos lucros na clandestinidade do que legalizar e reduzir o ‘lucro’. Já para os

jogadores pouco importava se os banqueiros roubavam do governo, o que eles

queriam mesmo, era realizar a ‘fezinha no bicho’.

O jogo do bicho era uma contravenção. Portanto, insistir em sua sustentação

era ferir a lei e atentar contra os interesses que a autoridade tem, por dever,

defender. Os jornais alertavam os bicheiros do risco que estavam correndo em

manter essa prática, para que, caso a polícia fosse agir, não deveriam levar por

surpresa ou reclamar do ocorrido. Isso tudo porque, os banqueiros e vendedores do

jogo do bicho desmoralizavam a sociedade, zombavam da lei e iludiam as

autoridades, faltando com os compromissos. Era preciso fomentar as advertências

sobre o jogo, e nada melhor do que um pronunciamento nos tribunais judiciários,

lembrando a situação em que se encontravam os viciosos.

Nesse contexto, a sociedade não caminhava de acordo com os ideais das

elites, até porque estas cometiam grande falha entre o discurso e a prática.

Frente ao universo político de construção de um Estado burguês ainda em

fins do século XIX, no Rio Grande do Sul, outras práticas infiltravam-se pela

sociedade, e entre elas, estava o jogo do bicho. Se por um lado as autoridades

políticas se preocupavam na formação de Porto Alegre, como capital, por outro,

havia grandes ‘brechas’ administrativas e judiciárias que possibilitavam a inserção

de práticas contraventoras na sociedade: fragilidade da lei, falta de fiscalização,

300A Federação, 21 dez. 1901.

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envolvimento de autoridades, pena leve e dualidade de discurso, os quais

auxiliaram na manutenção do jogo do bicho, não só na transição do século XIX para

o XX, como também até hoje.

Dessa forma, percebe-se que a expansão do jogo do bicho em Porto Alegre

não ocorreu, exclusivamente, como tentativa de sobrevivência dos pobres na

transição do século XIX para o XX. Outros elementos, como a ausência de uma

política governamental para a extinção dos jogos e a própria sociedade desafiando

a lei, auxiliaram na abertura de campo para o jogo. Legalizado ou proibido, o certo é

que essa prática conquistou a população e ninguém mais o conseguiu extinguir. Lei,

autoridades políticas e administrativas se uniram, mas não venceram o jogo do

bicho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Marcada pela instabilidade política, econômica e social, a transição do

século XIX para XX no Brasil, foi um período de tentativa de instalação do lema

‘Ordem e Progresso’ orientado pelo positivismo de Augusto Comte. As

transformações realizadas para a construção de uma república civilizada, foram

perceptíveis nos centros urbanos que estabeleciam os padrões de convívio social.

O Rio Grande do Sul, nesse período, compartilhou das mesmas práticas

contraventoras nacionais. Inclusive o jogo do bicho, que surgiu no Rio de Janeiro,

em pouco tempo ‘fixou raízes’ em Porto Alegre, tornando-se até pauta de muitos

discursos. Logo no início da sua chegada recebeu fortes olhares da sociedade,

das autoridades administrativas e jurídicas, e da imprensa que agiam na presença

da lei.

O modelo de sociedade da época facilitou a inserção, permanência e

difusão do jogo do bicho por todas as classes e gêneros. Ricos e pobres,

homens, mulheres, e até crianças, se envolveram com essa prática. Para muitos

desempregados, era uma forma de ascensão social ou pelo menos de

sobrevivência. Outros de melhor poder aquisitivo, praticavam como forma de

prazer ou enriquecimento fácil. Mas ambos, auxiliaram na criação de uma tabela

própria pare este jogo.

A imprensa foi um forte aliado do jogo do bicho. Responsável pela sua

popularização, divulgava os sorteios das loterias, o resultado do bicho e oferecia

palpites, em versos, sobre a possibilidade de ser o animal sorteado. Em outros

momentos, noticiava o jogo do bicho como uma atividade danosa, que duraria

anos da história brasileira. Ou por não ser extinguido logo na sua chegada,

enquanto ainda era frágil e não havia conquistado ‘território firme’, ou porque

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sabia quem eram os jogadores e banqueiros, e sua relação com a lei: “O jogo do

bicho essa roleta imoral proibida por lei, alastrou-se de tal modo que a policia não

poderá mais extingui-lo393. Certamente isso ocorreu. Está-se aí convivendo a

mais de um século com este jogo. Embora os problemas que preocupavam as

elites no final do século XIX ainda estejam presentes, sabe-se que, mesmo o jogo

do bicho sendo considerado, pela imprensa, um ‘caruncho social’, não foi ele o

único responsável por tal condição. A contravenção existente hoje, resulta da

ação de indivíduos que quando conheciam a lei procuravam transgredi-la.

Esse foi o universo do jogo do bicho em Porto Alegre, durante os primeiros

dez anos de existência em âmbito nacional. Tornou-se um ‘polvo que com os

tentáculos mantém a presa até o fim’, largando-o somente quando não tem mais

volta. A peculiaridade das apostas baixas com riscos e ganhos menores que a

loteria, lançou nele um concorrente que conquistou imensa expansão. Enquanto

uns eram fiéis ao jogo, seja na sorte ou como fonte de trabalho, outros o

condenavam. O sonho da sorte e o prazer da aposta, tornaram possível a

existência desse jogo, tanto por ambulantes, quanto em locais fixos. Em versos,

palpites e até orações, o jogo do bicho conseguiu driblar as autoridades que não

realizaram sua extinção. O jogo se tornou mais que uma paixão, um vício, um

sonho, uma oportunidade de ascensão econômica, uma contravenção, e se

enraizou na cultura popular prevalecendo até hoje.

393 A Gazetinha, 30 ago. 1898.

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REFERÊNCIAS:

1- BIBLIOGRAFIA:

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