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Um   clássico   que   oferece   dicas   e   orientações   para   você   vencer   barreiras,  pressões,  vícios  acadêmicos…  e  simplesmente  escrever!Estudantes  e  pesquisadores  escrevem  sob  pressão:  dos  prazos,  do  currículo,  da  obrigação  de  impactar.  O  resultado  costuma  ser  uma  prosa  empolada,  um  tom  acadêmico  pretensioso  e,  com  frequência,  um  bloqueio  na  escrita.  Para  ajudá-­‐los  nessas  horas  de  aHlição,  o  experiente  sociólogo  Howard  S.  Becker,  conhecido  por  seu  estilo  informal  e  simples,  escreveu  esse  Truques  da  escrita.Um   clássico   que   a   Zahar   torna   enHim   disponível   para   o   leitor   brasileiro,   em  edição  revista  e  com  prefácio  especial  do  autor.Sensível,  divertido  e  inteligente,  o  livro  apresenta  ideias  reunidas  ao  longo  de  décadas  de  pesquisa,  escrita  e  ensino.  A  mensagem  de  Becker  é  direta:  “a  única  maneira   de   começar   a   nadar   é   entrando   na   água”.   Para   aprender   a   escrever,  respire  fundo  e  escreva.  Revise.  Repita.  O  processo  nem  sempre  é  fácil.  Becker  expõe,  com  toques  de  humor,  falhas  e  vícios  acadêmicos  como  a  verborragia,  o  abuso   da   voz   passiva,   o   uso   de   expressões   longas   demais   (“a   maneira   pela  qual”   em   vez   de   um   simples   “como”,   por   exemplo).   Mas   todos   esses  mecanismos  fazem  parte  da  estrutura  social  da  redação  acadêmica  –  e  é  aí  que  se   encontra   a   chave   para   acabar   com   o   medo   de   encarar   “a   BibliograHia”,   a  opinião  dos  professores  ou  a  comparação  com  os  colegas.Esse   livro   é   ao   mesmo   tempo   um   manual   que   ensina   os   elementos   da   boa  redação   e   um   ensaio   sutil   e   perspicaz   sobre   a   organização   social   do   saber  acadêmico.   Ao   lado   de   Segredos   e   truques   da   pesquisa,   é   uma   ferramenta  permanente  de  enorme  utilidade  para  escritores  de  todas  as  áreas,  de  alunos  principiantes  a  autores  com  obras  publicadas.

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Prefácioàediçãobrasileira

É UMA ENORME SATISFAÇÃO poder apresentar este livro a professores eestudantes brasileiros. Sempre admirei a escrita dos grandes sociólogosbrasileiros do passado (meus favoritos são Sérgio Buarque deHolanda eAntonio Candido), bem como a sólida tradição da ciência socialcontemporânea.Euficariamuitofelizsepercebessequeconseguiserútilàsfuturas gerações de pesquisadores e acadêmicos em seu desafio de darcontinuidadeaestanotáveltradição.Escrevi o livro, como digo no início, porque meus alunos (e também

muitos colegas) tinham problemas terríveis para começar a escreverqualquer texto acadêmico e dificuldades constantes à medida queavançavam. Tinham a sensação de que era algo impossível. Não ficavamsatisfeitoscomoresultadoobtidodepoisdetantoesforço.Tinhammedodemostrar aos outros o que haviam escrito, temendo que os amigos eprincipalmente os professores rejeitassem o trabalho. E eu mesmoconhecia muito bem esses receios, por experiência própria. O livroapresenta ideias que reuni ao longo de anos que passei escrevendo,ensinandoestudantesdesociologiaaescrevereoferecendoumaespéciedeterapiadiletanteaosdesesperadosporalgumaajuda.Aprincipalmensagemquesempreprocureipassaréqueosproblemas

queaspessoas têmaoescrevernãoderivamdealgumadeficiênciadelas,defaltadededicação,poucotalentooudequalquerumdosváriosdefeitosqueelaspossamimaginarcomocausadesuasdificuldades.Lembro-lhesaideia de C. Wright Mills, a qual, na formulação mais pertinente nestecontexto, consistiria em que os problemas pessoais são problemas daorganizaçãosocial.Ouseja,asdificuldadesquevocêenfrentaparaescrevernãosãoculpasuanemresultadodeumainabilidadepessoal.Aorganizaçãosocialnaqualvocêescreveestácriandoessasdificuldadesparavocê.Este livro, baseado emminha experiência lecionando para estudantes

americanos de ciências sociais alguns anos atrás, evidentemente estádesatualizado.Nãotrazosúltimosdadossobreosdetalhesdasexigênciasque nos fazem as organizações sociais onde todos nós – estudantes,professores,pesquisadores–trabalhamos.E,claro,tratadeestudantesdos

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EstadosUnidos,porque sãoosqueeu conheço.Mas isso significa apenasque os leitores terãode pesquisar algumas coisas, para perceber comooambienteemqueestãoinseridosinterfereedificultaotrabalhoquetêmafazer.E,também,paraqueencontremformasdemelhorarasituação.Umexemplomuitoclaroéomodocomoosestudantes ficam isolados,

sentados sozinhos olhando a tela do computador, escrevendo frase apósfraseeapagandologoemseguida.Porquê?Eismeupalpite.Talveznãoseapliqueàsuasituação,maslhedaráum

ponto de partida para começar sua investigação. Você escreve a frase, aípensaemalguémeimaginaessapessoalendo:podeserumprofessorquevocê admira ou um colega que “todomundo” acha que é ótimo. E entãoduascoisasvêmàsuamente.Primeiro,queaoescreverelesnuncatêmasmesmasdúvidasquevocê temsobreovalordopróprio texto–não, elessimplesmente escrevem e acham que está perfeito. E, você pensa, todomundo vai concordar com eles.Mas é claro que isso não é verdade. Porexemplo, essa fraseque você acaboude ler, reescrevi seis vezes até ficarassim.Epossomudarmaisumavez!Eaívocêimaginaessasmesmaspessoaslendosuafrase…erindo.Claro

queissonãoacontece,mas,sóparagarantir,vocêapagarapidinho.Agora você sumiu comaquela frase desagradável e se pôs a salvodas

risadasimaginárias.Mas,claro,agoravocêficousemfrasenenhuma.Entãoprecisa recomeçar. Adiante, você vai ver o caso de algumas pessoas quesentem tantomedo da reação alheia que, se chegam ao final do dia comumaúnicafrase,jáémuitasorte.Esseproblemanascedascondiçõesdeisolamentoemquemuitasvezes

trabalhamos: enclausurados sozinhos num aposento onde ninguém vê oqueestamosfazendo.Osestudantesescondemseustextosunsdosoutros,nuncaveemosprofessorescomamãonamassanemotrabalhoquetêmantesdeotextodelesserpublicado.Éessaprivacidadesocialmenteorganizadaaorigemdoproblema!Seos

estudantessoubessemqueoscolegasestãotendoasmesmasdificuldadesqueeles…bom,seriacomoumadessasvirosesque“dizemqueandadandoporaí”,oquesignificaquetodomundopega,sesentemalporalgunsdiaseentão passa. Se os estudantes soubessemque seus professores escrevemmuitas frasespéssimas,mas então reescrevemvárias vezes, perceberiamquesuasfrasesruinstambémpodemsercorrigidas.Vocêcontinuacomoproblema,comadificuldade,masagorasabequenãoéirremediável.Sabecomotratar!E que isso sirva demodelo para todos os seus problemas de redação!

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Encontreasituaçãoquegeraseuproblemaemude-a.Examine os pontos onde você está travando. Você acha que depois de

escreverumaversãodealgumacoisanãovaipodermudá-la?Mudeevejaoqueacontece.Nãovaiacontecernadaderuim.Vocêteráumtextomelhor,oquenãoénenhumproblema.Bomtrabalho!

SãoFrancisco,2014

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Prefácioàsegundaedição

ESCREVI A PRIMEIRA VERSÃO deste livro no começo dos anos 1980. Foimuitofácil.Faziaalgunsanosqueeudavaaulasderedaçãonapós-graduação,eessaexperiênciamedeumuitooquepensareváriashistóriasparacontar.Elas geralmente traziam alguma pequena lição sobre a origem dosproblemas que encaramos na hora de escrever, ou apontavam algumaformadeevitá-losoualgumamaneiradepensarquetornasseoproblemamenos problemático. Depois que o primeiro capítulo saiu numa revistaacadêmica e despertou alguma discussão, vi que tinha aí um início, e orestantedolivrosaiuquasesozinho.Eu não estava preparado para a enxurrada de cartas de leitores que

encontraramajudanolivro.Nãosóajuda.Váriosmedisseramqueolivrolhessalvaraavida,oquenãosignificaqueaobrasejaumaboaterapia,massim que o problema enfrentado pelas pessoas com dificuldades paraescrever é grave.Muitosme disseramque decidiramdar um exemplar aamigos que estavam em apuros. Não admira, pois nosso destino noambiente acadêmico, emqueescrevemos comoestudantes, professores epesquisadores, depende de nossa capacidade de entregar um textoaceitável quando solicitado. Se você não consegue, sente sua confiançaabaladaeficaaindamaisdifícilfazeratarefaseguinte,e,antesquevocêsedêconta,nãovêmaissaída.Assim,aosugerirnovasmaneirasdeencararesses dilemas, o livro deu esperança às pessoas e ajudou pelo menosalgumasdelasasairdaespiralnegativa.Eutambémnãoestavapreparadoparaosagradecimentosdepessoasde

áreasmuito distantes daminha, a sociologia. Grande parte da análise nolivro é franca e assumidamente sociológica, apontando as raízes dosproblemas de redação e suas possibilidades de solução como questõessociais(enãoindividuais).Muitosdosproblemasespecíficosqueresultamna prosa retorcida e quase ilegível que incomoda os leitores, por ser“acadêmica”, entãomepareciamderivadosdepreocupações sociológicas,quando o autor quer evitar recorrer a afirmativas causais, pois sabe quenão tem as “provas” exigidas por esse tipo de abordagem (tratada noCapítulo1).Descobriquepessoasdemuitasoutrasáreas,comohistóriada

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arte, comunicação, literatura (e uma lista de extensão surpreendente),tinhamdificuldadessemelhantes.Nãoeranelasqueeuhaviapensado,masacarapuçaserviu!Desde o lançamento deste livro, muitas coisas se mantiveram as

mesmas.Mas algumasmudaram, e assimpensei que seriaumaboa ideiafalarumpoucosobreastransformaçõesecomoelasafetamnossasituaçãocomo escritores. As principaismudanças se referem ao computador, quenaquelaépocaestavacomeçandoaseradotadoporquemescreviaeagorasetornoudeusocorrente.Comentoessasalteraçõescomespíritootimistanos acréscimos ao Capítulo 9. Sobre as mudanças na organização dasuniversidades e na vida acadêmica, sobre as quais tenho coisas menosotimistas a dizer, falo noCapítulo 10. Espero que, comesses acréscimos,vocêcontinueaconsideraresselivropertinenteparasuaspreocupações.

HOWARDS.BECKERSãoFrancisco,2007

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Prefácio

VÁRIOSANOSATRÁS,comeceiadarumseminárioderedaçãoparaestudantesdepós-graduaçãoemsociologianaNorthwesternUniversity.Comoexplicono primeiro capítulo, eu estava me tornando professor particular eterapeutadetantagentequejulgueiqueseriamaispráticotratardetodasessas pessoas juntas. A experiência foi tão interessante – e ficou tãoevidenteanecessidadedealgosemelhanteàqueleseminário–queescreviumartigosobreele(queaquicorrespondeaoprimeirocapítulo).Envieioartigoaalgumaspessoas,namaioriaestudantesquehaviamfeitoocursoealgunsamigos.Eles emaisoutrosqueacabaram lendoo texto sugerirammaistópicosquepoderiamserabordadosdemaneiraproveitosa,eentãocontinueiaescrever.Eucontavacomareaçãofavoráveldeamigosecolegas,principalmente

dasociologia,masnãocomacorrespondênciaquecomeçouachegar,vindade todo o país, de pessoas que eu não conhecia, as quais tinham lido oartigo por indicação de algum amigo e afirmavamque o texto tinha sidoproveitoso para elas. Algumas cartas eram carregadas de emoção. Osremetentes diziam que estavam enfrentando grandes problemas paraescreverequeasimples leituradoartigo lhesderaconfiançapara tentaroutra vez. Alguns se perguntavam como um desconhecido era capaz dedescrever com tanta precisão as apreensões e medos que sentiam. Eugostava do artigo, mas sabia que não era tão bom assim. Na verdade, amaioria dos meus conselhos eram os mesmos dos livros e cursos deredaçãoeminglês.Imagineiquemeusleitorestinhamachadooartigotãopertinente e proveitoso porque, numa versão da distinção que CharlesWrightMillsfazentre“osproblemaspessoaisdoambiente”e“asquestõespúblicas da estrutura social” (1959, p.8-11), ele não analisava problemaspessoais exclusivos, mas sim dificuldades inseridas e compartilhadas navida acadêmica. O artigo tratava apenas de problemas de redação emsociologia (afinal, sou sociólogo de profissão), mas as cartas vinham depessoas de áreas tão diversas quanto a história da arte e as ciências dacomputação.Aindaquetodaessavariedadedepessoastenhavistoproveitonoqueeu

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tinha a dizer, não conheço essas áreas o suficiente para falar sobre suasdificuldades específicas. Concentrei-me, portanto, nos problemascaracterísticos de escrever sobre a sociedade, especialmente nas ciênciassociais, e deixo aos leitores de outras áreas que façam eles mesmos atransposição. Essa transposição não deve ser difícil, porque muitosclássicos da sociologia agora fazemparte domundo intelectual em geral.Durkheim,Weber eMarx falam a umpúblicomaior do que aAssociaçãoAmericanadeSociologia.Jáexistemmuitoslivrosexcelentessobreredação(porexemplo,Strunk

eWhite1959,Gowers1954,Zinsser1980eWilliams1981).Lialgunsdelesenquantoministravameucurso,masnaépocaeunãosabiaquehaviaumcampodepesquisaereflexãochamado“teoriadacomposição”.Porcausadisso, inventei ideiaseprocedimentosque já tinhamsido inventadosporoutros e eram debatidos na bibliografia daquela área. A partir de então,procurei sanarminha ignorância e remeto os leitores a essas descriçõesmaisextensas.Muitoslivrosdecomposiçãotrazemótimosconselhossobreosdefeitosmaiscomunsderedação,emparticulardaredaçãoacadêmica.Alertamcontraousodavozpassiva,averbosidade,oempregodepalavrascompridasqueparecemestrangeirasemcasosemqueaspalavrascurtasque funcionariam melhor, e outros erros habituais. Dão conselhosconcretoseespecíficossobrecomoencontrareprocedercomesseserros.Outrosescritores(porexemplo,Shaughnessy1977,Elbow1981ouSchultz1982) também comentam esses problemas – é impossível falar sobreredaçãosemosmencionar–,masvãoalémeanalisamporqueaprópriaredaçãoemsiéproblemática.Explicamcomovenceromedoparalisantedepermitir que outros leiam nosso trabalho. Seus anos de experiência,ensinando alunos da graduação a escrever, ficam evidentes no caráterespecífico de suas recomendações e na atenção que dão ao processo deredação,maisdoqueaosresultados.Asmelhorespesquisassobreredação(ver, por exemplo, Flower 1979 e Flower e Hayes 1981) analisam oprocessodeescrevereconcluemqueescreveréumaformadepensar.Seforverdade,oconselhotantasvezesdadoaosescritores–primeirotenhaclaro o que você pensa e só depois tente formulá-lo com clareza – estáerrado. Os resultados daquelas pesquisas corroboram em certa medidameusensinamentoseminhaspráticaspessoais.O usual nos textos sobre composição é se destinarem aos alunos de

graduação(oquenãoadmira,vistoqueéaíqueanecessidadeémaioreomercadomaisamplo),emboracostumemdizer,ecomrazão,quetambémseriamúteisparaopessoaldasempresas,dogovernoedaacademia.Mas

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todososestudantesdepós-graduaçãoeosacadêmicoscomquemtrabalho(nasociologiaeemoutrasáreas)fizeramcursosintrodutóriosderedação,muito provavelmente ministrados por pessoas que conhecem as teoriasmodernas de composição e usam os novos métodos, mas isso não osajudou.Aprenderamquedevemusar construçõesnavozativaepalavrascurtas, que devem manter a concordância dos pronomes e dosantecedentes, e outras coisas muito práticas, mas não seguem essasrecomendações.Nãoconsultamoslivrosdecomposiçãoqueosajudariamaescrevernumaprosamaisclarae,seofizessem,provavelmentepassariamporcimadeseusbonsconselhos.Chegama ignoraraschacotasqueseuspróprioscolegasfazemperiodicamente(ver,porexemplo,SelvineWilson1984eaparódiadeMerton,“PrólogoaumPrefácioparaumaIntroduçãoaumProlegômenoaumdiscursosobreumdeterminadoassunto” (1969)).Um livro que pretenda ajudá-los precisa abordar por que eles escrevemdessamaneira,poisjásabemquenãodeveriamescreverassim.Precisanãosólhesmostraroquefazemdeerradoecomocorrigir,mastambémcomoultrapassarasituaçãodograduando.Osalunosdegraduaçãonãotêmosmesmosproblemasderedaçãodos

maisvelhos.Escrevemtrabalhoscurtosquenãoescreveriamporiniciativaprópria, compoucassemanasdeprazo, sobreassuntosquedesconhecemtotalmente e não lhes interessam, para um leitor que, como dizShaughnessy, “não escolheria aquela leitura se não estivesse sendo pagopara ser examinador” (1977, p.86). Os estudantes sabem que o queescrevemnessetrabalhonãoafetarámuitosuavida.Oscientistassociaiseoutros acadêmicos, por sua vez, escrevem sobre assuntos que conhecembemepelosquaisseinteressammuito.Escrevemparapessoasquesupõemestar igualmente interessadas e não têmprazos de entrega, a não ser osquelhessãoimpostosporsuasituaçãoprofissional.Sabemqueseufuturona profissão depende da avaliação que seus escritos receberão de seusparesesuperiores.Osestudantesdegraduaçãopodemsedistanciardoqueprecisam escrever. Os acadêmicos, sejam novatos ou profissionais, não.Impõem a tarefa a simesmos ao ingressaremna área e têmde levá-la asério. Por ser a sério, a redação os intimidamais do que aos estudantes(PamelaRichardsdescreveomedonoCapítulo6,adiante),oquedificultaaindamaisasoluçãodosproblemastécnicos.Apesardotítulodocapítuloinicial,nãoreescreviumtextodeintrodução

àredaçãoparaosestudantesdapós-graduação.Nãotenhocomoconcorrercomasobrasclássicasdecomposição,cujosautoresconhecemagramática,a sintaxe e os demais tópicos clássicos melhor que jamais conhecerei, e

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nem tento. Algumas dessas questões aparecem apenas de passagem, emlargamedidaporquetenhobastantecertezadequeospós-graduandoseosjovens profissionais de ciências sociais e disciplinas correlatassimplesmente não irão buscar conselhos fora de suas áreas e nemprestarão atenção a eles. Pois deveriam.Mas, se a prosa que se usaparaescrever sobre a sociedade só for melhorar quando os cientistas sociaisestudaremgramáticaesintaxeasério,simplesmentenuncavaimelhorar.Além disso, os problemas de dicção e estilo envolvem necessariamentequestões de conteúdo. Conforme exporei adiante, não há como dissociarumaredaçãoruimemsociologiadosproblemasteóricosdadisciplina.Porfim,amaneiradeescreverderivadassituaçõessociaisemqueaspessoasescrevem. Assim, precisamos ver (e isso resume a perspectiva do livro)como a organização social cria os problemas clássicos da redaçãoacadêmica: estilo, organização etc. Assim, em vez de tentar escrever ummanual de introdução à redação para o qual não tenho competência,procurei atender à necessidade de uma análise que estude os problemasespecíficos de escrever sobre a sociedade, abordando as dificuldadestécnicas tratadas sociologicamente por outros autores. Abordoespecificamentea redaçãoacadêmica, emparticular a sociológica, e situoseusproblemasdentrodocontextodotrabalhoacadêmico.(Sternberg,em“Como concluir e sobreviver a uma tese de doutorado”, se dedicamais àpolítica do processo – a escolha do orientador, por exemplo – do que àredaçãopropriamentedita.)Sem modéstia, escrevi em termos pessoais e autobiográficos. Outros

fizeram isso (Peter Elbow, por exemplo), provavelmente pelas mesmasrazões.Osestudantesachamdifícilimaginaraescritacomoumaatividadeconcreta feitaporpessoasdecarneeosso.ComodizShaughnessy(1977,p.79):“Oescritoriniciantenãosabecomosecomportamosescritores.”Osestudantesnãoveemumlivrocomoresultadodotrabalhodeumapessoa.Mesmoosestudantesdepós-graduação,queestãomuitomaispróximosdeseusprofessores, raramente veemalguémde fato escrevendo, raramenteveem rascunhos de trabalho e textos que não estão prontos parapublicação. É um mistério para eles. Quero eliminar o mistério e lhesmostrar que o trabalho que leem foi feito por pessoas que enfrentam asmesmas dificuldades. Minha prosa não é exemplar, mas, como sei o queentrou em sua confecção, posso explicar por que escrevi de tal ou talmaneira,quaiseramosproblemasecomoescolhiassoluções.Nãopossofazer isso com o trabalho demais ninguém. Visto que venho escrevendotextos sociológicos há mais de trinta anos, muitos estudantes e jovens

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profissionaislerampartesdaminhaobra,eosleitoresdomanuscritodestelivrodisseramquefoibomsaberquecertaspassagensmeincomodavamemeconfundiam,talcomotambémacontececomelesdiantedeseustextos.Poressarazão,dediqueiumcapítuloaminhasexperiênciaspessoaiscomoescritor.O Capítulo 1 apareceu de início, numa forma levemente diferente, em

TheSociologicalQuarterly24(outonode1983),p.575-88,efoireimpressoaquicomapermissãodaMidwestSociologicalSociety.Agradeço a todos os que me ajudaram, especialmente (além dos

estudantes dos cursos que ministrei) a Kathryn Pyne Addelson, JamesBennett, James Clark, Dan Dixon, Blanche Geer, Robert A. Gundlach,ChristopherJencks,MichaelJoyce,SheilaLevine,LeoLitwak,MichalMcCall,Donald McCloskey, Robert K. Merton, Harvey Molotch, Arline Meyer,MichaelSchudson,GilbertoVelho,JohnWaltoneJosephM.Williams.Façoum agradecimento especial a Rosanna Hertz por escrever a carta quemotivou o capítulo “Persona e autoridade” e por me permitir citá-la tãoextensamente.UmacartaquePamelaRichardsmeescreveusobreosriscoseratãocompletaquelhepergunteiseelaautorizariasuapublicaçãonestevolume,emseunome.Ficocontentequetenhaconcordado.Nemdelongeeuconseguiriadizertãobem.

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1. “Introduçãoàredação”paraestudantesdepós-graduaçãoUmcasoeduasteorias

DEIVÁRIOSSEMINÁRIOSsobreredaçãoparaestudantesdepós-graduação.Issoexigeumacerta“caradepau”.Afinal,quandoseensinaumassunto,supõe-se que a pessoa saiba alguma coisa a respeito. Como eu escreviaprofissionalmente, como sociólogo, fazia quase trinta anos, issome davaalgumabase.Alémdisso,váriosprofessoresecolegasnãosótinhamfeitoreparos a meu tipo de texto, mas também me ensinaram inúmerasmaneiras de melhorá-lo. Por outro lado, todo mundo sabe que ossociólogos escrevem muito mal, e o pessoal de literatura, diante de umtextoruim, fazpiadadizendoqueé “sociologia”, comooscomediantesdevaudeville costumavam arrancar risadas dizendo “Cucamonga” (ver, porexemplo, a crítica de Cowley 1956 e a réplica de Merton 1972). Aexperiênciaeas liçõesnãomesalvaramdas falhasqueaindadividocommeuscolegas.Apesar disso, aproveitei a ocasião, motivado pelas histórias dos

problemas crônicos que discentes e colegas docentes enfrentavam naescrita.Ofereciocurso.Operfildosinscritosnaprimeiraturmamesurpreendeu.Alémdosdez

oudozepós-graduandosquesematricularam,a turmatinhatambémunsdoisoutrêspesquisadoresempós-doutoradoeatéalgunsdemeuscolegasmaisjovens,eesseperfilsemantevenosanosseguintes.Seusproblemasepreocupações com a redação superavam o medo de passarem vergonhavoltandoaosbancosdeescola.Minhacaradepaunãoselimitouadarumcursosobreumassuntoque

eu não dominava: sequer preparei o curso, pois, sendo sociólogo e nãoprofessorderedação,nãofaziaideiadecomoensinaraescrever.Então,noprimeiro dia de aula, entrei na sala sem saber o que ia fazer. Depois dealgumas observações iniciais meio atrapalhadas, tive uma luz. Duranteanos, eu havia lido as “Entrevistas com escritores” da Paris Review e

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sempre sentira um interesse levemente lascivo pelas coisas que osentrevistadosrevelavamsemomenorpudorsobreseushábitosdeescrita.Assim,eumevireiparaumavelhaamigaeex-alunadagraduação,sentadaàminhaesquerda,eperguntei:“Louise,comovocêescreve?”Expliqueiquenão estava interessado em nenhuma linda história sobre a preparaçãoacadêmica, e sim nos detalhes que realmente interessam: se eladatilografavaouescreviaamão,seusavaalgumtipoespecialdepapeloutrabalhavaemalgumahoraespecíficadodia.Nãosabiaoqueelaiadizer.A tentativa deu certo. Sem maiores hesitações, ela descreveu

longamenteumarotinacomplicadaquedeviasercumpridaàrisca.Mesmonãoestandoconstrangidaemfalar,algunscolegassemostravaminquietosna cadeira, enquanto ela explicava que só escrevia em blocos de papelofício amarelo, pautado, usando uma hidrográfica verde, que antesprecisava limpar a casa (coisa que veio a se mostrar uma preliminarrecorrenteentreasmulheres,masnãoentreoshomens,maispropensosaapontar vinte lápis), que só conseguia escrever entre tais e tais horas, eassimpordiante.Viqueacoisaprometiaepasseiparaavítimaseguinte,umrapaz.Um

pouco mais relutante, ele expôs seus hábitos igualmente peculiares. Oterceiropediudesculpas,masdissequepreferiapularsuavez.Nãodeixei.Ele tinha boas razões, como se viu depois. Todos tinham. Àquela altura,davaparaverqueaspessoasestavamexpondocoisasembaraçosas,nadaque desse muita vontade de comentar na frente de vinte colegas. Fuiimplacável,fazendotodomundocontartudo,sempouparamimmesmo.Esse exercício gerou um grande nervosismo, mas também muito

divertimento, enorme interesse e, por fim, uma descontraçãosurpreendente. Comentei que todos estavam aliviados, e deviam estarmesmo,pois,seseuspioresmedos–seremloucosdepedra–eramreais,emcompensaçãonãoerammais loucosdoqueninguém.Eraumadoençacomum.Assimcomoaspessoassesentemaliviadasquandodescobremquealgunssintomasfísicosalarmantesquecostumamocultarsãoapenasalgoque “anda acontecendo”, saber que os outros têm hábitos de escritamalucosdeviaser,evisivelmenteera,umaboacoisa.Prossegui com minha interpretação. De certo ponto de vista, os

participantes estavam descrevendo sintomas neuróticos. Mas, de umaperspectiva sociológica, tais sintomas eram rituais mágicos. SegundoMalinowski(1948,p.25-36),aspessoasfazemessesrituaisparainfluirnoresultadodealgumprocessosobreoqualjulgamnãotermeiosdecontroleracionais.EledescreveuofenômenoqueobservounasIlhasTrobriand:

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Assim, na construção de canoas, o conhecimento empírico domaterial, da tecnologia e de certosprincípiosdeestabilidadeehidrodinâmica funcionaassociadoe intimamente ligado comamagia,massemseafetaremmutuamente.Por exemplo, eles entendem com plena clareza que, quanto mais larga a toleteira, maior a

estabilidade,emboramenoraresistênciaàtensão.Podemexplicarclaramenteporqueprecisamdarà toleteira uma determinada largura tradicional, medida em frações do comprimento daembarcação.Tambémsabemexplicar,emtermosrudimentares,masnitidamentemecânicos,comoprecisam se conduzir durante uma ventania súbita, por que a toleteira precisa ficar sempre abarlavento,porqueumtipodecanoaconsegueresistireoutronão.Dispõem,defato,deumsistemacompleto de princípios de navegação, incorporado numa terminologia complexa e variada,transmitido pela tradição e obedecido de modo tão racional e metódico quanto os marinheirosmodernosemrelaçãoàciênciamoderna…Mas, mesmo com todo o seu conhecimento sistemático, aplicado de maneira metódica, ainda

ficamàmercêdecorrentesforteseincalculáveis,devendavaisrepentinosduranteasmonçõesederecifes desconhecidos. E aqui entra a magia deles, que executam sobre a canoa durante suaconstrução, realizam no começo e durante as expedições e à qual recorrem em momentos deverdadeiroperigo.(p.30-1)

Assim como os marinheiros trobriandeses, os sociólogos que nãoconseguiam lidar racionalmente com os perigos de escrever usavamsortilégiosmágicos,queoslivravamdaansiedade,emboranãoafetassemoresultado.Então perguntei à turma: o que vocês tanto temem não conseguir

controlarracionalmente,apontodeusaremtodosessesrituaisefórmulasmágicas? Não sou freudiano, mas achei que eles teriam resistência emresponder.Não,nãotiveram.Pelocontrário,falarambastantesobreissoecommuita franqueza. Para resumir o extenso debate que se seguiu, elestinham medo de duas coisas. Temiam não conseguir organizar seuspensamentos,queescreverfosseserumaconfusãotãograndequeficariamdoidos. Falaram de um segundomedo: que o que escrevessem estivesse“errado” e que as pessoas (não especificadas) iriam rir deles. Isso, pelovisto,explicavaumpoucomaisoritual.Outramoça,quetambémescreviaemblocosdepapelofícioamarelopautado,semprecomeçavanasegundafolha. Por quê? Bom, disse ela, se alguém passasse por ali, dava paraabaixarafolhadecimaetamparoqueestavaescrevendo,paraooutronãover.Váriosrituaiseramparaassegurarqueotextonãofossetomadocomo

produto “acabado”, pois assim ninguém poderia rir dele. A desculpa jáestavaembutidaali.Creioqueéporissoquemesmoosescritoresrápidosnadigitaçãomuitasvezesusammétodosdemorados,comoescreveramão.É evidente que qualquer coisa escrita a mão ainda não está pronta e,portanto, nãopode ser criticada como se estivesse.Mas há umamaneiraainda mais segura de garantir que não se tome um texto como efetiva

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expressão das capacidades de seu autor: é não escrever nada. Ninguémpodeleroquenuncafoipostonopapel.Acontecera uma coisa importante naquela turma. Como também

comentei naquele primeiro dia, todos haviam contado algo embaraçososobresimesmoseninguémtinhamorrido.(Nisso,eraalgoparecidocomoque se pode chamar de “novas terapias da Califórnia”, em que a pessoadesnuda suapsiqueou seu corpoempúblico edescobrequea revelaçãonãomata.)Fiqueisurpresoqueaspessoasdaquelaturma,váriasdasquaisseconheciammuitobem,nãosabiamabsolutamentenadasobreoshábitosdetrabalhodoscolegase,naverdade,nuncatinhamlidoseustextos.Decidifazeralgoarespeito.Inicialmente,eudisseraaosinteressadosqueocursodariaênfasenãoà

redação,masà revisãoe reelaboraçãode textos.Por isso, comorequisitoparafrequentarocurso,elesteriamdeentregarumartigojáescrito,paratreinaremascorreções.Mas,antesdepegaressesartigos,decidimostraroque era revisar e reescrever. Uma colega me emprestou um segundorascunhodeumartigoemqueestavatrabalhando.Nocomeçodasegundaaula, distribuí sua seção sobre “a metodologia do trabalho”, em três ouquatropáginas,epassamostrêshorasreescrevendootexto.Normalmente, os sociólogos usam vinte palavras quando duas

bastariam,epassamosamaiorpartedaquelatardecortandooexcessodepalavras. Usei um método que já tinha usado muitas vezes em aulasparticulares. Com o lápis numa palavra ou oração, eu perguntava: “Issoprecisaestaraqui?Senão,voueliminar.”Friseibemque,aofazeralgumaalteração, não podíamos eliminar amais leve nuance do pensamento doautor.(AquieuestavapensandonasregrasqueC.WrightMills(1959,p.27-31)seguiraemsuafamosa“tradução”depassagensdeTalcottParsons.)Seninguémdefendesseapalavraouafrase,eucortava.Mudeiconstruçõesnavozpassivapara a voz ativa, juntei frases, dividi frases longas – todas ascoisas que esses estudantes já tinham aprendido a fazer nas aulas deintrodução à redação. Depois de três horas, tínhamos reduzido quatropáginas a três quartos de uma página, sem perder nenhuma nuance oudetalheessencial.Trabalhamosnumafraselonga–emqueaautoraavaliavaaspossíveis

implicações daquilo que o artigo colocara até omomento – por umbomtempo,eliminandopalavraseexpressõesatéficarreduzidaaumquartodoqueera.Por fim, sugeri (comumapontademalícia,maselesnão tinhammuita certeza disso) que cortássemos toda aquela passagem e sópuséssemos:“Edaí?”.Alguémporfimrompeuosilênciodeespanto:“Você

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pode tirar, mas a gente não poderia.” Então falamos sobre o tom,concluindo que eu também não poderia tirar, a menos que tivessepreparado o terreno para aquele tipo de tom e fosse apropriado para aocasião.Os estudantes ficaram com muita pena de minha colega, que havia

cedidoaspáginasparanossacirurgia.Acharamquetinhasidohumilhantepara ela e que foi uma sorte que ela não estivesse lá para morrer devergonha.Compadecendo-sedessamaneira,elesestavamsebaseandoemseus próprios sentimentos não profissionais, sem perceber que, para aspessoasqueescrevemprofissionalmente,eescrevemmuito,faziapartedarotina reescrever o texto, tal como havíamos feito. Eu queria que elesentendessem que aquilo não era incomum e que deviam se acostumar àideiadereescrevermuito,eporissolhescontei(comsinceridade)queeunormalmente reescrevia umas oito ou dez vezes o manuscrito antes dapublicação (mas não antes de mostrá-lo a meus amigos). Ficaramsurpresos,pois, comoexplicareimaisadiante,elesachavamqueos “bonsescritores” (pessoas como seus professores) já conseguiam redigir tudocertonaprimeiravez.Esseexercíciotrouxeváriosresultados.Osestudantesficaramexaustos,

poisnuncatinhampassadotantotempoouexaminadocomtantaatençãoummesmotexto,nuncatinhamimaginadoquealguémeracapazdepassartantotemponumatarefadaquelas.Virametestaramváriosprocedimentoseditoriais de praxe. Mas o resultado mais importante surgiu no final datarde,quandoumaestudante–aquelamaravilhosaestudantequedizoqueos outros estão pensando, mas preferem ficar quietos – falou em tomcansado: “Puxa, Howie, quando você diz assim, fica de um jeito quequalquerumpoderiadizer.”É,exato.Falamossobreisso.Oqueerasociológico:oquevocêdiziaoucomovocê

dizia? Pois veja só, não havíamos substituído nenhum termo técnico dalinguagemsociológica.Nãoeraessaaquestão(quasenuncaé).Havíamossubstituído redundâncias, “palavras bonitas”, expressões pomposas (porexemplo,minhabêtenoireapessoal,“amaneirapelaqual”,quegeralmentepodesertrocadaporumsimples“como”,semnenhumaperdaanãoserotom pretensioso) – qualquer coisa que pudesse ser simplificada semprejuízoparaaideia.Concluímosqueosautorestentavamdarcorpoepesoaoqueescreviamutilizandoumtomacadêmico,mesmoemdetrimentodoverdadeirosignificado.Descobrimosmaisalgumascoisasnaquelatardeinterminável.Algumas

daquelas longas expressões redundantes não podiam ser substituídas

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porque não havia nenhum sentido por trás delas. Estavam ali parapreencher o espaço,marcando um lugar onde o autor deveria dizer algomaissimples,mas,nomomento,nãotinhanadasimplesparadizer.Mesmoassim,esseslugarestinhamdeserpreenchidos,pois,docontrário,oautorficaria coma frasepelametade.Osescritoresusavamessasexpressõesefrasessemsentidonãoporumsimplescaprichoouporquetinhamcacoetesindesejáveis na escrita. Certas situações exigiam a presença delas parapreencherespaço.Osescritorescostumamusarexpressõessemsentidoparaencobrirdois

tipos de problemas. Ambos refletem sérios dilemas da teoria sociológica.Umdosproblemastemavercomoagente:quemfezascoisasqueafraseafirmaqueforamfeitas?Muitasvezes,ossociólogospreferemlocuçõesquenão dão uma resposta clara a essa pergunta, em larga medida porquemuitas de suas teorias não lhes dizem quem está fazendo o quê. Emdiversasteoriassociológicas,ascoisassimplesmenteacontecemsemseremfeitasporninguém.Édifícil encontrarumsujeitoparauma frasequandoestão operando “forças sociais mais amplas” ou “processos sociaisinexoráveis”.Quandoseevitadizerquemfeztaloutalcoisa,surgemdoisdefeitostípicosdaredaçãosociológica:ocostumedeusaravozpassivaesubstantivosabstratos.Se você diz, por exemplo, que “os desviantes foram rotulados”, não

precisa dizer quemos rotulou. É um erro teórico, e não só uma falha deredação.Umpontoimportantenateoriaderotulaçãododesvio(destacadoemBecker 1963) é justamente que alguém rotula a pessoa de desviante,alguémquetemopoderparatantoeboasrazõesparaquererfazerisso.Sevocêdeixaessesagentesdefora,distorceateoria,tantonapráticaquantono seu princípio. Apesar disso, é uma locução corrente. Os sociólogoscometemerrosteóricossimilaresquandodizemqueasociedadefazissoouaquiloouqueaculturalevaaspessoasafazeremtaisoutaiscoisas,eelesescrevemassimotempointeiro.A incapacidade ou falta de vontade dos cientistas sociais de fazer

afirmativas causais também leva a uma redação ruim. O Ensaio sobre oentendimentohumano,deDavidHume,nosdeixaaflitosnahoradeafirmarquedemonstramosasconexõescausais,e,emborapoucossociólogossejamtão céticos quanto Hume, em sua maioria eles julgam que, apesar dosesforços de John Stuart Mill, do Círculo de Viena e de todos os demais,correrão sérios riscos acadêmicos se alegarem que A é causa de B. Ossociólogos encontram diversas maneiras de descrever covariâncias,geralmenteusandoexpressõesvaziasque insinuamoquegostaríamosde

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dizer, mas não temos coragem. Como receamos dizer que A causa B,dizemos: “Há uma tendência de covariarem” ou “Parecem estarassociados”.As razões disso nos reconduzem aos rituais da escrita. Escrevemos

assim porque, se escrevermos de outramaneira, temosmedo de que osoutros nos flagrem em erros primários e riam de nós.Melhor dizer algoinócuo,masseguro,doquealgomaisarrojado,quevocêtalveznãoconsigadefender contra as críticas.Pois veja, nãoháproblemaemdizer “AvariacomB”,seforrealmenteoquevocêquerdizer,efaztodosentidoafirmar:“PensoqueAcausaBemeusdadossustentamessaafirmaçãomostrandoacovariânciadeles.”Masmuitosusamessasexpressõesparaapenassugerirasserções mais incisivas, pelas quais simplesmente não querem sercensurados. Querem descobrir causas, porque causas têm interessecientífico,masnãoqueremaresponsabilidadefilosófica.Todos os professores e manuais de redação em inglês criticam

construçõesnavozpassiva,substantivosabstratoseamaioriadasoutrasfalhasquecitei.Nãoinventeiessescritérios.Naverdade,aprendiemcursosde redação. Embora tais critérios, portanto, sejam independentes dequalquer escola de pensamento, acredito que minha preferência pelaclareza e pelo tom direto também tem raízes na tradição da sociologiainteracionista simbólica, que concentra seu enfoque emagentes reais emsituações reais. Meu colega brasileiro Gilberto Velho insiste que sãocritériosetnocêntricos,muito favorecidosnatradiçãoanglo-americanadodiscursodireto, justificandoqueo estilo indireto emais floreadovemdetradiçõeseuropeias.Pensoqueestáerrado,vistoquealgunsdosmelhoresescritoresemoutraslínguastambémusamumestilodireto.Analogamente, Michael Schudson me perguntou, e com boa dose de

razão, como deveria escrever alguém que acredita que as estruturas –relações de produção capitalistas, por exemplo – causam os fenômenossociais.Esseteóricodeveriausarconstruçõesnavozpassivaparaindicarapassividade dos atores humanos envolvidos? Essa pergunta requer duasrespostas.Amais simples équepoucas teorias sociais sériasnãodeixamnenhum espaço à ação humana. A segunda, emais importante, é que asconstruçõesnavozpassiva chegamaocultaropapeldeagenteatribuídoaospróprios sistemaseestruturas. Suponha-sequeumsistemarotulaosdesviantes.Dizer“osdesviantessãorotulados”tambémencobreisso.Grandepartedoqueeliminamosdoartigodeminhacolega,durantea

aula, consistia naquilo que, para as finalidades do curso, chamei de“qualificaçõesfuradas”(“bullshitqualifications”,tomandocomoprecedente

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legitimadoracríticadeWayneBoothao“papo-furadopolissilábicoderaizgrega” (Booth 1979, p.277)), expressões vagas indicando uma prontadisposição a abandonar o aspecto apontado caso alguém faça algumaobjeção:“AtendeaestarrelacionadocomB”,“AtalvezpossatenderaestarrelacionadocomBemcertascondições”eoutrasqualificaçõesigualmentetímidas.UmaqualificaçãoefetivadizqueAestá relacionadocomB, salvocertascircunstânciasespecificadas:semprecomprocomidanaSafeway,amenosqueelaestejafechada;arelaçãopositivaentrerendaeinstruçãoémaior se você for branco do que se for negro. Mas os estudantes, comooutros cientistas sociais, geralmente usavam qualificações menosespecíficas.Queriamdizer que a relação existia,mas sabiamque alguém,maiscedooumaistarde,iriaencontrarumaexceção.Oqualificadorritual,nãoespecífico,lhesdavaumaescapatóriaparaqualquereventualidade.Sefossematacados,podiamdizerquenuncaafirmaramqueaquiloerasempreverdade.Asqualificaçõesfuradas,tornandoasafirmaçõesvagas,ignoramatradição filosófica e metodológica segundo a qual fazer generalizaçõesnumaformauniversalforteajudaaevidenciarcasosnegativosquepodemservirparaaperfeiçoá-las.Quandopergunteiaosestudantesdaturmaporqueescreviamdaquela

maneira,vimasaberquehaviampegadomuitosdoshábitosnaescolaeosconsolidaram na faculdade. O que tinham aprendido a escrever eramtrabalhos de semestre (ver a discussão de Shaughnessy (1977, p.85-6)sobreascondiçõesdaredaçãonagraduação).Vocêescreveotrabalhodosemestrefazendotodasasleiturasoupesquisasexigidasduranteoperíodoe, enquanto isso, vai montando mentalmente a monografia. Mas depoisescrevedeumavezsó,àsvezesapartirdeumesboçogeral,egeralmentenanoiteanterioràdatadeentrega.Comoumapinturajaponesa,vocêfaz,eficabomounão.Osestudantesdegraduaçãonãotêmtempodereescrever,vistoquemuitasvezesprecisamentregarváriostrabalhosnamesmaépocado ano. O método funciona para a graduação. Alguns adquirem grandeprática nesse formato e entregam trabalhos respeitáveis, bem acabados,formulando-os mentalmente enquanto andam pelo campus e pondo porescritologoantesdadatadeentrega.Osprofessoressabemdetudoisso.Senãoconhecemamecânicadacoisa,pelomenosconhecemosresultadosenãoesperamtrabalhoscommaiscoerênciaoumelhoracabamentodoqueessemétodopermite.Os estudantes que costumam trabalhar dessa maneira ficam

preocupadoscomaversãoqueredigem,oqueécompreensível.Elessabemquepoderiasermelhor,masnãoserá.Oqueescrevemficaassimmesmo.

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Desde que esse documento se mantenha confidencial, na relaçãoconvencionalmente privada entre aluno e professor, não constrangerádemaisoautor.Mas a organização social da escrita e da reputação muda na pós-

graduação.Osprofessorescomentamostrabalhosdosestudantescomseuscolegasecomoutrosestudantes, sejaelogiandooucriticando.Comsorte,eles vêm a se transformar em trabalhos para a qualificação ou emdissertações,lidosporváriosmembrosdocorpodocente.Osestudantesdapóstambémredigemtrabalhosmais longosdoqueo

pessoal da graduação. Os habituados ao trabalho semestral não têm amesma facilidadeparaguardarna cabeçaum trabalhomaisextenso.Éaíque começam a perder a facilidade na escrita. Não conseguem redigir otextodeumatacadasósemsentirmedodedespertarcríticasezombarias.Então,nãoescrevem.Não contei todas essas coisas aos estudantes nas primeiras aulas, só

depois. O que fiz foi dar tarefas para que desistissem do método deescreverotextodeumavezsó.Entãopoderiamcriaroutrasrotinas,menospenosas e igualmente eficazes para ganhar a recompensa acadêmica. Emtodas as turmas que tive, sempre havia alguns mais intrépidos queconfiavamemmimapontodeprosseguircomasexperiências.Minhafamadenãoserumcarrascoabrandavaomedotradicionaldosestudantespelosprofessores, e os que tinham feito outros cursos comigo confiavam emminhasexcentricidades.Osprofessoresquenãodispõemdetaisvantagensprovavelmenteteriammaisproblemasemusaralgunsdessesexpedientes.Falei aos estudantes que não fazia muita diferença o que eles

escrevessemnumprimeirorascunho,poissemprepodiammodificar.Comoo que colocavam no papel não era necessariamente definitivo, nãoprecisavam se preocupar muito com o que escreviam. A única versãoimportante era a final. Já tinham visto uma amostra das mudanças quepodiamfazereprometiquemostrariamais.Nossa revisãoemaulaeminha respectiva interpretaçãoacalmaramos

estudantes. Pedi que trouxessem na próxima aula aqueles textos que euexigira como pré-requisito para a inscrição no curso,mas que ainda nãohavia recolhido. (Alguns estudantesderampara trás.Na segundavez emquedeio curso,umaalunadissequenão ia entregaro textoporquenãotinha.Fiqueibravo:“Qualquerumquefrequentaaescolaessetempotodotem montes de textos escritos. Traga um.” Então a verdadeira razãoaflorou: “Não tenhonenhumquepreste.”)Depoisde recolher os textos emisturarbemtodoseles,distribuíasfolhasàturma,tomandocuidadopara

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que ninguém recebesse seu próprio texto. Na semana seguinte, eles osdevolveramaosrespectivosautores.Opessoalficoumuitosério,olhandooquetinhasidofeito.Muitacoisa.Haviamarcasdetintavermelhadocomeçoaofim.Perguntei como se sentiram copidescando o texto de outra pessoa.

