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Me pergunto: — Como serão os livros de Guimarães Rosa? Te ouço, dá tanta vontade de lê-los. Dá vontade de conhecer aquele ser simples, muito simples, do Grande Sertão. — Que sertão? Não importa... Simplicidade de coração, Te ouço, tuas palavras me acalmam. Há amor no mundo, Está na simplicidade. Prazer, Guimarães Rosa A criação é de Daissy Liliana Mora Cuervo, médica teleconsultora do Projeto TelessaúdeRS-UFRGS. O poema foi inspirado nas preocupações e no carinho evocado de uma médica relatando o caso de um paciente do sertão nordesno durante teleconsultoria.

Prazer, Guimarães Rosa

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Page 1: Prazer, Guimarães Rosa

Me pergunto:— Como serão os livros de Guimarães Rosa?Te ouço, dá tanta vontade de lê-los.Dá vontade de conhecer aquele ser simples,muito simples, do Grande Sertão.— Que sertão?Não importa... Simplicidade de coração,Te ouço, tuas palavras me acalmam. Há amor no mundo, Está na simplicidade.

Prazer, Guimarães Rosa

A criação é de Daissy Liliana Mora Cuervo, médica teleconsultora do Projeto TelessaúdeRS-UFRGS. O poema foi inspirado nas preocupações e no carinho evocado de uma médica relatando o caso de um paciente do sertão nordestino durante teleconsultoria.

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já no quinto dia de monitoramento por telefone dos sintomas respiratórios de seu mariano*,pra minha alegria, ele me atendeu com a voz já não tão fanha e mais disposta.‘’ doutora, tô melhor, hoje levantei novinho em folha!’’‘’ que ótimo, seu mariano! e a tosse, como tá?’’‘’ ah, mais nada! nem o cansaço, nem nada.’’ ‘’ muito bem! fico feliz que esteja melhorando.’’‘’ eu também! sabe, doutora, muito obrigada por estar me ligando assim. não tenho nemcomo agradecer a senhora! gente fica até mais calmo, sabe, e até melhora mais rápido...’’nos próximos dias mantive contato por telefone, seguindo os protocolos do SUS, até o diaem que ele realizaria o teste. os sintomas haviam cessado, mas seus agradecimentos sem fim não. o que era, pra mim, tão simples e comum fazer, pra ele parecia ter um significadodiferente, que eu não entendia até então.dias depois tive dor de garganta e me tornei suspeita. consultei, então, na rede privada eenquanto aguardava o dia para a realização do teste, que depois viria negativo, para meualívio, isolada, ansiosa e com medo de ter passado o vírus para minha família, tive vontadeque alguma médica me ligasse também. mas não aconteceu. e então finalmente entendi agratidão do seu mariano.

a gratidão do seu mariano

* nome fictício para proteger a identidade do paciente.

A criação é de Ana Samantha Dias da Silva Lauer, médica da Estratégia de Saúde da Família PAM em São Gabriel, na região central do Rio Grande do Sul. A profissional fez 5 teleconsultas com seu paciente seguindo o protocolo de telemonitoramento do Ministério da Saúde, como conta na história. A médica considera que sua narrativa traz à tona a integralidade do cuidado na Atenção Primária à Saúde e seu sentimento predominante durante a escrita foi a empatia. Confira!

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Ligadospelo Afeto

A criação é de Camila Giugliani, Médica de Família e Comunidade (MFC), pro-fessora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande Sul e preceptora do Programa de Residência em MFC do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que escolheu como sentimentos predominantes durante a escrita “a empatia, a escuta e o acolhimento", fez três (3) contatos telefônicos com uma pacien-te antes de escrever o texto disponível no link abaixo, contando sobre sua experiên-cia com a “integralidade do cuidado" e compartilhando suas impressões.

Era agosto de 2020 e a pandemia de Covid-19 estava em seu - suposto - auge. Os teleatendimentos da nossa UBS estavam cada vez mais frequentes e, ao mesmo tempo, as pessoas voltaram a requerer nossos cuidados presenciais, com demandas reprimidas urgindo, em meio ao medo da exposição ao desconhecido coronavírus.

Ela já consultava comigo presencialmente e, na pandemia, passamos a realizar algumas consultas por telefone, com vistas a controlar o diabetes, amenizar a depres-são e a ansiedade.

Recebi uma mensagem de áudio no meu WhatsApp. Ela precisava falar comigo. Andava sentindo algo estranho, algo ruim, sentindo-se amedrontada. A voz no áudio aparentava estar embargada, dizia que sentia uma dor lá dentro do peito, em pontada, e que estava preocupada, angustiada e nervosa. Liguei para ela no mesmo dia. Em atenção primária, podemos dizer que casos assim se tratam de urgências. E, quando a gente conhece os pacientes, fica mais fácil saber quão urgente pode ser. O vínculo é um forte aliado nos teleatendimentos.

Nos falamos, então. Ela me contou que estava se sentindo ansiosa, com medo de morrer; que sentia saudade dos filhos, pois deixou de vê-los na pandemia. Uma senhora de seus sessenta e poucos anos, com filhos e netos, que tinham o hábito de almoçar todos juntos aos domingos e, subitamente, pararam de se ver. Contou que conversavam por telefone, mas não era a mesma coisa. E ela sentia que os filhos não a procuravam como ela gostaria. Ela sentia falta.

Escutei. Depois perguntei se ela havia dito aos filhos que estava sentindo a falta deles. Se havia verbalizado a eles que esse contato é algo importante para ela e que andava se sentindo sozinha e com medo. Medo da pandemia, medo de ficar sozi-nha, medo de morrer.

Juntas

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Ligadospelo Afeto

Ela disse que não, que não havia dito. Mas esperava que eles telefonassem mais. Afinal de contas, ela era a mãe e já havia se doado muito para eles.

Escutei mais um pouco. Concordei e segui dizendo que às vezes a gente tem de falar as coisas claramente, fazer com que enxerguem nossas necessidades. Temos de comunicar ao outro que estamos com uma necessidade insatisfeita. Porque as necessidades insatisfeitas, sejam elas da natureza que forem - fome, sede, calor, frio, sono, afeto, carinho - fazem sofrer. Porque nem sempre as pessoas enxergam as nossas necessidades. Muitas vezes, existem barreiras impedindo que essa comunica-ção aconteça.

Ao final da ligação, combinamos que ela iria tentar conversar com os filhos, evocar suas necessidades, distrair-se um pouco mais e fazer exercícios de respiração quando se sentisse muito ansiosa. Nosso próximo teleatendimento seria em uma semana.

No próximo telefonema, apresentou uma voz muito mais animada. Contou que conversou com os filhos e que eles passaram a ligar mais para ela. Procurou outras pessoas para conversar também e se sentiu mais aliviada das tensões. Parou de ver tantas notícias tristes na televisão. Não sentiu mais medo de morrer. Nem aquela dor.

A partir daí, nosso vínculo se fortaleceu. Seguimos com consultas regulares, ora por telefone, ora presenciais, quando ela sente que precisa do “olhar de verdade”. Os medos ainda voltam, as dores também, às vezes uma falta de ar, uma crise de choro. Mas estamos juntas, distanciadas ou não, pelo “fio” do telefone, estamos juntas.