Falarammuito,eirritados.Tinhamficadosurpresoscomatrabalheiraquedeu e com a quantidade de erros bobos. Depois de uma hora dereclamações,pergunteicomosesentiramaoterseustextoscopidescados.Falaram,etambémirritados,masagorareclamandoquequemleraotextotinha sido impiedoso, não entenderaoque eles queriamdizer, alteraraotextocomcoisasquejamaistiveramaintençãodedizer.Osmaisespertoslogo perceberamque a carapuça lhes servia, e todos ficaram em silêncioquando se deram conta. Falei que deviam pensar naquela lição, e agorapodiamverqueprecisavamescreverdeumamaneiraqueoscopidesquesbem-intencionados – e deviam supor que os colegas eram bem-intencionados – não se enganassem quanto ao sentido. Disse-lhes que,muitasvezes,seustrabalhosseriamrevistosporcolegasepreparadoresdetexto, e que era melhor irem se acostumando à ideia, sem se sentirofendidos por causa disso. Deviam era tentar escrever com clareza, paraqueninguémentendessemalefizessealteraçõesqueiriamdesagradá-los.Então falei que podiam começar escrevendo praticamente qualquer

coisa,qualquerrascunho,pormaisfracoeconfusoqueficasse,edepoisotransformariam em algo bom. Para provar, eu precisava de alguém quefizesse um primeiro rascunho despreocupado, algumas ideias anotadassemmuitocuidadoesemnenhumacorreção.Expliqueiqueesserascunhoosajudariaadescobriroqueelesqueriamdizer. (Essa foiumadasvezesemque inventei algoque eunão sabiaque já estava sendodesenvolvidopelo pessoal da teoria da composição. Linda Flower (1979, p.36), porexemplo, expõe e analisa omesmo procedimento, chamando-o de “prosabaseada no escritor”, que “dá ao escritor liberdade de gerar uma grandeamplitude de informações e uma ampla variedade de relações possíveis,antesdeseprenderaumaformulaçãoprematura”.)Levoualgumtempoatéencontrarmos alguém disposto a enfrentar um processo tão arriscado.Distribuínaturmacópiasdodocumentoresultante.A moça que contribuiu com o texto fez algumas piadinhas nervosas

sobre si mesma, sobre colocar-se em risco ao deixar que as pessoas olessem. Para sua surpresa, os colegas ficaram admirados com o que elatinhaescrito.Podiamverqueestavamalredigidoeconfuso,mastambémpodiam ver, e dizer, que ela tinha ali algumas ideias realmente

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interessantes, as quais podiam ser desenvolvidas. Tambémmanifestaramsuaadmiraçãopelacoragemdela. (Nosanosseguintes,outrosestudantesdestemidoscausaramomesmoefeitosobreoscolegas.)Orascunhomostravaosrodeiosdaautoraparaabordaro tema(como

osescritoresdescritosemFlowereHayes1981),semmuitacertezadoquequeriadizer,repetindoamesmacoisaváriasvezesedediversasmaneiras.Nacomparaçãoentreasversões,ficoufácilenxergaraideiaqueelaestavarodeandoechegaraumaformulaçãomaisconcisa.Comisso,encontramostrês ouquatro ideias a ser trabalhadas epudemosver ou sentir algumasconexõesentreelas.Concordamosqueamaneiradetrabalharcomaquelerascunho seria fazer anotações nele, ver o que continha e depoismontarum plano geral para outro rascunho. Para que se incomodar em evitarredundâncias ou os outros defeitos que nos tinham dado tanto trabalhopara eliminar na semana anterior, se, tendo agora adquirido essas novashabilidades,seria fácil se livrardelesmaisadiante?Ficarsepreocupandocomessasfalhasapenasretardariaseuritmo,impediriaquevocêdissessealgo em alguma das maneiras que lhe dariam a pista de que precisava.Melhorcorrigirdepois,enãodurante.Osestudantescomeçaramaverquearedaçãonãoprecisaserfeitadeumatacadasó,umlancedetudoounada.Podia ser em etapas, cada qual com seus critérios de excelência (comoFlower e outros poderiam lhes explicar, mas talvez fosse melhordescobrirem por experiência própria). A insistência na clareza e noacabamento, adequada para uma versão mais adiantada, era totalmenteinadequadaparaasversõesmaisiniciais,cujoobjetivoeracolocarasideiasno papel. Chegando a tais conclusões, eles reproduziram alguns dosresultadosdeFlowerecomeçaramaentenderqueapreocupaçãocomasregrasderedaçãonumafasemuitoinicialdoprocessopodiaimpedi-losdedizeroquerealmentetinhamadizer(questãoapontadana linguagemdapsicologiacognitivaemRose1983).Não quero exagerar. Meus estudantes não jogaram fora as muletas e

começaramadançar.Masviramqueseusproblemastinhamsolução,eerasó isso o que eu queria. Sabendo que era possível, poderiam tentar. Sósabernãobastava,claro.Tinhamdeusaressesrecursos,integrá-losemsuarotina de escrita, talvez substituindo alguns dos elementos mágicos quehavíamoscomentado.Fizemosmuitas outras coisasno seminário.Discutimos retórica, lendo

Gusfieldsobrearetóricadasciênciassociais(1981)e“Apolíticaealínguainglesa” de Orwell (1954). Foi uma surpresa: Gusfield, o sociólogo, tevemaisimpactodoqueOrwell,oescritor.Elemostravacomoosescritoresda

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mesma área dos estudantes utilizavam recursos estilísticos para soar“científicos”, em especial apontando como as construções na voz passivapodiamcriarumafachadaimpessoalportrásdaqualoinvestigadorpodiase esconder. Discutimos a redação científica como forma de retórica, naintenção de persuadir, e quais eram as formas de persuasão tidas comolegítimas ou ilegítimas pela comunidade científica. Insisti na naturezaretórica da redação científica, embora os estudantes, como muitosdocentes,acreditassemquealgumasmaneirasdeescrevereramtentativasilegítimasdepersuadir,aopassoqueoutrasse limitavamaapresentarosfatos e deixavam que eles falassem por si sós. (Esse aspecto foiextensamente examinado por sociólogos da ciência e estudiosos daretórica. Ver, em especial, Bazerman 1981, Latour e Bastide 1983 e asreferênciasbibliográficasaofinaldestelivro.)Aqui, também, quem me ajudou foi aquele tipo de estudante, que eu

apreciomuito.Depoisdepassarmosumbomtempodiscutindoaretóricadaciência,eleperguntou:“Tudobem,Howie,euseiquevocênuncagostadenosdizeroquefazer,masvocêvaidizerounão?”Eeu:“Dizeroquê?”“Comoescreversemusarretórica!”Talcomoantes,todomundoestavanaexpectativa de que eu revelasse o segredo. Na hora em que ouviram ocolegacomentaremvozalta,seuspioresmedosseconfirmaram.Nãoerapossível escrever sem usar retórica e, portanto, não havia como fugir àsquestõesdeestilo.Durante vários anos ministrando o curso, desenvolvi uma teoria da

composição que descreve o processo que gera o texto e também asdificuldadesderedigi-lo.(Elaaparece,emformamaisgeral,emArtWorlds(Becker1982a),comoumateoriadecriaçãodetodasasespéciesdeobrasde arte. Embora derive de uma psicologia social muito diferente dapsicologia cognitiva que predomina nos trabalhos em teoria dacomposição,minhasideiassãosemelhantesàsdeFlowereHayesedeseuscolegas.)Aformafinaldequalquerobraresultadetodasasescolhasfeitaspor todas as pessoas envolvidas em sua produção. Quando escrevemos,fazemosescolhasconstantescomo,porexemplo,qual ideia tomaremos,equando; quepalavrasusaremospara expressá-la, e emqueordem;quaisexemplosdaremosparadeixarosignificadomaisclaro.Éevidenteque,naverdade,aredaçãoéposterioraumprocessoaindamaislongodeabsorçãoedesenvolvimentodasideias,esteporsuavezprecedidoporumprocessodeabsorçãoeseleçãodasimpressões.Cadaescolhacontribuiparamoldaroresultado.Se essa análise é fundada, estamos enganados ao pensar que, quando

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sentamos para escrever, vamos compor a partir do zero e podemosescreverqualquercoisa.Nossasescolhasanteriores–olhartalcoisadetalmaneira,pensaremtalexemploparadesenvolvernossasideias,empregartalmaneiradereunirearmazenardados, lertalromanceouassistiratalprogramade tevê–excluemnossasoutrasescolhaspossíveis.Acadavezquerespondemosaumaperguntasobrenossotrabalhoeoqueandamospensando ou descobrindo, nossa escolha de palavras afetará a maneiracomo vamos descrevê-lo da próxima vez, talvez quando estivermostomandonotasoumontandoumplanogeral.Os estudantes, em sua maioria, tinham uma visão mais convencional,

encarnadanafamosamáximaquediz:sevocêpensacomclareza,escreverácomclareza.Elesachavamquedeviamelaborar tudoantesdeescreveraPrimeira Palavra, reunindo todas as suas impressões, ideias e dados, eresolvendo explicitamente todas as questões teóricas e empíricasimportantes.Docontrário,podiasairerrado.Encenavamritualmenteessacrençaabstendo-sedecomeçaraescreverenquantonãoempilhassemnamesa todos os livros e anotações de que talvez viessem a precisar. Alémdisso, achavam que tinham liberdade de escolha na maioria dessasquestões,oquelevavaaobservaçõescomo“CreioquevouusarDurkheimemminhaseçãosobreaparteteórica”,comosejánãotivessemresolvidomuito tempo antes as questões teóricas sugeridas pela invocação deDurkheim (ou de Weber ou Marx), na maneira como haviam feito otrabalho. (Os estudiosos de outras áreas saberão quais Grandes Nomespodemusaraqui.)Minhateoriaseguenadireçãooposta:aosesentarparaescrever,vocêjá

fezmuitas escolhas,mas provavelmente não sabe quais foram. É naturalqueissoleveaalgumaconfusão,aumprimeirorascunhobembagunçado.Mas um rascunho confuso não é vergonha nenhuma. Pelo contrário, elemostraquaisforamsuasprimeirasescolhas,comquaisideias,perspectivasteóricaseconclusõesvocêjásecomprometeuantesdecomeçararedigir.Ciente de que escreverá muitos outros rascunhos, você sabe que nãoprecisasepreocuparseesseprimeiroestámuitocruedesconjuntado.Elesedestinaa fazerdescobertas,nãoa serapresentado (adistinçãoédeC.WrightMills(1959,p.222),seguindoReichenbach).Assim,aredaçãodeumprimeirorascunhocruvailhemostrartodasas

decisõesanterioresqueagoramoldamoquevocêpodeescrever.Nãopode“usar” Marx se foram as ideias de Durkheim que moldaram seupensamento.Nãopodeescreversobrecoisasqueseusdadoscoletadosnãorevelam ou que seu método de armazenamento de dados não permite

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demonstrar.Vocêvêoquetemeoquenãotem,oquejáfezejásabe,eoque falta fazer. Você vê que a única coisa que falta – embora já tenhacomeçadoaescrever–édeixartudomaisclaro.Orascunhoinicialmostraoquevocêprecisadeixarmais claro; as técnicasde revisãoe reelaboraçãovãolhepermitirisso.Nãoétãosimplesassim,claro.Aspróximasescolhas,feitasnarevisãoe

na reescrita, também dão forma ao resultado. Você não podemais fazerqualquer coisaquequeira,masháainda inúmeras escolhas.Essasoutrasquestões de linguagem, organização e tom costumam dar muita dor decabeçaaosautores,porqueelasimplicamoutrastomadasdeposição,alémdas já feitas. Se você usa Durkheim para discutir ideias marxistas ou alinguagem dos levantamentos estatísticos para discutir um estudoetnográfico, provavelmente se verá trabalhando de modo contraditório.Foram essas confusões que causaram as dificuldades teóricas queencontramosemnossosexercíciosderevisãonoseminário.Sevocêcomeçaraescrevernumafaseinicialdapesquisa–antesdeter

todososseusdados,porexemplo–,issolhepermitiráclarearmaiscedoopensamento.Aoredigirumrascunhosemosdados, ficamais clarooquevocêquerdiscutire,portanto,quaisdadosterádereunir.Assim,oatodeescrever podemoldar seu plano de pesquisa. É diferente da noçãomaiscorrentedequeprimeirovocêpesquisaedepois“escrevedandoofecho”.ÉumaextensãodaideiadeFlower-Hayes(1981)dequeasfasesiniciaisdaredação levam os escritores a ver o que terão de fazer nas fasesposteriores.Darmaiorclarezaaotrabalholevantaaquestãodopúblico.Paraquem

ele deve sermais claro? Quem lerá o que você escreve? O que precisamsaber para não entenderemmal ou acharem que seu texto é obscuro ouininteligível?Vocêescreverádeumadeterminadamaneiraparaaspessoascom quem trabalha num projeto conjunto, de outra maneira paraprofissionaisde sua subárea, de outra ainda para profissionais de outrasdisciplinaseáreasdeespecialização,edeoutraparao“leigoinstruído”.Como saber o que os leitores vão entender? Você pode mostrar seus

rascunhosiniciaisaalgumaspessoasdopúblicoemvista,poramostragem,e perguntar o que acham. Foi isso que os participantes do semináriojulgaramtãodifícileassustador,pois,aomostrarumrascunhoàspessoas,ficariamexpostosaoridículoeàvergonha.Assim,arecomendação,emboraseja simples, talvez não seja exequível. Você só consegue mostrar seutrabalho falho se tiver aprendido – como eu esperava que aprendessemcomnossosexercíciosemsaladeaula–quenão sairá ferido seoutroso

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lerem.Naturalmente,nem todos sãoumbompúblicopara ler rascunhos.Descobrimosissonaquelecopidesquemútuo.Alguns,tendodificuldadeemtratar um rascunho como rascunho, insistem em criticá-lo como se fosseumprodutoacabado.Algunsleitorestêmmaisdiscernimentoeditorialdoque outros, e você precisa de um círculo de pessoas que você sabe quereagiráadequadamenteàetapaemqueseutrabalhoestá.Assim,alémdeumateoriadaatividadedaescrita,tambémprecisamos

deumateoriadaorganizaçãosocialdaescritacomoatividadeprofissional.Comoaspessoas,namaioria,escrevememabsolutaprivacidade,osleitoresatribuem os resultados somente ao autor, em crédito ou débito de suareputaçãoprofissional.Uso essa linguagem contábil porque geralmente éassimqueaspessoaspensamintimamente.Por que os escritores trabalham de maneira tão reservada? Como eu

disseantes,énaescolaounagraduaçãoqueamaioriadelesadquireseushábitosdeescrita,juntocomtodososrituaisdestinadosaeliminarocaoseos resultados risíveis, como forma de adaptação às situações em queescrevemnessafasedosestudos.Nasituaçãoemqueestão,osestudantessão premiados pela rapidez e competência em preparar textos curtos epassáveis,enãopelahabilidadeemreescrevererefazer.(SegundoWoodyAllen,“Oitentaporcentodavidaconsisteemfazercoisaseentregá-lasnoprazo”.)Osestudantesinteligentes–quantomaisinteligentes,maisrápidoaprendem – não se dão ao trabalho de desenvolver habilidadesdesnecessárias.Oquecontaéoprimeirorascunho,jáqueéoúnico.Àmedidaque avançamnapós-graduação, os estudantespassama ver

menosutilidadenapráticaderedigirtrabalhoscurtos.Nosprimeirosanos,dependendododepartamento,têmdeescreveromesmotipodetextoqueescreviamduranteagraduação.Mas,depois,precisamescrever trabalhosmais longos, desenvolvendo argumentos mais complexos, baseados emdados mais complicados. Poucos conseguem redigir mentalmente essestextos e acertar logo na primeira tentativa, ainda que possamingenuamente pensar que é assim que fazem os bons escritores. (“Fazercerto” significa exporo argumento com tanta clarezaqueo texto começaafirmando o que demonstrará mais adiante.) Assim, os estudantes seatrapalham, têm medo de “fazer errado” e não conseguem terminar noprazo.Escrevendonaúltimahora,redigemtextoscomideiasinteressantes,coerência apenas superficial e nenhum argumento claro por detrás –rascunhosinteressantesque,noentanto,osestudantesqueremquesejamtratadoscomoresultadosfinais.Alguns jovens cientistas sociais (e também muitos outros jovens

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acadêmicos), depois da tese, ingressam em situações que premiamaindamenosaqueleestilode trabalho.Asdisciplinasacadêmicasnãoestipulamdatas de entrega tão definidas. Não há “prazos” simples. Existem, claro,“prazos” profissionais: se você nãopublicar umaquantidade de artigos auma velocidade que seu departamento ou diretor considere suficiente,talvez não seja promovido, não receba aumento salarial ou não consigaencontrar outro emprego. Mas os cronogramas para essa produção sãoflexíveis, em parte determinados por caprichos administrativos, e aspessoas podem pensar, equivocadamente, que outras preocupações sãomaisprementes–prepararaulasoucuidardetarefasadministrativas–erequerematençãoimediata.Assim,osacadêmicosjovenspodemdescobrirque o tempo simplesmente passou sem que apresentassem uma cota deproduçãomais significativa do que a do período da graduação, e que sepermitiramignorarofatoporqueaorganizaçãonãolhesimpôsprazos.Visto que não há prazo definido para submeter um artigo à avaliação

nemum juizespecíficoparadarumanota,osacadêmicos trabalhamcomseus cronogramas pessoais e em ritmo próprio. Submetem os resultadosàquele corpo amorfo de jurados, “a comunidade profissional” ou, pelomenos, aos representantes daquela comunidade que editam periódicos,organizam as programações dos congressos profissionais e elaborampareceresparaaseditoras.Tomadosemconjunto,essesleitoresencarnama diversidade de opiniões e práticas dentro da disciplina. Às vezes, essadiversidade fazcomque,a longoprazo,raramenteumautordeixedeserpublicadoporterumaposiçãoerradaouportrabalharnumestiloerrado.Existemtantasentidadespublicandotantosperiódicosquetodosospontosde vista encontram acolhida em algum lugar. Mas os editores aindarejeitam artigos ou devolvem com a instrução de “revisar e submeternovamente”, pois ficam confusos – os autores escrevem sem clareza ouformulammaloproblemaquequeremabordar.Emdecorrênciadisso,a redaçãoprofissional se “privatiza”.Nãoháum

grupo de pares que compartilhe o problema do escritor. Nenhum grupotem de entregar omesmo texto nomesmo dia. Cada qual tem um textodiferenteparaentregarnahoraemqueficarpronto.Assim,osautoresdeciências sociais não desenvolvem uma cultura, um conjunto de soluçõescomuns para seus problemas coletivos. E assim nasce uma situação quetemsidochamadadeignorânciapluralista.Todomundoachaquetodososoutros estãoaprontandoo textopara entregá-lonoprazo.Guardamsuasdificuldadesparasimesmos.Talvezestasejaumadasrazõespelasquaisoscientistas sociais e outros acadêmicos escrevem num isolamento tão

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grande.Detodomodo,seusescritosexigemmuitareelaboraçãoeedição.Comoa

única versão que importa é a final, eles têm toda a razão em continuartrabalhando no texto até ficar bom. “Bom” não em vista do tempodisponível–esseéomodelovigentenagraduação–,masemvistadoqueimaginam que deva ficar. (Isso, naturalmente, está sujeito a algumasimposiçõesrealistas,demodoquealgumdiao texto teráde ficarpronto.Cabelembrar,porém,quealgumasgrandesobraslevaramvinteanosparaficar prontas e alguns acadêmicos se dispõem a pagar o preço pelaprodução demorada.) Masmuitos autores não sabem como reescrever epensam que todas as suas versões de qualquer coisa serão usadas parajulgá-los.(Empartetêmrazão.Essetrabalhoserásubmetidoajulgamento,mas,se tiveremsorte,o julgamentoseráadequadoàetapaemqueeleseencontra.) Então não produzem ou produzem com grande dificuldade,tentando dar uma forma perfeita a tudo o que põem no papel antes demostraraalguém.Uma exceção interessante a esse padrão se dá nos projetos emgrupo,

nos quais, para que o trabalho possa avançar, os participantes precisamestarsempreproduzindoparaseatualizarem.Osparticipantesdeprojetosbem-sucedidosaprendemaveros trabalhosde todoscomopreliminares,assim liberandoaspessoasdanecessidadederedigirrascunhosperfeitosjánaprimeiravez.Demodomaisgeral,osescritores resolvemoproblemado isolamento

cultivando um círculo de amigos que leem seus trabalhos no diapasãocorreto, tratandocomopreliminaroqueépreliminar,ajudandooautoradesemaranharasideiasconfusasdeumrascunhomuitocruouamelhorara linguagemambíguadeumaversãoposterior,sugerindoreferênciasquepossamserúteisoucomparaçõesquedeemachaveparaalgumobstinadoquebra-cabeça. Esse círculo pode incluir amigos da pós-graduação, ex-professores ou pessoas com algum interesse em comum. Essas relaçõesgeralmente são recíprocas. Conforme aumenta a confiança entre autor eleitor, o leitor pedirá ao autor para ler alguma coisa sua. Às vezes, umarelaçãodessetiposedesfazquandonãoseretribuiofavor.Algunsnãoconseguemlerascoisasdemaneiraapropriada.Prendem-se

amiudezas – às vezes, uma simples palavra quepoderia ser trocadaporoutra,evitandooproblema–enãoconseguempensarnemcomentarnadamais. Outros, geralmente conhecidos como excelentes editores de texto,enxergam o problema central e dão boas sugestões. Evite os primeiros.Procureestesúltimos.

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Esses são os conselhos sugeridos por uma teoria rudimentar sobresituações profissionais e problemas de redação que venho expondo. Ogrupodoseminário,sempreinteressadoemconselhosúteis,muitasvezesmefaziapontificarsobreminhaexperiênciapessoal.Boapartedoqueeudizia em resposta a esses aliciamentos consistia em argumentos bem-intencionados e provavelmente inócuos, mas vale citar algumaspreocupações.Osquedispunhamdealgumaexperiênciaprofissionaletiveramartigos

rejeitadosoudevolvidosparaumaprofundarevisãoqueriamsabercomoreagiràcrítica.Muitasvezesregrediamaumareaçãodealunodeescola:“Vou ter de fazer assim e assado só porque eles disseram?” Às vezespareciam artistas cujas obras-primas tinham sidomalhadas por filisteus.Davamaimpressãoderegrediremàquelaatitudequeacompanhaamaioriados estudantes ao longo da graduação, àquela ideia de que “eles” sãoarbitrários,nãotêmnenhumcritériodefato,decidemascoisascomolhesdá na veneta. Se as autoridades realmente não usam nenhum critérioestável, você não tem como lidar com suas críticas demaneira racional,examinando seu textopara ver oque énecessário; emvezdisso, precisadescobrireprovidenciaroqueelasquerem.(VeraanáliseemBecker,Geere Hughes 1968, p.80-92.) Os autores tinham prova disso nos conselhosmuitas vezes contraditórios que recebiam dos críticos: um dizia paraeliminarem alguma coisa, enquanto outro sugeria que ampliassem amesmaseção.Minhadicapráticanesseaspectoeraqueosleitoresnãosãoadivinhos,e

assim, quando a prosa de um autor é confusa ou ambígua, eles nãoentendem de imediato o que se pretende dizer e criam suas própriasinterpretações, às vezes contraditórias. Um problema frequente apareciaquando um autor começava um artigo sugerindo que ia abordar oproblemaX,eentãopassavaaanalisar,demodoplenamentesatisfatório,oproblemaY,errotípicodeumprimeirorascunho,facilmenteeliminávelnarevisão.Algunscríticos,detectandoaconfusão,sugeremqueoautorrefaçaa análise ou mesmo a pesquisa, de modo que o artigo possa realmenteabordar X. Já outros, mais realistas, dizem ao autor para reescrever aintrodução, esclarecendo que o artigo trata de Y. Mas os dois tipos decríticaestãoreagindoàmesmaconfusão.Oautornãoprecisa fazeroqueelesdizem,masdeveeliminaraconfusãoparanãogerarmaisreclamações.Outro problema que preocupava os participantes do seminário era a

coautoria,eoexemplosurgiunaprópriaturma.Pertodofinaldosemestre,quando havíamos cumprido toda aminha programação e eu estava sem

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saber o que fazer para ocupar as horas restantes do curso, sugeri queescrevêssemos em conjunto um artigo sobre um tema que todosconhecíamosemalgumamedida:osproblemasderedaçãoemsociologia.Numa variante dos velhos jogos de salão, cada um falava em sua vez,ditando a frase seguinte do texto. Todos contribuíram para o conjunto.Alguns tentavam seguir a linha sugerida pelos anteriores. Outros aignoravamecomeçavamtudodenovo.Outrosaindafizeramobservaçõespertinentes.Váriaspessoasanotaramassentençasàmedidaqueosoutrosfalavame,apedido,liamemvozaltaoquejáforadito.Quando terminamos, tínhamos dezoito frases e, para surpresa geral,

apesardetodososgracejose incoerências,nãoficouruimcomoprimeirorascunho, em vista do que havíamos concordado que seria amaneira deavaliar eutilizaros rascunhos iniciais.Naverdade, ficou tão interessanteque sugeri ampliá-loparapublicação. Isso gerouumapergunta imediata:onde publicaríamos? Avaliamos os tipos de periódicos que poderiam seinteressar pelo tema e, por fim, decidimos porThe American Sociologist,periódicodedicadoaproblemasprofissionaisqueaAssociaçãoAmericanade Sociologia, infelizmente, parou de publicar. Saí da sala para pegar umcafé. Quando voltei, o ambiente tinha degringolado. Os estudantestrocavam olhares furiosos e confessaram que, durante minha ausência,tinham começado a brigar por uma questão previsível. Se algunstrabalharammaisqueoutros,quemiapôronomenaversãofinal,eemqueordem?Fiqueibravocomaquilo,poiseraumainsensatez.Muitagentebrigapor

essaquestãomuitoconcreta.Apresenteiminhasolução:recuarumpoucoedarocréditoatodososquetinhamfeitoalgumacontribuiçãoaotexto.Eleslogo ressaltaram que um professor com estabilidade no cargo podia sepermitir tais ideias,masqueopessoalmaisnovonãopoderia.Nãoseisetinhamrazãoounão,masaideianãoparecetotalmentedescabida.Continuamos a conversar e logo vimos que apenas quatro ou cinco

estudantes estavam realmente interessados em prosseguir na tarefa. Oseminário foi na primavera, e eles toparam trabalhar no texto durante overão. Aí interveio novamente a organização social. O funcionamento dapós-graduação é organizado em turmas que se reúnem durante umtrimestre ou um semestre, que depois se dissolvem, e em projetos quedependem em boa medida de verbas disponíveis para custeá-los. Comonenhumadessasformasdecoordenaçãoautomáticaexistiaapósoperíodoletivo do seminário, os aspirantes à coautoria não tinham nada que osobrigasseasereunireprosseguirnotrabalho,eassimnãofizeram.Nunca

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escreveramoartigo.Emalgunsaspectos,estecapítulocorrespondeàqueleartigo,aoresíduo

do trabalho feito pelos participantes naquela turma e pormuitas outraspessoas, ao longo dos vários últimos anos. Quando o apoio dado pelasinstituições financiadoras de um trabalho coletivo é tão efêmero, e se defatohádisposiçãoparafazerotrabalho(coisaque,emgeral,nãoacontece),umdossobreviventesdogrupoprecisaassumi-locomoprojetoindividual.Foioqueaconteceunessecaso.

Adendo. Eunãodevia terditoprojeto “individual”,poiséevidentequenãofoi.Realmentepraticooquepregoedefatoenvieiestecapítulo(que,emsuaversãooriginal,eraumartigoindependente)aváriaspessoasquemeajudaramcomsugestões,queaceiteiemsuamaioria.Assim,entremeuscolaboradores estão, além de todos os participantes dos três cursos quedei,aspessoascitadasnoPrefácio.

aImplicânciapessoal,emfrancêsnooriginal.(N.T.)

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2. Personaeautoridade

ROSANNAHERTZ, queagoraéumacolega,masnaépocaeraumaestudantemuito avançada, entrou certo dia em minha sala e disse que queriaconversar comigo sobre um capítulo de sua tese em andamento, que euhaviacopidescadoparaela.Numtomcuidadoso,quemepareciadisfarçarumadosedeirritação,eladissequeconcordavaqueotextoestavamelhor– mais sucinto, mais claro, no geral muito melhor. Mas, prosseguiu, nãoentendiaosprincípiosportrásdoqueeutinhafeito.Seráqueeupoderiaexplicá-los,repassandootextojuntocomela?Faleiqueeunãosabiabemquais eram os princípios que regiam meu discernimento editorial e, naverdade, eu revisava e copidescava de ouvido (explicarei essa expressão,quenãoimplicaainexistênciaderegras,noCapítulo4).Masconcordeiquetentaria da melhor maneira possível. Fiquei em dúvida se eu realmenteseguia algumprincípio geral para editar um texto e pensei que, em casoafirmativo,eupoderiadescobrirquaiseramsetentasseexplicá-losaela.Rosanna trouxe o capítulo alguns dias depois. Eu reescrevera várias

partesdele,cortandoinúmeraspalavras,mas,esperavaeu,semafetaremnada o conteúdo de suas ideias. Era um ótimo trabalho –muitos dados,uma análise original, boa organização –, mas muito acadêmico everborrágico. Eliminei todas as redundâncias e floreios acadêmicos,achandoqueelaaprovaria.Repassamosotexto,umapáginaporvez,eelame questionou ponto por ponto. Nenhuma alteração envolvia termostécnicossociológicos.Ondeelaescreveu“posiçãounificada”,substituípor“acordo”,porqueeramaiscurto.Troquei“abordouaquestãode”por“falousobre”, porqueeramenospretensioso.Umexemplomais longo:ondeelaescreveu “Este capítulo examinará o impacto do dinheiro ou, maisespecificamente, dos rendimentos independentes nas relações entremaridoeesposa,comespecialatençãoaoâmbitodosassuntosfinanceiros”,troquei por “Este capítulo mostrará que os rendimentos independentesmudamamaneiracomomaridoeesposalidamcomassuntosfinanceiros”,pelasmesmasrazões.Elimineiqualificaçõesvazias(“tendea”),junteifrases

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querepetiamexpressõescompridase,quandoeladiziaamesmacoisadeduas maneiras em frases seguidas, removi a versão menos eficiente,explicandooqueeporquefaziaàmedidaqueavançava.Ela concordou com todas as minhas explicações ad hoc, mas não

estávamosdescobrindonenhumprincípiogeral.Pedientãoqueelapegasseuma página que não havia passado pormim e trabalhasse nela. Fizemosalgumaslinhaseaíapareceuumafrasedizendoqueaspessoasqueeramobjeto de seu estudo “poderiam se dar ao luxo de não se preocupar arespeitode”certascoisas.Pergunteicomoelaachavaquedariaparamudaraquilo.Elaolhou,olhouepor fimdissequenãovianenhumamaneirademelhorar aquela formulação. Então perguntei se ela não podia dizersimplesmentequeaspessoas“nãoprecisamsepreocuparcom”taiscoisas.Rosanna pensou, empinou o queixo e decidiu que era o momento de

defendersuaposição.“Bem,sim,émaiscurtoecertamentemaisclaro…”Aponderaçãoficouemsuspensodemaneiratãoflagrantecomoseelativessepronunciado as reticências em voz alta. Depois de um longo e pesadosilêncio,euperguntei:“Masoquê?”“Bom”,disseela,“ooutrojeitotemmaisclasse.”Minha intuição me avisou que aquelas duas palavrinhas eram

importantes.Faleientãoqueelapodiamepagartodosos favoresquemedeviaescrevendocincopáginasexplicandoclaramenteoquequeriadizercom “mais classe”. Ela ficou comum armeio embaraçado – era evidenteque agora eu estava me aproveitando tanto da amizade quanto daautoridade professoral – e falou que faria. Não posso culpá-la seme fezesperarunsdoismesesatéentregaraquelaspáginas.Maistarde,Rosanname contou que foi a coisamais difícil que teve de escrever na vida, poissabiaqueteriadefalaraverdade.Voucitarumlongotrechodesuacarta.Masnãoéapenasumaquestão

do caráter e da linguagem de um autor. “Mais classe” era uma pistaimportante,justamenteporqueRosannaestavadizendoemvozaltaoquemuitos estudantes e profissionais nas disciplinas acadêmicas sentiam epraticavam,mas,menoscorajosos,nãosedispunhamtantoaadmitir.ElesinsinuavamoqueRosannafinalmentepôsporescrito,easinsinuaçõesmeconvenceramdequeaatitudedelaerageneralizada.Acartaquerecebitinhaquatropáginasemespaçoduplo.Nãocitareina

íntegra,nemnasequência,porqueRosannaestavapensandoemvozaltanahoraemqueredigiueaordemnãoéessencial.Elacomeçavaobservando:

Emalgummomento,provavelmentenafaculdade,descobriqueaspessoasquefalavambemusavam

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palavrasdifíceis,quemeimpressionavam.Lembroquefizdoiscursoscomumprofessordefilosofiasimplesmente porque imaginei que ele devia ser muito inteligente, visto que eu desconhecia osignificadodaspalavrasqueusavaemaula.Minhasanotaçõesdessasaulassãopraticamentezero.Eu passava a aula anotando as palavras que ele usava e eu não conhecia, depois ia para casa eprocuravaoqueeram.Elemeparecia tão inteligentesimplesmenteporqueeunãooentendia…Amaneiracomoaspessoasescrevem–quantomaisdifíciloestilodaescrita–maisintelectuaiselasaparentamser.

Nãoporacaso,comodizem,elaaprendeuapensarassimnagraduação.O trecho mostra a perspectiva de um subordinado numa organizaçãoaltamente estratificada. As faculdades e universidades, apresentando-secomo comunidades de intelectuais que debatem assuntos de interessecomum com liberdade e imparcialidade, não são o que dizem ser. Osprofessores sabem mais, têm os títulos que provam isso, submetem osestudantes a exames e dão nota a seus trabalhos, e ocupam o topo dapirâmide,emtodososaspectosimagináveis,enquantoosestudantesficamnabase.Algunssesentemindignadoscomadesigualdade,masestudantesinteligentesqueesperamserintelectuaisaceitamdebomgrado.Acreditam,comoRosanna,queosprofessoresquelhesdãoaulassabemmaisedevemservir demodelos, quer façamcoisas com sentidoounão.Oprincípiodahierarquia assegura aos estudantes que eles estão errados e o professorestácerto.Eosestudantesconcedemosmesmosprivilégiosaosautores:

Quandoleioalgumacoisaenãoentendonahoraoquesignifica,sempredouaoautorobenefíciodadúvida.Suponhoqueéumapessoainteligenteesetenhodificuldadeementenderasideiaséporquenãosoutãointeligente.Nãosuponhoqueoreiestánu,nemqueoautornãoéclarodevidoaalgumaconfusão dele mesmo sobre o que tem a dizer. Sempre suponho que é minha incapacidade deentenderouque temalimais coisadoque sou capazdeentender…Suponhoque, se saiunoAJS[AmericanJournalofSociology],porexemplo,achanceédequesejabomeimportante,e,seeunãoentendo,oproblemaécomigo,vistoquearevistajáolegitimou.

Ela aponta mais uma questão, que outras pessoas tambémmencionaram. (Os sociólogos verão aqui um exemplo específico doproblema geral da socialização nos mundos profissionais, como tratado,porexemplo,emBeckereCarper1956ae1956b.)Ospós-graduandosqueestãoaprendendoaseracadêmicossabemqueaindanãosão intelectuaisdeverdade–assimcomoosestudantesdemedicinasabemqueaindanãosãomédicosdeverdade–eprocuramansiosamenteossinaisdeavanço.Asintaxeeovocabulárioabstrusodaprosaacadêmicaestereotipada fazemumaclaradistinçãoentreleigoseintelectuaisprofissionais,assimcomoahabilidade dos bailarinos profissionais de ficar na ponta dos pés osdiferencia dos relesmortais. Aprender a escrever como acadêmico é umpassoamaisparaingressarnaquelaelite:

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Pessoalmente acho a escrita acadêmicamaçante e prefiropassar o tempo lendo romances,masoelitismoacadêmicofazpartedasocializaçãodetodososestudantesdepós-graduação.Oquequerodizer é que a escrita acadêmicanão é a escrita corrente, pois vem redigidanuma taquigrafia queapenas os integrantes da profissão conseguem decifrar. … Creio que seja uma maneira de …preservar as fronteiras coletivas do elitismo.…As ideias devem ser redigidas de uma forma quefique difícil para os inexperientes entenderem. Isso é escrita acadêmica. E se você quer ser umacadêmico,precisaaprenderareproduziressetipodeescrita.

(Aqui é um bom lugar para ressaltar que Rosanna, ao escrever essestrechosqueestoucitando,adotoudeliberadamenteumpontodevistaquedepois veio a abandonar. Quando lhe perguntei, ela respondeu que nãopensamaisqueoestiloderedaçãotemalgoavercomainteligênciaouacomplexidadedasideias.)Ela deu alguns exemplos de escrita “com classe” que flagrou nos

própriostextos,explicandoporquetaislocuçõeslhepareciambonitas:

Em vez de escrever “elemora em”, prefiro “ele reside em”. Em vez de dizer “Os casais gastam odinheiro a mais” (ou “dinheiro adicional” ou até “renda disponível”), eu escolheria “rendaexcedente”. Soa mais respeitável. Um favorito meu é “fundado na disponibilidade de”: temmaisclasse do que “existe por causa de” (ou, ainda, “depende de”). Talvez soe mais distinto. Outroexemplo:eupoderiadizer“ajudantedoméstica”,masoqueescolhoé“mãodeobradeterceiros”.Naprimeiravezemqueusoaexpressão,ponhoum“istoé”aseguireexplico.Entãoficocomliberdadedeusar“mãodeobradeterceiros”aolongodetodootexto,esoamaisbonito.Creioqueaquestãoaquiéqueestouprocurandoumestilodeescreverquemefaçaparecerinteligente.

Nenhumadessaslocuçõesclassudastemqualquersignificadodiferentedos termosmais simples que elas substituem.Operam formalmente, nãosemanticamente.Escrever com classe para parecer inteligente significa escrever para

parecer e talvez até ser umdeterminado tipo de pessoa. Os sociólogos eoutrosacadêmicosagemassimporquepensam(ouesperam)que,sendootipocertodepessoa,osoutrosseconvencerãoaaceitaroqueelesdizemcomoumargumentopersuasivoemciências sociais.C.WrightMillsdiziaquea

faltadeinteligibilidadeimediata[naescritaacadêmica],creioeu,emgeraltempoucoounadaavercomacomplexidadedoassunto,eabsolutamentenadaavercomaprofundidadedepensamento.Tem a ver quase exclusivamente com certas confusões do escritor acadêmico sobre seu própriostatus.…Oshábitosestilísticosdossociólogosvêm,emgrandeparte,daépocaemqueelestinhampoucostatusemcomparaçãoaoutrosacadêmicos.Odesejodestatuséumadasrazõespelasquaisos acadêmicos escorregam tão facilmente para a ininteligibilidade. … Para superar a prosaacadêmica,primeirovocêprecisasuperaraposeacadêmica.(Mills1959,p.218-9,grifonooriginal)

Viver como intelectual ou acadêmico faz com que a pessoa queira semostrarinteligenteparasimesmaeparaosoutros.Masnãosóinteligente.

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Também quer se mostrar informada, traquejada, sofisticada, informal,profissional–osmaisvariadostiposdecoisas,muitasdasquaisoescritorpode insinuar nos detalhes de sua escrita. Espera que assim ela seráconsiderada confiável. Podemos analisar o que as pessoas querem dizerquando falamoupensamemescrever “comclasse”oudequalqueroutramaneira utilizando o conceito de persona (Campbell 1975), se meperdoarem esse termo classudo. Os escritores mostram suas personaeusando recursos de estilo,mas nãome deterei no estilo. Strunk eWhite(1959)eWilliams(1981)analisamotemaeensinamosescritoresausaros elementosde estilo comeficiência, e os leitorespodemacompanharoassunto em suas obras. (Os primeiros leitores desse manuscritoacrescentaram Bernstein 1965, Follet 1966, Fowler 1965 e Shaw 1975como bons guias para problemas estilísticos.) Quero destacar como osescritores usam personae para fazer com que os leitores aceitem seusargumentos.Talcomoapronúnciabritânicaindicaaosouvintesoestratosocialaque

pertenceo falante,aprosadeumacadêmico indicaaos leitoreso tipodepessoa que está redigindo.Muitos cientistas sociais e outros acadêmicos,tantoestudantesquantoprofissionais,queremsergente“comclasse”,quefalaeescrevedaquelamaneira.Aoescreverprosacomclasse, tentamserou,pelomenosdaraimpressãodeser,gentedeclasse.Masoqueéumapessoadeclasseparaumacadêmicojovemoumesmo

demeia-idade? Meus palpites sobre o conteúdo de tais fantasias podemestarerrados.Naverdade,essasfantasiasdevemvariarmuito,enenhumacaracterização exclusiva fará justiça a todas elas. Imagino da seguintemaneira: um sujeito de classe, para um jovem de tipo professoral, usapaletó de tweed com reforços de couro no cotovelo, fuma cachimbo (oshomens,pelomenos)esesentanasaladosprofessorestomandovinhodoporto e discutindo o último número doTimes Literary Supplement ou doNewYorkReview of Books com um bando de gente parecida. Vejam, nãoquerodizerqueaspessoascomtaisfantasiasqueiramrealmenteserassim.(A jovem elegante que, com seus comentários, despertou essa reflexãojamaisseriaapanhadaemtaistrajeseacessórios.)Masqueremfalarcomoumapessoadessas.Talveznãoexatamenteaquela pessoa,masa imagemnosdáumanoção.Quer alguns jovens acadêmicos e aspirantes a acadêmicos queiramou

nãoterclasse,apossibilidadenoslembraquetodosescrevemdeumacertamaneira,simulamumpersonagem,adotamumapersonaquefalaporeles.Os analistas literários sabem disso, mas raramente examinam suas

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consequências na escrita acadêmica. Os acadêmicos dão preferência aalgumaspoucaspersonaeclássicas,cujostraçosdãocoràsuaprosaeformaaos seus argumentos, tornando o texto resultante mais ou menospersuasivoparaosdiversospúblicos.Essaspersonaevivemnummundodeacadêmicos,pesquisadorese intelectuais,ondeéútilouagradávelserumdeles.O mundo intelectual mantém uma relação ambígua e difícil com o

mundo normal, e muitos acadêmicos se preocupam com sua relaçãopessoalcomaspessoasnormais.Seremosrealmentetãodiferentesdelasaponto de justificar a vida privilegiada a que sentimos ter direito e que,muitas vezes, realmente levamos? Quando alegamos que estamospensandoarduamenteemalgumacoisa,embora,vistosdefora,estejamosapenassentadosociososnumapoltrona,osoutrosdevemnosdeixarfazerisso? Por que teríamos meses de licença da rotina de trabalho “só parapensar”?E,sobretudo,alguémprestaráalgumaatençãoaoquepensamos?Por quê? A persona que adotamos ao escrever diz aos leitores (e, porextensão, a todos os potenciais céticos) quem somos e por que devemacreditaremnós,eissorespondeatodasasperguntas.Algumaspersonae – tiposhumanosgenéricos–adotadaspelosautores

tratam diretamente do problema das relações entre intelectuais e leigos.Muitasdelasressaltamasdiferençasentrenóseeles–nossasuperioridadeemáreasimportantes–quejustificamnossavidaemostramporquetodosdevem acreditar em nós. Quandomostramos classe, queremos nos ver equeosoutrosnosvejamcomosofisticados,conhecedoresdomundo,finose inteligentes. (Tornar-se intelectual ajudou tanta gente a subirna escalasocial que seria tolice ignorar o significado de “ter classe”.) Assim, seescrevemos com classe, mostramos que somos, de modo geral, maisinteligentes do que os seres comuns, temos sensibilidade mais refinada,entendemoscoisasqueelesnãoentendeme,portanto,devemacreditaremnós.Essapersonaéaquenoslevaausarumalinguagemempolada,palavras

compridas em vez de curtas, difíceis em vez de simples, com frasescomplicadas fazendo sutis distinções, que Rosanna costumava achar tãoatraentes. Nossa linguagem luta para ter a elegância que gostaríamos desentireencarnar.Outros escritores adotampersonae que ressaltam seus conhecimentos

esotéricos.Gostamdeparecermuitobem-informados,aquelessabidoscom“informaçõesprivilegiadas”queaspessoascomunsterãodeesperaratéasemana seguinte para ler no jornal. Os especialistas em assuntos

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relacionados de alguma maneira com os leigos – relações trabalhistas,políticainterna,talvezalgumpaísqueviramanchete–geralmenteadoramapresentaràspessoas coisasque sóeles sabem.Os “quegostamdeestarpor dentro”, ou “inside dopesters”, como os chama David Riesman,apresentam-se desta forma aos leitores mostrando uma profusão dedetalhes, na maioria inexplicados. Escrevem como se seu público fosseformadoporpessoasquejáconhecemoassuntoou,pelomenos,opanodefundo–sejaláoqueissofor–tantoquantoeles.Mencionamdatas,nomese lugares que somente umespecialista vai reconhecer, e não explicam.Aavalanchedeconhecimentosminuciososesmagaosleitores,quesesentemlevadosaaceitaroargumentodoautor.Comoalguémquesabetudoaquilopoderiaestarerrado?(Abstenho-medeincluirexemplosdetalhados,poisémuito fácil encontrá-los e também porque cada área tem suas variantes,queosleitoresencontrarãoeanalisarãoporcontaprópria,esperoeu.)James Clifford descreveu a persona antropológica clássica, (mais ou

menos)inventadaporBronislawMalinowski,quepersuadeoleitordequeoargumentoexpostoécorretopois,afinaldecontas,oantropólogoestavalá:

Malinowski nos dá a própria imagem do novo “antropólogo” – acocorado junto à fogueira doacampamento, observando, ouvindo e perguntando, registrando e interpretando a vida dostrobriandeses. A patente literária dessa nova autoridade é o primeiro capítulo deArgonautas [doPacíficoOcidental],dandolugardegrandedestaqueàsfotografiasdabarracadoetnógrafomontadaentreasmoradiaskiriwianas.(Clifford1983,p.123)

Clifford identificaalgunsdosrecursosestilísticosqueMalinowskiusoupara projetar a persona eu-estava-lá: 66 fotografias, uma “Relaçãocronológica de eventos kula presenciados pelo autor” e uma “alternânciaconstanteentreumadescriçãoimpessoaldacondutatípicaeafirmaçõesdaordemde‘Eupresenciei…’e‘Nossogrupo,vindodonorte…’”.Segundoele,tais recursos funcionampara reivindicar uma “autoridade conferida pelaexperiência”

baseadanuma“sensibilidade”aocontextoestrangeiro,numaespéciedecompreensãoepercepçãodo estilo de umpovo ou de um lugar.… A alegação deMargaretMead de captar o espírito ou oprincípiosubjacentedeumaculturapormeiodeumaelevadasensibilidadeàforma,aotom,aogestoeaosestilosdecomportamento,ouaênfasedeMalinowskisobresuavidanaaldeiaeacompreensãoderivada das “imponderibilia” [os imponderáveis] da existência cotidiana são casos ilustrativos.(Clifford1983,p.128)

Os cientistas sociais que fazem trabalho de campo ao estilo daantropologia usam recursos semelhantes para exibir uma persona que

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reivindica autoridade baseando-se no conhecimento íntimo. Um exemploclássico é a descrição de William Foote Whyte (1943, p.14-25), em seuestudo sobre o boliche e os desempregados, que todos os sociólogosconhecem.Apresenteialgumasamostrasderedação“comclasse”deRosannaHertz.

Émuitomais difícil dar exemplos de redação queprojetamapersona deautoridade.Otextosóteráessecaráterdeautoridadenarelaçãocomumdeterminadopúblico.SeoautorforneceonomedoprimeiropresidentedoSindicato dos Padeiros e cita a data de aprovação da Lei Wagner, nãocausaránumespecialistaemrelaçõestrabalhistasamesmaimpressãoquecausanumleitormenosespecializado.Assim,aautoridadenãoéintrínsecaaotexto.Taisrecursosfuncionamapenascomumpúblicoquenãoconheceaárea.(Maspodesernecessáriousarosmesmosrecursosparaconvencerosespecialistasdequevocêsabedoqueestáfalando.Umaespecialistanahistóriada fotografiamealertoucertavezqueseuscolegas iriamignorarumartigomeu sobre fotografia, pois eu tinha escrito onomedeMathewBradycomdoisteodeGeorgiaO’Keeffecomumfsó.)Muitaspersonaeacadêmicasdãoumaaparênciadeautoridadegeralaos

autores,comdireitoàúltimapalavrasobrequalquercoisadequeestejamfalando. Os autores que adotam essaspersonae adoram corrigir os errosdosleigos,dizercategoricamenteaosleitoresoqueaconteceráemalgumadelicadasituação internacional cujodesfechonemconseguimos imaginar,explicarque“nós,cientistas”ou“nós,sociólogos”sabemosdecoisasqueosleigosinterpretamerroneamente.Essas autoridades falam com imperativos: “Devemos reconhecer…”,

“Nãopodemosignorar…”.Falamcomo“se”doimpessoalfazendotaloutalcoisa,emvezdeusaraprimeirapessoa.(Algunsgramáticosjulgamqueopronome reflexivo impessoal “se” não pode ser usado substituindo aprimeirapessoa.Decertonuncaencontraramautoridadescomoasqueeuconheço.) Essas autoridades usam a voz passiva para indicar que suasafirmações dependem muito pouco delas pessoalmente, ou melhor,refletem a realidade a que têm acesso graças a seu especialíssimoconhecimento. Latour e Woolgar (1979) mostram que os cientistas delaboratóriocostumamusarumestilodeautoridademuitotípico,queocultatodosostraçosdaatividadehumanacomumque levouaseusresultados.(Gusfield1981eLatoureBastide1983 investigamesseproblemamaisafundoedãooutrosexemplos.)AlgunsescritoresadotamumalinhaWillRogers,queéapersonaqueeu

prefiro. Somos apenas uns caras simples, muito mais parecidos do que

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diferentesdaspessoascomuns.Talvezagentesaibaalgumascoisinhasqueos outros não sabem, mas não é nada de especial. “Pessoal, vocês iampensarigualamimseestivessemláevissemoqueeuvi.Ésóqueeutivetempooumedeiaotrabalhodeestarlá,evocêsnãoforamounãopuderamir,masmedeixemcontarcomoé.”Algodogênero.(Naverdade,esselivrointeiroéumextensoexemplodessapersona.)Esses escritores querem usar sua semelhança, sua identidade com as

pessoascomuns,parapersuadirosleitoresdequetêmrazãonoquedizem.Escrevemosdemaneiramais informal,preferimosospronomespessoais,apelamosaoquenóseoleitorsabemos,maisdoqueàquiloquesabemoseoleitornãosabe.Todoestilo,portanto,éavozdealguémqueoautorquerserouparecer

ser. Não examinei aqui todos os tipos. Um estudo propriamente ditocomeçaria com uma análise completa das principais vozes que osacadêmicos e intelectuais usampara escrever. Esse estudo ambicioso vaialémdasnecessidadesdestelivro.(Várioscientistassociaisjácomeçaramatarefa. Além de Clifford 1983, veja Geertz 1983 sobre antropologia eMcCloskey1983eMcCloskeynumartigoinéditosobreeconomia.)Essaanálisedaspersonaepodesugerirqueháalgodeilegítimoemfalar

comessasdiferentesvozes.Bom,éclaroquevocêpodeusaressesrecursosde modo ilegítimo, para disfarçar impropriedades do argumento ou dosdados.Mas,demodogeral,emparteaceitamosumargumentoquandoestáclaro que o autor conhece a área (inclusive o nome dos presidentes doSindicato dos Padeiros) ou tem uma cultura geral sofisticada querespeitamos–eisso,senãoélógico,éaomenosplenamenterazoável.Umautornãopodeserninguém;então,todoautorénecessariamentealguém.Podeseralguémqueosleitoresrespeitameemquemacreditam.A lista de personae disponíveis varia entre as disciplinas acadêmicas,

pois uma das fontes das personae são professores ou personalidadesfamosasnaárea.Admirandoosprofessores,osestudantes imitamnãosóseus maneirismos pessoais, mas também a maneira como escrevem,sobretudo quando esse estilo projeta uma personalidade característica.Assim, muitos filósofos adotaram a persona arrogante, desconfiada,hesitante de Ludwig Wittgenstein, bem como seu estilo coloquial eespicaçador na prosa. Da mesma forma, muitos sociólogos que optarampela etnometodologia enfeitavam seus artigos com as infindáveis listas equalificaçõesdofundadordadisciplina,HaroldGarfinkel.Imitar os professores é a forma específica de uma tendência geral de

indicar filiações teóricas e políticas segundo a maneira de escrever. Os

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acadêmicos se preocupammuito com a “escola” a que pertencem, e comboas razões, visto que muitas áreas, divididas em inúmeras facções,premiamecastigamaspessoaspelasfiliaçõesquemostram.Asdisciplinasraramenteagemcomorigorouaimpiedadequeosautoresimaginam,masacadêmicos nervosinhos não se dão conta plenamente dos perigos. Vocêpodemostrarfacilmentesuasfiliaçõesusandoovocabuláriocodificadodeumaescola, queédiferentedousadopelos seguidoresdeoutras escolas,emparteporqueas teoriasaquepertencem tais terminologias conferemum sentido ligeiramente diferente às palavras. Assim, por exemplo, asteoriassociológicas,emsuamaioria,baseiam-senaideiadequeaspessoasrecriam continuamente a sociedade fazendo, dia após dia, as coisas quereafirmamque este é omodo comoas coisas são feitas. Vocêpodedizerqueaspessoascriamasociedadeagindocomoseelaexistisse.Podedizer,seforumteóricomarxista,queaspessoasreproduzemasrelaçõessociaisnapráticacotidiana.SevocêforuminteracionistasimbólicoouumadeptodeBergereLuckmann,podefalaremconstruçãosocialdarealidade.Não são apenas palavras diferentes. Elas expressam concepções

diferentes. Mas não muito diferentes. Um vocabulário codificado nemsempretemumnúcleodesentidoúnico,mascontinuamosausá-lo,pois,seusássemosoutraspalavras,aspessoaspoderiampensarquepertencemos,ou gostaríamos de pertencer, a alguma outra escola. Essa finalidade deindicarafiliação,nousodosrecursosestilísticos, ficaespecialmenteclaraquando o autor diz coisas que entram em conflito com a teoria indicadapelalinguagem,istoé,quandoodesejodedizer“Soufuncionalista”ou“Soumarxista”émaiordoqueodesejodedizeroquepretende.(StinchcombedesenvolveessaideianumartigocitadoediscutidonoCapítulo8.)JohnWalton,quandoleuumaversãoanteriordestelivroerefletiusobre

suaexperiênciadedarumsemináriomaisoumenosparecidocomomeu,apontouquemuitasvezes

aspessoasqueremmuitomostrar suabandeira teórica, indicarao leitor sofisticado (professoroueditor)queestãonoladocertodeumaquestãocontroversa.Vejoissoprincipalmenteemtextosquequeremtransmitirumasofisticaçãonomarxismosemparecerortodoxiaoucapazdeserrotuladacomotal.Umtermocomo“formaçãosocial”inseridonolugarcertodizaoutrossofisticadosoquevocêquer,semtrazermuitorisco.

Walton aponta uma coisa importante entre parênteses – queremosindicaraalguémemparticular,nãoaumaabstração.Queméessapessoadependedocampoemqueestamosoperando,eoscamposcostumamsermais regionalizados do que imaginam os escritores acadêmicos,

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principalmenteparaosestudantes.Ossociólogoseoutrosprofessoresquevejo em Chicago expressam críticas e preocupações diferentes das queWaltonvêemDavis,naCalifórnia,enósdoistemospúblicosprofissionaismaisamplosquetambémsãodiferentesentresi.Lembrequeosescritoresacadêmicossefiliamaescolasdepensamento

e adotam posições políticas quando ainda estão na pós-graduação. Issoexplica outra fonte importante dos problemas estilísticos. Quando debaticom os estudantes a maneira como eles escreviam – quando sugeri aRosannaqueescrevessedeumjeitoque,paraela,nãotinhaclasse–,elesme disseram que eu estava errado porque era assim que os sociólogosescreviam.Passeimuito tempoargumentando até entender a que eles sereferiam.Éàquestãodaprofissionalização.Osaspirantesàcarreiraacadêmicase

preocupamsejásão,sepodemalgumdiaviraseroumesmosequeremseraquela espécie de intelectuais profissionais em que estão setransformando.Osestudantesdo segundo, terceiroouquartoanodapósaindanãoforam“ordenados”.Podemestarnadúvida.Aindanãopassarampelaseleçãofinal.Podemserexpulsos.Abancapoderejeitaratese.Quemsabeoquepodeacontecer?Essa incerteza cria outra razão (além das abordadas acima) para o

pensamentomágicoeaspráticasrituais.Sevocêagircomosejáfosseumcientistasocial,podeenganaratodoseseraceitocomotal,eatéenganarasimesmo.Escreveréumadaspoucasmaneiras comoumpós-graduandopodeagircomoprofissional.Talcomoosestudantesdemedicinasópodemfazeralgumasdascoisasquecompõemarotinadeummédicodeverdade,ospós-graduandosnãosetornamprofissionaisenquantonãoreceberemodiplomadedoutorado.Atélá,podemdaraulascomoprofessoresauxiliaresetrabalharemprojetosdeterceiros,masnãoserão levadosasériocomoalguém realmente titulado. Pelo menos é o que pensam, e estãobasicamentecorretos,eassimadotamoqueveemaoseuredor,oestiloemquesãoescritososlivroseartigosdeperiódicosespecializados,comoumasinalizaçãoadequadadesuapertençaàquelemeio.Que tipo de redação pode desempenhar essa função para eles? Não a

prosasimples.Issoqualquerumpodefazer.Osestudantestêmasatitudesdemuitospúblicosdearteemrelaçãoaosmodos“comuns”deexpressão:

Os inovadores artísticos muitas vezes procuram evitar o que consideram como excessivoformalismo, esterilidade e hermetismo de seu veículo explorando as ações e objetos da vidacotidiana. Coreógrafos como Paul Taylor e BrendaWay usam a corrida, o salto e a queda comomovimentosdedançaconvencionalizados,emvezdosmovimentosmaisformaisdobaléclássicoou

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mesmodadançamodernatradicional.…[Mas]ospúblicosmenosenvolvidos,paradistinguirentrearteenãoarte,procuramexatamenteoselementosformaisconvencionaisqueosinovadorestentamsubstituir. Eles não vão ao balé para ver gente correndo, pulando e caindo: podem ver isso emqualquer lugar. Vão é para ver gente fazendo os movimentos formais difíceis e esotéricos queconstituem “a verdadeira dança”. A capacidade de vermaterial comum comomaterial artístico –enxergarque correr, saltar e cair não são apenas isso,mas compõemos elementosdeumaoutralinguagemdomesmoveículo–é,portanto,oquediferenciaosmembrosrealmentesériosdopúblicodaqueles membros apenas socializados culturalmente, e a ironia é que estes últimos conhecemmuitobemtaismateriais,sóquenãoosreconhecemcomomateriaisartísticos.(Becker1982a,p.49-50)

Os estudantes são assim. Conhecem a linguagem simples, mas nãoquerem usá-la para expressar o conhecimento que ganharam a duraspenas.Lembreaqueleestudantequedisse:“Puxa,Howie,quandovocêdizassim, fica de um jeito que qualquer um pode dizer.” Se você quer seconvencerdequeo tempoeoesforçopara conseguirodiplomavalemapena, de que você está se transformando em algo quemudará sua vida,entãovocêquerparecerdiferente,nãoigualatodososoutros.Issoexplicaum círculo vicioso realmente maluco, em que os estudantes repetem ospiores excessos estilísticos que aparecem nas revistas acadêmicas,aprendemquesãoessesmesmosexcessosquediferenciamseustrabalhosdaquiloquequalqueridiotasabeediz,escrevemmaisartigoscomoaquelescomqueaprenderam,submetemessesartigosaperiódicoscujoseditoresos publicam porque não há nada melhor à disposição (e porque osperiódicosacadêmicosnãopodemsepermitirmuitasdespesascomediçãodetexto)e,assim,fornecemamatéria-primaqueensinarámaushábitosamaisumageração.Eupensavaqueaideiaque“eles”faziamquandoagenteescrevedessa

maneira era mera paranoia estudantil. Quando publiquei o primeirocapítulo deste livro emTheSociologicalQuarterly, os editores receberamumacartaapontandoalgumasdasmesmasquestões:

Sugerimosqueumavoznova, um “desconhecido”na áreahojeprecisa conquistar o “respeito” daprofissãocomacompilaçãodeumvolumeconsideráveldepesquisaeredaçãotradicionalantesdeter autorização para adotar o estilo direto e despojado defendido porBecker. Alguns editores deperiódicos podem estar “autorizados” a utilizar esse estilo e, assim, são receptivos a ele quandoalcançamposiçõeseditoriais;todavia,areceptividadedoseditorespodeserumaspectodiscutível,visto que a maioria das publicações conta com pareceristas. Talvez alguns pareceristas sejamreceptivos a esse estilo de escrita, mas talvez a maioria não seja. Os artigos que são prolixos,pretensiososeenfadonhosaindaabundamnasociologia.…Questionamosseéprudenteaconselharosestudanteseosdocentesrecém-ingressadosnomundodo“publicaroumorrer”aabandonaremoestilo rígido e pesado da disciplina. … Atualmente, e no futuro provável, os estudantes de pós-graduação … “aprendem” a escrever lendo o que está escrito. Geralmente encontram escritosenfadonhos, prolixos, pretensiosos, perpetuando o problema e sugerindo que a maioria dospareceristasesperatalestiloempolado.(HummeleFoster1984,p.429-31,grifomeu)

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3. AÚnicaManeiraCerta

OS ESCRITORES ACADÊMICOS têm de organizar seu material e expor umargumentocomclarezasuficienteparaqueosleitorespossamacompanharo raciocínio e aceitar as conclusões. Dificultam a tarefa mais do que onecessárioquandopensamqueexisteumaÚnicaManeiraCertade fazer,quando pensam que cada artigo que escrevem tem uma estruturapredeterminada que precisam encontrar. Por outro lado, simplificam atarefaquandoreconhecemqueexistemmuitasmaneiraseficientesdedizeralgumacoisaeprecisamapenasescolhereempregarumadelasparaqueosleitoressaibamoqueelesestãofazendo.Tenhomuitos problemas com estudantes (e não só com eles) quando

leioseusartigosesugiroalterações.Ficamcalados,nervososeencabuladosquando digo que é um bom começo, você só precisa fazer isso, aquilo eaquilooutroevaificarbom.Porqueelesachamqueháalgodeerradoemmodificaroqueelesescreveram?Porquesãotãoariscosparareescrever?Pode ser preguiça. Você pode concluir (o Capítulo 9 trata disso) que

daria trabalhodemais refazer.Vocêsimplesmentenãoestámaisa fimdedigitarumapáginatodadenovooufazerumcorta-e-cola.Mas,emgeral,estudanteseacadêmicosrelutamemreescreverporque

sãosubordinadosnumainstituiçãohierárquica,normalmenteumaescola.A relação senhor–escravooupatrão–operário, característica das escolas,fornece várias razões para não quererem reescrever, muitas delasplenamentesensatas.Osprofessoreseadministradorespretendemqueossistemas de premiação de suas escolas incentivem o aprendizado. Masesses sistemas geralmente ensinamos graduandos a tirar boas notas emvezdeseinteressarpelostemasqueestudamouemfazeralgorealmentebom.(EssadiscussãosebaseianapesquisaapresentadaemBecker,GeereHughes 1968.) Os estudantes tentam descobrir, perguntando aosmonitores e se baseando na experiência de outros estudantes, o queexatamente precisam fazer para tirar boas notas. Quando descobrem,fazemoque aprenderamque énecessário fazer, e só. Poucos estudantes

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aprendem (e aqui podemos nos basear em nossas lembranças pessoaiscomo estudantes e professores) que precisam reescrever ou revisarqualquer coisa que seja. Pelo contrário, aprendem que um estudanterealmente inteligente faz o trabalho uma vez, da melhor maneira que épossível,numatacadasó.Sevocênãoseimportamuitocomotrabalhoqueestáfazendo–seéapenasumatarefaparaumcursoevocêcalculaquevaleapenasaquele tantodeesforçoenadamais –, entãoprovavelmentevocêfazdeumavezsó,edane-se.Vocêtemcoisasmelhoresparafazercomseutempo.Asescolastambémensinamosestudantesatomararedaçãocomouma

espéciede teste:oprofessorpassaoproblemaevocê tentaresolver,eaívaiparaoproblemaseguinte.Umachanceporproblema.Refazerotesteé,de certa forma, “trapacear”, aindamais sevocêagora temavantagemdeterrecebidoorientaçõesdeoutrapessoadepoisdaprimeiratentativa.Emcerto sentido, deixa de ser um teste imparcial de suas capacidades. Vocêpodeouviroprofessordasextasérieperguntando:“Foivocêquefeztudosozinho?”Umestudantepodeacharqueéajudaetrapaçaoquegentemaisexperiente consideraria positivamente como reação crítica de leitoresentendidosnoassunto.Joseph Williams me sugeriu que os estudantes, sendo jovens,

simplesmente não têm a experiência de vida que os deixaria usar aimaginação para sair de seu próprio mundo egocêntrico. Assim, nãoconseguemimaginarareaçãodeumpúbliconemapossibilidadedeoutrotexto que não seja o que já fizeram. Pode ser verdade. Mas a falta deexperiência talvez derive não tanto da idade, e sim damaneira como asescolas infantilizam os jovens. Os estudantes de pós-graduação, semdúvida,avaliamcommaisperspicáciaanecessidadedereescreverquando,pensandoemparticipardeumcongressoprofissional,anteveemosataquesde totais desconhecidos à lógica, aos dados e à prosa do artigo queapresentariam.Tais razões talvez expliquemporque aspessoasnão reescrevem seus

textos,masnãoavergonhaeoconstrangimentoquesentemàmeraideiade reescrevê-los. Esses sentimentos também têm origem nas escolas.Ninguém associado às escolas, sejam professores ou administradores,explicaaosestudantescomoostextosqueleem–manuaisourelatóriosdepesquisadeseusprópriosprofessores,porexemplo–sãorealmentefeitos.De fato, como eu disse antes (citando Latour, Shaughnessy e outros), aseparaçãoentretrabalhoacadêmicoedocênciaemquasetodasasescolasocultaoprocessoaosestudantes.(Assimcomo,segundoThomasKuhn,as

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histórias da ciência ocultam todos os erros e tropeços nos programasdepesquisa que produziram os sucessos enaltecidos por elas.) Como osestudantes nunca veem seus professores e menos ainda os autores dosmanuaisdecursocomamãonamassa,nãosabemquetodoselesrefazemas coisas, em vez de tratar o trabalho profissional como uma espécie deteste. Os estudantes não sabem que faz parte da rotina de editores deperiódicos devolver os artigos para revisão, que as editoras contratampreparadoresparamelhoraro textodos livrosqueserãopublicados.Nãosabemquetodospassamporrevisãoeediçãodetexto,equenãosãomerosprocedimentos de emergência apenas para casos de escandalosaincompetênciaprofissional.Os estudantesveemseusprofessores, e os autoresdos livrosde curso

recomendados pelos professores, como autoridades também por outrarazão evidente: estão acima deles na hierarquia acadêmica. Eles são oschefes,quedãonotasejulgamseotrabalhodosestudantestemqualidadesuficiente. A menos que concluam que as instituições de ensino quefrequentam são fraudes (e é surpreendente como são poucos que fazemisso,considerandoasprovasquetêmdiantedesi),osestudantesaceitarãoa proposição organizacional implícita de que as pessoas que dirigem asescolas sabem o que estão fazendo. Assim, não só seus superioresacadêmicos – até onde eles podem ver – nunca reescrevem nada, comotambém fazem “certo” já da primeira vez. Os estudantes aprendem erealmenteacreditam,pelomenosporalgumtempo,queos “escritoresdeverdade”(ou“profissionais”ou“genteinteligente”deverdade)fazemcertodeprimeira.Sóosotáriosprecisamrefazer.Essapodesermaisumaversãodamentalidade de teste: a habilidade de acertar na primeira vezmostraumacapacidadesuperior.Issotambéméhierarquia,emsuaplenitude,emseupior:ossubordinadosaceitandoavaliações–comonotaseobservaçõesdosprofessores,quesão legitimadaspelaestratificaçãodaacademiaedatitulação–comoavaliaçõesdefinitivase inquestionáveisdovalorpessoaldeles. (Becker, Geer e Hughes 1968, p.116-28, apresentam dadosdetalhadosparatalinterpretação.)Todas essas ideias – sobre não reescrever, sobre o trabalho escolar

como sinal de valor – se baseiam na falsa premissa de que existe uma“respostacerta”,a“melhormaneira”defazerascoisas.Algunsleitoresvãopensar que estou criando um estereótipo, que os discentes e docentessérios sabem que não existe uma Única Maneira Certa. Mas discentes edocentesrealmenteacreditamqueháumaÚnicaManeiraCerta,porqueasinstituições a que pertencem encarnam essa ideia. As ideias da resposta

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certa e da melhor maneira encontram abrigo natural na hierarquia. Aspessoasemgeralacreditamqueosocupantesdosescalõesmaisaltosnasorganizações hierárquicas sabem mais e melhor do que os dos escalõesmais baixos. Não, não sabem. Estudos das organizaçõesmostram que ossuperiores até podem sabermais sobre algumas coisas, mas geralmentesabemmuitomenossobremuitasoutrascoisas.Sabematémenossobreaatividadecentraldaorganização,quevocêimaginariaqueconhecembem.Masateoriaoficialdaorganizaçãoe,normalmente,dasociedadeemtornodela,ignorataisresultados,sustentandoqueosmaisgraduadosrealmentesabemmais.Oqueelessabem,defato,épordefiniçãoa“respostacerta”.Por mais que as verdadeiras autoridades sobre certo assunto saibam

que nunca existe só uma resposta certa, e sim inúmeras respostasprovisóriasdisputandoatençãoeaceitação,osestudantes,emparticularosgraduandos, não gostam desse tipo de conversa. Para que se dar aotrabalhodeaprenderalgumacoisaquenãoéverdade,seamanhãterãodeaprender outra coisa no lugar dela? E tampouco os acadêmicos queacreditamna verdade, se foram eles mesmos que a descobriram ou sãoapenas seguidores dos descobridores, gostamdesse tipo de conversa. Oslíderesdaáreadevemsaber.Oqueelessabeméoqueestánolivro.Estaéaverdadeira hierarquia, como se vê com máxima clareza quando umaexperiênciaquímicafeitaemsaladeaulanãotemoresultado“correto”eoprofessordizaosestudantesoquedeviateracontecidoeoque,portanto,devemanotaremseuscadernos.(Sim,issoacontecedeverdade.)Se existe sóuma resposta certa, e se vocêacreditaqueas autoridades

quedirigemainstituiçãoondevocêtrabalhaaconhecem,entãovocêsabequesuatarefaédescobriressarespostaereproduzi-laquandonecessário,assimmostrandoquemereceserpremiado,etalvezatésetornarumdosguardiões. Esta é a versão do estudante de graduação. Uma versão umpoucomaissofisticadaafligepós-graduandoseprofissionais.Comooquevocêestáescrevendoéalgonovo,aindanãoexisteaÚnicaManeiraCerta,masseuidealplatônicoexisteemalgumlugarecabeavocêencontrá-loepô-lo no papel. Imagino que muitos de nós gostaríamos que os leitoressentissemqueencontramosamaneiracertapredeterminadadedizeroquedizemos, parecendo que só poderia ser dito dessa maneira. Mas osescritorespravalerdescobremaquela formaperfeita(istoé,a formaquefaz o que eles querem que seja feito, muito embora não seja a únicapossível)somentedepoisdelongaexploração,enãodaprimeiravez.HarveyMolotchtratouaquestãodaseguintemaneira,numamensagem

amim:

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Umproblemadopessoalqueescreveéaideiaqueelestêmnacabeçadequeumadeterminadafrase,parágrafoouartigoprecisaserocerto.A formaçãodelesnumcampode “fatos”,noenaltecimentodas“respostascertas”–inclusiveaabordagem“certa”emseuslivrosdequímicaexperimentaloudecomposição em inglês – deixa-os paralisados na frente do computador. O problema deles é queexistemmuitasfrasescertas,muitasestruturascertasparaumensaio…Precisamosnoslibertardaideia de que existe apenas uma maneira CORRETA. Se não nos libertamos, a contradição com arealidade nos asfixia totalmente, visto que não é possível demonstrar com clareza (para nósmesmos)qualfrase,parágrafoouartigoéocerto.Osestudantesveemsuaspalavrassaírem,maséclaroqueessaspalavras–numprimeirorascunho–nãopassamnemnotestedo“Razoável”,emuitomenos no do CORRETO e da ESSÊNCIA PERFEITA DO CORRETO. Não tendo o conceito de tentativa, de umprimeirorascunho,denrascunhos,sópodemmesmosentirfrustraçãodiantedofracasso.Depoisdealgumtempo,apessoavêasprimeirasformulaçõesmentaisdeumparágrafooudeumartigosendoclaramentereprovadasnesseteste–eaíelanemcomeça:sofreobloqueiodoescritor.Omedodofracassotemfundamento,poisninguémpassarianesse teste impostoa siprópriodeobteraúnicaversão correta, e esse fracasso fica evidente de modo muito especial (e desgastante) na fase doprimeirorascunho.

Algumas dificuldades de escrita muito correntes e específicas têmorigem nessa atitude: o problema de começar e o problema sobre “amaneiradeorganizar”.Nenhumdelestemumasoluçãoúnica.Tudooquevocê fizerseráumaconciliaçãoentrepossibilidadesconflitantes. Issonãosignificaquevocênãochegaráasoluçõesexequíveis;significaapenasquenãopodecontarqueencontraráaúnicasoluçãoperfeita,queestavaaliotempointeiroàesperadeserencontrada.Geralmente os escritores, mesmo profissionais, têm problema em

começar. Começam e recomeçam várias vezes, inutilizando resmas depapel, retrabalhando sem cessar a primeira frase ouparágrafo, àmedidaque julgam cada nova tentativa insatisfatória sob algum novo aspecto.ComeçamassimporqueacreditamqueexisteumaÚnicaManeiraCerta.Epensam que, se pelomenos conseguissem encontrar aManeira Certa decomeçar, todo o resto viria por si só e desapareceriam todos os outrosproblemasqueelestememestaràespreita.Elesprópriossecondenamaofracasso.Imaginequeestouexpondomeuestudosobreosprofessoresdaredede

ensinopúblicoemChicago. (Usocomoexemplo, sem falsamodéstia, essevelhodocumento,minhatesededoutorado,porqueconheçobemotemaeporque os problemas ilustrados ainda afligem os estudantes, os quaispoderão ver algum proveito nas soluções que apresento.) Em termosamplos,oestudoabordavaaraça,aclassesocial,aculturaprofissionaleaorganização institucional. Como vou começar? Posso dizer: “A cultura doprofessordeescoladefineosalunosdeclassebaixa,especialmentenegros,comodifíceisde trabalhar.Emconsequênciadisso,osprofessoresevitamessas escolas, transferindo-se para escolas de classemais alta tão logo o

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tempodecarreiralhespermite,eisso,porsuavez,significaqueasescolasdas classes baixas estão sempre preenchidas por professores novos einexperientes.”Emboraeuestejafalandodeumateseconcluídaeaprovadaem 1951, ainda tenho dificuldade em redigir uma frase introdutóriaconcisa.(Imagineeutentandofazerissoem1951,quandoaindanemsabiabemdoquetratavaatese.)Quandoolhoafrasequeacabeidedatilografar,posso pensar: “Espere aí, quero mesmo dizer ‘cultura do professor deescola’?Afinal,nãoéexatamenteculturanosentidoantropológicoestrito,é?Querdizer,nãoa transmitemdeumageraçãoaoutra, eelanãocobretodosos aspectosdavida,nãoéum ‘projetodevida’. Se euusar cultura,tenhocertezadequevaidarproblema,emereço,poisestareidizendoalgoquenãoéoquepretendo.”Entãojogoaquelafolhanocestodelixoetentooutravez.Posso trocar “cultura” por “crenças em comum” e me sentir mais

satisfeitoassim.Masaíeuvejoqueestava falandoemclassese lembrooemaranhado de implicações que cercam todas as maneiras como ossociólogosfalamdeclasse.Aqueversãomerefiro?ÀdeW.LloydWarner?À de Karl Marx? Posso decidir voltar mais uma vez à bibliografia sobreclassessociaisantesdeusarotermo.Aíponhooutrafolhanamáquinadeescrever.Masagoraperceboquedisse:“Comoresultadodetaloutalcoisa,os professores alguma outra coisa.” É uma afirmação causal bem direta.Seráqueeurealmentepensoqueacausalidadesocialoperaassim?Nãoémelhor usar alguma expressão menos comprometedora? Em suma,qualquer formulação me levaria por algum caminho que eu não tinhaexploradointeiramenteetalveznãoquisesseseguir,seentendessedefatooqueestariaabraçando.Oscomentáriosmaissimplestinhamimplicaçõesque talvez eu não quisesse, e nem sabia que estava sugerindo taisimplicações. (Os leitorescuriosospodemveroqueacabeiescrevendoemBecker1980.)É por isso que as pessoas fazemumplano geral. Quando você faz um

esboçodetodooquebra-cabeça,elemostraparaondevocêestáindo,ajudaacaptar todasas implicações,aevitar todasasarmadilhasea fazer tudocerto.VocêencontraráaÚnicaManeiraCerta.Umesboçopodeajudá-loacomeçar, mesmo que não aponte o Caminho, mas somente se for tãodetalhado a ponto de se converter no próprio artigo, e não seu meroesqueleto.Éomesmoproblema,emformalevementediferente.O problema das implicações indesejadas aparece de modo

especialmente difícil nas apresentações e introduções. Quando eu aindaestavanapós-graduação,EverettHughesmedisseparadeixaraintrodução

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por último. “Uma introdução pretende apresentar. Como você vai poderapresentaralgoqueaindanãoescreveu?Vocênãosabeoqueé.Ponhaporescrito e aí você poderá apresentar.” Ao fazer assim, descubro quedisponhodeumavariedadede introduçõespossíveis, todas elas corretassobalgumaspecto,todaselastrazendoumenfoquelevementediferenteaminhas ideias.Nãopreciso encontrar aÚnicaManeiraCertaparadizer oquequerodizer;oqueprecisoédescobriroquequerodizer.Masescreverumaintroduçãoficamaisfácildepoisdedizertudoesaberbastantebemoquequerodizerdoquenomomentoemqueestouescrevendoaprimeirafrase.Seescrevominhasfrasesintrodutóriasdepoisdeterminarocorpodotexto,oproblemadaÚnicaManeiraCertasetornamenospremente.O receio de se comprometer com as implicações de uma formulação

inicial tambémexplicaporqueaspessoascomeçamcomaquelas fraseseparágrafosvazios tão frequentesna escrita acadêmica. “Este estudo tratadoproblemadascarreiras”ou “Araça,aclasse,aculturaprofissionaleaorganização institucional afetam o problema do ensino público”. Essasfrasesmostramuma típicamanobrapara se esquivar, apontando algumacoisasemdizernadaouquasenadasobreela.Oquehánascarreiras?Comotodas essas coisas afetam o ensino público? As pessoas quemontam umplano geral fazem a mesma coisa criando tópicos, em vez de frases. Noinstanteemquevocêconverteostítulosdostópicosemfrasesnãovazias,retornamosproblemasqueoplanogeraltinharesolvido.Noentanto,muitoscientistassociaispensamqueestãofazendoumbom

trabalho quando começamdemodo evasivo. Revelam os dados e provasum por vez, como pistas numa história de detetive, esperando que osleitores acompanhem tudo direitinho até apresentarem triunfalmente obombásticoparágrafo final,que sintetizaargumentoseprovasaomesmotempo. Talvez façam isso por pudor científico, que proíbe afirmar umaconclusão antes de apresentar todas as provas (o que ignora o ótimoexemplo das demonstrações matemáticas, que começam afirmando aproposição a ser demonstrada). Os pesquisadores muitas vezesapresentamosresultadosdelevantamentosestatísticosdessamaneira.Porexemplo, uma tabelamostraque a classe e opreconceito racial guardamrelaçãodireta.Atabelaseguintemostraqueissoéverdadeapenasquandovocê toma o nível de ensino como uma constante. Outras tabelas,mostrandooefeitodaidadeoudaetnia,complicamaindamaisascoisas,eassim por diante, numa longa sucessão de itens, antes que finalmenteapareçaaconclusãofundamentadanessareuniãodedados.Muitas vezes recomendo a esses aspirantes a Conan Doyle que

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simplesmenteponhamemprimeirolugaraqueletriunfanteparágrafofinal,dizendo aos leitores para onde se dirige o argumento e o que todo essematerialdemonstraráaofim.Issotrazàtonaaoutrarazãoparatalcautela:“Se eu já entrego o resultado de início, ninguém vai ler o resto do queescrevi.” Mas os artigos científicos raramente lidam com materialcarregadodetantosuspenseapontodejustificaresseformato.Sevocêpõelogo no começo o parágrafo que entrega o segredo da coisa, então podevoltar e citar explicitamente as seções do trabalho que contribuem parachegaraoresultado,emvezdeprecisarescondersua funçãonumaprosaquenãosecomprometecomnada.Suponhaquevocêestáapresentando,comofezPrudenceRains(1971),

osresultadosdeumestudosobremãessolteiras.Vocêpodecomeçarolivroao clássico estilo evasivo: “Este estudo examina as experiências demãessolteiras,comespecialatençãoasuascarreiras,aosaspectosmoraisdesuasituação e à influência dos agentes sociais.” Sem entregar nada, essecomeço fornece ao leitor um conjuntode penhores em cauçãoque serãotrocados mais adiante (se o autor cumprir a promessa e resgatar suapromissória)porfrasesapresentandorelaçõesreaisentreentidadesreais.Felizmente, não foi o que fez Rains. Em vez disso, ela escreveu uma

introdução exemplar, que explica exatamente o que o resto do livroanalisaráemdetalhe.Citoporextenso:

Tornar-se mãe solteira é o resultado de uma sequência específica de eventos que começa comincursõespelaintimidadeepelasexualidade,resultanagravidezeterminacomonascimentodeumfilho ilegítimo.Muitas jovens não têm relações sexuais antes do casamento.Muitas que têm, nãoengravidam.Easqueengravidamquandosolteiras,emsuamaioria,nãopermanecemsolteiras.Asjovens que se tornam mães solteiras, neste sentido, compartilham uma mesma trajetória, queconsistenospassospelosquaisvieramasermãessolteirasemvezdenoivas,clientesdeclínicasdeaborto,amantescompráticasanticoncepcionaisoujovensdamasvirtuosas.Os aspectos mais importantes dessa trajetória são morais, pois a sexualidade, a gravidez e a

maternidade são assuntos intimamente ligados a concepções sobre a respeitabilidade feminina evinculadosàsconcepçõesdasmulheressobresimesmas.Tornar-semãesolteiranãoéapenasumproblema pessoal e prático; é o tipo de problema que obriga a uma explicação pública, levantaquestõesdopassadoe,acimadetudo,põeemquestãootipodepessoaqueamãesolteiraeraeé.A trajetória moral de uma mãe solteira, neste sentido, se assemelha às trajetórias morais de

outras pessoas cujas ações são tratadas como desvios e cujas identidades ganham implicaçõespúblicas.Paraatrajetóriamoraldetalpessoa,sãoimportantes,senãocentrais,asesferasdeaçãosocialcomqueelapodeentraremcontatocomoresultadodesuasituação.Instituiçõeseesferasdeaçãosocial,sejamligadasàreabilitação,aoencarceramento,àassistênciaouàpunição,fornecemeimpõeminterpretaçõesdasituaçãoatualdapessoa,dopassadoquelevouaissoedaspossibilidadesfuturas.(Rains1971,p.1-2)

Essa introdução, apresentando o mapa do percurso que o autor farájunto com os leitores, permite-lhes que liguem qualquer parte do

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argumento à sua estrutura geral. Os leitores com um desses mapasraramenteseconfundemouseperdem.No entanto, frases vazias e evasivas constituem, de fato, uma boa

maneiradecomeçarumprimeirorascunho.Dãoumamargemdeliberdadenummomento em que você não quer ou não precisa se comprometer e,maisimportante,permitemquevocêcomece.Escrevaalgumafraseassimepodeseguiremfrente,semsepreocuparsedeuumpassoerrado,pois,naverdade, você ainda não deu nenhum passo. Precisa apenas se lembrar,depois de escrever tudoo que você tema dizer, de voltar àquelas frasesque estão ali apenas preenchendo espaço e substituí-las por frases reais,quedizemoquevocêpretende.Suponha que adoto esse conselho e começo em algum outro lugar. Se

não começo pelo começo, por onde começo?O que escrevo em primeirolugar?Nãovouficarcomprometidocomoqueescrever,comoficariacomumaprimeirafrase?Umafrasenãocontémemsidealgumamaneira,pelomenos por implicação, a totalidade do argumento? Claro. E daí? Lembrequequalquerfrasepodesermodificada,reescrita,eliminadaoucontestada.Isso lhepermiteescreverqualquer coisa.Nenhuma frase impõequalquercomprometimento, não porque não prefigure seu argumento damaneiracomosecostumatemer,masporquenãovaiacontecernadaderuimseelaestivererrada.Vocêpodeescreverosmaioresdisparates,coisascomquenemdelongevocêconcorda,enãovaiacontecernada.Experimente.Sabendo que escrever uma frase não vai lhe fazer nenhum mal, e

sabendodissoporqueexperimentou,vocêpodefazeroquecostumopedirqueaspessoastentem:escrevaqualquercoisaquelhevieràcabeça,comamaior rapidez possível, sem recorrer a esboços, notas, dados, livros ouqualqueroutroauxílio.Oobjetivoédescobriroquevocêgostariadedizer,emquevocêveioacrerdepoisdetodoaqueletrabalhoanteriornotemaounoprojeto. (Aqui “inventei”, comoantes,oexpedientequeosprofessoresde composição chamam de “escrita livre”, apresentado extensamente emElbow1981,p.13-9.)Sevocêsedispuserafazerisso(PamelaRichardsabordaasrazõespara

nãofazer,noCapítulo6),chegaráaalgumasdescobertasinteressantes.Seseguir as instruções e escrever qualquer coisa que lhe venha à cabeça,descobriráquenãodispõedaquelaquantidadedesconcertantedeopçõesque temia.Tendo redigido seu trabalho, vocêveráquegrandepartedeleconsiste em pequenas variações em torno de pouquíssimos temas. Vocêsabeoquequerdizere,tendoàsuafrenteasváriasversões,seráfácilvercomosãotriviaisasdiferençasentreelas.Ou,sehouverdiferençasefetivas

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(o que é muito raro), agora você enxergará claramente quais são suasescolhas.(Essemesmotruqueajudaosestudantesqueestãoempacados,tentando

montar um tema de dissertação. Peço que escrevam, em apenas uma ouduasfrases,cemideiasdiferentesparaumatese.Poucosvãoalémdevinteou25,quasesemprevariaçõessobreummesmotema,atésedaremcontadequetêmapenasduasoutrêsideias.)Se você escrever assim, geralmente descobrirá, chegando ao final do

rascunho, o que tem em mente. Seu último parágrafo revela o que aintroduçãodeveriaconter,evocêpodevoltarecolocarnocomeço,eentãofazer as pequenasmudanças exigidas em outros parágrafos por esse seunovofoco.Em resumo, quando chega o momento de escrever alguma coisa, já

pensamosmuito.Temosuminvestimentoemtudooqueanalisamos,quenosfazadotarumpontodevistaeumamaneiradelidarcomoproblema.Mesmoquequiséssemos,provavelmentenão conseguiríamos lidar comoproblemadenenhumaoutramaneira,anãoseraquelaqueacabamosporadotar.Estamoscomprometidos,nãocomaescolhadeumapalavra,mascomaanálisequejáfizemos.Éporissoqueamaneiradecomeçarnãofazdiferença. Já escolhemos nosso caminho e nosso destino muito tempoantes.Redigir um rascunho sem pensar nem planejar (o que, certa vez, Joy

Charlton chamou sem muita elegância, mas com bastante precisão, derascunho “vomitado”) demonstra mais outra coisa. Você não tem comolidarcomaenxurradadeideiasquepassampelacabeçaquandosesentaàmesa pensando por onde começar. Ninguém consegue. O medo dessaavalanche caótica é uma das razões para os rituais descritos pelosestudantesemmeuseminário.Asideiasvãopassando:primeiroumacoisa,depois outra. Quando você está na quarta ideia, a primeira já sumiu. Atéondevocê consegue lembrar, aquinta ideiaé igual àprimeira.Empoucotempo,vocêvaiesgotartodooseurepertório.Quantasideiasconseguimostersobreumúnicotópico?

Tentar avaliar, elaborar e relacionar tudo o que sabemos sobre um determinado tema podefacilmente sobrecarregar a capacidade de nossamemória de trabalho. Tentar compor uma únicafrase pode ter o mesmo efeito, quando procuramos jogar com as alternativas sintáticas egramaticais, além de todas as possibilidades de registro, nuance e ritmo que mesmo uma frasesimples nos oferece. Assim, a redação é uma atividade cognitiva que ameaça constantementesobrecarregarnossamemóriadecurtoprazo.(Flower1979,p.36)

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Épor issoqueémuitomais importanteescreverumrascunhodoquecontinuarpreparandoepensandooquevocêvaiescreverquandocomeçar.(Joseph Williams sugere reservar a palavra “rascunho” para a primeiraversãoquejávisaaalgumacoerência,pararessaltarqueaescritalivregeraumconjuntodenotasdetrabalhoquenãodevemserconfundidascomalgomais organizado.) Você precisa dar aos pensamentos uma forma física,precisapô-losnopapel.Umpensamentoescrito(quenãofoiprontamenteatirado ao cesto de lixo) é teimoso, não muda de forma e pode sercomparadoaosoutrospensamentosquevêmaseguir.Vocêsópodesaberquão poucos pensamentos você realmente tem se puser todos eles porescrito,colocá-losladoaladoecompará-los.Éumadasrazõespelasquaiséútil gravar oralmente um rascunho inicial, mesmo que seja para vocêmesmo fazer a transcrição mais tarde. Não é muito fácil arrancar umapágina do gravador; até conseguimos apagar uma ideia boba, mas étrabalhosoeemgeralaspessoasachammaisfácilcontinuarfalandoefazeras mudanças numa versão digitada. Dar realidade física às palavras,portanto,nãocrianenhumcomprometimentoseucomposiçõesperigosas.Muitopelocontrário.Ajudaaorganizarsuasideias.Facilitaaredaçãodasprimeirasfrases,aopermitirquevocêvejaoquequerdizer.Usando a linguagem da psicologia cognitiva, Flower e Hayes 1979

descrevem um processo semelhante de trabalhar de trás para a frente,voltandodosmateriais já escritosaoplanogeral eentãoavançandoparareescrever o texto. O artigo aborda um projeto muito menor – escreverumaredaçãocurtaempoucosminutos,enãoumtextooulivroacadêmicoao longo de meses ou anos –, mas a discussão, mostrando como osescritores criamredes complexasdemetas e submetas emodificamsuasmetasprincipaisàluzdoqueaprenderamaoescrever,tambémseaplicaanossotema.Outroproblematãoinsolúvelquantoodecomocomeçar–naverdade,

umavariantedele–écomoorganizaroquevocêtemadizer.Osestudantescostumam reclamar que não conseguem decidir como vão organizar omaterial,sedizemantesissoouaquilo,seusamcomoprincípioorganizarestaouaquela ideia.Aqui, também, a teoriadeumaÚnicaManeiraCertapara fazer as coisas é perniciosa.Apresentareimaterial para análise comoutroexemploextraídodeminhatese.Eu tinha resultados simplesparaapresentar.Osprofessoresavaliaram

diversosaspectosdotrabalho:asrelaçõescomseusalunos,comospaisdosalunos,comodiretordaescolaecomosoutrosprofessoresdaescola.Elesgostavamdaspessoasdecadacategoriaquefacilitavamseutrabalho,não

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gostavamdasquedificultavam.Aseuver,avariaçãomaisimportanteentreasescolaseraaclassesocialdosalunos.Achavamdifícilensinaràscriançasdas famílias mais pobres; também achavam difíceis os alunos de classemédiaalta,inteligentes,massemmuitorespeitopelaidadeeautoridadedoprofessor. Preferiam, namaioria, as crianças da classe trabalhadora, cujodesempenho podia sermedíocre, mas eram dóceis e, portanto, fáceis delidar. Também preferiam os pais dessas crianças, que ajudavammuito acontrolaros filhos.Asegregaçãoresidencial facilitavaadiferenciaçãodasescolaspelaclassesocialdosalunos.Namaioriadelas,predominavaumaououtraclassesocial.Essa análise me apresentou uma escolha simples para organizar o

material(provenientedesessentaentrevistascomprofessoresdeescola).Eu podia analisar sucessivamente as relações dos professores com osalunos, os pais, os diretores e os outros colegas, descrevendo sob cadarubricaostiposdevariaçõesdessasrelações,dependendodaclassesocialda escola. Ou podia escrever sucessivamente sobre as escolas dos maispobres,asescolasdaclassetrabalhadoraeasescolasdaclassemédiaalta,explicando a constelação específica das relações dos professores comaquelesquatrogruposquecaracterizavamasescolasdecadaclassesocial.Comoescolhi?Ameuver,nãofazianenhumadiferença,pelomenosem

relaçãoaogrossoqueteriadeescrever.Qualquerquefosseminhaescolha,euteriadedescreverprofessoresealunosdaclasseoperária,professoreseseus colegas de escolas de áreasmais pobres, professores e diretores deescolasdeclassemédiaetodasasdemaiscombinaçõesderelaçõesetiposde escolas criados por categorias e relações de classificação cruzada.Minhas menores unidades descritivas, ao analisar essas combinações,seriamasmesmas.Asfrasesdocomeçoedofim,relacionandoasunidadesmenores com o todo, seriam diferentes, bem como os argumentosdefinitivos que eu ia usar. Mas poderia usar tudo o que escrevesse,qualquerque fosseadisposição finaldosmateriais.Estariaapresentandoos mesmos resultados (embora em ordem diferente) e chegariaessencialmente às mesmas conclusões (embora em termos e ênfasesdiferentes).Oqueeudiria,naturalmente,teriaimplicaçõesdiferentesparaa teoria sociológicaeparaapolítica social. Seeuusassemeus resultadospararesponderaperguntasdiferentes,asrespostaspareceriamdiferentes.Mas nada disso iria afetar o trabalho que estava àminha frente quandocomeceiaescreverminhatese.Paraquemepreocupar?Eu me preocupei – todo mundo se preocupa – porque o problema,

embora muito importante, não pode ser resolvido de maneira racional.

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Qualquer que fosse minha escolha, eu estava querendo falar ou estavafalando sobre algo que ainda não mencionara nem explicara. Podiacomeçar falando sobre escolas em áreasmais pobres, mas apenas se eufalassesobreosquatrogruposeasrelaçõesdosprofessorescomeles.Masnão podia falar sobre essas relações sem explicar as questões teóricasenvolvidas. Teria de explicar, por exemplo, que os funcionários públicos,como os professores da rede de ensino público, geralmente julgam aspessoas com quem trabalham considerando o quanto é fácil ou difícilpassarodiacomessaspessoas.Seeufizesseisso,estariacomeçandopelasrelações. Mas não poderia dizer nada sensato sobre as relações semexplicarantesaclassesocialesuainfluêncianahabilidadedascriançasemaprender coisas na escola e se comportar de maneira aceitável com osprofessores,eadisposiçãoecapacidadedospaisemajudarosprofessoresamanterascriançasnalinha.Vocêspodemveraondequerochegar.Umavez,esseproblemafezminhacolegaBlancheGeersonharcomuma

maneiradeescrevernasuperfíciedeumaesfera,eassimnadaprecisariaviremprimeirolugar.Issopassariaparaasmãosdoleitoroproblemadoquedeviaserlidoprimeiro.Aimagemdeescreversobreumaesferacaptaexatamenteanaturezainsolúveldoproblema,comogeralmenteédefinidopelaspessoas.Vocênãopodefalarsobretudoaomesmotempo,pormaisque queira, por mais que lhe pareça ser a única maneira. Pode, é claro,resolveroproblema.Nofinaltodomundoresolve.Eresolve,porexemplo,pegandoasrelaçõesentreosprofessoreseosoutrosgruposedizendoquehá também tal outramaneira de ver a coisa, que explicarámais adiante.Nãoébemumasubstituição,émaisumaespéciedepromissória.Osescritoresconsideramaorganizaçãodotextoumproblematambém,

porque imaginam que apenas uma das maneiras é a Certa. Não sepermitem ver que todas as várias maneiras de organização em queconseguem pensar têm algum mérito e que nenhuma é perfeita. Quemacreditanaperfeiçãoplatônicanãogostadeconcessõespragmáticasesóasaceitamquandoarealidadeosobrigaaisso–porexemplo,anecessidadedeterminarumartigoouumatese.Masosescritorestêmrazõesmaisimediatasparasepreocupar,alémde

não saberem qual seria a Única Maneira Certa. No começo, não sabemsequer quais são aquelas unidades menores, os fragmentos a partir dosquais se construirá o resultado final.Outra razão é quenão fazemmuitaideia das maneiras possíveis que poderiam adotar. Não sabem, porexemplo,quepodemescolherorganizarseuargumentodiscutindotiposdeescolasoutiposderelaçõesdetrabalho.Têmumavagaideiadequeuma

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coisapoderia levar àoutra, queuma ideiapoderiamanter algum tipoderelaçãocausalcomoutra,queumaideiaéumaversãoespecíficadealgumaoutra, mais geral. Mas podem estar errados. Tais ideias poderiamcontradizer algoque leramemDurkheimouWeber,poderiamentrar emconflito com os resultados da pesquisa de outra pessoa ou até serdesmentidasporseusprópriosdados.Aspessoasesperamresolveressesproblemasmontandoplanosgerais.Osplanosgeraispodemajudar,masnãosevocêcomeçarporeles.Em

vezdisso,sevocêcomeçarpondotudoporescrito,vomitandosuas ideiasnarapidezcomqueconseguedigitar,descobriráarespostaparaaprimeirapergunta:osfragmentoscomquetemdetrabalharsãoasváriascoisasqueacaboudeescrever.Essesfragmentosestarão,oudeveriamestar,nosmaisvariados níveis de generalidade. Algumas observações serão específicas:professores detestam crianças que falam palavrão. Outras serão maisgerais:professoresnãosuportamqueninguémcontestesuaautoridadeemsaladeaula.Outrasestarãorelacionadascomabibliografiaacadêmica:MaxWeber diz que a burocracia é o domínio das sessões secretas. Algumasserão sobre a organização social: escolas em áreas mais pobres têmquadros docentes instáveis, ao passo que as escolas de classemédia altatêm equipes mais estáveis, porque os professores raramente saem doemprego. Algumas serão sobre a carreira e a experiência pessoal:professores que tenham passado vários anos numa escola em área depobreza,porqualquerrazãoqueseja,nãoqueremmaissairdelá.Depois de ter os fragmentos, agora você pode ver a que ponto são

díspares, comosedispõemdogeralaoparticulareparecemnãoaderiranenhumamaneira específicadepensar sobreo tema.Agora vocêprecisadispô-los para que ao menos pareçam avançar de um ponto a outroseguindoumalógica,compondoalgoqueumleitorpossareconhecercomoumargumentorazoável.Comofazerisso?As pessoas resolvem esse problema de váriasmaneiras. Para escolher

entre soluções possíveis, uso o seguinte princípio: faça primeiro o maisfácil. Trabalhe na parte mais fácil de escrever, faça tarefas domésticassimples,comoclassificarseuspapéis.(Umaabordagemcontráriaconsiderasuspeitaqualquertarefaquesejafáciletentacomeçarpelamaisdifícil.Nãorecomendo esse tipo de puritanismo.) Esta é uma maneira fácil dedescobrircomoorganizarseusmateriais.Amaiorvirtudedessaabordagem(eéumcoroláriodoprincípiodefazerprimeiroascoisasfáceis)équeelatransformaumatarefamentaldifícilnumatarefaemlargamedidafísicae,portanto,maisfácil.

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Comecepondonotasemtudooquevocêescreveu,colocandocadaideianumafichaounumpedaçodepapel.Nãodescartenenhumadesuasideiasdorascunho.Podemviracalhar,mesmoquevocênãovejaissoagora;seusubconscientesabecoisasquevocêignora.Entãoclassifiquesuasfichasoupapéis empilhas. Juntenamesmapilha as fichasqueparecemcombinar.“Parecemcombinar?”Sim,epororanãoprocuredemaisoqueelastêmemcomum.Sigasuaintuição.Depoisdereuniressaspilhas,façaumafichaquevai por cima de cada pilha, uma ficha resumindo o que dizem todas asfichasdapilha,generalizandoasparticularidades.Pelaprimeiravez,vocêpodecomeçarasercríticoemrelaçãoaoquefez.Senãoconseguepensarnuma afirmativa que abranja todas as fichas da pilha, tire as que nãocombinam e faça novas pilhas para elas, com suas próprias fichas deresumo.Agoradistribuasuasfichasoupapéisdegeneralizaçãonumamesaou no chão, ou ponha na parede (peguei o hábito de pregar na paredetrabalhandocomfotos,queosfotógrafoscostumamexaminardeixando-asna parede por uma ou duas semanas). Distribua-as em alguma ordem,qualquer ordem. Talvez você consigamontar uma ordem linear, em queuma ideia leva a outra. Talvez você consiga formar uma coluna comalgumasdelas,umaabaixodaoutra,oque indicaria fisicamentearelaçãodeumexemploespecíficooudeumsubargumentocomalgumaafirmativamaisgeral.Logoveráquehámaisdeumamaneira,masnãomuitasmais,demontar

seu argumento. As maneiras não são idênticas, pois enfatizam partesdiferentes de sua análise. Se eu organizarminha análise dos professoressegundoostiposdeescolas,enfatizareiaorganizaçãosociallocaldaescolae, de certa forma, diminuirei a ênfase comparativa sobre os problemasprofissionais que seriam ressaltados por uma análise concentrada nasrelações.Essamaneiradefazerexperiênciascomaorganizaçãodasideiasfoi,emcertamedida, formalizadana ideiado fluxograma.WalterBuckleyforneceuumbomexemploemsuaformalizaçãodateoriadadoençamentalde Thomas Scheff. O gráfico, aqui reproduzido como Figura 1, está emBuckley (1966).Vocênãoprecisa conhecer a teoria emquestãopara vercomoesserecursotrazclarezaaumargumento.

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Aliás,fazertodasessascoisasajudaaresolveroutroproblema“menor”,muito frequente. Os cientistas sociais, ao expor a pesquisa empírica,sempre incluemumaseçãodescritiva,contandoalgosoreopaís,acidadeoua organizaçãoquepesquisaram.Oque essas seçõesdevem trazer?Ospesquisadores têm a vaga intenção de que elas deem aos leitores “umasensaçãodo lugar”, e incluemnessas seçõesuma listadecoisasque todoleitor presumivelmente precisaria saber, uma mistura de gráficos comdados geográficos, demográficos, históricos e organizacionais. Se vocêescrever o suficiente para saber qual é seu argumento, ficará mais fácilfazerumaescolhamaisracional.Os fatos sobre lugares, pessoas e organizações não se resumem a dar

umafamiliaridadegeralaosleitores.Asorganizaçõessociaissófuncionamdamaneiracomoorelatóriodepesquisadizqueelasfuncionamsetiveremostiposcertosdepessoasnostiposcertosdelugares.Assim,osmateriaisdescritivos preliminares estabelecem algumas das premissas básicas emque se funda o argumento do relatório. Se nosso livro (Becker, Geer eHughes 1968, p.15s.) descreve uma cultura estudantil que afetaprofundamente a vida e as perspectivas dos estudantes, o leitor precisasaberqueafaculdadedequeestamosfalando,porexemplo,égrandeeéa

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principal instituição numa cidade pequena doMeio-Oeste, e que amaiorpartedosseusestudantesvemdelugaresmenores,menoscosmopolitas.Hámaisumamaneirade lidarcomproblemasorganizacionaisqueme

parece interessante. Em vez de tentar solucionar o insolúvel, você podefalarsobreele.Podeexplicaraosleitoresporqueessacoisa,qualquerqueseja, éumproblema, emquais soluções vocêpensou, por que escolheu asoluçãoimperfeitaqueefetivamenteescolheueoquesignificatudoisso.Aparte do “o que significa tudo isso” será interessante porque você nãoestariatendooproblemaseelenãoencarnassealgumdilemainteressanteno trabalhoquevocêestá fazendo–porexemplo, comoosproblemasdeclasse e estrutura profissional se cruzam em organizações concretas, demodoquevocênãopodefalarsobreclassesemfalarsobreasperspectivascomunsdosprofessoressobresuasrelaçõesprofissionais,enãopodefalardelas sem falar sobre classe. Você só terá problemas se insistir que, emprincípio,elastêmdeserdiscutidasseparadamente.Emvezdetentareliminá-los,falarsobreessesproblemasresolvetodos

os tipos de problemas científicos, não só os da redação. Quandoantropólogosesociólogosfazempesquisadecampo,porexemplo,étípicoquetenhamproblemasemestabeleceremanterrelaçõescompessoasquelhespermitamobservaroquequeremporumlongoperíododetempo.Osobstáculos e adiamentos, enquanto você negocia tais arranjos, podemdesanimar. Mas os pesquisadores de campo experientes sabem que asdificuldades fornecem pistas importantes sobre a organização social quequerementender.Amaneiracomoaspessoasreagemaumestranhoquequerestudá-lasrevelaalgosobresuaorganizaçãoeamaneiracomovivem.Seoshabitantesdeumbairropobredeumacidadequevocêquerestudarsãodesconfiadosenãoqueremfalarcomvocê,aívocêteráumproblemade verdade. Você pode acabar descobrindo que eles são hostis porqueacham que talvez você seja um investigador, querendo flagrartransgressões das regras da assistência social. Esse transtorno,pessoalmentepenoso,teráteensinadoalgoquevaleapenaaprender.Num caso parecido, psicólogos sociais experimentais ficaram irritados

quando Rosenthal e outros demonstraram que ações aparentementeinsignificantes e sem pertinência no caso afetavam os resultados dasexperiências, sem qualquer relação com as variáveis supostamenteatuantes. Não deviam se aborrecer. Comomostrou Rosenthal (1966), aoperderemasilusõesdeumcontroletotalsobresituaçõesexperimentais,ospsicólogos ganharam uma nova área de estudos muito interessante: ainfluênciasocialemgrupospequenos.Econseguiramissofalandosobreo

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problemainsolúvel,enãofazendovistagrossa.Omesmoacontecenaredaçãodeumtexto.Quandovocênãoconsegue

encontrar a Única Maneira Certa de dizer a coisa, fale por que nãoconsegue. Bennett Berger adotou essa solução em The Survival of aCounterculture (1981), que apresentava seu estudo sobre comunidadeshippies no norte da Califórnia. Ele estava interessado em experiênciasutópicas.Sentiaumaproximidadepessoalcomaculturaeoespíritohippie.Queria estudar como os membros das comunidades lidavam com ainevitável diferença entre o que professavam e como se conduziam, aoadaptaremsuascrençasàscondiçõesdavidaquelevavam.Deuonomede“trabalho ideológico”aosmétodosqueaspessoasusavampara lidarcomtais diferenças e pensou em estudar esse trabalho ideológico como umamicrossociologiadoconhecimento.Mastevedificuldadeemescreversobreoquedescobriu:

Adiei durante vários anos a redação deste livro porque não conseguia encontrar um quadrointerpretativo em que pudesse situar a vida social que observei. Sem esse quadro, eu não tinhacerteza seestavaentendendoo significadodoquevia. Semesseentendimento, eunão tinhaumaposição em relação aos dados, e isso diminuía minha motivação para escrever. E, quando esseentendimentosurgiu,nãogosteidapostura“cética”queelemeconvidavaaadotar.

Ele descreveu o problema da postura cética, que o incomodavaprofundamente,poisafetavaoestudoquehaviafeitonacomunidade:

[A]tendênciadasociologiadoconhecimento[é]impugnar,enfraquecerouminarasideiasquandoaanálise dessas ideias revela suas funções em proveito próprio ou do grupo. … Se a ideia doapocalipse urbano serve aos interesses dos membros das comunidades equipadas para asobrevivência, será razão suficiente para lhe lançar um olhar frio e cético? Se a ideia de direitosiguaisparaascriançasserveaospropósitosdaquelesadultosque,inicialmente,nãotinhamtemponem propensão a ser pais de classemédia, será razão suficiente para o ceticismo diante de seusmotivos? Se a afirmação de “autenticidade” nas relações interpessoais serve aos interesses depessoas tão situadas que suas densas texturas interacionais as tornam pouco capazes de adotardisfarces emocionais, não será razão para encarar [sua crença na] “franqueza e honestidade”simplesmentecomomaisumelementoideológicoemproveitopróprio(comoacrençadasminoriasétnicas no pluralismo cultural ou dos ricos numa pequena carga tributária)? Ou, por outro lado,quando os grupos são apanhados em contradição entre as ideias que professam e as ações quepraticamnodia a dia, amelhormaneirade entender seus apressados remendos ideológicos seráumaatitudeirônica,desdenhosaecética?Minha resposta a essas perguntas é “não”, pelomenos até onde as [pessoas que ele estudou]

lidavamcomelas.Masasrespostasfornecidaspelaprincipaltradiçãodasociologiadoconhecimentoparecem ser um sonoro SIM – em parte porque um dos principais motivos que caracterizam asociologiadoconhecimentocomoempreendimentointelectualtemsidoodesejode“desmascarar”ou“desmistificar”asideias,revelandoos“verdadeiros”interessesoufunçõesaqueservem.(p.168-9)

“É fácil ver comoumproblemadessespodenosparalisar: leveimuito

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tempopara obter a perspectiva sobre as crenças e as circunstâncias queadotei neste livro, eminha incapacidade de apreendê-la antes funcionoucomo uma espécie de mordaça, impedindo-me de falar claramente”(p.223).Bergerqueriadiscutirasbasessociaisdaquiloemqueosmembrosda comunidade acreditavam, mas sem fazer troça deles. Enquanto nãodescobriu como conseguiria isso, nãopôde escrever seu livro.Nãoqueroprosseguiremseuargumento(emboramereçaserlidonaíntegra),poisoestoucitandocomosoluçãoparaoutrotipodeproblema.Nãooproblemade Berger em evitar uma atitude jocosa em relação ao que estavaestudando,masadificuldadeaindamaiscomumdenãoconseguirescreverporque você não encontrou a Única Maneira Certa de lidar com este ouaquele problema. Berger não explica, mas demonstra como evitar essabusca infrutíferadaÚnicaManeiraCerta.Escrevasobre isso.Convertanofocodesuaanálise.Elededicouumaparteconsideráveldeseulivroaessatarefa.Comisso,encontrounãosóumamaneiradeescrever,masumtemaamplonoqualpôdeinserirahistóriadesuapesquisa:ovíciointelectualdaexplicaçãocomodepreciação.Paraconfessaraos leitoresosseusproblemas,vocêprecisareconhecê-

los e, assim, reconhecer também que você não é a figura exemplar quesempresabeaManeiraCertaeaaplicademodoirrepreensível.Nãocreioqueissosejadifícil,vistoquetaisfigurasexemplaresnãoexistem,emboraalgunsrelutememreconhecerofato.Oremédioéexperimentareverporsimesmoquenãodói.

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4. Editandodeouvido

QUANDO EDITO OU FALO sobre editar textos alheios, as pessoas geralmentequeremsaber(comofezminhaamigaRosanna)quaissãoosprincípiosdeum copidesque. Que regras uso para, por exemplo, tirar uma palavra oueliminar uma expressão? Ninguém faz nada criativo simplesmenteseguindoregras(emboraasregrassejamúteisenecessárias),emesmootextomaistrivialerotineiroécriativo,sejaumacartaaumamigoouumbilheteparaumentregador.Amenosqueesteja copiandoummodelodecarta de um livro ou escrevendo o quinquagésimo bilhete deagradecimento usando exatamente as mesmas palavras que usou nosoutros49,vocêestácriandoumanovalinguagem,novascombinações,algoquenãoexistiaatéomomentoemquevocêescreveudaquelamaneira.Os gramáticos e professores de redação recomendam vários tipos de

regrasediretrizes.Muitasdelas, comoasquedeterminamqueuma frasedeclarativaterminecomumpontoouqueaescritavádaesquerdaparaadireita, fazem o que as convenções costumam fazer nas artes: permitemtransmitir uma ideia oferecendo um mínimo de entendimento comumentrecriadoreconsumidor.Outrasregraspermitemtransmitircommenoschance de equívoco e confusão involuntária: aquelas, por exemplo,determinandoqueospronomesconcordemcomseusantecedentes.Outrasnemchegama ser regras: são diretrizes para umuso convencional e umsignificado exato (diferenciando, digamos, entre reticente e relutante).Outras,porfim,sãorealmentequestãodegosto,sobreasquaisaspessoassensatas podem divergir, em geral segundo linhas conservador ×progressista:eudeviamesmoterusado“furadas”noCapítulo1?Qualéopapeldessasregrasediretrizesnacriaçãodeumtexto?Poderia

funcionarassim:anotamostudooquenosvemàcabeça,entãorepassamosoresultadocomummanualnamão,encontramos todasas transgressõesdasregrasecorrigimosotextodeixandodeacordocomomanual.Éoquefazemosquandoreescrevemos?Não, não é. Talvez até façamos algo um pouco parecido,mas deixar o

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textodeacordo comomanualnãopode serumacoisa tãoautomática.Étambémumtrabalhocriativo.Alémdisso,osestudosdossociólogossobreaobediênciaanormasmostramqueelasnuncasãotãoclaraseinequívocasquepossamossimplesmente segui-las. Sempre temosdedecidir seexistealguma regra, se o que temos é realmente abrangido pela regra, se nãopodehaver algumaexceçãoquenão estáno livro,masnaqual, julgamosnós,osformuladoresdasregrasdeviamterpensado.Tambémprecisamosinterpretá-lasdeformaqueoresultadoobtidosejarazoável,enãoalgumabobagemresultantedeumaobediênciacegaàsnormas(HaroldGarfinkel(1967,p.21-4)descreveessaprática,quechamade“ad-hocar”,comotraçofundamentaldetodasasatividadeshumanas).Mike Rose, baseando-se em sua experiência de aconselhar estudantes

combloqueioparaescrever,distinguedoistiposderegras,umaclaramenteadequadaàatividadedereescrever:

Osalgoritmos são regrasprecisasque sempre resultarãonumarespostaespecífica, se aplicadasaum problema apropriado. A maioria das regras matemáticas, por exemplo, são algoritmos. Asfunçõessãoconstantes(p.ex.,opi),osprocedimentossãorotinas(elevaroraioaoquadrado)eosresultadossãointeiramenteprevisíveis.Noentanto,poucassituaçõescotidianassãosuficientementecircunscritas em termos matemáticos para permitir a aplicação de algoritmos. Mais geralmentefuncionamoscomaajudaderegrasheurísticasoupráticasbastantegerais,diretrizesqueoferecemváriosgrausdeflexibilidadeaoabordarproblemas.Emvezdeoperarcomumacertezaeprecisãoalgorítmica, sondamos criticamente várias alternativas, usandonossaheurística comoumavaretadivinatória – “se você empacar num problema matemático, tente chegar à solução seguindo aoinverso”;“seomotordocarronãoligar,verifiquex,youz”,eassimpordiante.Aheurísticanãodaráaprecisãoouacertezadasoperaçõesalgorítmicas;podesertão“frouxa”quechegaaficarvaga.Mas,num mundo onde as tarefas e os problemas raramente têm precisão matemática, as regrasheurísticas se tornam as regrasmais apropriadas,mais funcionais, ao nosso alcance. (Rose 1983,p.391-2)

Os estudantes que pensavam que as regras para escrever eramalgoritmos (não estou inventando, alguns pensavam mesmo) tiveramproblemas, enquanto os estudantes que as usavam como recursosheurísticosnãotiveram,oquenãoédesurpreender.Assim,nãopodemosescreverenemmesmoreescrever tratandocomo

algoritmo qualquer regra que possamos escolher. Se não é desse jeito,então como fazemos? Fazemos de ouvido. O que significa isso? Olhandoumapáginaembrancoouumapáginaescrita,usamosoquenos“soabem”ou“parecebom”.Usamosregrasheurísticas,algumasmuitovagas,outrasprecisas.Geralmente,aoescrever,oscientistassociaisnãopensamemregrasou

diretrizes.Nãoconsultamummanual,masconsultamsimoutracoisa:umpadrãodegosto,umanoçãogeneralizadadecomoalgumainformaçãodeve

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soar ou parecer. Se o resultado não contrastar demais com esse quadrogeneralizado, eles deixam ficar. Em outras palavras, trabalham comoartistasque

muitas vezes acham difícil verbalizar os princípios gerais que norteiam suas escolhas ou atéapresentarqualquerrazãoqueseja.Costumamrecorreradeclaraçõesnãocomunicativascomo“soamelhorassim”,“mepareceubom”ou“funciona”.Essa incapacidadeenunciativa frustraopesquisador.Mas todosospraticantesdeartes [leia-se

“das disciplinas acadêmicas”] usampalavras cujos sentidos não sabemdefinir com exatidão,masque,mesmoassim,sãocompreensíveisparaosmembrosinstruídosdomundoaquepertencem.Osmúsicosdejazzdizemquealgumacoisatemounãotem“suingue”;opessoaldeteatrodizqueumacena“funciona”ou“nãofunciona”.Emnenhumdessesdoiscasos,nemmesmooparticipantemaisinstruído é capaz de explicar o que esses termos significam a alguém que ainda não sejafamiliarizadocomasacepçõesdeles.Apesardisso, todosqueosutilizamentendemosignificadoepodem aplicá-los com grande confiabilidade, concordando sobre o que funciona ou o que temsuingue,muitoemboranãosaibamdizeroqueessestermossignificam.[Isso]sugerequeelesnãooperamconsultandoumconjuntoderegrasoucritérios.Emvezdisso,

reagem como imaginam que outros reagiriam, e constroem essas imagens a partir de suasexperiências reiteradasdeouvirpessoasaplicaremos termos indefinidosemsituações concretas.(Becker1982a,p.199-200)

Oscritériosdegostodoscientistassociaisrealmenteincluemregrasqueaprenderamnasaulasderedaçãoesehabituaramaaplicardemodoquaseautomático.Normalmentesaioembuscadeconstruçõesnavozpassivaemquase tudo o que leio; se o texto é meu, penso imediatamente se possomudá-lasecomo.Nãoseiseestouaplicandoumaregraouumaheurísticaenãoconsultoumlivroparasaberquandooucomoalterá-las.Masseioqueestou fazendo e, se me perguntarem, posso expor o princípiocorrespondente (como expus a Rosanna). Em sua maioria, os cientistassociais usam várias dessas regras, muitas das quais, porém, funcionammaiscomoobstáculosalgorítmicosnãoanalisadosdoquecomoauxílios.Mas a maioria dos cientistas sociais dispõe de poucos recursos

heurísticos formulados de modo consciente. Em geral baseiam-se nosjuízos falíveis e não examinados do próprio ouvido. Desenvolvem esseouvido,seuscritériosdeescrita,sobretudoapartirdesuasleituras.Leemtrabalhosqueadmiramequeremqueseustextossepareçamcomeles,quefiquemdaquelamaneiranapágina. Issoprovavelmenteexplicaporquearedação acadêmica se deteriora com tanta frequência à medida que osestudantes passampela pós-graduação e ingressamna carreira. Leem osperiódicosespecializadosequeremqueseusartigossepareçamcomoqueleem, por razões que já apresentei. Isso sugere que existe um remédiomuito eficaz para a escrita acadêmica ruim: leia fora de sua áreaprofissionale,quandoforescolher,escolhabonsmodelos.

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Não estamos presos para todo o sempre aos critérios de gosto queadquirimosquandoentramosemnossaárea.Naverdade,mudamosessescritérios a um grau considerável,mesmono curto prazo.Desenvolvemosnosso gosto não apenas com a leitura, mas também com o que nossosamigos e colegas nos dizem ou o que tememos que eles nos digam. Umcolegameu,quandoescrevia,receavaapossibilidadebastanteimprováveldequeseutipodeprosafossepararnofinaldeumacolunadaNewYorkercomopavorosoexemplodeescritaacadêmica.Esses receiospodem levaruma vítima sensível a estudar um livro de estilo para incorporar a seuscritériosdegostoaheurísticarecomendadanolivro.Mas, em sua maioria, os cientistas sociais (e provavelmente qualquer

escritoracadêmico)nãoouvemmuitoscomentárioscríticossobreseutipode texto ou, se ouvem, não é da parte de alguém a quem devam prestaratenção.Jáquepodemignorarosproblemasderedaçãosemnenhumriscoóbvio e imediato, dedicam o tempo a questões de estatística, teoria emetodologia,que,estassim,podemcriar–edefatocriam–problemas.Oseditoreseprofessoresrejeitamartigosqueusamaestatísticademaneiraincorreta, mas apenas suspiram diante de textos mal escritos. Como oconteúdo importa mais do que o estilo para os avanços na área, osprofessoresnãoreprovarãoosestudantesinteligentesqueescrevemmal,ealgunssociólogosmuitorespeitadossãonotoriamenteincompreensíveis.Uma área que se importa tão pouco com a qualidade do texto pode

espantar os de fora, tal como cansa os de dentro, mas é assim que é asociologia (e provavelmente muitas outras disciplinas acadêmicas) nopresenteeno futuropróximo.Emdecorrênciadisso,os jovenssociólogosnão têmmotivoparaaprendermais coisas sobre redaçãoalémdoque jásabiam quando começaram a pós-graduação, e provavelmente até vãoperder algumas habilidades que têm. Se não saíram de suas aulas deredação na graduação com um padrão de gosto formado, que inclui oselementos de gramática e estilo como regras práticas, não vão dedicartempo a estudá-los a sério. Então aprenderão, se tanto, a corrigir seustextosdeouvido.Como aprendi o pouco que sei sobre redação e edição de texto assim,

por acaso e a esmo, acho difícil criar princípios editoriais gerais. Masconsigo dar exemplos, de preferência a partir do trabalho da pessoa queestá perguntando, e posso sugerir ideias gerais que parecemaplicáveis aseusproblemas.Essasnoçõesnãopodemserformuladascomoalgoritmos,éclaro.Nãopossodizerquevocênuncadeveráusarnenhumavozpassiva,maspossodizerqueumadeterminadaconstruçãonavozpassivadistorce

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uma ideia sociológica importante. E nem sempre é errado usar palavrascompridaseabstratas.Apesardisso,aindanestecapítulo,formulareiessasregras em termos dogmáticos porque, embora as construções na vozpassiva e as palavras compridas e abstratas às vezes sejam úteis, oscientistas sociais não precisam de incentivo para usá-las. Já as usamautomaticamente.Seguem-se alguns exemplos do tipo de copidesque que faço, com

algumasexplicaçõessobreasescolhasfeitas,oraciocínioportrásdelaseasdiretrizes implícitas. Isso dará mais corpo às prescrições que venhoapresentando. Os exemplos foram extraídos de rascunhos iniciais de umartigo que escrevi sobre fotografia (Becker 1982b; a versão publicada édiferente da citada aqui). Os exemplos não têm nada de muito especial;posso encontrar outros semelhantes em tudo o que escrevi e em váriascoisasquepubliquei.Paracomeçar,observeoseguinteparágrafo,queabordaaestratégiade

descrevergrupossociaispormeiodefotografiasdeseusintegrantes:

Qualquerpartequeeles[osfotógrafos]tomempararepresentarapessoa,aestratégiaimplicaumateoria e um método. A teoria é simples, mas é importante tornar explícitos seus passos, parapodermosvercomoela funciona.A teoriaéqueavidaqueumapessoa leva, comseusmomentosbons e ruins, deixa suas marcas. Alguém que tem uma vida feliz terá um rosto mostrando isso.Alguémque foicapazdemantersuadignidadehumanaperanteasdificuldadesteráumrostoquemostra isso. … É uma estratégia ousada, pois faz com que aquele pouco que a fotografia contémcarregue um peso enorme. Para a teoria funcionar e nos ajudar a produzir imagens eficazes,devemosescolherrostos,detalhesdosrostosemomentosemsuahistóriaque,registradosemfilmee impressos em papel, permitam aos observadores inferir todas as outras coisas em que estãointeressados.Ouseja,osobservadoresolhamaslinhasnumrostoeinferemdelesumavidapassadaemduralabutaaosol.

Quando comecei a reescrever essa passagem, a expressão “éimportante”, na segunda frase, chamou minha atenção por parecer umasimplesmuleta.Seé importantefazeralgumacoisa,nãofale, faça. (Estaéuma típicadiretriz, nãouma regra, de formaalguma.)Primeiromudei “éimportante”para“precisamos”.Issodeixavaafrasemaisativaeumpoucomais forte, e introduzia um agente, alguém realmente fazendo aquilo.Coisasquenãosãofeitasporninguém,mas“simplesmentesão”,guardamumaindistinçãoquenãomeagrada.Feitaaquelamudança, continuei insatisfeito.A frase tinha trêsorações

simplesmenteenfileiradasumadepoisdaoutra.Quandoconsigorearranjaruma sentença de forma que sua organizaçãomostre e, assim, reforce asconexõesqueestoudescrevendo,rearranjo.Assim,corteiaprimeiraoraçãoecoloqueiseuconteúdonumaformaadjetiva.Emvezdedizerqueateoria

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erasimples,troquei“seuspassos”dasegundaoraçãopor“ospassosdessateoria simples”. Algumas palavras a menos, e a simplicidade da teoriareduzidaaumpequenopontodescritivo:“Precisamostornarexplícitosospassosdessateoriasimples…”Depoisdisso,nãoprecisavamaisdizerqueera necessário fazer isso, o que era tão supérfluo quanto dizer que eraimportante fazer isso. A frase reescrita ficou: “Se tornamos explícitos ospassosdessateoriasimples,poderemosvercomoelafunciona.”Temtrezepalavras,emvezdedezessete.Astrêsoraçõesalinhavadasagora formamum argumento do tipo “se–então”, que é mais interessante do que oenfileiramentoanterior.Agoravejaaquartafrase.Mudei“Alguém”para“Pessoas”pornenhuma

razão especial, pois o que eu queria era chegar a “foi capaz demanter”.Expressões como “ser capaz de manter” são uma tentativa de fazerafirmações simples parecerem profundas. Falar sobre a capacidade daspessoas em agir evoca a necessidade acadêmica de profundidade. Parecetrivial dizer que as pessoas “conseguem” fazer alguma coisa. Preferimosdizerqueelas“tinhamacapacidadede”ou“ahabilidadepara”oumesmo,procurandosimplicidade,queelas“chegarama”.Quasesempre,usoessasconstruçõesnosrascunhosiniciaisesubstituopor“conseguir”nahoradereescrever.Assim,mudeiafrasepara“Pessoasquemantiveram…”.Por fim, observe a frase sobre as linhas num rosto: “Ou seja, os

observadores olham as linhas de um rosto e inferem delas uma vidapassada em dura labuta ao sol.” Cortei algumas palavras que não faziamgrandediferença.Concluíque“Ouseja”nãotinhasentidodepoisderetirá-lo e ver que a frase não perdera nada de seu significado. Aplicando omesmoteste,mudei“umavidapassadaemduralabuta”para“umavidadeduralabuta”.Mastambémviumamaneiradeacrescentaralgumaspalavrase tornara imagemmaisconcreta: “Osobservadoresolhamas linhasnumrosto e inferem que foram traçadas durante uma vida de dura labuta aosol.”Uma leve transposição resolve a ambiguidadedaelipsedopronome“elas”e fluiaindamelhor:“Olhandoas linhasnumrosto,osobservadoresinferemque…”Aversãofinalquesaiupublicadaficouassim:

Qualquer parte que um fotógrafo escolha para representar a pessoa, está empregando umaestratégiaquesebaseianumateoriaenummétodo.Essaestratégiadependedopressupostodequeas experiênciasda vida ficam registradasno rosto, que a vidaqueumapessoa levadeixamarcasfísicas.Nesse sentido, os fotógrafos escolhem rostos, detalhes de rostos emomentos de suas histórias

que, registrados em filme e impressos em papel, permitem aos observadores deduzir o que não

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veem,masqueremconhecer.Muitasvezes,osretratoscontêmumariquezadedetalhes,de formaqueumestudocuidadosonospermiteleiturascomplexasesutisdocaráterdapessoaedavidaemsociedadedaquelapessoa.Olhandoaslinhasnumrosto,osobservadorespodemconcluirqueforamtraçadas numa vida de dura labuta ao sol. Dessas mesmas linhas, podem inferir a sabedoriaproduzidapelaidadeepeladuralabutaou,poroutrolado,asenilidadeeadecadência.Parachegaraalgumadessasconclusões,oobservadorprecisaaplicaràimagemumadasváriasteoriaspossíveisdaslinhasfaciais.

Issonãoesgotaoquesepoderiafazernessetrecho.Maisadiantenoartigo,duasfrasesreuniamváriasdificuldadescomuns.

Dei um exemplo de um contemporâneo famoso e suas fotografias dointeriordeprédioscomaspessoasládentro:

AlgumasdasimagensmaisexpressivasdeRobertFrankmostramescritóriosdepoisdoexpediente,semninguém–ninguémexcetoofaxineirofazendoalimpeza.Umbancoparecediferentequandoéocupadoporumfaxineirodoquequandoéocupadoporbancários.

Eu quase poderia ter deixado assim, ao estilo de um texto dematemática, comoumexercícioparao leitorcorrigir.Mas,paranãocriarincômodo, comecei formulando a primeira oração de modo mais ativo:“Robert Frank fez algumas de suas imagensmais expressivas…” Issomelevouareorganizaresimplificaraconstruçãoseguinte:“RobertFrankfezalgumas de suas imagens mais expressivas em escritórios depois doexpediente”,econtinuei,cortandoumarepetiçãoquemepareceravigorosaquandoescrevinaprimeiravez, “quandonãohavianinguémanãoserosfaxineiros.” Por que tirei “fazendo a limpeza” depois de “faxineiros”?Porqueagoraeuqueriaformularessaideianumaimagemmaisconcretanafrase seguinte, que mudei para: “Um banco ocupado apenas por umfaxineiro empurrando um esfregão parece diferente de um cheio debancáriosaotelefone.”Issomepermitiufazerumcontrasteentreaaçãodetelefonardosbancárioseaaçãodelimparochãodosfaxineiros,emvezdemencionarmeramenteosnomesde seus cargosedeixarao leitorqueospreenchesse com suas respectivas atividades. A frase reescrita tambémelimina a repetição de um local “ocupado” por alguém. Dizer que osbancários “enchiam” o espaço acentuava o contraste entre omovimentoduranteodiaeaquietudedalimpezaànoite,destacadopelafotografiadeFrank.Eis mais alguns breves exemplos. Sem necessidade de especificar o

conteúdodosexemplos,mudei:“Sevocêfazoprimeiro,serácapazde”para“O primeiro lhe permite”. Mudei “Casas mais antigas têm montes decômodos com portas dentro deles” (não faria nenhuma diferença se euusasse“muitos”emvezdomaiscoloquial“montesde”)para“Oscômodos

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em casas mais antigas têm portas dentro deles”. (E agora, depois dapublicação, percebo que também deveria ter eliminado “dentro deles”.)Mudei“deacordocomométodoacimadescrito”para“pelométodoacimadescrito”,e“amudançaqueocorreunasconcepçõesdeprivacidade”para“amudançanasconcepçõesdeprivacidade”.Passamos muito tempo em meu seminário de redação fazendo

mudançassemelhantesemamostrasdetextosdoadasporamigos,colegase, por fim, pelos próprios estudantes. De início, os alunos acham difícilentender por que, depois de reescrever uma frase, reescrevo outra vez eatéumaterceiraouquartavez.Porquejánãofaçocertodesdeoprincípio?Digo e tento lhes mostrar que cada alteração abre caminho para outrasalterações e que, quando eliminamos palavras e expressões sem função,ficamais fácilvermosdoquetrataasentençaepodemosreformulá-lademodomaisprecisoesucinto.Eles também se perguntam se faz realmente algumadiferença ficar se

detendo em questões tão minúsculas. De início, acham o exercícioenfadonhoe,parasersincero,prolongoaprimeirasessãodeumamaneiraimperdoável.Queroquevejamquesempreháalgomaisadiscutir,algumaoutramudançapossível;quepossoeprovavelmentevouquestionarcadavírgulaecadapalavra,equeelesdeviamaprenderafazeramesmacoisa.Acham o exercício desgastante. Não conseguem se imaginar levantandotodas aquelas questões a cada frase. Por fim, eu os tranquilizo e aexperiência deles tambémos tranquiliza. Descobremque o processo nãoleva tanto tempo quanto temiam, que conseguem enxergar rápido osproblemasmais óbvios e só precisam se preocupar com algumas poucascoisinhas que são realmente difíceis de resolver. Aprendem que é fácilcopidescar linha por linha porque as coisas que precisam ser ajustadascaem em categorias. Quando você entende a natureza de uma categoria,sabearrumarosproblemasdasfrasesqueseencaixamdentrodela.(Estaéminhamaneira,imaginoeu,defalarsobreregrasediretrizes.)Jáoqueosestudantesnãoaceitamcomamesma facilidadeéque,por

mais tempoque leve,essarevisãominuciosavaleapena.Conseguemverquecadamudançadeixaascoisasumpoucomaisclaraseeliminaalgumaspalavras que provavelmente não estavam mesmo servindo para muitacoisa.Mascompensa?QuandotermineiArtWorlds, penseiquehavia feito todas as correções

que o texto exigia ou conseguia suportar. Uma preparadora de textohabilidosa,HelenTartar,releuefezcentenasdeoutrasmudanças,algumastãoextensasquantoasqueacabeideapresentar.Quandoliomaterialcom

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suasalterações,sentiamesmacoisaquesintoquando,olhandopelovisorde minha câmera, dou a última girada na lente que deixa tudo no maisperfeitofoco.Éissooquefazumaboapreparaçãodetexto,evaleapena.Aspalavrasdesnecessáriasocupamespaçoe,portanto,sãosupérfluas.Elasenganam, exigindo atenção ao sugerir uma profundidade e umasofisticação que não têm. Parecendo dizer outra coisa, essas palavrasexcedentesenganamosleitoressobreoqueestásendodito.Asfrasesqueacabamosdeexaminarilustramcategoriasdeproblemase

amaneiracomopodemosresolvê-los.Nenhumadasdiretrizesquevoudaragoraéoriginal.Seriasurpreendentese fossem.Geraçõesdeprofessores,editores e autores as descobriram e redescobriram, ensinaram-nas aosestudantes, recomendaram-nasaosescritores.Algunsprogramasde textoaté localizam erros estilísticos típicos e sugerem correções. Segueminhaversão,sobmedidaparaasnecessidadesdoscientistassociais,mastalvezútiltambémparaestudiososdeoutrasáreas.

1. Ativo/passivo. Todo manual de redação insiste que você substitua,sempre que possível, os verbos na voz passiva por verbos na voz ativa.(Nãoficamelhorassimdoquedizer:“Anecessidadedesubstituirosverbosna voz passiva por verbos na voz ativa é enfatizada em todos os livrossobreredação”?)Oque importamaisdoqueadistinçãogramaticalentrevozativaevozpassivaéosimplesatodepôrasaçõesessenciaisemformaverbaleconverteralgumpersonagemimportantenahistóriaquevocêestácontando em sujeito do verbo. A atenção à distinção gramatical conduzparaocaminhocerto.Avozativaquasesempreoobrigaanomearapessoaquefezacoisaquefoifeita(emboraoscamufladoreshabilidososconsigamescapar à exigência). Raramente pensamos que as coisas acontecemsozinhas, como sugere a vozpassiva, pois emnosso cotidiano aspessoasfazemcoisasefazemcomqueascoisasaconteçam.Asfrasesquenomeiamos agentes ativos tornam nossas representações da vida social maisplausíveisemaiscompreensíveis.“Ocriminosofoicondenado”ocultaojuizque,comosabemos,determinouasentençae,nãoporacaso,fazcomqueodestino do criminoso pareça uma operação de forças impessoais, e nãotantooresultadodepessoasagindoemconjuntoparaencarcerá-lo.Quasetodasasversõesdateoriasocial insistemquenósagimosparaproduziravida social. Karl Marx e George Herbert Mead pensavam assim, mas asintaxedeseusseguidoresmuitasvezescontrariaateoriadeles.

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2.Menospalavras.Osescritoresacadêmicosmuitasvezesinserempalavraseexpressões inteirasquandonãoqueremdizer algumacoisadamaneirasimples e direta como lhes veio de início.Querem indicar umamodéstia,umareserva,umanoçãodequesabemquepodemestarerrados.Àsvezesquerem reconhecer que os leitores podem discordar, ao sugerireducadamente, antes de dizer o que vão dizer, que tal coisa mereceatenção,emvezdedizê-lalogo,comosefosseclaroqueelamereceatenção.Foi por isso que, de início, eu tinha dito que “era importante” deixarexplícitos os passos da teoria.Mas, se não fosse importante, para que seincomodarcomisso?E,seéimportante,porquenãodeixarlogoclaro,semprecisardeumanúnciopreliminar?Nós, acadêmicos, também usamos palavras desnecessárias porque

pensamos,comoaestudanteemmeuseminário,que,sedissermosacoisademodo simples edireto, vaiparecer algoquequalquerumpodiadizer,emvezdesoarcomoaprofundaasserçãoquesomenteumcientistasocialécapazdefazer.Damosumaimportânciaespecialaessacoisa,aosugerirque há algum processo importante subjacente ao que estamos dizendo.Assim, no começo eu falei em “alguém que foi capaz de” manter suadignidade. Essa formulação, em vez de “pessoas que mantiveram” suadignidade,sugerequefoidifícilconservaradignidadeeapessoatevedeseempenhar nisso. Mas eu estava escrevendo sobre fotógrafos, não sobrepessoasvencendoproblemas.Emboraaspessoasrealmentemantenhamadignidade, como sugere a expressão, não é disso que trata o artigo e,portanto, era dispersivo e inútil mencioná-lo. Analogamente, em “amudançaqueocorreunasconcepçõesdeprivacidade”aênfaserecaisobreo processo demudança nessas concepções. Se eu retirar as palavras emitálico, o aspecto que quero apontar ficará intacto e eliminarei umareferência dispersiva a um processo não analisado que não voltarei amencionar.Às vezes colocamos essas expressões supérfluas porque o ritmo ou a

estrutura da frase parece exigi-las ou porque queremos lembrar a nósmesmos que está faltando alguma coisa no argumento. Queremosapresentar um argumento se–então, mas não desenvolvemosconscientementeaconexãocausalquenossa intuiçãocrêestarali.Assim,montamosaformaeesperamosqueoconteúdoapareçaparapreenchê-la.Oufazemosporhábito.Apegamo-nosa locuçõese formatos.Comováriosescritores acadêmicos, muitas vezes escrevo frases com três oraçõesaditivas:“Estelivrodespertanossacuriosidade,nosdáalgumasrespostase

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nos convence de que o autor está certo.” (A segunda frase do próximoparágrafo é outro bom exemplo, que ocorreu naturalmente enquanto euestavaescrevendo.)Masmuitasvezesusoessa forma,quer tenhaounãotrêscoisasadizer,eaíprecisomeesforçarparaencontraraterceiracoisa,queentãoévazia.Nãofazmal.Vaisairnarevisão.Umapalavradesnecessárianãofunciona.Nãodesenvolveoargumento,

não faz uma qualificação importante nem acrescenta um detalheconvincente. (Está vendo?) Encontro as palavras desnecessárias fazendoumtestesimples.Enquantoleiomeurascunho,verificotodasaspalavraseexpressões para ver o que acontece se eu eliminá-las. Se o sentido nãomudar,removo.Muitasvezes,aeliminaçãomefazveroqueeurealmentequeria ali e ponho de volta. Raramente tiro palavras desnecessárias nosrascunhosiniciais.Vouchecá-lasnahoradereescrevereaívoueliminá-lasousubstituí-lasporpalavrasquefuncionem.

3. Repetição. Os acadêmicos criam algumas de suas obscuridades maisimpenetráveis quando tentam ser claros. Eles sabem que a vaguezapronominal e a ambiguidade sintática podem obscurecer o que queremdizer e assim, caso haja alguma possibilidade de confusão, repetempalavraseexpressões.Issopodenãoconfundirosleitores,masgeralmenteprovoca tédio. Não estou apenas repetindo a regra mecânica que todosaprendemosnaescola:nãorepitaamesmapalavraao longodetantasoutantasfrases.Talvezvocêprecisefazerisso,masnãodeverepetirpalavrasquando pode obter o mesmo resultado sem a repetição. Lembre minhafrase:“Umbancoparecediferentequandoéocupadoporumfaxineirodoque quando é ocupado por bancários.” Não é preciso repetir “quando éocupado”,oquedispersaaatençãodoleitor.Seeurepensarafrase,possoformulardemodomaiscompactoeinteressante,comotenteifazernaqueleexemplo.

4. Estrutura/conteúdo. Os pensamentos transmitidos numa frasegeralmentetêmumaestruturalógica,afirmandoouimplicandoalgumtipodeconexãoentreascoisasdequeafrasetrata.Podemosquererdizerquealguma coisa se parece ou realmente é alguma outra coisa (afirmar umaidentidade):“Umhospitalmentaléumainstituiçãototal.”Podemosquererdescreveruma característica identificadoradeuma classede fenômenos:“Aspessoasquesaemdocamposãomarginaisnasociedadeurbanaemqueentram.”Podemosquerer identificaralgumacoisa comomembrodeuma

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classe: “Monet era um impressionista.” Podemos querer afirmar umaconexão causal ou uma relação se–então: “Favelas produzem crimes” ou“Se uma criança cresce num lar desfeito, essa criança se tornarádelinquente.” Podemos afirmar essas conexões damaneira que acabo defazer. É suficienteparadeixar clarooquequeremosdizer.Maspodemosseraindamaisclarosreforçandonossoargumentosintaticamente.Asintaxe–amaneiracomodispomososelementosdafrase–indicaas

relações entre eles. Podemos reforçar um pensamento de uma frasedispondo seus elementos de forma que sua sintaxe também sustente oargumento ou, pelo menos, não interfira na compreensão do leitor. Porexemplo, podemos colocar pensamentos subordinados em posiçõessubordinadas dentro da frase. Se os colocarmos em posições deimportância, os leitores pensarão que eles são importantes. Se dermos amesma importância gramatical a todos os pensamentos numa frase,alinhando-osemoraçõescoordenadas,osleitorespensarãoqueelessãodeigual importância.Éoqueacontecequando, cedendoaohábito, digoquetenhotrêscoisasadiscutireentãonomeiocomoum,doisetrês,ouapenasarrolo uma depois da outra. Geralmente conseguimos apresentar nossoargumento de uma maneira mais vigorosa não seguindo uma lista, maspassandodeumacoisaaoutradeumaformaquemostreaconexãoentreelas.

5.Concreto/abstrato.Osacadêmicosemgeraleossociólogosemparticularusam um excesso de palavras abstratas. Às vezes usamos abstraçõesporque não temos nada muito específico emmente. Os acadêmicos têmalgunstermosabstratosfavoritosquefuncionamsóparapreencherespaço.Nãosignificandonadaemsimesmos,elesmarcamumlugarqueprecisadeuma ideia concreta. Alguns exemplos são “complexo”, “complicado” e“relação”.Dizemosqueháumarelaçãocomplexaentreduascoisas.Oquesignifica?“Relação”éumconceitotãogeralquenãosignificaquasenada,eéporissoqueétãoútilemramosmuitoabstratosdamatemática.Aúnicacoisa que “relação” diz é que duas coisas estão conectadas de algumamaneira. Mas praticamente quaisquer duas coisas estão relacionadas dealguma maneira. Em disciplinas menos abstratas do que a matemática,geralmente queremos saber como é essa relação. É isso que vale a penasaber. O termo “complexo” não nos conta, ele apenas diz: “Acredite emmim, tem muita coisa aí”, ao que a maioria das pessoas concederiapraticamentequalquercoisa.Amaioriadasmetáforasespaciaisusadasnas

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discussões sobre a vida social e outros temas acadêmicos – níveis eposições em organizações sociais, por exemplo – engana os leitores, semdarespecificidadesconcretas.Omesmoacontececomfrasesquesugeremque o que estamos descrevendo faz parte de um conjunto de coisassimilares:“umjogode”,“umaespéciede”.Também usamos abstrações para indicar a aplicação geral de nosso

pensamento.NãoqueremosqueninguémpensequeoquedescobrimossóvaleparaosprofessoresdoensinopúblicodeChicagooudeumhospitalmental em Washington. Queremos que as pessoas entendam que o quedescobrimos onde fizemos nossa pesquisa pode ser encontrado emcircunstâncias semelhantes em qualquer parte do mundo, em qualquerépocadahistória.Nãohánadadeerradonisso:éumagranderazãoparafazer pesquisas sociológicas. A melhor maneira de convencermos osleitores sobre a generalidade de nossos resultados é descrever o queestudamos em detalhes específicos e então mostrar, com o mesmodetalhamento, a que classe de coisas pertence nosso objeto de estudo equais as outras coisasqueprovavelmentepertencema essa classe. Se eumostrodetalhadamentecomoaspessoasaprendemafumarmaconhacomos outros e como isso afeta sua experiência dos efeitos da droga, possoavançaredescreverumaclassedefenômenossimilarescomespecificidadesimilar: como as pessoas aprendem com os outros a entender suasexperiências físicas internas. O caso específico que descrevi em detalhesforneceummodeloaoqualosleitorespodemremeterminhasideiasmaisgerais.Semasespecificidades,asideiasgeraisnãosignificamgrandecoisa.Osmanuaisderedaçãonosdizemparausardetalhesconcretosporque

tornam o assunto mais vívido, mais marcante para o leitor. Williams(1981),porexemplo,diz:

Qualquerque sejanossopúblico,podemos tornaro texto legível emarcanteescrevendodemodoespecíficoeconcreto.Quandocondensamosexpressõescompridasetortuosasemexpressõesmaiscompactas, damos aguda especificidade a ideias difusas…Quantomais estreita a referência,maisconcretaaideia;quantomaisconcretaaideia,maisclaraemaisprecisaelaé.(p.132-3)

Quandousamosdetalhesconcretosparadarcorpoaabstrações,porém,devemosescolhercuidadosamenteosdetalheseexemplos.Oexemploqueos leitores têm em mente trará considerações que não estão expostasexplicitamentenoargumentogeraledarãocorànossacompreensãodesseargumento. Kathryn Pyne Addelson, filósofa que analisa os problemaséticosdoaborto,dizqueos filósofos costumamelaborarexemplosmuitofantasiosos – hipotéticas mulheres engravidadas por insetos voadores e

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coisasdogênero–equetalescolhadeexemplososlevaaconclusõesquenãoadotariamsediscutissemocasodeumagrávidadequarentaanosdeidadecomcincofilhosemaridodesempregado.

6.Metáforas. Estou folheando os números atuais de algumas revistas desociologia (não creio que os resultados seriam diferentes se as revistasfossem de história, psicologia ou literatura inglesa). Em quase todas aspáginas,encontrometáforasbatidas.“Parecefaltarumargumentocortante,ferino”aum livroresenhado.Outro livro“cobreum imenso terreno”.Umterceirolidacom“umaquestãoricaquefoiempobrecidaporseucontexto”.Meus colegas falam do “corpo bibliográfico crescente”, de análises que“penetramnocoração”doassuntoemdiscussãoouque“ficamentreacruzeaespada”,eencontram“assementes”depráticasinstitucionaisdeoutrasociedade“plantadasemnossaprópriasociedade”.Umaabordagemteóricaleva a uma “camisa de força conceitual”. Os pesquisadores “garimpam”dados,“escavam”ou“destilam”resultadosechegamao“fundo”daquestão.Omaiscientíficodosdocumentostrazinúmerasimagensdessegênero.Geralmente elimino essas metáforas de qualquer texto que eu esteja

revisando.Todaselas?Não,somenteasdogêneroacima.Vocêpodesentira diferença comparando-as a um uso magistral da metáfora, no famosoartigo “On Cooling the Mark Out” [“Esfriando/consolando o otário”], deGoffman (1952), queusao contodo vigário comometáforapara aquelassituações sociais emque a pessoa não consegue sustentar a definição daprópriaidentidadequeofereceasieaomundo.Eudeixariaessametáforaemqualquertextoquerevisasse.A diferença entre os dois tipos de metáfora consiste na seriedade e

atenção com que elas são usada. Nãome refiro à seriedade com que osautorestratamotema,masàseriedadequededicamaosdetalhesdesuasmetáforas. Goffman tomou a sério a metáfora do conto do vigário e osujeito que é enganado em sua confiança. Comparou ponto por ponto asoutras situações que analisou – o namorado cujo pedido de casamento érejeitado,ofigurãoquenãoconsegueumamesanumrestaurantelotado,apessoaquenãoconsegueadministrarascoisasdodiaadiasemdeixardeatrair a atenção sobre si – com a do conto do vigário. Ele notou, emparticular, que os otários que levaram prejuízo na mão de vigaristasperceberam (e imaginaramqueos outros tambémperceberiam)quenãoeram nem de longe tão espertos quanto pensavam na hora em quetentaramganhardinheirofácil.Atradiçãodapráticadelinquenteensinava

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aos vigaristas que poderiam evitar maiores problemas se ajudassem asvítimasfuriosasarecuperaroamor-próprio,se“esfriassem”oânimodelas.Assim,osvigaristascostumavamencarregarumintegrantedobandoausarmétodos comprovados para chegar a tal resultado. Goffman utilizou ametáfora[esfriar]paradescobriredescreveramesma jogadaeomesmopapel em restaurantes e emoutros lugaresondeaspessoaspodiam ficarexpostas, e inclusive sugeriu que, como algumas pessoas sofriam taldesmascaramento em muitas áreas da vida, provavelmente poderíamosencontrarprofissionaisquelidavamcomessesproblemasdemaneiramaisgeral.Eleidentificouapsiquiatriacomoumadisciplinadedicadaaesfriaroânimodepessoascujasfalsaspretensõestinhamsidodesmascaradaspelavidasocial.Essadescobertavalidouametáforaparamuitosleitores.Masametáforavalidouasimesmaporserséria,porsignificarqueessasoutrassituaçõeseramsimilaresaocontodovigárioemtodososaspectos,grandesepequenos.Asmetáforasanteriores,queciteiapartirderevistassociológicas,não

eram sérias quanto a suas ramificações. Quando dizemos que umargumento é “cortante” ou “ferino”, a que instrumento estamoscomparando e que material ele estaria supostamente cortando? Quem“cobre o terreno” na vida real, como o cobre, quais são os problemas decobrirumterreno?Aliteraturaestásendocomparadaaumcorpohumano?Significaquetemosdeprocurarseucoração,seufígado,seuestômago,seucérebro? Os autores jamais pretenderam que levássemos suasmetáforastãoa sério.As comparações feitaspor essas “metáforasbatidas”não têmmaisvidaparaquemescreveeparaquemlê.Umametáfora que funciona ainda está viva. Quando você a lê, ela lhe

mostra umnovo aspecto daquilo que você está lendo,mostra como esseaspecto aparece em algo que, na superfície, émuito diferente. Usar umametáfora é um exercício teórico sério, em que você afirma que doisfenômenosempíricosdiferentespertencemàmesmaclassegeral,eclassesgeraissempreimplicamumateoria.Masasmetáforassófuncionamdessamaneira se tiverem frescor suficiente para atrair a atenção. Se já foramusadas e repetidas a ponto de se tornarem clichês, você não vê nada denovo.Naverdade,vocêpensaqueelassignificamrealmente, literalmente,aquilo a que aludem de maneira metafórica. Veja a expressão inglesacomum“to take the wind out of someone’s sails” [ao pé da letra, “tirar oventodasvelasdealguém”].Usei, lieouviessaexpressãoporanosa fio,masparamimsempresignificouapenasquevocêesvaziava,desinflavadealgumamaneiraaoutrapessoaaquemvocêfaziatalcoisa.Eaíaprendia

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velejar.Nascorridasavela,osadversáriostentamseinterporentreagenteeovento,eassimaveladelesimpedequeoventobatananossa.Quandoconseguemse interpor,nossasvelas,que logoantesestavamenfunadasefaziam nosso veleiro avançar depressa, de repente ficam frouxas ecomeçamapendernovazio.Africçãodocasconaágua,agoraquenãotemvento impelindo, faz o veleiroparardeumahoraparaoutra.Ametáforaganhou vida para mim, relembrando em toda a sua plenitude umaexperiência irritante.Mas ametáfora significa pouco ou nada para quemnãoteveessaexperiência.Todas as metáforas batidas algum dia tiveram vida. Conforme

envelhecem,perdemsuaforçadevidoàrepetição,eassimocupamespaço,mas dão uma contribuição menor do que uma afirmativa simples e nãometafórica. É mais claro e mais preciso dizer que o tema de um livro édifusodoquedizerquelhe“faltaumargumentocortante”.Seoautortiversorte, ninguém prestará atenção ao significado literal da expressãometafórica.Quandoouço“jogarforaobebêjuntocomaáguadobanho”–eaindaauso–,achodifícil contero riso.Omesmovalepara “ficarentreacruz e a espada”. O que essas pessoas estavam tentando fazer com elas,aliás?Asmetáforas também se deterioram pelo uso errado. As pessoas que

nãoconhecemenãoentendembemo fenômeno,quepodemnãosaberoque estão dizendo quando usam as palavras, vão usá-las de maneiraincorreta, pensando que querem dizer alguma outra coisa. A metáforausualda “bottom line” [ao pé da letra, “linha de baixo”], por exemplo, serefere à última linha de um relatório contábil que, resumindo todos oslançamentos anteriores, permite saber se você teve lucro ou prejuízonaquele ano. Metaforicamente, pode se referir ao resultado final dequalquer série de cálculos: a população dos Estados Unidos segundo oCensode1980ouacorrelaçãoentrerendaeníveldeinstruçãoemalgumestudo.Masaspessoasmuitasvezesusamparaindicarumaofertafinal,omenorpreçoqueestãodispostasapagar,odesaforoquenãovãoaguentar:“That’s the bottom line!” As pessoas que dizem isso não sabem ou nãolembram que a expressão tem um referente financeiro. Provavelmenteusam a expressão porque gostam do tom definitivo que há em bottom,implicandoumpontoalémdoqualvocênãopodeir.Nãopodemoseneméocasodetentarmosevitarousodeoutrotipode

metáfora,aquelas inseridasemnossa línguademaneirapermanente,queLakoff e Johnson (1980) analisaram detalhadamente. Darei apenas umexemplodaquelasqueeleschamamde

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metáforasorientacionais, vistoqueamaioriadelas temaver comumaorientaçãoespacial: cima–baixo, dentro–fora, frente–verso, fundo–raso, central–periférico. Essas orientações espaciais sedevemao fatodetermoso tipodecorpoquetemos,que funcionado jeitoque funcionaemnossoambiente físico. As metáforas orientacionais dão a um conceito uma orientação espacial; porexemplo,“Happyisup”.Ofatodequeoconceitode“feliz”,happy,sejaorientadoparaoalto,up,levaaexpressõeseminglêscomo“I’mfeelinguptoday”[“Hojeestoumesentindoparacima”].(p.14)

Lakoffe JohnsonprosseguemparamostraraubiquidadedeUP [alto] eDOWN[baixo]eseuscorrelatosemnossafala:

conscienteéup,inconscienteédownsaúdeevidasãoup,doençaemortesãodowntercontroleouforçaéup,estarsubmetidoacontroleouforçaédownmaiséup,menosédownfatosfuturosprevisíveissãoup(eahead[àfrente])statuselevadoéup,statusbaixoédownboméup,mauédownvirtudeéup,depravaçãoédownracionaléup,emocionalédown

Eiscomoelesanalisamoúltimoexemplo:

Racionaléup;emocionalédown:adiscussãocaiuparaonívelemocional,maseua iceinovamenteparaoplanoracional.Pusemosnossossentimentosdeladoetivemosumadiscussão intelectualdealtonívelsobreoassunto.Elenãoconseguiuseelevaracimadesuasemoções.Basefísicaecultural:emnossacultura,aspessoasseveemnocontrolesobreanimais,plantase

seu ambiente físico, e é sua faculdade racional exclusiva que coloca os seres humanos acima dosoutrosanimaiselhesdáessecontrole.Assim,“Controleéup”poisservedebasepara“Homeméup”e,portanto,para“Racionaléup”.(p.17)

O livro traz mais de duzentas páginas com tais análises e exemplos.Como eu disse, você não tem como evitar tais metáforas. Mas, se tiverconsciência delas, pode usar suas conotações de forma intencional. Seignorarasconotações,seutextosedebateráconsigomesmo,a linguagemtransmitindoumaideiaeasmetáforasoutra,eosleitoresnãosaberãobemoquevocêquerdizer.Estecapítulomaltocouemoutrotema:oqueécriarumpadrãodegosto

quelhepermitarevisarbemseuprópriotextoetextosalheios.Aprincipalliçãonão sãoas especificidadesdoqueexpus,masa lição zendeprestaratenção. Os escritores, ao revisar seus textos, precisam prestar grandeatençãoaoqueescreveram,examinandocadapalavracomosepretendesseser levada a sério. Você pode escrever os primeiros rascunhos depressa,semcuidado,exatamenteporquesabequeteráumolhocríticomaistarde.Quando você olha com atenção, os problemas começam a cuidar de simesmos.

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5. Aprendendoaescrevercomoprofissional

OS CIENTISTAS SOCIAIS começaram a contar histórias pessoais quandoreconheceram que a apresentação impessoal de ideias e resultados depesquisa, a qual costumava ser considerada científica, oculta aos leitoresfatos que eles gostariam de conhecer (ver as coletâneas de textosautobiográficos organizadas por Hammond 1964 e Horowitz 1969). Amaioria dos textos sociológicos autobiográficos se concentra namaneiracomofoifeitaapesquisa,earedaçãomereceomesmotipodeatenção.Já comentei como as instituições da vida acadêmica, em especial as

escolas, criam os problemas da redação acadêmica. Minha discussão seconcentrou em larga medida nas fases iniciais da carreira acadêmica: aescolaelogoaseguir.Esteeopróximocapítuloexaminamosproblemasderedação conforme surgem em fases posteriores de uma carreira emciênciassociais.NoCapítulo6,PamelaRichardsdiscuteatransiçãocrucialdos primeiros dias como estudante de pós-graduação até se tornarprofissional plena. Neste capítulomuito poucomodesto num livro poucomodesto,contoalgumashistóriasdemeus trintaepoucosanosnaáreaedestacoalgunselementosanalíticos.O ponto principal é que ninguém aprende a escrever de repente. Pelo

contrário,essaaprendizagemprosseguedurantetodaavidaprofissionaledecorredeumlequedeexperiênciastrazidaspelaacademia.Os cientistas sociaisnãopensamna redaçãocomoumproblemasério,

até a hora em que encontram dificuldades para redigir ou publicar seustrabalhos. Podem tratá-las com um alegre descaso, como um conhecidomeu,quedisse:“Estilodeescrita?Vocêserefereausaritálicosepôrnotasde rodapé?” Podem tratar a facilidade de redação como uma dádiva deDeusquesimplesmentenão lhescoube,comooestudantequeexplicouàsua banca examinadora (da qual eu fazia parte) que sabia que sua teseestava mal escrita, mas, sabem, não sou uma pessoa verbal. Até podementenderquetêmproblemasparadizeroquepretendem,maspensamquepodempassar a tarefa para outra pessoa.O estudante “não verbal” disse

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queestava tudobem,poisaesposadeleera formadaem língua inglesaecuidaria de qualquer problema que aparecesse. Outros contratam umpreparadordetextoquemaltêmcondiçõesdepagar.Nem todos desenvolvem a sensibilidade que adquiri em relação à

clarezanaescrita.Possoapontaralgunsdos fatosnavidaacadêmica (emsua maioria, acidentes fortuitos aos quais, por alguma razão, eu estavapreparadoparareagir)quemesensibilizaram.Oscursosdeinglêstiveramalguma coisa a ver. Quando eu fazia a graduação na Universidade deChicago, tive um bom curso prático de redação, que se concentrava nastécnicas de reorganização e reelaboração do texto. Provavelmente foi láque aprendi que o primeiro rascunho era mesmo isso, um primeirorascunho,equeeudeviateremmentequereescrevê-lofazpartedarotina.Poroutrolado,algunsanosdepós-graduação,lendolivroseperiódicosdesociologia, conferiram a meu estilo todos os traços típicos que agoraeliminodostrabalhosdemeusalunos.Depois deme formar, tive várias experiências com pessoas que agora

eramcolegasdedocênciaenãomaismeusprofessores,equemefizeramlembrar aquelas recomendações sensatas da graduação. Obtive meudoutoradoemsociologianaUniversidadedeChicagoem1951,aos23anos.Tive dificuldade em encontrar emprego na academia, o que não foi umasurpresa. Por que alguém iria contratar um rapazola se poderia ter umadulto pagando o mesmo salário (naquela época, quatro mil dólares aoano)?Tiveasortedeconseguirumempregocomopesquisador,estudandoo uso da maconha, por 75 dólares semanais. Nos feriados de Natal, umbondedeChicagotombouemcimadeumcarrocujomotoristaeraumdosdocentes do curso de Ciências Sociais II na Universidade de Chicago.Precisavamdeumsubstitutorápido,ealgunsamigosquejádavamocursome conheciam e me indicaram, e assim consegui o emprego. Foi comoconheciMarkBenney(depoisfalecido),umjornalistainglêsqueingressarana vida adulta como pequeno delinquente e acabou lecionando ciênciassociais graças ao incentivo e auxílio deDavidRiesman e EverettHughes.Ele havia publicado vários livros, e sua experiência como escritorprofissional se mostrava na elegância e clareza de sua prosa, que euadmirava.Magro, baixinho, comcalvície prematura,Mark tinhaumardemalandroqueeuatribuíaaseusperíodosnaprisão.Tinhacuidadocomoque dizia e assim, quando dizia alguma coisa séria, você sabia que elerealmentequeriadizeraquiloequeriaquevocêlevasseasério.Eu já tinha publicado um ou dois artigos em revistas acadêmicas e

decertome achava bastante bom ou pelomenos competente. Redigi um

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artigobaseadoemminhatesededoutorado,oestudosobreosprofessoresdarededeensinopúblicodeChicagoquejámencionei.Oartigolevantavaalguns problemas sobre o ensino e as classes sociais que pensei queinteressariamaMark,eentãolhepediquelesse.Aomedevolver,eledisseque achou muito interessante e então comentou alguns aspectos doconteúdo. E aí, como algo que lhe ocorresse num segundo momento,acrescentou: “Bom, imagino que você tem de escrever desse jeitoengraçadoparaserpublicadonumarevistadesociologia.”Eusabiaqueeleeraum“escritordeverdade”,eporissoocomentáriodoeu.Decidiretomare reescrever o texto, usando algumas das lições de reescrita que tinhaaprendidonagraduação.Comeceiaentenderqueterminarumartigonãosignificavaqueeleestivessepronto.Váriosanosdepois,JimCarpereeuescrevemosumtextocombaseem

nosso estudo das identidades profissionais de pós-graduandos em váriasáreas.SubmetemosoartigoaoAmericanJournalofSociology,cujoeditornaépocaeraEverettHughes,quetinhasidomeuorientadornodoutoradoeaquemme sentia próximo e leal. Omanuscrito voltou, comumbilhete daeditoraresponsável,HelenMcGillHughes(sociólogaejornalista,esposadeEverett),dizendoqueeudeviaentenderqueEverettrealmentegostavademim,quetinhaescritooscomentárioseditoriaisàsquatrodamanhãequeeunãolevasseavirulênciadelesaopédaletra.Oscomentáriossemdúvidame espantaram. Entre outras coisas, ele dizia que frases e parágrafosinteiros pareciam ter sido traduzidos do alemão, palavra por palavra. Eunão lia alemão (nemnenhuma outra língua, apesar de ter sido aprovadonum exame de francês na universidade, durante a qualificação para odoutorado),massabiaqueissoeraruim.Umparágrafomemorávelcitavaumadenossasfrasesmaispomposasetraziaoseguintecomentário(aquicitadonaíntegra):“Droga!Droga!Droga!”OcomentárioinformaldeMarkhavia me sensibilizado. A carta de Everett reforçou minha vontade deescreverumtextoclaroecompreensívelquesoassecomoinglêsdocomeçoaofim.O último passo para minha adesão definitiva ao trabalho sério de

reescrita se deuquandoBlancheGeer se juntou a nós dois,Hughes e eu,num estudo sobre os estudantes demedicina. Ela levavamuito a sério aquestãodaredaçãoemeensinouarespeito, comsériasdiscussõessobrecada palavra nos rascunhos que estávamos fazendo. Tivemos debatesmaravilhososeintermináveissobre,porexemplo,“perspectiva”,palavraeideiacentralparaoaparatoteóricodenossoestudo.Aquestãoeraoverboqueusaríamos.Aspessoas “adotavam”ou “tinham”umaperspectiva?Ou

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será que “usavam” uma perspectiva? As conotações de cada termo eramdiferentes e, agoraquenos concentrávamosnelas, davaparadiscerni-lascom clareza. A questão não era qual palavra estava certa, mas o quequeríamosdizer.Chegamosaosproblemasporviasestilísticas,masaofinaltivemosderesolvê-losteoricamente.Nossasdiscussõesmeensinaramqueamaneiradedizer as coisas era

realmenteimportanteequetínhamosescolha.Tambémmeensinaramqueera divertido reescrever, uma espécie de quebra-cabeça verbal cujoobjetivo era encontrar ummodo realmente bom e conciso de dizer algocom clareza. Estas conversas com Geer me levaram a concluir minhaconversãoàpráticasériadaredaçãoe,entretodasasexperiênciasquetive,aquelasdiscussõesforamdelongeasmaisimportantes,poiscontinuaramaolongodaescritadeváriosartigoselivrosqueescrevemosjuntos.Ossociólogoscomosquaisfizminhapós-graduaçãocostumavamtrocar

rascunhosdeartigosemandamentoeéramosmuitobonsemdizerumaooutrooquedevia ser feitoa seguir.Creioquenãopercebiatéquepontoessas mútuas leituras e comentários entre colegas afetaram meudesenvolvimentoprofissional,atéomomentoemquecontrateiLeeWeinercomoauxiliardepesquisa,algunsanosdepoisquecomeceiadaraulasnaNorthwestern. Eu estava fora no verão em que ele começou a trabalharpara mim e, como consciencioso revolucionário, Lee (que depois setornaria um dos Sete de Chicago) leu toda a minha correspondência,emboraissonãofizessepartedesuasobrigações.Quandovolteinooutono,elemefalouentusiasmadooquantotinhaaprendidoaoolharaspastasqueeuguardavasobreosartigosquehaviaescrito,vendooquemeusamigostinham anotado e comentado nos vários rascunhos, e como eu haviaincorporadotaiscomentáriosnaversãoseguinte.Váriosanosdepoisdemeudoutoramento,euhaviamontadoumarotina

deescritabastanteeficiente,reescrevendocombasenascríticasdeamigosaos rascunhos iniciais. Aprendera a ver a reescrita como algo divertido,umaespéciedepalavras-cruzadas,enãocomoumatarefaconstrangedoraque, fazendo-se necessária, revelava minhas dificuldades. Aprendi quepensarsobreaescrita,fazerexperiênciascommeupróprioestiloeajeitarostextosdosoutrostambémeramcoisasdivertidas.Talvez tomar a escrita como um jogo agradável tenha me imunizado

contraasansiedadesdequeoutraspessoasfalam,masminharelativafaltade ansiedade para redigir também tinha raízes sociológicas. Eu cresceranuma forte tradição teórica que também dispunha de uma forte baseorganizacional. A escola de sociologia de Chicago se desenvolveu na

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UniversidadedeChicagonosanos1920,comaliderançadeRobertE.Park.(SobreaescoladeChicago,verFaris1967,Carey1975eBulmer1984.)Elatinha um ponto de vista coerente, encarnado nos textos de Park, queganhou continuidade e desenvolvimento com uma legião de vigorosospensadoresepraticantes,emespecialEverettC.Hughes,HerbertBlumer,LouisWirtheRobertRedfield.Tinhatambémaseucréditoumalongalistademonografiasempíricasclássicas:TheGoldCoastandtheSlum,TheTaxiDanceHall,TheGang e,mais tarde,French Canada in Transition e outrasmais. Estudei, junto com algumas centenas de outros estudantes do pós-guerra,comosgigantesdageraçãopós-Parkemeformeicomaquelapilhade monografias. Sabíamos que existiam outras maneiras de fazersociologia,maspoucosaslevavammuitoasério.Ofatodetermeformadonessatradiçãoenessecenáriomedeuumaarrogânciateórica,aconvicçãoreconfortantedequeeuaprenderaessencialmentetodaateoriageralqueprecisariaconhecercomHugheseBlumer,equeelabastavaparalidarcomqualquer problema que aparecesse. Intelectualmente, eu sabia e sei quenãoébemassim,masissonãoafetavaoresultadoemocional.Quando você sabe que está essencialmente certo, uma boa parcela da

pressão sobre sua escrita desaparece, pois aí você não precisa tentarresolverproblemassociológicosencontrandoamaneiracertadeformulá-los.Algumaspessoasresolvemproblemasteóricoscomaanáliselógica.Deminhaparte, aprendia resolverproblemas teóricosdemaneiraempírica.As duas opções são melhores do que tentar resolvê-los encontrando amaneiracertadedizer.Oaumentonaquantidadedesociólogosedeáreasdeespecializaçãoem

sociologia produziu um aumento análogo nas organizações e publicaçõessociológicas.Ossociólogoseditamessaspublicações,eoscargoseditoriaisgeralmente sãoumadashonrariasque cabemàspessoasque já estãoháalgum tempo na área. Os programas de pós-graduação não ensinam aeditarumperiódico–afazerapreparaçãodostextos,alidarcomagráficaou a persuadir os autores a melhorar o trabalho. Os periódicos, em suamaioria, não podem se permitir a contratação de preparadoresprofissionais de texto, e assim são os próprios sociólogos editores dapublicaçãoque fazemtodoesseserviço.Aprendemfazendo,comalgumasdicasde seusantecessores.Minhasexperiências comoeditor,quandoumpassatempo se tornou uma segunda profissão, contribuíram muito paraminhasideiassobreaescrita.Depoisdepassaranoscopidescandoinformalmenteostextosdeamigos

ecolegas,assumidoiscargoseditoriaissérios.Em1961, tornei-meeditor

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da Social Problems, a revista oficial da Society for the Study of SocialProblems[SociedadeparaoEstudodeProblemasSociais,SSSP,nasiglaeminglês], organização que fora criada em oposição ao monolitismo queestava tomando contadaAssociaçãoAmericanadeSociologia.Considerei(e creio que assim também consideraram aquelesmembros da SSSP quetinham alguma opinião formada) que seria minha tarefa lançar umperiódico que fosse de certa forma diferente da American SociologicalReview e do American Journal of Sociology, representantes do “sistema”.Não sabia muito bem o que isso acarretava, mas achei que devia tentaroferecer um espaço para artigos que, por uma razão ou outra, não erambem-vindosnosperiódicosmaiores.O que impedia que um artigo fosse bem-vindo? A maioria dos

integrantesdaSSSPachavaqueosistemafavoreciatrabalhosmaciçamentequantitativos, trabalhos baseados na teoria estrutural-funcionalista etrabalhos que eram apolíticos (portanto, conservadores num sentidoefetivo). Assim, a SSSP dava preferência a trabalhos que não fossemconservadores, não tivessem viés quantitativo e usassem teorias “deChicago” ou, mais tarde, marxistas. Fosse como fosse, a entidade queriaestarabertaaqualquercoisaquenãofossedosistemadaCostaLeste.Devoter concordado com tudo isso, que me parecia razoável, embora osperiódicos do sistema dominante tivessem publicado com bastantefrequência meus trabalhos não quantitativos e não estrutural-funcionalistas.Assim, assumi o cargo de editor com a ideia de que minhas

responsabilidades consistiam em publicar materiais contra o sistema.Tambémdecidi (emboraninguémmedissesseque faziapartedeminhasresponsabilidades oficiais ou extraoficiais) que ia tomar algumaprovidência quanto ao estado da redação sociológica, que me parecialastimável,reescrevendooquantofossenecessáriotudooqueaparecessena revista. Tendo isso em mente, recrutei para meu conselho editorialpessoas que escreviam bem, sabiam o que era um texto bem-escrito e,portanto,poderiammeajudar.Aprendimuitocomosprimeirosvolumesquepubliquei.Depoisde ter

montado meu primeiro número (e logo falarei sobre esses problemas),reescrevi extensamente todos os artigos dele. Era a experiência decopidesquemaisintensivaeinstrutivaqueeutiveraatéaquelemomento.Preparar tantosartigosde tantaspessoasemtantosestilosemtãopoucotempofezeumesentirumcopidesquedejornal.Aprendiabateroolhoelocalizar as coisas que sabia que não teria a menor dúvida em mudar

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imediatamente. (Nunca entendi como fiz algumas das coisas que acabeiaprendendo a fazer: por exemplo, localizar um erro tipográfico numaprimeiraprovadooutroladodasala,sendoquenemconseguiaenxergarotipo.)Mastambémaprendiquenãoiareescrevertodososartigosdaquelamaneira, por mais que precisassem. Tomava tempo demais e eu tinhaoutrascoisasafazer.Podiafazeralgumaspáginasdeumartigoemostraraosautoresoqueeutinhaemmente,masdepoiseleséqueteriamdefazerporcontaprópria.Nosúltimosanos,algunsperiódicosmaiorescomeçarama contratar preparadores, mas nem mesmo eles podem se permitir oscustosdeprepararosartigosdamaneiracomosereescreve,digamos,ummanualdecurso.Aprendioutraliçãoaoreunirosartigosparameuprimeironúmero.Em

princípio, uma revista acadêmica deve sair periodicamente, em númerosbimestrais,comooAJSouaASR,outrimestrais,comoaSocialProblems.Sevocê perdesse o prazo, perderia a vez na fila da gráfica, as pessoasreclamariamque a revista estava atrasada e osmembros da organizaçãopatrocinadorairiamquerersaberoquehaviadeerrado.Melhorsairdentrodo prazo. Isso não significava que você publicaria coisas que não achavaboas,massimquepublicariacoisasqueestivessemboas,dequalquerlinhaquefossem:quantitativaouqualitativa,daescoladeChicagoouestrutural-funcionalista.Todososeditoresdeperiódicoscomquemconverseisempreconcordaram que, apesar dos preconceitos que secretamente esperavamimplementaraoassumirocargo,logodescobriramqueoprincipaleraterumaquantidadedeartigospassáveisquefossesuficienteparamontarumnúmeroelançá-lonoprazo.Éporissoqueosautoresquepensamqueseustrabalhos foram rejeitados ou devolvidos para ser “revistos ereapresentados” por uma questão de preconceito editorial quase sempreestãoerrados.É claro que pode haver uma grande dose de preconceito oculto na

definição de “artigo passável”. Mas aqui me parece convincente oargumento de Stinchcombe (1978), segundo o qual os analistassociológicos, quando estão fazendo um bom trabalho, estão todos elesfazendoamesmacoisa.Seotrabalhodelesmuitasvezesparecediferente,éporque tentam inflar sua importância usando “nomes imponentes”,derivadosde“teoriasfamosas”,paradescreveroquefazem.(Muitasáreasnas ciências humanas em geral, e não só na sociologia, incentivam essaprática.)Comoobomtrabalhoébasicamenteomesmo,qualquerquesejaseurótuloteórico,“bom”éumjuízoprofissionaleuniversal,comoosjuízosdemúsicos ou bailarinos, que geralmente reconhecem quando os outros

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estãotendoumbomdesempenho,mesmoqueojuiznãoseimportemuitocom o que estão fazendo. Os trabalhos que os cientistas sociais memostram pensando que foram rejeitados por preconceito quase sempreestãomal organizados emal redigidos. (Sei que esta é a voz do sistemafalando,enãoseicomoconvenceroscéticosdequetenhorazão,anãoserapontandoosconteúdosdosperiódicos,quesãosempremaisvariadosdoqueoscríticospensam.)Ospreconceitosqueexistemefetivamenteoperamcommaissutileza,comoquandooeditordecidequeumartigomalescritoemal organizadomereceumesforço especial, aopassoqueoutronão.Aliçãoparaaspessoasquefazemtrabalhosimpopularesnãoéquenãoserãopublicadas,esimquenãoesperemqueoseditoresfaçamatarefaquecabea elas. Isso não deveria acontecer com ninguém, mas alguns têm maischancedequeaconteçacomeles.Tiveumaexperiênciaeditorialdiferentequando fiqueiencarregadode

editarumacoleçãoparaaAldinePublishingCompanyem1962.AlexanderMorin,entãodiretordaempresaeelemesmosociólogo,achouquevaleriaa penamontar uma coleção que representasse a tradição de Chicago emsentidoamplo.Comissotivecontatocomoriginaiseautoresquesentiamaansiedade que costuma acompanhar o envolvimento com um livro.Tambémaprendiqueeranecessáriopensarnumaprevisãodevendagemdo livro, não porque Morin fosse um empresário empedernido, masporque, se o prejuízo fosse grande demais, simplesmente não haveriacoleçãonenhuma.Percebioquantooassuntoera importanteassimcomoteralgoadizer sobreele.Pessoasquenãose interessavampela fabulosacontribuiçãoque você estavadando à teoria socialmesmoassimpodiamler seu livro porque se interessavam pelos problemas da morte numambiente hospitalar ou pela maneira como as doenças mentais eramdefinidas por parentes, profissionais e tribunais. Acabamos publicandocercadequinzelivroseasérieteveumsucessorazoável,easlivrariasseretrataramporseuspalpiteserrados.Otrabalhocomoeditordelivrosmemostrouumadimensãomaisampla

da edição de texto. Descobri que conseguia enxergar uma lógica internalutandoparaseexpressarnotrabalhoalheiocomfacilidademaiordoqueenxergava em meu próprio trabalho, assim como podia enxergar asredundâncias,obeletrismoetodososoutrosdefeitosmaisfacilmentenostextos alheios do que nosmeus. Como eu queria criticar os originais deforma que os autores os corrigissem e não apenas ficassem furiosos (docontrário,nãohaverialivrosparapublicarnacoleção),tivedeaprenderaapontarclaramenteoquemeincomodava.Tambémprecisavalhesmostrar

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arealidadedapublicaçãocomercial.Explicavaaosautoresestreantesquehaviam levado o contrato a umadvogadoque, sim, o contrato realmentefavorecia a editora, mas que não se preocupassem, visto que poucaseditorasseaproveitavamdaquelascláusulas.(Agora,comumnúmerocadavezmaiordeeditorassetornandosubsidiáriasdegrandesconglomerados,talvezesseconselhonãosejatãoverdadeiroquantocostumavaser.)Minha experiência pessoal com preconceitos editoriais é mínima. A

única área em que sofri um pouco tinha a ver com uma mudançaimportante na prática dos editores de revistas de sociologia. Meusprimeirosartigos,extraídosdeminhadissertaçãodemestrado,eramsobremúsicosdejazz.Seguindoapráticadosmodelosquetinhautilizado(p.ex.,os artigos de Oswald Hall sobre as carreiras médicas e Sociedade deesquina,deFooteWhyte),fizlongascitaçõesdeminhasentrevistasenotasdecampo.Masosmúsicosnãotinhamumalinguagemtãoeducadaquantoadosmédicos(ouoqueHallapresentoucomosendoa linguagemdeles).Os músicos falavam muito “merda” e “foda-se” e, no interesse do rigorcientíficoecomumalevesensaçãodemolecagem,citei tudoliteralmente.Na tese ficou aceitável, mas os editores nos anos 1950 substituíamsistematicamenteessaspalavrasporreticências:“f…”e“m…”.(EssapráticaatingiuocúmulodatolicenumnúmerodaAJSdopós-guerradedicadoàsForçasArmadasamericanas,emqueamaiorpartedoartigo“TheSoldier’sLanguage”,deFredElkin,setransformouemreticências.)Nãolembroqualdemeusartigosfinalmentepôdetrazerospalavrõesporextenso;sópodeter sido quando foram publicados emOutsiders em 1963. Agora, claro, écomumqueapareçampalavrõesnaspublicaçõesdesociologia.Ao descrever meu seminário de redação no Capítulo 1, comentei que

haviaapresentadoàturmameusrituaispessoaisdeescrita,masnãofaleiquais eram. Depois que comecei a dar o curso, passei a escrever numcomputador, e assim não façomais o que descrevi naquela ocasião.Masaquiestáoqueeudisseàturmanaépoca;foiassimqueescreviamaioriade meus textos e não tenho uma boa visão de minha nova rotinacomputadorizadapara expô-la com clareza. (O que posso dizer sobre elaestá no Capítulo 9.) O procedimento inteiro segue os ritmos do anoacadêmico.Soupreguiçoso,nãogostodetrabalharereduzootempoquededicoao

trabalho. Assim, embora tenha escritomuito, passei relativamente poucotempo à máquina de escrever. Eu começava aquilo que depois seconverteriaemartigoexpondootemasobreoqualestavaparaescreveraqualquerumquesedispusesseaouvir.Quandocomeceiadaraulas, isso

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significava que eu expunha a meus alunos. (Art Worlds começou comotranscriçãodasaulasgravadasquedeinaprimeiravezemqueministreiocursodesociologiadaarte,oitoounoveanosantesdeterminarolivro.)Serecebia convites para dar uma palestra em algum lugar, eu tentavaconvencer as pessoas de que seria do interesse delas ouvir sobre meu“novotemadepesquisa”,istoé,oartigoqueestavacomeçandoaelaborar.Essas palestras, em certa medida, funcionavam como um primeirorascunho. Eu via quais eram os pontos que podia encadear logicamente,quais eram as maneiras de apresentar uma questão que as pessoasentendessem, quais as que causariam confusão, quais argumentos nãolevavamanadaenemdeveriamserapresentados.Quandocomeceiausarafalacomomaneiradedarinícioaalgumacoisa,

aindanão tinha lidoDavidAntin explicandopor que ele escreve falando,masreconhecimeussentimentosemsuadescrição:

poisnuncagosteidaideiademefecharnumquartinhoparafalarcomigomesmonumamáquinadeescreverquetipodefalaéessa?pegueiohábitodeiraalgumlugarcomalgumacoisanacabeçamasnenhumapalavraemespecialnapontadalínguaprocurandoumachanceparafalarcomcertaspessoasdeumjeitoquesejabom,espero,paratodosnós

(Antin,1976,p.i)

Depois de falar sobre alguma coisa durante algum tempo (geralmenteváriosmeses,oumais),euficavainquieto.Rarasvezesidentificavaacausadesta sensação. Normalmente não surgia no ano letivo, nem mesmodurante boa parte das férias de verão. Durantemuitos anos, passamos overão e qualquer outro recesso escolar em São Francisco, voltando aChicagono começodo trimestre do outono.Umas três semanas antes deirmos embora, de repente eu sentava, sem nenhum sinal prévio que eupudessenotar,aforaessavagainquietude,ecomeçavaadatilografarodiatodoemetadedanoite.Datilografavaemespaçoduplo e empapelofícioamarelopautado.Destacavacuidadosamentecadafolhadobloco.Seeunãodestacassecertinhonalinhaperfurada,nãousavaafolha.Nãoreescrevia–não naquela época, ao menos –; apenas continuava datilografando. Sesentiaalgumadificuldadeemapresentaralgumacoisaounãosabiacomoterminar um argumento, eu fazia colchetes usando as teclas de barra esublinhado(adoroacapacidadedocomputadordefazerdiversostiposdecolchetes)epunhaalgocomo“Nãochegoalugarnenhumcomissoagora”.Entãopassavaparaoutroponto.Calculavaváriasvezesminhaproduçãoeanunciavaaqualquerouvinte

poraliquetinhafeitoseispáginasou,contandoaslinhaseestimandouma

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médiadepalavrasporlinha,2.500palavras.Procuravanãoeliminarnada,masnãoera rígidoa respeitodisso. Seviaumamaneiramelhordedizeralguma coisa, substituía a formulação anterior por algomelhor. Tambéminseria novas passagens onde julgasse necessário, com muito capricho,fossecortandoecolandooumarcandonotextodapágina7ondeentrariaomaterial inserido em minha nova página 7A. (Ficava muito contentequandoassecretáriaselogiavamocaprichodemeusmanuscritos.)Emtrêssemanas, escrevia o rascunho de três artigos, com dez a quinze páginascada.Então eu voltava da Califórnia com esses rascunhos e passava o ano

letivotrabalhandoneles.Muitasvezes,deixava-osdeladoporváriosmesese raramente pensava neles quando a rotina da docência – comparecer areuniões,conversarcomalunosecolegas–ocupavameucotidiano.Issomeajudavaarefazerosartigosporque,naquelemeio-tempo,euesqueciaporquealgumpontoespecíficooualgumtipodeexpressãoeratãonecessárioeficavamais fácilmudar.Àsvezesdemoravaatéos feriadosdoNatalparapegar alguma dessas pastas e começar a reescrever. Sempre iniciavaajeitando as frases: cortando as palavras a mais, esclarecendo asambiguidades,ampliandoasideiastelegráficas.Comofaleiàminhaturma,issosempretraziaàtonaasdificuldadesteóricasqueeuencobrira,eassimlogoprecisavareavaliartodaaminhaanálise.Quandopodia,escreviaumanova versão para as partes que não funcionavam. Se não conseguia, nãofazia.Emambososcasos,costumavapôrdeladooartigomaisumavez,pormeses,àsvezesporanos.Apartirdaqui, adescrição tambémse aplica ameusnovoshábitosno

computador e vou usar os verbos no presente. Por fim, faço mais umrascunho. Consigo fazer esse tipo de trabalho a qualquer momento egeralmentelevoapenasalgumashoraspordia,durantetrêsouquatrodias.Depoisdeumsegundoouterceirorascunho,tenhoalgumacoisaquepossoenviar a alguns amigos capazes de contribuir, seja com reflexõesproveitosas ou com críticas impiedosas. Prefiro ouvir essas críticas demeusamigos,naesferaprivada,doquelê-laspublicamentenuma“CartaaoEditor”.Algunsartigosnunca ficamprontos,masdetestodesperdiçarqualquer

coisaqueescrevoenuncapercoasesperanças,nemmesmoemtextosdeque ninguém gostou. Tenho algumas coisas emmeus arquivos faz vinteanos (na verdade, estou cozinhando um artigo aindamais velho sobre oAbbeyTheatre,queescreviparaocursodeEverettHughessobrerelaçõesétnicasem1948).

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Quandoreceboascríticasecomentários,sejadeamigosoudeeditoresrejeitandoumartigo,suponhoque,nahoradeexpormeusargumentos,mefaltouaclarezasuficientequepreveniriaasobjeçõesfeitaseentãoexaminooqueposso fazer para atender às objeções semmudarminhaposição, amenosqueacríticameconvençadequeelaexigemudanças.Essarevisãoereavaliação prosseguem até a hora em que não consigo pensar emmaisnadaafazerouatéqueapareçaalgumespaçoqueaceiteoartigo(istoé,meconvidemparaprepararalgumacoisaparaalgumaocasiãooupublicação,eaquiloemqueestoutrabalhandoatendaàsespecificações).Àsvezespensoquetermineiumtextoeaídescubroquenão.Comoseidisso?Quandovejoalgumacoisaquepode sermelhoradaepercebo como fazer isso, seiquetereiderepassaromanuscritomaisumavez. (DuasvezespenseiqueArtWorldsestavapronto,antesdeestar.)Conformeminhaexperiênciafoiaumentandoefuificandomaisseguro,

comecei a me colocar problemas de redação. Insatisfeito com as frasescompridas e complicadas que escrevia, comecei a experimentar frasescurtas.Comquantaspalavras?Pouquíssimas.Tambémcomeceiaprocuraralternativasparaaterceirapessoa(pomposademais)eaprimeirapessoa(em excesso é cansativa e muitas vezes inadequada). Isso levou a umfestivaldesegundaspessoas,soprandoaoleitor:“Vocêpodevercomoissolevaa…”Talrotinapressupõequeoescritor,paraterminarseusescritos,podese

permitir esperar tanto tempo quanto eu. Quando você tem prazo paraescrever o texto – se, digamos, você concordou em contribuir com umcapítuloparaumlivroeadatadeentregaestáseaproximando,ousevocêconcordou em apresentar uma comunicação na conferência anual daAssociação Americana de Sociologia –, não conta com esse luxo. Nem seprecisar de publicações para convencer seus colegas ou algumadministradordequemereceumapromoção.Umamaneiradecontornareste último problema é fazer algo a que a necessidade me obrigou nocomeçodeminhavidaprofissional.Comopormuitosanos trabalheimaiscomopesquisadordoquecomodocente, sempre tinhadecomeçarnovosprojetosantesdeterminarosantigos.Assim,euestavasempretrabalhandoemváriasfasesaomesmotempo:esboçandoumprimeirorascunhodealgonovo, reescrevendoos rascunhos iniciaisdeumprojetoanterior, fazendoas revisões finais de algo pronto para publicação. É mais fácil do queparece. Na verdade, facilita todas as etapas do processo, pois, se vocêempacaemalgumatarefa,podepassarparaoutra, sempre fazendooquesaimaisfácil.

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Quando comecei a fotografar em 1970, as práticas fotográficas queaprendi na época me deram mais ideias sobre a escrita. Aprendi, comotodos os estudantes de fotografia, que a coisa mais importante que umfotógrafopodefazeréfotografar,equetirarmilharesdefotosruinsnãoénenhuma desgraça, desde que você também tire algumas boas e consigadistinguir entre as boas e as ruins. Os estudantes aprendem a “ler” umafolhadecontato,quesefazimprimindoumrolodefilmenumafolhasó,demodo que cada imagem é reproduzida no tamanho do fotograma. É amaneiraidealdeaprenderqueaúnicacoisaqueimportaéoprodutofinaleque ninguém vai criticá-lo pelos tropeços e equívocos iniciais, se vocêencontraralgobomnasequência.Aprendianãopouparfilme,papelemeutempo.Issopassouparaminhaescrita.Fiqueimaisdispostodoquenuncaaescrever qualquer coisa que me passasse pela cabeça, sabendo, poranalogia com a fotografia, que sempre poderia eliminar o que não meagradasseounãopudesseusar.A certa altura dos anos 1970, comecei a alimentar pretensões e

ambiçõesliterárias.Creioqueissocomeçouquandoumamigoqueeraum“escritor de verdade” (isto é, de literatura) fez gentis comentários sobrealgunsrascunhosdeumensaioqueeuestavaescrevendosobreosmundosdaarte.Comeceiapensarsenãopoderiamelhorararedaçãoemsentidomaisamplo,nãoapenasaclareza.Primeiropasseiaexperimentarumtipodeorganizaçãodaqualnemtinhameapercebidoantes.Comeceiaplantarnasseçõesiniciaisassementesdasideiasqueexplorariamaisàfrenteeaapresentar exemplos que usaria mais tarde para relembrar um aspectocomplexo aos leitores. Citei o caso de Anthony Trollope (em suaautobiografia), contando que um velho criado lhe trazia café antes decomeçar a escrever e que esse criado merecia tanto crédito quanto elepróprio pelos livros resultantes. Usei esse exemplo como sinal de que oartistadependedoauxíliodeoutrosparafazerseutrabalho,emaisadianteapenasciteiTrollopeeseucriado,esperandoqueosleitoresrelembrassemoaspectoteórico.Talvezemdecorrênciademinhapráticadeensino,vimameconvencer

cada vez mais da importância de casos – de bons exemplos – paraapresentarasideias.Eucostumavaficarirritadoquandoosestudantesmediziam que o que lembravam de meu curso de sociologia da arte era ahistória de Simon Rodia e as Watts Towers, que contei em inúmerosdetalheseilustreicomslides.Euqueriaqueeleslembrassemasteoriasqueeuestavadesenvolvendocomtantacalmaeempenho.Maistarde,concluíqueoscasosehistóriaserammaisimportantesdoqueasteorias.Emcerto

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sentido,eujádeviasaberdisso,poissemprecomeçavameusrelatóriosdepesquisa de campo escolhendo entre minhas anotações alguns casos eepisódios representativos, dispondo-os em alguma ordem e depoisescrevendoalgumcomentáriosobreeles.

Art Worlds também me apresentou aos problemas e vantagens dasilustrações.Eraevidentequeumlivrosobreartedeviaserilustrado.Minhaprimeiraexperiênciacomessapossibilidadeteveumpoucodetravessura.O American Journal of Sociology, depois de muitas revisões, aceitara umartigo meu chamado “Artes e Ofícios”, que mostrava como algunselementosdosofícios artesanais tinhamsido incorporadospelosmundosda arte. Ao longo do artigo, eu descrevia várias obras de arte queilustravam os argumentos de minha análise. Quando o artigo foi aceito,ligueiparaaeditora responsável eperguntei seelanãoachavaque seriaconvenienteteralgumasilustrações.OAJSquasenuncapublicavaimagens,anãoser retratosdosmembros falecidosdoDepartamentodeSociologiadaUniversidadedeChicago,ecreioqueimagineiqueelaseriacontráriae,aí,eupoderiamesentirdiscriminado.Naturalmente,elarespondeuqueiriaconsultaroeditoreográfico,masachavaqueelesconcordariam,comodefatoaconteceu.Agoraeutinhamaistrabalhoafazer,precisandoencontrarimagens que realmente ilustrassem o que eu queria dizer e cujasreproduçõesnãosaíssemcarasdemais.OtextomencionavaumaesculturacerâmicadeRobertArneson,umbuledechácujobicoeraumpênis,eumafotografiadeumamulhernuafeitaporEdwardWeston.Penseiquetalvezsurgisse algumproblemapor causa delas (a foto deWestonmostrava ospelosdopúbis,oqueapenasaPlayboytinhafeitoemépocarecente),mas,maisumavez,euestavaerradoemmeuspreconceitos.Quandomontei o livro, sabia que teria ilustrações. Grant Barnes,meu

editornaUniversityofCaliforniaPress,medeuumconselhoexcelente.Elefalou: “Não ponha legendas de mera identificação das imagens. Escrevapelo menos uma frase dizendo o que o leitor deve enxergar na figura.”Como segui o conselho, o leitor pode captar a essência do livrosimplesmenteolhandoasfiguraselendoaslegendas.Tudoissoaumentoumeuinteressepelosaspectosvisuaisdaredaçãoeelaboraçãodeumlivro.Espero que a capacidade de meu novo computador em criar imagens ecaracteresespeciaistambémajudenisso.Repetindoamoraldahistória, equeéaúnicaboa razãoparaeu falar

tantodemimmesmo:vocêaprendeaescreverbaseando-senomundoaoseu redor, tanto pelo que ele lhe impõe quanto pelo que lhe oferece. Asinstituições onde trabalham os acadêmicos empurram-nos para

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determinadasdireções,mas tambémabrem inúmeraspossibilidades.Éaíquevocêfazdiferença.Deminhaparte,tenhosidorelativamenteabertoàspossibilidades, talvezmais do que amaioria, e resisto às pressões (aqui,também,talvezmaisdoqueamaioria).Omundorealmentepressionaeàsvezes resistir dói. Mas meu caso, penso eu, apesar de todas as suaspeculiaridades pessoais e históricas, mostra que o contrário é maisverdadeirodoqueaspessoascostumampensar.

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6. RiscosPORPAMELARICHARDS

Amaiorpartedestecapítulo foiescritoporPamelaRichards,sociólogaquelecionanaUniversidadedaFlórida,maselerequerumabreve introduçãoeexplicação. Eu tinha gostado muito dos resultados do pedido que fiz aRosannaHertz,quemeescrevessesobreoqueelaquisdizerquandofalouquealgumas maneiras de escrever tinham “classe”. Assim, fiquei à espreita deuma oportunidade para ver o quemais eu podia descobrir persuadindo aspessoas a me escreverem o que queriam dizer com suas observaçõesespontâneas.Nãopreciseiesperarmuito.

Eu conhecia Pamela Richards desde que ela começou seu trabalho dedoutoradonaNorthwestern.Depoisdeconcluirapósecomeçarsuacarreiradocente na Flórida, ela continuou a estudar criminologia com técnicasestatísticas, seguindo o estilo de sua tese de doutorado. Depois de algunsanos, ela resolveu tentar alguma coisa diferente e usar sua considerávelprática em trabalho de campo para fazer um estudo da penitenciáriaestadualfemininasituadapertodeGainesville,naFlórida.Elaachavaqueoestudoiasermaisdifícildoqueacabousendo.Osencarregadosdaprisãolhederam permissão de entrada sem problemas, e as presidiárias, de iníciodesconfiadas,logopassaramafalarcomelasemreservaselhederamacessoàmaioriadasatividadesdapenitenciária.

Depoisdeumano,Pamelahaviareunidoumaquantidadeconsideráveldenotasdecampoesabiamuitosobreavidanaquelaprisão.Achouquedeviacomeçararedigirosresultados. Játínhamosnoscorrespondidoantessobreseus problemas no trabalho de campo, e assim ela me confidenciou queestavatendodificuldadesparacomeçaraescrever.Vistoquetinhasesaídobem ao escrever sua pesquisa anterior, ela pensou que podia ser algumacoisanosmateriaisqualitativosqueexigiaumaabordagemdiferente, emeconsultouarespeito.

Ofereciminhareceitapadrão,mencionadaanteriormente, sugerindoqueela sentasse e escrevessequalquer coisaque lhe viesseà cabeça, como seoestudo estivesse terminado,mas semconsultar suasnotasde camponemabibliografia sobre prisões nemnada. Falei que digitasse omais rápido que

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conseguisse. Quando empacasse, recomendei que digitasse “Empaquei” epassasseparaoutrotópico.Entãoleriaosresultadoseveriaoquelhepareciaser verdade. Dessa maneira, descobriria como analisar seus materiais decampo, pois teria de checá-los para ver se o que pensava ser verdade eramesmoverdadee,senãofosse,oqueentãoeraverdade.Detodomodo,disseeu,elaredigiriadepressaummontedecoisasemrascunho,eissojáeraumcomeço.

Tenho dado esse conselho a muita gente ao longo dos anos. Não sãomuitos os que o seguem.Não discutem comigo, apenas não fazem. Sempreacheidifícil entender isso,masos resultadosdemeuconselhoaPamelameajudaram a ver por que eram tão teimosos. Pamela não era teimosa,mas,comoerareflexivaetinhaboacapacidadedeexpressão,podiadeixarclarooqueoutrostinhamachadoproblemático.

Durante algum tempo, não tive mais notícias de Pamela. Então elaescreveuparadizerqueseguirameuconselhoeestavaenviandoascinquentapáginas resultantes, que redigira em dez dias. Aquilo me animou, claro. Émuitosatisfatóriovernossosconselhosdaremresultado.Masacartaqueveiojuntolevantavaumaquestãoquesedemonstrou importante, eparaaqual,depois de algumas espicaçadas, ela deu uma resposta maravilhosamentedetalhada.

Pamelaescreveuquealugaraumacabananamataparamorarenquantotentavaescrevero rascunho. “Embora soubesseque seriaumaoperaçãodealtíssimorisco”,disseela,“deciditentarmesmoassim.”Nãoentendioqueelaqueria dizer. Tinha uma carreira sólida, com publicações em periódicosrespeitados e coautoria de um livro. Apresentava artigos em congressos,acabaradeserpromovidaereceberaestabilidade.Emoutraspalavras,tinhapassado pelas provasmais assustadoras que afligemos jovens acadêmicos.Ondeestavaorisco?

Aliestavaminhachancedeusaro“métododepesquisa”quederatãocertocomRosannaHertz.EscreviaPamela,pedindoqueexplicasseoquehaviadetão arriscado em se sentar a umamáquina de escrever durante dez dias edatilografar qualquer coisa que lhe viesse à cabeça. Comentei que, na piordas hipóteses, ela teria desperdiçado seu tempo, mas que isso não era umpreço muito alto para alguém que, de outra maneira, talvez nem tivesseescritocoisanenhuma.

Maisumavez,fiqueialgumtemposemnotíciasdela.Entãorecebiacartaabaixo, explicando com franqueza e honestidade o que estava por trásdaquele comentário casual. Minha intenção original era usar o que elaescreveucomomatéria-primaparaumaanálisedosproblemasdorisco.Mas,

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quandoreliacarta,ficouclaroqueeunãoteriaquasenadaaacrescentaràsua história e à sua análise. Então perguntei a ela se aceitaria escrever ogrosso desse capítulo, ao qual eu juntaria apenas uma introdução e o quemais fosse necessário para dar o engate com o restante do livro. Elaconcordou. Não é uma maneira muito ortodoxa de fazer as coisas, maspareceamelhormaneira,eamaishonesta,deconseguirquesedigaoqueprecisa ser dito.O que se segue é a cartadePamela respondendoàminhapergunta.

CaroHowie:Acabeidetomarduasxícarasdecaféenquantopensavasobreaquestãodorisco.Devocomeçarminhasreflexõescomtrêssonhosquetivenasemanapassada.Doissãosobreorisco(entremuitasoutrascoisas,tenhocerteza)eumésobreenfrentarorisco.Naverdade,sódoissãosonhos,oterceiroéoutrotipodeocorrêncianoturnapelaqualpasseilogoantesderecebersuacarta.Emmeuprimeirosonho,eu tinhaenviadoacópiadorascunhode três

capítulos para uma amiga que conheço desde a pós-graduação. Era omesmorascunhoqueenvieiavocê.(Narealidade,aindanãoenvieinadaaela.)NósduasnosencontramosnaconvençãodaAssociaçãoAmericanadeSociologiaemSãoFrancisco,eelatrouxeumapilhaenormedecomentáriospor escrito. Estava brava comigo, e os comentários eram muito duros.Seguiampáginaapóspágina:“Estaéacoisamaisabsolutamenteestúpidaquevocêjáescreveunavida…Comovocêécapazdedizeressascoisas?…Vocênãoenxergaanaturezapoliticamentecontestáveldoquedisseaqui…Qualéseuproblema,nãotemabsolutamentenenhumsensodascoisas?…Tudo issoaquiéporcaria…”Enquantoeu liaomontedecomentários,elaficousentadaali,simplesmentemeolhandofuriosa,ea impressãoqueeutinha era que ela queria me agarrar pelos ombros e me sacudir até medesmontar. Naturalmente comecei a chorar – em silêncio, as lágrimasescorrendopelorosto.Euqueriagemer,choraremvozalta,saircorrendo,mas,comoestávamosnaconvençãocomtodosaquelescolegasali,eutinhademostrar a melhor cara possível. Estavame sentindo péssima. Traída,talvez, mas principalmente como se tivesse decepcionado minha amiga.Sentiaquenãotinhamemostradoàalturadoqueelaesperavademim,equeessetrabalhopreliminartinhadecertaformademonstradoqueeuerauma merda – em termos intelectuais, pessoais, políticos e morais. Fizesforçoparamelevantardamesaondeestavalendooscomentários.Elase

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reclinounacadeiraemeolhou.Seurostomostravafriezaearaivatinhasetransformado em nojo. Aí fui abrindo caminho entre uma multidão desociólogos na convenção (eu não conhecia nenhum), tentando sair.Continuavaesbarrandoneles,pedindodesculpas,masninguémnemreagiamuito. Na verdade, nem tinhamme olhado quando avancei para omeiodeles.Entãoacordei.Agoraparaequilibrarumpouco.Tiveumsegundosonhonaquelanoite,

acho que logo depois desse primeiro. (Eu andava lendo Uma mulherinacabadaePentimento deLillianHellman.Lendo, relendo, trelendo.Nãoseiporquê.)Nosegundosonho,euestavasentada,compondocoisasparaolivro sobre a penitenciária feminina. Não sei bem qual capítulo ou qualtópico,masaspalavrasfluíamqueeraumabeleza.Nãoestavaescrevendo;estavafalandoemvozaltaeelassimplesmentesaíamdaboca.Estavatudoperfeito,oestiloeramaravilhoso,eeucientedeque tudosoavacomoseLillian Hellman estivesse escrevendo aquilo – era exatamente o mesmoestilo, o mesmo ritmo das frases, o mesmo sentimento e expressão. Eramaravilhoso.Eumesentiamuitopoderosaecomtotalcontrolesobreoqueestavafazendo.Sabiaqueerabom,sabiaqueeraeleganteeatécomeceiagesticularenquantofalava,comosefosseumainterpretaçãooral.Quandoacordei, recobrei a consciência como que flutuando devagar, de modomuitoagradável,muitosatisfeitacomigomesmaecomoquetinhafeito.Mas aí, duas noites atrás, acordei de repente de um sono profundo

(destavezsemsonhos)comumaconvicçãototalmenteclaraecristalina.Eusabia,comtotaleabsolutacerteza,queeueraumafraude.Acertezanãoseformoudenenhumargumentoexplícito;nãosedesenvolveudenadaqueeureconhecesse;estavaali,puraesimplesmente.Entãocomeceiareviraraquilonacabeça,tentandoveroquepodiaestarportrás,eacoisacomeçoua tomar uma formamelhor: “Sou uma fraude porque não trabalho comotodososoutros fazem.Não leioosclássicosnahoradedeitar;droga,nãoleionada,anãoser romancessobrenaturaisecoisasquenão têmnadaavercommeu‘trabalho’.Nãosentonabibliotecatomandonotas;nãoleioosperiódicos de cabo a rabo; e, o que é pior, nem quero. Não sou umaacadêmica. Não sou uma socióloga, pois não sei nada de sociologia. Nãotenhoparamimo compromissodeme imergirnas ideiasepensamentosdos Grandes Mestres. Não conseguiria ter nenhuma conversa coerentesobre A Bibliografia de qualquer assunto, nem daqueles em quesupostamentesouespecialista.Atépior,tenhoatemeridadedealegarqueestoufazendoumestudodaspenitenciáriasfemininas,quandonaverdadenemfizdireito.Nãoconheçotudooquedeviaconhecerenãoconsigome

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obrigarafazerdojeitoquedeveriaserfeito.Epiorainda,seiquevouterdevoltar logo e fazer mais uma coleta de dados, preenchendo as lacunas,ampliandoascoisas,edestavezvouterdefazerdireito.Enãoquero.Estoucansadademais.”Nãomuitobomemplenanoite, né?MeuDeus, foiuma tortura. Fiquei

dando voltas emais voltas nesse tipo de coisa, ora brava, ora assustada.Simplesmente não conseguia me livrar da certeza de que eu era umafraude.Principalrazão?Não“façosociologia”comotodososmeuscolegasparecem fazer e como se supõeque sedeva fazer. (E estounumperíodoestérilparaescrever–quaseduassemanas–,oquelogotrazacertezadequesouumaparasitapreguiçosaquenãofaznada,absolutamentenada.)Ofatodeeusaberqueninguémtrabalhadojeitoquedizquetrabalhaequeninguémtraçaalinhametodológicaperfeitanãomeajudamuito,poisnãoconsigo converter essa consciência numa percepção visceral. Me sintovulnerável.Outrospodemmepegarseeumostrarquenãopassodeumacaricaturadesocióloga,mesmoqueelessejamigualmentecaricaturais.Eoquetudoissotemavercomorisco?Paramim,sentarparaescrever

éarriscadoporquesignificaquetenhodemeexporaoescrutínio.Issoexigequeeuconfieemmimmesma,e tambémsignificaqueprecisoconfiaremmeus colegas. O mais problemático, de longe, é esse segundo aspecto,porque são as reações dos colegas que me permitem confiar em mimmesma.Porissosonhocomminhainsegurançaecomoataquepessoaldeumadasamigasemquemmaisconfioedequemsoumaispróxima.MeuDeus, é difícil confiar nos colegas. Não é apenas uma questão de

riremdagente.Qualquer trabalhopodeserusadocomoprovado tipodesociólogo (e de pessoa) que a gente é. Os colegas leem nosso trabalho edizem:“Droga,nãoégrandecoisa.Eufariamelhor.Afinalelanãoétãoboaassim.” (E, por extensão, eles concluem que nossa atuação pública comosociólogoséumaenganação.)Nossaáreaémontadadeumamaneira tãocompetitivaqueagentealivianossas insegurançasdenegrindoosoutros,muitasvezesempúblico.Hásempreummedo(paraosquesãocientistassociaisnovosedesconhecidos)assoprandoqueaténossoscolegaspodemfazer comentários informais a nosso respeito que vão se tornar parte denossa imagemprofissional. Se forem comentários críticos ounegativos, acoisa fica perigosa. Por isso é muito arriscado mostrar o rascunho dequalquer coisa aos colegas. Poucos entendem o que é um rascunho detrabalho.Supõemquefaltasóumpassoparaqueumrascunhosejaenviadoparapublicação.Assim,sevocêaparececomumaprimeiraversão,ficacommedodoquepodeacontecer.Podemacharqueéumtrabalhovagabundo,

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malconstruído,muitomalfeitomesmo. E o que eles concluem? Que vocênão temmuito de socióloga, se põe essa porcaria para circular. E se elescontaremissoaoutraspessoas?Mas digamos que você consiga convencê-los de que um rascunho é

apenasumrascunho,quesaiunumaespéciedefluxodeconsciência,queésópara teras ideiasali.Aindacontinuaaserumrisco tremendo,porquequemlêpodenãoesperarumalinguagemmaravilhosaoufraseselegantes,masvaiesperarideiasmagníficas.Decertaforma,éaindamaisassustador.O que está em jogo são as ideias, não a habilidade em escrever. Quantasvezesagentenãoouvedizerem:“Bom,talveznãoescrevamuitobem,mas,puxavida,elaégenial!”Tudobemescrevercomocalouradefaculdadesevocê forgenial. Sevocêpedepara leremumrascunhode trabalho,oquevocê está pedindo é que julguem sua capacidade de pensarsociologicamente.Estápedindoqueavaliemsevocêéinteligenteounãoese é socióloga de verdade ou não. Se não há nenhuma grande centelha,nenhumaideiamuito interessante,oqueo leitorvaiconcluir?Quevocêéburra.Eseelecontarparaoutrapessoa,vocêestácondenada.Daíomedodedeixarquealguémvejaumrascunho.Nãoconsigoencararahipótesedemeacharemburra.Amaioriadessesaspectostambémseaplicaadeixaroutrossociólogos,

nãoseusiguais,veremseutrabalho,mascomalgumasdiferenças.Hávezesemquemostrarseutrabalhoacolegasmaisgraduadospareceaindamaisperigosodoquemostraraseusiguais.Digamosquevocêéapenasauxiliarde ensino, sem estabilidade. Qual é a consequência prática de ficarconhecidacomodesleixada(cenário1,acima)outapada(cenário2)?Eseosdocentesplenoschegaremaessaconclusãosobrevocêeseutrabalho?Nãovaiterbolsa,nãovaiterpropostadeemprego,nãovaiterpromoção.Éarriscado.Orenomeprofissionalestáligadoàposiçãoprofissionale,entrenós,sãopoucososquepodemdizer:“Poucomeimportaoquevocêpensa.”Para vencer esses medos, para enfrentar o risco de ser considerada

desleixada ou burra, você tem de confiar em seus colegas. Mas a área éorganizada de uma maneira que corrói incessantemente essa confiança.Seus colegas estão concorrendo psicologicamente com você (ah, a coisaperversaquefazeumesentirmelhorquandooutrapessoaestánalama)etambémestruturalmente.Estabilidade,bolsas,vantagensestãosetornandocada vez mais parte de um jogo de soma zero, conforme o mundoacadêmicovemsofrendooatualarrochoeconômico.Então,édifícilconfiaremseuscolegas,sobretudoosmaispróximos:os

de seudepartamento oude sua área de especialização. Tambémémuito

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fáciltermedodoscolegasmaisgraduados,porquevocêsentequeestãotejulgandootempointeiro.Eéoquedevemmesmofazer,poissãoelesquesentemaobrigaçãode terde separaro joiodo trigonessanova safradeacadêmicos.Conversamentreelessobrenossotrabalhoecomentamoquepensamsobrenossopotencial.Então,comovocêvaipoderconfiarquenãosairãoporaícontandohistóriasquandoconcluíremqueseutrabalhonãoémuitobom?Esseproblemadaconfiançaécríticoporquedesgastaotipodeliberdade

emocionaleintelectualdequetodosnósprecisamosparaconseguircriar.Em quem você pode confiar? Imagino que existam alguns indivíduos tãoconfiantesquenãosepreocupamcomoquepensamoscolegas,massãouma raça especial, um tipo muito raro. Simplesmente vão em frente,distribuindo manuscritos a torto e a direito, entupindo as caixas decorrespondênciadaspessoascompáginasemaispáginasdeideiasúteiseinteressantes.Comoconseguem?Alguns têmo tipodepersonalidadequelhesdáessahabilidade;outros(amaioria)têmaliberdadeestruturalquelhesdámaispoderdedizer:“Nãodouamínimaparaoqueossociólogos‘devem’fazer,estoufazendooqueeuquero.”Percebiumpoucodissoemmim(masbempouquinho),agoraquesouprofessoraefetiva.Nãoqueeutenhapassadonecessariamenteaconfiarmaisemalguém,équeagoranãoprecisomaismepreocupartantocomoimpactodeseusjuízosnegativos.Mas confiar… Em quem você pode confiar? Quando penso em quem

confioparalermeutrabalho,perceboquesãopessoasquejásabematéqueponto pode irminha burrice: colegas de pós-graduação, professores quemederamaulas de sociologia durante a pós-graduação, algumas pessoasdaquelaépocaque,alémdecolegas,tambémsetornaramamigas.Quemmeconheceunapóssabedetudoisso,eseiquecomessaspessoasocaminhoéumsó: subindo.Viramminhasprimeiras tentativasdepensareescrever,me deram apoio o tempo todo e acreditaram que havia algo por trás detodaaconfusão.Entãoconfionelas.E,nãoporacaso,elasconfiamemmim.Trocamosnossascoisasporcausadaquelesprimeiroslaços.Afinal,nãohánadaquesecompareaosofrimentodaquelasprimeiras tentativasdesairparaomundo,derabiscaralgumasnotaseentãovoltarparacasaetentarfazer alguma coisa com aquilo. E não há nada que se compare aoentusiasmodeteralguémque lhedigaqueaquelasminúsculas tentativasprestavam.Oscolegasdaquelaépocaquesetornaramamigossãopoucos,maspreciosos.Confiamosunsnosoutrosporque lutamosparavencer asbarreiras estruturais que no começo nos dividiam. Como todas asamizades, elas resultam daquela espécie de dança em passos miúdos e

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cautelosos, que ora nos aproximam, ora nos afastam, várias vezes, cadaaproximação criandoumpoucomaisde confiançae interesse.Não tenhonenhumareceitadecriaramizadesdeconfiança,emborabemquisesseter.Comigo, é uma coisa muito idiossincrática, embora às vezes resulte detrabalharmosjuntosemalgumprojetodepesquisa.Então, são essas as pessoas em quem confio para mostrar meus

rascunhos. O risco profissional é menor por causa de nossa história emcomum. Suas reações são importantes, absolutamente fundamentais paraeu poder continuar a trabalhar em meus rascunhos. Suas reações meconvencemaconfiaremmimmesma,pois,paramim,hámaisoutrogranderiscopresentenaescrita.Éoriscodedescobrirquesou incapazde fazersociologiae,porextensão,quenãosousociólogae,portanto,nãosouquemdigo ser.O riscode serdescoberta e julgadapelos colegas está ligado aorisco de ser descoberta e julgada por mim mesma. Os dois estão tãointimamenteentrelaçadosquemuitasvezesédifícilsepará-los.Comovocêpodesaberqueestá indobem,queémesmoumasocióloga,amenosquealguémlhediga?Éareaçãodosoutrosquemepermiteentenderquemeusou.Tais são as voltas do risco: confio em mim (e, portanto, posso me

arriscar a pôr no papelminhas ideias – as coisas que criei) emprimeirolugarporqueoutraspessoasemquemconfiomedisseramqueeupresto.Masninguémvaipodermedizerissoenquantoeunãofizermesmoalgumacoisa, enquanto não escrevermesmo alguma coisa. Então aqui estou eu,olhando uma folha em branco, encarando o risco de descobrir que nãoconsigofazeroquemedispusafazer,eportantonãosouapessoaquefinjoser. Ainda não escrevi nada, e então ninguém podeme ajudar a afirmarmeucompromissoereforçarmeusentidodequemsoueu.Precisodizermaisumacoisasobreessaconfiançaqueagenteadquire

como retorno que os amigos de confiança nos dão. Você precisa confiarqueessaspessoasnão sóvão te tratarbem (não serão competitivas, nãosairão comentando por aí quando você fizer alguma trapalhada), mastambém tedirãoa verdade.Preciso terabsoluta certeza de que, se estouescrevendobobagensoutendoideiasidiotas,elasvãodizer.Senãopuderconfiarquemedirãoaverdade,oretornodelasnãomeajudaráaconfiaremmimmesma.Eusempremeperguntoseminhasideiassãoboasmesmoouseaspessoasestãoapenassendogentis.Asensaçãodequealguémestátentandomeanimarémaisprejudicialparaminhanoçãodeidentidadedoque uma crítica direta. Claro, todos nós dizemosmentirinhas inofensivasuns aos outros. Mas precisa haver uma honestidade de fundo, ou do

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contráriovouficarrealmenteatordoada.Precisamosacreditarquenãohápecadonenhumemerrarouemcriticar,docontráriooretornonãoadiantanada.Como tento lidar com todos esses riscos e continuar em frente? Para

começar a escrever, às vezes preciso olhar para trás. Digo para mimmesma: “Bom, posso nunca ter escrito nada sobre prisões antes, masescrevi sobre delinquentes juvenis, e ao que parece as pessoas acharamaceitável.” Pelomenosme reconforta um pouco. Ou olho em frente: ligopara os amigos de confiança e falo demeu trabalho. Falo, falo, falo, elesmurmuram os sons devidamente reconfortantes e então me sinto umpouco mais forte. Às vezes me sinto forte o suficiente para começar aescrever. Tem uma coisa que acho quemuita gente pensa: falar sobre otrabalhoémenosarriscadodoqueescreversobreele.Emparteéporqueninguémse lembradas ideiasquevocêcomenta.Masé tambémcomosetivéssemos um acordo informal de não nos considerarmos responsáveispor nada do que falamos. Então sinto segurança em soltar algunscomentários, ganhar reforço, me sentir melhor comigo mesma e talvezenfrentar aquele primeiro risco. Mas aqui também tem uma pegadinha.Como o que dizemos não conta, é fácil considerar essas conversas comofalação inconsequente. Mas, se eu pensar assim, o retorno positivo dointerlocutornãoterácredibilidade,porquevouconcluirqueéumareaçãoàminha atuação, à minha fachada de socióloga, e não a qualquer ideiasignificativa.Mas, seeuaprendera levaras conversasa sério, as reaçõesdaspessoaspoderãomeajudaraengatarasprimeiraspalavrasnotexto.Em alguns aspectos, quantomais você escreve,mais fácil fica, porque

comapráticavocêaprendequenãoétãoarriscadoquantotemia.Vocêtemum histórico do qual pode extrair autoconfiança, seu nome temcredibilidade entre um número maior de pessoas do que aquelas paraquemvocê telefonae,melhor de tudo, você demonstrou a simesmaquevaleapenaenfrentarorisco.Vocêenfrentouorisco,produziualgumacoisae voilà! Aí está a prova de que você é quem diz ser. Mas devo tambémreconhecerquenãoétãofácilcomoestouapresentando.Meuhistóriconaescritamedáalgumaconfiança,masvejomeus trabalhosanteriores comsentimentoscontraditórios.Parecemdesajeitados,cheiosdeerros,edigoamim mesma que preciso melhorar. Minhas expectativas mudamconstantemente, e redefinooque consideroumbom trabalhonomesmoritmo.Issosignificaque,acadavezquesentoparaescrever,ficopensandose vou mesmo conseguir fazer aquilo. Então, escrever ainda é umaatividadearriscada.

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Mas o que parece que estou aprendendo, ao passar mais tempoescrevendo, é que vale apena correr esses riscos.Vá lá queproduzoumvolumeassustadordeporcarias,mas,demodogeral,possonotarquesãoporcariasantesqueoutrapessoatenhaocasiãodever.Edevezemquandoproduzoalgoquepresta,algoqueLillianHellmanpoderiaterescrito,algoquecaptaexatamenteoqueeuquerodizer.Normalmente, é apenasumafraseouduas,mas,seeucontinuartrabalhando,aquantidadedessasfrasesvaiaumentar.Esseacúmulodematerialbomtambémmeajudaaencararosriscos.Quandomesintototalmenteincapazdeescrever,àsvezesvoltoereleio partes de algum textomeu queme agrada. Issome lembra que oriscotemdoislados.Vocêpodeperder,mastambémpodeganhar.Tendoapensar apenas na perda, e isso me deixa medrosa. Reler algum bommaterialàsvezesmeajudaacomeçar,quandooutrosestratagemasfalham.E tambémestouvendoqueo ladonegativodeenfrentar riscosnãoé tãoruimquantoeutemia.Possoesconderascoisaspioresentreoqueescrevi.Nuncaninguémvaiprecisarvê-las–ejogoforaomaisrápidoquedá.Oquemostroaosoutrossãocoisasquepensoquetêmalgummérito,eatéaqueleocasional parágrafo que está ali tão bonito namáquina de escrever. Emoutras palavras, tenho certo controle sobre os riscos existentes emescreveredeixarqueoutrosvejamoquefiz.Nãoestoutotalmenteàmercêde outra pessoa, nemmesmo àmercê deminhas próprias exigências deumaperfeiçãoqueéimpossível.Tenhoapossibilidadedejogarcoisasfora.Éisso.Maséacomplexidadedorisco,suaduplanatureza,quemelevaa

sonharnamesmanoitequesofroosataquesdeumaamigaequeescrevocomo LillianHellman. Conforme continuo a escrever, começo a entenderquenãoéumaquestãodetudoounada.Sedefatopuseralgoporescrito,estousujeitaaganharumpoucoeaperderoutrotanto.Trabalheidurantemuitotemposobopesodepensarqueeraumaquestãodetudoounada.Oque estava escrito tinha de ser uma verdadeira preciosidade literária ouum lixo irrecuperável. Não é assim. É só um monte de coisas, mais oumenosajeitadascomoumargumento.Umaparteéboa,outrapartenãoé.

Não tenho nada a acrescentar a esta análise. Pamela Richards exploroudetalhadamenteaorganizaçãodoscolegasedossuperiorestípicadomundodos jovens acadêmicos emostrou claramente como isso afeta a disposiçãopessoaldeaproveitarasoportunidadescomquevocêsedepara,aotentarserum intelectualprofissional.Comessasduashistóriaspessoaisno livro, vocêpodesentiroqueéespecíficodapessoaeoqueégenériconasituaçãoeno

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processo.Nãoseiatéquepontoessessentimentossãotípicosemoutrasáreas.Creioqueafligemamaioriadosacadêmicoseintelectuais.

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7. Soltandootexto

AOBRADETRACYKIDDERTheSoulofaNewMachine, emqueumaequipedeengenharianarraacriaçãodeumnovomicrocomputador,meensinouumaboaexpressão:“gettingitoutthedoor”[aopédaletra,“fazeralgosairportaafora”; em sentido figurado amplo, aqui usado, “lançar, soltar (umproduto)”]. O pessoal da indústria de computação costuma usar aexpressãoparasereferiràúltimaetapanodesenvolvimentodeumnovoproduto.Criarumanovamáquinalevamuitotempo:aconcepçãodaideia;a transposição da ideia para os projetos de hardware; a construção dohardware;acriaçãosimultâneadeumsistemaoperacionalparacontrolarohardwareedosprogramaseaplicativosquecompensamsuaconstrução;aredaçãodosmanuaisdeinstruçãoparaaspessoasaprenderemausá-la;oacondicionamentodoslivroseCDsnaembalagem;porfim,aexpediçãodoprodutoparaocomércioeopúblicousuário.A indústria de computação tem uma expressão especial para o final

desseprocessoporquehámuitascoisasquepodeminterferirnele.Muitosprojetos nunca são lançados. O hardware não funciona comodeveria. Osfornecedores não entregam os componentes que diziam ter para prontaentrega. Mas muitas vezes os novos computadores não chegam a sairporque os engenheiros que trabalham neles consideram que não estãoprontosparaolançamento.Emuitasvezestêmrazão.Ressoamnosetoroscasosdemáquinasqueforamlançadasantesdeestaremprontas,levandoempresasà falência, estragandoa imagemdeumprodutoque tinha tudoparaserbom,prejudicandoonomeeacarreiradosenvolvidos.Uma explicação comum, superficialmente correta, atribui esses

desastres a uma tensão crônica entre o pessoal do comercial e osengenheiros.Opessoaldocomercialprecisadamáquinaimediatamente.Aconcorrência já temuma,eaempresavaiperdersua fatiademercadosenãoaparecerlogocomumsimilar.Masosengenheirossabemque,comumpoucomaisdetempo,conseguirãofazerumamáquinamelhor:commenosbugs, mais despojada, mais elegante, encarnando melhor sua concepção

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inicial. Sabem que pelo menos outros engenheiros apreciarão essesrefinamentos e admirarão a engenhosidade. O pessoal do comercial estápouco ligando para a elegância e a perfeição que impressiona os colegasdosengenheiros:achamqueosengenheirossãounsmalucosavoados,bemcapazesdelevaraempresaàfalênciacomseussonhosdeperfeccionismo.O critério prático deles é que amáquina esteja “bem boa”, cumprindo afunçãoparaaqualfoidesenvolvidademaneirasuficienteparaatenderaosusuários. Os raros engenheiros que se movem entre os dois mundos echegamaumaintegraçãoentreessescritériosdistintosganhamorespeitodetodosporconseguirem“aprontar”oproduto.A tensão entre aprimorar e finalizar surge sempre onde é preciso

terminarum trabalhoou lançarumproduto: um computador, um jantar,um trabalho de semestre, um automóvel, um livro. Queremos terminar eentregaràspessoasquevãousar, comer, ler a coisa.Masnenhumobjetojamaisincorporatotalmenteaconcepçãodeseucriador.Devidoàfraquezahumana,suaedosoutros,errosedefeitossãoinevitáveis.Vocêseesquecedepôr sal,deixapassaralgumbug importanteemseuprograma, cometeuma falácia lógica, deixa de fora uma variável importante, escreve umafrase vergonhosamente capenga, ignora a bibliografia especializadapertinente, interpretamalseusdados– todasas formasdeproduçãotêmsuaslistasdeerrosmaisfrequentes.Mas,pensamosnós,seeurepassarsómaisumavez, vou conseguirpegar esses erros e arranjar soluções aindamelhoresparaosproblemasquemepropusresolver.O lançamento não é a única coisa que as pessoas valorizam. Muitos

trabalhosimportantesemváriasáreasforamfeitossemlevaremcontasealgum dia sairiam. Acadêmicos e artistas, sobretudo, acreditam que, seaguardarem o suficiente, encontrarão uma maneira mais lógica eabrangente de dizer o que pensam. A mesma atitude encontra lugar dehonra na tradição e no folclore profissional. O compositor americanoCharles Ives, nas fases finais de sua carreira musical, simplesmente nãodavaamínimaparalançaralgumacoisa.Suafamasebaseiaemobrasquenuncaconsiderouterminadas,emboraemcertosentido(masnãonodele)estivessemprontas.Naverdade,poucaspeçassuasteriamsidoexecutadas,não fosse pela insistência de músicos que o adulavam e amolavam atéconseguiremque,acontragosto,elelhespassasseaspartituras.Mesmoaí,nãoosajudavamuitoadecifrarascomplexidadeseambiguidadesdeseusgarranchos(verosrelatosemPerlis1974).Oscriadoresmuitasvezesqueremadiarolançamento,mesmoquandoo

criadorétambémodepartamentodemarketing(comoacontecenomundo

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acadêmico) e sabe muito bem que precisa soltar a coisa, e logo. Ostrabalhosdealgunsautoressósaemdaescrivaninhaquandoalguémostiradeláàsescondidas.Conheçoodonodeumaeditoraquefoiatéacasadeum autor e, com a cumplicidade da esposa deste último, surripiou ummanuscritoqueoautorachavaqueaindaprecisavadeumpoucomaisdetrabalho, principalmente nas notas de rodapé. O autor não reclamouquandoolivrofoipublicado.Paraosescritores,um lançamentosedáemváriasetapas.Começama

soltar o trabalho ao mostrá-lo para um círculo de colegas e amigos deconfiança, que farão sugestões e comentários. Então soltam para osmonitores dos cursos, os orientadores da tese, os pareceristas dosperiódicos, ospareceristasdas editoras e, por fim,parao grandepúblicoanônimo que poderá ler a obra quando estiver disponível no mercado.Alguns escritores começam a postergar quando ainda são estudantes,deixandode entregar os trabalhos de cursonoprazo e acumulandoumaquantidaderecordedecoisasincompletas.Algunssódeixamosamigosdeconfiança verem o trabalho quando são levados ao desespero peloisolamento, e aí mostram um material maciçamente retrabalhado ealtamente burilado. Outrosmostram as versões iniciais aos amigos, masevitamsubmeterqualquercoisaapublicação,insistindoqueprecisamreleralguns dos grandesmestres, montarmais algumas tabelas, dedicarmaisalgumtempinhoàbibliografia–qualquerdesculpaplausível.Eu gosto de soltar meus textos. Gosto de reescrever e mexer na

organização e nas palavras, mas logo resolvo de duas, uma: ou deixo otrabalhode lado, como aindaprematuropara ser redigido, ou ponho emformaadequadaparalançar.Meutemperamento–impaciente,ansiosoporrecompensas,curiosoemvercomoosoutrosvãoreagiraoqueeudisse–meempurraparaessadireção.Eessemeutemperamentoprovavelmentesereforçouporquecrescinoramodamúsicapopular,ondevocêtocatodasasnoites,estejaafimounão,queroquevocêtoqueestejabomounão.E,mais importante,EverettHughesmeensinouquea vida intelectual éumdiálogo entre pessoas interessadas no mesmo assunto. Você pode ficarsapeandoaconversaeaprendercomisso,masemalgummomentoterádedizer alguma coisa. Seu projeto de pesquisa não estará pronto enquantovocênãopuserporescritoecolocarnaroda,publicando-o.Essaconcepçãotem raízes evidentes na filosofia pragmática de John Dewey e GeorgeHerbertMead,ambosimportantesnopensamentoenapráticadasciênciassociais.Tambémtemconotaçõesfortementemoralistas.Osestudantesecolegasquetrabalharamcomigosabemoquantoposso

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sermoralista,teimosoeirritantequandosetratadesoltarotexto.Porqueelesnãoterminamatese?Cadêocapítuloqueelesprometeram?Vocêestáquase no fim – o que está demorando tanto? Sei que, quando fico assim,estoudeixandodeveralgumacoisa.Nuncanadaétãosimples,tãoou/ou.Entãotentosaberorestodahistória.Sempretemmaisalgumacoisa.Encontrei o outro ladodessahistória, continuando comametáforado

computador,perguntandoseerapossívellançaroprodutocedodemais.Aperguntarespondeasimesma.Umaempresadecomputadorespode iràfalênciase ignorarasadvertênciasdosengenheiros.Masa coisavaialémdisso. James Joycenão tinhanenhumapressa emsoltarFinnegan’sWake.Muitasobras-primasresultamdeanoseanosdereelaboraçãopacientedepessoas que parecem não dar amínima em finalizar as coisas. Num dosextremos,exemplificadoporIves,osprodutoresdeixamdeseimportarsevãoalgumdia terminaralgumacoisa.Algumasobras-primas, claro, ficamprontasdepressa,masachancedequeumpouquinhomaisdeelaboraçãopossa transformar algo bom em algo ótimo torna qualquer um maisvagaroso. Trabalhar devagar, sacrificar as recompensas do presente paraproduziralgorealmentevalioso,passarvinteanosparaproduzirumlivro(como fez John Rawls com Uma teoria da justiça) – é uma imagemfascinante,mesmoparaalguémpráticocomoeu.Assim,tanto“soltar”quanto“esperarumpouco”têmaspectospositivos.

Asoluçãoconvencional(esensata)paraesseproblemaéverquevocêestáescolhendo entre produtos concorrentes e tentar equilibrá-los. Mas essereconhecimento não ajuda muito. Onde encontramos o equilíbrio? Oproblemaéomesmo.O caso de Ives sugere uma abordagem possível. Como ele podia ser

compositor emesmo assim nunca terminar uma composição? Sendo umdeterminadotipodecompositor:aquelequenãoeratocado.Amúsicaquenão foi terminada não pode ser tocada. Os instrumentistas podem, claro,pegar apartitura edá-lapor terminada, como faziam com Ives.Mas Ivesnão precisava terminar nada porque tinha escolhido não participar nasformas usuais de atividade em grupo, nas conversas do setormusical desuaépoca.Comonãoseimportavasesuamúsicaeraexecutadaounão,nãoprecisavaterminá-la.Demodomaisgeral,vocêpodedecidirquandovai lançarseu trabalho

decidindo que papel você quer ter no mundo em que se faz o tipo detrabalhoquevocêfaz.Nãosetratasimplesmentedetraduzirumaperguntainsolúvel para outra linguagem, mantendo-a sem resposta. A novaformulação pelo menos faz você pensar e avaliar os prêmios e castigos

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organizacionaisdasdiferentesestratégias.Quando falo com estudantes de pós-graduação que empacaram numa

teseoucomamigosacadêmicosquenãoconseguemredigirsuaspesquisasoupôrseusartigosnumaformapublicável,eudeveriaparardemoralizare, em vez disso, falar sobre a organização social. Mas, a menos que euamordaceopregadorquehádentrodemim,nossasconversasdesandampara discussões moralistas irritantes e insolúveis. Começo a moralizar,aconselhandoquenãosejamperfeccionistas,quesecontentemcomoqueestá bompara os demais. Digo que nunca escrevi uma obra-prima e quenuncacontocomisso.Porquecomelesseriadiferente?Elesnãogostamdisso.Eporquehaveriamdegostar?Muitasvezesnão

reconhecemnemaceitamodiagnóstico, quepode estar erradomesmo, eentãose fazemigualmentemoralistas.Aprontarascoisassópara ficaremprontas não parece algo muito ético. Na verdade, cheira a carreirismo.Muitasvezes,osacadêmicosespeculamseaspessoasque“publicammuito”nãoestariamagindoporrazõespoucolouváveis.Paraentenderoargumentoqueacabodeexpor,temosdeabandonaro

moralismoeveroproblemaemsua relação comaorganização socialdavidaacadêmica.Aqui,aconcepçãodovocabuláriodemotivosdeC.WrightMills(1940)podenosajudar.Todasociedadeougruposocialtemumalistaderazõesaceitáveisecompreensíveisparafazerascoisas.Assim,podemosexplicar que aceitamos determinado emprego porque “precisávamos dodinheiro”,porque“gostamosdetrabalharcompessoas”,porque“essetipode coisame interessa” ou porque “oferece chances de progredir”. Todasessassãorazõescompreensíveispara fazercoisasnosEstadosUnidosdehoje.Podemosnão fazercoisasporessasrazõesounãoaprovarquemasfaça,masentendemosqueosquefazemnãosãoloucosnemmalévolos.Emoutras sociedades, pode ser que alguém explique que fez alguma coisaporqueoirmãodesuamãemandouquefizesseouporqueDeuslhedisse.Alguns amigos entenderiamminha decisão de aceitar um novo empregoporquesoudeÁrieseéassimqueaspessoasdeÁriessão.Maseuteriadeter muito cuidado com quemme ouvisse dizer que fiz porque Deus mefalouparafazer.Nãousamosalistadeexplicaçõesaceitáveisdenossasociedadeapenas

para falar com os outros. Também perguntamos a nós mesmos por quefazemosas coisaseprocuramosexplicações razoáveisnessamesma lista.Senãoencontramosnenhuma,podemosnãofazeroquepretendíamosoupodemosnosindagarsobrenossasanidademental.Quemfazalgumacoisaporrazãonenhuma?

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Ovocabuláriodemotivoscorrentenaacademiaexplicaaaltafrequênciade publicações de um acadêmico de várias maneiras, nem semprelisonjeiras. Quem publica muito é para “avançar”, “fazer nome”, “ganharaumento” e, o mais triste de tudo, “conseguir estabilidade”. Tais razõesdizem nas entrelinhas que o autor se satisfaz com algo de segundacategoria,aceitaumtrabalhoqueé“passável”sópara lançá-loeganhararecompensa.Os acadêmicos que aprontam coisas em “tempo razoável” consideram

essa análise interesseira, uma desculpa para não terminar as coisas.Explicamqueescrevem“paracontribuircomaciência”,“paraparticipardodiálogoacadêmico”ouporque“escreverédivertido”.Éassimqueeufalo.Essas razõesparecemmeio polianescas e um pouco fantasiosas. (Os quesofremaoescreverachamespecialmenteabsurdaaideiadequeescreverédivertido.)Apesardisso,háescritoresquefazemascoisasporessasrazões.Se você enxerga a atividade acadêmica como um grande jogo, escrever,entrarnodiálogooudarumacontribuiçãopodeser tãodivertidoquantoterminar uma partida de PacMan.Mas, se você se concentra em fazer ascoisas direito, essa ênfase na produção fica parecendo um arranjo. Aretóricasoainteresseiraeatéimoral.Esse duelo moral não leva a lugar nenhum. Mais vale falar sobre as

consequências das diversas maneiras de escrever. Na verdade, aorganizaçãodavidaacadêmicaevocaepremiaosdoisgruposdemotivos,tomandoamboscomorazoáveisenecessários.Comoestáorganizadoomundodaacademia,equalopapeldaescritae

publicação dentro dele? Que papel você quer desempenhar, e quais osefeitos que sua maneira de escrever e publicar terá sobre o papel queescolheu?Boasperguntas,paraasquaisnãoexistemrespostasunívocas,oquenãoédeseestranhar.Enãoédeseestranharporqueosacadêmicosnão sedispõemmuito a estudar a organizaçãode seumundo social.Nãoqueremqueseussegredossejamreveladosnemqueseusmitosprediletossejamdesmascaradoscomocontosdefadas.Gostamdecontarhistóriasdesuas experiências e de extrair delas grandes conclusões sobre o quefornece confiança aos estudantes, quais as estratégias de carreira quefuncionam(fizasduascoisasnestelivro)e,especialmente,comoagestãodasuniversidades é “racional”, apesarda aparente superfície caótica.Umexamesistemáticodosestudantes,dascarreirasoudasuniversidadessemdúvida contrariaria suas convicções, e assim ninguém pensa que vale apenasededicaroucooperarcomumapesquisadessas.Portanto, não existe nenhum corpo de pesquisas que possa resolver

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essasquestões.Mesmoassim,podemoscomeçarporalgunspontos.Poucosdiscordarãodoquedigo.Tal comomuitosoutros conhecimentos sobreofuncionamentodasociedade,aspessoasjásabiamotempotodocomoelafuncionava, mas preferiam não ter de pensar sobre as implicações e oscorolários. A tarefa do cientista social é dizer essas coisas em voz alta elevartodosapensaremseriamentearespeito.Os mundos acadêmicos guardam uma profunda ambivalência, que se

refletenasatitudescontráriasde“aprontelogo”דnãotenhapressa”.Peloladoprático,osmundosdaacademiasãooqueEverettHughes(1971,p.52-64)chamoude“goingconcerns”[preocupaçõesemandamento],orientadaspara o término dos trabalhos. Em termosmenos práticos, eles adotam aperspectiva da história no longo prazo, vendo o desenvolvimento de umconjuntodepráticaseconhecimentosaolongodeanoseatédeséculos.Dolado prático, estão operando agora e precisam lidar com todos osproblemasimediatosdequalquerpreocupaçãoemandamento.Talveznãoprecisem produzir um novo computador para garantir uma fatia domercado(emboraaconcorrênciapelasinscriçõesdosalunos,pelorenomeacadêmicoepelodinheirosejamaisoumenosparecida).Maselescriamesustentamassociaçõesformais,querealizamencontrosanuaisepublicamperiódicos,queporsuavezexigemqueaspessoasescrevamartigosparaapresentação oral e publicação. Os mundos acadêmicos fornecem oconjuntodemãodeobraquetrabalhanosdepartamentosdauniversidadee ministra seus cursos. Os mundos acadêmicos produzem os manuaisutilizadosnesses cursos. Seus integrantesdão entrevistas a jornais e dãopareceres ao legislativo sobre o divórcio, a criminalidade, o poderionuclear,ascatástrofesnaturaisetudoaquiloqueasáreasdevemconhecerosuficienteparapoderfalarsobretaisquestões.A maioria dessas atividades requer que alguém prepare textos, que

algunsprodutosfiquemprontos.Aorganizaçãodasdisciplinasacadêmicasnãoexigequesejaumapessoaespecíficaacumprirtaistarefas.Seeunãoescrever um livro definitivo sobre o assunto, você escreverá; se não forvocê, será outra pessoa. Se nenhum de nós escrever o livro, poderemossofrerasconsequências;masaáreanãosofrerá.Nãoseremospromovidos,mas alguém acabará por escrevê-lo, se houvermaterial para isso, e serápromovido enquanto nós continuaremos a dar aulas nos cursos deintrodução.Apesardetudo,essasatividadesabremasportasporondenossostextos

acadêmicospodemsair.Osprofissionaisseguiampelosprazoserestriçõescriadospelasdisciplinas.Práticos, fazemconcessões.Nãoescreverão,por

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exemplo, em formatos curtos ou longos demais para os veículos usuaisondeseus trabalhospodemaparecer.Podemganharrenome,comoodosengenheirosquelançamoscomputadores,porproduziremonecessário,naformanecessária,dentrodoprazo.Dessepontodevista,éfácilminimizarosproblemasdaredação, como fazumprofessor,peloquemecontaram,que diz a seus estudantes de pós-graduação que basta copiarem o queaparece na American Sociological Review. Se você usar os principaisperiódicoscomoexemplares(nosentidoqueThomasKuhndeuaotermo),você só terá problemas enquanto não dominar a forma. A partir daí,escreverseriatãosimplesquantodigitar.Omundoacadêmico–esteéooutroladodaambivalência–tambémse

orienta pelo longo prazo.Nessa perspectiva, ele não precisa dasmesmascoisas. Precisa de novas ideias. Mas os velhos formatos não dão muitoespaço para ideias diferentes. ErvingGoffman tinha qualidade e teimosiasuficientesparaqueosguardiõesdaprofissãoaceitassemostextosqueeleescrevia numa extensão totalmente “inconveniente”: ensaios de sessentapáginas, longosdemaisparaosperiódicosecurtosdemaisparaum livro.As pessoas, em sua maioria, não produzem um trabalho original tãosurpreendente e não têm a força pessoal que garantiram sucesso aosempreendimentos quixotescos de Goffman. Mas quem “leva a vida toda”para acabar o que está escrevendo não é tão doido, preguiçoso ouacomodadocomodizempessoascomoeu.Elessimplesmenteseguiampelolongoprazo,ecumprirosprazosefêmerosparaoscongressosdaMidwestSociological Society é algo realmente trivial, comquenemvale apena seincomodar.Eissonãoébobagem.Paraadisciplinacomoumtodo,ésemdúvidaalgobom.Desdequeuns

façam uma coisa e outros façam a outra, as várias atividades queesperamosdomundoacadêmico–dêcursos, lanceperiódicos,crienovasideias–sãocumpridas.Masosindivíduospodemsofrerconsequênciasemfunçãodastarefasqueassumem.Sevocêlevarvinteanosparaescreverumlivroque,então,nãoserevelagrandecoisa,comcertezaasconsequênciasvirão.Mas, seumbomnúmerodepessoas tentar,omundoacadêmicosebeneficiará.Se fizermosessaescolha,estaremosapostandoaltonumjogoarriscadoeprecisamosestarcientesdisso.Por trás dessas análises há algumas suposições que devem ficar

explícitas e cujo acerto demanda verificação. As pessoas supõem, porexemplo, que demorar mais é necessariamente melhor do que demorarmenos.Afinal,pensarduranteumanosobreumtemanãodeveriaresultaremideiasmelhoresenumentendimentomaisaprofundado?Otempoextra

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não lhepermitiráquevocêburilesuaprosa,paraqueexpressecommaisprecisão e elegância seus pensamentos mais elaborados? Claro que sim!Quantomaistempovocêinveste,maiorseuretorno.Os escritores que evitam trabalhar rápido e soltar logo seus textos

tambémpensamqueumaobra-prima levamuito tempoparaser feita,aopasso que os autores de revistinhas pulp executam rapidamente suastarefas. Quem não preferiria escrever uma obra-prima em vez de umahistorieta numa revista barata? A comparação é contestável. Devemostentarescrevergrandesobrasprimasouseriamelhorpretendermosumaprosa boa e clara, que diz o que precisa ser dito de uma maneiraconvincente? A ciência precisa de uma prosa que seja uma obra-prima?Qualéachancedequealgoescritonoestiloconvencionaldosperiódicosacadêmicossejaumaobra-prima?Ocaráterpretensiosodessaambiçãonãoresiste a um exame mais de perto. Além disso, os autores das grandesobras-primasdaliteraturavitoriana–Dickens,Thackeray,Eliot,Trollope–escreveram-nas nas condições de pulp fiction, como folhetins, capítulosseriados que nem teriam continuidade se os números anteriores nãovendessem(Sutherland1976).Uma relação direta entre qualidade e tempodispendidopode, de fato,

ser empiricamente falsa. Os professores de pintura incentivam osestudantesanãoexagerarnumquadro,continuandoapôrtintanatelaatéqueumaideiainicialmenteboafiquesoterradaembaixodeumamixórdiaenlameada.Osescritorespodemmexertantonumtexto,nomaioralvoroçoemtornodosadjetivosedaordemdaspalavras,queosleitoresvãoreagirmais ao esforço de burilamento do que às ideias que deveriam sertransmitidas. Mais trabalho não significa necessariamente um produtomelhor. Pelo contrário, quanto mais pensamos na redação, mais somoscapazes de introduzir considerações descabidas e qualificaçõesinadequadas, de insistir em fazer conexõesquenãoprecisam ser feitas –até soterrarmos o pensamento sob uma ornamentação bizantina. Em“quanto mais, melhor” não há mais verdade do que em “quanto menos,melhor”.Sim,aredaçãorequerreelaboraçãoereflexão.Masatéqueponto?Deve-se buscar a resposta em termos pragmáticos, não em atitudespredeterminadas.Outra suposição correlata, cujas bases puritanas são evidentes, é a de

quevocêdeveseesforçarmuitoaoescrever,eissosefazdedicandomuitashoras ao trabalho.Mesmo que você não chegue a escrever de fato, devepelomenossentaràmesaetentar.Esofrer,senãoconseguirescrever.Essecalvinismo pode derivar da formação escolar, com professores que

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insistem que você aparente estar trabalhando, mesmo que não consigafazer nada, para que pelo menos não se entretenha fazendo outra coisaquandodevia estar produzindo algo.Os escritores que seguem fielmenteessa prescrição ganham dor nas costas de tanto ficar olhando o vazio,sentadosnuma cadeiradesconfortável, tentando imaginar o quedizer oucomomelhoraroquedisseram.Masficarolhandoovazio,naverdade,nãofazparecerqueapessoaestejatrabalhando,emesmooautorimprodutivofinalmenteentendequenãofunciona.Asdescriçõesclássicasdosproblemasderedaçãocostumamincluiruma

comovente descrição da folha em branco suplicando tinta, enquanto oautordiantedelaficaparalisadodeansiedade.Todasaspalavrasparecemerradas.Enão só erradas,mas tambémperigosas.NoCapítulo6,PamelaRichardsexaminouomedodasreaçõespotencialmenteperigosasdeseuscolegas, dos superiores e de si mesma, medo este produzido pelaorganização da vida acadêmica. (Conheci um sujeito que não tirava opijama enquanto não considerasse que a primeira página de um artigoestavaperfeita.Muitasvezesgastavacemfolhasdepapeltentandoacertaraprimeirafrase,enofimtevederenunciaraessaprática,aoseveraindadepijamanahoradojantar.)OutrotipodeansiedadequemereceexamefoimencionadonoCapítulo

1. Ainda me aflige. Os acadêmicos sabem que os temas de seus textosenvolvem tantas coisas a ser levadas em consideração, tantas conexõesentre tantos elementos, tanto de tudo, que parece inconcebível dar umaordem racional ao conjunto. Mas é esta a nossa tarefa: dispor as ideiasnumaordemracionalparaqueoutrapessoaconsigaentendê-las.Temosdelidarcomesseproblemaemdoisníveis.Temosdedisporas ideiasnumateoriaounumanarrativa,descreverascausasecondiçõesque levamaosefeitosquequeremosexplicar,enumaordemquesejacorretaemtermoslógicoseempíricos(seestivermosescrevendoalgobaseadoempesquisasempíricas).Corretaemtermoslógicossignificanãocometermosnenhumadas famosas falácias do raciocínio incorreto (Fischer 1970 cita casos dehistoriadores cometendo todas elas). Correta em termos empíricossignifica que a ordemque descrevemos deve ser amesma ordemque ascoisas realmente têm na natureza, até onde sabemos. Por fim, queremosquenossaprosadeixeclaraaordemqueconstruímos.Nãoqueremosqueoentendimento de nossos leitores seja prejudicado por imperfeições emnossaprosa.Essas duas tarefas convergeme são indissociáveis. Eu não devia dizer

issocomtantatranquilidade.Provavelmenteépossívelesboçareconstruir

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um argumento em alguma outra linguagem que não seja verbal. Amatemática e os gráficos são duas alternativas que permitem afirmaçõesprecisas, e alguém poderia desenvolver uma teoria usando uma delas edispensandoaspalavras.Sejacomofor,parapôrasideiasemordemlógicaé preciso um olhar atento aos argumentos falaciosos. Alguém podeaprenderalocalizartaiserros.Maisassustadorétentardescreveraordemempíricacomprecisão.Sabemosqueéimpossíveldescrevertudo.Defato,um dos objetivos da ciência e dos estudos acadêmicos é precisamentereduzir o que tem de ser descrito a proporções exequíveis. Mas o quedeixardefora?Eondepôroquemantemos?Omundoempíricopodeserordenado, mas nunca de alguma maneira simples que anuncie quais ostópicos que vêm em primeiro lugar. É por isso que as pessoas ficamolhandoa folhaembrancoe reescrevemasprimeiras frases centenasdevezes.QueremqueessesexercíciosmísticostragamàtonaaÚnicaManeiraCertadeorganizartodoaquelematerial.Bom, e se você não organizar de maneira adequada? Vimos esse

problemanoCapítulo3.Masese,oqueémuitopior,sabendoquequalquerorganizaçãodarealidadequevocêfaçaprovavelmenteestaráincorretadealgumamaneira,vocêsimplesmentenãoconseguirorganizaçãonenhuma?Esta é a causa mais profunda da ansiedade que aflige os escritores aocomeçar. E se não conseguirmos, simplesmente não conseguirmos, extrairalguma ordemdaquele caos?Não sei quanto aos outros,maseu, quandocomeçoumnovoartigo, tenhoossintomas físicosclássicosdaansiedade:tonturas,pesonabocadoestômago,calafrios,àsvezesatésuoresfrios.Asduaspossibilidades,umatãoruimquantoaoutra–adequeomundonãotenhanenhumaordemrealou,setem,queeunãoconsigaencontrá-la,nemagora nem nunca –, são filosoficamente, quase religiosamente,assustadoras.Omundopodeserumcaossemsentido,maséumaposiçãofilosófica coma qual não émuito fácil conviver. E essa possibilidade ficabem palpável quando não se consegue conceber a primeira frase de umtexto.Tenho algum remédio para a doença que descrevi? Sim e não.Muitas

outrasatividades,emespecialosesportes,gerammedosparalisantesqueimpedemaspessoasdecomeçar.Oconselhodosespecialistasnessasáreasésempreomesmo.Relaxee faça!Vocênãoconseguirávenceromedosenão fizer a coisa que o atemoriza, e só então descobrirá que não era tãoperigosaquantovocê imaginava.Assim,a soluçãoparaescreveralgoquenãovaidominarocaosplenamente,demodológicoeexaustivo,éescrevermesmoassime,ao terminar,descobrirqueomundonãoseacabou.Uma

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maneirade fazer isso é iludir a simesmoe se forçar apensarqueoquevocêestáescrevendonãotemimportânciaenãofazdiferençanenhuma–umacartaparaumvelhoamigo, talvez.Euseicomoiludiramimmesmo,mas não sei como os outros podem fazer. Entãomeu conselho para poraqui.Aúnicamaneiradecomeçaranadaréentrandonaágua.

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8. Apavoradocomabibliografia

COMOEUDISSEANTES,muitasvezesosestudantes(eoutros)falamem“usar”esta ou aquela abordagem – “acho que vou usar Durkheim” –, como sepudessemselecionarlivrementeasteorias.Naverdade,quandocomeçamaescreversobresuaspesquisas,jáfizerammuitasescolhasdedetalhes,quenahorapareciamdepoucaimportância,masqueestreitavamsuasescolhasteóricas. Decidiram as questões que iriam investigar. Elegeram umamaneira de coletar informações. Optaram entre várias pequenasalternativasdetécnicaseprocedimentos:quementrevistar,comocodificaros dados, quando parar. Conforme faziam essas escolhas dia após dia,aumentaram gradualmente seu compromisso com uma determinadamaneira de pensar, respondendo de modo mais ou menos seguro àsperguntasteóricasque,pensavameles,aindaestariamàsuadisposição.Masos cientistas sociais e sobretudoos estudantesde ciências sociais

ficam agitados na hora de escolher uma teoria por uma razão prática.Precisam–pelomenospensamqueprecisam– lidar coma “bibliografia”sobreotema.Osacadêmicosaprendematermedodabibliografianapós-graduação.LembrooprofessorLouisWirth,umdos ilustresmembrosdaescola de Chicago, pondo Erving Goffman, então colega meu na pós-graduação,emseulugarcomolancedabibliografia.Foiexatamenteoquetodosnóstemíamos.AchandoqueWirthnãotinhadadoatençãosuficientea algumas ideias importantes sobre o operacionalismo, Goffman ocontestouemclasse,fazendocitaçõesdolivrodePercyBridgemansobreotema. Wirth sorriu e perguntou sadicamente: “Em qual edição, sr.Goffman?”Talvezhouvessealgumadiferençasignificativaentreasedições,embora nenhum de nós acreditasse nisso. O que pensamos foi que eramelhortercuidadocomabibliografiaouElesPoderiamTePegar.O“Eles”incluía não só os professores, mas também os colegas, que poderiamaproveitar a brecha e mostrar a nossas custas como conheciam bem abibliografia.Osestudantesaprendemqueprecisamdizeralgumacoisasobretodasas

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pessoasquediscutiramantesoproblema“deles”.Ninguémquerdescobrirque sua ideia cuidadosamente alimentada já estava impressa antes quepensassem nela (talvez antes mesmo que nascessem) e num local quedeviamtervisto. (Wirth tambémnosdissequeaoriginalidadeé frutodeumamemóriafalha.)Osestudantesqueremmostraraomundo,eatodososcríticos que podem estar lá à espera deles, que verificaram e viram queninguémteveaquelaideiaantes.Umaboamaneiradeprovarsuaoriginalidadeévincularsuaideiaauma

tradiçãocujabibliografiajáfoiexplorada.Engatarseutrabalhonumnomeacadêmicobem-exploradoajudaagarantirqueseuargumentonãoestejarefazendoalgoque já foi feito. Sevocê “usar”Weber,Durkheim,MarxouMead, os exegetas já vieram antes, preparando o terreno, especificandoquais são realmente as questões, definindo qual trabalho de quem éimportanteconsiderar–e,emgeral, fornecendoumamaneira infalíveldelidar com a bibliografia: “Veja a revisão bibliográfica exaustiva de ChaimYankel(1993)nessaárea.”Essaproteçãoritualrealmentedácoberturaaoautor,masnãoétãoeficienteparaproduzirestudosbonsouinteressantes.As razões, interessantes por si sós, iluminam por igual as basesinstitucionaisdacriatividadeedabanalidade.Osescritores,claro,deveriamusarabibliografiapertinentedemaneira

adequada. Stinchcombe (1982) apontou seisusosprincipais. (Esperoquemeuresumode seuartigoexemplifiqueoque, adiante,descreverei comobomusodabibliografiaeforneçaavocêumargumentojáprontoquelheserá necessário.) Embora Stinchcombe escreva sobre a categoria maisrestrita dos “clássicos”, o que ele tem a dizer também se aplica a nossoproblema“dabibliografia”.DoisdosseisusosapontadosporStinchcombeestãorelacionadoscom

fases iniciaisdapesquisaenãoseaplicamtantoaoproblemadaredação.Comofontedeideiasfundamentais,osclássicossãomuitoimportantesnasfases iniciais de um projeto; mas, quando você começa a escrever, suasideiasfundamentaisjádevemestarclaras.Clarasounão,vocêjáasteme,bemoumal,elasmoldaramseutrabalho.Asegundafunçãodosclássicos,como uma “ciência normal subaproveitada”, como fonte de hipótesesempíricas,desugestõese intuições,é igualmente fundamentalnasetapaspré-redação.Stinchcombetambémmencionaumafunçãoorganizativadosclássicos:indicarasolidariedadeentrepessoasdentrodeumamesmaárea.“É o fato de que todos nós lemos esses clássicos ou, pelo menos,respondemosaperguntassobreelesnosexamespreliminaresquenosunenumacomunidadeintelectual.”Elesepreocupacomessafunção,pensando

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que ela nos leva a admirar trabalhos que o tempomostrou que estavamerrados(como,dizele,WhitneyPopemostrouqueDurkheimestavaerradosobre o suicídio): “O que há de prejudicial na admiração dos clássicos,portanto,éoefeitodaaura,acrençadequeumlivroouartigo,sendoútilparaumadeterminadafinalidade,hádecontertodasasvirtudes.”Outros três usos importantes dos clássicos têm relação direta com a

redaçãodotrabalho.Umaobraclássicadaáreaservecomopedradetoque:“um exemplo concreto das virtudes que um trabalho científico pode ter,numacombinaçãoquemostracomoumtrabalhodeveserparacontribuirparaadisciplina”.ComodizStinchcombe,foiissooqueThomasKuhnquisdizer ao usar um termo paradigma no sentido de modelo exemplar. AsvirtudesqueStinchcombecomentanãosãoasquevocêpoderiaesperar:

[A] ciência de primeira categoria funciona com critérios estéticos, além dos critérios lógicos eempíricos.Esses critériosnãosãodefensáveispelas filosofiasda ciênciapositivistas,marxistasouinteracionistas simbólicas… [S]e gravarmos os exemplos de excelência em nossa mente comomanifestaçõesconcretasdeprincípiosestéticosquequeremosrespeitaremnosso trabalhoeusarcomopedrasde toquepara filtraroqueeliminaremoseoquemanteremos,podemosmuitobemconseguirtrabalharnumnívelmaiselevadodoqueconseguimosensinar.Poistrabalhamossegundoos critérios embutidos na pedra de toque, critérios que não somos capazes de formular, masconseguimosperceberaousá-loscomotermosdeumacomparação:essetrabalhoétãobomquantoSimmel?

Stinchcombeaquidescreveoqueeuquisdizerquando,maisacima,faleiemeditardeouvido.Seeleestácertoeessescritériosestéticosnãopodemser justificados “cientificamente”, segue-se que não há sentido em tentarencontraraÚnicaManeiraCertadeescreveroquevocêtemadizer.Masimitarumtrabalhobem-feito(principalmenteseuformatoouorganização)éumaótimaformadeencontrarasmaneirascertaspossíveis.Osclássicostambémservemcomo“tarefasdedesenvolvimentoparaos

iniciantes”,mostrando-lhescomoascoisassãomuitomaiscomplicadasdoqueelespensavameelevando-osaoníveldesofisticaçãocorrenteemsuaárea. Geralmente é essa função que as pessoas têm em mente, quandofalam sobre as vantagens de estudar para os exames de qualificação.Provavelmente ela contribui para o modo irracional de enxergar abibliografiaeparaoenfadonhoritualismodasrevisõesbibliográficasqueenfeitamtantostrabalhosacadêmicos.Stinchcombe designa um último uso dos clássicos como “pequena

mudançaintelectual”.VocêcitaWeber,DurkheimouYankel(talcomousaovocabulário codificado de uma determinada escola) para mostrar a quelinhavocêsefilia.Paraisso,precisausarnomesbastanteconhecidos:

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Imagine se nossos crachás para a convenção [ele se refere ao encontro anual da AssociaçãoAmericana de Sociologia] trouxessem nossos nomes, nossas instituições e nosso autor clássicofavorito.Omeu traria: “Stinchcombe,UniversidadedoArizona,MaxWeber”.Agora suponha,numlancedepreciosismo,queeuescreva:“Stinchcombe,UniversidadedoArizona,PaulVeyne”.EleénomomentoapessoaquemaismeentusiasmaintelectualmenteeencarnaasmesmasvirtudesdeMaxWeber.Masmaisde90%daspessoasqueeuencontrassenãoiamsaberdoqueeuestavafalando,eassim não saberiam nada sobre o conjunto de intuições e pressupostos aos quais eu estariadeclarandominhalealdade.…[Mas]ousodosclássicoscomocrachásdeidentificaçãotendeacriarseitasemvezdecomunidadesintelectuaisabertas.Oscrachástendemasetornarfronteirasemvezdeguias.

A revisão bibliográfica convencional fornece indicações quanto à linhaadotadapeloautor,mas, seesta fossesuaprincipal finalidade,osautoresseriammaissucintosemenosobsessivos.Osclássicosnãosãosinônimode“abibliografia”.Oscientistassociaisse

preocupamcomosclássicos,mastambémsepreocupamcomabibliografiacríticaemetodológica, comaspesquisasexpondodescobertasespecíficassobre o tema e os debates sobre essas descobertas, e se sentemresponsáveisportudo isso(assimcomoosestudantessabemquandosão“responsáveis”pelamatérianumexame).Nenhuma dessas maneiras de usar a bibliografia é ruim em si, mas

nenhumadelasrespondeàperguntadecomousarabibliografiareferenteaotemadesuapesquisa.A ciência e o conhecimento no campo das humanidades são

empreendimentoscumulativos,tantonapráticaquantonateoria.Ninguémparte do zero quando se senta para escrever. Dependemos de nossospredecessores.Nãoconseguiríamosfazernossotrabalhosenãousássemosseusmétodos, seus resultados e suas ideias. Poucos se interessariam emnossos resultados se não indicássemos alguma relação entre nossotrabalho e as coisas que outros disseram e fizeram antes de nós. Kuhn(1962) apresentou essamútua dependência e essa cumulatividade como“ciência normal”. Muitos cientistas sociais usam a expressão “ciêncianormal” em sentido pejorativo, como se significasse “ciênciameramentenormal” e como se todos nós fôssemos capazes de criar revoluçõescientíficasacadadia.EstaéumaleituratotalmenteequivocadadeKuhn,etambém uma bobagem. Os cientistas não fazem revoluções científicassozinhos. Essas revoluções levammuito tempo. São grandes números depessoas, trabalhando juntas, que desenvolvem uma nova maneira deformular e investigar os problemas em que estão interessadas, maneiraesta que encontra abrigo em instituições científicas duradouras. É umdesatino imaginar que o relatório sobre seu projeto realizará algo que

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demanda esse tempo todo e o trabalho dessas pessoas todas. Tudo bemsonharcomoinfinito,masdeveríamoslevarasériooqueéhumanamentepossível.Senossoobjetivoprincipaléfazerindividualmenteumarevoluçãona ciência ou no conhecimento, estamos fadados ao fracasso. Melhor sededicaraosobjetivosdaciêncianormal:fazerumbomtrabalhoqueoutrospossamusare,assim,aumentaroconhecimentoeacompreensão. Jáquepodemos alcançar essas coisas em nossas pesquisas e textos, não noscondenemosaofracassovisandoaoimpossível.Umestudiosopodetentartrabalharisoladoesemoauxíliodosoutros,

como os chamados artistas primitivos, que fazempinturas e construçõessemrecorreranenhumatradiçãodomeioemquetrabalham.Estesartistascostumamproduzirtrabalhosextremamenteexcêntricos,masquetambémestão livres das restrições impostas pelas maneiras usuais de trabalhar.Essaliberdadediantedasrestriçõesorganizacionaisàsvezespermitequeos artistas primitivos produzam obras que despertam o respeito de ummundoartísticoestabelecidoe,àsvezes,atépodemserabsorvidasdentrodatradiçãodomundodaarte.Adialéticaentrerestriçãoeoportunidade,ilustrada pelo artista primitivo, afeta todos nós ao escrevermos nossasteses,artigoselivros.Essadialéticasugereduasperguntas:comopodemosusar a bibliografia de uma maneira eficiente? Como a bibliografia nosestorvaenosimpededefazeronossomelhor?Existemmaneiraseficientesdeusarabibliografia?Claro.Paracomeçar,

osacadêmicosprecisamdizeralgodenovo,ligandooquedizemaoquejáfoidito,e issoprecisaserfeitodeumamaneiraqueaspessoasentendamqualéoponto importante.Precisamdizeralgoque tragapelomenosummínimodenovidade.Emboraasciênciasempíricassedeclaremfiéisàideiade repetição dos resultados, não é isso que buscam. Ao mesmo tempo,quando você se aproxima de uma originalidade total, a quantidade depessoas que vão se interessar será cada vez menor. Todos estãointeressados nos temas que as pessoas estudam e desenvolvem há anos,tantoporqueostemassãodegrandepertinênciageraleconstante(porqueas pessoas se suicidam?), quanto porque vêm sendo estudados faz tantotempo que criaram o tipo de quebra-cabeça científico que Kuhn (1962)identificoucomociêncianormal(tem-seumexemplodissonabibliografiareferenteàteoriadosuicídiodeDurkheim).Acontribuiçãoacadêmicaidealéaquefazosleitoresexclamarem:“Issoéinteressante!”ComomesugeriuMichaelSchudson,éexatamenteassimqueosestudantesdevemaprendera ligar seus trabalhos à bibliografia, a situar seus resultados no contextodas teorias aceitas onde antes pareciam improváveis (ver Davis 1971 e

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Polya1954).Comentei mais acima que utilizo o artigo de Stinchcombe para

exemplificar o que julgo ser uma maneira melhor de usar o que outrosfizeram.Eisoquequerodizer. Imaginequevocêestáfazendoumprojetode carpintaria, talvez construindo uma mesa. Já fez o desenho e cortoualgumas partes. Ainda bem, não precisa fazer sozinho todas as partes damesa. Algumas têm formatos e tamanhos padronizados – 60 × 120 cm,digamos–disponíveisemqualquermadeireira.Outrasjáforamprojetadasefeitasporoutraspessoas–pernastorneadasepuxadoresdegaveta.Vocêsó precisa encaixá-las nos lugares que reservou para elas, sabendo queestavam disponíveis no mercado. Esta é a melhor maneira de usar abibliografia.Vocêquerconstruirumargumento,nãoumamesa.Umapartedo argumento vocêmesmo criou, talvez sebaseando emnovosdadosouinformaçõesquecoletou.Masnãoprecisa inventaracoisa inteira.Outraspessoas já trabalharam em seu problema ou em problemas relacionadoscomeleeconstruíramalgumasdaspeçasquelhesãonecessárias.Vocêsóprecisaencaixá-lasno lugarcerto.Comoocarpinteiro,vocêdeixaespaço,aomontarsuapartepessoaldoargumento,paraasoutraspartesquesabequepodeconseguirjáprontas.Ouseja,éoquevocêfazsesouberqueelasestãodisponíveisparauso.Eestaéumadasboasrazõesparaconhecerabibliografia: saber quais peças estão disponíveis e não perder tempofazendooquejáfoifeito.Eisumexemplo.Quandoeuestavatrabalhandonateoriadodesvio[que

acabou saindo emOutsiders (1963)], eu queria sustentar que, quando osoutrosrotulavamalguémcomodesviante,essa identificaçãomuitasvezessetornavaacoisamais importantenapessoarotulada.Eupodiaelaboraruma teoria para explicar como isso acontecia, mas não precisei. EverettHughes(1971,p.141-50)jádesenvolveraumateoriadescrevendocomoosstatus criam uma aura de “características de status auxiliares”, de modoque, por exemplo, esperamos que um padre católico americano seja“irlandês, atlético e um bom sujeito que tem dificuldade em refrear asimprecaçõesempresençadomalepodedarumsoconacaradealguémseaobradoSenhorassimoexigir”.Ou,parapegarumexemplomais sério,embora a única coisa necessária para exercer a medicina seja umaautorizaçãooficial,normalmenteesperamosqueosmédicossejamhomensbrancos protestantes de velha cepa americana. Hughes sentia especialinteressepela interseçãode raçaeposiçãoprofissionale, aodesenvolverseuargumento,fezaseguinteobservação:

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O pertencimento à raça negra, como é definida pela lei ou pelos costumes americanos, pode serchamadode traço principal determinante do status. Tende a prevalecer, namaioria das situaçõescruciais,sobrequalqueroutracaracterísticaquepossacorreremsentidocontrário.Masaposiçãoprofissional também é uma característica forte – mais nas relações específicas do exercícioprofissional,menosnointercursogeraldaspessoas.(p.147,grifomeu)

A ideia de um traço principal determinante do status, que tomaprecedêncianaidentificaçãosocialdapessoa,eraapenasumaobservaçãolateral no artigo de Hughes. Se eu fosse escrever um artigo chamado “OpensamentosociológicodeEverettC.Hughes”,nãodedicariamuitotempoaela.Mas,aoelaborarminhateoria,euquisexplorarprecisamentecomouma característica desonrosa de status, por exemplo, a dependência dedrogas,podiaprejudicaroutrosstatusrespeitáveis–gênio,padre,médico,o que fosse – que talvez fossem tidos como capazes de neutralizá-la.Hughes queria falar comoo status de negro prevalecia sobre o status demédico.Euqueriafalarcomoostatusdeviciadoprevaleciasobreostatusdefilhooumarido,demodoqueospaisouocônjugetrancafiavamasjoiasepratariasdacasaquandooqueridotoxicômanodafamíliachegasseparajantar. Eu queria falar sobre o que dizia umpersonagem emAcidadedequatroportas,deDorisLessing,aocomentarquenãoseimportavaemsertomada como esquizofrênica, mas não gostava que as pessoas achassemqueerasóissooqueelaera.A linguagem de Hughes se encaixa perfeitamente em meu caso. Não

precisei inventar o conceito; ele o inventaraparamim.Assim, emvezdecriarmaisumnovotermosociológicodesnecessário,citeiHughesefuiemfrente,parautilizarsuaideiamaisafundodoqueeletinhafeitonoartigodeondeatirei.Damesmaforma,nãoprecisei levantarosváriosusosdosclássicos.Stinchcombelevantara.Preciseiapenascitareresumir.Essa maneira de trabalhar é plagiar ou não ser original? Não creio,

embora o medo de tais rotulações leve muita gente a tentativasdesesperadasdepensarnovosconceitos.Seprecisoda ideiaparaamesaqueestouconstruindo,voupegá-la.Amesacontinuaaserminha,mesmoquealgumaspartessejampré-fabricadas.Naverdade,estoutãoacostumadoatrabalharassimquevivoreunindo

essaspartespré-fabricadasparausaremfuturosargumentos.Grandepartedeminhasleiturasseregepelabuscadessesmódulosdegrandeutilidade.Àsvezesseiqueprecisodeumaparteteóricaespecíficaeatéfaçoideiadeondepossoencontrá-la(muitasvezesgraçasàminhaformaçãoteóricanapós-graduação,para fazerumelogioaalgoque tantasvezespareçoestardepreciando).Quandoescreviminha tese sobreosprofessoresdoensino

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públicodeChicago,encontreimódulosquemeeramnecessáriosnostextosdesociólogosclássicoscomoGeorgSimmeleMaxWeber.Aodiscutircomoosprofessoresesperavamqueosdiretoresdasescolasficassemdoseuladoemqualquer altercação comumaluno,quaisquerque fossemos fatosdaocorrência, encontrei uma descrição geral da classe a que pertencia essefenômeno no ensaio de Simmel sobre superioridade e subordinação: “Aposição do subordinado em relação a seu superior é favorável se esteúltimo,porsuavez,estásubordinadoaumaautoridadeaindamaisacima,naqualaqueleprimeiroencontraapoio”(Simmel1950,p.235).Eutambémqueriaargumentarqueodesejodopessoaldaescolaemmanterospaiseopúblicoemgeralafastadosdosassuntosescolareseraumcasoespecíficodeumfenômenoimportanteemtodosostiposdeorganizações.EncontreiessemóduloemMaxWeber:“Aadministraçãoburocráticasempretendeaser uma administração de ‘sessões secretas’; até onde lhe é possível, elaocultaseusaberesuaaçãoacríticas.…[A]tendênciaaosigiloemcertoscamposadministrativosseguesuanaturezamaterial:emtodosos lugaresondeosinteressesdepoderdaestruturadominanteemrelaçãoaoexteriorestãoemjogo…encontramososigilo”(GertheMills1946,p.233).Por outro lado, eu não sabia que precisava domódulo seguinte até o

momentoemqueo encontrei, e aínãopudepassar semele.Nãoveiodenenhumdosclássicosconvencionalmenteconsagrados,emboraotrabalhoondeeleseencontrasejaexcelenteemuitoelegante.WillardWallerajudouamimeameusleitoresaentenderporqueasescolastinhamumproblemadedisciplina,dizendo:“Professorealunoseconfrontamnaescolacomumconflito originário de desejos, e, por mais que esse conflito possa serreduzido em volume ou por mais que possa ser ocultado, ainda assimpermanece”(Waller1932,p.197).Tambémreúnomódulossempropósitonomomento,masparaosquais

minhaintuiçãomedizquealgumahoraencontrareiuso.Eisalgumasideiasque compilei recentemente, na expectativa de encontrar algum dia umlugarparaelasemminhasreflexõesemeusescritos:aideiadeRaymondeMoulin (1967) de que, nas obras de arte, o valor estético e o valoreconômicoestãotãointimamenterelacionadosquechegamaseramesmacoisa, e a ideia de Bruno Latour (1983, 1984) de que as invençõescientíficas criam novas forças políticas, como o trabalho de Pasteur emmicrobiologia criouao introduziromicróbio comoator social. Possonãousaressas ideiasemsua formaoriginal.Posso transformá-lasa talpontoqueseuscriadoresnãoreconheceriamounãoaprovariam,einterpretá-lasde uma maneira que os estudiosos desses pensadores considerariam

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incorreta. Provavelmente vou usá-las em contextos muito diferentesdaqueles em que foram propostas de início, sem dar o devido peso àsexegesesteóricasqueseempenhamemdescobrirossignificadoscentraispretendidosporseusinventores.Mastenho-ascomigo,prontoparautilizá-lasquandofizerminhasobservaçõesoucomeçaraescrever.Serámaisfácilusá-las,claro,seastiveremmentedurantetodoessetempo.Mastambémpossodescobrirquejátinhaemmenteumaideiaparecida,apenasnãotãoclara,equeLatour,MoulinouWallerrealizarampormimaárduatarefadeelucidá-la.Agradeço,reconheço-acomopartedotrabalhocolaborativodoconhecimento, cito e dou as respectivas referências nos devidos lugares.Meu trabalho pode ficar parecendo uma colcha de retalhos. Quando issoacontece, eu me consolo pensando no exemplo de Walter Benjamin, ohomemdeletrasjudeu-alemãocujosmétodosHannahArendtdescreveudaseguintemaneira:

DesdeoensaiosobreGoethe,ascitaçõesestãonocentrode todosos trabalhosdeBenjamin.Essepróprio fatodiferencia seus escritosde todas as outras espéciesde trabalhos acadêmicos, onde afunçãodascitaçõeséverificaredocumentaropiniões,eporissopodemserrelegadasemsegurançapara as Notas. … O trabalho principal [para Benjamin] consistia em destacar fragmentos de seucontextoecompô-losnumnovoarranjo,detalformaqueseilustravammutuamenteeeramcapazesdeprovarsuaraisond’êtrenumestadodelivreflutuação,porassimdizer.Eradefinitivamenteumaespéciedemontagemsurrealista.(Arendt1969,p.47)

Esse é o lado bom da bibliografia. O lado ruim é que dar demasiadaatençãoaelapodedeformaroargumentoquevocêquerdefender.Suponhaqueexisteumaverdadeira bibliografia sobre seu tema, resultadodeanosde ciência normal ou do que, por extensão, podemos chamar deconhecimento acadêmico normal. Todos os que trabalham com o temaconcordamsobreostiposdeperguntasquedevemserfeitaseostiposderespostasquepodemseraceitas.Sevocêquiserescreversobreotemaoumesmo usar aquele assunto como material para um novo tema,provavelmente terá de lidar com a antiga abordagem, mesmo que aconsideretotalmentealheiaaseusinteresses.Selevardemasiadoasérioaantigaabordagem,podedeformaroargumentoquequerdesenvolver,podedistorcê-loafimdeencaixá-lodentrodaabordagemdominante.Oqueentendopordistorceroargumentoéoseguinte.Oquevocêquer

dizer temuma certa lógicaquederivado encadeamentode escolhasquevocêfezenquantodesenvolviaseutrabalho.Sealógicadeseuargumentoéigual à lógica da abordagem dominante daquele tema, você não teráproblema nenhum.Mas suponha que não sejam iguais. O que você querdizerpartedepremissasdiferentes,levantaquestõesdiferentes,reconhece

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a adequação de outro tipo de resposta. Quando você tenta cotejar aabordagem dominante com esse material, começa a traduzir seuargumento nos termos daquela abordagem. Seu argumento não fará omesmo sentido que fazia usando seus próprios termos; vai soar fraco,desconjuntado, ad hoc. Não tem como mostrar seu pleno desempenhojogandonocampodeumoponente.Masessaformulaçãonãoéapropriada,poisoquesetemnãoéumadisputaentreabordagens,afinal,esimabuscadeumaboamaneiradeentenderomundo.Oentendimentoquevocêtentatransmitir perderá sua coerência se for colocadonos termosnascidos deoutroentendimentodiferente.Se, por outro lado, você traduzir o argumento dominante em seus

próprios termos, não terá um molde adequado, pelas mesmas razões.Quandovocêtranspõeumproblemadeumtipodeanáliseparaoutro,háuma boa probabilidade de que as abordagens sejam incomensuráveis,como sugeriu Kuhn (1962). Na medida em que levantam questõesdiferentes,asabordagenstêmmuitopoucoaverumacomaoutra.Nãohánadaparatraduzir.Simplesmenteestãofalandodecoisasdiferentes.Abibliografia temavantagemdahegemonia ideológica,comoàsvezes

se diz, sobre você. Se são os autores que dominam aquele território, aabordagemdelesparecenaturalerazoável,enquantoasuaabordagemháde parecer estranha e desarrazoada. A ideologia deles controla como osleitores pensam sobre aquele tema. Em decorrência disso, você terá deexplicarporquenãofezaquelasperguntasenãoteveaquelasrespostas.Osdefensores do argumento dominante não precisam explicar suaincapacidade de olhar as coisas da maneira como você olha. (Latour eBastide1983tratamdesseproblemanasociologiadaciência.)Meu trabalho sobre o desvio me ensinou essa lição do jeito difícil.

Quando comecei a estudar o uso da maconha em 1951, a perguntaideologicamentedominante, a únicaperguntaque valia a pena examinar,era: “Porqueaspessoas fazemumacoisaesquisitadessas?”, eamaneiraideologicamente preferida de responder a ela era apontar um traçopsicológicoouumatributosocialquediferenciavaaspessoasqueusavammaconhadasquenãousavam.Apremissa subjacente eraqueaspessoas“normais”, que não tinham o estigma causal diferenciador que vocêesperava descobrir, não fariam nada tão excêntrico. Parti de outrapremissa: a de que as pessoas “normais” fariam praticamente qualquercoisaseascircunstânciasfossemadequadas.Issosignificavaquevocêteriade descobrir quais eram as situações e os processos que levavam aspessoasamudardeopiniãosobreessaatividadeea fazeralgoqueantes

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nãofariam.As duasmaneiras de investigar o uso demaconhanão são totalmente

divergentes.Épossívelfazê-lasconvergirefoioquefizquandopubliqueiomaterial em1953: fiz a convergência.Mostrei que os usuários passavamporumprocessoderedefiniçãodaexperiênciacomdrogasqueoslevavaaencará-lasdeoutramaneira. Sociólogos,psicólogoseoutros interessadosno uso de drogas consideraram essa resposta interessante. Ela ajudou adesencadear uma batelada de estudos examinando como as pessoas setornavam tal ou tal tipo de desviante, basicamente tendo comopremissaqueerampessoasnormaisquehaviampassadoporalgumasexperiênciasdiferentes. Bom, você pode perguntar: qual o problema com essaestratégia?Oproblema,equesóvimaperceberanosdepois,équeminhaansiedade

em mostrar que essa bibliografia (dominada por psiquiatras ecriminologistas) estava erradame levou a ignorar qual era o verdadeirotema de minha pesquisa. Eu tinha tropeçado numa questão muito maisampla e mais interessante, que simplesmente ignorei: como as pessoasaprendem a definir suas experiências interiores? Essa pergunta leva aexaminarcomoaspessoasdefinemtodosostiposdeestadosinteriores,enão apenas as experiências comdrogas. Como as pessoas sabemquandoestão com fome? Essa pergunta tornou-se bastante interessante para oscientistasqueestudamaobesidade.Comoaspessoassabemquandoestãocompouco fôlego, ou que osmovimentos peristálticos estão normais, ouqualqueroutracoisaqueosmédicosperguntamaofazerumexameclínico?Essasperguntas interessamaossociólogosdamedicina.Comoaspessoassabemquando estão “loucas”?Olhando para trás, penso quemeu estudoteria dado uma contribuição maior se eu o tivesse orientado para essasperguntas.Masahegemoniaideológicadamaneiraestabelecidadeestudarasdrogasmevenceu.Não sei como as pessoas podem saber quando estão deixando que a

bibliografiadeforme seus argumentos.Éodilema clássicodeestarpresonascategoriasdotempoedoespaçoemquevocêseencontra.Oquevocêpode fazer é reconhecer a ideologia dominante (como fiz na época, emrelação ao consumo de drogas), localizar seu componente ideológico etentar encontrar uma posição científica mais neutra em relação aoproblema.Vocêsabequeestánocaminhocertoquandolhedizemqueestánocaminhoerrado.Isso é um pouco exagerado, claro. Então tudo o que diverge da

abordagemdominanteestácerto?Não.Masumestudiososériodeveriater

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como hábito examinar outrasmaneiras de falar sobre omesmo tema. Asensaçãode não conseguir formular o que você quer dizer na linguagemque está usando é um alerta de que a bibliografia está pesando demais.Pode levarmuito tempoatédescobrir que isso aconteceu comvocê, se équesechegaadescobrir.Sóvimeuerronoestudosobreamaconhaquinzeanosdepois (veradiscussãoemBecker1967e1974).Useabibliografia,nãodeixequeelaouse.

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9. Usandoocomputadorparaescrever

Em1986,deiaoCapítulo9destelivrootítulode“Desgasteeprocessadordetexto”.Abordeiaexperiênciadeusarocomputadorparaescrever,coisaquenaépocaerarelativamentenova.Haviamuitagente fazendo issoepareciaqueacoisaiapegar.Mashaviamuitasesperançasetemoresirrealistassobreo assunto. Fui um adepto relativamente “precoce”. Alguns sociólogosquantitativos tinham se acostumado a trabalhar com computador ao lidarcom grandes volumes de dados numéricos, mas praticamente nenhumcientista social que fazia entrevistas e pesquisas de campo adotara aferramenta, tão identificada com estilos de trabalho “estatísticos”. Tive asorte de contar com um guru, Andy Gordon, colega no corpo docente daNorthwestern,quehaviatrabalhadocomcomputadoresdegrandeportenapós-graduação e estava convencido de que o microcomputador iria trazertodaaquelapotênciaaoalcancedetodososquesedispusessemaencararotrabalho de se familiarizar com ele. Eleme persuadiu, encarei, recebimeuprimeiroApple II e fui fisgadopelo restodavida.Boapartedo capítulode1986 foi escrito quando eu estava entusiasmado com aquela descoberta, ecertamente vai parecer estranho aos leitores que cresceram com taismáquinas.Penseiemdeixarotextocomodocumentohistórico,comtodasassuas referências ultrapassadas a computadores e programas que agora sóexistemnosmuseus,comorecordaçãodaquelestemposimpetuosos,antesdeatualizá-lo.

Desgasteeprocessadoresdetexto(1986)

Eumeperguntoporque aspessoas relutam tanto em reescrever. Pareceóbvioque,sevocênãoacertanaprimeiravez,é fácilconsertardepois. Jáexpusalgumasdasrazõesdessarelutância.Masminhaexperiênciapessoaldeusarocomputadorparaescrever(eoqueoutraspessoasmecontaramsobre suas experiências)memostrou que omero desgaste físico é outracausa importante dessa relutância. Isso me levou a algumas reflexões,

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talvezmenosbaseadasnosfatosdaorganizaçãosocialdoqueoscapítulosanteriores,sobreasimplicaçõesdeescrevercomoatividadefísica.Useiocomputadorparaescreveroartigoqueabreestelivro.Emborano

começo eu tenha ficado um pouco atemorizado com essa primeiraexperiência,logoacheiquedavatãomenostrabalhoescreverassimquemepergunteicomoconseguia fazerantes.Nãosouoúnico.Osprocessadoresdetextofacilitamaredaçãoparaquasetodos,tantoosquetêmproblemaspara escrever quanto os que escreviam com facilidade antes de ter umcomputador (veja Lyman 1984 para um relato baseado na observaçãosistemática). As pessoas que escondem seus primeiros rascunhos, pormedodeviraremmotivodechacotaalheia,têmumgrandeganhograçasàfacilidadeemapagaroqueescrevem.Masporqueosescritoresquenãosepreocupamemvirarmotivodepiadaachammaisfácilusarocomputadorparaescrever?Paramim,éumaquestãodedesgastefísico.Pensamos a escrita como atividade mental, conceitual, lidando com

ideias e emoções. Isso condiz com a distinção tradicional entre trabalhomentaletrabalhofísico,entrecabeçaemão.Aspessoasquetrabalhamcomo intelecto ganhammais, usam roupasmais limpas emoram em bairrosmelhores. Em outras palavras, o trabalho intelectual é uma atividade declassesocialmaiselevadadoqueotrabalhomanualebraçal.Pessoalmente,podemosnãoacreditarnisso,mas,comooutrositensculturais,éalgoque“todomundo sabe” e, portanto, assim funciona a sociedade. É inevitávelsaber que todo mundo pensa assim. Irving Louis Horowitz sintetizou otemaconvencionalmental/braçaldaseguintemaneira:

Existem tipos de pessoas e suas diferenças de natureza. Alguns nascem para dirigir, outros paraseremdirigidos.Aindaque,nateoria,alguémpossasubirdedirigidoparadirigente,napráticaissoéimpossível. Quem trabalha com amente émais importante do que quem trabalha com sua forçafísica.Aoavaliaraimportânciadaspessoas,éprecisodistinguirentrequemconsegueconceitualizare quem não consegue – quem consegue dialetizar e quem não consegue. A base da Academia dePlatãonãoéapenasacondenaçãodademocracia;étambémacriaçãodeumanovaclassedirigentebaseadanumconceitodesabedoriaherdada,eesseconceitoé tãocorrenteagoraquantodoismilanosatrás.(Horowitz1975,p.398-9)

Horowitz tambémobservaque“a lutaentreo intelectualeomanualéessencialmente uma forma simbólica de representar a luta de classes. Éessencialmente uma divisão entre grandes forças disputando recursosescassos”(p.404).Aoaceitarmosasdistinçõesentremanualeintelectual,somoslevadosa

ignoraroaspectofísicodoescrever.Noentanto,ofatodeserumaatividadementalnãosignificaqueaescritaserestrinjaaisso.Comoqualqueroutra

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atividade,elatemumladofísico,eesseladoafetaapartedopensamentomais do que costumamos admitir. Alguns, por exemplo, escrevem aosjorros. Eu também, às vezes, sentando à mesa por oito ou dez horasseguidas, despejando vários milhares de palavras numa maratonainterrompida apenas pelas refeições, pelo café, pelo telefone e pelobanheiro.Issonosensinacomoérápidaaredaçãoemtermosfísicos.Vocênota issopeladornosbraçosenascostasepelosestalosnanucanodiaseguinte.Aconcepçãoconvencionaldaescritafazumadistinçãoentreaparteda

reflexão, que traz prestígio, e a parte física, que não traz. Na linguagemcomum, fazemos essa distinção falando em “escrever” quando nosreferimos à prestigiosa partemental e “datilografar” ou “digitar” quandonosreferimosaoatofísico.Pode-seescreversemdigitar.Muitosescrevemdentro da cabeça; não há como digitar dentro da cabeça. Inversamente,pode-se digitar sem reparar no conteúdo do que se está digitando. JoyCharlton(1983)descreveuocasodeumadatilógrafaquepodiaconversaràvontade sobre um assunto totalmente diferente do material que iadatilografandoaomesmotempo.Adigitação,parafraseandoWittgenstein,é o que sobra da escrita quando você retira a reflexão que geralmentefazemosenquantocompomosotextoamáquina.Aspessoasquevivemdaescrita, porém, normalmente escrevem e digitam ao mesmo tempo, masenfatizamaparteprestigiosadoque fazem,dando-lheonomedeescrita.Eucostumavaimplicarcomamigosacadêmicoschamandode“datilografia”oquefaziaaoescrever.(“Vocêestáescrevendoalgumacoisa?”,“Estou;hojedatilografei seispáginas.”)Usavadepropósitoumtermomaisbaixoparadescrever algo cheio de prestígio. Amesma distinção usual permitia queTrumanCapote insultassevários colegas escritores, descartando-os como“datilógrafos”.Para maiores indicações sobre a natureza física da escrita, pense no

hábito de adotar certos instrumentos de escrita que já comentei. Aspessoas que usam lápis, caneta hidrográfica ou máquina de escrever seacostumamàsensaçãodoobjetousado.Sentem-seimpotentesseprecisamusaruminstrumentodiferente.Pense também no papel que a digitação desempenha nos hábitos de

escritadaspessoas.Qualquerquesejaapreparaçãodosrascunhosiniciais,depois eles precisam ser datilografados, por você ou por outra pessoa, egeralmentemais de uma vez. A versão final destinada aos leitores sériosnãopodeterrasuras,equemreescrevemuitotambémprecisadatilografarasversõesintermediárias.Redigitarosprópriosmanuscritoséumatarefa

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enfadonha e cansativa (embora a maioria aproveite para fazer maiscorreções). Se você passa o trabalho físico para outra pessoa, tem deesperar atédevolvereme aí teráde corrigiros lapsos e erros cometidos.Masprecisaquesejaredigitado,inclusivepormaisoutrarazãofísica.A maioria dos escritores tenta fazer algo caprichado, geralmente sem

sucesso. Você consegue enxergar o que está fazendo se a página estiverlimpa e bem-datilografada. Dá para ler as frases em seguida e fica fácilimaginar o que um leitor entenderá. A página em boa ordem física faz,como num passe de mágica, com que você sinta que seus pensamentostambém têmordem, graças ao capricho formal.Àmedidaqueaumentaomonte com as folhas empilhadas em ordem, ele vai parecendo cada vezmaisumartigoouumlivrocompleto.Reescrever desfaz essa sua ordem. Você remove algumas coisas,

deixandouma linha inteiradeXXX semsignificadoouumrisco raivosoalápis,emlugardaquelepensamentoconcisoeexpressocomclarezaqueerasua intenção. Decide que uma reflexão não fica bem naquele lugar ondevocêpôseestarámelhoremoutro.Assim,vocêrecortaafraseedeixaumalacuna enorme ou um fragmento desconjuntado. Não dá para fazer umabela pilha organizadinha de lacunas e fragmentos. Então, você cola orecorteno lugarondeagoravai ficareconsertao fragmento,paraqueosrestosfiquememordemnapilhadomanuscrito.AsfolhasficamcheiasdeXXX, de lacunas e camadas de papel emendado um no outro. Chega umahoraemquevocêficatãoincomodadocomaquelaconfusãoquedatilografade novo aquela página ou até a droga do texto todo. O que começou tãocaprichadoagoraestá tãorabiscadoeconfusoquenemoautorconseguemaisentenderasflechasemarcações.Essaconfusão,porsuavez,destróioprecáriosensodeordemlógicaeestéticaquevocêqueriapreservar.(VejaumadescriçãosemelhanteemZinsser1983,p.98.)Muitosescritoresincluemaredigitaçãocomopartedarotinaritualque

dá sustentação ao trabalho. Se você reescreve tanto quanto eu, um novomanuscrito recém-datilografado leva a outras revisões. Com a páginalimpa, ficamais fácil ver o que você está dizendo e comopodemudar.Apáginaantiga,repletadeanotações,comamarcaçãodeoutrasreflexõeseoutrasmaneirasdeexpressá-las,deixa-oconfuso.Assim,vocêredigeoutraconstrução no novo manuscrito. Isso acaba levando a mais outraredigitação.Muitosescritorescontinuamcomissopormuitotempo.Redatilografar exige certo esforço físico, não tanto quanto remover a

neve ou pendurar roupas no varal, mas o suficiente para criar certodesgaste,certa inércia.Todoescritorencontraumafrasequedemandaria

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serreescrita,mas,comonãoencontraespaçonapáginaparacolocaranovaversão,simplesmentedeixaporissomesmo.Recortarecolaréaindamaistrabalhoso. Assim, às vezes os escritores não reescrevem, porquedesanimamsódepensarnotrabalhofísicoementalqueissodaria.Escrever em computador elimina essa inércia. Para entender isso,

precisamosterumaintroduçãoaessasmáquinasquenãonosintimide.Ummicrocomputadorouumprocessadordetextonãoéumameramáquinadeescrever,emboratenhaumtecladoevocêdigitecomofarianumamáquinadatilográfica.(“Vocêpagou2mildólaresporumamáquinadeescrever?”)Ummicrocomputador,porém,édiferentedeumamáquinadeescreveremvários aspectos importantes. Ele não faz um registro permanente do quevocê digita. Em vez disso, ele grava temporariamente seu texto na“memória” e também mostra numa tela uma parte do que foi gravado.Depoisquevocêaprendeoscomandos,elemostranatelaqualquerparteregistradaemsuamemória.Comoocomputadornãogravademodopermanenteoquevocêescreve,

você sente menos obrigação na hora de digitar. Pressionando algumasteclas,aideiaquesaiumalformuladasomedatelacomosenuncativesseexistido. Nunca ninguém vai saber a idiotice que você escreveu ou aformulação toscaquevocêusou.Seucestode lixonão ficaabarrotadodepapéis amassados à vista de seus amigos xeretas, que até podem pegaralguma folhaedarumaolhada.Comonem todomundo temesse tipodemedo – eu não tenho, mas alguns amigos meus têm –, a solução dessesproblemasnãoéaprincipalcontribuiçãodocomputador.A grande qualidade do computador é vencer o desgaste físico de

escrever.Reescreverdeixade seruma tarefade riscarumaexpressãoouumafraseeescreveroutranova.Emvezdisso,vocêapaga,“deleta”oquenão quer e “insere” a substituição. Quando quer trocar um parágrafo delugar, nãoprecisa recortar e colarnumaoutra folha.Você “move”parao“armazenamento temporário”, retirando-o do lugar anterior, e então o“escreve” no outro lugar. (“Armazenamento temporário” é o nome dadopeloprogramaqueuso–outrosprogramasusamoutrosnomes,inclusiveo“cortarecolar”,paraamesmaoperação.)Sevocênãogostardojeitocomoficouonovoparágrafo,ésódevolverparaondeestava.Sedecidirmudarumapalavraouumaexpressão,vocêusaorecursode“localizaresubstituirtudo”, disponível na maioria dos programas de processamento de texto,que executam a operação depressa e sem deixar passar nenhumaocorrência.(Umamigomeusemostravabastantecéticoemrelaçãoameuentusiasmo,atéquemencionei“localizaresubstituir”.Elehaviamudadoo

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nome de um personagem em seu romance, que acabou saindo com umasériedeinexplicáveisJohns,quetinhampassadodespercebidosnahoradetrocá-losporJim.)Outrorecursodealgunsprogramasquemeagradamuitoéa“contagem

de palavras”. Dê o comando e descubra quantas palavras você escreveu.Nãosouoúnicoescritorquegostadeseafagarconstantemente,calculando(oudefatocontando)quantaspalavrasjáescrevi(2.146nestecapítulo,atéaqui,sevocêestivercurioso).Algunsescritoresseimpõemumacotadiária.Esserecursolhedizquandovocêalcançousuacota,semachaticefísicadecontaraspáginasoulinhasemultiplicarporsuamédiadepalavras.Tudo isso qualquer adepto de computadores vai lhe dizer e qualquer

novousuáriovaitentarconvencê-lo.Porque,então,escreverestecapítulo?Nós, os proselitistas, apresentamos o processador de texto como uma

coisaidílica.Nãoé.Oscomputadorestambémgeramdesgaste.Apiorcoisa(aprimeiracoisaqueosnãousuáriosdizemtemer)é“perder”algoqueseescreveu.Issoacontecequando“arede”deumauniversidade“cai”eperdetudooque tinhanamemória.Vocêmesmopodeperderoqueacaboudefazer, se não entender direito os comandos da máquina e der algumaordem que faz o computador apagar o “arquivo” em que estavatrabalhando.Osescritores seapegammuitoaosmais ínfimos fragmentosdeseutextoe,crentesdequejamaisconseguirãorecuperaraquelamaneiraperfeita de dizer, encaram essas perdas como tragédias irreparáveis.Provavelmentesesentemassimporquesabemcomoéprecárioocontroledelessobreessespensamentosfugidios.Assim,oprejuízoéreal,eterdesepreocupar com tais possibilidades é um preço alto a se pagar pelacomodidadedeumprocessador.Aspessoasqueescrevemosprogramasdeprocessamentodetexto–as

instruçõesparaqueocomputador faça todasessascoisasmaravilhosas–raramente escrevem qualquer outra coisa. Se escrevessem, seriamescritores, não programadores. Então, as instruções que lhe dizem comousarumprogramavêmescritasna linguagemdaáreadeprogramação, enão da área de composição, e muitas vezes os usuários leigos sentemdificuldade em segui-las. O computador diz coisas como “COMANDO NÃOPERMITIDO”ou“ERRO–SLOTEDRIVENÃORESPONDEM”.Atéseacostumarcomessalinguagem,talvezvocêestranheumpouco.Pior ainda, e mais relacionado com nosso tema, algumas coisas que

queremosfazernãoficammaisfáceisnumprocessadordetexto,epodemficar até mais difíceis se comparadas com estilete e fita adesiva. Oscomputadoresarmazenamoquedigitamosem“arquivos”de“discos”,edá

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umcerto trabalhinho transferirmateriaisdeumarquivoparaooutro, sedescobrirmos um lugar onde aquilo fica melhor, ou salvar o materialquandoocomputadorlhedizqueodiscoestácheio.Usando computador, é rápido produzir muitas versões da mesma

passagem. Se estivessem em papel, provavelmente você ia esquecê-lasdentrodealgumapastaatéque,numdiadedesespero, achassequeumadelaspodiaseraversãomágicacerta.Iareconhecê-lapelaaparência.Numcomputador, não é tão fácil examinar todas as versõesdeumapassagemsalva.Aúnicacoisaquepoderáservistaéumalistadenomesdearquivos,e, logodepoisdeinventaressesnomes,elesnãovãotermuitosignificadoparavocê.OAppleemqueescreviestelivroéclementeepermitenomearosarquivoscomatétrintacaracteres,osuficienteparaqueotítulosejaumpoucomaisdescritivo.Émuitomaisdifícilsaberoquehánumarquivoemmuitosoutroscomputadores,quedãoumlimitedeoitocaracteres.Assim,comocontrapartidadeescrevercomoauxíliodocomputador,talvezvocênão consiga especificar bem os arquivos e pode ficar se debatendo naconfusãodeummontedeversõesaparentementeiguaisdamesmacoisa.E você precisa aprender todas as palavras que coloquei entre aspas e

todos os comandos que mencionei de maneira tão informal. Muitosusuáriosempotencialdizemoqueesperamqueumcomputadorfaçaporelesassim:“Vocêsóprecisaapertarumateclaeelevai…”Ah,não,nãovai!Você precisa de tempo para estudar e dominar aquele vocabulário, e asideiasemodosdeolharomundoqueestãoportrásdesuaterminologia.Quemhaveriadecriticá-losevocênãoquiserdedicartodoessetempo?Eumesmonãoteriameempenhadosetivessealgomelhorparafazer.Maseutinhaacabadodeconcluirumlivroextensoe,assim,dispunhadeumalgumtempoemmãos:odiabologoencontrouserventiaparaelas.Nenhum proselitista me contou a maior vantagem de escrever num

computador: que fica muito mais fácil pensar ao escrever (da maneiradescritapelospsicólogos cognitivos interessadosemescrita,quecitei emcapítulos anteriores). Normalmente, como disse, escrevo um primeirorascunhonumadesordemquasedeliberada–qualquercoisaquemevenhaàcabeça–,esperandodescobrirosprincipaistemasquequerotrabalharaoveroquesainaquelefluxodesimpedido.Costumavacontinuarescrevendoum segundo rascunho, que reunia aqueles temas numa ordem mais oumenos lógica. Aí – no terceiro rascunho – eu cortava palavras, juntavafrases, reformulavao torneiodas ideiase, enquanto isso, tinhauma ideiaainda mais clara do que pretendia dizer. Era isso que deixava minhaspáginas tãobagunçadase levavaa tanto cortare colar.Levavamesesaté

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chegaraumaversãofinal.Agoralevamenostempo.Quandoescrevo,começoaveraestruturaque

meu textoestá tomando. “Ah,entãoé issooquequerodizer!”Emvezdearquivaraideiaparaalgumfuturouso,voltoimediatamenteparaumlugaradequado e começo a inserir aquela estrutura no que estou escrevendo.Sem recortar, sem colar. É muito mais fácil e por isso me dou a essetrabalho. Não interrompo o fluxo do pensamento para fazer tarefasmanuais.Nahoraemqueimprimominhaprimeira“versãobruta”,tenhooque,antesdocomputador,seriaminhaterceiraouquartaversão.Amudançaemmeushábitos ilustraumacoisasobreaqualaspessoas

que escrevem sobre computadores costumam mentir sistematicamente.Mentir talvez seja uma palavra forte demais, e mistificar também dá aimpressão de que a falsa imagem seria mais intencional do queprovavelmenteé.Mas,defato,essafalsaimagemdificultapercebercomoérealmente trabalhar com computador. Ela esconde uma coisa essencial,qualseja,que,paraaproveitarosbenefíciosdeseucomputador,vocêterádemudarbastante suamaneiradepensar e se tornarumaficionadoporcomputadorescomojamaisimaginououpretendeuser.Todososartigossobre“ComoComprarumComputador”dãoomesmo

conselho.Vejaoquevocêquerfazercomseucomputador:escrevercartasoulivros,controlarascontas,fazerprevisõesorçamentárias,jogar…Entãoprocure o software. Veja quais programas fazem exatamente o que vocêquer.Entãocompreocomputadorquerodeessesprogramas.O conselho parece sensato. Mas não há como segui-lo, por razões

intrínsecas aos computadores e aos nossos motivos para usá-los. Oconselho pressupõe que você já sabe exatamente o que quer fazer. Vocêquerescreversuateseoucontrolarseutalãodecheques.Maslembre,vocêjá faz essas coisas, usando rotinas razoavelmente satisfatórias sem ocomputador. O conselho na revista lhe diz que você pode encontrar umprogramaquelhepermitiráfazerexatamenteoquevocêjáestáfazendo.Issoémentiraporquevocênãovaipoderfazerascoisasexatamenteda

mesma maneira. Se você está acostumado a escrever seus artigosacadêmicos em blocos de papel pautado amarelo com uma canetahidrográficaverde,éumapena.Nãopoderáfazerissonumcomputador.Sevocêgostadefazerseustrabalhosdeescolaescrevendoemtirasdepapelecolando com fita adesiva, também não vai poder fazer isso. Para usar ocomputador,terádeaprenderafazerdeoutramaneiraaquiloqueaquelasoutrasformasdetrabalharfaziamparavocê.Masoqueocomputadorlheofereceéumamaneiraaquevocênãoestá

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acostumado.Éclaroquevocêestácomprandoocomputadorporquequerescrever (ou controlar o talão de cheques) de uma outra maneira, maisvantajosa. Mas isso significa renunciar às maneiras antigas. Algumaspessoas resistem a isso. Perguntam desconfiadas se poderão reescrever,mas também salvar a versão anterior porque gostam dela, ou se aindapodem manter pastas cheias de pedaços de papel com anotações, ouqualquer outro ritual a que se apegaram. E por que se incomodar comcomandos, com uma nova linguagem, com os riscos de perder o queescreveu,seéparafazerapenasoquesemprefez?Dessamaneiravocênãoaproveitaasvantagensdocomputador.Bom,entãovocêquerfazeralgumacoisanova,eosartigoscontinuama

mentir,dizendoquevocêsóprecisaencontraroprogramaquefaçaaquelacoisa nova. Mas você não tem como seguir esse conselho, pois não temcomosaberoquequerfazerenquantonãoaprenderumanovamaneiradetrabalharecomeçarapensarcomoocomputador.Quandoissoacontecer,nãovaimaisquerer escrever comoantes.Vaiquerer fazer algoquevocênão sabia que podia ser feito. Vai trabalhar e pensar deoutrasmaneirasquedesconheceeque,nocomeço,vãolheparecerestranhas.Depoisissosetornaumacoisanatural.TodaanoveladeWilliamZinsserparaaprenderausar o comando deDelete em seu computador – aprendendo primeiro aapagar letras, depois palavras, e então a usar a função Localizar paraapagartodasasocorrênciasdeumamarcação–descrevebemofenômeno(Zinsser1983,p.71-5).Cadapessoausademaneiradiferenteoqueocomputadoroferece.Eu,

por exemplo, aprendi a pensar em módulos, a lidar ainda mais compequenas unidades de material que posso reunir e separar de váriasmaneiras, para ver como fica o resultado. Também corrijomuito na tela,pulando a etapa de imprimir uma versão e trabalhar no texto impresso,prática que muitos adotam. Isso me permite examinar cinco ou seismaneirasdiferentesdedizeramesmacoisa,antesdemedecidirporumadelas.Possoatéalinhá-lastodasnatela,paracomparar.Talvez não seja uma grande vantagem poder fazer tudo isso. Uma

terceira mentira é que o computador vai lhe poupar tempo. Não, nãopoupa, porque você aprende a pensar comoo computador. Você poderiapoupartemposeaúnicacoisaquefizessenocomputadorfosseaquiloquetinha emmente quando o comprou. Sem dúvida conseguirá digitar suascartasmaisrápido,commenoserros,seaúnicacoisaquefizerfordigitarcartas.Masaínãoestaráaproveitandomuitoocomputador.Seforsóparadigitar um poucomais rápido algumas cartas sem erro, não compensa o

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temponemodinheiro.Eéaíquevocêcomeçaapensar.Querfazermais,ealgumas coisas se apresentamprontamente.Mas, para fazer essas outrascoisas,vocêvaigastartodootempoquepoupounatarefaoriginal,emaisalgum.Quando comecei a me interessar por computadores, minha filha, que

tiveraaulasdeinformáticanaescola,meavisouqueeuiaficardoido.Porquê? Porque gosto de quebra-cabeças, e o computador é uma fonteinesgotável.Sempreépossívelimaginaralgoqueaindanãoestádisponível,mas que parece o tipo de coisa que um computador conseguiria fazer.Schiacchi (1981) descreve um laboratório cheio de cientistas físicosobstinados que passaram meses tentando que o programa deprocessamento de textos do computador central formatasse melhor osrelatórios.Nãotinhanadaavercomoconteúdodosrelatórios,apenascoma maneira como ficavam na página digitada. Eles queriam que ocomputador fizesse aquilo que qualquer datilógrafo competente faria deolhosfechados.Nãosendoespecialistasemcomputação,levaramumbomtempoatéresolveroproblemae,segundoeles,tiveramdefazê-loporqueprecisavamderelatórios“formatadosprofissionalmente”.Minhabobagemequivalentefoiumamaluquiceaindamaior.Nasceuda

proliferaçãodeequipamentos eprogramas compatíveis comoApplequeeu usava. Como muitos fabricantes produzem impressoras e cartões deinterfacedeimpressoracompatíveiscomumApple,bemcomoprogramasde processamento de texto que rodam no Apple, não existe nenhummanualde instruçõesqueexpliqueoquevocê temde fazercomtodasascombinações de equipamentos que queira usar. (Zinsser escapou a essastentaçõesficandocomaIBM.)Alémdisso,osAppletêmafamamerecidadepoderem criar imagens gráficas. Isso significa que podem criar váriasfontes e tipos, alémdas já presentes em todas as impressoras, e assim acomplicaçãoaumenta.Porexemplo,euqueriaimprimiroqueescrevicommeu processador de texto usando aqueles tipos. Se eu trabalhasse comestudosbíblicosoucomosclássicos,teriaalgumsentidoavontadeardentede imprimir meu texto em grego e hebraico. Como não conheciaabsolutamentenadadegregoemeuhebraico se resumiaaoquepreciseiestudar emmeus breves preparativos para o bar mitzvah, era apenas avontade de resolver um quebra-cabeça. Depois de importunar à toa aspessoasquemevenderamoprocessadordetexto,finalmenteencontreiumanúncio de umprogramaque imprimiriameus textos emqualquer fonteque eu quisesse. Fiz algumas experiências, aprendi a usar várias funçõesque não usava antes, consegui que funcionasse e fiquei muito contente.

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Escrevicartasatodososmeusamigosusandodezfontesdiferentes.Achoque passei pelo menos umas quinze ou vinte horas resolvendo esseproblema.Mas,depoisqueaprendi,jánãopareciatãointeressante.Decidique o que eu queria mesmo era imprimir, bem no meio do meu texto,pequenas imagens que eu conseguisse fazer com um programa gráfico.(MeunovoMacintosh facilitoumuitoesta tarefa; agoraprecisoencontrarummotivo para fazer isso.)Agora levomenos tempopara escrever,masgastootempoeconomizadocomnovoscaprichos.Depois que comecei a pensar como um computador, descobri outras

coisas para aprender e fazer que não eram tão frívolas. Os autores deciênciassociaismantêmosdadosemvárias formas:anotaçõesde leitura,notas de campo, resumos dos resultados, ideias para organizar osmateriais, memorandos disso e daquilo. Todo acadêmico precisa de umsistemaparaorganizartodaessapapelada,eosprogramasdecomputadorchamadosde“administradoresdearquivo”ou“basesdedados”fazemalgoparecido. Infelizmente, os principais usuários das bases de dados sãoempresas,queusamoprogramaparamanterumregistrodosclientes,dosestoques,dospedidosedasdespesas. Jáosacadêmicosprecisamdealgomais flexível, algo que não seja concebido para gerir uma quantidadeenorme de materiais muito semelhantes, não tão talhado para questõesfinanceiras,maisvoltadoparaorganizarideiasemandamentodoqueparaclassificar listas de correspondência por código postal. Esses programasexistem, mas é preciso desencavá-los entre a montanha de materiaisconcorrentes e ver se consegueusá-losparaoquepretende. Fiz issoporconta própria e fiquei contente com o resultado,mas dá para ver que odesenvolvimento de tal sistema será algo que os acadêmicos vão quererfazer por conta própria, gastando um tempo considerável e um grandeesforçoparaconceberalternativasaoshábitosanteriores.(Becker,Gordone LeBailly 1984 discutem os critérios para lidar com notas de campo emateriaissimilaresemsistemascomputadorizados.)Assim, com ummicrocomputador, provavelmente você vai sentir que

seutrabalhoficoumaisfácil,masnãoseráomesmotrabalhoetalvezvocênãoeconomizenenhumminutodeseutempo.Eissosemfalardosjogos!

Oquevocêpodefazercomumcomputador(2007)

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Vinte anos depois, tudomudou – novasmáquinas, novos programas, novaspossibilidades.Osusuáriosdecomputador,quenãosãomaisnovosadeptosque,hesitantesetemerosos,abandonaramamáquinadeescrever,cresceramnuma nova geração que vê o computador como ferramenta padrão paraqualquer coisa relacionada com números e palavras. Os usuários atuaisconsideram a coisa mais normal do mundo o recurso de copiar-colar, apesquisa de referências e citações com funções de busca e pela Internet, aeliminaçãodeerrosdegrafiaedigitaçãocomocorretorortográfico,oenviodeartigosemrascunhoeversãofinalparaqualquerlugardomundopore-mail.Claro!

E, igualmente claro, nada mudou. O computador continua a ser umamáquinaassustadora, semi-incompreensível, apesarde todosos esforçosdeautorestécnicossérioseinteligentesparaquepareçaalgosimpleselógico.Alógica ainda é arbitrária, não é algo que você possa raciocinar e dominarsozinho, os comandos (para nem falar das temidas “mensagens de erro”)ainda são misteriosos e insondáveis. Os usuários comuns desconhecem amaioria dos fantásticos recursos alardeados pelos fabricantes, temendo(muitasvezescomrazão)provocarsemquereralgumafalhafataleperdertrabalhos que querem guardar ciosamente. Assim, embora a última seçãoagora pareça quase bizarra, boa parte dela, se vocêmudar alguns nomes,aindaseaplicaaopresente.

Mas algumas dessas novidades simplificam a redação nos moldes querecomendei, e surgiramalgunsnovosperigos.Aquiestãoeles. (Desde2007,ano a ano surgiram novos desenvolvimentos que não examinei aqui, eprovavelmentenemsabiadeles.)

Ultrapassandooslimitesfísicosdopapel

Oscomputadoresnosdispensamdoquesabemosfazercomopapeleumamáquina de escrever. O papel cria limitações físicas, dificultando amudançadetrechosdeumladoparaoutro,obrigandoosautoresaopapelde guardiões de enormes pilhas desorganizadas de notas, citações,reproduçõesefotocópias.Asmáquinasdeescreverselimitamaofereceropequeno conjunto de símbolos e caracteres alfanuméricos no teclado. Oscomputadoresacabamcomtaisrestriçõesenosdãomaiorliberdadeparaorganizaroquequeremosdizernumaformafacilmenteacessível.

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Armazenamentoebusca.Oscomputadoresoferecemmodosmaissimpleseeficientes de fazer o que muitos de nós sempre fizemos: tomar notasaleatóriasedesordenadasearmazená-lasatédescobrirmoscomousá-las.Àsvezes,asnotassãoideiasaserdesenvolvidas,àsvezessãoconjuntosdedados(comoasfichasde7,5×12,5cmquegeraçõesdehistoriadoresvêmusandoparaanotarascoisasqueencontramnosdocumentosestudados).Nãoprecisamdemuitaestrutura,porquesãoamatéria-primacomqueoescritorvaicriarumaestrutura.Éumavirtudequevemacompanhadadeum defeito – nem sempre você consegue encontrar aquilo que sabe queestáaliemalgumlugarnaquelapilhadepapéis.Alguns velhos métodos, que se parecem com os de um computador,

ajudavam a contornar o problema. Você escolhia “palavras-chave” emarcava as fichas de tal forma que conseguia encontrar todas as quetraziamaquelapalavra-chave.Asfichascomoscantosperfuradosserviamexatamenteparaisso:

Antigamente,quandoestavaescrevendominhatesededoutorado…eutinhaumacaixabemgrande,cheiadefichasdeindexação,cadaumacomasnotasdealgumlivroouartigoqueeutivesselido.Nãoeram fichas comuns. Eram avançadíssimas! Para me ajudar a navegar no conjunto de suasassociaçõesmútuas,asfichastinhamburaquinhosnasbeiradas.Emcadaficha,usandoumfuradorespecial, eu faziaum talhonabeirada, comumoumaisorifícios correspondendoauma “palavra-chave” ou ideia tratada naquele livro ou artigo. Para fazer a “busca” das fichas associada adeterminada palavra-chave dentro da caixa, eu enfiava uma agulha de tricô naquele orifício,suspendiaesacudiaasfichas.Todasasfichasquecaíamdaagulhaemcimadamesa(ounochão)continham aquela palavra-chave. Para fazer uma busca E/OU, eu simplesmente repetia oprocedimentocomasfichascaídasouasfichasnaagulha,respectivamente.(Neuberg2006)

Inúmeros aplicativos (descritos, entre outras formas, como“administradoresdeconteúdo”)preservamaliberdadedaficha7,5×12,5semalimitaçãodoformato.Vocêescrevenumespaçoembrancoqualquercoisaqueescreverianaficha.Podevistoriarsuacoleçãodessasfichascomoantigamente,simplesmentefolheandoosregistros.Mas,senãoconsegueselembrar de quase nada sobre a ficha que está procurando, ou se lembratalvezdeapenasumapalavra,umnomeouumadata,ocomputadorpodeprocurar para você. O programa, tendo indexado discretamente todas aspalavras que você escreveu e registrado as fichas anteriores que vocêpreencheu com tais palavras, obedece a um comando simples paraencontrareenfileirarasfichasparavocêinspecionar.Podedescartaroquenãoénecessário,semsepreocuparsevaiatrapalharaordememqueestão.Podesepararoqueencontrounapilhasegundooutroscritérios.Tambémpode incluir com facilidade outros tipos demateriais: gráficos e tabelas,

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fotografias,vídeos,sonsemúsica(cheirosaindanão), tomandoocuidadodeincluirumnúmerodepalavrassuficienteparaqueasfunçõesdebusca(que ainda não reconhecem elementos não verbais) possam encontrar oquevocêestáprocurando.TambémpodeincluirlinksparaitensqueestãoemqualqueroutrapartedeseucomputadorounaInternet.Osaficionadosreconhecerãoquetodosessesprogramassãoversõesde

umabasededadosemformatodefichassimples;defato,osprogramasdebasededadospodematenderàsmesmasfinalidades;apenasnãoparecemtão amigáveis. (Ver Becker, Gordon e LeBailly 1984.) Aqui há uma troca.Alguns programas são concebidos para atender apenas a um conjuntoespecífico de exigências definidas. Outros, mais abertos, podem fazermuitas coisas diferentes que a pessoa queira, com um amplo leque depossibilidades.Oprogramaclássico“cheiodepossibilidades”éaplanilha,umconjuntodecélulascontendonúmerosoufórmulas.Éisso.Elevaifazertudo o que você quiser com aquela fórmula. As versões iniciais eramprojetadas para cálculos financeiros, mas a lógica de fundo foi adaptadaparamuitosoutrosusos,algunsinesperados.Sevocêconseguirencontraroprogramaparagerirtodaasuacoleçãode

dadosverbais, numéricos, gráficos e sonorosdo jeitoquevocêquer, terátodaaliberdade.Senãoconseguir,aindapodeadaptarumdosprogramasmais genéricos a suas necessidades, mas aí vai precisar aprender sobreprogramação,talvezmaisdoquegostaria.

Desenhos. O papel não nos limita tanto quanto pensamos. Em geral aspessoaspensamqueéprecisofazerasanotaçõesearrolarasideiasnumaordemlinear,começandonoaltodapáginaedepoisdescendo,masexistemoutraspossibilidades.Umavez,eumesenteiao ladodeumestudantedepós-graduaçãoque tambémeracartunista,e fiquei surpresoaovercomosuasanotaçõesdapalestraaqueestávamosassistindoiamseaglomerandonopapel.Eleescreveuo títulodapalestranocentrodeuma folhadeseugrande bloco de desenhos e aí foi anotando as ideias em vários outroslugaresdapágina, traçando linhasaquieali, indicandoasconexões,nadalineares,quefaziamsentidoparaele.Aquilomedeu,eaindamedá,umasensaçãodegrandeliberdade,eisso

fica fácil de fazer com alguns aplicativos que não exigem nenhumahabilidade artística. Você põe na tela, onde quiser, vários gráficos dediversosformatos(quadrados,circulares,ovais,àsvezesemformatosquevocê mesmo inventa) e em diversas cores, e usa um título curto para

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identificar as pessoas, as posições ou as etapas do processo que elesrepresentam.Umalinhacheiapodeindicarumaconexãotemporal:XvemantesdeYelevaaZ.Umalinhatracejadapodeindicarumarelaçãocausal:XcausaYeécausadoporZ.Aslinhaspodemindicarrelaçõesdeparentescoou funções organizacionais – qualquer coisa que você queira ou precise.Tudoissoétransmitidonumalinguagemvisualquesecaptarapidamenteefacilitaasdescriçõesmaiscomplicadas.(Umbomexemploéográficodosprocessos de estabilização do desvio à p.94 no Capítulo 3.) Quando vocêclicanasformas,podeaparecerumtextoexplicativo.Oformatododesenhopodecomunicaroquevocêquiser,mesmoquevocêsejaoúnicocapazdeentender.Ésuaferramentadetrabalho,emuitospodemconsiderá-laumaboamaneiradepensar.Vocêtambémpodeusá-laparaexporsuasideiasaterceiros–écomoumaversãodovelhoquadro-negro.

Planejadores [outliners]. Eu nunca fazia um plano geral do que ia dizerantesdeescrever,oqueésensato,emvistademinhainsistênciaemusaraescritaparadescobriroquepenso.Nãotemcomofazerumplanogeralsemestabelecer fisicamente, na superfície de escrita, qual será a estruturadotexto,quenuncaseiqualéantesdecomeçar.Escreverlivrementeéquemedizoqueeupenso.Entãodescobriossoftwaresdeplanejamento,umtipodeaplicativoque

ajuda a organizar o que você está escrevendo numa forma hierárquicaprovisória: você vai criando tópicos, escrevendo textos, arranjando erearranjando os tópicos, mudando a importância e as conexões deles,mexendoàvontadenessaconfusãotoda,comopeçasdeumquebra-cabeça,atéencontrarumamaneiraemquetodosseencaixem.Vocêtemtodasasvantagens de um plano geral, mas nem de longe é algo permanente nopapel.Sóparece.Paraminhageração,“cortarecolar”nãoerametáfora,eraacoisafísica

mesmo. A única diferença era que eu usava durex. Não precisava usar otipodecolacomqueeumemelava inteironaescolaprimária,maspodiajuntarcomfitaadesivaostrechosrecortadosdeumaversãodatilografadaanterior, criando enormes esculturas de papel que depois tinha deredatilografar ou (depois de virar pesquisador e então professor, compessoas que faziam isso paramim) receber o material redatilografado erecomeçar tudo de novo. Depois de muitas repetições, eu encontrava aestruturaadequadaàquiloque,finalmente,eudescobriraquequeriadizer,encerrava essa fase e estava pronto para o copidesque detalhado que

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descrevinoCapítulo4.Ossoftwaresdeplanejamentodocomputadortornaramantiquadoesse

método maçante e demorado. No primeiro tipo de planejador que usei,você criava “tópicos”, frases ou expressões anunciando o texto queesperavaredigirsobreaquilo;escreviaotextoexplicativoedesenvolviaotexto sugerido pelo tópico recém-criado; e, mais importante, mudava ostópicosde lugarcomomouse.Podiatambémescreverprimeirootextoedepoiscriarotópicocorrespondente.Colocavaonovotópicoabaixo,acimaou no mesmo nível do tópico anterior, simplesmente movendo-o paraaquele lugar na tela. Fazendo isso constantemente, dava para ajustar ereajustaraestruturalógicaimplícitanoplanogeral,adequandoaestruturaaotextodeacompanhamentoouadequandootextoàlógica–semcortarecolarnada,nemmesmocomometáforadigitaldaquelevelhosistema.Dito assim, não parece grande coisa. Quer dizer, e daí? Mas esse

procedimentoseligaaomododetrabalharquerecomendeinoCapítulo3econtinuo a recomendar. Agora minha rotina é começar a escrever numsoftware de planejamento, alinhavando o que me vem à cabeça. Possoescrever(oexemplovemdeminhaatualpesquisacomRobFaulknersobreo repertório do jazz, discutido emBecker e Faulkner 2006a, 2006b) quealguns instrumentistas de jazz são conhecidos por “saber um monte demúsicas”.Esteémeuprimeiro“tópico”.Aí,comosegundotópico,nomesmonível lógico do primeiro, ponho o título de um artigo de Dick Hyman,pianistaexperientede jazz, chamado“150melodiasexemplaresque todomundo devia conhecer”. Continuo acrescentando tópicos até notar quealgunsconvergemparaumaideiaquepossoapresentarcomotópicomaior–ovalormoralqueosmúsicosdejazzatribuemaconhecerummontedemúsicas–,oqualsugereumarubricamaisabrangentequeconteráambos,quepororachamareide“moraldorepertório”.Abroumarubricacomessenomee transfiromeusdois tópicosmenorespara lá, dentrodo esquemageral.Seguindo essa lógica, vários pontos específicos sobre nossas

observaçõesquantoàsmúsicasqueosinstrumentistasescolhemparatocaremdiferenteslugaressetornamsubtópicossobumarubricadescrevendocomoasexigênciasdassessõesdejazzmoldamorepertório.Issomelevaalistaroutrosexemplosquetalvezqueiramoscomentar.Conformecontinuoa criar tópicos e mudá-los de lugar, concluo que a maneira como osinstrumentistas tocam músicas que nunca tocaram antes, mesmo semnenhuma partitura na frente deles, realmente faz parte de uma rubricamaiorsobreashabilidadesnecessáriasparaserumefetivoinstrumentista

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do tipo que estamos estudando. E desloco muitos tópicos menores sobaquelarubrica.Enquanto estoumexendo nos tópicos, paro e desenvolvo algum deles,

escrevendo um ou dois parágrafos para explicar o que quero dizer, numprimeiro esboço que vou acertar depois. E isso me desperta para outraideia e novos tópicos. E, continuando a acrescentar, mudar de lugar edesenvolver, crio um plano geral que mostra algum tipo de sentidoprovisório (e, se não mostrar, posso continuar a mudar os tópicos e ostextos até conseguir). As conexões lógicas, que sinto que vão seaglutinando, fazem parte de um processo de análise que acabaráproduzindo o resultado final, aquele que publicaremos depois. E lembreque, quando chego a esse resultado ainda tosco, também tenho muitostrechosqueentramnostópicosdoplanogeralequeoqueeutinhaadizernos textos curtos, incluídos no plano geral, por sua vez levaram a maisoutros tópicos dentro desse esquema. A gente tem mais fluência nessevaivémdetópicosetextosdoquemontandoumplanogeraleescrevendodepois o que ele sugere. Tambémémais rápido do que você imaginaria,pois não perdemos tempo nenhum nos preocupando se tal ou tal tópicodeve ficar aqui, em vez de estar ali. E, o mais importante aqui, nuncaprecisei pegar a tesoura e o durex para remendar e juntar numa versãofinal meus pensamentos avulsos. Sem redatilografar, sem nada daqueledesgastefísicoquepoderiameforçaradeixartudoparaoutrodia.

Velhastarefasmaisfáceis,novastarefasagorapossíveis

Músicaseimagensmaisacessíveis(ouquase).Oscomputadoresfacilitamavidadaspessoasquepodemaproveitarbemainclusãoemseustextosdemateriais diferentes de uma impressão convencional. Fotos, desenhos,tabelas,gráficosestatísticos:tudoissopodeserpreparadoporprogramasconcebidosparatais tarefas,queentão inseremno lugarquevocêquiser,eliminandooreceiodosautores,àsvezes justificado,dequeumdesignerdescuidadovenhaaconfundirosignificadopretendido;osdesigners,claro,muitasvezestêmideiasmelhoressobreaformadeexpressarvisualmenteosignificadodoqueosautores,maspelomenosestesagorapodemdeixarclarooquequerem.Sevocêescrevesobremúsica,sempreéútil terexemplosmusicais,em

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notação e gravação, para ajudar os leitores a entender o que você estáfalando. Agora você pode preparar as formas de notação musical e atéincluir uma gravação de acompanhamento com relativa facilidade (não étãofácil,masémaisfácildoqueseriasemocomputador).Infelizmente para os autores, surge uma nova dificuldade junto com

essas maneiras mais fáceis de incluir tais materiais. Os detentores dosdireitos sobre as fotos, as obras de arte e as peças musicais agora seempenhammaisemreceberoquelhesédevido,equeremcadavezmaispor partes cada vez menores da obra que você deseja reproduzir. Oseditores preocupados com ações judiciais insistem que os autorescomprovem claramente o direito de uso de qualquer coisa que incluam.Comisso,conseguirasautorizaçõesdeusovirouumatrabalheirainfernal,que muitos preferem evitar. (Bielstein 2006 é um guia abrangente, emfavordoautor,nessaconfusão.)Seseuargumentonãorequerareproduçãodeobrasespecíficas,vocêpodecriarsuasprópriasfotografiasoumúsicasparailustrarosaspectosemquestão,masnemtodomundoquequerfalarsobre arte é também capaz de criá-la. E você não pode criar obras cujointeressehistóricoouestéticoresideemsuaautenticidade,istoé,emteremsidocriadasnãoporvocêe simporaquelaspessoasquevocêdizqueascriaram.

Bibliografia.Agoraficouincrivelmentefácilreunirumabibliografiaenormearespeitodequalquertemasobreoqualvocêestejaescrevendo.Algumasgoogladas, uma interface de biblioteca, um programa que reúna essasinformaçõescomoregistrosdeumabasededadospermanenteedepoisosapresente em qualquer estilo que uma editora ou um periódico possaexigir:ésódissoquevocêprecisaparamontararevisãobibliográfica,queéumaexigênciacadavezmaisfrequente,eédefácilacesso,principalmenteseapessoativeracessopelocomputadoraumabibliotecauniversitária.Vocêpodeusarpalavras-chaveparapesquisarumagrandequantidade

deregistros,comoumcatálogodebiblioteca,descrevendolivrosouartigos.Pode procurar pelas palavras que constam nos títulos dos livros, nosresumosquecostumamvirnocomeçodosartigosimpressosounalistadepalavras-chave que os periódicos geralmente pedem que os autoresforneçam.Vocêmontaumalistasó,talveznemtendolidotodosostítulos,eacrescenta ao final de seu manuscrito, como apoio de sua “revisãobibliográfica”,que temse tornadocadavezmaisumexercício ritualpara“garantir que não deixou de fora nada que alguémpossa achar que você

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deveriaterincluído”.Masoscomputadoresnãotrazemapenasvantagensnabibliografia.De

umlado,facilitaramascoisasparaosautoresassoberbados;poroutrolado,dificultaramascoisasparaosleitoresassoberbados.Comoficoumaisfácilcompilarlongaslistasdereferênciasgraçasàsbuscaspelocomputador,osautoresincluemmuitomaismateriaisdoqueosefetivamenterelacionadoscomseusargumentos.Tenhoumindicadorsimplesquememostraquandouma referência no texto é pouco importante e pode ser ignorada semproblemas. Se a citaçãono texto incluipáginas específicas – semencionaBecker 1986, p.136-9 – imagino que o texto indicado realmente diz algopertinentesobreaquestãotratadapeloautor.MasseamençãoseresumeaBecker1986,remetendoaolivrointeiro,tenhobastantesegurançadequenão vem ao caso e até desconfio que o autor nunca tenha chegado a lerBecker1986–apenasencontrouareferêncianumapesquisabibliográficaeachouprudenteincluí-la.Afinal,nãocustanada.Oqueantes sedestinavaa ajudaros leitores acadêmicosquequeriam

saber onde lermais sobre as ideias que os interessavam e fornecer umamaneira de conferir a precisão das citações e de outros materiaismencionados transformou-senumexercício ritual, emqueo computadorfazoserviçodoqualoautoresperacolheralgumbenefício.Oleitorsofrecomotextosobrecarregadodecitaçõesquenãotêmutilidadeeinterferemnoacompanhamentodasideiasnotrabalho.O computador é uma grande ajuda, mas também é uma armadilha.

Cuidado.

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10.Umapalavrafinal

De1986

A leitura deste livro não resolverá todos os seus problemas de redação.Dificilmente resolverá algum. Nenhum livro, nenhum autor, nenhumespecialista – ninguém pode resolver seus problemas. Os problemas sãoseus.Vocêéquetemdeselivrardeles.Mas,dascoisasqueeudisse,vocêpodeextrairalgumasideiasdecomo

resolvê-losou,pelomenos,decomeçaratrabalharneles.Porexemplo,paraevitar a praga de tentar fazer tudo certo de primeira e, assim,simplesmentenãoescrever,podeadotarasugestãodeescreverqualquercoisa que lhe passe pela cabeça num primeiro rascunho. Se vocêacompanhoumeusargumentos, já sabequepoderá corrigirmais tardee,portanto,nãoprecisasepreocuparcomasfalhasdorascunhoinicial.Você pode evitar o tom vago e empolado de uma escrita “com classe”

repassando várias vezes o texto e eliminando as palavras que nãofuncionam.Podepensarqualéotipodepessoaquevocêquerseremseutexto e como a persona que adotar afetará a credibilidade de suasafirmações.Podelevarsuasmetáforasasérioeverseaindafazemsentido.Apenasprestandoatenção,vocêpodeobtercontrolesobregrandepartedoquefaz.Eu poderia continuar, resumindo o que já disse. Mas você pode

recuperar essas dicas com amesma facilidade – sabendo, porém, que asdicas, como eu disse, não resolverão os problemas. Nada disso vaifuncionaramenosquevocêadoteessassugestõescomopráticarotineira.Paraaproveitarestasequaisqueroutrasdicas,use-as,experimente-asemdiversascircunstânciasnasváriastarefasnahoradeescrever.Adapte-asàssuaspreferências,aoseuestilo,aoassuntoeaopúblico-alvo.Vocêas leu,mascontinuamaserminhas.Enquantovocênãoseapropriardelasatravésdousoconstante,estaráapenasseesquivandodotrabalhodemudarseushábitos.

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Isso sugere que a força de vontade e a dedicação ao trabalho dãoresultado. Tentei evitar, mas essa moral à la Benjamin Franklin estápresente em tudo o que falei. Em parte, é inegável: sem trabalho, nadaacontece.Maséumenganopensarqueadedicaçãoaotrabalhoésuficiente.Muitoscientistassociaistrabalhamcomgrandeafinco,masrealizampouco.Você precisa também correr alguns riscos, mostrar seu texto a outraspessoas, ser aberto a críticas. Em termos imediatos, isso pode serintimidadoreatépenoso.Masasconsequênciasdenãofazerseutrabalhosãodelongoalcanceemuitomaispenosas.Vocênãoprecisacomeçarescrevendoumlivro.Escreverqualquercoisa

–cartas,registrosnumdiário,bilhetes–jávaiajudaraeliminarumpoucodoperigoedomistériodaescrita.Escrevoummontedecartas.Tambémescrevobilhetes,paramimmesmoeparapessoascomquemtrabalhooupartilho algum interesse. Examino esses documentos fortuitos,praticamente isentos de qualquer censura, em busca de ideias que nãochegaram a ser plenamente formuladas, mas que talvez sejaminteressantes,eembuscadealguminícioparacoisasmaissérias.Umasegundaliçãodestelivro,implícitaemtodososcapítuloseexplícita

na maioria deles, é que a escrita é uma atividade organizacional, emresposta às imposições, oportunidades ou incentivos que lhe sãoapresentados pela organização na qual você escreve. Assim, outra razãoparaqueessasdicastalveznãoaprimoremsuamaneiradeescreveréqueaorganizaçãonaqualvocêtrabalhaexijaumaredaçãoruim.Várioscientistassociais e outros acadêmicos insistem comigo que não conseguiriam queseus textos fossem aceitos por professores, periódicos e editoras seestivessem redigidos no estilo simples que defendo. (Ver a carta deHummeleFosteraoeditorsobreoCapítulo1,citadaanteriormente.)Nãocreio que seja uma verdade geral,mas semdúvida pode ser verdade emcertas ocasiões e em algumas organizações. Orwell acreditava que apressão para ocultar as realidades políticas levava as autoridades e seusdefensores a escrever de uma maneira que mais disfarçava do quecomunicava. Alguns pensam que os acadêmicos operam sob restriçõessemelhantes, talvez não políticas, mas embutidas nos pressupostosoperantes das áreas de estudo.Umamigopsicólogome contou certa vezque o editor de uma importante revista especializada elogiou um artigodelenãomuitoconvencionaleacrescentouimediatamente:“PeloamordeDeus,nãomandeparamim.Eunãomeatreveriaapublicá-lo,poisnãoestánaformacorreta!”Aorganização social, se cria problemas, tambémcontémos elementos

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para as soluções. Os acadêmicos deveriam, por exemplo, tentar algumasexperiências antes de concluir que precisam fazer as coisas de umamaneirainferioraqueseriamcapazes.Adisciplinapodeconterosrecursosnecessáriosparafazerascoisasdeoutramaneira.Vocêpodedescobrirserealmenteprecisaescrevermaltentandofazerdeoutramaneiraevendooqueacontece.A organização social tem ainda outromodo de impedir que você faça

essas experiências (normalmente) simples e seguras. As atividadespadronizadas da vida acadêmica muitas vezes ocultam os apoios sociaisque lhepermitemaproveitar asoportunidades.Comefeito, comoPamelaRichardsdeixouclaroaodescreverosriscosdeescrever,é frequentequeos acadêmicos se esforcem para prejudicar os colegas. Você não poderáaproveitarnenhumadas chancesque sugeri, pormodestas que sejam, setiver boas razões para temer seus colegas em qualquer posição dahierarquia. Mas pode evitar essa situação se empenhando em construirredesdeapoiomútuo.ComoRichardstambémdiz,sevocêacharquepodeencontrar essas pessoas capazes de ajudá-lo, pode encarar os riscos eavaliarseusreceios,deixandodeladoosquepodemsersuperados.Algunsconsideramqueminhassugestõesdereescreverdeumamaneira

que parece quase interminável são irrealistas ou desnecessariamenteheroicas.Ninguémtemtantotempoassim,dizemeles.Comovocêaguentatrabalhar tanto? Issorevelaumgrandeequívoco.Ninguémfezosestudosmeticulososqueprovariamisso,mastenhocertezadequeosacadêmicosqueescrevemdessamaneiralevammenostempopararedigirseteouoitoversõesdoqueoutraspessoasgastamnumaversãosó.Nãoéquetenhamalgumtalentoespecial.Éapenasadiferençaentrequerertertudocertonacabeça já da primeira vez ou ir fazendo no papel ou no computador,arrumando umas coisinhas à medida que avança. E também não é queesses escritores tenham uma capacidade excepcional de suportar aansiedade.Emvezdesuportá-la,elesaevitam,começandopeloqueéfácilde fazer epassandogradualmentepara algoumpoucomaisdifícil. Essespassos progressivos de ir ajeitando as coisas reduzem o impacto dasverdadeirascausasdeansiedade.Por fim, aplique a grande mensagem libertadora da sociologia à sua

própria situação acadêmica. Entenda que seus eventuais problemas nãoforam criados exclusivamente por você, não resultam de algum terríveldefeito pessoal,mas estão embutidos na organização da vida acadêmica.Nãoprecisa aumentar oproblema culpando-sepor algoquenão foi vocêquefez.

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Assim, polianamente, amoral dahistória é:Tente! Como certa vezmedisseumamigo,opiorquepodeaconteceréaspessoasacharemvocêumidiota.Podiaserpior.

Maisalgumaspalavrasfinais(2007)

Comodizem,anteseraanteseagoraéagora(enãoserápormuitotempo).Já falei várias vezes que nossos problemas em escrever são problemas quenascem dos cenários organizacionais em que trabalhamos e que aorganizaçãosocialnãoé imutável.Estavamudandoquandoescreviabreveconclusãoquevocêacaboudeler,econtinuaamudar.Demeupontodevista,e sem dúvida outros terão uma visãomais positiva, asmudanças não têmsido boas para nós, acadêmicos, e direi em algumas palavras finais o quepensoquemudoueporqueprecisamosnosempenharemvencerascoisasaquesomoscontrárioshojeemdia.Issopareceumtantopesadoe,assim,meapressoemdizerquecontinuo

asorriramaiorpartedotempo,aindacontinuoatrabalhar.Masnãogostodo rumo que as coisas tomaram. Quando me formei em sociologia, eucostumava dizer a mimmesmo que, se a docência e a pesquisa dessemtrabalhoouproblemademais, podiavoltar a tocarpianonosbares comomeiodevida.Depoisdealgumtempo, issoviroubravata.Não teriacomovoltaràquelavida,poiselatinhadesaparecido.Oslocaisondeeuimaginavaquepoderiatocarhaviamtrocadosuaspequenasbandasporumagrandetelade tevê, eos serviçosquepenseiquepodia fazerhaviamdeixadodeexistir. A sociologia semostrou uma áreamuitomelhor para trabalhar enuncalamenteiaescolha.Mas fico contentequeminha carreiradocente tenha sedadona época

emquesedeu.Tiveocuidadodenascernumanoquemelevouacomeçardar aulas em 1965, quando o número de estudantes ingressando nafaculdade foi superior a qualquer previsão das reitorias. (Por que nãoviram que isso ia acontecer? Os demógrafos tinham avisado que essageração estava a caminho.) De repente, os cursos de graduação e pós-graduaçãoprecisavamdeprofessores, e comurgência.Atéentãoeuviviacontentecomo“pesquisador folgado”,pagoparapesquisarepublicar,emvezdeensinar.Todososmeusamigossentiampenademim,poiseunãotinhaumempregoacadêmico,mas,quandoveioaexplosãouniversitária,

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eujátinhadoislivroseumbomtantodeartigospublicados,ederepentemequiseramparaprofessor.As matrículas na graduação dispararam. A quantidade de alunos em

cursosdeciênciassociaiseaquantidadedelivrosquepodiamservendidosa eles, também. A quantidade de estudantes de pós-graduação sepreparandoparadaraulasatodosaquelesgraduandostambémaumentou,bemcomoomercadoparaasmonografiasdepesquisaqueelesliamcomopartedesuaformaçãoe,depois,ensinavamaseusprópriosalunos.Semprehavia um monte de empregos nessa cidade universitária em francaexplosãodemográfica.Comoaumentodaquantidadedesociólogos,houvetambémoaumento

da quantidade de entidades e periódicos de sociologia, representandodiversasáreasdeespecializaçãoeváriasposiçõesteóricas(veradiscussãoemBeckereRau1992).Publicarnunca foiproblema.Com todosaquelesnovos periódicos em busca de artigos, havia vazão para os artigos desociólogos de todas as tendências, famosos e ainda não famosos. E paralivrostambém,quandonovaseditorascomeçaramadisputaroriginaisnãosódesociologia,masdetodasasciênciashumanas.Qualquerjovemdapós-graduaçãononovomilêniojáviuquenãoémais

assim.Empregos são raros.Apublicação, cujaprincipal função tinha sidodivulgaraspesquisasereflexõesmaisrecentesnumaárea,adquiriuanovaresponsabilidade indesejada de funcionar como parte do processo dedecisãodasuniversidades,quantoàspessoasquequeriamcontrataredarestabilidade. Você conseguia uma vaga, especialmente uma “boa”, e erapromovidopeloquepublicava–principalmentenaquelesperiódicostidosporconsensocomoos“melhores”.DonaldCampbell (1976,p.3) identificouum fenômenoque chamoude

“corrompimento dos indicadores”, que descreve comprecisão o estado aque se chegou: “Quanto mais se usa algum indicador social quantitativopara a tomada social de decisões, mais sujeito ele estará a pressõescorruptoras e mais capaz será de distorcer e corromper os processossociais que deveria monitorar.” Conforme o número de trabalhospublicadosadquiriaimportânciacadavezmaiornacarreira,osacadêmicosjovens se apressavam em publicar mais e mais artigos. Além disso, osdepartamentos passaram a se basear cada vez mais na “contagem decitações” (a quantidade de vezes em que seu artigo é citado em artigosalheios)para tomardecisões cruciaisquantoao corpodocente, oque fazcomqueasestratégiasautoraisafeteme corrompamesse indicador.Nãotenhodadosqueprovemessasocorrências,masdescobriumpequenofato

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curioso: o tamanho dos títulos dos artigos submetidos à AmericanSociologicalReviewem2002tem,namédia,dozepalavrase traz listasdevariáveis,especificaçõesdelocaisdepesquisaedetalhessemelhantes,comqueantesosautoresnãosepreocupavam(Becker2003b).ApesquisadeJames Moody (2006) dá base a essa especulação, mostrando que nemsemprefoiassim:ocomprimentomédiodostítulosdosartigospublicadosnosprincipaisperiódicossociológicosaumentoudeoitoparadozepalavrasentre 1963 e 1999. Suponho, sem provas, que esse aumento resulta danova funçãodo artigo, que agoranão é tantode leitura e simde citação,paraserincluídonacontagemdeumíndicedecitações,cujasocorrênciasjustificariam um pedido de emprego ou de promoção. Aqui só possoespecular, mas o título aumentou de tamanho porque os autores agoraincluem mais detalhes sobre suas pesquisas – especificando fontes dedados, locais de pesquisa, métodos usados –, para que seus artigosapareçamemmaiornúmerodebuscasbibliográficasautomatizadas.Adisputapelopoucoespaço,sobretudonos“grandes”periódicos,aque

os diretores e comissões de promoção e efetivação de seus quadros dãopeso especial, tornou-se feroz. Levados a procedimentos burocráticosimpessoaispara avaliar as contribuições (Abbott 1999, p.138-92, conta atriste história), os periódicos insistem cada vez mais em apresentaçõesrigidamentepadronizadas,comextensasbibliografiaseopressivasrevisõesbibliográficas das quais reclamei mais acima. Os acadêmicos em fasesvulneráveisdacarreirapreferem,emsuamaioria,optarpeloseguro,oqueémuito compreensível, e escrevem artigos que apresentam as principaiscaracterísticasdaquiloqueveemaoredordeles(característicasdasquaisjáreclameiantesesugerimaneirasdeevitar).Nãohánenhumdecretooficialimpondoessascaracterísticas.Chegaram

aessa situaçãocomo “aquiloque todos fazem”naturalmente, atravésdasrecomendaçõesdemúltiplospareceristasedoprocessocircularemqueosautores examinavam os periódicos para ver como devia ser um artigoapropriado e o imitavam, de modo que os artigos chegavam à mesa doeditorcomtaiscaracterísticasnodevido lugar. (Numa tristedistorçãodesua tarefa, os pareceristas às vezes faziam suas complexas críticas parareforçarem ainda mais sua fama de acadêmicos conhecedores emeticulosos.)Decidi fazer umapequena experiência.Queria testar a ideia de que as

organizações sociais em que trabalhamos hoje em dia são muito menosabertas a variações nas maneiras de apresentar os dados e de escreversobreosignificadodeles,muitomais insistentesnas fórmulase formatos

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padronizados. Fiz uma pequena investigação, uma variante da que foirealizadaporAnthonyTrollope,oromancistabritânicodoséculoXIXqueenviou um conto (usando pseudônimo) para uma revista britânica que,antes, ficara feliz empublicar seus trabalhos, comouma espécie de testedosefeitosda famanaavaliaçãoeditorial.Comopseudônimo, elenão sesaiu tão bem como se usasse seu próprio nome, mais famoso; o editordevolveu o conto com uma nota de incentivo para continuar tentando(Trollope1947,p.169-72).Elechegouàconclusãodequeorenomeinfluíanaavaliaçãoeditorial.Minhaintençãoeraver,comminhavariantedotestedeTrollope,seas

avaliaçõeseditoriaiseramtãorígidasquantoeutemia,sehaviarealmentetanta insistência em soluções convencionais e padronizadas para osproblemasdeapresentarosdadoseasideias,queresultavamnoconteúdocadavezmaisilegíveldequetantaspessoasreclamam.Umamigo,editordeum periódico importante, não acreditava que as coisas fossem tão ruinsquantoeudizia(e,vocêhádelembrar,comotambémdisseramoscríticosdoprimeirocapítulodestelivro,quandoeuaindanãoacreditavaquefosseassim).Porsugestãodele,submetiumartigoàavaliaçãodeseuperiódico.EuhaviapublicadonaFrançaumartigoemfrancês(Becker2001)sobre

a solução estilística de Erving Goffman para o problema do viés quecontamina nosso trabalho quando usamos a linguagem convencional davidasocial,comoestáexemplificadoemAsylums(Goffman1961).Parecia-me um bom artigo, não uma grande revolução, mas útil, como tambémjulgaram os organizadores do livro em que ele foi incluído. Meu amigoeditor achou que servia e encaminhou o texto a três pareceristas. Oresultado da experiência de Trollope não se repetiu. Os pareceristasadivinharam facilmente quem era o autor; ficava óbvio pelas váriasreferênciaspessoais.Eeuestava testandooutra ideia:não seonomeeafamadoautorfaziamalgumadiferença,masse,apesardonome,dafamaeda avaliação favorável geral que eu esperava sem nenhuma modéstia, opredomíniodosprocedimentosatuaisimpediriaapublicaçãodoartigonaformalevementeinconvencionalemqueentãoseencontrava.Os pareceristas não me surpreenderam. Gostaria que tivessem me

surpreendido,rejeitandoouaceitandooartigopeloméritodesuasideiasesua credibilidade. Consideraram que era um artigo interessante de umautor conhecido, que continha algumas ideias proveitosas. Mas…simplesmente não “se encaixava” no formato, no estilo, na missão doperiódico. Por exemplo, não mencionava a “bibliografia sobre Goffman”.Além disso, o estilo era informal demais, faltava-lhe o tom erudito e

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acadêmico.Elesestavamatendendoaalgumastendênciasbem-conhecidasdos comitês de supervisão e de outros representantes das organizaçõespatrocinadoras que julgavam o trabalho dos editores e dos conselhoseditoriaisdosperiódicos.Emboraessessupervisoresnãoquestionemcadaumadasdecisõeseditoriais,defatoouvem(epreveem)asreclamaçõesdeseus círculos de leitores. Quando um artigo não faz o que se tornourotineiro fazer (como citar dezenas de artigos da bibliografiaconvencionalmentetidacomopertinenteaotema),alguémvaireclamareos editores aprendem a evitar tais reclamações. Essa tendência deautorreforço é uma força extremamente conservadora, que perpetuamuitaspráticaseditoriaisruins.Minha pequena experiência me demonstrou que, mesmo para um

acadêmico conhecido, hoje em dia é difícil publicar nos melhoresperiódicos sem se sujeitar às condições estilísticas e bibliográficas. Aorganização das oportunidades de publicação mudou. O que antes eraaceitávelagoranãoémais.É uma conclusão pessimista, e devo retificá-la. Concluí a experiência

enviandoomesmoartigoaoutroperiódico,SymbolicInteraction(abrindoojogo: eu tinha sido editor de lá antes), que aceitou e publicou o texto(Becker2003a).Numaconclusãomaisexataemenospessimista,devidoaoenorme aumento dos veículos de publicação que mencionei mais acima,vocêconseguepublicarpraticamentequalquerartigo,seestiverdispostoasairemperiódicosquenãosejamos “carros-chefe”daárea. (Naverdade,quaseninguémpublicamesmonessesperiódicos.Aquantidadedeartigosqueeles lançamporanosimplesmentenãoésuficienteparaconceder talhonra a muita gente.) Esse fato complementar da organização socialsignificaque,quandovocêreclamadeterdefazerassimouassado,apenasemparteéverdade.A publicação em livro émuitomais aberta a variações estilísticas. Os

editoreseosassistentesquefazemgrandepartedotrabalhodeencontrarlivros com potencial de publicação têm públicos diversos e visam adiferentesfatiasdomercado,eseuscatálogosmostramavariedadedeseusgostoseprojetos.Procuramlivrosqueinteressemamuitagente,esperameles,massobretudoàquelepúblicoquejáforaatraídoporsuaspublicaçõesanteriores,pessoascomtaloutalinteresseespecífico.Tambémprocuramlivrosinformativos,obrasacadêmicasdealtaqualidadequesejamdefácilleitura. Baseiam-se, como os editores dos periódicos especializados, noparecer de pessoas da área que lhes digam se o trabalho atende aoscritérios de qualidade na pesquisa e no domínio daquela especialidade.

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Queremquesuasediçõestragamprestígioàeditoraerendamalgumlucroou pelo menos cubram os custos, e as comissões que supervisionam otrabalho das editoras acadêmicas não representam os modismos einteresses especializados apenas de alguma área em particular. Emdecorrênciadisso,apublicaçãodelivrosémaisdiversificada,maisabertaavariaçõesdoquepodemadmitirosperiódicosdaárea.Osdiretoresdosinstitutosquesebaseiamnaslistasdas“duasprincipais

publicações” em cada área para orientar suas decisões quanto ao corpodocente provavelmente não utilizam listas semelhantes das editoras. E,mesmoque todoomundodeumacertaárea tenhauma ideiadorankingdaseditoras eprefira serpublicadopelas “melhores”, os livros (lançadosporqualquereditoraqueseja)contammuitonasdecisõesdecontrataçãoepromoção, e assim os autores que encontram uma editora arrojada (eexistemmuitas)podemsearriscarmaisàvariedadeestilística.Os editores geralmente se preocupam menos com as sutilezas da

meticulosidade acadêmica emais com o gosto dos leitores. Não impõemaqueles tipos de regras que agora desfiguram os textos nos periódicosacadêmicos.Assim,oslivrossetornamumveículoparamateriaisquenãoseencaixamnasexigênciasdo formatopadrãodosperiódicos,comofoiocasodemeuartigosobreGoffman.(Este,naverdade,agoraaparececomoCapítulo13emBecker2007.)Por fim, aspossibilidadesdepublicaçãoeletrônica aindaestãopor ser

exploradas mais a sério. (Veja a discussão sobre a publicação “sobdemanda”emEpstein2006.)Masjáépossívelcriarseupróprioartigooulivro, colocá-loemseusiteedisponibilizá-loparaomundo todo.Ouusarumserviçodepublicaçãoon-lineparaajudá-loaproduziredistribuirseulivro. A autopublicação não traz a garantia de qualidade que há napublicaçãonumperiódicocompareceristasounumaeditoradeprestígio.Mas muitos leitores já chegaram à conclusão de que os periódicosespecializados não trazem a qualidade e o interesse prometidos pelagarantiadeusaremaavaliaçãoporpares.Talvezsejaotimismodemaisdeminhaparte,massintoquejáexistemalgumasformasbastantediferentesde divulgar o que pensamos saber, mesmo que ainda não tenhamoscaptadotodooseupotencial.Essas possibilidades de evitar as imposições organizacionais que

interferemnotipoderedaçãoquequeremosusarmefazemlembrarumaocasião,quandofuifalarparaocorpodocentedeumapequenafaculdadereligiosa,queestavanumretiropreparando-separaopróximoanoletivo.O diretor, que não me conhecia (eu estava substituindo um palestrante

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mais famoso, que havia cancelado a apresentação de última hora e meenviouemseulugar),concluiusuaapresentaçãodizendoquetinhacertezade que o “dr. Becker lhes trará umamensagem não só informativa,mastambém inspiradora”. Eu sabia que não poderia cumprir tal promessa, eporissocomeceidizendoquenãomejulgavacapazdeserinspirador,masquetentariatransmitiralgumaesperançaaofinal.Efoiissooquetenteifazer.Boasorte.